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LIVROS DE ARTISTA E SKETCHBOOKS COMO PORTA-VOZ

DE TRANSTORNOS ALIMENTARES

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de


Design Gráfico pelo Centro de Artes da Universidade Fede-
ral de Pelotas, como requisito parcial à obtenção do título
de Bacharel em Design Gráfico.

Fábio Henrique Cunha Rodrigues


Orientador: Lauer Alves Nunes dos Santos

Pelotas, 2021
Obrigado à Pelotas, pelas experiências que vivi e pessoas que conheci, que tanto acreditam em mim.
Obrigado à UFPEL, pelo ensino e pela nova bagagem.
Obrigado ao Lauer, Ana Bandeira e Helene Sacco pelos conhecimentos compartilhados.

Obrigado à São Paulo, pelas experiências que vivi e sobrevivi.


Obrigado à família e amigos, pelo suporte nos momentos mais difíceis.
Obrigado às psicólogas, pelo esforço em minha melhora.
Obrigado à Space Dude, pelas experiências aterradoras.
Obrigado ao Eu do passado, por não ter desistido do Eu do futuro.

Obrigado.
Entender o papel de livros de artista e sketchbooks como locais de regis-
tro e expressão autoral são o cerne desta pesquisa, executada através
da criação de um metalivro que mistura pesquisa acadêmica e criação
poética para compreender qual o papel destes suportes na construção de
memórias. Pela união de texto acadêmico e criação autoral em design,
ao longo dos capítulos esta pesquisa estuda as diferenças entre estes re-
positórios gráficos e quais suas semelhanças, fazendo uso de diferentes
autores e teorias para compor as relações entre design, arte e autoria.
O texto poético, que tem os transtornos alimentares como fio condutor,
apresenta uma narrativa verbo-visual que exemplifica na prática estas co-
nexões. A pesquisa propicia os alicerces necessários para a criação pro-
jetual do livro Caixa-Preta, que reinterpreta antigas memórias registradas
em sketchbooks pessoais através de uma interlocução com Inferno da
Divina Comédia, de Dante Alighieri. Cada tópico é composto por ambos
os textos que se misturam para a construção de sentidos.

Palavras-chave:

Livro de Artista.
Sketchbook.
Design Autoral.
Transtornos alimentares.
Anorexia.
Understanding the role of artist's books and sketchbooks as places of
registration and authorial expression are at the heart of this research,
carried out through the creation of an intercontextual book that mixes
academic research and poetic creation to understand the role of these
supports in the construction of memories. Through the union of aca-
demic text and authorial creation in design, throughout the chapters this
research studies the differences between these graphic repositories
and what their similarities are, making use of different authors and the-
ories to compose the relationships between design, art and authorship.
The poetic text, which has eating disorders as a guideline, presents a
verb-visual narrative that exemplifies these connections in practice. The
research provides the necessary foundations for the project creation
of the book Caixa-Preta (Black-Box), which reinterprets old memories
recorded in personal sketchbooks through an interlocution with Dante
Alighieri's Inferno from the Divine Comedy. Each topic is composed of
both texts that mix to build meanings.

Keywords:

Artist’s Book.
Sketchbook.
Author Design.
Eating disorders.
Anorexia.
Figura 11 – Morador da Casa. Como Convém., diagrama, de Pris-
cila Gonzaga. Pág. 59
Figura 12 – Variable Piece 4: Secrets, fac-símile, de Douglas Huebler. Pág. 59
Figura 13 – Boîte-en-Valise, de Marcel Duchamp. Pág. 60
Figura 14 – Fluxus 1, de Fluxus. Pág. 61
Figura 15 – Censored Book, de Barton Lidicé Benes. Pág. 62
Figura 16 – Germina-n-do, do grupo de pesquisa Lugares Livro. Pág. 63
Figura 17 – Diário de Campo de Charles Darwin. Pág. 70
Figura 18 – Diário de campo de Euclídes da Cunha. Pág. 71
Figura 19 – Fac-símile do Diário gráfico de Frida Kahlo. Pág. 71
Figura 20 – versations, de Waren Lehrer. Pág. 87
Figura 21 – Process; A Tomato Project, de Tomato. Pág. 89
Figura 22 – Bareback. A Tomato Project, de Tomato Pág. 89
Figura 23 – Pure Fuel, de Fuel. Pág. 90
Lista de Figuras:
Figura 24 – Fuel 3000, de Fuel. Pág. 91
Figura 25 – Painel Semântico com falsas folhas de rosto. Pág. 128
Figura 1 – Diagrama Salada de Frutas, de Clive Phillpot. Pág. 44 Figura 26 – Painel semântico com cartas de última página. Pág. 129
Figura 2 – The Inferno, Canto XIII, ilustração de Gustave Doré,. Pág. 44 Figura 27 – Painel Semântico com autorretratos de rosto. Pág. 131 e 133.
Figura 3 – Páginas do livro Jazz, de Henri Matisse. Pág. 46 Figura 28 – Painel Semântico com autorretratos de corpo. Pág. 134 e 135.
Figura 4 – Vogaláxia (AEIOU), poema de Pedro Xisto. Pág. 47 Figura 29 – Painel Semântico com comidas. Pág. 136.
Figura 5 – Gibi, livro de artista de Raymundo Colares. Pág. 48 Figura 30 – Painel Semântico com desabafos. Pág. 138, 139 e 140.
Figura 6 – Gibi, livro de artista de Raymundo Colares. Pág. 49 Figura 31 – Painel Semântico sobre sexualidade. Pág. 141 e 142.
Figura 7 – A Caixa, fac-símiles de fotografias e manuscritos de Mar- Figura 33 – Painel Semântico com personificação. Pág. 143, 144 e 145.
cel Duchamp. Pág. 56 Figura 34 – Caixa-preta de avião. Pág. 164.
Figura 8 – A Caixa Verde, fac-símiles de manuscritos, obras e dese- Figura 35 – Sketch fotos 3x4. Pág. 165.
senhos de Marcel Duchamp. Pág. 56 Figura 36 – Sketch abertura inferno. Pág. 165.
Figura 9 – Exercícios Visuais-Tácteis, de Vera Barcellos. Pág. 57 Figura 37 – Sketch floresta dos suicídas. Pág. 168.
Figura 10 – Morador da Casa. Como Convém., mapa, de Priscila Figura 38 – Sketch A Dança. Pág. 168.
Gonzaga. Pág. 58. Figura 39 – Sketch perfis Grindr. Pág. 169.
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Da nossa vida, em metade do meio da jornada,
Achei-me numa galáxia tenebrosa,
Tendo perdido a verdadeira estrada.
1. INTRODUÇÃO

Passar pela mudança de papéis entre ator e espectador da


própria história é algo angustiante e também libertador. Angustiante
por se perceber como um corpo estranho às suas antigas dores
e padeceres e libertador por não mais os possuir. Aqui os antôni-
mos se complementam para dar luz a uma pesquisa que serve não
apenas para falar sobre design, mas também como um guia para
compreender a minha narrativa como um homem antes anoréxico.
As dúvidas e inquietações que surgem desta busca vão de encon-
tro ao papel do designer como autor, especificamente em livros de
artista e sketchbooks e sua liberdade poética e criativa, que foram
as pontes necessárias para minha transformação de ator para es-
pectador, às vezes autor e às vezes narrador, da própria história.
Sintetizo essas inquietações em uma dúvida principal: como deba-
ter os livros de artista e sketchbooks como porta-voz de memórias
de homens com transtornos alimentares?
Desde o processo de criação, construção e significação do
que são livros, houve grandes dúvidas sobre o que designa o seu
cerne e até que ponto é aceitável subvertê-los e os remodelar de
forma que eles se mantenham como livros. Essa subversão, de

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Dizer qual era é coisa tão penosa,
Desta brava espessura e asperidade,
Que a memória a relembra ainda dolorosa.
acordo com Silveira (2008) não possui uma comprovação temporal experimentações. Também é seu caderno de anotações, um documen-
to pessoal seu que registra experiências visuais sob sua ótica e não
única de seu surgimento, já que diversos artistas e pesquisadores
deixa a mão enferrujar (BRAGA, 2010 apud SOUZA, 2015, p. 410).
fizeram uso deste suporte e o subverteram nos livros de artista em
diversos períodos, sendo a partir da década de 1960 que essa cor-
Essa relação íntima entre as criações gráficas com a memória faz
rupção do suporte é legitimada como forma de arte.
parte deste estudo e do seu modo de criação, uma vez que esse é o
Para Plaza (1982) o livro de artista se constitui como um ob-
motor principal da minha produção durante meu período de adoecimento.
jeto de design a partir do momento em que seu conteúdo e formato
Com isto exposto, criei este livro experimental, Caixa-Preta,
são pensados de forma ativa por seu criador, que designa os signi-
que é uma mistura entre pesquisa acadêmica e criação poética
ficados em todo o processo de produção do livro, diferentemente do
em design que faz uso das memórias expressas em meus anti-
autor de textos, que é inerte em relação à criação do livro como objeto.
gos sketchbooks, reinterpretando sentimentos e lembranças ad-
Outro conceito abordado nesta pesquisa é o de sketchbook.
vindas do adoecimento. Estas memórias fazem parte do período
De acordo com a tradução e significação do dicionário online Collins
da adolescência à fase jovem-adulto, quando desenvolvi depres-
(COLLINS, 2018), sketchbooks são livros para criação de esboços/
são seguida de anorexia nervosa restritiva e purgativa. Durante tal
desenhos e, pelo conhecimento popular, são cadernos de rascu-
processo, cursei Comunicação Visual na Escola Técnica Estadual
nhos, rabiscos, práticas e estudos. No âmbito da criação em design
Albert Einstein, em São Paulo, e entrei em contato tanto com o
e arte, o sketchbook desempenha um papel muito importante como
mundo do design quanto com objetos no âmbito gráfico. Com es-
artefato e objeto de criação. Luciano Mendes de Souza (2015) ex-
tes dois períodos ocorrendo concomitantemente, usei o design e a
plica o processo de criação de tais cadernos como um lugar-artefa-
criação gráfica como formas de expressão e vazão aos transtornos
to em que são retomados memórias, registros e marcas do pensar
alimentares e, através de sketchbooks, criei um diário de memórias
gráfico, sendo o sketchbook passível de ser definido como “um li-
relativas ao meu processo de adoecimento e cura. Como forma
vro, caderno ou bloco com páginas brancas para esboços e é fre-
de entender os meus transtornos e o meu processo de tratamento
quentemente usado por artistas para desenhar ou pintar parte do
psicológico, decidi ir atrás de materiais e pesquisas que explicas-
processo criativo” (SOUZA, 2015, p. 19). Sua interpretação como
sem as causas relacionadas ao meu adoecimento e me surpreendi
diário gráfico também é de suma importância, junto à liberdade que
ao não encontrar nenhum material ou pesquisa em português, na
proporcionam à criação artística, de design e as diversas formas de
época, que estudassem de forma aprofundada os transtornos ali-
experimentação gráfica. Segundo Marcelo Braga:
mentares em homens.
O sketchbook não é um produto, é um subproduto. É o que sobra depois
O intuito desta pesquisa, então, se concentra em ser uma
que você termina um trabalho. São seus esboços, suas ideias, ensaios, semente para as pesquisas relacionadas a anorexia em homens e,

23
Na morte há pouco mais de acerbidade;
Mas para o bem narrar lá deparado,
De outras coisas que vi, direi a verdade.
também, visa entender meu processo de criação gráfica como pilar O texto acadêmico, feito de acordo com as normas da UFPEL,
para minha recuperação, revisitando criações de forma a compre- se localiza comumentemente nas páginas brancas do livro, escri-
ender meu passado, minhas memórias e sua importância à consti- tos com a família tipográfica Arial e com numeração. Por este livro
tuição do meu presente e futuro. ser uma mistura de pesquisa acadêmica e prática projetual, exce-
Vejo este projeto como forma de mostrar aos outros estudan- di o limite de páginas permitido para comportar todas as nuances
tes de design uma via alternativa aos valores usualmente comer- do projeto, reinterpretando a norma pela quantidade de caracteres
ciais da nossa profissão e mostrar a relação intertextual que nos- permitidos, que por sua vez não excedem o limite estabelecido.
sos estudos abarcam, não apenas se concentrando na importância Os espaços deste meu inferno particular são iniciados por fo-
do design para o mercado, mas como forma de trabalhar temas lhas duplas que dão o amálgama para a narrativa desenvolvida em
sensíveis e pouco pesquisados, como os transtornos alimentares cada um dos tópicos e são finalizados por uma carta ou desabafo
masculinos e, com isso, reitero que este projeto possui caráter au- feitos pelo meu Eu do passado nas páginas dos sketchbooks ou
tobiográfico e poético, ou seja, o estudo de livros de artista tem pelo meu Eu presente exclusivamente para este livro. Caso queira
como pano de fundo os transtornos alimentares e não o contrário. iniciar a leitura pelas justificativas conceituais e projetuais do tra-
Não cabe a mim como designer ou ao escopo deste trabalho estu- balho, você pode ir ao Capítulo 4, onde discorro especificamente
dar a fundo as questões psicológicas ou psicanalíticas de tais do- sobre as escolhas gráficas e como elas contribuem para o desen-
enças, mesmo que traga alguns estudos dessas áreas para ajudar volvimento desta narrativa.
a construir os alicerces desta produção, como você pode conferir a É importante citar que a criação deste projeto ocorreu du-
partir do Capítulo 3. rante a pandemia de COVID-19, que abalou de diversas formas a
Nesta pesquisa, discorro em cinco capítulos sobre caracte- realidade de milhões de brasileiros, inclusive a minha. Este projeto,
rísticas históricas e relações entre livros de artista, sketchbooks e então, foi feito a distância e de forma completamente digital, devido
transtornos alimentares em homens, ao mesmo tempo que, pela a importância do distanciamento social no momento em que escre-
criação poética, conto a minha história com a anorexia através da vo estas palavras, o que pode interferir na sua compreensão com-
apropriação de 12, dos 34 cantos clássicos de Inferno, da Divina pleta, cuja as potencialidades foram pensadas e projetadas para o
Comédia de Dante Alighieri que, como você já deve ter percebido, meio físico e impresso.
dividem o espaço das páginas deste livro, em que algumas das Por fim, convido você a adentrar este trabalho, que não ape-
passagens do poema são interpretadas como um capítulo do adoe- nas encerra meu período como graduando, mas dá início ao meu
cimento pela anorexia, que inclusive podem ter sua distribuição con- período como espectador e autor da minha própria narrativa. •
ferida no sumário, escritas em cor laranja com a tipografia serifada.

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eu duro.
Por esse ar sem estrelas irrompia
Soar de pranto, de ais, de altos gemidos:
Também meu pranto, de os ouvir, corria.

Línguas várias, discursos insofridos,


Lamentos, vozes roucas, de ira os brados,
Rumor de mãos, de punhos estorcidos
2. UMA BREVE HISTÓRIA DOS LIVROS DE ARTISTA

Ao iniciarmos o debate sobre o livro como um objeto autônomo de arte


e design, que independe da literatura como meio de transmissão de seus sig-
nificados e transforma sua forma e conteúdo em um espaço cinestésico de re-
presentação de signos, precisamos compreender como fazemos uso do livro
tradicional e em que contexto histórico e social a subversão de seus elementos
passou a ser entendida como objeto artístico.
O livro tradicional não é um objeto inerte de função prosaica. O livro é uma
linguagem que carrega em sua estrutura signos sociais, culturais e comporta-
mentais. “Se livros são objetos de linguagem, também são matrizes de sensi-
bilidade [...] livros não são mais lidos, mas cheirados, tocados, vistos, jogados
e também destruídos" (PLAZA, 1982, s/n), assim como, sua leitura “é um ato
social, entre dois sujeitos; leitor e autor que interagem entre si, obedecendo aos
objetivos e necessidades socialmente determinados” (KLEIMAN, 2013, p. 12).
Estes signos e relações que vão para além do ato da leitura surgem no início da
produção gráfico-literária e da disseminação histórico-cultural dos livros como
arautos do intelecto e do poderio erudito dentro da sociedade. De acordo com
Fabiana Romualdo, “a produção de livros elevou a produção literária, a literatura
tornou-se um bem social atemporal, enraizada desde cedo como representação
dinâmica da sociedade” (ROMUALDO, 2018 p. 17) e, ainda de acordo com a
autora, é importante assegurar que:

O valor histórico, cultural ou emocional agregado ao objeto, ultrapassa o


seu significado genérico, e principalmente o seu valor monetário. Mas não
deixa de continuar sendo subjetivo a sua compreensão, que não se limita
a apresentar a todos um único sentido. O sentimento que cada indivíduo
desencadeia ao ter contato com o objeto cultural neste caso, o livro que
ele prefere, traz o sentimento de lembrar que é provocado exatamente por
D E I X A
aquele objeto-livro, que representa para esta pessoa uma memória Maria do Carmo de Freitas Veneroso (2012), no artigo “Perspectivas
de algo ou algum momento importante. Podendo ser um resgate de do Livro de Artista: um relato”, comenta que “o livro de artista, com-
uma situação feliz, ou não. O livro neste caso adquire a função de preendido como gênero artístico, de uma maneira geral não segue
signo (ROMUALDO, 2018, p.17). um movimento contínuo nem linear, podendo ser visto como uma
espécie de rizoma, que aparece de tempos em tempos aqui e ali
Logo, assumimos que o livro se transforma em um signo – alguma (VENEROSO, 2012, apud GOMES, 2015, p. 20).

coisa que representa algo a alguém – de assimilação individual que carre-


ga consigo memórias, afetividades e temporalidade, uma vez que Essas aparições, espalhadas em diversos momentos da história da
arte, são presenciadas de Leonardo Da Vinci a Marcel Duchamp (SILVEI-

ESPERA
Um livro é uma sequência de espaços. RA, 2001) e também no cenário brasileiro com Tarsila do Amaral e Oswald
Cada um desses espaços é percebido em um momento diferente - um de Andrade (FABRIS, 1988) mas, no contexto de suas execuções, essas
livro também é uma sequência de momentos.
Um livro não é uma caixa de palavras, nem uma bolsa de palavras, experimentações e subversões não constituíam um campo da arte, sendo
nem um portador de palavras (CARIÓN, 1975, apud ROMANA, 2016). apenas obras isoladas de criadores inovadores. Então, dentro de uma
civilização massificada, maquinofaturada e em que a produção cultural se
Paulo Silveira, na roda de conversa virtual "O Corpo do Livro de engendra dentro da indústria, florescem as primeiras definições sobre a
Artista" do Pampulha Território Museu, junto à Helene Sacco e Marco Tú- problemática do livro de artista.
lio Resende, trouxe uma forma oportuna de pensarmos esta estrutura e A partir dos anos 1960, período de efervescência do conceitualismo
caráter do livro ao dizer que atribuímos alma (aqui a entendendo como no mundo da arte e dos primeiros passos do pós-modernismo1 no design
manifestação da materialidade do corpo e não no caráter religioso) ao ob- gráfico - principalmente com as experimentações de Wolfgang Weingart,
jeto ao vermos o livro como corpo. Num livro tradicional e contemporâneo, que mostrava que “o design gráfico, podia, às vezes ser uma forma de ex-

Q U E E N
a alma está na multiplicidade de sentidos do signo linguístico, tipográfico pressão artística autônoma” (POYNOR, 2010, p. 22) — é que a nomencla-
e, algumas vezes, estrutural. tura livro de artista, segundo Silveira (2001), começa a se referir ao campo
Entendido então o livro tradicional como um objeto de poder so- das composições que usam o livro como obra de arte e também ao objeto
ciocultural, de sua pulverização na civilização aos dias atuais e de sua
significância individual para a civilização, partimos para o livro de artista, a
localização histórica que deu luz ao debate deste campo e a conceituação 4
Entendemos nesta pesquisa pós-modernismo “como um movimento pós-
dele como uma peça de arte e design. -industrial que surgiu após o término da Segunda Guerra Mundial em 1945,
mas se consolidou nos anos 60” (FERNANDES, 2019) e, conforme a au-
O livro de artista não é fruto da contemporaneidade, visto que sua tora, a reação contra o modernismo estilístico comumentemente difundido
existência pode ser observada antes mesmo de seu entendimento como pelo meio acadêmico, galerias e museus e o fim entre fronteiras de alta
cultura e cultura popular. Temos como sinônimos de pós-modernidade a
um campo da arte. Contextualizando, “sociedade de consumo pós-industrial” e o “capitalismo multinacional”.

32
I T O D A
específico gerado pelas experiências conceituais sessentistas. A disse- tradição do objeto e, como dito por Plaza (1982), transforma seu processo
minação desta nomenclatura se inicia, de acordo com Romana (2016), de criação de forma ativa, dado que o artista é responsável pela criação
na exposição do Moore College of Art, na Filadélfia, Estados Unidos da tanto do conteúdo quanto de seu suporte, fugindo da criação dicotômica
América. A exposição, que trazia a mistura entre a arte e a comunicação, entre continente-conteúdo e adquirindo o formato de forma-significante na
tinha em seu catálogo uma declaração sobre a natureza dessas obras, criação de sentidos, em que o autor transforma a continência, o espaço e
onde foi dito que: a lógica de leitura em uma matriz de signos que pode ser usada e ressig-
nificada. A distinção entre livro x livro de artista é explicada em parte por
Os livros como arte não são livros sobre arte ou livros de reproduções Plaza (1982), quando ele diz que:

N Ç AV Ó S
de arte ou livros de material visual ilustrando textos literários, mas
são livros que fazem declarações de arte por conta própria, dentro
do contexto da arte e não da literatura (PHILLPOT, 2013, apud RO- A criação do livro como forma de arte comporta um distanciamen-
MANA, 2016). to crítico em relação ao livro tradicional, contestando-o recria-se a
tradição em tradução criativa, fazendo surgir novas configurações e
formas de leitura. Com a mudança do sistema linear para o simultâ-
Esta nomenclatura foi se moldando e transformando com o passar neo, mudamos também a sistemática de leitura, não mais lidamos
dos anos - com a apropriação artística dos livros que começam a ganhar com símbolos abstratos, mas com figuras, desenhos, diagramas e
caráter escultórico, sendo chamada também de livrismo – principalmente imagens (PLAZA, 1982, s/n).

através da dúvida do que é o livro de artista, se desdobrando em duas


A linha de pensamento estabelecida por Plaza pode ser complemen-
vertentes, explicadas por Annateresa Fabris e Cacilda Teixeira da Costa.
tada por Cecília Almeida Salles quando ela fala sobre forma e conteúdo.
Nesta pesquisa me aproprio da vertente específica em que o livro de ar-
tista pode ser entendido Não se pode tratar forma e conteúdo como entidades estanques. Se,
por um lado, vê-se o conteúdo determinado ou falado através da for-

N T R A I S
na interação entre arte e literatura e que termina por abranger livros ma, isto é, a forma como recipiente do conteúdo, não se pode negar
ilustrados, livros-objetos, livros únicos, encadernações artísticas, que a forma é a própria essência do conteúdo. [...] Se o conteúdo
sem por isso deixar de levar em consideração aquela tendência que determina a forma, esta por sua vez representa o conteúdo. [...] O
começa a delinear-se nos anos 60 e acaba por modificar radicalmen- autor se encontra no momento inseparável em que o conteúdo e a
te a prática e o significado do termo (FABRIS; COSTA, 1985, p. 3). forma se fundem (SALLES, 1998, p. 73, 74, 75).

Com isso “a concepção do livro amplia-se passando a designar Já Silveira (2008) codifica o livro de artista como uma categoria que

a obra de arte existente da estrutura formal do livro” (FABRIS; COSTA, trabalha a experimentação das linguagens visuais, suas características

1985, p. 8) e o caráter intelectual e erudito, carregado por anos de história e expressividades dos elementos, sendo esse trânsito entre tais respon-

do livro tradicional, começa a ser subvertido. Essa subversão traduz a sável pela criação dos livros-objeto (quando essa transformação é muito

33
Eis vejo a nós em barca se acercando,
De cãs coberto um velho — “Ó condenados,
Ai de vós!" — alta grita levantando.

“O céu nunca vereis, desesperados:


Por mim à treva eterna, na outra riva,
Sereis ao fogo, ao gelo transportados."
radical) e livro de artista, quando há esta criação experimental.
Com a idiossincrasia deste comportamento da produção artística
presente nos livros de artista, nos deparamos com a particularidade das
relações de tempo e espaço que se configuram dentro do objeto, sendo
estabelecidas principalmente pela conexão entre autor x livro x leitor, uma
vez que ele possui “uma sequência espaço-temporal, determinada pela
relação cinética entre página e páginas, ou, como diria Mirella Bentivoglio
pela “página, em seu diálogo com o contexto da página, o livro” (FABRIS;
COSTA, 1985, p. 5). Então, mesmo trabalhando em cima da desconstru-
ção e ruptura da estrutura ancestral do livro, o autor, artista ou designer re-
toma seus cânones seja pela leitura, lógica de discurso, linguagem, gesto
imposto pela leitura, relação do leitor com o objeto ou pela temporalidade
imposta pelo espaço. Ele “transforma-se numa estrutura intelectual, [...]
que enfatiza o processo de leitura em detrimento da percepção, o concei-
to em detrimento da contemplação” (FABRIS, 1988, p. 6 e 7).
Para dar um nó nesta definição, com um resumo mais rápido e po-
ético da questão livro de artista, podemos entender que:

LIVROS DE ARTISTA SÃO ISSO -


A OBRA DO ARTISTA CUJO IMAGINÁ-
RIO, MAIS DO QUE ESTAR SUBMETIDO
AO TEXTO, SUPERA-O POR TRADUZI-LO
DENTRO DE UMA LINGUAGEM QUE TEM
MAIS SIGNIFICADOS DO QUE AS PALA-
VRAS SOZINHAS PODEM TRANSMITIR

(CASTLEMAN, 1994, APUD SILVEIRA, 2008, P. 36). •

35
37
2.1 AS DIFERENTES TRADUÇÕES DE LIVROS DE ARTISTA

Após me debruçar sobre aspectos históricos dos livros de artista, é impor-


tante entender quais são os formatos em que as subversões do objeto podem
ser apresentadas e as diferentes traduções executadas sobre cada suporte.
Me apropriando de alguns pontos da conceituação de Fabris e Costa
(1985) e da categorização de Plaza (1982), os livros de artista podem ser divi-
didos em: livro ilustrado, poema-livro, livro-poema/livro-objeto, livro conceitual,
livro documento, livro intermédia e antilivro. Essas categorias então, aglutinam
as individualidades de cada proposta e lhes concede um viés analítico de suas
diferenças e similaridades.
Essa categorização pode ser vista de forma simplificada no diagrama Sa-
lada de Frutas, de Clive Phillpot (1982), na figura 1, em que ele junta a relação
entre arte e livro, objetos múltiplos e únicos – caráter intrínseco a publicação
individual de cada obra – em que os livros de artista existem na conjunção en-
tre ambos, como livros objetos, livros artísticos e livros textuais. Antilivros, por
exemplo, se localizam como obras de arte, fora da categoria de livros de artista.
Julio Plaza por sua vez, se debruçou de forma densa sobre esta temática,
a divisão, a conceituação e traduções destes livros, reunindo um grande número
de categorias de livros encontrados, dividindo-os em grupos “sintético-ideogrâ-
micos” e “analíticos-discursivos”.
Os livros ilustrados trabalham o nível imagético através de ilustrações,
desenhos e sua relação intersemiótica com o texto. Neste caso, a produção do
discurso é feita através da tradução entre linguagens e/ou complementação de
seus sentidos, em que o discurso gráfico/visual se mistura com o textual/verbal.
Um exemplo clássico que podemos citar são as gravuras de Gustave Doré para
a Divina Comédia de Dante Alighieri, de meados do século XIX. Não se loca-
lizando temporalmente dentro e/ou pós contexto sessentista, sua publicação,

43
FIGURA 1 - DIAGRAMA SALADA DE FRUTAS
Clive Phillpot, 1982.
Fonte: Artzines. Acesso em: 26/04/2021.

FIGURA 2 – THE INFERNO, CANTO XIII


Ilustração de Gustave Doré, 1861 – Calvogravura.
Fonte: Wiki Art. Acesso em: 04/04/2021.

44
que segundo Vinícius Costa (2019) levou cinco anos para ser feita, sub- ao fundo da imagem, a iluminação do horizonte e personagens a mais que
verteu o formato dos livros comuns da época e se tornou uma inovação, compõem o momento da ação de Dante com o pecador.
em virtude da proposta criada pelo ilustrador na relação texto x imagem. A ilustração então se relaciona com a narrativa verbal, inferindo no
Alighieri narra a incursão de Dante e Virgílio ao cículo onde são vínculo do espaço da página com a temporalidade de seu conteúdo atra-
punidos os suicidas e esbanjadores, no canto XIII, como: vés da ancoragem de sentidos, ideia apresentada por Barthes ao inves-
tigar as relações de reciprocidade verbo-visual. Como explicado por Gui-
Não fronde verde, mas escura, ramos marães (2013), o texto conduz o leitor para a compreensão da imagem,
Não lisos, mas travados e nodosos,
Não pomos, puas com veneno achamos. dando preferência a alguns significados e ignorando outros e, enquanto
isso, a imagem capta um significado escolhido previamente. Esta conjun-
Por silvados mais densos, mais umbrosos, ção, através da ancoragem, faz com que a polissemia de sentidos que
Do Cecina a Corneto, a besta brava,
Não foge, agros deixando deleitosos. uma imagem pode propiciar seja demarcada pelo texto, que seleciona e
delineia seu conteúdo. Assim surgem novas possibilidades interpretati-
Das Hárpias o bando aqui pousava. vas, narrativas, criativas e poéticas entre texto e imagem.
[...] Vaticinando o mal, que os aguardava.
Se o discurso verbal possui uma linearidade que é imposta pelo
[...] Pois disse-me: “De um troco se quebrares paradigma da página e da estrutura textual, com seu conteúdo sendo lido
Um só raminho, ficarás ciente de forma linear, a inserção da imagem perpassa a lógica deste discurso,
Desse erro em que se enleiam teus pensares”
recriando o gesto imposto pela leitura e a temporalidade imposta pela
O braço estendo então e prontamente página, de maneira que:
Vergôntea quebro. O tronco, assim ferido
“Por que razão me arrancas? Diz fremente A forma de operar do ilustrador é a de dar ênfase a algumas passa-
gens do texto, precisamente aquelas que ele acha mais significativas
(ALIGHIERI, 2003, p. 113 e 114) para o conjunto da obra, visto que a ilustração de caráter figurativo
fica presa a esse momento do texto que pretende ilustrar. Ela codifica
E uma das traduções feita por Doré é a gravura da segunda ima- somente aquele instante textual, entrecortando assim o espaço e os
tempos representados no texto. Daí seu caráter de descontinuidade
gem do canto XIII, presente na figura 2. A gravura desta passagem, além (PLAZA, 1982, s/n).
de traduzir a ambientação presente no texto de Alighieri, adiciona elemen-
tos de sua própria visão e tradução do texto original. Como dito por Costa A relação entre o autor e o ilustrador com o leitor é alterada e a lin-
(2019), Doré faz uso de diversas camadas na representação da cena e guagem original – a textual – é cruzada com uma nova tradução que pode
algumas delas não estão citadas diretamente nos cantos, como as colinas ser executada, conforme Plaza (1982), através da ilustração e comple-

45
mentação (como no caso do Inferno de Dante e Doré), paralelismo de dis-
cursos e também de forma arbitrária, em que o artista visual e/ou designer
gráfico possui liberdade para criação de discursos e narrativas próprias.
Um exemplo é o livro ilustrado Jazz, feito por Henri Matisse (1947), em
que o artista mescla o discurso textual ao visual e a criação tipográfica se
torna parte fundida à ilustração sem hierarquização. Este tipo de tradução,
gera um “contraponto contrastivo e integrativo ao mesmo tempo” (FABRIS;
COSTA, 1985). Aqui, o não distanciamento entre as diferentes linguagens

constroem também para si um tipo de espaço, envolvendo igualmen-


te a obra ao mesmo tempo em que são envolvidos por ela. O discurso
criativo não contorna o objeto plástico a uma distância cerimoniosa,
mas efetivamente atravessa-o e é por ele atravessado (BASBAUM,
2007, p. 30).

Partimos então para o poema-livro e o livro-poema. Semelhantes,


FIGURA 3 - PÁGINAS DO LIVRO JAZZ suas características se distinguem quando pensamos nos suportes em
Henri Matisse, 1947 - Aupochoir. que seu conteúdo é registrado.
Fonte: Christ Church Art Gallery. Acesso em: 05/04/2021. O poema-livro pode ser retraduzido em outras linguagens ou supor-
tes, como vídeos, cartazes, postagens nas mídias sociais e outras estru-
turas, sem perda de sentido, desde que o regramento de seus signos e
estrutura semântica continue o mesmo. Já o livro-poema trabalha a cor-
rupção da estrutura formal do livro, em que a forma é intrinsecamente liga-
da ao conteúdo e o conteúdo só existe quando atrelado a forma. Sua se-
paração é impossível de ser retraduzida sem nenhuma perda de sentido.
Portanto o poema-livro faz uso do sentido e da estrutura gráfica,
visual, tipográfica, plástica e etc., criando uma nova relação entre letra,
palavra, frase, página, conjunto de páginas e, por fim, o livro. Essa intera-
ção altera os cânones do objeto e das relações com ele, assim como sua
temporalidade e a linearidade não seguem a leitura ocidental, que vai da

46
esquerda para direita, de cima para baixo, junto ao folhear de páginas, e
não tem a obrigação de findar sua narrativa junto à última página. A poesia é
caracterizada pela sua disposição espacial que delimita o espaço temporal.

Se a poesia concreta revaloriza a palavra como estrutura significan-


te essencial, colocando-a num espaço específico, concebido como
agente estrutural – o espaço gráfico – se leva a um novo tipo de
interação, de identidade entre “forma e conteúdo” (FABRIS; COSTA,
1985, p. 3).

Conforme Basbaum (2007), a partir do momento que o texto do


artista se torna parte integrante da obra, o enunciado e a visibilidade se
confrontam num mesmo espaço e tempo e o artista contemporâneo faz
com que o signo verbal e plástico se tornem partes simultâneas do mes-
mo espaço e isto compõe sua materialidade.
No poema concreto Vogaláxia (AEIOU) de Pedro Xisto, figura 4,
temos um exemplo claro dessa relação entre forma e conteúdo. Usando a
combinação entre vogais e uma espécie de “chave de código” o poema se
FIGURA 4 - VOGALÁXIA (AEIOU)
inicia da combinação AAAAA e termina no ponto UUUUU. As vogais são
Pedro Xisto, 1966 - Tipografia azul.
misturadas e compõe novas relações, como dito pelo autor, ao falar das
Fonte: Coleção livro de artista – Acervo online de livros de artista da UFMG.
formas de leitura possíveis ao livro.
Acesso em: 06/04/2021.
Variáveis de leitura criativa e outros meios concretos de se comu-
nicar o poema: línguas diferentes; sequências verticais, horizontais,
transversais, circulares (divididas, alternadas, reiteradas, aleatórias,
etc); sons abertos, fechados, nasais, acentuados, semiáfonos, áto-
nos; staccato, legato, ditongos, tritongos, hiatos, paulas, etc.; timbres
e registros vocais; solos e coros; gestos e cores; coreografia; com-
putação, análise e síntese eletrônicas de dados visuais, sonoros e
cinéticos, etc. (XISTO, 1966, s/n).

A mescla da visualidade com as palavras faz uso do elemento plás-

47
tico como expressão autoral e experimental, em que são adicionados no-
vos significados ao signo linguístico.
Seu antagônico, o livro-poema, não pode ser retraduzido para ou-
tros suportes sem perdas de sentido uma vez que o suporte do livro e
sua presença no espaço são necessários para a construção do discurso,
já que sua poética é construída durante o uso. O manuseio do livro pelo
leitor e a presença dele no espaço são responsáveis por criar cognições
antes inalcançáveis ao livro tradicional. Fabris e Costa (1985) dizem que
o “manuseio expressivo” do livro-poema tem a capacidade de ampliar a
conexão entre autor x livro x leitor e a forma de lidar com o objeto, que se
transforma em um suporte constituído pela ação ativa do leitor.
Um exemplo fascinante da relação entre elementos gráficos e sua
construção multissensorial são os cadernos Gibis de Raymundo Colares
(1970 e 1971), figuras 5 e 6. Esses livros são compostos por folhas com
recortes, cores e colagens diferentes que cumprem a função de colocar
o corpo do leitor em cena e de integrá-lo ao livro através da passagem
FIGURA 5 - GIBI
de páginas, que compõem diferentes sobreposições, leituras e conteúdos
Algusto Colares, 1970 - Recortes de papel.
que se multiplicam à medida que sua poética se desenvolve.
Fonte: Artsy.
Acesso em: 15/04/2021.
Os planos de papel em cor, emergindo e se sucedendo corte após corte
na espaciotemporalidade, constituem toda a mínima/múltipla linguagem
desses livros (gibis) de Raymundo Colares, nos quais estão mantidos
aqueles mesmos ritmos visuais característicos de sua pintura de ico-
nografia urbana (PONTUAL, sem data apud MESQUITA, 2006, p. 40)

Este manuseio e multiplicação moldam a temporalidade da relação


entre o livro e o leitor para além do passar de páginas. Se no livro tradi-
cional – e até mesmo nos livros ilustrados e em alguns poema-livros – o
tempo disposto à experiência deste termina junto ao seu conteúdo verbal/

48
visual, no livro-poema, e usando a obra de Colares como exemplo, a tem-
poralidade não termina junto à última página nem ao último ponto final,
uma vez que cada mistura de páginas e estruturação criada pelo leitor
inicia uma nova narrativa.
Há ainda a experimentação do livro como suporte em que ocorre
o processo artístico, dando origem aos livros-conceituais. Aqui, “o livro
torna-se alvo da ação artística envolvida em pesquisas de interdisciplina-
ridade” (PLAZA, 1982, s/n) fazendo uso da linguagem e do suporte como
registro de ideias e pensamentos, ocorrendo o intercâmbio entre meio e
mensagem. Nestes livros, o processo do pensamento é o motivo para a
obra artística, declinando a materialidade física da arte e a transformando
para além dos signos e ideias carregados pela percepção visual.
Plaza (1982) institui o surgimento dos livros-conceituais com Mar-
cel Duchamp e a bricolagem e fac-símiles2 de seus manuscritos e do-
cumentos, o primeiro exemplo citado por ele é o livro A Caixa, de 1914,
figura 7, que mesclava livro, escultura, pintura, registros, anotações, catá-
FIGURA 6 - GIBI logo e outros suportes estudados para as obras em desenvolvimento de
Algusto Colares, 1971 - Recortes de papel. Duchamp. Suas 16 páginas, como apurado por Silva (2017), provocaram
Fonte: Almeida e Dale. a reflexão sobre originalidade, reprodutibilidade e autenticidade da arte,
Acesso em: 15/04/2021. antecedendo a dinamização dos papéis entre autor x leitor propostos pe-
los livros de artistas anos depois, colocando o leitor como parte integrativa
da execução da obra. A obra A Caixa Verde, de 1934, na figura 8, é outra
obra de Duchamp citada por Plaza como responsável por proporcionar
tais reflexões e, assim como Boîte-em-Valise (1935/1941), que pode ser
vista na figura 13, funcionam como recriações de suas próprias obras em
um “museu móvel”, uma vez que Duchamp viveu entre as duas guerras
2
Fac-símiles são edições novas que reproduzem por meios mecânicos – como mundiais e, ao ver a destruição que assolou a Europa pós Primeira Guer-
fotografia, scanner e etc. – a forma exata de um texto, imagem ou obra.
(DICIONÁRIO INFORMAL, 2019, s/n)
ra Mundial – que causou a morte de seu irmão – decidiu registar suas

49
FIGURA 7 - A CAIXA FIGURA 8 - A CAIXA VERDE
Marcel Duchamp, 1914 - Fac-símiles de fotografias e manuscritos. Marcel Duchamp, 1934 - Fac-símiles de fotografias e manuscritos.
Fonte: Philadelphia Museum of Art. Fonte: Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia.
Acesso em: 29/04/2021. Acesso em: 29/04/2021.

obras em suas caixas como forma de as ancorar na história, uma vez que intuito de estabelecer um caminho para o desenvolvimento e distribuição
elas poderiam se perder no tempo. de livros de artista que não fiquem reduzidos ao próprio círculo da arte,
Nos anos 1960 e 1970, os artistas conceituais voltam a executar fazendo uso da expressão política, poesia concreta, fotografias, gráficos
livros conceituais “com a interpenetração dos meios e das mensagens e outras formas para ter em si toda a dimensão de seu trabalho, e não
como uma das características mais marcantes de todas as experiências apenas um registro dos trabalhos ou ideias em andamento.
estéticas e linguísticas dos anos 60” (PLAZA, 1982, s/n) e, de acordo Um exemplo contemporâneo são os livros de artista de Vera Cha-
com Fabris e Costa (1985) estes livros começam a se multiplicar com o ves Barcellos, que tem como principais interesses, conforme Silveira

56
objeto representado, se caracterizando como um livro conceitual uma vez
que sua linguagem verbal e não-verbal tem como intuito a pesquisa sobre
objetos do pensamento.
O livro, de acordo com Gröhs (2014), possui 12 páginas soltas com
imagens fotográficas em preto e branco que fazem uso de texturas de su-
perfícies para despertar e reconstituir a sensação do tato através do olhar.
Mesmo que diferentemente de Duchamp, Barcellos não tenha inserido
pesquisas e rascunhos de seu processo artístico, ela faz uso do livro como
espaço de pesquisa interdisciplinar e estímulo à memória – aqui sensorial.
A seguir temos o livro documento3, que carrega o discurso temporal
através do registro de eventos e acontecimentos que só existem através
da documentação. Se relaciona intimamente com a memória ao recupe-
rar fotografias, ilustrações, escritos e tantos outros registros para criar e
recriar histórias. “O documento parece ser uma significativa unidade de
representação de um evento, assumindo um papel de materializador do
tempo histórico pessoal e social no livro de artista” (SILVEIRA, 2008, p.90).
FIGURA 9 - EXERCÍCIOS VISUAIS-TÁCTEIS O livro Ao Morador da Casa. Como Convém. (2014), figura 10 e 11,
Vera Barcellos, 1975 - Fotografias. faz uso da mescla entre materiais e informações para registrar, como dito
Fonte: Issuu. pela autora Priscila Gonzaga, as impressões sobre a cidade de Recife,
Acesso em: 01/05/2021. através das vivências individuais dos moradores da casa-atelier. Catálo-
gos, dicionários, diagramas, fotografias e outras documentações traçam a

(2008) e Gröhs (2014), os problemas conceituais intrínsecos à arte con- narrativa que direciona o conteúdo “ao futuro, fictício, possível, provável,

temporânea, a relação entre a produção artística e produção teórica e


a integração da arte com os indivíduos, sistemas e política, com algum
de seus livros carregando forte discurso temporal e sequencialidade de 3
Note que aqui faço uma redução das classificações de livros documentos devido
páginas. A obra Exercícios Visuais-tácteis, de 1975, figura 9, como dito ao escopo desta pesquisa. Paulo Silveira (2008) ao pesquisar esta categoria cita os
estudos da artista e designer Johanna Drucker que os classifica em cinco categorias
por Gröhs (2014), explora e instiga a combinação entre o sentido visual e distintas como livros documentais de caráter pessoal e diários, registros reais ou in-
ventados, documentos fac-similados, documentos reais e livros de informação.
tátil e se dedica a desencadear as sensações que existem ao lembrar do

57
antigo Morador da Casa. Como Convém.” (GONZAGA, [2021], s/n). Aqui,
o relato não é em primeira pessoa e o autor não é matriz da voz, sendo
costurado por diversos personagens, como os presentes, passados e fu-
turos moradores, a cidade de Recife e a até mesmo a própria casa.
Um exemplo de livro de artista documental de caráter mais disrupti-
vo e distinto do próprio campo é Variable Piece 4: Secrets, publicado pela
primeira vez em 1978, de Douglas Huebler, figura 12. O livro, de diagra-
mação extremamente simples com fundo branco e tipografia básica preta,
é constituído de 1.800 segredos escritos anonimamente pelos visitantes
da exposição Software de 1970, do Museu Judaico do Brooklyn, em Nova
York. De acordo com a Organização Sem Fins Lucrativos Primary Infor-
mation (2016), com tal registro, o livro cria uma documentação histórica
e registro de memória das preocupações culturais, políticas e sociais da
época em que se insere.
Paulo Silveira (2008), entende o valor atribuído aos livros-documen-
to a necessidade humana de provar sua própria existência e os vestígios
que deixamos na realidade, em que a documentação “presume o registro, FIGURA 10 - MORADOR DA CASA. COMO CONVÉM
Priscila Gonzaga, 2014 - Mapa.
a prova ou o testemunho da verdade” (SILVEIRA, 2008, p. 101) e é capaz
Fonte: Priscila Gonzaga Portfólio.
de fichar e delimitar o espaço-tempo.
Acesso em: 01/05/2021.
O seguinte grupo de livros é conhecido como intermedia e, se o in-
serirmos no diagrama Salada de Frutas de Phillpot, apresentado na figura
1, podemos localizá-lo muito próximo à esquerda, na limítrofe entre arte
e livro de artista, principalmente devido suas características intercontex-
tuais, sua linguagem múltipla entre diferentes códigos e signos e de seu
discurso representado muito mais pelo seu suporte espacial do que seu
caráter temporal.

O livro intermedia não é uma síntese de artes, códigos, mas uma


qualidade, um lugar de interseção e entrecruzamento de códigos e
meios que propiciam um diálogo entre si, diálogo de produções em

58
FIGURA 11 - MORADOR DA CASA. COMO CONVÉM
Priscila Gonzaga, 2014 - Diagrama.
Fonte: Priscila Gonzaga Portfólio.
Acesso em: 01/05/2021.

FIGURA 12 - VARIABLE PIECE 4: SECRETS.


Douglas Huebler, 2016 - Fac-símiles da obra original.
Fonte: Primary Information.
Acesso em: 01/05/2021.

59
montagem complexa que criam pluralidade de sentidos e significados
nas suas diversas camadas de escritas (PLAZA, 1982, s/n).

Com esta definição encontro o caminho ideal para falar sobre essa
característica, pela noção de construção da comunicação por camadas.
“Seriam objetos pensados em suas dimensões ou camadas política e es-
tética, tornando-se assim não apenas objetivos, como também intersubje-
tivos, não apenas problemáticos, mas dialógicos” (FLUSSER, 2007, apud
SOUZA, 2015, p. 34) ou seja, cada uma dessas camadas, carregam uma
narrativa própria de significados e memórias, que se ampliam quando co-
nectadas com as outras diversas camadas que compõe sua totalidade. A
linguagem verbal e não-verbal, ao se aglutinarem, compõem novas for-
mas de compreender a comunicação, conectando objetos que não pos-
suem equidade hierárquica na interpretação de seus signos.
De acordo com Plaza (1982), assim como os livros conceituais, os
livros intermedias surgem com Duchamp, que inaugura a categoria com
sua caixa-maleta, a Boîte-e-Valise (1935 – 1941), figura 13, que carrega
FIGURA 13 - BOÎTE-EN-VALISE
reproduções de suas obras icônicas, transformando-a em um museu em
Marcel Duchamp, 1935/1941 - Múltiplos materiais e reproduções.
miniatura, e
Fonte: Met Museum.
Acesso em: 02/05/2021.
aprofunda ainda mais a possibilidade de construção curatorial das
obras, utilizando novas técnicas de reprodução fotográfica, impres-
sões em papéis transparentes e texturizados, introdução de elemen-
tos tridimensionais e sistemas de encaixes e deslizamentos de partes mas também questionamentos sobre a reprodutibilidade da arte contem-
internas da caixa (SILVA, 2017, p. 5).
porânea na realidade industrial – paradoxo irônico, uma vez que a caixa é
executada de forma artesanal.
Por mais que a proposta se pareça muito com as caixas de Du-
Um exemplo interessante para pensar as possibilidades que sur-
champ citadas anteriormente, é importante ressaltar que esta obra se
gem na década de 1960 é o Fluxus 1, figura 14, publicação coletiva do
distingue dos livros conceituais já que aqui a retórica não é voltada à
grupo Fluxus, entusiastas das possibilidades expressivas de diversos
pesquisa do processo artístico e nem ao intercâmbio e registro de ideias,
meios, como as artes gráficas, happenings e performances. Com ca-

60
Maciunas, Yoko Ono e Robert Watts e é interessante notar que, devido
ao caráter conceitual da Fluxus e até mesmo às novas proposições criati-
vas que surgiram com o desenvolvimento do campo dos livros de artista,
Fluxus 1, em sua índole intermedia, ganha traços documentais e também
conceituais, ao trazer documentação de performances e fac-símiles
do processo artístico de alguns de seus membros, exacerbando o
caráter de montagem

polifônico, dialógico e aberto, na medida em que cada trabalho se


colore e matiza em contato com os outros contíguos. A multiplicidade
de trabalhos e meios inclui “a polifonia como conjunto de vozes” [...]
As contradições entre trabalhos absorvem o diálogo e o incorporam
(PLAZA, 1982, s/n).

O uso de materiais diversos e mundanos carrega uma banalização


proposital do objeto como forma de questionar o mercado e a distribuição
da arte para além das paredes dos museus, dando ao artista independên-
cia criativa em relação às formas tradicionais de exposição, pelo caráter
FIGURA 14 - FLUXUS 1 antiarte. É interessante notar que em sua proposição antiarte e busca
Fluxus, 1964 - Múltiplos materiais e reproduções. pela efemeridade, os livros/caixas da Fluxus retomam a proposição das
Fonte: Blog Artists Book and Multiples. valises de Duchamp como museus em miniatura protegendo suas obras
Acesso em: 02/05/2021. e registrando sua história.
Me direciono à última das categorias abordadas nesta pesquisa: o
antilivro. Se ao falar sobre os livros de artista, Silveira (2008) os define de
pas de madeiras e páginas parafusadas, não existe livro desta coleção
acordo com o ato de manutenção e negação da estrutura do livro, o antili-
que seja igual a outro, pois carregavam experiências gráficas feitas ma-
vro é a síntese de uma subversão intensa do material, com sua função, de
nualmente para cada volume, num período de 13 anos. Seu interior é
acordo com Plaza (1982), sendo reduzida, inutilizada ou destruída. Esta
composto de materiais e objetos de diferentes naturezas, como uma luva
redução, podendo também ser chamada de transcrição ou transformação,
cirúrgica, cartões, livretos, notas e tantos outros que compõem uma narra-
extrapola a linguagem ao ponto de mover o antilivro ao campo da obra de
tiva performática para sua estrutura. Estes objetos eram compostos pela
arte, o interpretando como esculturas e não mais como livro de artista. Ele
criação colaborativa e obra de diversos membros do grupo, como George

61
pode ou não manter as características do livro, mas sua transformação é
tão radical que o livro se transforma em outro objeto.
Há quem considere a subversão e a corrupção dos ideais do livro
em algo insólito e violento, mas é neste âmbito que nasce a obra que
transforma em escultura a ideia de memória e respeito. Na obra Censored
Book (1974) de Bardon Lidicé Benes, o livro, visto na figura 15, é composto
por uma intransponível barreira de pregos e cordas que o transformam em
um suporte angustiante para representação de seu conteúdo, que agora
não se torna mais a palavra dita, mas a pura plasticidade e materialidade
da escultura, formando o discurso poético através da impossibilidade de
abertura ou leitura do livro, mesmo que de acordo com Silveira (2008) a
criação do livro tenha sido fruto da aleatoriedade.
Essas produções, principalmente as de caráter escultórico, deba-
tem a já tão questionada obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, FIGURA 15 - CENSORED BOOK
já que sua produção em geral tem um único volume ou uma limitada tira- Barton Lidicé Benes, 1974 - Livro amarrado com corda, perfurado
gem, o que mantém a autenticidade e a aura do livro como obra, seja por com pregos de metal e revestido com tinta ocre
sua impossibilidade de reprodução industrial, sua fuga quase completa Fonte: The Center for Book Artists.
da literatura ou por suas claras diferenças em frente a estrutura a que se Acesso em: 25/05/2021.
refere. Os antilivros, afinal

não são mais intermidiais. Pertencem apenas às artes plásticas, sem


vínculo direto com a literatura, a comunicação social ou outros produ-
tores de informação “legível”. Estão atreladas ao grande universo da
livro-arte [...] porque, embora nem sempre sejam bibliomórficos, são
sempre livro-referentes (SILVEIRA, 2008, p. 227).

Uma obra muito interessante, que viola o espaço da página com


uma materialidade menos violenta, mas que também compõe sua poética
pela leitura do livro como escultura, são os livros Germina-n-do, feitos
anualmente pelo grupo de pesquisa Lugares-livro, da Universidade Fede-

62
ral de Pelotas, ministrado pela docente Helene Sacco, que fez a primeira
versão da obra em 2011, semeando alpiste entre as páginas de uma anti-
ga enciclopédia de química. Os livros, compostos por sementes regadas
nas páginas internas de livros antigos, já sem uso, germinam em seu
interior e mostram as potências poéticas e narrativas que podem surgir no
objeto. Impossível de folhear, o livro se torna o insumo necessário para o
desenvolvimento do ser não humano.
Finalizo este apanhado histórico com entendimento deste campo
tão amplo da arte e design, que é o livro de artista, como objetos que
impõem sua existência, pelas páginas, conteúdos, estruturas ou pela ne-
gação de todos esses aspectos. Essa existência não impõe apenas a
materialidade do objeto, mas também a crescente vontade - e até mesmo
natureza humana - de transpor os limites da sua própria criação. Se nos
FIGURA 16 - GERMINA-N-DO códices do livro tradicional registamos e salvaguardamos os conhecimen-
Grupo de Pesquisa Lugares Livro, 2014 - Livro com sementes germinando. tos compartilhados como sociedade, nas páginas e não-páginas do livro
Foto por: Adriani Araújo. de artista, são criadas novas formas de entender o espaço gráfico, estru-
Fonte: Lugares Livro no Facebook. tural e material do suporte, registrando conhecimentos que nem mesmo
Acesso em: 25/05/2021. as palavras do mais eloquente poeta são capazes de reproduzir.
Continuo a construção desta pesquisa ao me debruçar sobre outro
suporte de gravação de conhecimentos e memórias, que muitas vezes é
elemento intrínseco ao processo artístico: os sketchbooks. •

63
2.2 SKETCHBOOKS E A CRIAÇÃO DE MEMÓRIAS

Antes de falarmos sobre o registro de memória, precisamos entender o


que é este objeto. O sketchbook em si – ou diário gráfico – possui estruturas e
configurações diversas, mas, habitualmente, seu formato se relaciona com a es-
trutura atual do livro, se apresentando em forma de códice4, com folhas brancas
ou amareladas de formato reduzido que facilita o seu transporte. Esta estrutura
pode ser alterada de acordo com a finalidade e objetivos deste caderno que,
como um subproduto participante de um processo maior de arte e design, se
adapta às necessidades de seu autor, podendo funcionar com encadernações
alternativas, diferentes tipos de papel, formatos diversos, com linhas, sem linhas
e etc, com seu conteúdo variando de “sketchbooks de exercício, passatempo,
atividades predeterminadas, de prospecção, de portfólio, de criação, de arquivo,
de elaboração de conceituação e teoria e feitos por prazer” (SOUZA, 2015, p.
24). Usado como ferramenta, tem o poder de funcionar tanto como instrumento
pedagógico para o campo das artes visuais ou como um repositório de elemen-
tos desconexos que fazem parte do nosso cotidiano gráfico, como pesquisado
por Ana Rita de Sousa (2010).
O caderno, composto de rascunhos visuais, acompanhado ou não de tex-
tos e elementos externos e de experimentações visuais, ganha a ideia de diário
gráfico/visual ao se relacionar com o diário de campo usado por pesquisadores
para anotar rotineiramente suas observações para que novidades, descobertas
e o cotidiano não caiam no esquecimento (ERICKSON, 2015), logo
4
Códice, também conhecido como Codex é a evolução do rolo de pergami-
nho como suporte da escrita que deu origem a estrutura do livro em formato Registro e recordação estão no cerne do sketchbook, um lugar onde se
de cadernos unidos, facilitando a leitura e manuseio, que resultou na estru- registra, marca o momento para onde se volta física ou mentalmente na ten-
tura do livro contemporâneo (ROMUALDO, 2018) tativa de lembrar. Como já relatado, alguns artistas dizem literalmente que

69
os cadernos são um lugar para onde se volta quando se necessita de
inspiração (SOUZA, 2015, p.117).

É importante frisar que sketchbooks não são livros de artista, mas
podem vir a se tornar. O livro de artista é um objeto onde se materializa a
obra de arte e design através da criação e tradução de signos e a relação
de sua narrativa com a forma e conteúdo do livro, enquanto o sketchbook
tem em si materializado os rascunhos do processo artístico que podem
ser referentes ao conteúdo e forma da obra de arte e design, mas que não
tem a obrigatoriedade da atuação como obra. Porém ambos possuem
uma relação íntima em dois aspectos: a corrupção da sistemática da leitu-
ra, o que se relaciona diretamente com a temporalidade imposta em cada
página e no conjunto de páginas, e a presença da memória, tanto em
signos já estabelecidos na estrutura do livro quanto na tradução e criação
de novos signos em seu conteúdo.
FIGURA 17 - DIÁRIO DE CAMPO DE CHARLES DARWIN
Para compreender a presença da memória, uso os estudos de Sou-
Charles Darwin, 1832 à 1836 - Viagem à Beagle.
za (2015) em entender que ela é constituída de conteúdos gravados em
Fonte: Darwin Online.
locais físicos ou mentais que permitem a sua sobrevivência em frente ao
Acesso em: 09/04/2021.
esquecimento, possibilitando a criação de novas relações e conexões. O
sketchbook é um destes repositórios em que são retomados esses con-
teúdos, como gatilhos ou mapas que nos guiam para retornar a um local,
espaço e conteúdo marcados em suas páginas; é um artifício de memória
cultura e um tempo que não passam pelo crivo da subjetividade individual
em potência. Esta constituição se assemelha à noção de hypomnema-
em suas interpretações, mas, ao olhar para o passado, dá ao registro o
ta de Foucault: diários gregos que carregavam anotações, escritos, cita-
poder de transformar as coisas registradas.
ções, fragmentos de obras e outros registros com o intuito de não deixar
Usados por diferentes artistas, como Van Gogh, Eugène Delacroix
a memória se esvair pelos caminhos da mente. Os hypomnemata, como
e tantos outros, o sketchbook está presente no mundo da arte há diversas
dito por Oliveira (2015), não eram uma escrita de si, mas sim uma consti-
gerações e podemos contrapor esses usos com diários gráficos famosos
tuição de si, no sentido de que em suas páginas estão os registros de uma
à história que possuem propostas divergentes. Charles Darwin e Euclides

70
FIGURA 18 - DIÁRIO DE CAMPO DE EUCLÍDES DA CUNHA FIGURA 19 - DIÁRIO GRÁFICO DE FRIDA KAHLO
Euclídes da Cunha, 1897 - Viagem à Canudos. Frida Kahlo, 2005 - Fac-símile.
Fonte: Acervo Digital Biblioteca Nacional. Fonte: The Diary of Frida Kahlo: An intimate self-portrait.
Acesso em: 09/04/2021. Acesso em: 09/04/2021.

da Cunha por exemplo, ao fazerem uso de seus diários de campo e bordo Enquanto isso, Frida Kahlo, em seu sketchbook que se tornou
para registrar suas descobertas, se beneficiaram do aspecto visual e grá- a obra em fac-símile O Diário de Frida Kahlo – Um autorretrato íntimo
fico para ampliar suas memórias e conhecimentos, esse acerca de plan- (2005), faz uso das páginas do caderno e de sua visualidade como regis-
tas, mapas, animais e criaturas e este com suas pesquisas sobre fauna e tro dos seus últimos dez anos de vida, sem a representação do cotidiano
flora de Canudos, com o intuito de compartilhá-las no futuro como parte de e nem com o intuito de usá-lo como subproduto de uma obra de arte maior
uma obra maior, com a temporalidade de suas páginas sendo demarcada mas que, como Darwin e Euclides da Cunha, faz uso da visualidade e do
pelo dia a dia e pela decorrência de suas descobertas (ERICKSON, 2015). suporte gráfico para registrar suas memórias e conhecimentos, estes po-

71
rém voltados a si, seu sofrimento e seus amores.

Vemos ali uma expressão crua, o desenho rápido, o registro da emo-


ção [...] O caderno, nesse caso, é registro de emoção em estado bru-
to. [...] O caderno de Frida Kahlo mostra o que talvez seja a principal
função de um caderno: estar próximo à vida, companheiro cotidiano
e daí proporcionar um território de possibilidade de armazenamento
de estados brutos de sensibilidade e elaboração da subjetividade
(GUARALDO, 2012, p.660).

“Compreender o sketch como parte de um processo não indica que


algo vai ser feito diretamente dele, mas sim que em seu cerne está a
probabilidade de continuidade, a potência de vir a ser” (SOUZA, 2015, p.
47) e é nesta potência que reside o amor dos designers e artistas por este
repositório de memórias, que impede a passagem do tempo e registra os
momentos que compõem uma realidade presente à história de cada um
onde também estão inclusos a presença de características compartilha-
das coletivamente, como estética, prática e realidade sociocultural. É inte-
ressante notar como esse diário, como repositório de memórias, perpassa
a realidade em que se insere, podendo se transformar em um documento
capaz de narrar a história de uma sociedade, uma cultura e as formas sin-
gulares com que os indivíduos se relacionam. O sketchbook se adapta ao
dono e sua humanidade, como dito por Souza (2015) ao analisar a nossa
percepção na construção (ou falta de) memória gráfica dentro do mundo A MEMÓRIA É JUSTAMENTE O QUE NOS
extremamente digitalizado, constroem momentos únicos junto ao passa- CONSTITUI COMO SER HUMANO. POR
do e ao presente e mantém sua aura através da apropriação dos erros, ISSO, BUSCAMOS DIFERENTES FOR-
do tempo, das marcas de uso e da materialidade da criação analógica, MAS, MENTAIS OU FÍSICAS, DE VALIDAR
características impensáveis aos objetos digitais que perdem sua essência A NOSSA EXISTÊNCIA NO MUNDO, SEM
e seu uso, se tornando ordinais com a obsolescência temporal. DEIXAR QUE A HISTÓRIA DA NOSSA DI-
Faço minhas as palavras de Marco Túlio Resende, na roda de con- MINUTA HUMANIDADE SE ESVAIA POR
versa virtual O Corpo do Livro de Artista anteriormente citada: NOSSOS DEDOS. •

73
2.3 A AUTORIA EM DESIGN

Trago este tópico para correlacionar os estudos sobre livros de artista


dentro do design gráfico, além de mostrar as possibilidades da profissão como
semeador da cultura e inovação, junto ao fato dos extensos estudos sobre de-
sign autoral terem galgado o caminho para que a discussão proposta por esta
pesquisa pudesse ser executada.
Pensar a autoria em design é levar nossa mente ao período pós-moderno
do design gráfico e suas experimentações novas e revolucionárias. Enquanto
hoje, a discussão do papel do designer como autor se estende a campos antes
não pensados ou alcançados, as décadas de 1960 a 1990 gestaram as primei-
ras discussões e ideais desta área.
Se Barthes, ao propor que o texto deve ser visto de forma intertextual
em que “nenhum autor pode controlar porque cada significado alude não a um
ou mais sentidos específicos [...], mas a uma multiplicidade sem limites porque
desprovida de centro ou origem” (BELLEI, 2014, p. 164) assassina o autor em
benefício do leitor e direciona o ato da leitura não mais à interpretação única e
ditatorial do signo linguístico do escritor, mas as infinitas possibilidades inter-
pretativas e cognitivas do leitor, os designers gráficos pós-modernistas, muito
influenciados por seus predecessores vanguardistas – como Duchamp e Depe-
ro – reinventam o autor pelo ângulo da recriação de signos, estruturas e leituras
5
Com “ideal modernista pós-Guerra” me refiro às práticas e ideologias do que, além de possibilitar as interpretações e cognições únicas do leitor, as am-
fazer em design que surgem depois da Segunda Guerra Mundial, que com plia e incentiva através do papel ativo do designer como autor de sensibilidades.
a globalização da economia, ganhou o status de poder institucional, ficando
conhecido também como Estilo Internacional, de acordo com Rafael Cardo- Mas esta autoria só é útil quando abre espaço para que o design seja pensado
so (2008), que prezava pela homogeneidade e tratava o design como uma
de forma a ultrapassar as regras estabelecidas e limitantes do ofício (POYNOR,
“receita pronta” de regras universais e imutáveis.

85
2010) que tendem a ir de encontro com o ideal modernista5 pós-Guerra da Ainda de acordo com Burdick (1993), o design gráfico ao ver a es-
atividade como imparcial na construção de sentidos, com a neutralidade crita e a composição gráfica como elementos estanques, ignora justamen-
máxima da presença do designer em seu design. te o que tanto o atrai na criação de seus antecessores e que é o aspecto
Como pesquisado por Poynor (2010), Bruce Mau ao citar o texto “O central da produção vanguardista em sua relação com a linguagem. A
Autor como Produtor” de Walter Benjamin, retraduz a expressão para “O prática industrial e serial “impede o avanço da exploração visual e verbal
Produtor como Autor” e dá início a uma série de livros experimentais que o e inibe a reflexão crítica” (BURDICK, 1993, s/n, tradução minha) tornando
posiciona não mais como o designer que apenas dá forma ao conteúdo já o designer um ser inerte em sua própria criação, uma ferramenta para dar
criado, mas constrói este conteúdo junto a forma, em que ambos são de- voz a ideias de terceiros. O designer, porém, ao se localizar como autor
senvolvidos simultaneamente, caracterizando seu criador como designer, e, em sua prática, unificar tais aspectos, se torna um contribuidor cultural,
autor, editor, pesquisador, escritor e assim em diante, em que essa autoria trabalhando no refinamento de ideias em conjunto com o autor de textos e
pode ser vista de várias maneiras, de acordo com Ellen Lupton (MCCAR- em ideias próprias. Essa autoria global e as obras que foram plenamente
THY, 2013 apud PIRES, 2018), como em assinaturas visuais, escrita em contempladas, de acordo com Poynor (2010), se localizam em regiões
design, publicando, comentando, debatendo ou trabalhando em projetos periféricas às preocupações do design em sua atividade comercial, já que
pessoais de baixo alcance comercial, convergindo para novas relações ocorreram em contextos livres de limitações por clientes ou pela presta-
críticas e estilísticas, como vemos no trabalho de Mau, mas também com ção de serviços, algo incomum na realidade industrial.
Ellen Lupton, J. Abbott Miller, Johanna Drucker e tantos outros. No seu Com este processo de formação e geração de uma nova gama de
ensaio “What has Writing got to do with Desing?” (O que a Escrita tem a possibilidades de atuação, muitos designers foram em direção ao espaço
ver com o Design?) Anne Burdick (1993), professora e designer, questio- do livro como forma de expressão e trabalharam no livro de artista a vazão
na o porquê de canonizarmos as obras de autoria total em design e arte – de suas ânsias criativas. Com o conhecimento das regras que envolvem a
como as obras futuristas e dadaístas que, ao trabalhar a autoria da forma produção editorial, recriam as práticas da disciplina e articulam maneiras
e conteúdo, revolucionaram a cultura e o fazer em design – mas na prática de trabalhar a autorreferência, a singularidade, a presença da individuali-
separamos a fundição do verbal e visual, criando uma discrepância entre dade e a genuína autoria em design (WEYMAR, 2010). Os designers aos
retórica e prática, uma vez que artistas devem agradecer, pois a conexão entre os dois ofícios propiciou
o desenvolvimento dos experimentos autorais em livros de artistas, em
traduzir mensagens verbais em formas visuais é a essência do de-
sign gráfico [...] a manipulação da linguagem e da tipografia é o que que os designers possuem o domínio técnico e a sede pela inovação e os
distingue o nosso trabalho daquele dos ilustradores, que lidam ex- artistas a desinibição e desconhecimento em relação aos regimentos das
clusivamente com imagens. [...] O design gráfico não é estritamente disciplinas editoriais e nesta relação são criados vários entre os diferentes
visual nem estritamente verbal. É o casamento dos dois: fundido, uni-
do, inseparável (BURDICK, 1993, s/n, tradução minha). tipos de livros de artista, abarcando experiências com os poema-livros,

86
livros-documento e etc. Esta liberdade tanto almejada e que é alcançada
através dos livros gira em torno das relações que são restabelecidas entre
texto e obra de arte na contemporaneidade, em que o campo das artes,
segundo Basbaum (2007) passa pelo processo de hibridização entre
o campo visual e o verbal e a busca pela autonomia visual através da
fluidez entre texto e obra.
Warren Lehrer, em sua tese para graduação em design gráfico na
Yale, cria o livro versations (1980), onde captura através do espaço da
página, da tipografia e da poesia concreta “os ritmos e cadências de pen-
samento, fala e comunicação interpessoal dentro da cápsula de tempo e
espaço que é a forma do livro” (LEHRER, [2017], s/n, tradução minha).
Fazendo uso de diferentes línguas, o autor registra como uma partitura
musical oito conversas gravadas por ele, onde a composição tipográfica
faz com que o espaço seja temporalizado pela disposição de seu con-
FIGURA 20 - VERSATIONS
teúdo. A textura tipográfica e a poesia concreta dão forma ao som das
Warren Lehrer, 1980 - Impressão Offset em papel algodão.
conversas, como dito no próprio livro:
Fonte: Warren Lehrer Archive.
Acesso em: 20/04/2021.
Esse é um livro com ressonância acústica
Um livro com som
Com ecos
Altos e baixos
Longe e perto (LEHRER, 1980, s/n, tradução minha)
o poder da literatura visual como forma de atrair públicos diversos e mais
Conforme Poynor (2010), projetos nestes moldes dentro da área amplos, questionando a linguagem. “Se a linguagem é um grid que de-
do design desafiam os leitores a romper com o padrão linear da leitura, compõe as experiências em signos que podem ser repetidos” (POYNOR,
variar o seu ritmo, sua forma tradicional e a temporalidade imposta, sen- 2010, p. 124) os próprios elementos gráficos como layout, tipografia, co-
do elementos integrantes dos caminhos trilhados nos anos 1990. Assim res, formas e grid são linguagens por si só. Livros seguintes publicados
como Xisto, cerca de 20 anos antes com sua Vogaláxia, Lehrer mostrava por Lehrer, ao narrar personagens, suas histórias e acontecimentos, ain-

87
da de acordo com Poynor (2010), trazem experiências subjetivas ao fazer do Process; A Tomato Project, lançado em 1996, seguido por Bareback.
uso da dimensão retórica do design, a palavra então, junto à narrativa, se A Tomato Project de 1999 e pelo terceiro livro, chamado Tycho’s Nova:
torna personagem participante e a história só pode ser contada com sua A Tomato Project de 2001. Uso Poynor (2010) como aporte teórico para
presença em cena através do seu caráter plástico. falar sobre os livros por não encontrar outras referências sobre essas pro-
Um ponto interessante entre as diferenças dos livros de artista em duções. Tanto Process quanto Bareback unificam trabalhos individuais e
arte e design é a relação com a disseminação e intuitos comerciais. Os pessoais que conferem às páginas identidades próprias, trabalhando me-
designers, ao fazerem uso desse suporte, também buscaram formas de mória, mapeamento e novas propostas de interpretação através de sua
inserir a autoria dentro da produção editorial comercial, seja através do imagética gestual e/ou abstrata, que fazia uso da emoção que se prestava
barateamento das impressões, como feito por Lehrer ao transformar al- ao uso da inspiração promocional (POYNOR, 2010), fugindo do conteúdo
guns de seus poema-livros em livros de bolso, ou grupos em design como estritamente figurativo e textual, eles
a Tomato e a Fuel que tinham em seus valores como empresas a pro-
dução autoral em design para si e para seus clientes. Reinventaram as possibilidades formais das impressoras tipográfi-
cas; desconstruíram e subverteram as convenções formais ao des-
A proposta da Tomato é apaixonante para qualquer desig- mantelar o mecanismo linear; produziram jogos linguísticos, trocadi-
ner, já que seguiam uma filosofia de executar o trabalho em lhos visuais e experimentos tipográficos e criaram composições em
design para além das fronteiras do ofício, filosofia elo- camadas (WEYMAR, 2010, p. 131).

giada por suas inovações estéticas e técnicas


Contemporâneos a Tomato e com valores semelhantes, o grupo
em meados dos anos 1990, e a autoria com-
Fuel também prezava a autonomia autoral e coletiva, posicionando-se ex-
apor- partilhada entre seus membros, que
clusivamente como designers – diferente dos membros da Tomato que
te pro- assinam seus projetos ape-
flertavam com a arte, música, performance e por isso não se autodenomi-
fissional e nas como Tomato,
navam – mas aqui a autoria já não é vista de forma totalmente livre. Poynor
prestígio que fez confere
considera que, para eles, os trabalhos feitos de forma comercial não possuíam
com que conseguissem
liberdade total, já que precisavam se comprometer com o conteúdo e não o
levar seus valores à empresas
prejudicar em sua execução, característica irrelevante para projetos da própria
como Nike, Pepsi entre outros. O intrigan-
Fuel, onde esta interferência pode mudar o conteúdo em si. O seu
te é notar como retomam as propostas de Mau e o
método de criação seguia os preceitos da prática criati-
questionamento de Burdick ao resgatar a criação gráfico-
va em design, com a produção colaborativa de
-verbal ao cerne do processo criativo, contribuindo à pós-moder-
outros profissionais, como fotógrafos,
nidade. A equipe lançou 3 livros experimentais, o primeiro livro denomina-
ilustradores e redatores, des-

88
FIGURA 21 - TOMATO, PROCESS; A TOMATO PROJECT FIGURA 22 - TOMATO, BAREBACK. A TOMATO PROJECT
Tomato, 1996 - Publicação Thames & Hudson, Reino Unido. Tomato, 1999 – Publicação Lauren King Publishing, Reino Unido.
Fonte: Dick Van Dooren Archive. Fonte: Dick Van Dooren Archive.
Acesso em: 21/04/2021. Acesso em: 21/04/2021.

de que os primeiros pudessem trabalhar a corrupção ou transformação do con- entrevista para o site Design Boom (2015), a ambição mais importante
teúdo dos segundos, como quando entra em cena a questão da escrita. compartilhada entre os designers do grupo foi criar um design gráfico im-
previsível, atraente e envolvente em detrimento de questões como públi-
A escrita era fundamental para seus objetivos e eles pediam para que
colaboradores regulares produzissem textos sobre assuntos especí- co-alvo ou produzir seu trabalho corporativamente: “se funciona para nós,
ficos, que eram editados e trabalhados para funcionar em conjunto espero que funcione para os outros” (MURRAY, 2015, s/n).
com suas ideias visuais. (POYNOR, 2010, p. 138) É interessante notar as diferenças entre os formatos de produção
autoral propostas pelos dois grupos e as diferenças estético-gráficas que
Como dito por Damon Murray, um dos cofundadores da Fuel em possuem. Oposta à Tomato, Fuel dava ênfase ao conteúdo figurativo e

89
textual de forma bruta e crua e criação gráfico-verbal através da divisão e
junção no produto final. Este processo é muito mais semelhante ao traba-
lho em design contemporâneo do que a metodologia da Tomato. Além das
diferenças entre as propostas dos grupos também existem, para Poynor
(2010), características essencialmente distintas na relação entre texto e
imagem nos livros e revistas da Fuel e dos livros feitos por artistas, em
que o primeiro – e faço uma nota pessoal aqui para dizer que isto também
pode ser visto nos livros da Tomato – possuem uma sofisticação tipográfica,
de layout e impressão, diferente da relação mais “amadora” e menos estru-
turada/hierarquizada com que os artistas lidam com os mesmos elementos.
Em sua análise, Poynor indica que o design autoral flutua entre
pontos de críticas e elogios. Se por um lado começam a se difundir auto-
res, propostas e pensadores que veem a autoria como forma de ultrapas-
sar os limites do design e da forma como os designers trabalham, já que
“a autoria, mais do que um mero pacote de conteúdo, sempre tratou foi de FIGURA 23 - PURE FUEL
expandir a influência dos designers enquanto criadores” (HELLER, 2006 Fuel, 1996 – Publicação Booth-Clibborn Editions, Reino Unido.
apud WEYMAR, 2010, p. 134), por outro se iniciam dúvidas sobre até que Fonte: Fuel Design Archive.
ponto a autoria pode ser entendida como existente e representante da Acesso em: 21/04/2021.
visão única do designer ao invés de ser apenas mais uma denominação
que desordena as definições de sua prática. “O termo autoria só é útil na
medida em que abre um espaço para pensar sobre o design que trans-
cende as definições estabelecidas e possivelmente limitadas” (POYNOR,
2010, p. 146). Compreendendo Weymar (2010), que por sua vez pondera
sobre Lupton, a ideia de autoria é limitante ao designer pois restringe o
próprio design contemporâneo, devido seu vislumbre saudoso a origem
da criação ser o escritor ou o artista e sua individualidade, uma vez que

ao transferir a autoridade do texto de volta para o autor, ao colocar


o foco na voz, a presença se torna um fator limitante, restringindo e

90
categorizando a obra. O autor como origem, autoridade e proprietário
absoluto do texto funciona como uma proteção contra o livre arbítrio
do leitor (POYNOR, 2010, p.147).

Sendo a melhor forma de ressignificar esta inversão de Bruce Mau


do designer como autor, para o “designer como produtor” em que a ativi-
dade faça uso da intelectualidade do design, sem se alienar em relação a
forma e função de seus objetos e os significados das linguagens por ele
construídas. De acordo com Poynor (2010), outros pesquisadores, como
Rock, propõem formas diferentes de compreender a autoria, em que o
designer pode se caracterizar como tradutor, ator ou diretor ou Heller, que
pensa em autoria na noção acadêmica e literal do autor de imagens e
textos e da autoria empresarial.

FIGURA 24 - FUEL 3000


Fuel, 1996 – Publicação Laurence King Publishing, Reino Unido.
Fonte: Fuel Design Archive.
Acesso em: 21/04/2021.

MAS, MESMO COM SUAS DEFINIÇÕES


CONFUSAS E NEBULOSAS PARA O DE-
SIGN, O QUE FICA É O DESEJO DOS DE-
SIGNERS DE TER SUA VOZ E SEU PAPEL
COMO CONTRIBUIDORES CULTURAIS
RECONHECIDO E CULTUADO. •

91
Não fronde verde, mas escura, ramos.
Não lisos, mas travados e nodosos,
Não pomos, puas com veneno achamos.
3. OS TRANSTORNOS ALIMENTARES EM HOMENS

“Trata-se de uma condição mental com a mais alta taxa de mortalidade,


pois provoca uma perda de peso muito rápida”, descreve a psiquiatra Christina
de Almeida dos Santos para a Veja Saúde (2020) ao falar sobre a Anorexia Ner-
vosa (AN). O transtorno alimentar, muito comum em mulheres e mais raramente
em homens, envolve, como especificado pelo Manual de Saúde Merck (MSD)
(2020), a perda de peso grave ou rápida, com possíveis consequências e riscos
de vida e o pensamento ruminante em temas como alimentos, dietas, emagre-
cimento e negação a ver o comportamento como problema. Pode ter caráter
restritivo, com limitação na ingestão de alimentos, sem compulsão alimentar
nem prática de purgação frequente – como vômitos e/ou laxantes - e caráter
purgativo, com restrição alimentar, mas compulsão e purgação regular.
Como um efeito cascata, a preocupação, ansiedade e dismorfia corporal6
se intensificam à medida que o emagrecimento ocorre. Fatores socioambientais
e genéticos têm influência no desenvolvimento da doença, que ainda possui
causas específicas desconhecidas à comunidade médica. A pressão estética e
o corpo magro como padrão de beleza na sociedade, abusos e violências sofri-
dos, personalidade meticulosa e problemáticas na construção da autoimagem
se mesclam com a demarcação dos limites do corpo que vão para além do indi-
víduo e seu espaço físico, em que as possibilidades de ser e estar no mundo se
6
De acordo com o artigo do Dr. Gonzalo Ramirez no site Tua Saúde (2021, mesclam, como dito por Giordani:
s/n), “A dismorfia corporal é um transtorno em que existe preocupação ex-
cessiva pelo corpo, fazendo com que a pessoa sobrevalorize pequenas im- O corpo-sujeito e o corpo-objeto estão justapostos através de uma mesma
perfeições ou imagine essas imperfeições, resultando num impacto muito
negativo para a sua autoestima, além de afetar sua vida no trabalho, escola relação de possibilidade, e esse corpo-sujeito, ao mesmo tempo em que
e no convívio com amigos e familiares.” Possui muita ligação com a ano- sente, pode também ser sentido. É no cruzamento de possibilidades entre
rexia nervosa, tanto em mulheres quanto em homens. corpo-sujeito e corpo-objeto que essa doença cria um paradoxo entre o cor-
po real e a imagem do corpo que o indivíduo anoréxico projeta para si dos principalmente pelo formato e definição do corpo, também se rela-
na anorexia (PONTY, 1999 apud GIORDANI, 2006, s/n).
cionando com a dismorfia nos órgãos genitais e não tanto pelo tamanho
das roupas ou peso e, por último, classificações explicitamente de gênero
A AN pode ser observada em indivíduos desde a Idade Média aos como a do sistema de diagnóstico e estatístico para classificação de do-
dias atuais, porém, durante este processo de compreensão da doença, fo- enças mentais adotado pela Organização Mundial da Saúde, o DSM-IV,
ram criadas diversas barreiras de gênero que excluem ou menosprezam que requer no mínimo três meses de amenorreia7 para as mulheres, re-
os diagnósticos em homens, o que faz com que, até a contemporaneida- querimento não aplicável para homens.
de, a identificação do transtorno alimentar (TA) em homens seja lenta, É importante frisar que mesmo ambos os gêneros possuindo seme-
subnotificada, marginalizada e conste apenas como notas de rodapé lhanças durante o adoecimento ao TA, a questão sociocultural ocidental
em extensas pesquisas sobre o mesmo distúrbio no gênero oposto. do gênero faz com que homens tenham a tendência em desenvolver a
Para Melin e Araújo: Bulimia Nervosa, de acordo com o MSD, caracterizada pela compulsão
Entre as possíveis razões para essa exclusão, ao longo de quase um alimentar de grande quantidade e purgação como compensação pela in-
século, podemos citar: o baixo número de casos, que eliminava os gestão desses alimentos e a Vigorexia, (CAMARGO, COSTA S., UZU-
homens de qualquer estatística; a compreensão psicanalítica, na déca-
NIAN, VIEBIG, 2008, s/n) transtorno comportamental caracterizado pela
da de 40, da anorexia como sintoma de um suposto medo de fecunda-
ção oral, o que também exclui os homens; e a falsa crença de que o TA é visão dismórfica da realidade, quando pessoas de alta massa e definição
um distúrbio limitado ao gênero feminino (MELIN; ARAÚJO, 2002, s/n). muscular se veem como fracos e magros, o que reflete na preocupação
extrema com ingestão alimentar e prática extenuante de exercícios físicos.
Outros aspectos que dificultam este processo, de acordo com as Como este projeto possui caráter autobiográfico e poético, creio ser
referidas autoras, envolvem outras diferenciações entre os gêneros que relevante trazer memórias pessoais que abarquem a minha vivência com
não são levadas em conta na construção do diagnóstico, tais como as os transtornos alimentares.
profissões de atletas, modelos ou que façam uso da autoimagem, relacio- Como citado na epígrafe deste trabalho “Há momentos em que,
namento conturbado com o pai, depressão, abuso de álcool ou drogas, mesmo aos olhos sóbrios da Razão, o mundo da nossa triste humani-
desconfiança interpessoal, problemas de percepção corporal expressa- dade pode assumir a aparência de um inferno” (POE, 2018, p. 51), faço
minhas as palavras de Edgar Allan Poe, escritas em seu conto O Enterro
Prematuro, para designar meu período como anoréxico. A anorexia se
iniciou como um pequeno incômodo corporal característico da puberdade:
7
“Amenorreia é a ausência de menstruação [...] podendo também em alguns o formato do corpo, a comparação com os demais e tantos outros dilemas
casos a mulher apresentar a queda de cabelo, dor de cabeça, dor pélvica e juvenis. Intensificados por questões não tão características da adoles-
acne.” (Tua Saúde, 2021, s/n).

105
“Quando os laços do corpo uma alma ímpia
Destrói por si, do seu furor no enleio
Ao círculo sete Minos logo a envia."
cência, como a homofobia, gordofobia e o sexismo8, unidos a violências e aplausos que se transformam em vaias e rejeição no momento em que
pré púberes de mesmo caráter, os incômodos se tornaram padrões de a magreza ganha traços de morbidez.
comportamento e aversão extrema à autoimagem. Com essas crescentes As mudanças corporais a esta altura começaram a preocupar fami-
inquietações, iniciei a prática rotineira de exercícios físicos e a regulação liares, amigos e professores, que eram enganados pelas mentiras sobre
alimentar através da dieta dos pontos, regime que consiste na contabili- meus hábitos alimentares, coincidindo com a transição entre a AN restriti-
zação de calorias através de pontos com limites diários de consumo e, va à purgativa que, junto ao abuso de álcool e drogas, me levou aos meus
em pouco tempo, as práticas desenvolveram contornos compulsivos, com primeiros pensamentos suicidas que, por sua vez, foram responsáveis
a quantidade de pontos sendo reduzida e a carga de exercícios sendo pelo início do meu tratamento psicológico.
aumentada, até o momento em que os números da balança foram da Meu primeiro tratamento teve a duração de três anos e se dividiu
dezena dos 70 aos 48, fruto de uma dieta que consistia em água, balas em momentos semelhantes às fases do luto, passando pelos estágios
e arroz, com atividades físicas diárias de 40 a 60 minutos. O incômodo da negação, raiva, barganha, depressão e aceitação do transtorno e da
corporal púbere se tornou medo mórbido de engordar e iniciei um ciclo morte daquele indivíduo interior e de sua imagem corporal. O desenvolvi-
sem começo nem fim, em que a visão dismórfica da realidade estimula mento destas fases foi tortuoso e emaranhado, entre choros, reflexões e
a restrição alimentar, que por sua vez causa o emagrecimento, que uma quase internação.
então aumenta a dismorfia. Então, olho para o meus sketchbooks como repositórios de me-
O caráter social também faz parte desta narrativa, em que o com- mórias da história contada acima, onde as diferentes camadas que com-
portamento individual é estimulado pelo coletivo, uma vez que puseram a minha vivência com os transtornos alimentares ganharam for-
mas, cores, texturas e traçados que transformam as folhas de papel em
a formação de uma identidade corporal nasce da inter-comunicação e
das trocas sociais entre os indivíduos. O "eu" é uma "estrutura social registro gráfico da constituição da minha humanidade. •
que se desenvolve inteiramente numa experiência de comunicação" [...]
É um self que individualiza na divisão do eu com o mundo. É o resultado
da vida social fora de si mesmo [...] e, utilizando a expressão de Merleau
Ponty (2000), é o ser-no-mundo através do corpo e do que ele represen-
ta ou carrega. Essa forma como o indivíduo representa a sua identidade
corporal constitui sua imagem corporal. (GIORDANI, 2006, s/n)
8
Sexismo é a discriminação com viés de gênero. Suas maiores vítimas são
as mulheres e ao falar sobre a minha experiência com o sexismo, não estou
falando sobre discriminação pelo fato de ser homem, mas sim por não exer-
cer os papéis de gênero ditos como masculinos. Numa sociedade patriarcal,
O emagrecimento na contemporaneidade é objeto de desejo e o
quanto maior a aproximação com o feminino, maior a repulsa sofrida pelos
corpo magro como identidade corporal é uma conquista o que direciona indivíduos e esta violência se estende aos homens afeminados que, como
dito por Ettore (2018), são vistos como traidores da masculinidade hegemô-
o desafeto e a rejeição aos corpos marginalizados, como o corpo gordo, nica e são inferiorizados ao performar feminilidade – o que também acaba
preto, LGBTQ+ e tantos outros. O processo anoréxico é rodeado de afeto por inferiorizar as mulheres.

107
3.1 MINHA CRIAÇÃO E EXPRESSÃO GRÁFICA

Meu contato com o mundo da comunicação visual que desaguou na


relação com o design – aqui as entendendo como áreas distintas em que a
comunicação visual foca nas técnicas empreendidas na produção gráfica e o
design como o pensamento que viabiliza esta produção, as metodologias que
a constituem e o papel do designer como membro social – foi o pilar principal a
esta pesquisa, que digo que se iniciou inconscientemente em meados de 2015.
Amadora, a minha produção técnica e o meu aprendizado que engatinhava em
relação à comunicação visual consistiam na construção de fragmentos de his-
tórias e pensamentos que não se prendiam aos preceitos básicos do design e
acabavam se fundindo ao âmbito da produção autoral.
Esses pensamentos ganharam vida através de uma leva de sketchbooks,
que totalizaram cinco cadernos durante três anos, nos quais exprimi com uso
de materiais plásticos a minha forma de caminhar pelas regiões sombrias da
minha mente durante meus transtornos alimentares, fantasiando e criando livre
associações que me fizessem entender a realidade, o que faz deste projeto não
apenas uma pesquisa sobre a relação entre livros de artista e sketchbooks, mas
também uma produção que visa ressignificar as memórias do jovem eu de 48 kg
e as transformar em potência criativa. Para Freud, segundo Souza:

O poeta criativo faz o mesmo que a criança ao brincar, cria um mundo de fanta-
sia que é levado muito a sério e no qual investe muita emoção, sem confundir
realidade com fantasia e nisto resulta o prazer destas experiências. São ativida-
des levadas a sério, mas nas quais se desfruta de uma liberdade para vivenciar
as fantasias, um dos fatores que tornam tão fascinantes tanto os escritores
criativos quanto crianças ao brincar (FREUD, 1908/1980 apud SOUZA, 2011).

115
116
Para mim é interessante notar como o meu uso da criação de me- p. 12). O que mostra um caminho lógico a ser seguido a partir do momen-
mórias e como o uso do diário gráfico, além de guiarem parte da essência to que a minha expressão se iniciou neste caráter de “más práticas” em
da minha produção gráfica e as características estético-visuais que hoje design. Afinal,
apresento como designer, também foram peças de extrema importância
no processo terapêutico, tanto no entendimento da magreza compulsiva
como doença, quanto em sua cura. Recordo dos momentos junto a duas,
das cinco psicólogas com quem me consultei, de fazer uso das páginas
dos sketchbooks como forma de relembrar memórias antigas, os gatilhos
mentais que elas representaram e o porquê de estarem registradas, aos
moldes dos hypomnematas, e posso dizer que experimentei a corrupção
de suas páginas, uma vez que a produção dos diários gráficos é caracte- SE O DISTÚRBIO MENTAL, A HOMOSSE-
rizada, pela presença de páginas em branco, rasgos, defeitos de costura, XUALIDADE E OS CORPOS DIVERGENTES
refação, sobreposição de páginas e etc. – COMO O CORPO ANORÉXICO – SÃO O
De acordo com Souza (2011), a produção de imagens é uma forma DESVIO DA NORMA NA SOCIEDADE CON-
de comunicação de afetos que se relaciona entre quem as produz e quem TEMPORÂNEA, A ILEGIBILIDADE, A MUTI-
as frui, em um processo de comunicação através da linguagem visual. LAÇÃO TIPOGRÁFICA E A VIOLAÇÃO DO
Esta linguagem pode ser interpretada de outras maneiras, como a forma ESPAÇO GRÁFICO SÃO O EQUIVALENTE
feita pelos psicanalistas de acolher estes códigos e, através da adaptação AO DESVIO DA NORMA NO MEIO GRÁFICO.
do modelo de interpretação, buscar um sentido a ele.
Já a minha expressão gráfica, iniciada por estes rascunhos e expe-
rimentos, se diversificou e aperfeiçoou no momento em que tive contato
com o design como matéria de estudo. Conhecer as regras e a tradição do
fazer em design foram responsáveis por me fazer considerar que a ação
mais enriquecedora para o desenvolvimento da área e de seus preceitos
é a subversão de sua criação, que na verdade se constitui como um an-
tigo campo de estudo em que “uma das inovações mais importantes do Se aqui discorro sobre minha experiência com os sketchbooks como
design gráfico [...], foi o desafio explícito dos designers às convenções ou forma de conectar os diferentes temas tratados nesta pesquisa, a seguir
normas um dia vistas como constituintes da boa prática” (POYNOR, 2010, analiso páginas deles para auxiliar na busca de respostas desta pesquisa. •

117
vvv
3.2 ANÁLISE DOCUMENTAL DOS MEUS SKETCHBOOKS

Minha criação nas páginas dos sketchbooks, se inicia no ano de 2015 e ter-
mina no ano de 2019, contando com cinco cadernos que totalizam 375 páginas.
Devido à alta quantidade de trabalhos, trago apenas as páginas que têm como
temática os distúrbios alimentares e as separo em seus pontos de contato: de-
marcadores temporais, autorretratos de rosto e corpo, comida, desabafos, sexua-
lidade e personificação, criando painéis semânticos de cada tema auxiliando o de-
senvolvimento projetual do presente livro. Como dito por Aby Warburg, de acordo
com Souza (2011), a imagem é um espaço de relações entre valores psicológicos,
sociais, culturais e religiosos que perpassam pelo crivo pessoal e particular na
construção de seus significados, tanto explícitos quanto implícitos, transformando
a representação gráfica em estímulo e incentivo ao ato de recordar.
Os dois primeiros painéis semânticos trazem as primeiras e últimas pági-
nas destes cadernos e representam os demarcadores temporais. Em cada um
dos sketchbooks, a primeira página é responsável por uma das letras que com-
põe o nome Fábio, podendo ser vistas na figura 25. Junto a isso, a maioria destes
cadernos possui em sua última página uma carta, escrita por mim para mim, que
fala sobre o processo de construção do sketchbook e das memórias ali inseridas.
Essas páginas demarcam o início e o fim de cada volume ao parodiar algumas
das características da estrutura tradicional e contemporânea dos livros, como a
falsa folha de rosto9, para o caso das letras, e o posfácio10, no caso das cartas,
09
Uma falsa folha de rosto é um elemento pré-textual que precede folhas de
rosto e que carrega consigo apenas o título da publicação, é incluída apenas transformando o caderno em uma “âncora temporal” ao localizar as páginas e as
para fechar o caderno [entendendo caderno aqui como o conjunto de folhas
memórias nelas grafadas em um determinado recorte da minha história.
que compõem a costura do livro]. (EMBRAPA, 2019)
O nome, mais do que a fonética ou gramática da palavra, é o que nos vali-
10
Um posfácio, de acordo com o dicionário online Michaelis (2021), é um
adendo no final de um livro, tem caráter explicativo e explica o que é conve- da como sujeito na sociedade, distingue as identidades pessoais dos indivíduos,
niente de ser dito. unifica quem somos ao corpo que habitamos e, de acordo com Cláudia Leite

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FIGURA 25 – PAINEL SEMÂNTICO COM FALSAS FOLHAS DE ROSTO
Vários materiais – 2015 a 2018, respectivamente.
Acervo pessoal, 04/05/2021.

(2008), é responsável por nos diferir do corpo animal através da cultura analógica, trago o segundo painel, figura 26. Cartas pessoais, assim
inscrição do signo simbólico. Esta definição se relaciona com a como manuscritos, notas e making offs, conforme Souza (2011), servem
transformação de um simples códice em um sketchbook, de acor- como complemento a um entendimento global da linguagem, perdendo seu
do com Souza (2015): o batismo do caderno e a delimitação de caráter de descarte do processo criativo, sendo aceitos como pormenores
seu corpo. As folhas de rosto são responsáveis, também, pela da comunicação entre autor e leitor. As cartas são criadas de alguém para
humanização do objeto. alguém, então mesmo que contenham registros íntimos, passam pelo crivo
Delimitar o corpo de um objeto no espaço-tempo vai de en- crítico e intermediação de seu criador, que a molda para ser vista por ter-
contro com a finitude da cultura analógica, é um olhar à superfície ceiros. Elas agem, de acordo com Oliveira (2015), tanto sobre o emissor da
gráfica como o elo entre o esboço/sketch e a criação projetual. E, mensagem quanto por seu leitor, pelo ato da escrita e da leitura, que forma esta
uma vez que falo sobre a inserção do tempo e o encontro com a dupla função como exercício de si, o que as assemelha aos hypomnemata.

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FIGURA 26 – PAINEL SEMÂNTICO COM CARTAS DE ÚLTIMA PÁGINA
Caneta esferográfica e caneta nanquim – 2015 à 2018.
Acervo pessoal, 04/05/2021.

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A escrita, conforme Weymar (2010), é a correlação de diferentes ticas que representam não apenas a aparência física, mas a multiplicidade
fios que são mesclados pelo autor, mas que fazem uso da multiplicidade de personalidades adquiridas, projetadas ou idealizadas junto às diferentes
de sentidos da comunicação. A carta como suporte à escrita, portanto, vivências do indivíduo.
serve como um esforço de controlar as diferentes interpretações de seu Incito aqui uma forma de ver a relação entre os autorretratos e os
conteúdo, guiando o leitor a reencontrar o falecido autor na costura destes transtornos alimentares em homens. Se o TA é caracterizado pelas detur-
fios de sentido. pações na relação com a imagem corporal e no “”déficit do eu”, ou seja,
Estes cadernos vão tecendo uma história e oferecendo caracterís- um sentimento de ineficácia pessoal quanto ao corpo” (ALMEIDA, 2005,
ticas para constituição de tempo, local, acontecimentos e narrador, este p.35) e o autorretrato é uma ferramenta de construção de identidades e
último sendo construído em dois contextos diferentes: autorretratos de sua relação com o corpo, proponho que vejamos as representações grá-
rosto e autorretratos de corpo, que podem ser vistos nas figuras 27 e 28. ficas e visuais do Eu como ferramentas de identificação dos problemas
Ambos os painéis trazem figuras e ilustrações que demonstram minhas de autoimagem e de sua intensidade em homens anoréxicos. Percebo na
diferentes visões acerca da autoimagem, muitas vezes pela ótica da minha produção de sketchbooks como a representação do corpo acompa-
dismorfia corporal. nhou a construção destas diferentes identidades e se moldou às diversas
Para mim, é interessante notar como a análise destes autorretratos lentes da anorexia. Afinal, como dito por Almeida (2005), o corpo é oni-
auxilia imensamente a compreender uma das tantas buscas que trago presente, um símbolo da identidade pessoal e social do indivíduo e por
nesta pesquisa: a construção da minha identidade e a relação entre a isso representa a marca de um ser no mundo, exprimindo as constantes
imagem pessoal e o transtorno alimentar. Para Roselene Maria Rauen e modificações deste ser e de sua humanidade.
Daniel Bruno Momoli (2015) a identidade não é algo fixo, dado ou imu-
tável: ela é fragmentada, inconsistente e multifacetada, sendo composta
através das vivências, histórias, imposições e escolhas que acontecem
durante o entendimento do Eu como sujeito. É nesta procura da concretu-
de da humanidade e do registro da existência que se inserem os autorre-
tratos. É como se essas imagens fossem “representações da individuali-
dade do próprio autor, e, portanto, pressupõe-se que funcione como uma
reflexão sobre o universo particular do mesmo” (RAUEN; MOMOLI, 2015,
p. 57) podendo ser representações fidedignas da realidade ou construções
FIGURA 27 – PAINEL SEMÂNTICO COM AUTORRETRATOS DE ROSTO
que usam da autoimagem como local de experimentação visual e gráfica. A
Vários materiais – 2015 a 2019.
representação do Eu se torna mutável, ganhando ou perdendo caracterís-
Acervo pessoal, 04/05/2021.

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FIGURA 28 – PAINEL SEMÂNTICO COM AUTORRETRATOS DE CORPO
Vários materiais – 2015 a 2019. Acervo pessoal, 04/05/2021.
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FIGURA 29 - PAINEL SEMÂNTICO COM COMIDAS
Vários materiais - 2015 a 2019.
Acervo pessoal 04/05/2021.

A partir do momento que discuto o corpo e sua existência como


identidade pessoal, direciono o olhar a representação da comida, que se
conecta diretamente com o corpo, tanto pelas necessidades biológicas,
quanto pelas questões relacionais que são estabelecidas a ela. A comida,
mais que apenas uma necessidade básica, é carregada de símbolos so-
ciais, culturais e comportamentais.
Comer é um ato social que, de acordo com Marcella Guimarães em
entrevista para o site Alimentação em Foco (2017), transcende o corpo
físico e vai de encontro a questões históricas, do status e poder social aos
hábitos e padrões de beleza vigentes. A comida promove o prazer, o de-
leite e a sociabilidade, que se relacionam diretamente com a corpulência

136
e convívios estabelecidos entre os indivíduos. Durante o passar dos sé- vosa uma forma de transgressão social? Pode-se tomar a anorexia,
culos, o acesso a alimentação foi moldando a relação estabelecida entre enquanto experiência do corpo que se nega a comer, como metáfora
comida x corpo x status. Numa sociedade em que o acesso é parco e difi- de uma resistência à convivência social – de uma forma singular de
socialidade. [...] Significa a negação de um modo particular de es-
cultoso, como na Idade Média, a comida e a alimentação farta se tornam tar-no-mundo, de uma história de vida através de uma resistência
símbolos de poder econômico e social – que muitas vezes se localizavam corporal ao alimento. Ou seja, a anoréxica quer negar aquilo que ela
experimentou coletivamente, quer romper de certa maneira o vínculo
na mão de reis e senhores feudais – assim como o corpo volumoso se
social que a humanizou, teceu suas emoções (Maffesoli, 1998). Ao
torna signo de nobreza e beleza, vide os nus renascentistas de mulheres considerar a abstinência como uma resposta individual a questões
corpulentas para os padrões contemporâneos, como O Nascimento de sociais (Turner, 1984), a anoréxica tenta interpretar a experiência fí-
sica da dieta como uma forma de sucesso pessoal diante das crises
Vênus (1485) de Sandro Botticelli ou Leda e o Cisne (1504-1506) de
familiares, da impotência ou inabilidade em lidar com os problemas
Leonardo Da Vinci. cotidianos. (GIORDANI, 2006, s/n)
Com a expansão da distribuição de alimentos, a forma de ver a co-
mida, o corpo e seu status social vai se alterando. Numa realidade em que Ao registrar nas páginas dos sketchbooks, traço o sentimento de-
o acesso a alimentação industrializada é ampliado e o corpo gordo se tor- turpado de conquista deste objeto de consumo - a magreza – e o poder e
na facilmente conquistado pelas massas, a moderação e o emagrecimen- status social intrínsecos a ela nesta sociedade, que abre mão do prazer e
to se moldam como símbolos de status e poder econômico, agora devido júbilo do ato de comer, mas o recria de forma gráfica como compensação
seu caráter de objeto de consumo de maior dificuldade de ser alcançado, a sua recusa.
difundidos pela indústria cultural e meios de comunicação de massa, vide Então, a magreza como objetivo final de conquista indicia um per-
as super modelos macérrimas que estampavam as capas de revistas, curso atravessado por diversos aspectos da vida do indivíduo, como a
comerciais de televisão ou as campanhas publicitárias da década de 1990 relação com amigos, familiares, autoimagem e tantos outros, que são
como Naomi Campbell ou Cindy Crawford. afetados pelo foco principal que o anoréxico propicia à relação alimen-
É através da ritualização e da construção da identidade através da tar e à dieta como objetivos de vida. Uma vez que o inconsciente, pelo
negação ao alimento, que o anoréxico cria uma relação deturpada entre entendimento freudiano, é submetido às regras do sistema consciente,
o status e poder do indivíduo perante a sociedade, que é expresso pela como dito por Cordeiro (2010), que banem as memórias perturbadoras,
forma de lidar com a comida. Faço uso das palavras de Giordani, que tristes ou traumáticas do nível de consciência facilmente acessado, a re-
apresenta de forma certeira, o funcionamento singular desta relação, ao presentação gráfica é capaz de passar ao papel uma tradução semiótica
dizer que: dos sentimentos que guiam a nossa visão da realidade, onde a arte se

Se tomarmos a alimentação como uma expressão da socialidade, torna uma ferramenta de representação das dores do inconsciente. Este
um laço tão poderoso do vínculo social, não seria a anorexia ner- percurso, nos meus sketchbooks, ficou marcado explicitamente através

137
do registro de desabafos que podem ser vistos nas figuras 30 e 31, tanto
verbais quanto visuais. Acho interessante levantar a discussão de como a
diagramação, uso de cores, escolhas tipográficas e o próprio ato da escri-
ta exacerbam o caráter da pura mensagem e rascunho/sketch através da
concretização dos simbolismos que existiam no meu subconsciente, afinal

desenhar sentimentos, pintar abstrações, repetir padrões gráficos,


enfim, qualquer material expresso bidimensionalmente, pode ser
fonte preciosa de informações e integração de conteúdos alienados
(KIYAN, 2009, p. 97 apud. GRUBITS; OLIVEIRA, 2019, p. 1043).

Acho interessante, também, perceber o uso de cores como tradução


sensorial de um sentimento consciente. Como dito por Eva Heller (2013),
os mesmos acordes cromáticos podem ser representantes de diferentes
características e significados, sendo o contexto o grande determinante da
impressão causada, assim como os antecedentes psicológicos e históri-
cos individuais alteram as percepções das mesmas noções que podemos
estender, também, à percepção do traço e da tipografia ao retomarmos a
noção de ancoragem proposta por Barthes.

FIGURA 30 - PAINEL SEMÂNTICO COM DESABAFOS


Vários materiais - 2015 a 2019.
Acervo pessoal 04/05/2021.

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Separo a sexualidade como um quadro à parte para análise devido
suas características específicas, figura 31. A sexualidade é uma caracte-
rística intrínseca à existência humana e estabelecimento das nossas rela-
ções sociais, culturais, políticas e etc., o que interfere positiva e negativa-
mente nas nossas construções biográficas. A incidência de TA em homens
é maior em homossexuais, uma vez que o culto a magreza, a forma e a
aparência do corpo são atributos fortemente valorizados e inferem na sua
aceitação ou rejeição por diferentes círculos sociais, tanto homossexuais
quanto heterossexuais. Estas relações também são determinadas pelas
performances de gênero desempenhadas por estes indivíduos, onde a
presença de uma masculinidade inflexível e negacionista da feminilidade
amplia o reconhecimento deste indivíduo como humano.
Retomo o pensar do sketchbook como um local de registro íntimo
de memória entendendo este quadro como designações de uma per-
formance de si, usando como referência Medeiros (2018) que debate a
relação da tecnologia e sexualidade, em que as páginas dos meus ske-
tchbooks se situam como um porta-voz, onde são encontradas as per-
cepções individuais e coletivas das tensões entre corpo e sexualidade e,
essas tensões, também se relacionam com a construção da identidade
pessoal, em que a sexualidade compõe mais uma das camadas intrínse-
cas as performances do eu.

FIGURA 31 - PAINEL SEMÂNTICO SOBRE SEXUALIDADE


Vários materiais - 2015 a 2019.
Acervo pessoal, 04/05/2021.

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Trago o último dos painéis semânticos como ferramenta de busca e
compreensão do papel do sketchbook em seus diferentes pontos de con-
tato. O painel com imagens relativas à personificação, visto na figura 34 e
35, carrega ilustrações e desenhos da minha interpretação da anorexia, do
trauma e da solidão, como uma companheira e uma personalidade externa
a minha consciência. É interessante pensar que uma das características
da intensificação da anorexia é justamente, de acordo com Almeida (2005),
o entendimento da doença como uma companheira personificada que está
presente em todos os momentos e que auxilia no controle do impulso de
comer devido o afastamento dos familiares e amigos do anoréxico durante
o processo de perda de peso.
A personificação que fiz são apropriações de algumas músicas que
ouvia em meus momentos de purgação, sendo elas Something about Spa-
ce Dude e Space Bootz da cantora Miley Cyrus, produzidas pela banda de
rock psicodélico The Flaming Lips, em que ela narra o adoecimento pela de-
pressão e os comportamentos autodestrutivos após ser abandonada por seu
amado, através da personificação dele como um astronauta. Estas páginas

FIGURA 32 - PAINEL SEMÂNTICO COM PERSONIFICAÇÃO


Vários materiais - 2015 a 2019.
Acervo pessoal, 04/05/2021.

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então buscam representações do universo particular, desta vez, porém, pelo
viés da personificação. Ao recriar o transtorno em um universo existente em
uma realidade à parte, há a representação poética e gráfica da identidade e o
entendimento dela como uma construção não mais vinculada ao corpo do Eu
que a traça, mas ao corpo de um Eu imaginário que se torna receptáculo das
dores negadas pela régua da consciência, é uma lente pela qual se traduz o
inconsciente, retomando os apontamentos freudianos.
Finalizo este tópico da pesquisa entendendo as camadas intercontex-
tuais que foram construídas, inconsciente e conscientemente, durante o pro-
cesso de feitura dos meus sketchbooks, como partes de um todo complexo
que representam não apenas o meu processo de adoecimento da anorexia,
mas a construção da minha identidade e imagem corporal e pessoal. •

FIGURA 33 - PAINEL SEMÂNTICO COM PERSONIFICAÇÃO


Vários materiais - 2015 a 2019.
Acervo pessoal, 04/05/2021.

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4. A CAIXA-PRETA

Início, neste momento da pesquisa, uma nova forma de olhar ao passado.


Se pelos painéis semânticos busquei fazer uma análise dos significados e das
nuances presentes nas páginas de cada tema dos meus sketchbooks, neste
momento exponho a maneira através da qual me aproprio do passado para a
criação deste livro, Caixa-Preta, que expressa o meu olhar e minha narrativa
sobre os transtornos alimentares através do design autoral.
Mas, por que Caixa-Preta?
Conhecidas como caixas-pretas, os Gravadores de Dados de Voo, em
geral, ganham muita atenção midiática após acidentes aéreos em que sua bus-
ca é crucial para entender os motivos que levaram ao fracasso na operação da
aeronave, uma vez que é nelas que ficam registradas as informações do voo
e atuação da equipe de aviação, como áudios do comandante e copiloto, velo-
cidade do avião entre outros. Sobrevivem a condições extremas de temperatu-
ra, velocidade e pressão e são repositórios de dados essenciais para entender
momentos passados. Em seu caráter investigativo, servem para reconstrução
de acontecimentos em uma análise crítica por peritos e famílias, como no caso
do voo 3054 da companhia aérea TAM, que revelou os dados apenas àqueles
diretamente afetados pelo acidente.
Interpreto estas ferramentas como locais de registro de memória ao pen-
sar a anorexia e seus ciclos, da depressão à cura, como uma jornada acidental
– e um tanto catastrófica – em direção ao inferno, onde me aproprio do clássico
dantesco, A Divina Comédia, especificamente em Inferno, como condutor da
narrativa deste livro – que por sinal, se inicia antes da primeira página.
A Divina Comédia é um poema clássico escrito por Dante Alighieri, possi-
velmente entre 1304 à 1321, que narra a viagem espiritual de Dante e seu originário das músicas anteriormente citadas e de mais uma, Pablow the
guia, Virgílio, pelos três mundos além-vida cristão, o inferno, o purgatório Blowfish. Através da mescla do texto de Alighieri, do texto desta pesqui-
e, por fim, o paraíso, fazendo uma alusão ao cair e ao renascer da alma sa e dos meus antigos sketchbooks, crio uma narrativa que compõe os
perante o pecado. A obra é extremamente minuciosa, com alegorias que destroços da minha viagem acidental em direção ao meu inferno íntimo e
oferecem detalhes sociais, políticos e religiosos da República Florentina particular. Convido você leitor, neste momento, a revisitar a criação poé-
da época e das concepções mitológicas da sociedade medieval. O nome tica destas páginas, uma vez que no tópico seguinte justifico as escolhas
original, apenas Comédia, faz alusão ao tipo de estrutura dada pelos me- gráficas e projetuais que compõem este livro. •
dievais aos poemas, que se dividiam em comédias, quando com finais
felizes, e tragédias, com finais opostos às comédias.
De forma resumida, Inferno narra a trajetória dos dois desventura-
dos pelo mundo pós vida daqueles que pecaram e não se arrependeram.
Como dito na tradução e adaptação em prosa de Rocha (1999), o infer-
no é composto por uma área externa e nove círculos concêntricos (que
formam, ao todo, vinte e quatro regiões) que se dividem pelos pecados
cometidos em vida pelas almas que ali habitam, sendo essas as divisões:
I) a ausência de opção pelo bem ou pelo mal; II) ausência de pecado; III)
pecados da incontinência; IV) heresia; V) violência; VI) fraude simples; e
por último VII) traição e/ou fraude completa, em que este último é onde se
localiza Judas e o ponto exato em que Lúcifer caiu dos céus. Dante, que
desorientado pelo pecado, é impedido de seguir em direção ao paraíso
por três feras, que representam três subdivisões do inferno de acordo
com sua gravidade, aceita descer ao centro da Terra junto à Virgílio, que
representa a razão, como guia para conseguir ascender aos céus onde
está sua amada, Beatriz.
Me aproprio das memórias gráficas dos meus sketchbooks e do
personagem que criei como personificação do transtorno alimentar du-
rante meu período de adoecimento, Space Dude - em português Cara do
Espaço, visto também na figura 33 - que nomeio neste livro como Pablo,

155
BEM COMO ARESTA
NO CRISTAL CONTIDA
4.1 O INFERNO

Divido a criação deste projeto gráfico em dois pontos: O texto acadêmico


e o texto poético. Com ambos disputando o espaço do livro, estabeleci lineari-
dades individuais que, em diversas páginas, mesclam e sobrepõem seus fluxos
narrativos. O texto acadêmico, faz uso da família tipográfica Arial – diferente-
mente do texto poético, que faz uso da Times New Roman – e segue algumas
das normas para pesquisas acadêmicas da UFPEL. Localizado nas páginas
brancas e numeradas deste livro (como esta que você está lendo), o texto é
justificado, em uma estrutura de 12 colunas comportadas em duas colunas prin-
cipais, que se moldam dependendo do uso de imagens e outras intervenções;
as aplico de forma regular e padronizada para facilitar a leitura e deixar nítido
as diferenças entre as duas narrativas. Em todo o projeto gráfico há a presen-
ça do preto e do forte tom de laranja que, apropriados do layout padrão das
caixas-pretas (figura 34), possuem alto grau de contraste além de carregar em
si a percepção cultural, como dito por Heller (2013), da hostilidade, do perigo,
do design ultrapassado e dos restos de plástico de uma industrialização arcai-
ca, características que cabem como uma luva para uma história costurada por
resquícios de memória. Neste tópico, dou atenção preferencialmente à criação
poético-visual e a algumas de suas relações com a pesquisa.
O que sobra quando cai uma aeronave? Para além das tristes notícias
dos telejornais, sobram fragmentos, destroços e memórias dos tripulantes que
nela estavam. Se nas caixas-pretas temos o registro do voo, nos resquícios ma-
teriais temos o registro das narrativas destas pessoas, sendo através disso que
inicio as escolhas e diretrizes gráficas, que fazem uso das sobras e da mistura
de sua materialidade escaneada com a criação digital como expressão criativa.

163
Poynor (2010), a inovação artística não é mais possível, uma vez que
tudo já fora inventado, sobrando aos criadores da contemporaneidade a
pilhagem e a ancoragem.
Este livro é composto pela apropriação de 12, dos 34 cantos, feitos
por Alighieri para Inferno, onde cada um é iniciado por páginas duplas
que dão as característica da narrativa das páginas seguintes, aplicadas
em folhas únicas ou duplas e finalizados com uma carta ou desabafo. Os
círculos infernais sempre se iniciam com um trecho bíblico sobre o pecado
que se referem.
Inicio o primeiro capítulo inserindo meu alter ego em seu voo F-33,
com uma colagem com os diversos materiais que compõe os capítulos
seguintes, como os retalhos de uma antiga bíblia de família, páginas do
meu atual sketchbook e assim em diante. Se Dante começa sua jornada
dizendo que se viu perdido no pecado durante sua proximidade a vida
adulta – “Da nossa vida, em metade da jornada, achei-me perdido numa
selva tenebrosa” (ALIGHIERI, 2003) – eu inicio Caixa-Preta no encontro
FIGURA 34 - CAIXA-PRETA DE AVIÃO
ao transtorno alimentar na adolescência, que faz uso do retrato e da fita
2015 - Fonte: Tecnoblog.
métrica como forma de mostrar o desenvolvimento da perdição no “meio
Acesso em: 01/06/2021.
da metade” da jornada, fazendo uso da sétima lei da Gestalt, a continui-
dade, para propor a construção gradativa desta viagem em declínio, como
no momento em que, na busca de ascender aos céus, Dante é impedido
Pela paródia das caixas-pretas introduzo este livro, onde sua capa, pelas feras que o empurram para baixo. Lembro dos meus momentos
em formato A4, horizontal e selada por um adesivo, impede em determi- com a fita métrica em frente ao espelho medindo cada uma das partes do
nado grau a abertura do livro pelo leitor. Se o códice de um livro muitas ve- meu corpo e pensando quantos centímetros deveriam ser perdidos até a
zes é um convite para sua leitura, aqui desconvido a interação que, como próxima medição, acompanhados pela mudança entre as diferentes iden-
no voo acidental da TAM, deve ter seu conteúdo acessado apenas aque- tidades pessoais que coexistiram entre os mais de 10 anos de distância
les envolvidos pela tragédia. A paródia, muito debatida dentro do campo entre o primeiro e o último retrato.
do design, se mostra perene a partir do momento em que, de acordo com O capítulo é finalizado com a primeira carta, que dá fim ao meu

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FIGURA 35 - SKETCH FOTOS 3X4 FIGURA 36 - SKETCH ABERTURA INFERNO
Colagens com fotografias, silver tape e folha - 2021. Divisórias de plástico grampeadas e desenhadas com caneta nanquim - 2021.
Acervo pessoal, 18/06/2021. Acervo pessoal, 18/06/2021.

primeiro sketchbook, ambos feitos no ano de 2015. É irônico a carta co- por um aviso: Quando entrar, abandone a esperança de sair. A entrada ou
meçar justamente negando a minha existência e atuação como autor, ins- não das almas fora decidida ainda em vida pelas escolhas dos pecadores
tituindo a toda produção dos cadernos um simples caráter de compilado que, pouco depois, são levados por Caronte aos círculos onde sofrerão
de desabafos, num momento em que questiono, tanto na pesquisa como suas penitências eternas. A tipografia circular materializa esta abertura,
intimamente, o meu papel de autoria em design. que é cercada pelas tantas almas que por ela entram, representadas pe-
No Capítulo 2 chego as portas do inferno. Sem portões ou cadea- las transparências de divisórias de pastas de escritório que se amontoam
dos na comédia dantesca, a entrada deste local tão evitado é composta em direção ao centro do livro. Sofrimentos, lamentos e gritos se mesclam

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em todas essas almas que são individualizadas pelo traço sobreposto do tas por serem os locais em que minha mente tinha a privacidade de viajar
nanquim; mesmo que esta história conte a viagem de apenas um perso- e compreender as suas próprias questões, em que através da solitude,
nagem, a presença de tantas outras almas que participam do processo de meus pensamentos ganhavam formas - muitas vezes incompreensíveis
adoecimento não podem ser ignoradas pois, juntos, compõem os discur- - como nos mapas à esquerda. Finalizo essa passagem com uma das
sos insofridos deste estado mental dolente. músicas já tão citadas aqui que, com suas palavras costuradas, torna a
Retomo as leis da Gestalt ao misturar texto acadêmico e poético, leitura inviável e provoca o distanciamento de seu conteúdo, recriando o
nas páginas 32 e 33, através da segregação das formas que, sobrepos- mesmo objetivo do uso da música em momentos purgativos.
tas, se dividem e compõem uma imagem de alto contraste, onde impera o Chegamos então ao primeiro dos círculos infernais, no Subcapítulo
desconvite a leitura de ambos os textos, seguidas pela entrada na barca 2.2. Como dito pelos Provérbios 23:21 d’A Bíblia Sagrada (1993), os gulo-
de Caronte, pelos traços em laranja da ilustração ou através da finaliza- sos e glutões serão acometidos pelo sofrimento e pobreza.
ção do capítulo, onde trago uma das gravuras de Doré desta passagem Se a relação com a comida e a autoimagem são grandes causado-
que, junto às linhas de ônibus de antigos guias de cidade, trocados e ras dos transtornos alimentares, faz sentido iniciarmos nossas penitências
bilhetes únicos, compõe esta materialidade. através dos pecados da incontinência. Na Divina Comédia, as almas que
Metaforizo a história de Caronte que, como na mitologia grega, per- sucumbem ao desejo ardente da gulodice perdem seu formato humano
mitia a entrada e transporte em sua barca, pelos Rios Estige e Aqueronte, ao serem presas em grandes rios de lama e sujeira. Trabalho esta perda
apenas àqueles enterrados com uma moeda de ouro, pela minha entrada da humanidade através da feitura de texturas, marmorizações e sobrepo-
rotineira nos diferentes ônibus e metrôs entre as cidades de São Paulo e sições de restos de alimentos, roupas, fotos e anotações, onde cada obje-
Guarulhos, em que as moedas de ouro que permitiam as viagens eram os to perde seu início, meio e fim, se tornando uma grande massa que reflete
cartões e os trocados perdidos nos bolsos. São traçados os diferentes tra- os tensionamentos entre a realidade e as distorções da comida, imagem
jetos do barqueiro pelas costuras em papel, com cada um desses mapas corporal e hábitos que, por fim, formam uma única imagem: a represen-
sendo ampliações, variações e trajetos que compõem as ruas e avenidas tação gráfica das diferentes camadas que compõe a forma corrompida
que interligam as cidades de Guarulhos e São Paulo, que, em sua costu- de ver os atos de comer e ser. Essas camadas decompõem ainda mais
ra, gera diferentes formas que em seguida são desconstruídas através do a ideia de continuidade ao serem sobrepostas e mescladas, criando uma
grid do próprio mapa, as transformando em rotas intangíveis. imagem desconexa, tal qual os limites corpóreos das almas gulosas.
Os atos de costurar, recortar, editar e diagramar cada um dos ma- Partimos então para o momento que a incontinência ganha outros
pas para este livro foi um processo lento e monótono que trouxe à tona traços pela intransigência da ira e do rancor, o círculo onde ficam as almas
uma nostalgia maçante das viagens de ida e volta entre as cidades, seu vencidas pelo ódio ou pela raiva contida.
trânsito habitualmente quilométrico e sua repetição diária. Escolhi tais ro- “Deixa a ira, abandona o furor; não te impacientes; certamente isso

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acabará mal” (ALMEIDA, 1993) diz o Salmos 37:8, de Davi, sobre o com- de ira, rancor e ódio se misturam com rabiscos indecifráveis como forma
portamento do homem diante da ira e as consequências de tal para herdar de compor a caoticidade da negação de si e do outro. As garatujas feitas
o perdão de Cristo. Nos ciclos infernais, tais almas digladiam-se pelo rio pelos indivíduos, de acordo com Souza (2015), são momentos íntimos
Estige, socando, chutando, mordendo e arrancando parte do corpo de si e que envolvem um certo nível de exposição ao serem compartilhados, po-
de seus semelhantes. Os rancorosos, por não externar sua raiva, passam dendo ser interpretadas, também, pelo viés psicológico, onde são vistas,
sua penitência presos ao fundo do rio. analisadas e taxadas como loucura.
Ao mergulhar neste círculo, junto as páginas do Subcapítulo 2.3, O círculo é finalizado com um desabafo de meados de 2015 que,
lembro de palavras registradas nos capítulos anteriores para pensar a diferente das cartas anteriores, traz em suas palavras um alto grau de rai-
criação de uma tradução visual: a negação da sociabilidade pelo anoréxi- va, sofrimento e distorções da imagem pessoal, onde a ira expressa nas
co. Faço esta associação ao interpretar o desenvolvimento deste despre- páginas do sketchbooks exemplifica o ódio pelo individual e pelo coletivo
zo através da ótica da ira pelas violências passadas, pela sociedade que pelas lentes deturpadas do transtorno alimentar.
rejeita os corpos divergentes e pela incapacidade de alcançar o corpo tão Conforme avançamos pelas penitências do inferno, maiores são as
sonhado. Se a anorexia é uma negação particular da forma de estar no memórias e a intensidade do que elas representam. Se passamos por um
mundo (GIORDANI, 2006), a ira e o rancor são o motor deste processo, rio no capítulo anterior, entramos em uma floresta, no Capítulo 3, onde
traduzindo fisicamente no corpo do anoréxico não apenas a impotência germinam e florescem como árvores infernais as almas dos suicidas,
frente às circunstâncias vividas, mas também a cólera pela sociabilidade. inaugurando os círculos dos pecados da violência. Fazendo uso de gram-
Essa negação torna o corpo alvo principal da raiva internalizada e é atra- pos de papel e agulhas, construo este falso bioma através da dramatiza-
vés disso que trabalho essas páginas. Pelo uso do scanner, represento ção que o metal oferece por suas pontas e formas retorcidas. Insiro a ti-
cada uma destas partes do corpo não apenas como os locais para onde pografia dando ênfase a suas serifas e traços extremamente rígidos, com
destinava minha raiva, mas também como os fragmentos dos corpos que a frase viver vale a pena? relembrando como esta dúvida se apresentava
se torturam no inferno pela incontinência de seus atos. Criei tais páginas para mim nos momentos de maior intensidade da AN. Estas experimen-
ao olhar para os meus antigos sketchbooks e perceber como os autor- tações tipográficas, ganham importância ao pensarmos que tentativas de
retratos de corpo e rosto funcionavam como recortes de uma realidade suicídio em homens com TA são maiores que entre mulheres (ARAÚJO;
pela qual eu nutria profundo desprezo, onde a visão de uma pequena MELIN, 2002). Para a construção destas diferentes florestas me inspiro
porção do corpo se tornou símbolo de associações para além daquelas nas mutilações tipográficas feitas por David Carson em seu livro The End
que indicia. Estas associações, neste livro, são explicitadas em rabiscos, of Print (2000), em parceria com Lewis Blackwell.
desenhos e garatujas digitais feitas em laranja em um fundo preto, inspi- Ainda nos círculos onde ficam os violentos, agora temos os violen-
radas pelas páginas de desabafos dos meus sketchbooks. As palavras tos contra a natureza, local onde ficam os sodomitas. Submetidos a correr

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FIGURA 37 - SKETCH FLORESTA DOS SUICÍDAS FIGURA 38 - SKETCH A DANÇA
Ilustração com caneta naquim - 2021. Ilustração com caneta naquim e caneta de cd - 2021.
Acervo pessoal, 18/06/2021. Acervo pessoal, 18/06/2021.

eternamente abaixo de uma chuva de chamas, o castigo, de acordo com mam uma ciranda para conversar com Dante e Virgílio. Com recortes e
Rocha (1999), é uma extensão das penitências dos luxuriosos, que são colagens, construo estes movimentos pela tentativa de cópia das formas
carregados por fortes ventos pela eternidade. Pela mescla entre o digital humanoides de Matisse, que são sobrepostas por diferentes balões de
e o físico, inicio o Subcapítulo 3.1 por uma colagem que apropria A Dança chat do Grindr; os perfis do aplicativo, construídos por diferentes perfor-
(1910), de Henri Matisse, sob capturas de tela do aplicativo de relaciona- mances digitais, hierarquizam seus membros por sua expressão de gêne-
mento homoafetivo, Grindr. A dança foi a forma encontrada pelas almas ro, corporeidade, posição sexual, faixa etária, orientação sexual, raça, sta-
para passar a eternidade em movimento, como no momento em que for- tus de relacionamento e capital financeiro/intelectual (MEDEIROS, 2018),

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envolvem a sexualidade nesta pesquisa: a relação com o TA, a rejeição
aos corpos divergentes e o meu contato com estes ambientes.
A seguir, para acessar os círculos mais profundos do inferno, Dante
e Virgílio sobem na garupa do demônio mitológico Gérion, que voa rapi-
damente em direção as profundezas, passagem que trago nas páginas
do Subcapítulo 3.2.
Pela apropriação da ideia das fotos sequenciadas e repetidas da
cronofotografia, que originou o cinema, recorto frames de dois diferentes
vídeos para compor a relação entre a compulsão alimentar e a purgação,
representados pela sequência e repetição. A transição entre as imagens
da boca que mastiga para a descarga que é acionada indica um percurso
que aos poucos se transforma e ganha o mesmo grau de importância,
mas que, como Gérion, segue em direção à escuridão.
Chegamos ao penúltimo círculo desta viagem pelo inferno no Capí-
tulo 4. Neste ponto, faço uso de mutilações e recortes de papel para sim-
bolizar aqueles responsáveis pela discórdia, aqui especificamente falando
FIGURA 39 - SKETCH PERFIS GRINDR sobre a semeadura das desuniões familiares que, como na comédia clás-
Ilustração com caneta naquim - 2021. sica, são punidos eternamente por feridas, cortes e lacerações causadas
Acervo pessoal, 18/06/2021. por demônios em partes do corpo representativas das discórdias provoca-
das. A anorexia, por possuir muitas nuances e características nebulosas
até para a comunidade médica, é responsável por frustrações e brigas no
não sendo raro encontrarmos perfis que rejeitam corpos marginalizados seio familiar pelo não entendimento do adoecimento e da obsessão pelo
através de frases como “Não sou nem curto afeminados” ou “Gordos não”. emagrecimento. A inserção destas mutilações em fotografias calmas e co-
Pela construção da minha sexualidade pautada pelo uso destes tidianas serve como contraponto contrastivo para intensificar o incômodo
aplicativos, acho pertinente inseri-lo como um exemplo claro das pres- visual e a ideia do corpo anoréxico como responsável por tal desunião.
sões estético-corporais que perpassam pelos relacionamentos homoafe- O círculo é finalizado com um desabafo de 2018, também mutilado, que
tivos e como a construção de uma identidade corporal distorcida se rela- escrevi sobre a solidão, sentimento mais que presente quando falo sobre
ciona com as mídias digitais, de forma a amarrar os três contextos que tais tensionamentos.

169
ERGUIDAS UMAS ESTÃO,
OUTRAS JAZENDO

170
É chegado o momento onde, assim como os dois viajantes, en- último e derradeiro capítulo. Através de fotografias de diferentes pisca-pis-
tramos ao último dos círculos infernais, que compartilha as páginas com cas, crio uma galáxia formada por luzes e fios que, com o passar de páginas,
este tópico. É o local onde os traidores da pátria, de parentes, hóspedes distancia-se do fervor do laranja em direção à tranquilidade do azul, cor da cura
e de benfeitores ficam submersos no gelo causado pelas lágrimas e pelo e da calmaria, transição feita pela aproximação e multiplicação de formas que
bater de asas de Lúcifer, que mastiga três traidores, sendo o mais famoso compõem essas diferentes estrelas. Com essa tradução, desejo representar o
Judas Iscariotes, o traidor de Jesus. Aqui, faço uso da abstração para momento que, pós cada uma das provações e penitências do inferno, Dante
representar o indizível, onde a distorção de cores, desfoques, texturas e percebe as estrelas que guardam o seu futuro e a beleza do vindouro céu.
fotos criam um lapso entre o real e o imaginário, um limbo entre morte e Nestas imagens, não busco mais exprimir as dores do transtorno ali-
vida, como no momento em que Dante não mais entende-se como vivo ou mentar, mas o olhar para a realidade de uma nova forma, é o início do pro-
morto pelo assombro de ver o semblante do anjo caído. cesso de cura. Por mais que em toda narrativa gráfica exista a veemência na
Aqui, metaforizo o momento extremo em que, no adoecimento, é representação do sofrimento, tais páginas o deixam para trás, não pelo viés do
chegado o limite entre as pulsões de vida e morte do indivíduo, quando esquecimento, mas pela perspectiva da esperança e do aprendizado, que faz
ambos batalham para decidir qual guiará as próximas decisões em vida a com que a normal realidade, quando vista por olhos que assistiram o padecer,
serem tomadas. É a minha tradução gráfica do momento máximo onde as se torne mais bela e deslumbrante.
decisões em frente a perda de peso, a dismorfia corporal e todas as nu- A última página da narrativa poética deste livro é finalizada por um frag-
ances do transtorno alimentar guiarão a sobrevivência ou não do Eu. A si- mento de uma das orações à Ave Maria, por dois motivos. As almas que se
milaridade com algumas formas humanas indicia a existência de alguém, arrependem e pedem o perdão divino pelos seus pecados abrem os círculos
mas o movimento impede a real interpretação do que compõem cada uma de Purgatório, em que, neste contexto, a insiro como um pedido de perdão
destas abstrações. Aqui, uso trechos do canto XXXIV de Inferno, para pelos atos que cometi contra mim e contra meu corpo e também como um
intensificar a associação com o último círculo, mas também usando as início para futuros desdobramentos deste trabalho. O segundo motivo é movi-
palavras de Alighieri como âncora para representar esta dissociação da do por memórias pessoais. Como ateu, não tenho crenças que relacionem a
realidade. minha cura a santidades, mas guardo com carinho nos códices da mente uma
Convido você leitor a, neste momento, olhar para a criação poética promessa feita por minha mãe, que pediu à Ave Maria que permitisse a minha
do Capítulo 5 antes de finalizar este tópico, uma vez que em seguida a sobrevivência sob a anorexia.
explico como o fim desta viagem acidental. Finalizo este tópico entendendo a importância desta narrativa verbo-vi-
Cada uma das três partes da Divina Comédia é sempre finalizada sual como apropriação não apenas das minhas lembranças, mas também do
com uma palavra: Estrelas. Dante e Virgílio, ao sair do inferno em direção espaço da página e da expressão gráfica como um repositório de memórias,
ao purgatório, buscam as estrelas há muito vistas, momento que trago no que discorro no capítulo seguinte. •

171
EIS SATANÁS!
EIS O LUGAR HORRENDO
NÃO MORTO,
PORÉM VIVO NÃO FICARA.
177
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Revisitar memórias e usá-las como artificio narrativo se mostrou


uma missão deste projeto pelas tensões de entender e compreender a
minha própria identidade. Neste livro experimental, que flutua entre ser
um metalivro, um livro ilustrado e uma pesquisa científica, começo a com-
preender de forma analítica o verdadeiro papel dos livros de artista e ske-
tchbooks como porta-voz de realidades.
As páginas do sketchbook, atravessadas pelos vieses socais, cul-
turais e temporais, se tornam repositório documental de uma realidade
vivida, com seus registros traduzindo uma inconsciência silenciada pelas
palavras. O espaço das páginas destes tantos códices se torna mundos
híbridos entre as fantasias de um subconsciente criativo e a realidade de
um consciente presente e que entende as dores de ser quem é e, nesta
construção, se exacerbam as vontades do indivíduo de ser visto e ouvido
e de registrar graficamente suas angústias, anseios e até prazeres. Nas
diferentes mentes criativas, percebo como o registro gráfico se torna fer-
ramenta interpretativa de novas e antigas informações, seja para impedir
que memórias importantes fujam aos turbulentos ventos do esquecimento
ou para trabalhar a memória como documentos individuais do Eu.
Enquanto isso, ao criar um livro usando as páginas dos sketchbooks
como uma biblioteca de memórias, enriqueci as potências criativas que o es-
boço oferece, funcionando como uma extensão de outra das tantas funções
dos diários gráficos: o poder de vir a ser. O livro de artista, como um espaço
expressivo, passa pelo crivo da interpretação individual e crítica da sociedade,
cultura e tempo, funcionando como um porta-voz pensado, planejado e criado
por uma consciência que já entende suas próprias palavras e o que quer dizer.
É na confluência destas tantas funções dos meios expressivos que presentadas pelos mesmos e repetidos clichês que limitam, estereotipam
entendo sua importância, para mim, como homem antes anoréxico e para e ignoram as vivências únicas e singulares dos indivíduos. Imergir nas
outros homens que passam pelo mesmo. O processo de compreender o singularidades das minhas vivências pela interlocução com os cantos de
diagnóstico do transtorno alimentar e viver com a rejeição do Eu é nebu- Dante, me auxiliou na criação de um universo que interpreta, pela junção
loso e dolorido, onde a identidade pessoal é fragmentada pelas diferentes entre visual e poético, o adoecimento, seus sintomas, nuances e compor-
realidades e óticas que compõem a nossa forma de ver e ser no mundo, tamentos invisíveis para outrem, assim como, a narrativa triádica da Divi-
o que dificulta o entendimento de nosso passado, presente e futuro. Por na Comédia me estimula a dar novos desdobramentos para esta pesqui-
isso, trago os sketchbooks e livros de artista como locais em que pode- sa, na busca de compreender não apenas o adoecimento, mas também
mos debater estes tensionamentos, onde o registro gráfico transforma a o tratamento e cura, assim como Dante, que, após viajar pelos caminhos
memória em um mapa que permite que entendamos as narrativas pes- do inferno, vai ao purgatório e aos céus na busca da iluminação divina.
soais de cada um destes homens anoréxicos, bulímicos, vigoréxicos e Espero que esta pesquisa, em seu caráter intertextual, seja capaz
tantos outros, pelo viés onírico e lúdico que a expressão gráfica e autoral de contribuir para além das paredes da área em que se insere, construin-
permite, onde a cor, tipografia, formas e materiais constroem signos e do uma rede de apoio para os tantos Fábios espalhados por aí que, assim
simbologias próprias do universo particular de cada um. São ferramentas como eu, buscam entender as trevas da própria mente.
que permitem a extensão do ser e a reconstrução de sua humanidade,
suportes que, ao olhar o espaço gráfico como um refúgio e um amigo,
auxiliam no resgate de uma identidade desmembrada pelo padecer.
Caixa-Preta, que recria minha trajetória pela anorexia como uma
viagem para o inferno, é um exemplo de umas das inúmeras formas de
traduzir estes tensionamentos. A criação através da autoria e experimen-
tação em design, me empodera como detentor da socialidade e corpo-
reidade negados pelo transtorno alimentar, em que este livro, repositório O PONTO FINAL DESTE PARÁGRAFO FI-
híbrido de diferentes realidades, faz uso do design e de seus tantos meios NALIZA ESTE TEXTO, MAS INICIA A NAR-
expressivos como porta-voz de um estado mental dolente e invisibiliza- RATIVA DE UM DESIGNER AUTOR QUE,
do. Mesmo que, muitas vezes, as páginas poéticas deste livro possuam EM MEIO ÀS TANTAS TURBULÊNCIAS DE
significados muito pessoais e até intangíveis, as entendo como uma nova UM MUNDO PANDÊMICO, COMPREENDE O
forma de representar a problemática do TA que, seja por desconhecimen- PAPEL DO DESIGN COMO CONTRIBUIDOR
to ou falta de interesse de profissionais criativos, em sua maioria são re- CULTURAL PARA MUDAR A REALIDADE. •

183
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