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REJEITOS

vidas marcadas pela lama


Victor Pires
Luana Melody Brasil
REJEITOS
vidas marcadas pela lama

Luana Melody Brasil e Victor Pires


Copyright © 2017 by FAC-UnB

Capa Jéssica Martins


Diagramação Jéssica Martins
Revisão Raphael Veleda
Ficha Catalográfica Fernanda Alves Mignot (BCE-UnB)
Apoio Dione Oliveira Moura, Átila Perassa, Sérgio Sá, Liziane Guazina, José Luis

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Catalogação na Publicação (CIP)


Ficha catalográfica

B823r

Rejeitos: vidas marcadas pela lama / Luana Melody Brasil, Victor Pires – 1. ed. – Brasília: FAC-UnB, 2017.
125 p. : il. ; 26 cm.

ISBN 978-85-93078-26-2

1. Responsabilidade por danos naturais – Mariana, MG. 2. Desastres ambientais – Mariana, MG. I.
Pires, Victor. II. Título.

CDU: 504.61(81)

DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO PARA A FAC-UNB.


Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio, sem a expressa
autorização da Editora e dos autores.
“Nossa riqueza gerou sempre a nossa pobreza para alimentar a
prosperidade dos outros: os impérios e seus agentes nativos. Na
alquimia colonial e neocolonial, o ouro se transforma em sucata
e os alimentos se convertem em veneno.”
Eduardo Galeano

“Perigos vêm a reboque do consumo cotidiano. Eles viajam com


o vento e a água, escondem-se por toda parte e, junto com o que
há de mais indispensável à vida – o ar, a comida, a roupa, os
objetos domésticos – atravessam todas as barreiras altamente
controladas da modernidade. Quando, depois do acidente, ações
de defesa e prevenção já não cabem, resta (aparentemente) uma
única atividade: desmentir, um apaziguamento que gera medo.”
Ulrich Beck
12
Memórias
da
LAMA

Acabou
TUDO 26
32
Sucessão
de
ERROS

50
Leito
de
MORTE
70
Onde
estão os
PEIXES?

84
Rejeitos
na
FOZ

98
Fuga
dos
TURISTAS

112
Feixes
de
VIME
Feridas
de um
desastre
ambiental
e
HUMANO
5 de novembro de 2015, pouco depois das 15h45. co ou o que a empresa fazia e não tinha ideia
de que existia a barragem de Fundão. Um ano
“A BARRAGEM ROMPEU!” depois do desastre, essas pessoas não podem
passar um dia sem lembrar desses nomes e
O grito ouvido no rádio por homens e mulhe- dos efeitos que tiveram sobre suas realidades.
res que trabalhavam no complexo minerário O desastre ainda deixa profundas marcas
de Germano, no município de Mariana (MG), era no meio ambiente e, mais ainda, nas condições
desesperado e angustiante. A voz anunciava o de vida das pessoas que necessitam do Rio
impensável: tinha início o maior desastre am- Doce e de seus dez afluentes. Diversas ques-
biental da história do país. A barragem de Fun- tões ainda sem resposta inquietam as vítimas
dão, que armazenava rejeitos da mineração de do rompimento de Fundão: “Já é possível beber
ferro, da Samarco Mineração S.A., ruiu e liberou a água sem adoecer? Se eu irrigar minha roça
cerca de 40 milhões de metros cúbicos de lama com essa água, meus alimentos vão ficar ruins?
no ambiente. A barragem continha aproxima- Quanto tempo uma pessoa vive depois de ter
damente 50 milhões de metros cúbicos de re- contato com a lama? Cadê os médicos e psicó-
jeitos de minério de ferro, um volume suficiente logos? Onde vou morar na semana que vem?
para encher cerca de 24 mil piscinas olímpicas. Que emprego vou ter? O que meus filhos vão
A onda de rejeitos deixou 19 mortos, preju- comer amanhã? Alguém vai retirar a lama do rio
ízos ambientais incalculáveis (muitos irrepa- e do mar? Quando o rio vai voltar a ter peixes?”.
ráveis) e arrasou Bento Rodrigues e Paracatu Meses após a tragédia, nem o Estado, nem as
de Baixo, distritos de Mariana, e parte da cida- mineradoras, nem as universidades dão respos-
de de Barra Longa, em Minas Gerais. A lama tas satisfatórias para abrandar essas aflições.
seguiu um curso de destruição por 35 muni- Outros rompimentos de barragens de rejeitos
cípios de Minas e três do Espírito Santo. A po- no Brasil prejudicaram populações, além da
pulação brasileira acompanhou praticamen- fauna e da flora, desde o século passado. No en-
te ao vivo o caminho de quase 700 km entre tanto, nenhum alcançou as dimensões do rom-
o local do rompimento e o Oceano Atlântico. pimento de Fundão. Trata-se de uma catástrofe
Para quem vivia às margens do Rio Doce, sem precedentes no Brasil e no resto do mundo.
principal curso d’água atingido pela lama, as A lama que sufocou o Rio Doce, arrastan-
notícias eram recebidas com apreensão. Fo- do consigo uma parte de Minas Gerais até o
ram dias de espera impotente pelos rejeitos, Atlântico, deixou milhares de vítimas no lito-
sabendo que eles chegariam e mudariam dras- ral do Espírito Santo. Além das vegetações
ticamente suas vidas. À impotência, somou-se a e toneladas de animais mortos, entre aquá-
frustração com a incapacidade da Samarco e de ticos e terrestres, as pequenas comunida-
suas controladoras – as gigantes da mineração des que tinham como principais atividades
Vale S.A. e BHP Billiton –, assim como do governo, econômicas e de subsistência a pesca e o
de conter o avanço e as consequências da lama. turismo sentiram profundamente os efeitos
Poucos meses após o desastre, a crise po- do rompimento. A lama trouxe em seu ras-
lítica nacional e os eventos das Olimpíadas Rio tro medo, brigas e desunião, preocupação
2016 ocuparam os principais espaços da tele- com o amanhã, revolta com os culpados.
visão e dos jornais do país, tornando cada vez A centenas de quilômetros de onde ficava
mais esparsas as notícias sobre o que aconte- a barragem, muitos moradores e trabalhado-
ceu na bacia do Rio Doce. Quando a barragem res da região da foz do Rio Doce e do litoral
rompeu, às 15h45 do dia 5 de novembro de capixaba não recebem o auxílio emergencial
2015, muita gente não sabia o que era Samar- pago pela mineradora depois do desastre,
Prólogo

embora a prática da pesca e os banhos de turistas e surfistas frequentando as cidadezi-


mar estejam proibidos em pontos do litoral. nhas e trazendo ganhos para as comunidades.
Numa época de aumento dos preços dos Para isso, não apenas lamentam e cho-
alimentos nos mercados brasileiros, comuni- ram as perdas, mas também lutam. Eles não
dades que até o início de novembro de 2015 tira- estão aguardando que as mineradoras ou
vam do rio e do mar o sustento para vida estão o governo tomem alguma atitude para au-
impedidas de pescar – seja por ordem judicial xiliá-los. Tivemos a oportunidade de acom-
devido ao risco de contaminação dos peixes, panhar algumas das mobilizações dos atin-
seja pelo receio dos clientes, que não compram gidos no litoral capixaba e vimos de perto a
mais os peixes da região. São pessoas que de tenacidade com que exigem seus direitos e
uma hora para a outra tiveram de procurar pe- o mínimo necessário para a sobrevivência.
quenos bicos, como capinar terrenos, fazer Há grandes chances de que essa não seja a
faxina em casas ou podar árvores. Muitos de- última catástrofe de rompimento de barragem no
les nem isso conseguem e têm de viver de doa- país. Mesmo depois do maior desastre ambien-
ções incertas e da ajuda de amigos e parentes. tal da história brasileira, políticos nos níveis esta-
Os donos de pousadas, restaurantes, pa- duais e federal trabalham para mudar as regras
darias e outros comércios também sofrem sobre licenciamento ambiental e mineração.
com a chegada da lama de rejeitos. Sem os Muitas das alterações propostas visam
turistas, os ganhos hoje ficam muito aquém afrouxar o controle do Estado sobre as minera-
do que antes conseguiam tirar no fim do doras, acelerar e simplificar o processo de licen-
mês. Não é exagero dizer que as comunida- ciamento sem o devido investimento nos órgãos
des como um todo foram afetadas pela lama, ambientais. É o caso da lei 21.972 de 2016, aprova-
mesmo que em graus e de formas diferentes. da na Assembleia Legislativa de Minas Gerais 20
Em nosso livro-reportagem, o leitor será dias depois do rompimento e sancionada pelo
apresentado a pessoas que, para além da governador do estado, Fernando Pimentel (PT),
revolta com a atual realidade que lhes foi im- pouco mais de dois meses após a tragédia. Além
posta, ensinam novas formas de ver o mundo. disso, o que se vê é um sucateamento cada vez
Em cada casa das comunidades atingidas, maior tanto dos órgãos responsáveis por autori-
estão histórias de dificuldades, perdas e sau- zar as obras quanto daqueles que as fiscalizam.
dades, mas também são encontrados laços O leitor é convidado a conhecer alguns re-
de amizade, companheirismo e esperança latos de quem teve seus modos de vida, pla-
de que as coisas vão mudar para melhor. nos e sonhos cimentados pela lama de rejeitos
Com palavreado diferente daquele dos es- de minério. Buscamos deixar essas histórias
pecialistas, compartilham de conhecimentos em evidência para que não caiam no esque-
semelhantes aos dos acadêmicos sobre a água cimento. Ao mesmo tempo, esperamos que
do mar e do rio, além das causas dos sofrimen- esta reportagem contribua para a luta das co-
tos dos animais e das matas. As experiências munidades impactadas e para dar visibilida-
adquiridas no cotidiano e ao longo de vidas de à situação em que vivem após o desastre.
transcorridas em contato direto com a natu-
reza dão a pescadores e comerciantes, muitos
sem estudo formal, base para explicar os fe-
nômenos que observam e mudam suas vidas.
Passados dez meses do dia em que Fundão
rompeu, para a maioria dos nossos entrevista-
Luana Melody Brasil e
dos o que é mais urgente vai além do pagamen- Victor Pires
to de indenizações e salários de subsistência:
é o retorno da vida que tinham antes da tragé-
dia, as redes e barcos nos rios, lagoas e mar, Brasília, novembro de 2016
ter peixes novamente enchendo as geladeiras,
Prólogo

Quem poderia imaginar


Que morava bem ali
No nosso quintal

O nosso algoz...
O monstro...

Atacou sem piedade


Na calada da madrugada
Sem deixar aviso

Foi desumano...
O monstro...

Se veste de anjo
E sopra o que mordeu
Perito em camuflagem
De réu vira juiz

Da ganância veio a morte


De Bento, Barra até o mar
Cadê meu rio?

Mera lembrança
Nosso chão

Recorrer a quem?
Só nos resta a união

Falam de um acordo
Essa luta é desigual

Se veste de anjo
E sopra o que mordeu
Perito em camuflagem
De réu vira juiz

Letra da música “Desumano”, de Flávio Márcio Ferreira de Freitas (Fafá da Barra),


morador da cidade de Barra Longa (MG), atingida pelos rejeitos
1

Memórias
da
LAMA

A lama chegou a me alcançar, me jogou lá na frente, e eu
corri mais ainda. Aquela água toda e eu pensei comigo: o
jeito é sair escalando este barranco aqui e sair lá em cima.
Quando cheguei lá, perdi a noção de tudo, só conseguia
olhar pro lado da nossa casa, e ver tudo tampado de lama.
Welidas Monteiro, 31 anos, ex-morador de Bento
Rodrigues (MG)
O

receio que o agricultor e artesão Cheguei, quando entrei em casa, vi que
Welidas Monteiro da Silva, de 31 minha rua estava muito deserta, muito
anos, reservava para si sobre a mi- calada. Mas eu tinha muita coisa pra fa-
neradora Samarco confirmou-se em zer, tinha acabado de chegar do serviço.
novembro de 2015. Embora percebesse que, Daí a pouco aquele barulhão. Cheguei na
para a comunidade de Bento Rodrigues, a porta, aí que eu vi a lama. Estava a uns 20
empresa era a principal fonte de empregos e metros de mim só. Eu voltei em casa, sol-
um combustível para a economia da região, tei meus bichos tudo e comecei a correr.
ele se incomodava com os estragos pro- A lama chegou a me alcançar, me jo-
vocados na paisagem que tanto estimava. gou lá na frente, e eu corri mais ainda. Aque-
Numa reunião realizada em 2013 entre a em- la água toda e eu pensei comigo: o jeito é
presa e moradores de Bento Rodrigues, no muni- sair escalando este barranco aqui e sair
cípio de Mariana (MG), Welidas expôs num cartaz lá em cima. Quando cheguei lá, perdi a no-
uma de suas angústias. “Eu escrevi: ‘Parem de ção de tudo, só conseguia olhar pro lado da
enrolar nós e fala se a barragem vai estourar ou nossa casa, e ver tudo tampado de lama.
não’. Aí o Vinícius, que trabalha na comunicação da Ficava imaginando minha família todi-
Samarco, ele virou pra mim e gritou comigo: ‘Você nha, que era um horário que o pessoal lá de
tá achando que nós somos irresponsáveis? Se a casa gostava de juntar na casa da minha
barragem fosse estourar, nós estaríamos saben- mãe. Aí ficava olhando pra lá e pensando. Mi-
do e ia tirar vocês, todo mundo, daqui primeiro’”. nha casa tinha mais de 20 pessoas. Na mi-
A barragem de rejeitos de minério conhe- nha cabeça vinha: tenho que procurar eles,
cida por Fundão, localizada a 2,5 km de Ben- mas tenho que esperar isso abaixar um pou-
to Rodrigues, rompeu por volta das 15h45 do co. Eu perdi o movimento, travei todinho, fi-
dia 5 de novembro de 2015. O abalo em Fun- quei três dias, não conseguia responder,
dão fez com que outra barragem, a de Santa- não conseguia... Ouvia todo mundo, mas não
rém, que fica no mesmo complexo, também conseguia falar nada. Foi a parte mais difícil.
liberasse parte do seu volume de rejeitos. Por ter sido o primeiro a chegar na arena
As duas estruturas pertenciam à Samarco, em Mariana, tinha ninguém ainda, e sem es-


que é controlada pelas mineradoras Vale perança de que alguém ainda pudesse estar
e BHP Billiton. Não havia sequer uma sire- lá. E toda hora vinha um falando: barragem
ne que alarmasse sobre o risco de vida que estourou e o resto que tava lá morreu. Aí eu
corriam as 612 pessoas residentes na vila. já ficava ouvindo e pensando, ‘morreu todo
A população se protegeu nos morros gra- mundo’. Pra mim foi um alívio na hora que
ças à rapidez de alguns funcionários da Sa- chegou o pessoal no outro dia. Porque che-
marco que trabalhavam na barragem naquele gou primeiro com 12 pessoas, 23h da noite, e
momento. Eles escaparam em automóveis e os outros começou a chegar foi no outro dia.
alertaram quem viram pela frente, ao mesmo
tempo em que tentavam sinal de telefonia Entre moradores de Bento Rodrigues
móvel para enviar mensagens aos familiares. e funcionários da Samarco, o rompimento
Welidas tinha acabado de voltar do tra- deixou 18 pessoas mortas e uma desapa-
balho quando percebeu que Bento Rodri- recida.. “A minha irmã perdeu o neném que
gues estava mais calma do que de costume. ela esperava. Ela tava grávida, abortou. A
14 Memórias da lama

Foto Victor Pires


Welidas Monteiro, que era agricultor e artesão em Bento Rodrigues, hoje mora em Mariana e trabalha apenas com artesanato. Sobre
o futuro, ele vê apenas luta: “Porque nosso futuro está nas mãos da empresa. E esse futuro a gente vai tomar da mão dela”

gente fez até uma camisa: ‘Se o aborto for 100. E eu pagava R$ 30. E todo mundo em Mariana
causado por uma empresa, não é crime’.” é a mesma situação. A gente tá doido pra voltar
O agricultor recorda também a vida da sobri- pra casa, arrumar as coisas, nossa vida. Voltar a
nha de 5 anos de idade, Emanuelly Fernandes, produzir e vender na feira, como a gente vendia.
cujo corpo ele reconheceu no Instituto Médico
Legal (IML). “O principal ódio que eu tenho da Homens de amarelo

Foto Victor Pires


Samarco é por causa da Emanuelly. Porque mi-
nha sobrinha tinha toda vida pela frente. Meu Fim de tarde, por volta das 17h, Cecília Gon-
irmão falou comigo no hospital, eu perguntava çalves, de 57 anos, passava um momento com
de cada pessoa, como tava, e ele falou assim: a mãe, de 90, em frente à casa do irmão, no
‘Emanuelly morreu, né? Eu vi na hora que a banquinho onde conversavam e contempla-
casa bateu nela’. Ele foi arrastado junto com os vam as serras de Paracatu de Baixo, distrito
filhos dele. Eu falei: ‘A gente vai achar ela ainda’.” de Mariana (MG). As duas mulheres avista-
Atualmente, Welidas mora em Mariana ram quando o helicóptero dos bombeiros
numa casa alugada. Recebe da Samarco auxí- sobrevoou o céu, o que era inusitado frente à

“ “
lio-moradia e um cartão no valor de um salário calmaria da região. Os olhares desconfiados
mínimo, mais 20% do valor de uma cesta bási- de vários moradores estavam na aeronave
ca. Ao todo, o agricultor é pago com R$ 1.300, o quando ela pousou no campo de futebol, que
que, segundo ele, está abaixo da renda anterior. ficava próximo à escola municipal da cidade.

“Lá eu pelo menos tinha [renda de] R$ Corremos lá pro campo onde ele desceu e
1.800. Mas eu tinha outras coisas em casa que saiu de dentro uns homens de amarelo gritando:
não precisava de comprar. Tinha horta, tinha ‘Volta! Corre! Senão vocês vão morrer!’. Falei pra
galinha, tinha ave, tinha porco. eles: ‘como é que eu vou correr com minha mãe?
A luz que a gente gastava na roça era menos, Ela tem 90 anos!’, aí eles disseram ‘vão morrer as
aqui é mais. A minha luz lá em casa vem quase R$ duas se não correrem!’. Aí eu passei na escola,
Memórias da lama 15

peguei meus filhos; fui em casa, peguei meus do- comenta, com tristeza. Hoje mora em Furquim,
cumentos e os da minha mãe — que documento distrito de Mariana, perto de sua antiga Para-
é o mais importante, né? — , fechei a porta e cor- catu de Baixo, a segunda cidade atingida pe-


remos pra subir a serra, lá onde minha irmã mora. los rejeitos, onde cerca de 50 casas ficaram
Não adiantou fechar a porta, porque a lama destruídas pela avalanche. Os filhos, netos e a
arrancou tudo, olha lá. Minha mãe não tava mãe moram na cidade de Mariana. Ela explica
dando conta de subir a serra, aí passou um mo- por que não foi com eles: “Porque eu quis fi-
torista e subiu com ela. Todo mundo viu quando car na roça, eu não consigo morar na cidade”.
a lama desceu, aquela zoeirona, as casas tudo Dois dos filhos, ela diz, têm “problema de
caindo. Minha mãe chorou a noite toda. Sem- cabeça” após o rompimento. “Nos dias que ele
pre que ela vem aqui em Paracatu, ela chora. tá nervoso, ele fica muito nervoso, ele corta o
braço. Outro dia, quando eu fui ver, ele tinha
Dez meses após o rompimento da barra- cortado Paracatu todinha. Escreveu Paracatu
gem, Cecília tenta salvar o que pode de sua no braço”. A filha não consegue mais ir à es-
antiga casa, o pouco que ainda não foi rouba- cola. Dona Cecília conta que em Paracatu eles
do depois do desastre: as telhas. A televisão, não faltavam ao colégio, nem à quadra de es-
o telefone e as janelas sumiram nas mãos portes onde se juntavam com outros jovens da
dos aproveitadores. Lembrando do passado e cidade. Hoje os dois espaços estão tomados
pensando na situação atual, uma frase volta por lama seca. Na casa de Cecília moravam ela,
sempre à boca de Dona Cecília: “É muito difícil”. o marido, três filhos e três netos. No terreno,
Para ela, é muito difícil a separação força- moravam também a mãe e o irmão. No alto do
da da família. “A gente era muito feliz. A minha morro, atrás do terreno, está o cemitério cons-
família estava toda aqui. A gente perdeu tudo”, truído pelo pai dela. Cecília, porém,não tem co-

Com jeito de falar resignado, Cecília Gonçalves relembra dos bons tempos de Paracatu de Baixo, quando os filhos se divertiam com
os outros jovens da vila. Ela conta que nos últimos meses os filhos têm tido problemas para sair de casa e frequentar a escola na
cidade de Mariana
16 Memórias da lama

Foto Luana Melody Brasil

Para Simone Silva, a parte mais revoltante do desastre é o descaso dos governos e da empresa com os problemas de saúde que têm
aparecido na cidade de Barra Longa

ragem de ir lá: além do pai, estão enterrados o No início de setembro, no mesmo dia em
primeiro marido e dois filhos. Mantém, no en- que Cecília estava em Paracatu de Baixo com
tanto, o desejo de ser enterrada junto da família. familiares recolhendo as telhas, os antigos mo-
Entre suas saudades, está sentar no ban- radores decidiram, por votos, onde a cidadezi-
co perto da antiga casa, na sombra, com nha seria reconstruída pela Samarco. A filha de
a mãe. Depois do desastre, nunca mais re- Cecília votou pela mãe. Uma alegria, ao menos:
petiu o ritual. “Tinha um banco ali que eu o local de sua preferência foi o escolhido. Com
sentava com a minha mãe, que tinha uma os votos de 103 representantes das famílias de
sombra, quando os meninos estavam na es- Paracatu de Baixo, a área denominada Lucila,
cola. E hoje? Hoje eu estou sozinha, nem mi- em Monsenhor Horta, distrito de Mariana, é a
nha mãe está mais comigo”. A esperança promessa de sossego para quem não esquece
dela não reside no plano terreno: “Só Deus do dia em que a lama invadiu suas memórias.
pode ajudar a gente, porque tá muito difícil”.
Ela não concorda que os R$ 20 mil dados
pela empresa para toda a família (dinheiro des-
tinado a quem teve a moradia destruída), mais A lama sobe o morro
R$ 2,6 mil mensais desde janeiro (que corres-
pondem ao pagamento de um salário mínimo, Pouco tempo depois de arrasar Paracatu de
mais o valor de uma cesta básica e mais 20% Baixo, a lama de rejeitos de minério seguiu pelo
por cada dependente) e o aluguel da casa curso do Rio do Carmo, um afluente do Rio Doce, e
em Furquim sejam suficientes. Falta dinheiro atingiu a sede do município de Barra Longa (MG),
para as consultas e remédios para os filhos. a aproximadamente 60 km de Mariana. A auxiliar
Memórias da lama 17

de educação Simone Maria da Silva, de 39 anos, causa da lama, comprovado por laudos
mantém voz firme e rigorosa quando relembra médicos e tudo. Ela tem que fazer o trata-
a tragédia. “Isso não foi um acidente, foi um cri- mento com uma vacina, são três doses.
me. Eles sabiam que iria acontecer e deixaram Os médicos são particulares, porque pelo


acontecer. Queriam ficar livre de Bento Rodri- SUS não tem. E a Samarco não faz nada.
gues, porque Bento estava no caminho deles.” Eu e meu esposo trabalhando não esta-
Para Simone, a lama atingiu sua vida duas mos dando conta de tratar da minha filha. Meu
vezes. A primeira foi em Gesteira, distrito de esposo, além de trabalhar no serviço normal
Barra Longa mais próximo a Paracatu de Bai- dele, está fazendo bico pra tratar dela. Eu tra-
xo, onde ela e o marido ainda trabalham. A balho numa escola que foi atingida. Por que
segunda foi na própria comunidade de Barra não terminar as casas, atender as populações


Longa, onde continua morando com a família. atingidas pra depois mexer na rua, por último?.
De acordo com a auxiliar de educação,
a prefeitura e a Samarco transformaram a A solução encontrada pela mineradora
cidade num gigantesco canteiro de obras. para resolver problemas estruturais cau-
sados em Barra Longa rendeu até mesmo
Poeira, aquele barulho ensurdecedor o piada entre os operários que cuidam das
tempo todo no nosso ouvido. As crianças na reformas. “Costumam dizer que, em Barra
sala de aula com aquelas máquinas do lado. As Longa, a lama sobe o morro. Porque eu moro
crianças e os idosos são os mais prejudicados, numa rua no morro, e quando eles esta-
estão com problemas de pele e respiratório. vam calçando a rua lá, a gente era obrigado
Minha filha saiu do hospital ontem à a escutar assim: ‘Eu quero ver o pessoal do
tarde com infecção respiratória grave por morro falar que a lama não sobe o morro’.”

“ Costumam dizer que, em Barra Longa, a lama sobe o


morro. Porque eu moro numa rua no morro, e quando
eles estavam calçando a rua lá, a gente era obrigado
a escutar assim ‘eu quero ver o pessoal do morro falar
qua a lama não sobe o morro’.”
Simone Maria da Silva, moradora de Barra Longa (MG)
18 Memórias da lama

Foto Luana Melody Brasil

“Todos querem ser indenizados, mas quem corre atrás do direito são pouquíssimos. A sociedade não está empenhada para que a
Samarco resolva o problema. Dinheiro nenhum que eles estão dando vai pagar o impacto que houve”, indigna-se Wester Keverton

Foto Victor Pires

André Augusto lamenta a desunião da comunidade de Naque e a falta de apoio dos governantes. Ainda assim, ele diz que não desa-
nima. “Depois desse crime, o que eu penso em fazer é não desistir jamais. Eu quero entrar na luta contra a Samarco”
Memórias da lama 19

Rotina indesejada Para Wester, a inação das empresas e do Es-


tado no amparo da população de Cachoeira Es-
Wester Keverton de Souza morava em cura ficou explícita em uma situação que viveu:
São Paulo quando a barragem rompeu e “Eu vi um senhor de uns 62 anos subindo o mor-
a lama chegou, apenas dois dias depois, ro, cara, empurrando um carrinho cheio de água!
a Cachoeira Escura, distrito do municí- Eu fiquei comovido com aquilo, porque eu consi-
pio de Belo Oriente (MG). Natural da cida- go. O cara numa idade daquela, ele já teve força
de mineira de 12 mil habitantes, ele tinha pra isso. Hoje em dia, não. E ninguém faz nada,
ido passar três anos na casa de uma tia ninguém ajuda”. Wester lembra que precisou
na metrópole. Ao voltar à cidade natal, em deixar seu carrinho de lado para acudir o idoso.
maio de 2016, o eletricista de 23 anos en-
controu as coisas um tanto diferentes.
“Antes, eu não necessitava sair de casa pra Direitos arrastados
estar buscando água pra mim beber ou pra
estar fazendo um café ou uma comida. E hoje A passagem da lama pela cidade de Naque, em
eu tenho que andar longe pra buscar essa Minas Gerais, onde o Rio Santo Antônio se encontra
água”, relata Wester. Ele também pega água com o Rio Doce, cimentou o sonho de André Augus-
para a mãe a as irmãs em uma bica aberta to de Oliveira, de 30 anos. O montador de andaimes
por um morador e utilizada pelos habitantes projetava a construção de um parque no ponto de


que não confiam no líquido que sai da tornei- encontro dos rios. Apesar da perda, André acredita
ra. Wester usa um carrinho de mão para levar que os mais prejudicados foram os pescadores, pois
as garrafas vazias, descer o morro que sepa- muitos continuam sem fonte de renda, embora a Sa-
ra sua casa da fonte e subir com elas cheias. marco esteja assistindo alguns com cartões-auxílio.
É um trabalho duro, segundo conta o jovem.
No plano de ações disponível no site da A lama passou, destruiu a fauna, a flora,
Samarco — atualizado no fim de setembro de tirou a fonte de renda dos trabalhadores que
2016 —, uma única frase sobre as ações toma- trabalham com outras atividades, mas tam-


das em Belo Oriente: “100,5 milhões de litros bém com a pesca. Quem recebeu foi só os pes-
de água potável distribuídos”. A mineradora cadores profissionais. Quem dependia da pes-
garantiu o abastecimento de Cachoeira Es- ca amadora, ela [Samarco] está se omitindo.
cura logo após o desastre, ação que Wester Nossa população é simples, humilde, tal-
não chegou a ver com os próprios olhos: “A vez eles não conhecem quais são seus direi-
Samarco forneceu água por um tempo, de- tos, que que eles devem cobrar de direito, aí
pois não forneceu mais. Na verdade, eu não eles acabam sendo tapeados por aquelas
sei há quanto tempo ela parou de fornecer, pessoas que têm um conhecimento maior.
mas eu sei que tem quatro meses que eu


cheguei de São Paulo e eu que busco água lá Motivado a lutar contra a empresa junto a
pra manter a minha mãe e minhas irmãs”, diz. movimentos sociais pela reivindicação de di-
A preocupação constante com a água reitos, André Augusto lamenta a pouca união
que ingere é uma das maiores reclamações da comunidade de Naque.
de Wester. “Antes, é claro que a gente tinha
um cuidado, só que hoje é maior, né? A água A gente tentou mobilizar as pessoas, mas teve
tá contaminada. E o que a mídia fala eu não influência de governantes que, em vez de ajudar,
acredito. Se houve um desastre desse tama- eles foram desmotivar as pessoas a entrar na luta
nho, não tem como você limpar a água em pelos seus direitos. Com argumento técnico.
tão pouco tempo”, avalia. Ele chegou a sentir O governo lá nem o estadual, nem o muni-
dores abdominais fortes após beber a água cipal, nem federal não fez nada. Única coisa
da torneira na casa de um amigo. O desas- que a Samarco deu lá foi o ‘cala boca’, que é
tre afetou também a alimentação da famí- o cartão, e mais nada. Chega lá enrolando, fa-
lia de Wester, antes muito focada no peixe. zendo evento, no intuito de iludir as pessoas.
20 Memórias da lama


Laudos conflitantes abastecer a comunidade, mas, segundo Gui-
lherme, são insuficientes até mesmo para
A lama de rejeitos percorreu ao longo de as áreas prioritárias: hospitais e escolas.
quatro dias mais de 300 km até chegar ao
município de Governador Valadares, ainda A gente está bebendo água contamina-
em Minas Gerais. O abastecimento de água da. E a empresa e a mídia estão divulgando
da cidade era feito via Rio Doce e, em poucos pra população que está tudo certo, está tudo
dias, os dez reservatórios não deram conta ótimo. Daí a gente vê qual é a seriedade da
do consumo dos 280 mil habitantes. O uso da empresa. Eles ficam repetindo que é uma em-
água captada no rio ficou impossível quan- presa séria, que cuidam das pessoas; cuidam
do foram detectados altos níveis de ferro e nada. Primeiro deixaram a barragem rom-
manganês. Devido à densidade da lama, o per sabendo que ela podia romper, depois
Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE) trata o povo dessa forma, recebendo água
municipal não foi capaz de tratar a água. contaminada e dizendo que tá tudo certo.
Em fins de novembro de 2015, o SAAE de Ninguém mais bebe a água que vem do
Governador Valadares começou a tratar a tratamento. Todo mundo se vira pra conse-
água para abastecimento com polímero de guir água com parente de outro município. Eu,


acácia negra, que decanta e separa a lama da por exemplo, bebo água de Caratinga, a uma
água. Após análises do serviço de tratamento, hora de Governador Valadares. Um colega
foi divulgado que a água estava potável para meu traz água, tenho que pegar água na casa
consumo humano e o serviço de distribuição dele, acaba a água, tem que ir lá buscar... ele
recomeçou. Outra análise, no entanto, coloca pega na casa dos parentes e eu pego com ele.
novamente em dúvida a potabilidade da água São galões de 20 litros, então a gente pega
da cidade. Realizada em julho e divulgada em três de uma vez. Aí fica duas semanas. De
agosto de 2016 pelo Ministério Público de Mi- quinze em quinze dias tem que pegar água.
nas Gerais, a coleta de amostras em diversos
pontos onde a água é captada revelou altos Na visão do biólogo, as instituições públicas
níveis de alumínio, o que torna o consumo competentes seguem resignadas e não tomam
prejudicial à saúde humana. “Em um dos tra- providências em benefício da população. “O go-
balhos científicos mais completos sobre o verno municipal, a gente viu um empenho gran-
tema, foi constatado que, a partir de valores de no início, responsabilizando a empresa pelo
superiores ou iguais a 0,1 mg/L de alumínio ocorrido. Mas depois a gente viu que deu uma


na água produzida para abastecimento públi- arrefecida, a gente sabe por quê. Financiamento
co, o risco de demência e declínio cognitivo de campanha, poder que a Vale tem no Estado;
aumenta”, destaca um trecho do documento. é a principal atividade econômica do Estado,
“A gente tem incerteza sobre a nossa saúde. todas essas questões a gente vê que pesam.”
Minha filha nasce agora em outubro e a gente
fica... como que a gente vai beber água conta- O governo municipal diminuiu a sua postura
minada? É uma coisa que não vai aparecer de combativa, começou a negociar. E hoje a gente vê
imediato, mas a longo prazo a população vai queomunicípionãosemanifestaemrelaçãoaágua,
ter sérios problemas de saúde; a alimentação por exemplo. Pelo contrário, mantém a mesma po-
fica prejudicada, tem uma insegurança mui- sição da empresa, dizendo que a água está boa.
to grande em relação a peixe, de onde vem o O governo do estado, a mesma coisa. Na ver-
alimento”, inquieta-se Guilherme Camponês, dade foi até pior a postura do estado. Desde o pri-
biólogo e morador de Governador Valadares. meiro momento, primeira entrevista coletiva que
Essencial para a manutenção da vida, a deu foi dentro da Samarco, dizendo que a Samar-
água continua sendo o ponto crítico na ci- co também é uma vítima. Uma postura bem de
dade mineira dez meses após o rompimen- defesa da empresa em vez de punir, porque foi um
to da barragem de Fundão. A Samarco ficou crime, tem que punir. Tem que ser cobrado da em-
responsável por enviar caminhões-pipa para presa os reparos por todos os danos causados.
Memórias da lama 21

Foto Luana Melody Brasil

“A Samarco usa a mesma estratégia na bacia toda. Desunir as comunidades. Uma das formas de dividir é esse cadastro. Não cadas-
tra uma parte da comunidade atingida, cadastra outros que não são atingidos, a própria comunidade começa a brigar entre eles”,
suspeita Guilherme Camponês

Pra cima dos trilhos como atingida pela Samarco e, em consequên-


cia, recebe o cartão subsídio. O que, para ela,
Ter uma linha de trem passando perto de ainda não é o suficiente, entretanto. “Nós so-
casa não parece ser o melhor dos cenários. mos 382 famílias, às margens do Rio Doce, uma
O barulho e o perigo de atropelamento, por comunidade tradicional pesqueira e todas atin-
exemplo, viram problemas cotidianos. Os mo- gidas, porque o espaço de Mascarenhas não
radores de Mascarenhas, distrito de Baixo sai fora do limite de ser ribeirinho, a economia
Guandu, o primeiro município capixaba atin- toda é em torno da pesca”, explica a moradora.
gido pela onda de rejeitos da Samarco, no Outras comunidades às margens do Rio
entanto, usaram essa situação em seu favor. Doce adotaram a mesma estratégia de ocu-
“Quando a gente parte pra luta, a gente par os trilhos da Estrada de Ferro Vitória a Mi-
vai pra cima dos trilhos. Como eles só pen- nas (que escoa boa parte da produção da Vale
sam em dinheiro, eles só ouvem a gente des- para os portos do litoral, para exportação)
sa forma. A gente já conseguiu parar mais com o objetivo de garantir que as minerado-
de 90 horas em cinco manifestações. E cada ras, o Estado e a sociedade em geral dessem
parada que a gente faz, a gente dá um passo atenção a suas dificuldades e demandas. Os
no reconhecimento dos pescadores, dos ri- indígenas da etnia Krenak, habitantes do mu-
beirinhos”, conta Regiane Soares, de 41 anos nicípio de Resplendor (MG), são um exemplo.
pescadora e moradora de Mascarenhas – Regiane já conhecia a Samarco de nome
cujo nome oficial é Quilômetro 14 do Mutum antes do rompimento, mas não sabia ao cer-
–, de aproximadamente 1.200 habitantes. to o que a empresa fazia. Hoje, não tem a me-
De acordo com Regiane, a estratégia deu nor dúvida sobre o que pensa da mineradora:
frutos: hoje, 70% da comunidade é reconhecida “Eu vejo a Samarco como uma criminosa”. E
22 Memórias da lama

a crítica se estende às duas controladoras, de Ferro Vitória a Minas corta a comunidade ao


Vale e a anglo-australiana BHP Billiton, uma meio e o pó de minério que escapa dos vagões
vez que “Samarco é o filho caçula deles”. sem cobertura impregna a vida dos habitantes.
“Além de criminosa eu vejo [a Samarco] Hoje, o ar, a água e as pessoas trazem marcas
como manipuladora, como estar com negli- da extração mineral. “Os pescadores estão so-
gência em assumir a responsabilidade sobre frendo, porque muitos estão depressivos. Muitos
o que fez. Eles não podem simplesmente che- estão levando pro lado do álcool, justamente por
gar pra pessoa e dizer: você tem direito a uma estarem com depressão. Eles não têm o que fazer.
indenização de R$ 10 mil e acabou minha res- A gente quando vai lá sente o sofrimento deles na
ponsabilidade”, revolta-se Regiane. Ela acres- pele, é muito triste. A gente vê que a comunidade
centa duas perguntas, que ainda não têm deles foi literalmente dilacerada. O trilho passou
respostas, ao menos para ela: “E como vai ser no meio da comunidade deles como se estivesse
o amanhã? Como a gente vai ficar sem o rio?”. rasgando o útero deles. Dividiu”, descreve Maria
do Carmo Oliveira, agente comunitária de saúde.
Colatina, com mais de 100 mil habitantes,
Erosões sociais foi o segundo município no Espírito Santo a ser
atingido pelos rejeitos. É o único município ca-
Antes do rompimento da barragem de Fun- pixaba a depender exclusivamente da água do
dão, a mineração de ferro já trazia impactos Rio Doce para o abastecimento, o que potencia-
para a pequena comunidade de Maria Ortiz, no lizou os efeitos da contaminação. Após a chega-
município de Colatina (ES). Não é que haja uma da dos rejeitos, em 18 de novembro de 2015, os
mina para extração do minério próxima à comu- moradores tiveram de enfrentar filas e mais filas
nidade. Na verdade, o minério extraído em Mi- para conseguir a água mineral distribuída pela
nas Gerais deixa suas marcas nas casas e ruas mineradora. No fim de janeiro, alegando que a
de Maria Ortiz de forma menos direta: a Estrada água tratada pelo serviço de abastecimento

Entre as inquietações de Regiane Soares está a perda do lazer da comunidade de Mascarenhas. “Eu moro praticamente dentro do rio. Era
tudo no rio. A gente queria fazer um churrasco, ia pra areia do rio. A gente queria levar as crianças pra divertir, era tomar banho no rio”

Foto Luana Melody Brasil


Memórias da lama 23

Foto Arquivo pessoal

Maria do Carmo conta que sua luta é para que a natureza atingida pelos rejeitos seja recuperada. “Eles têm que fazer alguma coisa
pra restaurar esse rio. Eu sei que vai demorar. Quero crer que a gente lutando vai conseguir melhorar. Eu tenho que pensar em lutar
pelos meus netos, pelos meus filhos que ainda são pequenos”

colatinense já estava adequada para o consu- Além do medo da água e da destruição de


mo, a Samarco interrompeu o abastecimento. seus meios de vida, os colatinenses têm de en-
A decisão revoltou os moradores. Quem frentar outro problema: a corrupção. No início de
não tinha dinheiro para comprar água mineral, setembro, três homens foram presos acusados
teria de se resignar a tomar a água que não de cobrar 10% do valor do cartão subsídio para
acreditava estar limpa. Muitos recorreram a entregá-lo às pessoas reconhecidas como im-
fontes alternativas, como bicas e nascentes. A pactadas. Os suspeitos, um deles identificado
população desconfiada não encontrou respal- como funcionário de uma empresa terceiri-
do do governo municipal. Ainda em novembro, zada da Samarco, foram presos em flagrante
cerca de 20 dias depois do rompimento, o pre- pela polícia quando iam entregar os cartões.
feito Leonardo Deptulski (PT) foi a público beber Foram autuados por crime tentado, quando o
a água da torneira e dizer que não havia riscos. criminoso não consegue realizar o delito por
Os efeitos da lama também alcançam outros circunstâncias fora de sua vontade, e por as-
seres vivos e a fonte de alimentação da população: sociação criminosa. Não é só na sede do muni-
“Os peixes estão deformados. Lá em Mascarenhas, cípio que isso acontece: “Tinha pessoas lá [em
o peixe estava todo roído. A coloração também é Maria Ortiz] que estavam cobrando R$ 500. E a
diferente. Não tem como dizer que aquele peixe pessoa que estava vendendo esses cartões lá
não está contaminado”, diz a agente de saúde. “E em Maria Ortiz andava armada pra baixo e pra
a gente só vai saber de um resultado pior daqui cima se achando o valentão. Era uma pessoa
uns cinco anos quando as pessoas começarem a da comunidade. Só entregava o cartão se pa-
morrer de câncer”, avalia, sem nenhum otimismo. gasse X quantia”, denuncia Maria do Carmo.
2

Acabou
TUDO

Eles falavam na televisão onde é que já tava a lama, tal
canto, assim, assim, e vem descendo, vem descendo,
vem descendo... Quando chegou no Rio Doce, nós acha-
va que não vinha pra cá não, porque era muito longe,
né? Não demorou uns 15 dias, ela tava aqui no rio [Ipi-
ranga]. Quando foi um dia, esse rio amarelou tudo. E a
mortandade de peixe!
Geronildo Domingos dos Santos, 68 anos, pescador e
funcionário da prefeitura de Linhares. Morador de Barra Seca (ES)
S uely Martinelli, de 44 anos, pescadora e moradora de Urussuquara,
em São Mateus (MG)
“Antes do desastre a gente comia muito peixe, comia muita moqueca
de peixe. Agora mudou. Agora a gente come só ovo porque o dinheiro não
dá pra comprar carne. Não tá tendo renda nenhuma, porque a renda que
eu tinha era da pesca, então acabou a pesca pra gente, destruiu tudo, até
pescar a gente pesca, mas não vende.”

Foto Victor Pires

B
Foto Arquivo pessoal

raz Fernandes Dantas, de 78 anos, pescador e morador de Pontal do


Ipiranga, em Linhares (ES)
“Agora depois dessa lama que veio, aí começou a morrer. Não
morria não. Não tinha esse negócio de peixe morto aqui não. E a
água nossa era boa, limpa, igual a Lagoa Nova, água cristalina. Aí foi
que amarelou essa água e salgou tudo, acabou tudo. Acabou com os
peixe, acabou mermo. Você não acha peixe nesse rio.
A pesca acabou. Se vai melhorar, é daqui a 20, 30 anos, depois
que descer essa lama todinha do Rio Doce. Que vai descer a água do
Rio Doce com força pra revirar a areia pra lavar essa lama e vai pro
mar... Os peixes do mar que vão se danar com isso aí.
Agora tá tudo complicado, não pode irrigar as plantas, não pode
dar a água pro gado beber. O que que pode fazer eu não sei.”
28 Acabou tudo

Foto Victor Pires

E liane Balke, de 49 anos, pescadora, moradora de


Urussuquara, em São Mateus (ES)
“Depois que veio essa lama, piorou muito por-
que acabou o peixe, diminuiu bastante a quantida-
de de peixe. O pescador tá sofrendo porque quem
tá com peixe no congelador não consegue vender
e também diminuiu muito os clientes que vinham,
o turismo, aqueles amantes da natureza que
vinham num dia e voltavam no mesmo dia, ou aque-
les que vinham e ficavam o final de semana, vinha
pescar, tomar banho, vinha com a família. Acabou.
Não tem mais isso aí, o pessoal não vem mais.”

J
Foto Victor Pires

osé Leite Costa (Seu Zé), de 65 anos, Presidente da


Associação de Pescadores de Degredo, em Linhares
(ES), pescador aposentado
“Nós só temo a água boa do rio aqui! Daqui a cin-
co quilômetro que você vai lá pra baixo, não tem
mais água do rio, que a água do mar entrou lá e ma-
tou tudo. Acabou até com o pescado que tinha. Você
andava 50 metros, assim de distância, e você via,
assim, os peixes boiado, morto. Acabou com tudo.”

Foto Victor Pires


A denísia da Silva Sena, de 32 anos, catadora de caranguejo
e pescadora da água doce, moradora de Nativo, em São
Mateus (ES)
“Na minha casa eu to sofrendo, porque eu vivo da área
da pesca. Eu vivo do salário do peixe que a gente tem pes-
cado, tem o caranguejo, tem o siri, tem as ostra, e hoje com
essa lama destruiu tudo. Estamos vivendo um momento
crítico, além dessa crise que tá no país, com mais essa
lama, acabou com nossa vida.”
Acabou tudo 29

S imião Barbosa dos Santos, de 74 anos, Presidente da Associa-


ção de Pescadores e Assemelhados de Povoação, morador de
Povoação, em Linhares (ES)
“O turismo acabou. Por que acabou? A pessoa vinha pra cá tomar
um banho de praia, comer um peixe, pescar uma pescadinha por es-
porte no rio ou no mar, tomar um banho no rio também, dar um pas-
seio às vezes de bote aqui no rio… Quer dizer, ele não podendo fazer
isso, ele vem cá fazer o quê? Não pode pescar, não pode comer um
peixe, não pode tomar um banho no mar – que a Justiça proibiu, né?
A Marinha proibiu a navegação e a Justiça proibiu, não podia nem
entrar nem na água. Porque na realidade ficou feia mesma a coisa, o
negócio não ficou bonito não. A água ficou esquisita.
Antes eu todo ano fazia barco pra vender, mas o barco do mar
vende pouco, porque a pescaria do mar, o período de uso de barco é
o verão. Acabou o verão, você para a pescaria de embarcação, você
vai pescar sem uso de embarcação. Então isso aí, eu perdi tudo. E
no rio, é a pesca do camarão, a pesca da lagosta, porque o rio toma
água e dá muito camarão... Aí um compra bote, outro compra, outro
compra. Daí a pouco vem a pesca da tainha e o pessoal cai dentro e
daí a pouco vem a pesca do robalo, da manjuba, e aquela movimen-
tação de barco! Esse ano não teve nada disso, acabou tudo.”

Foto Luana Melody Brasil

E
Foto Victor Pires

lza Raimundo da Silva, de 59 anos, funcionária da prefeitura


de Linhares. Moradora de Barra Seca, em Linhares (ES)
“Você vê que tem a geladeira aí, tem outra lá, tem o free-
zer aqui... Isso vivia sempre cheio de peixe. Depois, acabou.
Agora tá tudo ó, tudo aberto aí, não tem mais nada. O peixe
acabou.”
30 Acabou tudo

T halena Pereira Maciel, de 25 anos, formada em Pedagogia,


trabalha como comerciante no restaurante e pousada da fa-
mília em Regência, em Linhares (ES)
“A gente, assim, todo desligado aqui na comunidade, sempre tudo
na paz, tudo de bom, nunca esperava uma coisa dessa tão grandiosa,
que foi o maior crime ambiental que aconteceu na história. Não espe-
rava mesmo, pegou de surpresa e atingiu profundamente a alma e
também esse lado financeiro que eu acredito que todos aqui eu acho
também foi atingido esse lado social, financeiro também.
A nossa expectativa só vinha aumentando. Veio essa lama e acabou
com toda a expectativa. Eu mesma tinha expectativa de pagar minha fa-
culdade trabalhando aqui e trabalhando em
outro lugar. Cada vez mais melhorando, né?
No momento x do surfe, que o Brasil tá sendo
mais reconhecido, não só futebol, mas o surfe
também. Então naquele momento x pra todo
mundo, chegou a lama. Então assim, era o
ano. Esse ano era pra ser o ano. Aquele que a
gente sempre esperou. Aí vem a parte injusta,
porque realmente aqueles que necessitam,
na verdade a comunidade toda, mesmo eu
que tenho comércio, é justo a gente estar re-
cebendo esse apoio.”

Foto Luana Melody Brasil

Foto Luana Melody Brasil

M aria da Glória Buecker, de 50 anos, moradora


de Regência, em Linhares (ES)
“Você chegava na casa humilde e sempre
tinha o pirão do peixe pra comer. As pessoas te
ofereciam. Hoje não tem nada pra oferecer. Só
tem uma guerra, só uma guerra entre eles mes-
mo, os nativos. E a gente tenta apaziguar. A gen-
te tenta trazer, conversar.”
Acabou tudo 31

Foto Victor Pires

E dson Barbosa, de 99 anos, indígena Tupiniquim da aldeia


de Comboios, em Aracruz (ES)
“Hoje, se quiser tomar um banho, tem que ser uma água
do banheiro. Água do rio não se pode tomar banho... E peixe
não pode pegar. Naquele tempo, não! Eu fui criado com pei-
xe daqui. Peixe, a carne, caça do mato. Nós não comprava
carne e nem comprava peixe. Hoje vocês estão vendo aí o
que tá acontecendo. Coisa horrível! Eu fico abismado com
isso. Era muita quantidade de peixe que nós pegava aqui.
Peixe do rio, peixe do mar. Tudo isso desapareceu…”

G eronildo Domingos dos Santos, de 68 anos, pescador e fun-


cionário da prefeitura de Linhares. Morador de Barra Seca, em
Linhares (ES)
“Eles falavam na televisão onde é que já tava a lama, tal canto, assim,
assim, e vem descendo, vem descendo, vem descendo... Quando chegou
no Rio Doce aí, nós achava que não vinha pra cá não, porque era muito lon-
ge, né? Não demorou uns 15 dias, ela tava aqui no rio [Ipiranga].
Quando foi um dia, esse rio amarelou tudo. E a mortandade
de peixe! Você tirava caminhão de peixe, se quisesse aí pra cima.
Morreu peixe daqui pra cima tudo. Muito, muito peixe! Robalo, ro-
balo vinha de cabeça de fora assim. Robalo bonito. Muito peixe
mesmo. De fazer dó. Daí pra cá, acabou também o peixe.
Eu saí daqui sozinho – antes da lama, né? – pra pescar. Cheguei lá
na boca da barra, coloquei minha rede. Aí depois fui mirar, nenhum
Foto Victor Pires
peixe. ‘Ihh, o negócio tá ruim, tá bom não’. Aí eu
peguei, deixei a rede na água e saí. Fui lá sozinho
e Deus. Noite escura. Aí comecei a cantar na beira
da praia, se alegrando com a paisagem, com a na-
tureza, se alegrando e tudo. Aquilo depois eu falei,
‘Meu Deus’, conversando com Deus, ‘Meu Deus,
que alegria eu me encontro aqui, sozinho e o Se-
nhor aqui e tudo. Assim, ó Pai, mesmo que eu não
leve nenhum peixe, mas tô feliz na minha vida. Só
em eu estar aqui, pra mim é motivo de muita ale-
gria’. Eu e Deus, né? Nós conversando ali e tal. Aí,
depois agora eu vou lá mirar a rede. Aí eu falei com
ele ‘Ó, Pai, eu não me importo de pegar nenhum
peixe, mas o que me importa mesmo é estar aqui,
é minha saúde’. Tudo bem. Aí depois passou umas
horinha, fui lá mirar a rede. Rapaz, parece que Deus
tava me testando. Quando eu meti a mão na rede,
que eu peguei assim, aquilo tava empencado. Eu
nesse dia peguei mais de uns 30 quilos de peixe. É
gostoso demais, rapaz, é uma sensação boa! An-
tes da lama... agora não, não tem, agora nem boca
de barra nós temo.”
3

Sucessão
de
ERROS

Eu vi com os meus olhos. Eles não queriam saber de
cuidar da barragem. Eles simplesmente queriam saber
de ganhar o deles. Jogavam o minério lá. A barragem
não tinha manutenção nenhuma
Daniel de Oliveira, de 21 anos, comerciante de Povoação (ES)
D
aniel de Oliveira, de 21 anos, enfrenta casa, não tem dúvida de que os responsáveis
dificuldades para manter o negócio sabiam da possibilidade de rompimento: “Eles
da família, o Restaurante da Iara, na só queriam saber de jogar o rejeito lá, mas ma-
vila de Povoação. Depois da tragédia nutenção não tinha nenhuma. Ali na verdade
ambiental no Rio Doce, o movimento não tem era uma bomba-relógio, qualquer hora podia
sido suficiente para cobrir os custos do negó- estourar”, avalia, a partir do que observou.
cio. Antes não era assim: “Final de semana isso Uma investigação da Polícia Federal (PF) di-
aqui tava cheio uma hora dessa, o rendimento vulgada em junho de 2016 corrobora a opinião
era maior. Dava umas 20 pessoas. Hoje, tem vo- de Daniel. De acordo com a PF, técnicos e di-
cês dois e aquelas duas marmitas que saíram. retores da mineradora tinham conhecimento
Como a gente faz pra viver assim? Pra susten- do risco de rompimento. No inquérito de 3.700
tar?”, questiona, numa tarde quente de setem- páginas, a corporação concluiu que a cons-
bro de 2016, dentro do restaurante quase vazio. trução foi realizada com materiais diferentes
A queda no movimento de turistas e a di- daqueles previstos no projeto inicial, aprovado
minuição da renda dos moradores da vila pelos órgãos ambientais. Além disso, a investi-
localizada perto da foz do Rio Doce, onde o gação apontou que desde 2012 não havia um
rio se encontra com o mar, no município de responsável técnico para fiscalizar a gigan-
Linhares (ES), afetaram de modo particular- tesca estrutura de mineração. O delegado
mente duro Iara, mãe de Daniel. Ela sofre com Roger Lima de Moura citou, em entrevista co-
diabetes, pressão alta e problemas de cora- letiva, documentos internos e trocas de men-
ção, quadro agravado, segundo o jovem, pe- sagens entre membros da Samarco que pro-
las preocupações vindas com a onda de re- variam a responsabilidade sobre o desastre.
jeitos. “Minha mãe perdeu quase metade do
pé agora, por causa de diabete, por causa de
problema, por causa de preocupação”, conta. Escolha questionável
Antes de voltar a Povoação para ajudar
a família no restaurante, Daniel lembra que Na metade da década passada, as estrutu-
passou um ano e nove meses em Minas Ge- ras para deposição dos rejeitos de mineração
rais, no município de Itabira, a aproximada- do Complexo de Germano, um dos locais onde a
mente 100 km de Bento Rodrigues. Seu ir- Samarco retira minério de ferro, estavam che-
mão havia lhe dito que não faltava trabalho gando perto de sua capacidade máxima, de
no estado vizinho. Conseguiu emprego na acordo com o Estudo de Impacto Ambien-
Enesa Engenharia Ltda., empresa de mon- tal (EIA) apresentado pela mineradora para a
tagem e manutenção eletromecânica volta- construção da barragem de Fundão em 2005.
da para grandes empreendimentos. A Ene- O EIA é um documento feito por uma empre-
sa atua na construção e manutenção de sa de consultoria contratada pela minerado-
estruturas para empreendimentos da Vale. ra e enviado aos órgãos ambientais para que
Daniel relembra que entrou como ajudan- estes possam avaliar e autorizar ou não em-
te e, dentro da empresa, recebeu qualifica- preendimentos – como barragens – e faz par-
ção de mecânico montador. Se a barragem te do processo de licenciamento ambiental.
de Fundão não tivesse rompido naquele 5 de O grupo interdisciplinar Política, Economia,
novembro de 2015, ele diz que no dia seguin- Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS),
te teria ido trabalhar na manutenção da linha voltado ao estudo e à realização de atividades
de minério de ferro do Complexo Minerário de que promovam uma reflexão crítica sobre a mi-
Germano, onde ficava a represa de rejeitos. neração e seus impactos ambientais, sociais e
Quando pensa no período de trabalho longe de econômicos, fez uma análise sobre as condições
34 Sucessão de erros

que levaram ao desastre, incluindo o EIA de Fun- empreendimento e desenvolver um estudo


dão. “Previa-se o fechamento da barragem do para mostrar qual desses lugares é o melhor”.
Germano para disposição de rejeitos até o ano de Especialistas avaliam, no entanto, que
2012, sendo que, já a partir de 2007, haveria uma mesmo com as alternativas, não era possível
redução da deposição do rejeito nesta [em Ger- garantir totalmente a segurança. “São vales
mano], o que justificava a implantação de uma fechados com inclinações muito adversas,
nova barragem para permitir o prosseguimento e têm efeitos de pluviosidade na região muito
expansão das operações de extração”, escrevem intensos. Num ambiente desse, numa con-
os especialistas no estudo Antes fosse mais leve a carga. dição dessa, não há cálculo de engenharia
O local escolhido para a nova estrutura foi que vai dar 100% de certeza de que esse em-
o vale de Fundão, a menos de 2 km do Com- preendimento é viável. Então não tem como
plexo. A mineradora apresentou outras duas fazer o controle ambiental disso. A engenha-
opções de lugares para a barragem, uma obri- ria não tem como fazer o controle geotécnico
gação prevista no EIA, como explica Alfredo disso. É muito arriscado”, analisa o geógrafo
Costa, consultor e geógrafo da Universidade e geomorfólogo José Roberto Vervloet, da
Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
em licenciamento ambiental: “O empreende- As empresas escolhem o lugar, mas é
dor tem que mostrar para o órgão ambien- responsabilidade do Estado brasileiro permi-
tal três lugares possíveis para instalação do tir ou não a execução das obras, através do

Por que existem os


rejeitos?

Na exploração de minério de ferro,


após a extração das rochas com a uti-
lização de escavadeiras ou explosivos,
é preciso fazer uma espécie de limpe-
za para separar o ferro da terra e de
outros minérios sem valor econômico.
A formação das rochas onde está
o Complexo Minerário de Germano
contribui para que uma maior quan-
tidade de rejeitos seja gerada, como
explica o geógrafo Roberto Vervloet:
“As rochas da Serra do Caraça têm
uma composição mais baixa [de mi-
nério de ferro]: cerca de 35 a 42%
de variação na sua composição”.
Para esse tipo de rocha ser aprovei-
tável economicamente, elas passam
por um processo de beneficiamento.
Depois dessa etapa, restam mate-
riais que não são comercializados e
Foto Victor Pires

não podem ser jogados no meio am-


biente. É para guardar esses materiais
que existem as barragens de rejeitos.
Sucessão de erros 35

licenciamento ambiental. No caso da barra- cacional e tecnológica são desconsideradas


gem de Fundão, a concessão da licença era porque se quer uma localização específica”.
responsabilidade da Fundação Estadual do Para ele, o que prevalece é a vontade do em-
Meio Ambiente de Minas Gerais (Feam-MG). presário: “Há um desejo do empreendedor por
A opção escolhida foi a mais vantajosa fi- aquela localização. É aquela que ele deseja, do
nanceiramente para a Samarco, como expõem ponto de vista da engenharia, da economia. As
os especialistas do PoEMAS no relatório do duas outras alternativas que são obrigatoria-
grupo. “Pode-se constatar que a escolha da mente apresentadas pela consultora são ana-
localização da barragem priorizou considera- lisadas de maneira muito incipiente [no EIA]”.
ções econômicas da Samarco, referentes ao Alfredo Costa considera que a presença
aproveitamento do sistema de barragens Ger- das outras duas barragens na área, Germano
mano-Santarém [as barragens para armazenar e Santarém, é um fator que aumenta os riscos
rejeitos do complexo de Germano antes de Fun- e impactos de um rompimento, o que não foi
dão ser construída] já existente, evitando assim avaliado no EIA. “No ambiente geográfico tri-
maiores custos na implantação de uma nova”. dimensional, uma coisa é fazer um buraco, ele
Um dos pesquisadores do grupo, o geógra- vai ter um comportamento. Se fizer outro bura-
fo e especialista em licenciamento da Univer- co do lado daquele, ele vai ter outro comporta-
sidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Luiz mento, porque essa parede que divide os dois
Jardim Wanderley, diz que “as alternativas lo- ficou frágil, então o estudo que eu fiz pro pri-
Janela de casa destruída em Paracatu de Baixo, a segunda comunidade atingida pelos rejeitos, no município de Mariana (MG). Dez
meses após o rompimento, a lama ainda preenche os espaços do pequeno vilarejo, hoje quase completamente abandonado
36 Sucessão de erros

Licenciamento
ambiental

O que é? panhamento das medidas descritas.


O licenciamento ambiental é um ins- O Rima traz as conclusões do EIA em
trumento que permite ao Estado brasilei- uma linguagem acessível, para po-
ro analisar empreendimentos que utili- der ser consultado pela sociedade.
zem recursos naturais, tenham potencial O processo de licenciamento tem
de causar poluição ou apresentem riscos três fases: Licença Prévia, Licença de
de gerar degradação ambiental. Com o Instalação e Licença de Operação.
licenciamento, os órgãos ambientais po- Além disso, as obras de alteração das
dem definir condições, restrições e medi- estruturas devem ter seus respectivos
das ambientais que o empreendedor, por licenciamentos e a licença de opera-
exemplo, a mineradora, deve obedecer. ção deve ser prorrogada periodica-
Essas condições devem ser respei- mente. A barragem de Fundão passou
tadas – ao menos na teoria – para que o por alguns licenciamentos ao longo
empreendedor possa localizar, instalar, dos anos, desde 2005, quando foi apre-
ampliar e operar um projeto. Apesar de sentado o EIA-RIMA para a construção.
todas as dificuldades e deficiências, o
licenciamento é um importante meca- Quando surgiu no Brasil?
nismo de defesa do meio ambiente e de Em 1981 foi criada a Política Nacio-
populações possivelmente impactadas. nal do Meio Ambiente no Brasil. Ela ti-
O Estudo de Impacto Ambiental nha a Avaliação de Impacto Ambiental
(EIA) e o Relatório de Impacto Am- como um de seus instrumentos. Dois
biental (Rima) fazem parte do proces- anos depois, em 1983, o licenciamento
so de licenciamento de obras com ambiental foi regulamentado no país.
significativo potencial de poluição Com a Resolução 001/86 do Conselho
ou degradação. Eles são produzidos Nacional de Meio Ambiente (Conama),
por uma consultoria externa contra- os Estudos de Impacto Ambiental (EIA)
tada pelo próprio empreendedor e tiveram seus critérios estabelecidos.
contêm, como o nome diz, uma ava- A Resolução 237/97 do Conama
liação sobre os possíveis impactos trouxe novidades importantes para
e as ações de mitigação para eles. o processo: agora, todas as ativida-
Além disso, o EIA-Rima compreen- des com potencial de degradação ou
de as alternativas tecnológicas e de poluição teriam que passar por licen-
localização da obra, além da área afe- ciamento, não só aquelas de signifi-
tada pelos possíveis impactos e como cativo impacto ambiental, como era
será feito o monitoramento e acom- antes. A mudança permanece até hoje.
Sucessão de erros 37

Foto Victor Pires

As sirenes para avisar sobre o risco de um novo rompimento foram instaladas em Bento Rodrigues, a primeira comunidade atingida
pelos rejeitos, depois do desastre

meiro buraco, que tinha parede sólida em tor- Wanderley julga que as duas alternativas te-
no dele, já não vale mais”, explica o geógrafo. riam pelo menos uma vantagem em comum: no
De acordo com Costa, os estudos feitos para caso de um possível rompimento, os rejeitos le-
Germano, Santarém e Fundão não consideraram a variam mais tempo para atingir a comunidade de
proximidade entre as barragens. “O Estudo de Im- Bento Rodrigues. “A única que afetaria Bento dire-
pacto Ambiental de Germano não foi refeito con- tamente e violentamente era Fundão”, destaca o
siderando que agora naquela área tem mais duas geógrafo, que também faz parte do grupo PoEMAS.
barragens. Não existe no Brasil essa releitura de
estudos de impacto ambiental feitos antes de uma
série de novas intervenções”, critica o especialista. Falhas do sistema
Ele é coautor do artigo Licenciamento ambien-
tal de grandes empreendimentos minerários: Dos alarmes Para os especialistas, as deficiências no pro-
que ninguém escuta à tragédia no Rio Doce. A partir de cesso de licenciamento ambiental da barragem
análise do EIA da barragem, Costa constatou de Fundão não são um caso isolado. “No final da
que uma das opções de local, o vale do córrego década de 90, a gente tem um aumento significa-
Natividade, não foi escolhida por dois motivos: tivo dos processos de licenciamento, o que é natu-
a presença de uma unidade de conservação ral, porque as secretarias de Estado vão se organi-
de proteção integral e de um sítio arqueológi- zando para responder esse tipo de demanda da
co na área. A outra opção, o vale do córrego do sociedade e dos empreendedores especificamen-
Brumado, traria maiores custos para a Samar- te. E a partir daí, vai precarizando a qualidade dos
co, de acordo com a análise do EIA presente estudos ambientais, principalmente a partir dos
no artigo, que também traz a informação de anos 2000”, contextualiza Luiz Jardim Wanderley.
que a mineradora tinha planos de construir ou- De acordo com o engenheiro e analista
tra barragem no vale do Brumado no futuro. ambiental da Universidade Federal de Juiz
38 Sucessão de erros

de Fora (UFJF) Bruno Milanez, que também A crítica é compartilhada pelo especialista
é coordenador do PoEMAS, um conjunto em licenciamento ambiental e geógrafo Alfre-
de fatores – que incluem desde o suca- do Costa. “Raciocina comigo: como que uma
teamento dos órgãos de meio ambiente pessoa que contrata um serviço vai pagar por
estatais até a influência das minerado- um serviço que não beneficia ela?”. Ele diz que
ras na política – cria “um cenário onde os a contratação de empresas de consultoria
Estudos de Impacto Ambiental que são preocupadas em atender os interesses dos
apresentados por essas mineradoras não empreendedores em detrimento de outros
são olhados com o devido cuidado e não fatores tornou-se “uma atitude sistemática”.
são questionados com o devido cuidado”. Se uma consultoria apresenta um parecer
Wanderley denuncia o surgimento de mui- contra a vontade de quem contrata, ponde-
tas empresas de consultoria, várias delas sem ram os especialistas, existe a possibilidade
a qualidade necessária. Isso é um problema, de que não vá ser chamada para trabalhos
segundo ele, porque a produção do EIA e do futuros: “As consultoras que se neguem a fa-
Relatório de Impacto Ambiental (Rima) é rea- zer o EIA de determinado empreendimento
lizada por consultores externos contratados vão sendo retiradas brandamente do mer-
pelos próprios empreendedores e os estu- cado”, diz o geógrafo Luiz Jardim Wanderley.
dos são enviados aos órgãos ambientais res- Uma falha que chamou a atenção dele
ponsáveis pelo licenciamento para análise. no EIA em questão é a ausência quase total

Rompimentos anteriores de barragens de rejeitos em Minas Gerais

1986 2001 2002

Dois rompimentos foram regis- Rompimento de barragem da


trados em 1986. O primeiro foi Vale no município de Ouro Preto.
de uma barragem de rejeitos do O acidente não deixou mortos.
grupo Itaminas, em Itabirito, que
deixou sete mortos e liberou 350
mil m³ de rejeitos no ambiente. O
segundo, no mesmo município,
foi de uma estrutura pertencente Rompimento de barragem da
à Mineração Brasileira Reunidas, Mineração Rio Verde, no município
que levou ao derramamento dos de Nova Lima, deixou cinco mortos
rejeitos por 10 km, contaminando e liberou 600 mil m³ de rejeitos no
rios e danificando estruturas. ambiente, causando assoreamen-
to de 6,4 km do córrego Taquara e
contaminação das águas.
Sucessão de erros 39

de projeções para um possível rompimen- gem. Uma delas era o plano de emergên-
to: “A partir dessa não compreensão que cia. Eles fazem um plano de emergência
a barragem pode romper, a gente vai ter a muito tosco, entregam e a condicionante
dificuldade de medir a magnitude de uma está cumprida. Ninguém entra no mérito
possível tragédia. Tratando que o rompimen- para saber se é um bom ou um mau plano”,
to é improvável, como fez o estudo, ele não critica o engenheiro Bruno Milanez. Como
criou mecanismos de proteção e de progra- resultado, não havia sirenes em Bento Ro-
mas ambientais que dessem maior atenção drigues para alertar a população sobre a
às populações possivelmente atingidas”. chegada da onda de rejeitos, por exemplo.
Ao considerar baixo ou improvável o
risco de rompimento da barragem, as mi-
neradoras pecam em outro ponto: produ- Histórico de rompimentos
zem um plano de emergência ineficaz, di-
zem estudiosos do tema. Esse plano era No Brasil – e em Minas Gerais, mais espe-
uma das condições para que a barragem cificamente –, não é a primeira vez que uma
fosse autorizada pelos órgãos ambien- barragem rompe. Desde 1986, houve sete
tais. “No caso da Samarco, foram apresen- rompimentos de barragens no estado, sem
tadas algumas condicionantes para ser contar a de Fundão, de acordo com levanta-
aprovada a licença de operação da barra- mento feito a partir de notícias na imprensa

Fonte: Agência Nacional de Águas, 2016

2003 2007 2014

No município de Cataguases, o No município de Itabirito, o


rompimento de uma barragem rompimento de uma barragem
da Indústria Cataguases de Papel da mineradora Herculano matou
Ltda. liberou no ambiente 1,4 três funcionários da empresa e
bilhão de litros de lixívia, rejeito da causou contaminação e assorea-
produção de celulose. O acidente mento de córregos e rios.
deixou 600 mil pessoas sem
água em três estados. Barragem da mineradora Rio Pom-
ba Cataguases rompe no município
de Miraí e libera 2 milhões de m³ de
rejeitos. O desastre causou morte de
peixes, contaminação das águas e
deixou quatro mil pessoas desaloja-
das e 1.200 casas destruídas.
40 Sucessão de erros

pela Agência Nacional de Águas, presente no Bruno Milanez defende que existem tecnolo-
Encarte Especial Sobre a Bacia do Rio Doce. Os outros gias alternativas mais seguras para a deposição
desastres juntos deixaram 15 mortos e gera- de rejeitos de mineração. Há um problema, no en-
ram danos ecológicos enormes. Em 2003, por tanto, para as bilionárias mineradoras: o preço. “A
exemplo, a barragem da Indústria Cataguases forma usada na de Fundão é a mais selecionada
de Papel Ltda., no município de Cataguases, no Brasil, é a mais barata e a mais insegura. Existem
rompeu e despejou 1,4 bilhão de litros de lixí- outras tecnologias de construção de barragens
via – um dos resíduos da produção de celulo- que permitem que você tenha barragens mais
se – no meio ambiente. Ao todo, 600 mil pes- seguras. Então, mesmo dentro da ideia de barra-
soas ficaram sem água por causa do desastre. gens, você poderia ter obras melhores”, explica.
Em 2007, de acordo com o mesmo encarte O método utilizado no caso de Fundão
da ANA, o rompimento da barragem São Francis- foi o de alteamento a montante, de acordo
co, da Mineração Rio Pomba Cataguases, lançou com Milanez. Nesse modelo, é construído
dois bilhões de litros de rejeitos, com resíduos de um dique inicial e os rejeitos vão sendo de-
bauxita, no Ribeirão Fubá, que corta o município positados atrás. Com o tempo, eles vão se
de Miraí, a 100 km de Belo Horizonte. A população consolidando e servem de base para ou-
ficou sem ver peixes no ribeirão por cinco anos. tros diques, criando várias camadas de se-
Sucessão de erros 41

dimentos. O processo se repete até que a falou ‘nossa, isso é muito forte, tem que entrar
capacidade total seja atingida. Nessa prá- [no estudo do PoEMAS]’”, comenta Milanez.
tica, para garantir a segurança, é neces- “A gente precisa ter em mente o contex-
sário que os rejeitos depositados estejam to em que esse licenciamento foi feito, foi em
firmes. Isso requer um bom sistema de dre- 2005. Em 2001, a China entra na Organização
nagem para retirar o líquido e evitar que os Mundial do Comércio e a demanda por minério
rejeitos fiquem instáveis, o que não é fácil. no mundo inteiro aumenta exponencialmente.
De acordo com a investigação da PF, a Há uma corrida no Brasil por licenciamentos
Samarco fez alteamentos – elevações da es- de novas minas, e portanto novas estrutu-
trutura – acima do limite das normas técni- ras de apoio - barragens, ferrovias, linhas de
cas e até mesmo do que estava previsto no transmissão, minerodutos, transportadoras”,
manual da empresa. Enquanto o manual in- destaca o geógrafo e consultor Alfredo Costa.
dicava alteamento de seis metros por ano e No período de 2003 a 2013, o Brasil foi o segun-
as normas técnicas autorizavam 10 metros, a do maior fornecedor de minério para o mercado
empresa chegava a 15 metros no mesmo pe- mundial, com 14,3% das exportações totais e o mi-
ríodo. Além disso, a Samarco não era a única nério passou a responder por 14,5% do total de ex-
a depositar rejeitos em Fundão. A mineradora portações do país, indica análise do PoEMAS com
Vale num primeiro momento negou o lança- base em dados produzidos pelo International Trade
mento de rejeitos na barragem, depois decla- Centre. Só o minério de ferro tinha mais de 90% des-
rou que jogava apenas 5%. O inquérito da PF, sa fatia. É só dar uma olhada rápida nos preços do
no entanto, constatou que 27% do total de re- minério de ferro para ver a explosão que eles tive-
jeitos depositados em Fundão eram da Vale. ram: em janeiro de 2003, o preço da tonelada seca
de minério de ferro era de US$ 32 e, em abril de
2008, alcançou o pico de US$ 196. Acontece que o
Ascensão e queda do preço do ferro mercado de minérios é marcado pela alternância,
são altos e baixos, indica Milanez. A partir de 2011,
Michael Davies, da Associação de Mineração os preços começaram a cair. Chegaram a US$ 53
do Grupo de Trabalho de Rejeitos do Canadá, e em outubro de 2015, um mês antes do desastre.
o engenheiro Todd Martin, em uma pesquisa so- Quando os preços começaram a subir,
bre rompimentos de barragens de mineração, houve uma corrida dos produtores de commo-
escrevem que os desastres têm mais chance dities para aumentar a produção, diz o coorde-
de acontecer quando, nos ciclos dos preços do nador do PoEMAS. “Com isso, a intensidade de
minério, os valores começam a cair. Apesar de demanda por engenheiros, por equipamentos,
os canadenses terem focado na mineração de tudo ficou mais caro, estava todo mundo traba-
cobre, a análise encaixou no desastre de Fun- lhando para ampliar as minas. Ao mesmo tem-
dão, diz o engenheiro Bruno Milanez, do PoEMAS. po, a pressão sobre licenciamento ambiental
O estudo do grupo, Antes fosse mais leve a carga, foi muito mais forte. Tem uma enxurrada de pro-
tem como um dos focos justamente esse contex- jetos entrando, obviamente os órgãos ambien-
to. A primeira década deste século foi marcada tais não crescem nessa velocidade”, explica.
por um aumento expressivo no preço das com- A barragem de Fundão entrou em operação
modities, incluindo os minérios, aponta a pes- em 2008, justamente o ano em que os preços
quisa. Os autores ressaltam ainda que as impor- do minério de ferro tinham chegado ao pico,
tações globais de minérios cresceram de forma de acordo com a série histórica de preços das
assombrosa: entre 2003 e 2013, elas passaram de commodities, feita pelo Banco Mundial. Pouco
US$ 38 bi para US$ 277 bi, um aumento de 630%. depois, eles começam a cair. Todo o investi-
“O que nos chamou atenção no caso da mento que a empresa fez para aumentar a pro-
Samarco é que o exemplo dela se enquadra dução na época de bonança acabou gerando
muito bem no cenário que eles [Davies e Mar- dívidas, como aponta a análise presente no es-
tin] apresentaram. Ela seria um exemplo em- tudo do PoEMAS: “Dessa forma, a reorientação
blemático da teoria deles, por isso que a gente da estratégia corporativa no macrocenário
42 Sucessão de erros

regressivo pressionou de modo significativo “O ano de 2014 foi marcante para a Sa-
o endividamento da empresa, que vem cres- marco. Inauguramos nossa maior expansão,
cendo progressivamente desde 2009, sendo um investimento de R$ 6,4 bilhões, concluído
ampliado entre 2013 e 2014 em cerca de 29%”. dentro do prazo e orçamento previstos, e que
Um dos indicadores dessa corrida pelo lu- aumentará nossa produção em 37%. Somen-
cro é o número de acidentes de trabalho regis- te em 2014, alcançamos a produção de 25
trados, segundo Milanez. Os Relatórios Anuais milhões de toneladas de pelotas de minério
de Sustentabilidade da Samarco, analisados de ferro, um aumento de 15,4% em relação a
pelo PoEMAS, indicam aumento dos acidentes 2013. A entrega desse projeto e o prêmio de
de trabalho entre 2011 e 2014. Em 2011, a Samar- melhor mineradora certamente materiali-
co teve uma taxa de 0,49 acidentes por milhão zam nossa convicção na importância do pla-
de horas-homem trabalhados. No ano seguin- nejamento bem feito e da execução precisa”,
te, foram 0,65. Em 2013, a taxa foi de 0,8. Já em disse o ex diretor-presidente da Samarco,
2014, 1,27. “A gente aponta no estudo o aumento Ricardo Vescovi, na cerimônia de premiação.
dos acidentes de trabalho. De [20]11,12,13, tem Apesar dos lucros, os investimentos na
crescido anualmente, o que mostra ou inten- expansão produtiva levaram a empresa a
sificação ou precarização das condições de enfrentar também um cenário de endivida-
trabalho. Ter oscilações, um ano sobe e depois mento crescente desde 2009. De 2013 para
desce, é até aceitável, mas crescer três anos 2014, a dívida bruta da mineradora passou
consecutivos é preocupante”, esclarece Milanez. de aproximadamente R$ 9,03 bilhões para
Mesmo num cenário de queda dos preços, a R$ 11,65 bilhões, um aumento de mais ou me-
Samarco, com suas estratégias, conseguiu man- nos 29%, de acordo com levantamento do
ter os lucros. O PoEMAS reuniu os dados de lucro PoEMAS a partir de relatórios da Samarco.
da empresa entre 2009 e 2014, com base nos Re-
latórios da Administração da própria minerado-
ra. Em 2009, por exemplo, o lucro líquido foi de R$ Fiscalização ineficaz
1,31 bilhão. O valor foi de R$ 2,81 bilhões em 2014.
Em julho de 2015, a lucratividade da mi- Mesmo com todos os problemas estrutu-
neradora foi reconhecida. Ela venceu na ca- rais registrados ao longo dos anos de operação
tegoria “Melhor Empresa do Ano” na área de da barragem de Fundão, ela era considerada
mineração da publicação anual Melhores e estável pelos órgãos ambientais responsáveis,
Maiores, da revista Exame. Na mesma edição, como é possível ler no Inventário de Barragens do
a Samarco ficou, ainda, com a 10ª coloca- Estado de Minas Gerais de 2014. A publicação anual


ção entre os maiores exportadores do Brasil. é produzida pela Feam-MG, que é responsável

O Estado não consegue obrigar as empresas a efetiva-


mente operar de forma segura essas barragens
Bruno Milanez, engenheiro e analista ambiental
da UFJF, coordenador do PoEMAS
Sucessão de erros 43

pela fiscalização em conjunto com o Departa- Apesar da previsão de vistorias anuais, a últi-
mento Nacional de Produção Mineral (DNPM). ma visita do DNPM à barragem de Fundão antes
“Na verdade, os órgãos de Estado não do rompimento foi em 8 de março de 2012. A infor-
têm capacidade técnica, pessoas para fis- mação do diretor de Fiscalização do DNPM, Wal-
calizarem todas as barragens, então parte ter Arcoverde, é parte de um depoimento dado à
dessa fiscalização é feita por empresas con- Comissão Especial do Senado destinada a ava-
tratadas pelas próprias mineradoras, que liar a Política Nacional de Segurança de Barra-
emitem o laudo e o que o órgão ambiental gens e o Sistema Nacional de Informações sobre
tem é o laudo”, explica Bruno Milanez. As mi- Segurança de Barragens após o desastre e pode
neradoras contratam auditorias para fazer a ser encontrada na ata da 3ª reunião da comissão.
declaração de estabilidade das barragens. O Tribunal de Contas da União (TCU) reali-
Na prática, deveriam ser realizadas vistorias zou uma auditoria operacional no DNPM (TC
anuais de técnicos do DNPM nas barragens de 032.034/2015-6) com o objetivo de avaliar a atu-
classe III – aquelas com alto potencial de da- ação do órgão no controle sobre a segurança de
nos ambientais, como era o caso de Fundão. barragens de rejeitos. A falta de tecnologias, pro-
44 Sucessão de erros

fissionais e recursos financeiros são apontados de servidores atual equivale a 62% do adequa-
como fatores para a atuação ineficiente na fisca- do para a execução das atividades. Em Minas
lização das barragens. “O DNPM não dispõe de Gerais, onde a situação é a pior do país, seriam
meios e instrumentos concretos para, efetiva- necessários 384 servidores, mas há apenas 79.
mente, auxiliar na verificação e conferência sis- Ainda de acordo com a auditoria, das 220
temática, rotineira e tempestiva da veracidade barragens de rejeitos cadastradas pelo DNPM
dos dados informados no cadastro pelos empre- em Minas Gerais, 144 não foram vistoriadas
endedores”, apontam os técnicos da Secretaria pelo órgão nenhuma vez entre 2012 e 2015.
de Fiscalização de Infraestrutura de Petróleo, Quase metade das vistorias – 34 num total de
Gás Natural e Mineração do TCU na auditoria. 76 – foram feitas só depois do rompimento e
A falta de mão de obra no Departamento são relacionadas a barragens da Samarco. A
fica evidente quando colocada em números, situação de Minas é um reflexo da realidade do
como aponta a auditoria, a partir de dados co- país: de todas as barragens de rejeitos no Bra-
letados pelos técnicos do TCU junto ao DNPM. sil, só 41% foram vistoriadas entre 2012 e 2015.
De 1.200 vagas criadas em 2004, só 450 são O “auto monitoramento” – quando uma
ocupadas e não há concursos desde 2009. Es- consultoria contratada pela mineradora faz
timativa do próprio DNPM indica que o quadro a fiscalização – provoca críticas. “Esse mo-
Sucessão de erros 45

Foto Arquivo pessoal Foto Arquivo pessoal

Bruno Milanez, coordenador do PoEMAS, avalia que a Samarco O geógrafo da UFMG e consultor Alfredo Costa tem críticas ao
adotou estratégias para aumentar o lucro e reduzir custos nos licenciamento ambiental para a construção da barragem de
anos anteriores ao rompimento. Fundão. Segundo ele, não foram consideradas as outras barra-
gens ligadas a Fundão, por exemplo

delo de que o empreendedor contrata quem foi dada, mesmo sem as devidas condições.
faz o monitoramento da barragem, que são “Como uma barragem que é dita como es-
os consultores externos, é bastante frágil do tável rompe? Esse é o primeiro problema. Se as
ponto de vista da qualidade dos estudos no consideradas estáveis rompem, imagina as que
sentido de que eles [não] vão estar livres o não são consideradas estáveis. Elas teriam que
suficiente para dizer não a um empreendi- parar de ser usadas. Isso para mim é um racio-
mento”, avalia o geógrafo da UERJ Luiz Jar- cínio lógico”, defende Wanderley. No Inventário
dim Wanderley, que faz parte do comitê Em de 2015 da Feam-MG, 19 barragens de Minas
Defesa dos Territórios Frente à Mineração. Gerais não tiveram a estabilidade garantida
“Os auditores não têm liberdade para an- pelo auditor. Em outras 16, o auditor não teve
dar pelo empreendimento. Eles visitam as condições de garantir a estabilidade por falta
áreas que a empresa mostra. Então, às vezes, de dados. No ano passado, foram registradas
se tivesse um problema na barragem, a em- 730 barragens – de diversos usos – no estado.
presa não mostrou, maquiou”, diz o consul- “Tem algumas barragens que foram conside-
tor e geógrafo Alfredo Costa. Ele, no entanto, radas não estáveis dois anos consecutivos, ou-
ressalta que a declaração de estabilidade tras foram consideradas não estáveis três anos
46 Sucessão de erros

Foto Victor Pires

Antigos moradores de Paracatu de Baixo, a segunda vila arrasada pela lama, retiram, no início de setembro, as telhas da casa em que
moravam antes do desastre. Foi o pouco que sobrou depois da enxurrada de lama e do roubo dos pertences por invasores, diz uma
das moradoras
Sucessão de erros 47


De fato, a gente tem uma corresponsabilidade entre es-
ses três atores: consultoras, que produzem o estudo; as
empresas, que executam o projeto e têm a necessidade
de cuidar do projeto; e os órgãos ambientais que valida-
ram o projeto e têm que fiscalizar o projeto
Luiz Jardim Wanderley, geógrafo da UERJ

consecutivos”, ressalta o engenheiro e analista com dados do Ibama, só 3% do valor das mul-
ambiental Bruno Milanez. Na avaliação dele, isso tas ambientais no Brasil é efetivamente pago.
demonstra “a incapacidade efetivamente de
controlar a segurança das estruturas. O Estado Relações financeiras entre políticos
não consegue obrigar as empresas a efetiva- e mineradoras
mente operar de forma segura essas barragens”.
Os problemas da Samarco com o meio Os investimentos milionários das minera-
ambiente não começaram com o rompimen- doras no Brasil não se restringem à extração
to da barragem de Fundão. Segundo levanta- do minério. Milhões de reais são direcionados
mento do PoEMAS presente no relatório Antes para uma atividade que também gera frutos:
fosse mais leve a carga, de 1996 a 2014, a minera- o financiamento de campanha. Nas eleições
dora acumulava uma coleção de 19 infrações de 2014, de acordo com levantamento do Co-
registradas pela Feam-MG, Instituto Estadual mitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente
de Meio Ambiente do Espírito Santo (Iema- à Mineração, as mineradoras doaram R$ 32,7
-ES) e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e milhões para os comitês e direções de parti-
dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). dos com candidatos à Câmara dos Deputados.
As multas por causa dessas infrações não A Vale sozinha foi responsável por R$ 22,6 mi-
chegam nem a arranhar o patrimônio da mine- lhões desse total, segundo consta no relatório.
radora. O PoEMAS reuniu informações, no rela- A controladora da Samarco, por meio
tório, sobre alguns destes casos. Um deles é o das empresas que compõem o Grupo Vale,
vazamento de um mineroduto – utilizado para também doou R$ 12 milhões para a candida-
transportar o minério de ferro – da Samarco tura da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) e,
no município de Espera Feliz (MG). O acidente consequentemente, do atual presidente Mi-
contaminou o Rio São João e deixou aproxi- chel Temer (PMDB), de acordo com dados do
madamente 30 mil pessoas sem água, além Tribunal Superior Eleitoral (TSE) analisados
de contaminar uma área de preservação per- pelo PoEMAS. O candidato à presidência Aé-
manente. O Ibama multou a Samarco em R$ cio Neves (PSDB) também recebeu dinheiro
40 mil, mas, na Justiça, a mineradora conse- da Vale: para a campanha do tucano, foram
guiu diminuir o valor para R$ 28 mil. De acordo destinados R$ 3 milhões via Comitê Finan-

48 Sucessão de erros

Existe uma contrapartida por essas pessoas que são


financiadas, o jogo de poder é muito claro nesse senti-
do. Inclusive uma das grandes discussões a respeito do
financiamento privado de campanha é isso
Alfredo Costa , geógrafo da UFMG e consultor

ceiro Nacional para Presidência da Repúbli- priorização de empreendimentos de deter-


ca. Os dados do TSE coletados pelo PoEMAS minadas empresas. A influência política so-
indicam ainda que o governador de Minas bre os órgãos ambientais é muito grande”.
Gerais à época do rompimento, Fernando Pi- “Essa relação entre empresa e financia-
mentel (PT), recebeu R$ 3,1 milhões de em- mento de campanha é problemática do ponto
presas do Grupo Vale via doação ao partido. de vista que os tomadores de decisão supre-
“A gente não pode ser bobo. Existe uma mos ou os que têm influência direta sobre os
contrapartida por essas pessoas que são analistas [dos órgãos ambientais], têm inte-
financiadas, o jogo de poder é muito claro resse em produzir mais empreendimentos.
nesse sentido. Inclusive uma das grandes É isso que eles consideram geração de em-
discussões a respeito do financiamento priva- prego e renda, e quem dita o desenvolvimen-
do de campanha é isso”, avalia Alfredo Costa. to são essas empresas”, expõe Wanderley.
O deputado federal Leonardo Quintão
(PMDB/MG) é um exemplo marcante dessa
realidade. Ex-relator do novo Código de Mi- Os inocentes são os castigados
neração, Quintão teve 42% de sua campa-
nha em 2014 financiada pelas mineradoras, Em Povoação, no município de Linhares
como mostra o levantamento do comitê Em (ES), Daniel de Oliveira, cuja história abre
Defesa dos Territórios Frente à Mineração. este capítulo, vive as consequências de
Os especialistas do PoEMAS, no estudo An- um caminho que foi sendo pavimentado ao
tes fosse mais leve a carga, avaliam que Quintão longo dos anos por uma série de indivídu-
“fez várias alterações que, no caso de apro- os e de acontecimentos que ele desconhe-
vação do substitutivo, ampliarão considera- ce. Das cifras milionárias que fazem parte
velmente a mineração em áreas vulneráveis desse percurso, ele também está longe.
e diminuirão o controle social e estatal so- Graças ao rompimento, o que sua família
bre a atuação das empresas mineradoras. A tira por mês do restaurante não chega nem
proposta de substitutivo apresentada pelo perto do que conseguiam ganhar antes.
deputado Quintão incentivaria de maneira Quando ficou sabendo do rompimento, ele
desproporcional a atividade, em vez de regu- estava em Itabira (MG) ainda trabalhando na
lá-la”. Vale lembrar que a análise foi feita en- Enesa. A primeira reação foi procurar vídeos e
quanto Quintão ainda era relator do Código. imagens do desastre no computador. Não che-
A influência das mineradoras sobre a gou a pensar nas mudanças que o aconteci-
política tem outros efeitos não tão explíci- mento acabaria trazendo para a vida da família.
tos, mas, ainda assim, graves. É o que expli- “Eu não imaginei que essa lama ia ter essa for-
ca Luiz Jardim Wanderley: “A gente vai ter ça toda pra chegar até aqui. Porque de Mariana
casos menos visíveis, como são os casos até aqui é muito longe”, diz. Hoje, seus planos
dos órgãos ambientais, a gente não conse- incluem ficar perto da mãe doente, ajudando
gue ver a influência em si, ali, direta, incisi- como pode e esperando que os tempos melho-
va, numa flexibilização [do licenciamento rem, nem que seja com a ajuda de um cartão
ambiental]. Isso não está visível a olho nu, subsídio. Até o fechamento da reportagem, em
mas com certeza há uma aceleração ou novembro de 2016, ninguém havia sido preso.
Sucessão de erros 49

Início, meio e fim conturbados

O breve histórico a seguir é um resumo ída uma espécie de praia de areia com 200
do relatório sobre as causas do rompimen- metros para garantir a separação entre os
to da barragem de Fundão, divulgado no fim materiais, mas em várias situações essa dis-
de agosto de 2016 e produzido por um grupo tância, pelo excesso de lama e pouca quanti-
de quatro especialistas de renome interna- dade de areia, foi menor do que o planejado.
cional em segurança de barragens. O traba- Em 2011 e 2012, as galerias – construídas
lho foi contratado pela Samarco, Vale e BHP nos lados direito e esquerdo da barragem
Billiton para apurar as causas do desastre para retirar o excesso de água – apresenta-
e traz conclusões semelhantes às investi- ram problemas estruturais, por causa de fa-
gações da Polícia Federal e da Polícia Civil. lhas na construção. Se uma dessas galerias
Escolhidos o local, a tecnologia e com sofresse uma ruptura, as chances de a barra-
o aval do Estado, as obras para construção gem romper seriam grandes. Foram iniciados
da barragem de Fundão tiveram início. Ela reparos para garantir a estabilidade. No en-
seria composta por dois diques, que arma- tanto, o trabalho não acabou com os riscos.
zenariam os rejeitos em estados diferentes, Para tentar resolver o problema, o plano
areia (sólido) e lama (mais líquido). No dique era usar concreto para ligar as galerias e
1, mais à frente, estaria concentrado rejeito reforçar a estrutura. Outra questão surgiu: a
em forma de areia. Atrás, o dique 2 iria segu- capacidade da galeria no lado esquerdo da
rar a lama. Entre eles, uma camada de areia barragem já tinha sido ultrapassada pela
iria separar os materiais. Essa separação era quantidade de rejeitos depositados. Para
crucial para manter o equilíbrio da estrutura. tentar resolver isso temporariamente, uma
Além disso, um dreno de alta capacidade na obra de recuo do lado esquerdo da barra-
base – além de outros ao longo da estrutura gem foi iniciada para que operações de ele-
– seria instalado para manter a areia seca. vação da estrutura pudessem ser feitas. Isso
Logo após a deposição dos rejeitos are- deixou a areia e a lama ainda mais próximos.
nosos, os primeiros problemas com o di- Uma série de infiltrações e rachaduras
que 1 começaram a aparecer. Em abril de apareceram, em 2013, no lado esquerdo,
2009, surgiram infiltrações na estrutura, onde estava sendo feito o recuo. Obras
por onde os sedimentos escapavam. O de- para instalar novos sistemas de drenagem
feito apareceu porque o sistema de drena- foram feitas. No início de 2014, o tapete
gem na base do dique 1, projetado para que de drenagem instalado em 2011 mostrou-
os rejeitos não concentrassem água, foi mal -se insuficiente para a retirada do líquido
construído. Com a época de chuvas, não foi da barragem. Foram iniciadas obras para
possível fazer todos os reparos necessários e aumentar em 20 metros a altura da bar-
um dos pontos mais importantes para man- ragem, que já estava no máximo projeta-
ter os rejeitos secos no dique 1 ficou inutilizado. do, além da instalação de novos drenos.
Outra falha no planejamento fez com A ideia era acrescentar novas estruturas
que os volumes de areia e lama não ficas- de drenagem com a obra. Em agosto de
sem em equilíbrio. O preenchimento do di- 2014, rachaduras muito maiores do que
que 1 começou antes do esperado e a quan- as vistas antes apareceram no recuo do
tidade de lama despejada no dique 2 foi lado esquerdo. Obras de emergência para
muito maior do que a de areia que ia para o garantir a estabilidade foram realizadas.
dique 1. Para separar os dois, foi construído O sistema de drenagem para o lado es-
um terceiro no meio, o dique 1A, que aumen- querdo da barragem só foi completado em
taria a capacidade para a deposição de lama. agosto de 2015. Poucos meses depois, no dia
Em 2011, obras para elevação do dique 1 5 de novembro, a areia passou bruscamen-
foram feitas. Foi acrescentado mais um sis- te do estado sólido para o líquido. Isso acon-
tema de drenagem, chamado tapete. Ele foi teceu por uma série de fatores, mas o exces-
instalado, no entanto, num ponto mais alto so de água na barragem e o contato entre a
do que aquele sistema inicial na base do di- lama e a areia foram os principais. Além dis-
que 1, que apresentou falhas em 2009, e não so, pequenos tremores de terra registrados
poderia retirar o excesso de água nos sedi- na região podem ter acelerado o processo.
mentos abaixo, caso necessário. A separação A barragem não teve força para segurar
entre o rejeito mais líquido e a areia era crucial milhões de toneladas de rejeitos líquidos
para a estabilidade da estrutura. Foi constru- e rompeu no ponto onde fora feito o recuo.
4

Leito
de
MORTE

As árvores, o mangue quando tá brotando, não vem
aquele mangue forte, vem aquele mangue fraco. Um
mangue forte pra gente é aquele mangue que cresce as
folhas vivas, um verde... e hoje tá crescendo umas folhas
só brotinho, com pequenas folhagens, amarelado
Adenísia da Silva, de 32 anos, pescadora e catadora
de caranguejo. Moradora de Nativo (ES)
“C
inco horas da manhã eu levanto A agente de saúde e presidente da Asso-


e ligo o rádio e vou deitar de novo, ciação de Moradores de Pontal do Ipiranga,
fica tocando música até seis ho- Mônica Silva, de 33 anos, também viu o lei-
ras, sete, que é a hora d’eu levan- to do Rio Ipiranga, carinhosamente chama-
tar”, descreve o pescador Braz Fernandes Dan- do de riozinho, coberto de animais mortos.
tas, de 78 anos, morador de Pontal do Ipiranga,
no município de Linhares (ES). Às sete da manhã, Aqui no riozinho foram toneladas. Vocês
logo depois de colocar água no fogão para fa- não têm noção do que era de peixe morto no
zer o café, ele espalha no chão do quintal de rio. Era tirado com pá carregadeira e caçamba
casa uma longa fileira de uma mistura amare- na beira do riozinho. Mas é muita coisa mes-
lada de grãos de painço, alpiste e canjiquinha. mo! Uns mortos, outros agonizando. Os peixes


A mistura não é ao acaso: “Se eu colocar vinham em cima d’água e ficavam se batendo.
só canjiquinha, eles não aprendem a comer Isso eu te falo: eu nunca vi acontecer. Peixe
no mato”. Em poucos minutos, a zoada nos grande, pequeno, bagre, esses bagrezinhos,
galhos das árvores anuncia que as visitas de que a gente chama de rabo seco, tainha, ro-
Seu Braz chegaram para o desjejum sempre balo, carapeba, grumatã, tilápia. Toda espécie
pontual: canários, bem-te-vis, rolinhas, entre de peixe daqui do rio. E depois dessa fase que
outros pássaros de diversos cantos e tona- morreu os peixes, você podia passar um coa-
lidades se apertam, e revezam entre si, para dor no rio que não pegava um filhote de nada.
bicar o alimento. O pescador, acompanhado
apenas da cadelinha Nina, de 3 anos, senta Boa parte dos filhotes aos quais Mônica
num banco no alpendre da casa e, contem- se refere não foi poupada pela lama porque

“ ”
plando a vivacidade dos bichos, toma o café. esta atingiu o Rio Doce no período da pira-
Quando lembra da época em que a lama cema, que é quando os peixes de água doce
chegou ao Rio Ipiranga, Seu Braz, no entanto, sobem o curso dos rios para desovar. Nessa
franze a testa. época, cardumes inteiros de peixes se jun-
tam na subida e a captura fica fácil. Por isso,
Morreu um monte de peixe, aqueles peixe de acordo com a legislação brasileira, os pes-
podre na água. Morreu muito peixe. Tucuna- cadores são proibidos de pescar e entram
ré, traíra, tilápia, grumatã. Esse peixe morto no período de defeso – no caso dos que pos-
do Rio Doce, acho que enterraram em algum suem carteira de pescador profissional, emiti-
canto. Esconderam, que a maioria a gente da pela Secretaria de Pesca e Aquicultura do
viu. Outros não. Eles tavam pagando os pes- Ministério da Agricultura, o governo paga o
cador pra pegar os peixe morto. E pra onde seguro-defeso para compensar a interdição.
eles levaram? Esconderam. Desapareceram. As épocas da piracema variam de acordo com
as espécies em cada região do país. No Espírito
O Rio Ipiranga corre paralelo ao mar, sendo sepa- Santo, segundo portaria do Instituto Brasileiro do
rado em alguns pontos por uma faixa de areia. Essa Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renová-
formação faz com que comunidades como Urussu- veis (Ibama), o defeso vai de 1º de novembro a 28
quara e Barra Seca, mais ao norte, tenham duas praias, de fevereiro, garantindo a reprodução de diver-
de água doce e salgada. O rio é ligado ao mar por meio sas espécies de peixes, caranguejos e camarões.
de aberturas em determinados pontos, algumas delas Quando a barragem de Fundão rompeu,
criadas artificialmente. De acordo com os moradores, em novembro, que é o primeiro mês da pirace-
foi por meio dessas ligações que a lama, depois de al- ma de vários peixes e crustáceos, uma força-
cançar a foz do Rio Doce e ser espalhada no mar, pene- -tarefa, batizada de Arca de Noé, organizada
trou no Rio Ipiranga e matou os animais que ali viviam. por pescadores e biólogos, apressou o resgate
52 Leito de morte

Fotos Victor Pires

Alimentar os pássaros nas primeiras horas do dia é uma das poucas atividades da rotina de Seu Braz que continuaram após a che-
gada da lama de rejeitos na praia de Pontal do Ipiranga e no Rio Ipiranga
Leito de morte 53

de espécies do Rio Doce – poucos dias antes facilidade a barreira na tarde de sábado, 21
de a região ser contaminada pelos rejeitos de de novembro de 2016, mesmo dia em que o
minério. O grupo recolheu 150 mil bichos em juiz federal Rodrigo Botelho aceitou o plano
Colatina (ES) e os transferiu para lagoas locais. da empresa e suspendeu a multa milionária.
A ação de resgate, no entanto, não impediu Embora “lama” seja a forma mais utiliza-
que milhares de animais típicos do Rio Doce mor- da para falar dos sedimentos despejados no
ressem sufocados pela lama. De acordo com meio ambiente após o rompimento da barra-
publicação da Samarco no site oficial da minera- gem, tanto em reportagens de jornais quanto
dora, as toneladas de peixes mortos no Rio Doce nas conversas de pescadores nas vilas atin-
foram recolhidas e as carcaças, “direcionadas gidas, nem todos adotam o termo. A ocea-
para aterros sanitários devidamente licenciados”. nógrafa da Universidade Federal do Espírito
Santo (Ufes) Fabíola Amorim, por exemplo, pre-
fere falar em “pluma de rejeitos”, ou só “pluma”.
Peso da pluma A água de um rio passa a ser chamada de
pluma na foz quando entra em contato com o
Dezesseis dias após o rompimento da bar- mar. A diferença de salinidade e densidade torna
ragem de Fundão, no início do mês de novem- possível diferenciar, pelo menos por um período
bro de 2016, a lama passou por todo o curso do de tempo, o que vem do rio e a água do oceano.
Rio Doce e alcançou o mar. A foz fica localizada “A pluma corre por cima da água do mar. É aí o
na vila de Regência Augusta (ES), a pouco mais que a gente chama de pluma, você consegue
de 100 km da capital, Vitória. Antes de Regên- ver o que é a descarga do rio”, diz Amorim. Com
cia, os rejeitos passaram por comunidades de o tempo, por turbulência, as águas se misturam.
três municípios capixabas: Baixo Guandu, Co- A oceanógrafa adotou o termo pluma ba-
latina e Linhares (onde fica Regência). Quatro sicamente pela falta de informações sobre a
dias antes de a lama chegar à foz, a Justiça composição do sedimento. “Quando a gente
Federal deu um prazo de 24 horas para a Sa- fala lama, a gente está estudando uma coisa
marco apresentar um plano de emergência específica. A gente entende e conhece todos
que diminuísse os estragos da lama no lito- os parâmetros do que a gente está estudando
ral, do contrário teria de pagar multa de R$ 10 e nesse caso a gente não conhecia”, explica.
milhões por dia descumprido. No dia seguin- A chegada da pluma de rejeitos de minério
te ao comunicado judicial, a empresa apre- ao mar também gerou estragos ainda não es-
sentou relatório com o que planejava fazer. timados ao ecossistema. Além dos peixes, ca-
Os planos, porém, não evitaram que as marões, caranguejos e outros animais com va-
águas do mar se tornassem avermelhadas. lor econômico, seres menores morreram. Eles
“Eles contrataram uma empresa que chama incluem organismos bentônicos, aqueles que
Ocean Impact, especialista em contenção de habitam o fundo dos ambientes aquáticos, e
vazamento de petróleo”, conta Alfredo Costa, planctônicos, que vivem suspensos em águas
consultor e geógrafo da Universidade Fede- salgadas ou doces. A morte desses seres afe-
ral de Minas Gerais (UFMG), que participou de ta também a fonte de sustento de Seu Braz e
expedição para coleta e análise de amostras de diversos pescadores no litoral capixaba.
de água do Rio Doce. “O cara da Samarco tava “Os peixes podem se alimentar de uma gran-
muito receptivo, explicou que eles iriam fazer a de variedade de organismos. Grupos de peixes
contenção da lama usando boia. E a gente fa- se alimentam de algas, outros se alimentam
lou assim ‘a lama vem por baixo, não vem por de crustáceos, e por aí vai. Mas o que importa
cima, vai adiantar nada…’. Só que não tem em- ali é que, independente dos organismos de que
presa no Brasil especializada em conter lama, esses peixes se alimentavam, toda a fauna e
não existe isso. Aí eles pegaram uma empresa flora que era bentônica, que estava sobre o fun-
que continha alguma coisa. Na hora que nós do oceânico, sobre o assoalho do mar daquela
falamos isso, eles começaram a fechar a cara.” área, toda essa fauna e flora foi soterrada. Então,
A barreira de boias de contenção para o impacto é gigantesco para qualquer comuni-
vazamento de óleo cruzou 9 km, de uma dade acompanhante que dependesse dessa
margem a outra do Rio Doce. Costa relem- fauna e flora”, explica Antônio Carlos Marques,
bra que, a pluma de rejeitos atravessou com biólogo da Universidade de São Paulo (USP).
54 Leito de morte

Contaminação da bacia do Rio Doce

Perto de completar um ano do rompi- Essa foi a segunda análise realizada


mento da barragem de Fundão, uma expe- pela Fundação. Em dezembro de 2015, a
dição realizada pela Fundação SOS Mata equipe visitou os mesmos locais e detec-
Atlântica, em parceria com a Universidade tou um IQA péssimo em 14 pontos de co-
Municipal de São Caetano do Sul (USCS), leta. Entre os metais encontrados acima
constatou que a água do Rio Doce continua dos valores permitidos pela legislação
contaminada em diversos pontos ao longo brasileira, estão o cobre e o manganês.
da bacia. A equipe responsável pela análi- A equipe concluiu no relatório da expe-
se coletou amostras da água em 17 pontos, dição que as atuais obras de reparação de
distribuídos em 29 regiões, entre distritos danos realizadas pela Samarco estão se
e municípios, no estado de Minas Gerais. concentrando na contenção do vazamen-
A expedição aconteceu entre os dias 19 to de mais rejeitos a partir do início do pe-
e 28 de outubro de 2016 e do total de pontos ríodo chuvoso. Os especialistas observam
de coleta, nove apresentaram o Índice de que também é necessário e emergencial
Qualidade da Água (IQA) como péssimo. O paralisar todos os despejos de rejeitos nas
IQA é uma medida adotada no Brasil na dé- demais barragens localizadas na região.
cada de 1970 para indicar as condições das Para promover a recuperação da bacia e
águas utilizadas em abastecimento público da qualidade da água, a equipe considera es-
e diversos outros usos, como irrigação e la- sencial o reflorestamento com espécies na-
zer, numa escala que vai de boa a péssima. tivas. Além disso, sugere a ampliação do sa-
Entre os locais que apresentaram IQA péssi- neamento básico e ambiental nos municípios
mo estão Barra Longa, São José do Goiabal como forma de diminuir as fontes de poluição
e Cachoeira Escura, todos em Minas Gerais. agravadas pelo rompimento da barragem

Antes do desastre, Marques estudava um ser “Além do imediato soterramento e sufo-


vivo muito raro, o cnidário da espécie Kishinouyea camento pela lama, temos que considerar a
corbini, uma pequena água-viva encontrada em toxicidade dos metais presentes na pluma,
poucos lugares do mundo. Um desses lugares estudos que ainda estão em andamento. Esta
era a Praia dos Padres, município de Aracruz (ES), toxicidade pode ser acumulada na cadeia ali-
ao sul da foz do Rio Doce. A pluma de rejeitos teve mentar. As espécies estão relacionadas entre
um impacto devastador sobre a espécie. O bió- si, então o impacto em uma espécie pode gerar
logo explica que ela foi provavelmente extinta, um impacto indireto em outra. Presas e preda-
mas que ainda é cedo para dizer com certeza. dores, por exemplo”, destaca Lucília de Souza
“A fauna daquela região era uma fauna mui- Miranda, pesquisadora do Instituto de Biociên-
to rica. E, ao mesmo tempo que era uma fauna cias da USP e colega de Marques no estudo dos
muito rica, infelizmente era uma fauna pouco cnidários – representados por hidras, águas-
conhecida, pouco documentada. Isso mais -vivas, medusas, corais e anêmonas-do-mar.
uma vez mostra que a gente perdeu a chance de
conhecimento primário e todos os desdobra-
mentos que a gente teria desses conhecimen- Falta divulgação
tos primários, que poderiam ser inclusive apli-
cados para nosso uso, para nosso cotidiano, A certeza da presença da pluma de rejeitos
por causa desse acidente”, lamenta Marques. no litoral capixaba não é consenso para parte
Leito de morte 55

da população. É o caso do comerciante Fá- entanto, reverteram durante quatro dias devi-
bio Roberto Gama Vieira, de 55 anos. Morador do à entrada de uma frente fria e arrastaram
de Urussuquara, em São Mateus (ES), Fábio é a pluma para mais longe ao norte, alcançan-
dono de uma pousada que leva o mesmo nome do regiões do litoral capixaba como Degredo,
da vila. Segundo ele, o receio da chegada da Pontal do Ipiranga, Urussuquara e Barra Seca.
lama na região impactou os negócios: “A lama “Quando chegou em Vitória, a pluma foi advec-
da Samarco afetou porque se eu te mostrar ali tada [deslocada horizontalmente] sobre a plata-
um email, todos falam assim: ‘E a lama, chegou forma e passou a circular mais para fora do ocea-
aí?’. Todos perguntam. Aí a gente tem que ex- no”, explica Amorim. “Quando esse vento reverteu,
plicar que nós estamos a 80 km da foz do Rio essa pluma norte aumentou um pouco. O pior ce-
Doce, os ventos predominantes e as correntes nário para norte é um vento de sul, que na nossa
são nordeste. Eu não sei, sempre eu questio- simulação chegou a 80 km ao norte da foz do Rio
no com os outros segmentos, pescadores, Doce. Para este cenário, toda a região a 80 km ao
outras atividades, o que há de real nisso aí”. norte da foz do Rio Doce está diretamente afetada
A dúvida de Fábio quanto à presença da pela pluma”, detalha a oceanógrafa em entrevista.
lama em Urussuquara, por outro lado, não é Ao sul, os autores do estudo mostram que a plu-
resistente a provas concretas. O problema é ma chegou até Cabo de São Tomé, no litoral do Rio
que essas provas não chegam a ele, mesmo de Janeiro. Como o período de análise se restringiu
que existam. “Não, nada, ninguém me provou a novembro, dezembro e janeiro, os autores obser-
nada até agora. Não vi… Vocês têm algum vam que existe a possibilidade de que, na época
laudo? Alguém tem? Na hora que você achar, com maior predominância do vento sul, a pluma
manda no meu e-mail: ‘Aqui, Fábio, pára de co- tenha chegado ainda mais longe ao norte. Além de
mer’”, responde Fábio, rindo, quando pergun- Fabíola Amorim, o estudo foi realizado por pes-
tado se tem medo de comer o peixe da região. quisadores da Universidade de Aveiro, em Por-
Apesar das coletas e relatórios produzidos tugal, da Universidade Federal do Rio de Janeiro
por órgãos governamentais e pesquisas inde- (UFRJ) e do Instituto Espanhol de Oceanografia.
pendentes conduzidas por universidades, exis- O pescador e construtor de barcos Simião
te pouca divulgação sobre o alcance da pluma Barbosa dos Santos, de 74 anos, que também é


de rejeitos no litoral brasileiro. Uma das mais presidente da Associação de Pescadores e Asse-
frequentes queixas de moradores de comuni- melhados de Povoação, vila do município de Linha-
dades impactadas no Espírito Santo é a falta res (ES) localizada perto da foz do Rio Doce, perce-
de esclarecimentos sobre as atuais condições beu essa dinâmica das águas descrita no estudo.
da fauna marinha e da contaminação da água.
A oceanógrafa Fabíola Amorim é coauto- A água ficou assim, numa cor de laranja bem
ra de um dos estudos realizados na região, forte, aquele alaranjado. E grossa, aquela água
publicado em agosto de 2016 na revista es- grossa. No rio [Doce]. O mar também chegou a
pecializada Marine Pollution Bulletin. Uma equipe ficar do mesmo jeito, só que no mar ela foi espa-
de oceanógrafos analisou uma simulação da lhando, espalhando, espalhando. Mas quando
dinâmica da pluma do Rio Doce durante dois ela chegou no mar, no primeiro dia, o vento tava
meses – desde a chegada ao oceano, em no- soprando do sul. Soprando do sul, a água vem
vembro, até janeiro. Em seguida, os pesquisa- toda pra cá, pro norte. Então nós aqui do norte, o
dores compararam o modelo simulado com mar ficou uma coisa horrível. Ficou feio, feio mes-
as imagens de dois satélites, que confirmaram mo. Aí depois, quando muda o vento, a corrente,
os movimentos da pluma ao longo da costa. já passou a água a correr pro sul. Aí já começou a
Em boa parte do período de análise, como contaminar pra lá, pro lado de Riacho, pra aquelas
destaca Amorim, os ventos predominantes região pra lá. Mas assim, o mar é aquilo: dá o vento
eram aqueles vindos de norte, que levaram sul, a água vem pra cá, dá o vento norte, vai pra lá.
a pluma para o sul. Devido a outros fatores Fica assim. Dá o vento leste, aí joga tudo pra beira,
como a maré e correntes marítimas, a pluma tudo pra costa. Desse jeito. O rio vem direto, né? Só
alcançou 50 km ao norte da foz. Os ventos, no descendo. Mas o mar vai pra um lado e pro outro.
56 Leito de morte

Foto Arquivo pessoal/Antônio Carlos Marques

Um importante conheci-
mento que pode ter sido
perdido com o soterramen-
to das K. corbini é sobre
a composição do veneno
produzido pela espécie,
segundo o biólogo Antônio
Marques. “Esses venenos
são toxinas desconhecidas.
Muitas dessas toxinas
podem ter serventias, por
exemplo, na área biomé-
dica. É uma área muito
importante do conhecimen-
to farmacêutico”, observa
Marques.


Pesquisadores do Instituto Chico Mendes contaminação, observam os pescadores. A di-
de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), ór- ferença no aspecto dos animais foi percebida
gão vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, com facilidade pelo pescador Seu Braz.
também fizeram um monitoramento próprio da
extensão da pluma. Eles compararam imagens Na hora que eu vou abrir a barriga da man-
de satélite com observações feitas a partir de juba pra fazer assadinha... abri a barriga, ‘isso
um sobrevoo de helicóptero por todo o litoral ca- aqui não é ova!’, era lama. Joguei tudo fora. Jo-
pixaba em abril de 2016. O estudo indica que há guei fora mesmo. Tem três meses mais ou me-
presença ininterrupta da pluma de Vitória até o nos. Eu não como não. Daqui não. É lama que


norte do estado, no município de Conceição da tem na barriga. Abre um peixe do Rio Doce ago-
Barra, em forma concentrada na região mais ra pra ver se não é vermelho. Do mar eu não sei,
próxima à costa e menos densa até distâncias que eu não pesco no mar. Mas se eu abrir e for
a aproximadamente 40 km da costa. Segun- vermelho, não como também não. Tipo ova,
do João Carlos Alciati Thomé, coordenador do as tripa avermelhada. Não dá pra comer não.
Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Se eu compro um peixe do mar, abro a barri-
Tartarugas Marinhas, do Instituto Chico Men- ga primeiro pra espiar. Como galinha mesmo,
des de Conservação da Biodiversidade (Centro que galinha não tem como atrapalhar não.
Tamar-ICMBio), além de toda a costa do Espí-
rito Santo, a pluma de rejeitos alcançou o nor- Outro pescador que se impressionou
te do Rio de Janeiro e o extremo sul da Bahia, com as mudanças provocadas pela conta-
atingindo unidades de conservação marinhas. minação do mar com a chegada da pluma
de rejeitos foi Gilmar Abelina, de 46 anos,
morador de Urussuquara, ao norte de Pon-
Barriga de lama tal do Ipiranga, no município capixaba de
São Mateus. Há mais de quatro anos, Gilmar
As espécies de peixes que sobreviveram à trabalha como voluntário para um projeto
falta de oxigênio e alimento não escaparam à socioambiental da Petrobras, que atua na

Leito de morte 57

O mar é aquilo: dá o vento sul, a água vem pra cá, dá o ven-


to norte, vai pra lá. Fica assim. Dá o vento leste, aí joga tudo
pra beira, tudo pra costa. Desse jeito. O rio vem direto, né?
Só descendo. Mas o mar vai pra um lado e pro outro
Simião Barbosa dos Santos, presidente da Associação
de Pescadores de Povoação

Os perigos dos
metais encontrados

Vários pescadores e moradores da foz Cobre


e do norte da foz do Rio Doce, como Eliane
Balke, relataram problemas de pele depois O excesso de cobre no sangue pode
do contato com a água do mar e do Rio gerar náuseas, vômitos, diarreia e até a
Ipiranga. Irritação, coceira, vermelhidão e morte. Transtornos neuromotores, como
formação de bolhas são algumas das recla- tremores, rigidez, perda da coordenação
mações. Não há informações conclusivas muscular, movimentos involuntários, e
sobre a relação entre os rejeitos de mine- outros, também aparecem como riscos. O
ração e a saúde humana, mas é possível cobre pode desencadear também cirrose,
reunir alguns problemas de saúde ocasio- lesões nos tubos do rim e osteoporose,
nados pelos metais pesados encontrados entre outros sintomas.
no litoral capixaba.
Não estão listadas todas as complica-
Chumbo
ções possivelmente geradas pelos elemen-
tos e a contaminação depende de vários fa-
O chumbo pode afetar crianças e adul-
tores. A lista, feita com base em relatório da
tos em concentrações relativamente bai-
Rede Nacional de Médicas e Médicos Popu-
xas. A exposição pode gerar uma doença
lares, foi montada apenas para mostrar que
chamada plumbismo, que afeta pratica-
os metais detectados podem trazer riscos
mente todos os órgãos e sistemas do corpo
para os seres humanos.
e gera sintomas como hiperatividade, per-
da de coordenação motora e de memória,
entre outros. A exposição prolongada pode
Arsênio causar anemia, além de doença renal pro-
gressiva e irreversível e câncer.
A ingestão de arsênio pode levar a san-
gramento no trato gastrointestinal e hipo-
volemia, que gera náusea, dor abdominal, Cádmio
vômitos e diarreia. Os efeitos neurológicos
incluem dor de cabeça, perda de memória, Assim como os outros metais, a contamina-
irritabilidade, agitação, confusão mental, ção por cádmio pode causar náusea, vômitos,
delírios e alucinações. Em casos mais gra- diarreia e dores abdominais. A exposição por
ves, pode haver convulsões. O arsênio tam- longos períodos pode causar doença pulmo-
bém pode gerar envenenamento para os nar crônica, enfisema e distúrbio crônicos dos
rins e lesões na pele. A médio e longo pra- túbulos renais. No Japão, foram registrados ca-
zos, o elemento pode causar câncer, sur- sos de uma doença causadora de extrema dor,
dez, lesões no fígado, anemia, entre vários fragilidade dos ossos e danos aos rins.
outros problemas de saúde.
58 Leito de morte

“ “
preservação de animais marinhos. Entre as ranguejo e pescadora Adenísia da Silva, de 32
atividades que realiza, Gilmar é responsável anos, notou outras alterações.
por dar o alerta à equipe que recolhe animais
mortos ou encalhados na praia para análises. A característica do caranguejo, o casco
dele tá enfraquecido, você anda no mangue,
A gente estava acostumado a ver tarta- há muitos caranguejos mortos, muitos sem
ruga ferida de rede, porque fica as marcas as patas; a gente vê a lama que não é mais
quando elas caem na rede. Agora não. Agora aquela lama natural... a lama natural ela era
é tudo agonizando. Você vê a focinheira san- uma lama viva e hoje não encontra mais uma
grando, sangrando a boca, e nenhuma ferida lama viva. Encontra aquelas lama com nata,

” ”
de rede. As tartarugas aqui tá podre na bei- com mau cheiro. As árvores, o mangue quan-
ra da praia e os urubus tão do lado olhando. do tá brotando, não vem aquele mangue for-
Não quer comer não. Uma coisa que eu ad- te, vem aquele mangue fraco. Um mangue
mirei foi isso. Eu ficava esperando o pessoal forte pra gente é aquele mangue que cresce
da empresa chegar e ficava observando os as folhas vivas, um verde... e hoje tá crescen-
urubus. Os urubus chegavam, davam duas, do umas folhas só brotinho, com pequenas
três beliscadinhas e saía fora. E eu só obser- folhagens, amarelado. No nosso linguajar a
vando. Eles sabem que não é pra eles comer. gente fala assim. Não sei como é os biólo-
gos, como que falam. Mas a gente conver-
Nos manguezais de Nativo, no litoral do mu- sa assim, ‘firme’, ‘forte’. Se vocês chegarem
nicípio de São Mateus (ES), a catadora de ca- no mangue, vocês vão ver que tá diferente.

Foto Luana Melody Brasil


Simião Barbosa dos Santos
constrói barcos para rio e
para mar como uma renda
extra da pescaria. Na foto,
o pescador está finalizan-
do um barco para rio, no
valor de R$ 2 mil. Nos anos
anteriores, Simião vendia em
média três barcos por mês.
Com a crise financeira do
país somada aos impactos
ambientais da lama de
rejeitos, as vendas caíram
para quatro barcos em dez
meses, de novembro de 2015
a setembro de 2016
Leito de morte 59


A catadora de caranguejo e siri Creusa Campello, para a saúde humana, “uma vez que não dispo-
de 52 anos, moradora de Campo Grande de Barra nibiliza contaminantes para a água, mesmo em
Nova, em São Mateus (ES), observa que, além de mor- condições de exposição à chuva. Ele é compos-
rer em pouco tempo, os bichos têm gosto estranho. to basicamente de água, partículas de óxidos
de ferro e sílica (ou quartzo)”. A mineradora se
A gente vende vivo. Mas ficava ali uma se- baseia em análise do SGS Geosol, um laborató-
mana, eu trabalhando o caranguejo e não rio especializado em análises ambientais, mine-
morria. Agora, com dois dias o caranguejo já rais e petroquímicos, que coletou amostras da
tá morto. Pego num dia, no outro já tá morren- água em pontos próximos à barragem rompida.


do tudo. A gente não vende morto, a gente só “Os relatórios são completamente diver-
vende vivo. A gente não tá conseguindo ven- gentes”, afirma Miguel Fernandes Felippe,
der como antes. Chegava o freguês, pegava líder do Grupo Temáticas Especiais Relacio-
cinco dúzias, dez dúzias... fresquinho. Ele fica nadas ao Relevo e à Água (Terra) e professor
amarelo por dentro, a carne dele fica amare- do Departamento de Geociências da Univer-
la. Era branquinha. Agora até o gosto dele é sidade Federal de Juiz de Fora. “A gente tem
diferente, nem eu entendo. É mais diferente relatórios que fizeram análise da qualidade
de tudo que era antes. Quase não tem sabor. da água e não encontraram metais pesados.
O relatório da CPRM [Companhia de Pesqui-
As desconfianças de quem tem contato di- sa de Recursos Minerais], encontrou alguns
ário com as espécies de peixes e crustáceos teores de metais; mas os metais pesados
foram em parte confirmadas em estudo de bi- mais tóxicos, mais problemáticos, eles não
ólogos da Universidade Federal do Rio Grande encontraram, por exemplo não encontraram
(FURG), em parceria com o ICMBio. De acordo arsênio. E a gente tem relatórios de grupos de
com João Carlos Alciati Thomé, coordenador pesquisas que encontraram arsênio na água.”
do Centro Tamar-ICMBio, a análise encontrou Felippe explica que é importante determi-
níveis de arsênio e cádmio acima dos níveis nar se existem ou não metais pesados na água
permitidos pela legislação em amostras de que é consumida por animais e populações hu-
músculo de peixes e camarões coletadas na manas, além da agricultura, porque são metais
foz do Rio Doce e ao longo do litoral capixaba. que se acumulam nos rios. “Hoje, falar de quali-
Não há, no entanto, indicação de quais áre- dade da água no Rio Doce está muito complica-
as possuem um padrão de pescados conta- do porque a gente não sabe em quem confiar.”
minados, como observa Thomé: “Para peixes Em expedição realizada em janeiro de 2016,
e crustáceos, não houve um padrão espacial o Grupo Terra encontrou em amostras de água
de distribuição bem definido na área de es- metais como ferro, alumínio e manganês com
tudo. Este fato pode estar associado à maior valores acima do padrão estabelecido pelo
capacidade de mobilidade desses animais”. Conselho Nacional do Meio Ambiente (Cona-
O mesmo trabalho mediu concentrações de ma). Além desses metais, a equipe também
metais pesados na água. Arsênio, cádmio, co- identificou em vários pontos de coleta de água
bre e chumbo foram detectados em diferen- altos níveis de titânio e paládio, que não pos-
tes concentrações em toda a área do estudo, suem valores de referência na legislação bra-
que inclui a foz do Rio Doce e o litoral capixaba, sileira por não serem comuns na natureza.
dos municípios de Aracruz (ao sul da foz) até
São Mateus (ao norte), passando por Linhares.
Fanta laranja

Divergências “Quando o vento sul jogou a lama pra cá, o


mar ficou da cor de fanta. A gente acredita que a
De acordo com publicação no site oficial da lama tá aqui porque aqui nós não temos a lama
Samarco, por outro lado, o rejeito depositado na praia nem no rio [Ipiranga]. A gente tem aqui
em Fundão não é tóxico e não representa risco areia. Agora, tá cheio de lama. E é uma lama que
60 Leito de morte

Foto Victor Pires

Há dez anos, Gilmar Abelina pesca em rio e beira de praia. Ele diz que não acreditava que a pluma de rejeitos chegaria tão longe, a
ponto de alcançar praias ao norte da foz do Rio Doce. Gilmar lembra que os pescadores da beira das praias de Degredo, Barra Seca e
Urussuquara, todas no Espírito Santo, pegavam peixes em poucos minutos. “Agora eu fico lá de cima olhando… o cara joga o molinete
[tipo de vara de pesca], abre a cerveja e vira até de costas… Não tem nada!”, conta Gilmar
Leito de morte 61

parece que tem uma liga e a cor dela é cor de


fanta. Uma cor amarelada que nem barro dá pra
dizer que é, que é uma lama que brilha, meio bri-
lhosa”, conta a pescadora e catadora de siri Elia-
ne Balke, de 49 anos, moradora de Urussuquara.
O material de cor alaranjada que impres-
sionou Eliane provoca o que os órgãos gover-
namentais e a Samarco chamam de turbidez.
O biólogo Dante Pavan, idealizador do Grupo
Independente para Avaliação do Impacto Am-
biental (Giaia), explica: “Turbidez é a capacidade
que a água tem de reter a luz por conta de par-
tículas sólidas que estão em suspensão. Então
uma água com alta turbidez significa que tem
muito sólido e que a luz não penetra na água”.
Foi por conta dessa alteração na tonalida-
de da água que o ICMBio e o governo do Espírito
Santo interditaram preventivamente e por tempo
indeterminado, em janeiro de 2016, as praias de
Regência, Povoação e Comboios, esta última no
município de Aracruz, ao sul da foz, para recreação.
Segundo explicação da Samarco publica-
da no site oficial, a turbidez é causada por uma
mistura de “partículas sólidas de óxidos de fer-
ro e sílica (areia) ou quartzo”. Uma descrição
considerada insuficiente por Dante Pavan. “Na
primeira fase do acidente, a quantidade de só-
lidos em suspensão era altíssima. E a Samarco
divulgou isso como turbidez. Agora a questão
é que a turbidez não é uma medida que qua-
lifica os sólidos. Pode ser chumbo, pode ser
ferro, pode ser qualquer coisa a turbidez. Eu
vejo isso como proposital, chamar de turbi-
dez pra não falar o que é. Essas análises não
dão uma medida exata da toxicidade”, critica.
A composição da turbidez da água do Rio
Doce e do oceano na costa capixaba não é
a única questão que continua com respos-
tas vagas. O pescador de Regência, comu-
nidade da foz do Rio Doce, Élcio José Souza
de Oliveira, mais conhecido na comunidade
como Zé de Sabino, de 52 anos, não compre-
ende a quietude dos órgãos governamen-
tais e das mineradoras responsáveis pela
tragédia em relação à poluição das águas.

Aparentemente eu vejo que a água tá limpa.


A olho nu a gente vê que ela tá limpa. Mas no
fundo, no chão, no solo, quando eu passo com
o barco em lugar raso, e que encosta no chão,
62 Leito de morte

aí levanta uma água vermelha. Então há de se de frente fria, e quando tem entrada de fren-
ver que tem sujeira no fundo ainda do rio [Doce]. te fria do sul, o norte fica mais agitado; ele
Mas como é que vai fazer com essa poluição [material], por sua vez, se ressuspende, e de-
do fundo do rio? Como é que vai tirar isso? É por pois leva um tempo para decantar de novo.”
isso que tá proibido a pesca então, por causa

”“
da sujeira? Que de fato tem sujeira. Até quan-
do vai ficar essa sujeira no rio? Minha preocu- Plantas que choram água
pação é essa. A minha impressão, eu que sou Preocupado com o futuro da bacia do Rio
leigo, não entendo, mas se tem animais é sinal Doce e do litoral capixaba, o pescador Braz
de que a vida não tá tão difícil e poluída como Fernandes sugere algumas iniciativas para
o pessoal fala. Mas ninguém dá uma resposta, acelerar a recuperação do ecossistema.
ninguém solta um laudo, dá um resultado, uma
análise. Não sai nada, só fala que tá proibido. Eu acho que tinha que reflorestar as nascen-
tes de água. Agora, o que gera mais água é bana-


O geógrafo Roberto Vervloet, do Institu- neira, inhame e taioba. Gera água. Onde tem nas-
to Estadual de Meio Ambiente e Recursos cente, pode ver, tem bananeira, taioba e inhame.
Hídricos do Espírito Santo (IEMA-ES), expli- É onde cria mais água, não sei qual é o misté-
ca a mudança na turbidez da água do mar rio. Já o eucalipto não, o eucalipto faz é sugar a
observada por Zé de Sabino. “Esse material água. Reflorestar ela com ingazeira, genipapo
chegou na foz do Rio Doce, atingiu o mar e ou qualquer árvore que plantar gera água, ago-
foi espalhado ao longo da costa. Quando o ra igual a bananeira, o inhame e a taioba não. A
mar se acalma, ele decanta. Quando tem en- taioba chora muita água e a bananeira também.
trada de frentes frias, o mar se agita, ele se
ressuspende novamente e aí se espalha ao Segundo resposta da Samarco por meio da
longo da linha de costa. Hoje está espalhado assessoria de comunicação, foram recupera-
da região de Guarapari até o norte do Espírito dos 39 afluentes contaminados. Além disso,
Santo. Porque a gente está tendo entradas “foi dado início ao projeto de recuperação das

Desde a chegada da pluma de rejeitos nas praias da foz e ao norte da foz do Rio Doce, moradores têm encontrado diversos peixes e
outros animais marinhos mortos na praia. Eles contam que esse fenômeno não era comum na região
Leito de morte 63

Foto Victor Pires

Na praia de Urussuquara, no lado mais próximo ao Rio Ipiranga, moradores locais, como Eliane e Gilmar, notam a diferença na colora-
ção e aspecto da areia, atribuindo a mudança à presença dos rejeitos de minério

5.000 nascentes, sendo que atualmente 500 da biodiversidade é destruição dos habitats”.
encontram-se em processo de reabilitação”. Na visão de Dante Pavan, as universidades
Essas ações para diminuir os impactos causa- deveriam se mobilizar para encontrar respos-
dos pelo rompimento da barragem estão pre- tas que auxiliem numa possível recuperação
vistas no Termo de Transação de Ajustamento do meio ambiente e na compreensão do de-
de Conduta (TTAC). Mais conhecido por “Acor- sastre em seus diversos aspectos. “Existe uma
do”, esse documento foi assinado em março insensibilidade das universidades em relação
de 2016 pela Samarco, suas acionistas Vale e ao que acontece no Brasil; não existe um sen-
BHP Billiton, o governo federal e os governos so de responsabilidade de que ela é financiada
estaduais de Minas Gerais e Espírito Santo. pelo dinheiro público e que ela teria que aju-
Foto Eliane Balke/Arquivo pessoal

dar a sociedade de alguma forma”, critica ele.


“Seria importante entender isso pra evitar
Riscos ambientais outros acidentes ou saber o que fazer em caso
de outros acidentes como esse. Por outro lado,
Para além da mineradora, Apolo Heringer uma concentração tão alta e durante tanto
Lisboa, fundador do Comitê da Bacia Hidro- tempo, estudar o efeito do ferro numa situação
gráfica do Rio São Francisco e professor da Fa- extrema dessa é uma forma de entender o pa-
culdade de Medicina da Universidade Federal pel do ferro no meio ambiente. Vai além do aci-
de Minas Gerais (UFMG), chama atenção para dente. A correnteza do rio e o que ela transporta
iniciativas perigosas que possam ser tomadas influencia a diversidade biológica, a diversida-
individualmente, como projetos socioambien- de de paisagens ao longo do rio. Isso tudo está
tais de comunidades e ONGs para restauração sendo muito desperdiçado”, adverte o biólogo.
do ecossistema. “O Rio Doce, nós não sabemos
como vai ser essa recuperação. Provavelmen- Não vai sair
te vai recuperar, mas é muito perigoso que
haja muita interação humana desencontra- “Acredito que ainda vai vir muito rejeito. Pelo
da. O perigo também é espécie exótica, ficar que eu vi lá, ainda vai vir muito rejeito pelo Rio Doce.
criando tilápia. A primeira causa da extinção Vão ser anos, anos e anos ainda recebendo esse
64 Leito de morte

Foto Luana Melody Brasil


rejeito. Não vai parar agora não. E agora, as próxi-
Séculos de tormento mas chuvas, que começam no mês que vem aqui
do Rio Doce na nossa região e no Estado de Minas Gerais... Eu
tô bastante preocupada”. A suspeita da pesca-
dora Eliane Balke de que os rejeitos de minério
continuarão na natureza por muito tempo não é
O rompimento da barragem de Fun- sem razão. Em setembro de 2016, Eliane visitou
dão foi o golpe final no Rio Doce, de acor- as cidades de Bento Rodrigues e Paracatu de Bai-
do com Apolo Heringer Lisboa, fundador xo, em excursão organizada pelo Movimento dos
do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Atingidos por Barragens (MAB), e se impressionou
São Francisco e professor da Faculdade com os montes de terra avermelhada que ago-
de Medicina da Universidade Federal de ra compõem o cenário das cidades destruídas.
Minas Gerais (UFMG). Segundo o ambien- Pouco tempo depois do rompimento da
talista, o rio já sofria há séculos com o barragem, quando a lama estava quase seca,
despejo de metais, esgoto, agrotóxicos, moradores contam que as máquinas da Sa-
rejeitos industriais, lixo e pesticidas em marco abriram caminhos entre os escombros
para permitir que as populações resgatas-
seu leito, além do desmatamento para
sem pertences nas casas das antigas cida-
criação de estradas de ferro e agrope-
des. Essa abertura criou barrancos de uma
cuária. No ranking do Instituto Brasilei- poeira fina, que levanta nuvem mesmo com
ro de Geografia e Estatística (IBGE), o brisa leve. A poeira, mais funda em alguns
Rio Doce aparece no 10º lugar dos rios pontos, compõe os montes vistos por Eliane.
mais poluídos do país. Dos 230 municí- O geógrafo Miguel Fernandes Felippe tem
pios localizados ao longo da bacia, em uma observação semelhante à da pescado-
Minas Gerais e Espírito Santo, somente ra. “As planícies foram todas ocupadas nesse
19 tratam resíduos de esgoto, de acordo trecho inicial, tem um pacote de rejeitos bas-
com levantamento realizado por órgãos tante espesso em cima das planícies. A chuva
ambientais dos estados de Minas Ge- lava esse material e joga ele no rio. Então na
rais e Espírito Santo divulgado em 2010. verdade não é só o tempo que o material de-
“O massacre da bacia do Rio Doce mora para percorrer os rios, é o tempo que vai
demorar para esse material que está estabili-
vem desde a segunda metade do século
zado ser mobilizado para os rios e depois sair
18, intensificou no século 19 e mais ainda
para o oceano. A gente não sabe bem ainda o
no século 20, por causa das novas tec- volume desse material que está depositado,
nologias, porque aí já tinha trator, side- onde está depositado. Se a gente não sabe
rúrgica, agrotóxicos... As empresas mine- isso, a gente não tem como saber o tempo que
radoras e o governo não assumem essa vai demorar para isso ser retirado do sistema.”
responsabilidade”, analisa Apolo Herin- Felippe chama atenção também para o
ger Lisboa. O engenheiro agrônomo Lu- vazamento de lama de rejeitos, que foi iden-
cas Celso de Oliveira complementa: “Na tificado em Fundão em janeiro de 2016. “Até a
agricultura, se a gente for ver a margem última informação que eu tive, as responsá-
do Rio Doce, ela é toda cheia de pasta- veis pela barragem não tinham conseguido
gem degradada. Nessa região de Belo ainda eliminar completamente o vazamen-
Oriente [em Minas Gerais] eu vi isso bem to. Com os dados disponíveis hoje, qualquer
estudo preditivo do tempo de recuperação
claro. Por exemplo, onde seria a mata ci-
do rio é especulação. A gente não está fa-
liar do Rio Doce, passa o trilho do trem do
lando aqui em meses, a gente está falando
minério de ferro e a outra margem tem em anos, alguns estão falando em décadas.”
um monte de pastagem degradada”. O geográfo Roberto Vervloet segue com a
mesma visão. “Esse processo vai se repetir ao
Leito de morte

Sedimentos da lama que destruiu Bento Rodrigues (MG) predominam na paisagem da entrada da vila. Ao secar, a lama se tornou
uma poeira que dificulta a respiração. Não é uma poeira apenas visível na caminhada pela região, mas que também se sente, espe-
cialmente no desconforto causado na garganta
66 Leito de morte

Foto Victor Pires

Rones Coutinho Passos sente saudades de pescar no rio e na praia próximos à aldeia onde mora. O pescador, que também dá aulas
de ciências e matemática na aldeia, lembra que ia ao rio e à praia antes e depois das aulas. “Eu tenho meu material de pesca aí. Tá
tudo aí parado”, reclama
Leito de morte 67

longo de muitos e muitos anos, mesmo porque


o material que está espalhado ao longo do Rio
Gualaxo e do Rio do Carmo não está retido. Toda
vez que chove na região, o nível do Rio Gualaxo
e do Rio do Carmo sobe e esse material vem
descendo aos poucos. Então ainda tem 16 mi-
lhões de metros cúbicos de rejeitos de minério
espalhados nas cabeceiras, que está lá e que
quando a chuva vier, esse material vai descer,
porque a Samarco não retirou esse material
até hoje. Os impactos disso vão se prolon-
gar. Pelos próximos dez, quinze, vinte anos,
a gente ainda vai sentir os problemas disso.”
Com uma aposta otimista, Apolo Heringer Lis-
boa acredita que as chuvas devem limpar e nor-
malizar a bacia do Rio Doce. “Os rios têm afluen-
tes. Aí o peixe foge da lama. Na medida que vem a
chuva, vai limpando. Alguns bichinhos começam
a sobreviver. Aí no futuro muitos desses peixes
vão voltar. Não vai levar muito tempo. A água vai
lavando, tem o sol e vai normalizando aos pou-
cos. A chuva parou, as nascentes estão secan-
do. O rio está com pouca água e muita lama, mas
vai ficando cada vez mais discreto”, avalia Lisboa.
Elza Raimundo da Silva, 59 anos, funcio-
nária pública e moradora do distrito de Barra
Seca, em Linhares (ES), acompanha, com res-
salvas, a opinião do médico e ambientalista.
“Eu acho que vai melhorar. Porque vem muito
volume de água, vai tirando fora, vai desapare-
cendo. Eu penso que essa lama vai acabar, vai
sair pra outro lugar e aqui vai ficar mais purifica-
do. Esse é o meu pensamento, mas eu sei que
no fundo, no fundo essa lama nunca vai sair.”

Bento Rodrigues alagada

Quando a barragem de Fundão rompeu, esta-


vam armazenados mais de 50 milhões de metros
cúbicos de rejeitos de minério. No entanto, apenas
uma parte desse volume desceu na avalanche
de lama. Aproximadamente 20 milhões de me-
tros cúbicos continuaram dentro da barragem.
Devido a um vazamento que ainda não foi contro-
lado, esse volume continua sendo arrastado para
o meio ambiente cada vez que chove na região.
Para evitar que as chuvas carreguem mais
rejeitos sedimentados no distrito de Bento
Rodrigues para o Rio Doce, o governo de Mi-
68 Leito de morte

nas Gerais autorizou em setembro de 2016 a já estão fazendo em terras de atingidos. Tá


construção do quarto dique na região, chama- gerando muita revolta, porque o pessoal quer
do de S4, como uma forma de conter o escoa- preservar a memória daquele lugar, daquele
mento de lama. De acordo com publicação no território. Eles falam que é pra conter, mas vai
site oficial da Samarco, “a decisão do Governo virar uma nova barragem de rejeitos”, suspei-
amparou-se na urgência de reforçar o siste- ta. Segundo a mesma publicação no site da
ma de contenção de sedimentos no Comple- Samarco, todos os proprietários das antigas
xo Minerário de Germano, considerando-se casas de Bento Rodrigues serão indenizados
que o início do período chuvoso está próximo”. pelo uso das áreas para a construção do dique.
A autorização para a construção da me- O geógrafo Miguel Fernandes Felippe, da
dida de contenção da lama dependia de um Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF),
laudo técnico expedido pela Secretaria de afirma que ainda não foram disponibilizados
Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Samarco dados precisos sobre a exten-
Sustentável de Minas Gerais (Semad). Segun- são da área de Bento Rodrigues que será ala-
do o documento, “a Samarco Mineração S/A gada com a construção do dique. “Apesar de
fica autorizada a promover todas as medidas já ter solicitado, nosso grupo de pesquisa não
necessárias à construção e implantação conseguiu os dados topográficos de alta reso-
emergencial do Dique S4 no terreno descrito”. lução da área. Com isso, não posso fazer pro-
Apesar da urgência, as obras, que deve- jeções sobre a extensão do alagamento/ater-
riam evitar uma nova onda de rejeitos de mi- ramento. Pelo que a Samarco fala, somente o
nério, estão atrasadas e não há previsão de fundo do vale será alagado (canal, planícies
que fiquem prontas antes do período de chu- e terraços), mas não sei se podemos confiar”,
vas no estado, segundo afirmação da presi- pondera. “Se for o caso, toda a parte baixa do
dente do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente distrito ficará alagada, mas a parte alta, não.
e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Há uma série de impactos sociais associados,
Suely Araújo. Durante coletiva de imprensa devido ao desaparecimento de locais de gran-
realizada em Belo Horizonte em fins de outu- de relevância no cotidiano das pessoas. A iden-
bro de 2016, o Instituto apresentou um balan- tidade da comunidade com o local é perdida.”
ço de ações e falhas na resolução dos danos Na visão do engenheiro e especialista em
causados após quase um ano da tragédia. política ambiental da UFJF Bruno Milanez, a bar-
Somente metade das obras de emergência ragem de Santarém seria a melhor opção num
foi realizada pela Samarco até julho de 2016. cenário emergencial para retenção dos rejeitos
A estimativa do Ibama, num cenário de chu- de minério. “A princípio a barragem de Santarém
va forte, era que um volume de dois milhões de continua operando (apesar de não ter tido sua
metros cúbicos de rejeitos de minério alcan- segurança assegurada pelo auditor no inventá-
çassem novamente o litoral capixaba. Devido à rio de barragens de 2015) e deveria estar fazen-
demora na contenção do vazamento de rejei- do o ‘polimento’ dos rejeitos que estão saindo
tos e de outras medidas de precaução exigidas da barragem de Fundão. Em teoria, a Samarco
pelo Ibama antes do início do período chuvoso, poderia reconfigurar essa barragem para au-
a empresa foi autuada no dia primeiro de no- mentar o tempo de retenção da água e aumen-
vembro de 2016 com multa diária de R$ 500 mil. tar sua eficiência de material em suspensão.”
Existe, no entanto, um impasse sobre a Milanez observa ainda que a estrutura de
instalação do dique S4, pois ela implica no ala- uma barragem tende a reduzir a velocidade da
gamento do distrito de Bento Rodrigues. Essa água, o que permite a redução da turbidez. Se-
medida tem gerado indignação nos antigos gundo o engenheiro, essa era uma das princi-
moradores da comunidade destruída pela pais funções da barragem de Santarém, que fica
lama de rejeitos, como relata a psicóloga Ca- a jusante das barragens de Germano e Fundão.
milla Veras: “A gente fez uma audiência [em se- “As informações disponíveis nos meios de co-
tembro de 2016] em Belo Horizonte pra discutir municação não oferecem dados suficientes que
a questão do dique. Eles já estão construindo, justifiquem a escolha da construção do dique
Leito de morte 69

S4, em vez do uso de Santarém, ou mesmo de tado entre Bento Rodrigues e a UHE de Risoleta
mudanças em Fundão. Infelizmente a Samarco Neves que continuará sendo paulatinamente
não disponibilizou cartas ou mapas mostrando carregado pelas chuvas e pelo rio por um tempo
detalhes do projeto e os modelos que estimam indeterminado. Esse material modifica a dinâmi-
a área a ser alagada. Em seu site a empresa ca natural do rio, de seus sedimentos e seus am-
divulgou imagens ‘meramente ilustrativas’. bientes fluviais. Ou seja, é um novo rio, com ou-
Imagino que estudos mais profundos tenham tras características completamente diferentes
sido realizados e lamento que a empresa opte do Rio Doce que conhecíamos”, avalia Felippe.
por não divulgá-los para a população”, critica. O professor indígena Rones Coutinho Pas-
Com opinião semelhante à de Milanez, o geó- sos, de 38 anos, morador da aldeia indígena de
grafo Felippe, que lidera o grupo Temáticas Espe- Comboios, em Aracruz (ES), demonstra receio
ciais Relacionadas ao Relevo e à Água (Terra) da não só com a quantidade de rejeitos que as
UFJF, faz críticas ao projeto da construção do dique chuvas podem trazer de Fundão, mas também
em Bento Rodrigues e lembra que há ainda um se- com a possibilidade do rompimento de outras
gundo ponto da bacia do Rio Doce que conserva estruturas que podem liberar mais material con-
grande quantidade de material vindo de Fundão. taminante. “O que a gente espera é que tenha
Trata-se da Usina Hidrelétrica (UHE) de Riso- medidas mais de precaução mesmo pra outra
leta Neves, uma represa que segurou 10 milhões barragem não estourar. Porque se estourar... A
de metros cúbicos de rejeitos que desceram nossa vida tá um caos aqui, a gente não pode
após o rompimento da barragem, de acordo com nem ir na praia. A gente espera que seja tomada
vistoria realizada pelo Ibama em março de 2016. providência imediata, porque não pode deixar
“Há uma grande quantidade de material deposi- outra barragem estourar e mais gente morrer.”

Samarco foi multada pelo Ibama por não cumprir exigência de conter o vazamento de rejeitos até o dia
15 de setembro de 2016
Foto Reprodução
5
Onde
estão os
PEIXES?
“Do que eu sinto falta? Eu sinto falta de que antigamente a
gente ia pro mar e ficava cinco, seis dias por causa do tan-
to de peixe, tanto de camarão, tantas espécies que a gente
pegava. Aquilo lá era uma experiência legal, que a gente
fica lá fora, fica sossegado, esquece dos problemas. Mas
hoje, depois dessa tragédia, tem vezes que a gente não
pode ficar lá porque a gente não vai tirar nem pra pagar
o óleo. Vai ficar fazendo o que lá fora? Tem que voltar pra
beira. Aí você tem que voltar, ficar em casa esperando pra
ver se algum dia chega a ter peixe de novo
Paulo Costa, de 21 anos, pescador de Degredo (ES)
N
o meio de uma tarde em setembro uma noite quando, depois de uma bebedeira,
de 2016, duas panelas no fogão a le- às 3h da manhã, passava em frente à casa do
nha cozinhavam o jantar. A casa à amigo e ganhou três quilos de peixe. “O pessoal
beira da estrada não é grande, nem que passava aqui, eu falava assim: ‘Ei, leva um
precisa ser para abrigar o único morador. Na pouco de peixe procê aqui ó!’. Aí apanhava a sa-
porta, um panfleto sobre a tragédia ocorri- cola: ‘Toma, leva embora’”, confirma Sebastião.
da a mais de 600 km de distância está preso Hoje, nem sinal da abundância de meses
por quatro pregos. Nas frases impressas, não atrás. Ele teve de livrar-se de dois freezers: “Não
resta dúvida: não houve acidente, e sim crime. tinha nada pra botar dentro, né? Não tinha peixe
À primeira vista, o papel é o indício mais mais. Eu vou ficar fazendo o quê? Gastando ener-
evidente de que o desastre teve impactos na gia?”. E este é um luxo que não se pode permitir.
vida do pescador Sebastião Pereira, de 56 Já está com as contas atrasadas há meses e
anos. Há outros, no entanto: as redes há meses corre o risco – nada remoto – de ter a luz cortada.
sem uso, as geladeiras vazias, o aipim colhido Para Sebasitão, o medo de ser contami-
antes do tempo para garantir a alimentação nado ao consumir o peixe, quando consegue
nos dias difíceis... É preciso abrir as panelas pegar um, nem sempre fala mais alto do que
para ver outro sinal do desastre – ou não ver, a fome. “Se eu tiver com fome, o jeito é co-
para ser mais exato: não há peixe para o jantar. mer, pra sobreviver. Mas como você vê, sou
“Ah, hoje tem um arrozinho, um feijão. mais de comer essa banana verde cozida do
O papai chegou e trouxe. A gente tá prepa- que me arriscar. Não é que eles falam assim
rando. E eu como pouco também. A pes- ‘isso tá bom, rapaz’. Cê come hoje, mas não é
soa que é acostumada a comer muito, no amanhã que cê vai morrer não. Ele vai fican-
dia que falta comida, ele chora. E eu não, eu do, vai acumulando”, desconfia o pescador.
não almocei. Eu tô preparando porque eu O medo não muda o fato de que ele está
vou jantar. Aí eu vou dormir. Na dormida nin- “doido pra comer um peixe”. É uma das maio-
guém sente fome, né? Aí no outro dia que tá res saudades da vida que levava antigamente,
o negócio. Vamo partir pra onde?”, questiona. diz o pescador. “A geladeira ali não tem nada
Em 1970, o pai se mudou para Barra Seca, não, nada, nada, nada de peixe. Tá limpo. Mas
onde tinha um terreno, conta Sebastião. Ain- se tivesse alguma coisa ali, eu acredito que
da pequeno, ele lembra que viu um cunha- eu pegava e não tava precisando de reclamar
do pescando e se interessou. Aprendeu o de nada, nada… Eu estaria bem. Numa hora
ofício, foi “enganchando no negócio”. “E eu dessa eu tava descansando, barriga cheia…”.
gostei”, resume. Tanto que até hoje a ativida-
de é seu sustento, ou era, em dias melhores.
Antes da chegada da pluma de rejeitos Auxílio de emergência
ao mar e da contaminação do Rio Ipiranga,
entre a comunidade de Barra Seca, no muni- Sebastião diz que não recebeu nenhum
cípio de Linhares (ES), e o oceano, o pescador auxílio, da Samarco e de suas controlado-
não precisava da comida trazida pelo pai para ras, Vale e BHP Billiton. Sua esperança é que
escolher entre o almoço e o jantar. Mesmo a situação mude e ele passe a receber ao
que faltasse tudo, ele garante que não falta- menos o cartão de auxílio financeiro emer-
va peixe. Sebastião chegava a pescar 40 por gencial da Samarco, mesmo sabendo que
dia. Era peixe pra dar e vender, literalmente. isso não trará de volta a vida farta de peixe.
O pescador de Urussuquara – comunidade O cartão é uma compensação da Samarco
no município de São Mateus (ES) colada em Bar- para as pessoas cadastradas pela minera-
ra Seca – Gilmar Abelina, de 46 anos, lembra de dora que perderam suas fontes de renda com
72 Onde estão os peixes?

“Ah, hoje tem um arrozinho, um feijão. O papai chegou


e trouxe. A gente tá preparando, né? E eu como pouco
também. A pessoa que é acostumada a comer muito,
no dia que falta comida, ele chora. E eu não, eu não al-
mocei. Eu tô preparando porque eu vou jantar. Aí eu vou
dormir. Na dormida ninguém sente fome. Aí no outro dia
que tá o negócio. Vamo partir pra onde?
Sebastião Pereira, pescador de Barra Seca (ES)

o desastre. O subsídio começou a ser pago em De acordo com informações disponibiliza-


dezembro de 2015. Segundo informações do das pela assessoria de imprensa da Samarco,
site oficial da mineradora, o valor é de um salá- 7.288 famílias que dependiam diretamente do
rio mínimo à pessoa que teve a renda e o tra- Rio Doce recebiam o cartão auxílio financeiro
balho diretamente afetados. A essa quantia so- emergencial até a primeira quinzena de ou-
ma-se o valor de uma cesta básica, cujo valor é tubro de 2016. Delas, 3.516 estavam no Espíri-
calculado pelo Departamento Intersindical de to Santo. No litoral capixaba, no entanto, são
Estatística e Estudos Socioeconômicos (Diee- recorrentes as reclamações de pescadores
se) de cada estado e mais um adicional de 20% e comerciantes que tiveram as rendas afeta-
por dependente do atingido. O total pago para das pelo desastre e não receberam o subsídio.
cada atingido fica entre R$ 1,2 mil e R$ 1,5 mil. O termo assinado em março também traz a de-
O subsídio foi depois incluído no conjunto limitação das áreas impactadas pelos rejeitos. No
de ações para recuperação socioeconômica Espírito Santo, o acordo define que os municípios
das áreas impactadas, instituído pelo Termo de e localidades que fazem parte da área impacta-
Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC). da são “Baixo Guandu, Colatina, Barra do Riacho
Conhecido como acordo, o termo foi firmado em Aracruz, Marilândia e Linhares, além das áre-
em março de 2016 entre a Samarco, suas acio- as estuarinas, costeira e marinha impactadas”.
nistas Vale e BHP Billiton, a União e os governos O coordenador do Centro Nacional de Pes-
de Minas Gerais e do Espírito Santo. O acordo quisa e Conservação de Tartarugas Marinhas, do
foi homologado pelo Tribunal Regional Fede- Instituto Chico Mendes de Conservação da Bio-
ral da 1ª Região um mês depois da assinatura. diversidade (Centro Tamar-ICMBio), João Carlos
O TTAC estabelece que, para ser dado o Alciati Thomé, explica que “todo o litoral do Espí-
cartão auxílio, é “necessário cadastramento e rito Santo, parte do Rio de Janeiro e Bahia foram
verificação da dependência financeira da ativi- impactados”. A conclusão vem de um monito-
dade produtiva ou econômica”. O cadastro dos ramento realizado pelo ICMBio em abril de 2016,
impactados é feito por uma empresa terceiri- cujos resultados foram divulgados em junho.
zada através de visitas às comunidades atingi- A comunidade de Campo Grande de Barra
das. Sebastião e muitos outros moradores do Nova, no município de São Mateus (ES), fica na
litoral capixaba reclamam, no entanto, que ne- área considerada atingida no levantamento do
nhum representante da mineradora ou de ter- ICMBio. Na vila de 520 habitantes, vive o pes-
ceirizadas os procurou para fazer o processo. cador Adeci de Sena, presidente da Associa-
Onde estão os peixes? 73

ção de Pescadores, Catadores de Carangue- A colega de Adeci na Apescama e cata-


jo, Aquicultores, Moradores e Assemelhados dora de caranguejo nos mangues próximos a
de Campo Grande de Barra Nova (Apescama). Campo Grande Creusa Campelo, de 52 anos,
Ele reclama que a vila não recebeu nenhu- compartilha da situação. “Quando eu pegava
ma visita da mineradora. “A Samarco [diz]: ‘Isso [caranguejo], eu pegava de seis, sete dúzia
aí não prejudica’. Como que não prejudica se e hoje nós não tamo pegando nem uma dú-
nem eles vieram aqui pra nos visitar? Nunca zia, porque hoje você vai no mangue, roda o
veio aqui nos visitar. Como é que não prejudica? mangue todo e não tá tendo. E quando pega,
Eles vieram aqui fazer um levantamento? Eles hoje pra gente revender uma dúzia de caran-
estão acompanhando no dia a dia, no sábado, guejo tá tendo dificuldade porque as pessoas
no domingo, no feriado? Então, deveria as auto- não querem comprar porque acham que vão
ridade tomar vergonha e forçar eles vir acom- passar mal”, relata. Ela depende do dinheiro
panhar nas comunidade pra saber”, protesta. das vendas e do alimento coletado no man-
Adeci justifica sua raiva argumentando que, gue para alimentar os três filhos pequenos.
apesar de ser funcionário público, a maior parte
da renda vinha da pesca e hoje tem dificuldade
de manter a vida de antes. “Eu sou pescador. Não Vivendo de doações
é porque eu sou funcionário público, eu trabalho
meio período, mas minha vida é ser pescador. De acordo com Júlio César Gonçalves, que
Eu continuo pescador. Tenho 17 anos como pre- ficou à frente da divisão de Pesca da Superin-
sidente da entidade, tenho meus documento tendência Federal de Agricultura, Pecuária e
de pesca, tudo, eu tenho tudo. Eu tenho uma Abastecimento no Espírito Santo entre maio
cabaninha [para vender os peixes] aqui e eu e outubro de 2016, cerca de quatro mil pesca-
fechei. Eu fechei porque não posso hoje ter pei- dores foram impactados no estado. A Superin-
xe pra vender, porque não posso oferecer”, diz. tendência é ligada ao Ministério da Agricultu-

Sebastião ganhou o panfleto sobre a tragédia em uma viagem que fez com o Movimento dos Atingidos por Barragens a Mariana (MG).
Hoje, o papel decora a porta de casa
Foto Victor Pires
74 0nde estão os peixes?

ra, Pecuária e Abastecimento. Mesmo em meio ta aqui não, então faz um novo cadastro’. E eu
ao sufoco, o pescador Sebastião acredita que tenho que vir em casa, pegar tudo de novo, falar
há outros em situação pior. “Poxa, eu ainda tô a mesma coisa que eu falei, tudo de novo. Sem-
morando só, sofro menos por causa disso. Mas pre na mesma tecla e não apareceu ninguém da
quem tem filhos, pena mais ainda”, considera. Samarco aqui pra fazer. Às vezes eles podem até
É o caso de Suely Martinelli, de 44 anos, ter vindo ali no vizinho, mas não custava nada
pescadora e moradora de Urussuquara, vila do ter passado aqui”, indigna-se Fred Ribeiro Neves.
município de São Mateus (ES). Ela relata, com O pescador de 37 anos vive na pequena co-
ombros curvados, olhos baixos e voz cansada, munidade de Degredo, com 450 habitantes, lo-
que tem encontrado dificuldades para dar de calizada no município de Linhares (ES). A pes-
comer aos dois filhos pequenos. As crianças ca no mar em frente à comunidade foi proibida
acompanham a conversa sentadas em silên- pela Justiça Federal em fevereiro de 2016, após
cio ao lado da mãe. Se não fossem as doações pedido de liminar do Ministério Público Federal
da igreja e de vizinhos, ela não sabe como (MPF). A decisão que proíbe a pesca por tempo
faria para sustentar os filhos e a si mesma. indeterminado compreende o litoral de Barra
Suely conta que, antes, o peixe garantia a do Riacho, no município Aracruz, 34 km ao sul
alimentação da família, mas hoje não tem co- da foz do Rio Doce, até Degredo, 54 km ao norte.
ragem de arriscar: “Não como porque é o medo Apesar de a lama ter percorrido o Rio Doce
de provocar doenças, né? Jamais vou preparar antes de ser despejada no mar, a pesca só
um peixe daqueles pra dar pra eles [filhos]”, as- foi proibida no curso d’água em novembro de
segura. Além das refeições, a venda do pescado 2016, um ano após o rompimento. A proibição
era a fonte de renda da família, o que também foi foi feita pelo governo mineiro e só compreen-
alterado pelos rejeitos de mineração. “Não com- de o estado de Minas Gerais. “Todo o Rio Doce
pensa a gente pescar, porque ninguém compra. foi contaminado onde passou a lama. E o juiz
Eles falam: ‘Não, você tá doida? Vou comprar determinou que só na foz que estaria proibi-
esse peixe que tá contaminado!?’. A gente bota da a pesca. Pelo caso de ter acontecido isso,
no freezer, fica lá muito tempo sem vender e algumas pessoas ainda continuam pescando
depois a gente tem que jogar fora…”, lamenta. no Rio Doce, tirando peixe e levando pra ou-
Assim como Sebastião, Suely não foi con- tra cidade... E a outra cidade que tá respon-
templada com o auxílio emergencial da Sa- dendo pelo que tá acontecendo aqui”, chama
marco, mas não foi por falta de tentativa: “Li- atenção Milton Jorge, presidente da Colônia
guei pra Samarco, me deram um número de de Pesca de Linhares, em setembro de 2016.
protocolo, hoje tem mais de três meses já. Daniel Vieira Crepaldi, analista ambiental
Não foram lá, ninguém me procurou”, reclama. do Programa Nacional de Desenvolvimen-
to da Pesca Amadora, do Instituto Brasileiro
de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Ligações infrutíferas Renováveis (PNDPA-Ibama), explica que ain-
da faltam estudos para dimensionar os efei-
O telefone para o qual Suely ligou é men- tos do desastre sobre a fauna do Rio Doce.
cionado várias vezes ao longo das conversas “A proibição tem que estar bem fundamen-
com os pescadores do litoral capixaba. Vários tada. Em relação aos estoques pesqueiros. É
deles tentam utilizar o número – por muitos necessário proibir porque houve um grande
chamado simplesmente de “0800” – para ti- impacto? A princípio sim, houve um grande
rar dúvidas e solicitar o cadastro para receber impacto, morreu bastante peixe. Mas como
o cartão auxílio. Muitos relatam, no entan- a Samarco não fez o diagnóstico até hoje, a
to, dificuldades no contato com a Samarco. gente não consegue nem saber se de fato as
“Aquela hora que eu vim dali eu tinha acaba- afirmações são verdadeiras. Acabaram os
do de ir num lugar que dá área ligar no 0800. Aí peixes do Rio Doce? Não, possivelmente não.
eles falam que meu nome não tá lá mais, é sem- O impacto foi grande? Foi. Mas a gente não
pre assim. Eles falam: ‘Ah, o nome seu não cons- sabe o tamanho desse impacto”, pondera.
0nde estão os peixes? 75

O acordo

O texto do TTAC estabelece o objeti- Bacia do Rio Doce e de toda a área degra-
vo de “recuperar, mitigar, remediar, repa- dada” e “apresentem um plano global de
rar, inclusive indenizar, e nos casos que recuperação socioeconômica para aten-
não houver possibilidade de reparação, dimento das populações atingidas pelo
compensar os impactos nos âmbitos so- desastre”. A ACP também prevê que a Sa-
cioambiental e socioeconômico, decor- marco e suas acionistas destinem R$ 20,2
rentes do evento [rompimento da barra- bi para as ações de recuperação até 2025.
gem], incluindo ações já em curso”. Para No texto do TTAC, está claro que o acor-
isso, prevê 41 programas socioambientais do visa encerrar essa ACP e outras ações
e socioeconômicos de recuperação dos judiciais que tenham o mesmo objeto. “As
impactos e define os municípios afetados. partes, por meio de transação que será
Segundo o texto, todas as ações es- exaustiva em relação ao evento [rompimen-
tabelecidas no acordo devem ser leva- to da barragem] e seus efeitos, pretendem
das a cabo por uma fundação de direito colocar fim a esta ACP e a outras ações,
privado criada e mantida com recursos com objeto contido ou conexo a esta ACP,
das mineradoras. Com o nome de Funda- em curso ou que venham a ser propostas
ção Renova, a instituição criada iniciou por quaisquer agentes legitimados”, diz o
as atividades no início de agosto de 2016. termo. No total, o valor destinado para as
O conjunto de ações para a pesca no ações do TTAC fica em torno de R$ 20 bilhões
TTAC, por exemplo, incluem assistência A pedido do Ministério Público Federal
técnica aos pescadores, cooperativas (MPF), que alegou a falta de participação das
e associações para viabilizar a retoma- populações prejudicadas pelo rompimento
da das atividades pesqueiras e ajuda fi- da barragem nas negociações que resulta-
nanceira aos pescadores impactados. ram no acordo, o Tribunal Regional Federal
O acordo prevê também que o aporte de da 1ª Região suspendeu em agosto a homo-
dinheiro para as atividades varia de acordo logação do trato. Com isso, a ACP que ori-
com o ano. Em 2016, a Samarco ficou obri- ginou o termo voltou a tramitar na 12ª Vara
gada a destinar R$ 2 bilhões para a funda- da Justiça Federal em Belo Horizonte, onde
ção. Em 2017 e 2018, os valores foram fixa- estava antes de ser anulada pelo acordo.
dos em R$ 1,2 bilhão por ano. Para os três Em nota divulgada no site oficial da
anos seguintes, o acordo diz que os valores Samarco, a mineradora escreve que “a
dependerão da necessidade dos projetos decisão não afeta as obrigações conti-
de recuperação em andamento, ficando das no TTAC, que continuarão sendo in-
estabelecido o valor mínimo de R$ 800 mi- tegralmente cumpridas, inclusive no que
lhões e máximo de R$ 1,6 bilhão. Entre o pe- diz respeito à instituição da fundação de
ríodo de 2022 a 2030, não foram definidas direito privado prevista no documento”.
cifras: o acordo diz que o montante ainda A Vale também emitiu uma nota, por meio
será definido a partir de estudos e análises da assessoria de imprensa, sobre a suspen-
técnicas. Além disso, R$ 500 milhões são são. “Apenas a homologação judicial do
destinados para projetos de saneamento Acordo está suspensa e, portanto, continua
básico em municípios atingidos pela lama. válido o Acordo entre as partes e as partes
O acordo foi instituído por causa da continuarão cumprindo com as suas obriga-
Ação Civil Pública (ACP) de nº 69758- ções lá previstas, ao mesmo tempo em que
61.2015.4.3400 proposta em 30 de novem- esclarecerão em juízo as razões pela qual o
bro de 2015 pela União e pelos governos Acordo é o melhor caminho para a célere e
estaduais mineiro e capixaba contra a Sa- justa reparação dos danos causados às co-
marco, a Vale e a BHP. O texto desta ação munidades e meio ambiente afetados pelo
estabelece, entre outros pontos, que as rompimento da barragem de fundão da Sa-
mineradoras “apresentem um plano glo- marco. Estamos confiantes que a homolo-
bal de recuperação socioambiental da gação será mantida”, escreve a mineradora
76 0nde estão os peixes?

As críticas ao acordo

Apesar de as empresas, por meio das A pressa das mineradoras em firmar o


notas das assessorias, defenderem a ne- TTAC, criticada por Zucarelli, é analisada
cessidade do acordo, ele atrai críticas de por Bruno Milanez, engenheiro da Univer-
especialistas. O sociólogo da Universida- sidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e co-
de Federal do Espírito Santo (Ufes) João ordenador do grupo Política, Economia,
Paulo Izoton concorda com o MPF sobre Mineração, Ambiente e Sociedade (PoE-
a falta de participação dos impactados MAS), voltado ao estudo dos impactos da
na construção do termo. “A vontade das mineração no Brasil. “Dentro do meio da
pessoas atingidas não está sendo levada empresa, ter sido com seis meses era im-
em consideração para a reparação dos portante. ‘Olha como fomos rápidos, em
danos que elas estão sofrendo”, ressalta. seis meses resolvemos o problema’. Isso
Outra socióloga da Ufes, Cristiana Lo- vai ser nos relatórios de responsabilida-
sekann também avalia que o “problema de social, nos informes internacionais,
fundamental” do acordo foi a ausência de isso vai ser vendido como um bom acor-
participação na formulação do texto. Isso, do e vai ser vendido como uma medida
segundo ela, leva à questão de como os pró ativa da empresa”, destaca Milanez.
impactados são retratados no termo. “A O geógrafo da UFMG Miguel Fernan-
definição do atingido, no acordo, é prevista des Felippe concorda que o acordo passa
de uma maneira estritamente formal e bu- a ideia de que as empresas e os governos
rocrática. Então o pescador é o pescador estão conseguindo lidar com o proble-
que tem carteirinha do Ministério da Pes- ma. “Quando joga-se na mídia que ha-
ca, a carteirinha ligada à colônia de pesca. verá um investimento de 20 bilhões, isso
O que acontece? A vida não se dá da for- morre assim, a manchete termina assim:
ma estritamente da burocracia”, observa. 20 bilhões serão investidos. E aí todos os
O antropólogo da Universidade Fe- meandros desse acordo ficam perdidos
deral de Minas Gerais (UFMG) Marcos e a população começa a acreditar que as
Zucarelli ecoa as críticas de Izoton e coisas estão sendo resolvidas”, analisa
Losekann: “Mesmo que o acordo te- A forma criada pela empresa para a
nha sido executado de boa fé, ele tem execução dos compromissos assumidos
muitas deficiências, justamente por no TTAC, por meio da fundação de direito
não ter ouvido quem mais conhece o privado, é outro ponto que atrai a opinião
que realmente foi perdido”. Para ele, negativa de Milanez. Para ele, essa é uma
isso decorre da velocidade com que o forma de resguardar as mineradoras de
termo foi elaborado: “São mais de 800 críticas e problemas futuros. “A criação
km de uma diversidade de pessoas dessa fundação coloca mais um degrau,
que utilizavam daquele rio para vários mais um nível, entre qualquer coisa que
fins e não houve um estudo qualifica- acontecer e as acionistas”, destaca. Ele
do de eficácia para que esse acordo conclui: “Do ponto de vista estratégico das
desse certo. Tem uma deficiência de empresas, a fundação é um para-choque,
tempo e de qualidade técnica pra fa- um para-raio, tudo vai cair sobre a fundação
zer essa avaliação e colocar no papel”. e aí protege as imagens das acionistas”.
0nde estão os peixes? 77

Outro morador de Degredo, conhecido de brasa. Cara, não tem melhor que aquilo! É
Fred, José de Araújo Silva, de 60 anos, tenta a vida da gente. Proibiu a vida da gente...”.
ir atrás do cartão e também usa o telefone O pescador foi contemplado com o cartão
para levar a cabo o processo. “Tenho o pro- auxílio da Samarco e narra como conseguiu o
tocolo que a Samarco me deu, porque liguei subsídio: “Eu tava em casa um final de semana,
pro 0800 dela, fiz o cadastro, peguei o meu sexta-feira se eu não me engano, e chegou um
nome, meu CPF, nome de mãe, nome de pai, rapaz e uma moça. Esse rapaz chegou de tarde-
minha idade, quantos quilos de peixe eu pe- zinha e fez meu cadastro”. Seu Zé tentou garan-
gava, que tipo de peixe eu pegava. Passei pra tir que os vizinhos tivessem a mesma sorte. “Eu
Samarco. E até hoje não tive retorno. Quando ainda falei: ‘Olha, tem a Cleia ali e tem os meni-
eu ligo pra Samarco, manda eu esperar até fi- nos tudo ali. Todos eles pescam. Você chega lá e
nal de outubro”, conta no início de setembro. vê se faz o cartão dela’. ‘Não, senhor, nós vamos
Mesmo sem condições legais de pescar, voltar aqui’. E até hoje nunca mais voltou nin-
Fred não conseguiu o cartão auxílio. O pes- guém. Nunca mais ninguém passou aqui”, diz.
cador fica preocupado ao falar sobre as di- A mineradora informou, por meio da asses-
ficuldades em conseguir o alimento para a soria de imprensa, que um novo programa de
filha de oito meses. Ao mesmo tempo, mos- cadastramento dos impactados havia sido
tra-se grato pela ajuda dada pelos vizinhos, iniciado em outubro. Ele teria o “objetivo de
que acompanham a conversa e com quem levantar informações socioeconômicas sobre
Fred pescava antes da chegada dos rejeitos. o núcleo familiar, atividades e patrimônios im-
Um deles é José Leite Costa, pescador e Pre- pactados, a fim de viabilizar o adequado enca-
sidente da Associação de Pescadores de De- minhamento aos demais programas e ações de
gredo. Com 65 anos, Seu Zé, como é conhecido reparação socioeconômica previstos no TTAC”.
na vila, ainda tem disposição para andar os 4
km que separam sua casa do mar. A caminha-
da, no entanto, não vale mais a pena: “A semana Na falta do peixe, as abelhas
toda eu só peguei um peixinho. Poxa, eu peguei
um peixe. Se você botar a rede e pegar dois, A cunhada de José, Cleia da Silva Costa, de
três robalos, não vende, porque ninguém quer 54 anos, mora na casa ao lado e sofre sem o
comprar com medo de estar contaminado”. pescado. “Eu sinto muita falta do meu congela-
A pesca, para ele, ia muito além do tra- dor cheio. A gente tinha muito peixe. Era cação,
balho: “É renda e divertimento, porque é óti- arraia, bagre, robalo, pescada selvagem, pes-
mo! Você pegar um litrão de cachaça con- cadinho... Quantas vezes meus filhos chega-
servada, vai pra praia. Além de você estar vam aqui com meio saco de peixe...”, não con-


desenvolvendo uma coisa boa, não tá falan- clui a frase por causa do choro, que chega de
do mal de ninguém, tá divertindo. Pega um repente. Quando consegue falar novamente,
bagre lá, bota um sal nele e assa lá numa lembra do filho pescador: “Hoje eu vejo meu fi-

Quantas vezes meus filhos chegavam aqui com meio saco


de peixe... Hoje eu vejo meu filho que chega reclamando:
‘Mãe, minhas prestação tá tudo atrasada, não sei o que fazer!
Cleia da Silva Costa, moradora de Degredo
78 0nde estão os peixes?

lho que chega reclamando: ‘Mãe, minhas pres- mitir, amanhã ou depois a gente ter aqui na al-
tação tá tudo atrasada, não sei o que fazer!’”. tura de uns 50 apicultores aí e nós queremos,
Dona Cleia também já foi pescadora, mas ainda, chamar a Rede Globo aqui e mostrar que
teve de abandonar o ofício depois de quebrar não é a gente parado, de braço cruzado, que
o joelho duas vezes. Antes da pluma de rejei- vai botar esse país pra ele ter amanhã ou de-
tos, ela ajudava na limpeza dos peixes que pois uma cara melhor pra se mostrar”, planeja.
os filhos e o marido traziam. Além disso, a fa-
mília tem uma vendinha em casa, onde ven-
dem desde lâmina de barbear até cachaça. À deriva
É o marido de Dona Cleia, Pedro Leite Cos-
ta, de 56 anos, que fala sobre uma alternativa Outro lugar que teve a pesca proibida, um
inusitada para a falta de peixe: “Alguns têm co- pouco ao sul de Degredo, na foz do Rio Doce, é a
ragem de encarar uma criação de apicultura, vila de Regência Augusta, com aproximadamen-
com abelha, outros não têm, têm medo ‘porque te 1.200 habitantes, no município de Linhares
é um absurdo, que ela mata’. Mas tem gente que (ES). Um dos moradores é o pescador Élcio José
tem coragem e tem renda delas”, garante. Ele Souza de Oliveira, o Zé de Sabino. Nascido no
próprio é uma dessas pessoas com coragem. encontro do rio com o mar, pescador desde os
Trabalha com apicultura há 14 anos, desde 7 anos de idade, o capixaba, hoje com 52, lembra
que recebeu um curso do Instituto Capixaba com orgulho da viagem que fez à Alemanha para
de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão assistir à première do filme em que estrelou.
Rural (Incaper). Seu Zé acrescenta que ele e Das águas que passam foi a única película brasi-
Dona Cleia também fizeram o curso. “Se a gen- leira a concorrer, na categoria curta-metragem,
te não tivesse com isso aqui, o que que eu ti- no 66º Festival Internacional de Cinema de Ber-
nha hoje? Eu não tinha nada. A nossa procura- lim, o Berlinale. Gravado em março de 2015 – oito
ção é tão grande que vem gente de Vitória aqui meses antes do rompimento da barragem de
atrás desse mel natural que nós temo aqui”, diz Fundão – sob a direção de Diego Zon, o docu-
orgulhoso Pedro, que produz também própolis. mentário de 23 minutos apresentou o vínculo do
Ele fica animado quando fala das abelhas pescador com o mar, o barco, a rede e o peixe.
e sonha alto: quer popularizar na comunidade Zé de Sabino, assim como Seu Zé, recebe o


a atividade a ele ensinada há 14 anos. “A gente cartão auxílio da mineradora. O valor, no entanto,
tem como meta, se Deus abençoar e a lei per- não é suficiente para garantir a vida que ele leva-

É renda e divertimento, porque é ótimo! Você pegar um


litrão de cachaça conservada, vai pra praia. Além de você
estar desenvolvendo uma coisa boa, não tá falando mal
de ninguém, tá divertindo. Pega um bagre lá, bota um sal
nele e assa lá numa brasa. Cara, não tem melhor que
aquilo! É a vida da gente. Proibiu a vida da gente...
José Leite Costa, pescador e presidente da Asso-
ciação de Pescadores de Degredo
0nde estão os peixes? 79

Foto Victor Pires

Cleia, Pedro, Gilmar, Fred e Paulo visitam o barco utilizado pela família e amigos para pesca em alto mar, parado na praia desde que a
lama chegou ao mar

Foto Luana Melody Brasil Foto Victor Pires

Pedro e Cleia mostram os equipamentos utilizados para a fabri- José Leite Costa, pescador de Degredo, em São Mateus (ES), recebeu
cação do mel, guardados em uma casinha no quintal da casa em o cartão, mas revolta-se quando pensa nos vizinhos sem o auxílio,
Degredo inclusive seu irmão
80 0nde estão os peixes?

va antes. “O cartão é um subsídio, uma migalha Com um sorriso que deixa profundas linhas de
de salário pra gente. Tudo bem que foi uma coisa expressão nas bochechas, ele conta que “foi nas-
emergencial, eles tavam desesperados e solta- cido e criado na beira do rio”. “Desde os oito anos, já
ram pra gente de qualquer forma, mas a gente tomava surra da minha avó para sair de dentro do


tem um nível de pescador”, afirma. Conta que rio. Quanta surra já tomei; não saía, mas trazia o pei-
chegava a ganhar R$ 6 mil por mês com a pes- xe pra casa”, lembra. Da época de abundância de
ca antes da chegada da lama à foz do Rio Doce. peixes, mariscos e crustáceos, o pescador guarda
Ele usa uma metáfora relacionada ao ofício que na memória a ostentação de um café da manhã:
está acostumado a fazer desde a infância para fa-
lar sobre a situação atual: “Eu tô à deriva, eu não Uma quarta-feira aqui não tinha o pão, mas
sei pra onde que eu vou. Eu tô preocupado com a tinha café, tinha comida, tinha tudo normal. Aí eu
situação. De repente vem uma coisa boa, mas eu falei: ‘esperar o cara vir lá de Pontal [do Ipiranga],


queria que viesse logo. Principalmente trabalhar, pra colocar na padaria, pra depois nós ir lá com-
eu quero trabalhar. O bom é se desse pra pescar”. prar o pão?’. Eu falei assim: ‘faz a moqueca de ro-
balo aí, minha senhora’ [olha em direção a Eliane,
Sem moqueca de robalo para o café que sorri]. Pô, quarta-feira de manhã, meu café da
da manhã manhã era moqueca de robalo! Tirei onda. ‘Meu
irmão, tem tanta gente rica no mundo e não tá
Mesmo nos lugares onde a pesca está li- comendo uma moqueca dessa não. Mas eu tô!’.
berada, a situação não é fácil. O vilarejo de Hoje eu fico só pensando na fartura que tinha.
Urussuquara é um dos locais onde vários pes-
cadores, como Suely Martinelli, reclamam das “O que aconteceu com a gente aqui? Não conse-
mudanças que vieram na esteira da lama, e que guimos vender o peixe, não tem recurso nenhum pra
incluem escassez de peixe, queda nas vendas sobreviver. A gente continuou pescando e comendo
e medo. O casal Eliane Balke, 49 anos, e Gilmar o peixe. Mesmo sabendo que o peixe estava conta-
Abelina, 46, sentem na pele as dificuldades. minado, a gente foi obrigado a comer, porque a gente
Devido ao medo da contaminação dos ani- não tinha o que comer. Os parentes tudo fraco, não
mais marinhos, fazendeiros, turistas, empresá- tem como ajudar nós”, conta Eliane, constrangida.
rios e demais clientes dos pescados de Eliane
e Gilmar desapareceram, conta o casal. Antes Apoio da família
com uma renda que chegava a R$ 4,5 mil, eles
resistem com doações e pequenos serviços São os parentes que têm ajudado outro casal de
prestados. Opções indesejadas para quem, pescadores a se manter no período de dificuldades.
como Gilmar, diz pescar desde cedo na vida. Albertino dos Santos Romualdo, de 51 anos, e Maria

O casal Eliane e Gilmar descansa embaixo da antiga barraca onde vendiam pescado e peixe para os turistas, às
margens do Rio Ipiranga, em Urussuquara
Foto Victor Pires
0nde estão os peixes? 81

Foto Victor Pires

da Penha Moreira Romualdo, 56, moradores de Barra


Seca, estavam reunidos no quintal de casa, em setem-
bro de 2016, com o irmão de Albertino, Enoque Santos
Castello. Ele é caminhoneiro, tem 47 anos, mora em
Vitória e diz que “pesca por esporte”, um passatempo
de todas as visitas a Barra Seca, onde tem uma casa.
“As vezes que eu vim aqui e pesquei com
meu irmão, levei peixe pra Vitória, dei peixe
pros meus vizinhos... Hoje eu trago de Vitó-
ria, porque a situação se inverteu. Se o meu
irmão quiser comer um peixe de qualidade
hoje, eu tenho que trazer pra ele do mercado
lá de Vitória, da Vila Rubim”, comenta Enoque.
O irmão confirma, com o jeito tímido: “Pra te falar
a verdade, eu tô vivendo de doações. Tá aqui minha
cunhada, meu irmão, que chegam, trazem algumas
coisa pra gente a cada 15 dias. Tenho outros amigos
que nos ajuda”. Dona Penha, sua esposa, acrescen-
ta que doavam os peixes, tamanha a quantidade:
“Eu pegava aqui, chamava a Dona Lúcia [vizinha]:
‘Dona Lúcia, traz uma bacia aí ou um balde’; ‘Dona Dona Penha e Seu Albertino mostram o freezer. Antes cheio de
Penha, é muito!’; ‘Não, Dona Lúcia, pode levar! Na peixe, hoje eles mantêm o aparelho desligado para não gastar
casa da senhora tem dez, 11 pessoas. Pode levar’”. energia à toa

Não poder mais fazer as doações de peixe para


quem precisava do alimento é uma das aflições o funcionário da prefeitura de Linhares e pescador
de Dona Penha. Um silêncio triste tomou conta da Geronildo Domingos dos Santos, de 68 anos. Ele
roda quando ela abriu no celular um vídeo gravado vive com a companheira, Elza Raimundo da Silva,
antes da chegada dos rejeitos. Nele, a pescadora 59, que também trabalha na prefeitura. Geronildo
repetia palavras de gratidão enquanto filmava um garante que, antes, quem visitasse sua casa veria
freezer e caixas lotados de peixe, todos destina- outra situação: “Em outro tempo, antes desse de-
dos a uma instituição de acolhimento a pessoas sastre aí, vocês chegava aqui na minha casa, vocês
soropositivas em Linhares. Os olhos de Dona Pe- topava minha casa muito diferente. Aqui nós tinha
nha encheram de lágrimas reassistindo o vídeo. tudo. Era freezer cheio de peixe, não faltava peixe”.
Dona Penha e Seu Albertinho entram na lista Elza, da mesma forma que Dona Penha, lembra
de pescadores que se dizem impactados pelo da fartura de antes e de como o peixe era tanto que
desastre, mas não receberam nenhum tipo de au- eles até davam para os conhecidos, o que não po-
xílio da mineradora. Albertino observa que repre- dem mais fazer: “Às vezes nós tinha um freezer cheio
sentantes da empresa até foram fazer o cadastro, de peixe ali, dava a um colega ou vendia. E agora? A
mas nunca mais deram sinal de vida: “A Samarco gente vai dar uma coisa que a gente não tá comen-
aqui não fez nada. Chegou aí, tava fazendo um ca- do pros outro? Vai que os outro passa mal. E aí?”.
dastro aí pra gente, mas esse cadastro já tem qua- Apesar de os dois serem funcionários públicos,
se seis meses, e nunca ninguém nos procurou”. o peixe que Geronildo pegava garantia a alimenta-
“O olho do furacão é o pescador, mas toda ção do casal e dava até para tirar um dinheirinho
a comunidade perdeu hoje. Você vê hoje, a co- no fim do mês com a pouca venda que faziam, eles
munidade tá morta. A gente tinha uma farmácia relatam. O que Geronildo quer é que tudo volte a ser
aqui na comunidade. Essa farmácia fechou o como antes do rompimento. “O conforto que a gen-
mês passado. O impacto negativo... a farmácia te tinha, não tem mais. A gente espera que esse
fechou. Essa farmácia era do Pontal do Ipiran- pessoal lá fora tome uma providência sobre isso
ga. Na época boa, abriram uma filial aqui. Essa também, em saber que a gente aqui tá precisando,
filial tá fechada”, diz Enoque, irmão de Albertino. né? Não só eu, mas a população toda tá necessi-
A duas casas de distância de Dona Penha e tando. Pelo menos, se não puder melhorar muito,
Seu Albertino, na mesma rua de terra batida, mora mas pelo menos viver o que era antes”, deseja.
6

Rejeitos
na
FOZ

Se você vier aqui no dia do pagamento da Samarco, você vai
ver o que é festa. Mas você vai ver também o que é tristeza
Gilmar Abelina, de 46 anos, pescador e morador
de Urussuquara (ES)
A
notícia de que a Samarco faria cadas- Os desentendimentos dos quais Simião
tros de pescadores na vila de Povo- fala também têm sido frequentes na comu-


ação, no município de Linhares (ES), nidade de Pontal do Ipiranga, vila com cerca
provocou uma corrida pelo cartão-sub- de 1,5 mil habitantes localizada a aproximada-
sídio. Em poucos meses, a população estimada mente 40 km de Povoação, como narra o pes-
em 3.247 habitantes, segundo o último censo cador Gilmar Abelina:
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) de 2010, aumentou de forma desordenada, A Samarco chegou e foi pegando as pes-
como percebeu o pescador Simião Barbosa dos soas nas esquinas. O morador mesmo de 20,
Santos, de 74 anos, presidente da Associação 25 anos que vive da pesca aqui mesmo direta-
de Pescadores e Assemelhados de Povoação. mente, ficou pra trás. Se você for contar de um


“Houve uma invasão de pessoas de outros a dez pescadores que eles fizeram o cadastro,
lugares que vieram pra cá se dizendo morador sete não vivem na beira do rio. É de outras loca-
daqui, se dizendo pescador. É aquilo, onde surge lidades que compareceram, mas o verdadeiro
o problema de dinheiro, dá corrupção pra danar, morador que fundou aquela comunidade, re-
né? Documentados, legalizados, nós temos 69 sistente na beira daquele rio, ficou pra trás.
pescadores. Já apareceu tanto aproveitador que A maioria. Se você vier aqui no dia do paga-
hoje tem mais de 400 recebendo”, conta Simião. mento da Samarco, você vai ver o que é fes-


Além do maior número de pessoas na ta. Mas você vai ver também o que é tristeza.
comunidade, a distribuição dos cartões da
Samarco provocou distúrbios nas relações O presidente da Colônia de Pescadores Z-6
entre os pescadores, de acordo com Simião. Caboclo Bernardo de Linhares, Milton Jorge,
confirma o que Gilmar notou. “Alguns recebem
Tá um problema sério aí, porque muitos que o auxílio. Por exemplo, Pontal e Barra Seca. Tem
precisa, que pescam mesmo, não tão receben- 100 pescador em Pontal, uma metade receben-
do, porque não foi aprovado. Porque na hora de do e outra metade não. Barra Seca tem 35 pes-
dar entrevista lá, às vezes a pessoa não sou- cador que a gente tem de carteira documen-
be responder lá aquela série de pergunta que tado; tem 15 recebendo e a outra metade não.
eles fazem pra pessoa. Eles perguntam se a Isso tá trazendo muito conflito pr’aquelas duas
pessoa mora aqui, há quanto tempo trabalha comunidade e a Colônia sem saber o que faz.”
na pesca, quanto arrecadava por mês, as es- Morador de Pontal do Ipiranga, o pesca-
pécies de peixe que pegava e como era vendi- dor Braz Fernandes, de 78 anos, o Seu Braz,
do. Deu muita confusão, deu muita conversa, irrita-se ao lembrar que não foi aprovado no
ihh... Todo mundo interessado em receber di- cadastro para receber o cartão-subsídio por
nheiro, né? Todo mundo naquela expectativa estar aposentado. “Agora vou correr atrás!
que vai vir milhões pra cá. Quando sai uma no- Onde eu pescava, já não pesco. O que ela [Sa-
tícia lá que a empresa vai ter que disponibilizar marco] quer? Ela quer desunir todo mundo.
tantos milhões pra atender o pessoal, eles já Provocar um tumulto entre o pessoal”, acusa.
diz que nós já recebemos esse dinheiro, já tá Com uma visão semelhante à de Seu Braz,
na nossa mão, que nós não quer entregar o di- o sociólogo Hauley Valim, da Faculdade Pitá-
nheiro pra quem precisa. Aí fica aquela confu- goras de Linhares, avalia disparidades cau-
são toda. Na hora lá aparece tanta gente que sadas pelos cadastros de pescadores. “Em
a gente nunca nem viu. Pessoa que nunca an- um grupo, dá para dois, são dez. Se deu para
dou aqui já chega com essas conversa, aí jun- dois, então automaticamente classificou com
ta com os daqui também, mistura, faz aquele cartão e sem cartão. O com cartão está privi-
converseiro danado. É um problema sério. legiado e o sem cartão está na tensão. Esse
86 Rejeitos na foz

Foto Luana Melody Brasil

Além dos conflitos gerados pela Samarco na distribuição dos cartões-emergenciais, o pescador Simião Barbosa dos Santos avalia a
omissão dos governantes, que não oferecem suporte aos problemas da comunidade. “Não tivemos ninguém dos governantes; nem
o prefeito veio nem mandou um representante aqui pra saber como é que tá a comunidade, como é que tá passando depois desse
problema da lama.”

tipo de tensão aconteceu ao longo da calha de pescador e recadastro de pescador, porque


inteira do Rio Doce. A Samarco contrata vá- uma empresa que eles contrataram fez o ca-
rias empresas para fazer o cadastramento dastro errado. Pagou quem não era pescador e
das famílias impactadas. No meu ponto de quem é pescador tá com dificuldade”, diz Jorge.
vista, esse cadastramento foi uma ferramen-
ta fundamental para desarticulação das co-
munidades. Não há um critério [bem definido] Controverso
para dizer quem vai receber o cartão”, avalia.
De acordo com resposta da Samarco por O subsídio pago pela mineradora Samarco
meio da assessoria de comunicação, ao todo, é, ao mesmo tempo, o principal motor de brigas
só no Espírito Santo, 3.516 famílias recebem nas comunidades e um alívio limitado aos que
o cartão de auxílio financeiro emergencial. contam com algum dinheiro para pagar dívi-
Quanto à determinação de quem tem direito ao das e sobreviver. Limitado porque, para muitos,
cartão, a mineradora afirma que “os critérios não devolve a tranquilidade da época anterior
para a destinação do cartão auxílio foram de- ao desastre, como desabafa o pescador Élcio
finidos em conjunto com o Ministério Público” José Souza de Oliveira, o Zé de Sabino, na va-
e que um recadastramento já está em curso. randa de casa, em setembro de 2016. Morador
Segundo o presidente da Colônia, Milton de Regência Augusta, em Linhares (ES), ele é
Jorge, a mineradora recomeçou em fins de se- um dos atingidos que recebem o cartão da Sa-
tembro de 2016 o processo de cadastramento marco. Atualmente restrito ao subsídio, e em
de pescadores em Linhares. “A gente tá cha- meio à crise econômica que eleva o custo de
mando a Samarco na Colônia porque a Samar- vida e reduz a possibilidade de encontrar outro
co desde agosto tem falado que vinha, chega- emprego, Zé de Sabino precisou interromper os
ram hoje em Linhares pra fazer um cadastro estudos dos filhos na capital do Espírito Santo.
Rejeitos na foz 87

dentes da Associação de Pescadores e Asseme-


lhados de Povoação e da Colônia de Pescadores
Z-6 Caboclo Bernardo de Linhares, respectiva-
mente. Zé de Sabino também enfatiza que há um
clima de inimizade entre os habitantes de Regên-
cia. “Agora as pessoas só falam em cartão na cida-
de. E eu acho que tem que dar cartão mesmo, pra
todos os moradores nativos. Eles foram afetados
também. A gente não queria briga com ninguém.”
Para a artesã Andrea Aparecida Ferreira,
diretora de Esporte e Lazer da Associação de


Moradores de Povoação, que não recebe o
cartão, as reivindicações de direitos deveriam
ir além do subsídio.

A minha preocupação maior que eu vejo


na comunidade é a questão que as pessoa
tão muito focada no cartão. E esqueceu que
água é vida. Ninguém tá preocupado em re-


cuperar o rio, ninguém tá preocupado em re-
cuperar nada. Pôr mais cartão aqui dentro


da comunidade não vai resolver o nosso pro-
blema do rio. Eu fico assim me perguntando,
até quando isso? É guerra em cima de guer-
ra, vizinho se tornarem inimigos, onde um foi
atendido e o outro não. E aí, até quando isso?
Quando que eu vou voltar a fazer o que eu


gosto? Quando eu vou voltar a cumprir com Com uma opinião parecida com a de An-
as minhas obrigações? Porque eu tenho filho drea, Simião destaca outra preocupação so-
fazendo faculdade. Eu tenho dois filhos na fa- bre os efeitos do recebimento do cartão na
culdade. Eu, como pescador, tenho orgulho de vida de alguns atingidos.
ter meus filhos na faculdade, é o básico que o
pai tem que dar pro filho, educação. E tive que Não tem um que diga assim: ‘Podia criar uma
trancar a faculdade dos filhos porque não tô frente de trabalho aí pra nós recuperar o Rio Doce,
aguentando pagar, porque deixei de trabalhar nós recuperar as áreas degradadas, a Samarco ou
na pesca, que me dava um salário razoável. o governo pagarem, nós criar uma frente de traba-


Isso é muito triste pra mim, que tenho a pesca- lho, vamo ajeitar, vamo limpar os lugar que tá sujo…’.
ria na veia. Salário meu oscilava entre R$ 4 mil Ninguém fala, só fala em cartão. Só cartão. E muito
e R$ 6 mil por mês, da pesca, que eu conseguia cartão pra todo mundo assim de qualquer manei-
pagar as crianças em Vitória e ainda viver sos- ra, tá causando também um desequilíbrio da co-
segado. Hoje tem que estar restrito ao cartão munidade. Porque veja bem, o camarada recebe
de R$ 1.200. Mas eu não quero ganhar dinheiro o cartão e ele cruza os braço. ‘Eu não vou pescar, a
da Samarco assim, parado. Quero fazer alguma Samarco tá me pagando, por que eu vou esquentar
coisa. Eu não sou acostumado dessa forma. a cabeça?’. Aí aqueles que gostam de beber, vai be-
ber demais. Aquele que já não tem vontade de tra-
Pescadores de rio e de mar, como Zé de Sabi- balhar, não quer fazer outra coisa. Isso causa uma
no, possuem uma renda média de R$ 4 mil a R$ 6 preocupação. Se amanhã ou depois, a Samarco sus-
mil. Aqueles que pescam em rio e lagoa, por sua pender esse pagamento dos cartão, essas pessoa
vez, têm uma renda média de R$ 2,5 mil a R$ 4 mil, que tão vivendo às custas do cartão e não querem
esclarecem Simião Barbosa e Milton Jorge, presi- fazer mais nada, o que que será dessas pessoas?
88 Rejeitos na foz

O receio de Simião encontra eco no que tem comunitários seja uma compensação maior
observado a socióloga Cristiana Losekann, que essa empresa deve a essas comunida-
coordenadora do Organon, um grupo de estu- des, e não simplesmente chegar individual-
do de mobilizações sociais do Departamento mente por famílias e distribuir uma verba.”
de Ciências Sociais da Universidade Federal O desarranjo social também tem sido viven-
do Espírito Santo (Ufes). “Na semana passada, ciado na aldeia indígena de Comboios, uma co-
eu recebi uma ligação de uma comunidade, munidade Tupiniquim localizada no município de
de pessoas lá que estão desesperadas por- Aracruz (ES). Segundo conta o cacique Antônio
que há um aumento nos casos de alcoolismo.” Carlos, de 42 anos, mais conhecido por Toninho, o
Losekann descreve o que tem notado nas vi- auxílio-emergencial tornou a comunidade depen-
sitas às comunidades: “A cena que a gente vê é dente e inativa. “O pessoal, você não encontrava
bares com os homens embriagados. Todo o tipo ninguém nas casa. Hoje o pessoal tá tudo aco-
de problema em decorrência disso também modado. Tirou a autonomia do índio, a liberdade
tem sido observado: um aumento da violência da caça, do pescar. Hoje todo mundo fica ali na-
doméstica, um aumento nos casos de estupro. quele cômodo ali. Isso pra nós não é bom, porque
A situação está muito grave. Os homens ba- traz um comodismo pras famílias, né?”, reprova.
sicamente viviam da pesca, eles tinham uma O professor indígena Rones Coutinho
rotina de sair para o mar ou para o rio, ou de Passos, de 38 anos, presencia no cotidia-
atividades que são paralelas, a construção de no o que foi constatado pelo cacique: “Era
equipamentos, anzóis, redes, e eles não têm difícil ver meu pai em casa. Tem dia que ele
mais o que fazer e passam a ganhar o auxílio”. fica deitado num banco, fica lá triste por-
Na opinião de Losekann, a principal cau- que não pode pescar. Me dá vontade de
sa desse desarranjo nas relações e cotidiano chorar, quando eu vejo ele lá, porque ele vi-
das comunidades é o mau planejamento do via da pesca. Ele vivia da pesca!”, protesta.
repasse do dinheiro. “A compensação não é
simplesmente chegar nesse lugar e distribuir
dinheiro, isso precisa ser pensado de uma for- Tristeza
ma realmente séria. Como distribuir o dinhei-
ro e como resolver? Tem situações que não é Além dos desmantelos nas comunidades


o dinheiro que pode ser a compensação. Tal- atingidas descritos por moradores e pela so-
vez fortalecer o associativismo e os espaços cióloga, outro transtorno perturba essas po-

Hoje meu sorriso não tá mais estampado no rosto como


antes, não tô feliz como antes, fazendo o que gosto.
Direito de ir e vir, por exemplo, eu tô restrito hoje. Não
pode pescar, não sei porque não pode, não sei se tá po-
luído, ninguém fala nada, ninguém dá um laudo. Fazem
várias análises de água, de terra, de sedimento, mas
ninguém dá um resultado
Zé de Sabino
Rejeitos na foz 89

Foto Victor Pires

A pescadora Nilza Mateus Barbosa lembra que diversas vezes saiu para pescar na beira da praia com as crianças da aldeia, onde
lá mesmo todos dormiam. Ela sente falta dessa época, que parecia impossível de acabar. “Como não ter nosso mar? Nosso mar foi
muito importante na nossa vida. Ele foi que deu nosso alimento, ele que deu nossa saúde, né? Que a água do mar é saúde. Pescar é
tristeza, a gente sente triste. No início, eu fiquei até doente só por estar pensando.”

pulações. Embora o acordo assinado pela mi- As primeiras impressões de uma pesquisa
neradora em março de 2016 estabeleça que realizada por Valim e pelos também sociólogos
o auxílio financeiro seja pago aos pescadores Flávia Amboss e João Paulo Izoton, da Ufes,
“até a condição de pesca ser equivalente à si- mostram que entre as consequências da
tuação anterior”, a falta de uma data definida insegurança mostrada por atingidos como
para a continuidade do pagamento, a carên- Nilza está a depressão. O estudo, desenvol-
cia de subsídio para diversas famílias impac- vido na comunidade de Regência, busca por
tadas e a ociosidade devido às interdições meio de entrevistas compreender os efei-
na pesca e nos banhos de rio e de mar geram tos sociais da chegada da lama de rejeitos.
incerteza sobre o futuro de cada atingido. “As pessoas falam: ‘Acordava 5h da manhã
Uma das angústias de Nilza Mateus Bar- antes, para trabalhar. Acordar 5h da manhã para
bosa, de 67 anos, é a possibilidade de um dia que agora, se eu não tenho mais [trabalho]?’. Essa
o cartão-subsídio ser suspenso. Pescadora e tristeza vem se transformando numa depressão”,


indígena tupiniquim da aldeia de Comboios, relata Flávia Amboss, coordenadora da pesquisa.
Nilza recebe uma quantia distribuída pelo ca- Com um discurso semelhante, o pescador Zé
cique Toninho, que reparte entre a comuni- de Sabino relata o que o incomoda: “Hoje meu
dade o total do valor pago pela mineradora. sorriso não tá mais estampado no rosto como an-
tes, não tô feliz como antes, fazendo o que gosto.
Tudo tá proibido a gente tirar agora, né? Não Direito de ir e vir, por exemplo, eu tô restrito hoje.
é triste a gente ficar assim? É, menina, a gente Não pode pescar, não sei porque não pode, não
tem medo. Porque tem muitas criança e tem sei se tá poluído, ninguém fala nada, ninguém dá
muitas família aqui. Eu tenho medo, porque um laudo. Fazem várias análises de água, de ter-
de repente pode também se acabar [o subsí- ra, de sedimento, mas ninguém dá um resultado”.
dio], né? Porque vai indo e indo, um dia acaba Sem conseguir vender peixes e carangue-
isso aí. E aí, como vai ficar a nossa situação? jos, além do medo de consumir animais conta-
90 Rejeitos na foz

Foto Victor Pires


Mural na casa de Zé de Sa-
bino expõe registros de uma
época que deixa saudades
no pescador: um passeio de
barco com os familiares, a
pesca de um cação, a colheita
de alimentos da roça que
ele cuidava numa ilha no Rio
Doce. “A lama passou em cima
da terra. Matou minha planta-
ção e ainda tá uma cobertura
de lama na terra. Não sei se
posso produzir, ninguém me
fala nada. Então travou tudo,
travou a pesca e travou minha
lavoura também.”


minados, Suely Martinelli, moradora de Urussu- sobrava. Pagava minha energia, minha ener-
quara, no município de São Mateus (ES), conta gia tá lá acumulando, toda atrasada. Eu fazia
com doações da comunidade para se manter uma faxininha quando tava ruim de peixe,
e alimentar os filhos, uma de 10 e outro de 4 completava. Agora nem faxina tem porque as
anos. Os outros filhos, um de 17 anos e outra de pessoas que têm casa lá não tão indo porque


14, moram com o irmão mais velho, de 28 anos, eles têm medo de tomar banho no rio, no mar.
em Linhares (ES). Moravam todos com Suely,
mas a atual situação impede que a pescadora Em Barra Seca (ES), pescadores não rece-
pague os estudos que eles faziam na cidade. bem o auxílio da mineradora e, da mesma for-
ma que Suely, têm dificuldade para vender os
Eu tive problemas de pressão por conta pescados. Questionado sobre o que faz para
das preocupação, de pensar o que o meu fi- conseguir alguma renda, o pescador Albertino
lho vai comer, o que meu filho vai almoçar. Eu dos Santos Romualdo, de 51 anos, responde
fico dentro de casa, eu choro. Fico em casa sem desviar os olhos: “Nada. Quando aper-
sozinha pensando o que eu posso fazer. Peço ta as coisas... Eu até me emociono porque a
a Deus pra me dar uma luz pra saber de onde gente tinha fartura… Tá muito difícil. Acordo
eu tiro dinheiro. Não consigo dormir direito. de manhã, vou dez vezes no portão e volto. Te-
A gente tem que se consultar no postinho, aí nho nada pra fazer. O que que eu vou fazer?”
se não tem o remédio no postinho, não tenho Em Minas Gerais, Camilla Veras, psicóloga da
condições de comprar. A minha filha reclama Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares,
‘mãe, eu não tenho lápis pra levar pra escola’, que tem atuado nos municípios de Barra Longa e
eu não tenho dinheiro pra comprar um lápis. Mariana, percebeu problemas semelhantes entre
Eu nunca fiquei sem dinheiro. Sempre eu ti- os atingidos na região. “A gente entende que é na-
nha meu dinheiro, sobrava, eu fazia minha tural o sofrimento, principalmente numa situação
compra, comprava caixas de leite e ainda como essa. Então a gente evita trabalhar com a
Rejeitos na foz 91

ideia de adoecimento. Mas existe, e a gente sabe mos, que atende também às regiões de Campo
que tem algo. As pessoas que já tinham ques- Grande e Nativo, em São Mateus (ES), tem per-
tões de saúde antes tendem ao agravamento, cebido uma frequência incomum de pessoas
isso é comum. Aí tem tudo: depressão, quadros reclamando de lesões na pele. “Veio bastante
de ansiedade, problemas no sono, isolamento pessoas aqui com o mesmo problema. Aí eu
–as pessoas não estão saindo de casa”, explica. perguntava se tinha tomado banho no mar ou
Em tom mais apreensivo, a psicóloga em lagoa aqui por perto e eles diziam que sim.
descreve: “Tem casos aqui de tentativa de Umas pústulazinhas, na perna principalmente.
suicídio, aumento de violência doméstica, É uma lesão infecciosa, tipo a popularmente
aumento do consumo de álcool. São reflexo chamada perebinha. Inflama e infecciona.”
do problema e interferem diretamente nas De acordo com a médica, as infecções não
questões de saúde mental. Em termos de são graves, desde que tratadas com antibi-
impactos psicossociais, a cidade [Barra Lon- ótico e o remédio é oferecido no posto pelo
ga] está toda impactada, em vários níveis”. Sistema Único de Saúde (SUS). Embora sem
Ainda de acordo com Veras, é importante um levantamento preciso da quantidade de
que as ações de reparação dos danos pensem pessoas que procuraram atendimento médi-
a reconstrução de espaços comunitários como co, Ramos explica, em setembro de 2016, de
uma forma de tratamento dos males psicológi- onde vem a suspeita da relação entre as le-
cos. “Os espaços de interação, de sociabiliza- sões e os banhos no mar ou nas lagoas pró-
ção foram ficando restritos. Hoje eu estava na ximas. “Tem um ano que tô aqui e o desastre
inauguração de uma igreja que foi atingida, en- foi em novembro. Eu achei que poderia ser por
tão a igreja é muito importante pra cidade. Eles isso porque é a coincidência. De terem toma-
fizeram uma procissão até essa igreja que foi do banho, várias pessoas ao mesmo tempo.”
reinaugurada. É um espaço de convivência, a A pescadora Eliane Balke, moradora de Urus-


gente acredita que isso promove saúde de cer- suquara, foi uma das pessoas que sofreu com as
ta forma, porque vai resgatando minimamen- inflamações. Na varanda de casa, numa tarde de
te a rotina que havia, a identidade do lugar.” setembro de 2016, ela relembra as dificuldades
que passou para se livrar do incômodo na pele.

Feridas na pele Eu ia sempre colocando as redes e, um dia,


saí da água, senti que tinha uma leve coceira
Os males na saúde das comunidades atin- debaixo dos meus braços, nas partes íntimas.
gidas pelo rompimento da barragem de rejei- Fui reparando que foi aparecendo umas boli-
tos vão além do emocional. No único posto de nhas estilo um furúnculo assim, mas não infla-
saúde de Urussuquara, a médica Sheila Ra- mado, cheio de água. Foi crescendo, crescen-


Eu até me emociono porque a gente tinha fartura… Tá
muito difícil. Acordo de manhã, vou dez vezes no portão
e volto. Tenho nada pra fazer. O que que eu vou fazer?
Albertino dos Santos Romualdo, pescador de Barra Seca (ES)
92 Rejeitos na foz

Foto Arquivo pessoal

Moradora de Urussuquara, que preferiu não se identificar, apresentou sintomas parecidos com os de outros moradores da região.


Entre as principais reclamações das comunidades está a falta de assistência médica especializada e de laudos que mostrem a rela-
ção entre as alergias e o contato com a água. “Para você ter ideia, é 250 reais a consulta de um dermatologista. Eu não vou sair daqui
por causa de três, quatro carocinhos no braço e vou procurar médico, eu tenho que trabalhar”, afirma a agente de saúde Mônica Silva,
moradora de Pontal do Ipiranga (ES)

A compensação não é simplesmente chegar nesse lugar e


distribuir dinheiro, isso precisa ser pensado de uma forma
realmente séria. Como distribuir o dinheiro e como resolver?
Tem situações que não é o dinheiro que pode ser a compen-
sação. Talvez fortalecer o associativismo e os espaços comu-
nitários seja uma compensação maior que essa empresa
deve a essas comunidades, e não simplesmente chegar
individualmente por famílias e distribuir uma verba.
Cristiana Losekann, socióloga da Ufes e coordenadora do Organon
Rejeitos na foz 93


outros amigos meus pescadores e enviei tam-
bém pra um médico dermatologista conheci-
do. Ele me passou um antibiótico e eu fui lá no
postinho, a médica receitou novamente pra
mim. Quando eu fui em São Mateus, fui no pos-
to de saúde lá tirar os remédios, lá tinha esse
remédio e foi assim que eu fui melhorando.”


A pescadora Suely também relata os trans-
tornos provocados pelas feridas, entre os
quais está a perda do principal lazer dos filhos,
que era brincar no rio.

Hoje em dia eles não chegam nem perto,


porque eles tomaram banho, uns três meses
depois que a gente viu o barro no rio, eles se
encheram de ferida. Foi o maior trabalho pra
mim curar. Esse aqui tem até as manchinhas
de ferida no corpo. Levei no postinho, passa-
ram uma pomada... Tive que comprar remédio
que não paguei até hoje. Falaram no postinho


que era da água, porque não foi só eu que pro-
curei o postinho com esse problema. Foi no
postinho de Urussuquara. Essa aqui pegou
também, eu peguei também, entre os dedo do
pé ficou tudo coçando, parece que tava roendo
os dedo. Essa semana mesmo eu fui lá, entrei
na água pra empurrar o bote pro fundo, meus
pés já se encheram de coceira entre os dedo.

do e quando ela estourava, ela virava tipo um Em Campo Grande de Barra Nova, no muni-
ácido que pinga na pele e faz um buraco. Fazia cípio de São Mateus (ES), a catadora de caran-
um buraco na minha pele e era muito dolorido. guejos Creusa Campello, de 52 anos, conta que
E escorria bastante água, bastante. Cheguei lá há pelo menos dois meses inflamações seme-
no postinho de saúde e a médica não falou nada lhantes às descritas por Eliane e Suely apa-
pra mim, só olhou e falou que aquilo era pere- receram na filha. “Minha menina, que sempre
ba. Eu fiquei bastante preocupada. No momen- toma banho na água lá, ela saiu umas coceira.
to não tinha o antibiótico no posto. Ela falou pra Nas pernas e na parte íntima. Saiu umas cocei-
mim que talvez curasse, porque estava tudo in- ra e a gente não sabe o que é. Ela não fez exame,
flamado, que talvez curasse com o antibiótico. a gente usa remédio caseiro, mas nem no mé-
Eu voltei pra casa e aqui o postinho só tem mé- dico não foi, porque não sabe o que é aquilo.”
dico uma vez por semana quando, às vezes, eles Segundo Creusa, o remédio caseiro, no en-
têm o carro pra trazer a médica. Tive que aguar- tanto, não tem resolvido. “Ainda tá coçando. É
dar mais uns 40 dias, porque era uma época bem umas manchas tipo uma coceira, vai coçando
difícil e eles não estavam conseguindo vir, mas e fica tipo uma queimadura em cima. Ela coça
nesse meio tempo, eu tive mais de 20 feridas des- e não sabe se é da água ou de quê. Na minha
sas. As pessoas, os meus vizinhos ficavam per- família nunca teve isso. Sempre tomou banho,
guntando ‘Nossa, que que é isso? Que coisa feia!’. mas nunca teve, agora tem. Tem uns dois me-
Passou um tempo, eu fiquei bastante preo- ses que ela tá com isso, e não sabe o que é.”
cupada porque eu não conseguia melhorar. Aí Um ano após o rompimento da barragem,
eu comecei a tirar foto das feridas, a enviar para ainda não haviam sido divulgados dados oficiais
94 Rejeitos na foz

de saúde que relacionem a contaminação das Lages também destaca que cada região so-
águas com os problemas descritos por mora- freu diferentes impactos ao longo do rio. Dessa
dores de comunidades atingidas pela lama. Em forma, as manifestações de doenças variam de
julho de 2016, funcionários do Ministério da Saú- um lugar para outro. É o caso, por exemplo, dos
de visitaram a comunidade de Barra Longa (MG) distritos de Paracatu de Baixo e Bento Rodrigues
para fazer a revisão dos prontuários, o que seria em comparação com o município de Barra Lon-
uma forma de identificar se houve aumento dos ga. De acordo com a médica, as populações dos
casos de alguma doença. Em resposta enviada dois distritos foram realocadas para o município
no final do mês de outubro por meio da asses- de Mariana e tiveram pouco contato com a lama.
soria de comunicação, o Ministério informou Em Barra Longa, por outro lado, a lama in-
que o relatório ainda não havia sido finalizado. vadiu apenas algumas ruas, e por isso muitos
De acordo com a médica Clarissa Santos La- moradores continuam na cidade. “A popu-
ges, integrante da Rede Nacional de Médicas e lação de Barra Longa continua lá, a lama tá
Médicos Populares, o principal problema encon- lá do lado deles. Todas as vezes que eu fui, a
trado pelos profissionais de saúde é a falta de ante- lama ainda estava muito molhada, você pisa-
cedentes que indiquem tratamentos adequados. va, afundava. Agora tá um pó fino, que tá no
“Quando a gente pensa em saúde relacionada a ar. O ar está pesado. E antes não tinha, isso
desastres, a gente tem várias literaturas. Mas ne- é um fato. E se a gente consegue ver que au-
nhum desastre foi muito parecido com esse. A mentou o número de doenças respiratórias,
gente tem no mundo vários outros tipos de desas- pode ser por causa disso sim”, avalia a médica.
tre que são mais relacionados a efeitos ambientais
ou provocados pelo homem também, mas não
dessa magnitude, desse impacto e desse tipo.”
Segundo Lages, quando se trata de de-
sastres, os principais impactos em saúde são
psicológicos, e por isso foi a primeira preocu-
pação dos médicos da Rede quando chega-
Foto Luana Melody Brasil
ram, dez dias após o rompimento da barragem,
às cidades atingidas pela lama em Minas Ge-
rais. Lages detalha alguns dos problemas mais
recorrentes em casos de desastres: “Questão
de estresse pós-traumático, depressão, au-
mento do índice de suicídio, aumento do al-
coolismo, aumento do abuso de drogas, au-
mento da violência doméstica, principalmente
violência contra a mulher e contra a criança.”
A médica tem acompanhado os atingidos
de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Barra
Longa, além da comunidade rural de Gestei-
ras, do município de Barra Longa, todos em Mi-
nas Gerais. Ela explica que o momento atual é
de observação dos problemas que se manifes-
tam após vários meses de contato com os re-
jeitos. “Hoje a gente considera que a gente está
no médio prazo. O que eu pude observar, na mi-
nha ida em Barra Longa, além de histórias de
depressão, de ansiedade, foram de doenças
de pele. Começou a aparecer muita queixa de
alergia, principalmente em crianças. Sintomas
respiratórios: bronquite, asma, sinusite, rinite.”
Rejeitos na foz 95

Aonde ir? em fazendas aqui em Linhares. E gente que não


recebeu o cartão precisa sair para trabalhar.”
Outra situação que impressionou a médica Devido à perda da renda que tiravam da pes-
Clarissa Lages foi a quantidade de pessoas se ca, Eliane Balke e Gilmar Abelina foram obriga-
mudando de Barra Longa. Esse mesmo movi- dos a devolver ao dono a casa que moravam em
mento de saída da comunidade foi notado por Urussuquara por atrasos no pagamento do alu-
Flávia Amboss e João Paulo Izoton, sociólogos guel. Em setembro de 2016, várias caixas, objetos
da Ufes. “Além das pessoas que a gente co- enrolados em papel e alguns móveis tomavam
nhece que foram embora, também tive a nar- os cantos da espaçosa varanda. Aos poucos, os
rativa de pessoas, aplicando o questionário, de pescadores começaram a se desfazer de per-
que ‘meus vizinhos estão indo embora. Não te- tences, pois tiveram de se abrigar numa barraca
nho mais vizinho. O cara daqui não está mais, de camping, que instalaram no quintal de uma
o cara dali não está mais’”, descreve Izoton. amiga moradora da mesma vila. “A Samarco está
Amboss completa: “O que surpreendeu tam- querendo o quê? Que o pescador, o morador, o
bém é que tanto gente que recebeu o cartão comerciante vá embora da localidade onde ela
como gente que não recebeu o cartão está indo jogou toda essa lama? E eu vou fazer o quê na
embora no sentido de trabalhar provisoriamen- cidade se eu só sei pescar?”, revolta-se Eliane.
te em outro espaço, porque como aqui o traba- A família do pescador Albertino dos Santos
lho foi perdido, para não ficar à toa, tem gente Romualdo, de Barra Seca, quase teve o mes-
que está indo para outros lugares trabalhar, mo destino de Eliane e Gilmar. “Meu aluguel tá

Em meio à mudança de casa, o que mais tem atordoado os dias da pescadora Eliane Balke é a falta de segurança sobre o futuro. “Quando a
gente tava pescando, a gente tinha uma vida estável. Hoje a gente tá dependendo das pessoas pra sobreviver. Complicado, né? A gente não
sabe o que vai acontecer, o futuro nosso. A gente fica sem perspectiva de vida, porque se sente totalmente abandonado.”
96 Rejeitos na foz

há três meses já vencido. É porque o dono da não ter vontade de sair da pequena casa à bei-
casa é um cara muito amigo. Nos ajuda aí do ra da estrada. “Querer sair daqui eu não queria.
jeito que ele pode. Senão, eu tinha que tá mon- E nem quero. Não quero não. Eu escolhi esse lu-
tando uma barraca aí em qualquer lugar pra vi- gar aqui. Pra mim eu acho que é o cantinho do
ver. Como que eu faria se ele não fosse um cara mundo melhor que tem. Eu desejo ficar aí. Nem


bacana com a gente?”, questiona Albertino. que seje pra morrer mesmo”, garante Sebastião.
Com todos os transtornos que tem enfrenta- Zé de Sabino também não quer sair de
do, a pescadora Suely Martinelli, de Urussuqua- Regência, mesmo que o assunto passe pela
ra, já pensou em se mudar de vila. O que a im- mente ao longo dos dias
pede são os problemas financeiros. “Olha, se eu
tivesse condições eu saía. Mas é a única casinha Já ventilou alguma ideia na minha cabe-
que eu tenho, eu não pago aluguel. Eu não tenho ça de mudar daqui de Regência. É complica-
como sair, porque se eu sair não tenho condições do mudar, porque tem a estrutura, né? Toda
de pagar aluguel. Eu não tive estudo, estudei só situação pra se colocar de novo. Eu tenho 50


até o segundo ano. Minha profissão é a pesca anos de Regência. Já passou pela minha ca-
mesmo. Pesco desde os nove anos de idade.” beça a ideia de mudar, mas é uma ideia muito
Apesar das dificuldades para conseguir o longe. Por enquanto dá pra suportar alguns
próprio sustento na região onde moram, há dias, mas muito tempo também não. Então
atingidos que, enquanto puderem, preferem tá próximo de tomar uma decisão, se nin-
resistir no lugar onde escolheram passar suas guém tomar uma decisão pra gente. Se não
vidas. É o caso do pescador Sebastião Pereira, aparecer ninguém pra falar a mesma língua
de Barra Seca (ES), que repetidas vezes afirma da gente, tem que procurar um outro rumo.


Alguns recebem o auxílio. Por exemplo, Pontal e Barra
Seca. Tem 100 pescador em Pontal, uma metade receben-
do e outra metade não. Barra Seca, tem 35 pescador que a
gente tem de carteira documentado; tem 15 recebendo e a
outra metade não. Isso tá trazendo muito conflito pr’aque-
las duas comunidade e a Colônia sem saber o que faz,
porque é por determinação do juiz federal.
Milton Jorge, presidente da Colônia de Pescadores de Linhares
Rejeitos na foz 97

Foto Luana Melody Brasil

A única vez em que Zé de Sabino saiu de Regência foi para morar por três anos no Rio de Janeiro, onde conseguiu um emprego
de bombeiro hidráulico. Ele conta que, no entanto, a cabeça não saía de Regência, por isso voltou e de lá não saiu mais. Agora, a
realidade deixada pelos rejeitos de minério tem tirado o sossego do pescador. “Minha preocupação é saber até quando que vai esse
problema. Quem é que vai me dar a solução? Quando? Queria que fosse ontem já, pra mim ter um rumo.”
7
Fuga
dos
TURISTAS

Nunca mais entrei no mar. Desde que aconteceu isso eu
fiquei com medo. O pessoal fala que não tá poluído, mas
pode estar. A gente fica com aquilo, né? Nossa, uma
vez aqui tava lotado. O pessoal chegou aí e disse assim:
‘Gente, não pode ir no mar’. Aí todo mundo foi embora...
Fiquei triste. O verão foi horrível. Ninguém ficava não.
Vinha, olhava, assustado, e ia embora. E a gente ficava...
Tá ruim, tá ruim mesmo.
Lucilene Martins Lozer, de 51 anos, comerciante
de Pontal do Ipiranga, em Linhares (ES)
N
o caminho que leva para a vila litorâ- ostras, peixe frito e pastéis de frutos do mar, en-
nea de Barra Nova, no município de tre outras iguarias. Duas delas eram reservadas
São Mateus (ES), fica a comunidade para a Associação. As oito restantes eram alu-
de Campo Grande de Barra Nova. Na gadas para pescadores interessados em ven-
beira da estrada de terra, mora Adeci de Sena, der o que conseguiram pegar no mar e no rio.
pescador e presidente da Associação de Pesca- Normalmente, todas as barracas são alugadas
dores, Catadores de Caranguejo, Aquicultores, semanas antes do evento, de acordo com Cláu-
Moradores e Assemelhados de Campo Grande dia. No Festival de 2016, duas estavam vazias.
de Barra Nova (Apescama). Ao cair da noite de Uma das pessoas que pagaram o aluguel
9 de setembro de 2016, ele estava reunido com da barraca foi Crenildo Nascimento dos San-
alguns amigos, conversando. Era uma noite pa- tos. Ele pesca não só camarão, mas também
cata, quase não passavam carros na estrada. pescadinha, robalo, carapeba, tainha, cangoá
Dos poucos que passavam, boa parte tinha um e vários outros peixes no mar de Barra Nova
destino em comum: a abertura do Festival do Ca- desde os 16 anos. Hoje, com 32, ainda não
marão de Barra Nova, a poucos quilômetros dali. tem certeza se valeu a pena desembolsar R$
Ele lembra com tristeza do Festival do ano 200 para poder vender no Festival. “[A venda]
passado e de como tanta coisa mudou: “Essa caiu bastante... tiro a metade. Não porque o
hora eu não tava aqui não. Tava com a minha peixe tá poluído, mas por conta da tragédia
barraca lá, vendendo caranguejo. Vocês, que que teve os cliente fica desconfiado”, explica.
são estudados, têm faculdade, não vão deixar Elimar Silva trabalha na área jurídica da
ninguém tapear vocês. Vão lá, quero que vocês Associação e, na opinião dele, tendo a lama
registrem, digam o que viram lá”, pede Adeci. chegado ou não ao local, a comunidade sofre
Chegando à comunidade de Barra Nova, com os efeitos do desastre: “O impacto está
em São Mateus, para a abertura do Festival, acontecendo e as pessoas estão sentindo. Ou-
o pescador de Urussuquara Gilmar Abelina tras dizem que não foi impactada. Não preci-
saiu do carro e ficou alguns instantes para- sa a lama estar aqui pra gente ser impactado.
do. Ele voltava o olhar atônito para o palco, Muitas pessoas acham: ‘A lama não está aqui,
as cadeiras, as barracas… Depois explicou então nós não foi impactado’. Fomos sim!”.
que o susto era ver que o local do evento es- O aposentado Sivaldo Luiz da Conceição, de
tava vazio, poucas pessoas andavam de um 60 anos, mora em Barra Nova há seis anos. Con-
lado para o outro. Não era nada parecido ta que foi para a vila por causa do sossego do lu-
com o que Gilmar estava acostumado a ver. gar. Sempre frequenta o Festival, que tem, além
As impressões de Gilmar são confirmadas da venda de frutos do mar, apresentações musi-
pelos organizadores do evento. A presidente cais em todos os três dias de realização. Sivaldo
da Associação de Pescadores, Moradores e também não sabe se a lama chegou ali, mas pen-
Marisqueiros da Comunidade de Barra Nova sa duas vezes antes de consumir os mariscos
Sul, Cláudia Monteiro Teixeira, percebeu a que- vendidos no Festival. Às vezes, o prazer fala mais
da no número de pescadores interessados alto do que o receio: “Comi pastel de siri, com
em vender no Festival: “Eles que procuram a medo, mas comi”, responde com uma risada.
gente, e não procuraram. Porque todo ano a
gente não precisa procurar, eles próprio vêm.
Eles mesmo já colocam ‘ah, você acha que vai
dar movimento? Com essa lama que teve aí... Festival cancelado
o camarão tá fraco’, aí muitos desanimaram.”
Dez barracas foram montadas pelos orga- Ao sul de Barra Nova, no município de Linha-
nizadores do evento para a venda de camarão, res (ES), a comunidade de Povoação, a penúltima
100 A fuga dos turistas

Foto Victor Pires


Em Barra Nova, os organizadores dizem que a 10ª edição do Festival do Camarão, em setembro de
2016, foi menos movimentada do que o normal

antes do encontro do Rio Doce com o mar, teve que você pensar aqui em Povoação. Infeliz-
planos frustrados pela lama. O Festival Nacional mente, não serviu pra nada. O esforço foi em
de bandas de Garagem, marcado para aconte- vão, foi tudo pelo ralo. É uma pena. Uma pena.
cer ali, precisou ser cancelado depois da che-
gada dos rejeitos ao mar e ao rio que passa em Claudionor lamenta a morte prematura
frente à vila, conta Claudionor Soares, presidente do evento que, segundo ele, iria alavancar
da Associação Cultural Folclórica de Povoação. o nome da vila de pescadores a nível nacio-
Estava tudo planejado. Ele já conseguia nal. Marcado para janeiro de 2016, o Festival
ver centenas, ou melhor, milhares de turis- iria reunir, ao longo de dois finais de semana,
tas ocupando as ruas de Povoação, entrando bandas de diversos estilos, do rock ao for-
e saindo das pousadas e pensões, mano- ró pé de serra. Foram 80 bandas inscritas,
brando e estacionando os carros nas ruas de praticamente todos os estados brasilei-
estreitas, indo em bandos para as praias, ros, e o público escolheu pela internet 30


comendo nos restaurantes e quiosques, delas para encherem Povoação de música.
comprando nos mercadinhos e padarias… Apesar de ser menos otimista do que
Os tempos seriam bons para Povoação, vila Claudionor em relação ao número de tu-
de aproximadamente três mil habitantes. ristas com o Festival, José Carlos Fiorot,
secretário de Cultura, Turismo e Esporte
Nós estávamos calculando 40 mil pesso- de Linhares, concorda que o evento incre-
as em Povoação. Dois finais de semana. Vinte mentaria o número de visitantes e ganhos
mil por final de semana. Nossa, seria muito econômicos da vila. “Iria aumentar mui-
bom pra cada comerciante, pra cada ambu- tas vezes a população lá. Seria do turista.
lante, pra cada morador. Pessoas da comu- Como hoje no verão a gente tem em torno
nidade investiram! Investiu com mais quar- de umas mil pessoas, poderia dar umas cin-
tos, cresceu a casa, tivemos curso de cama co mil pessoas ou mais”, estima. A prefeitura
e café, tivemos curso de artesanato, tivemos de Linhares foi a responsável pelos cursos
curso de camareira, tivemos curso de tudo de capacitação dos comerciantes locais.
A fuga dos turistas 101

Além da variedade de sons, outro fator da- As comemorações, no entanto, não tinham
ria força ao potencial turístico da vila nos dias foco apenas na pesca. Elas envolviam apre-
de Festival. Povoação está situada na região sentações de bandas, desfiles de moradores,
da foz do Rio Doce e é rica em atrativos natu- campeonatos esportivos, festas na praia. Na
rais. O lugarejo possui praias de água doce (às festa de 2015, por exemplo, entre 8 e 11 de outu-
margens do rio) e salgada (na beira do mar), bro, Povoação recebeu o Circuito Estadual de
além das lagoas próximas. Essa abundância é Bodyboarding Profissional e uma das etapas
o maior atrativo para o turismo no local, mes- do Circuito Estadual de Bodyboarding Amador.
mo sem Festival. Ou era, antes da chegada O bodyboarding é um esporte em que o pra-
dos rejeitos, no dia 21 de novembro de 2015. ticante desliza sobre as ondas usando uma
A tragédia ambiental foi o que impossi- prancha menor que a do surfe convencional,
bilitou a realização do Festival de Bandas de podendo estar de bruços, de joelhos ou em pé.
Garagem, como explica José Carlos Fiorot: “A Festa do Robalo, que já é tradicional, que
“Nós ficamos preocupados em essas pes- seria acho que a 12ª já, deixou de existir. Era pra vo-
soas usar o rio – lá eles usam o rio pra banho cês estarem chegando aqui no foco da Festa do
– e o mar. Devido a isso, nós cancelamos”. Robalo”, diz Claudionor Soares. A proibição da pes-
ca e o receio de consumir os peixes que tiveram
contato com os rejeitos da mineração eliminaram
Sem peixe, não há festa qualquer possibilidade de a festa ser realizada.
A interdição na região da foz do Rio Doce foi
Entre setembro e outubro, todos os anos, determinada em fevereiro pela Justiça Federal
quem passava por Povoação podia ter certeza a partir de liminar do Ministério Público Federal.
de encontrar a vila agitada. O motivo era uma das A medida, que dura por tempo indeterminado,
festividades mais tradicionais da comunidade, a abarca o litoral capixaba desde Barra do Riacho,
Festa do Robalo. O peixe, uma das espécies mais no município de Aracruz, ao sul da foz, até De-
importantes para os pescadores da foz do Rio gredo, mais ao norte, no município de Linhares.
Doce e do litoral capixaba, por seu valor comer- A situação da Festa do Robalo é bem pare-
cial, era motivação para o evento. Os moradores cida com a de outra na mesma vila. “Nós fazia
e turistas podiam provar as diversas receitas uma Festa da Manjuba aqui. Esse ano não fize-
de robalo e dos outros peixes típicos da região. mos. Porque não podia pescar a manjuba, né?

O aposentado Sivaldo Conceição percebeu a queda no movimento da Festa do Camarão de Barra Nova
Foto Luana Melody Brasil
102 A fuga dos turistas

Foto Luana Melody Brasil

O cartaz anunciando o verão de 2016 continuava na entrada de Pontal do Ipiranga em setembro de 2016. De acordo com a prefeitura
de Linhares, a programação na vila foi totalmente bancada pelo município, sem participação da Samarco

Não podia entrar lá dentro d’água. E aí, como é Publicidade questionável


que você vai fazer de uma espécie de peixe se
você não tem ela pra fornecer pro turista que Perto dali, na foz do Rio Doce, a vila de Re-
vem pra festa?!”, resume o pescador Simião gência Augusta, em Linhares (ES), também foi
Barbosa. Em 2016, seria realizada a terceira profundamente afetada pela chegada da onda
edição da Festa da Manjuba, um peixinho que de rejeitos. Por ser a comunidade mais próxi-
não passa de 15 centímetros, muito aprecia- ma do encontro do rio com o Oceano Atlânti-
do como petisco em todo o litoral brasileiro. co, ganhou os noticiários de todo o país antes
“Já vinha gente do estado todo, nós já recebia mesmo da chegada da lama, em 21 de novem-
pessoas do estado todo que vinham: ‘Vamo comer bro de 2015. Segundo contam moradores lo-
manjuba lá em Povoação!’. Como dizia a turma: cais, sabendo que os rejeitos estavam para
‘Vamo manjubar em Povoação!’. E aí fazia aquela chegar, jornalistas, funcionários da Samarco
zoada. Era uma festa pequena que se torna gran- e pesquisadores foram em massa à vila. A mo-
de porque vinha gente de muitos lugar pra ver um vimentação perturbou a calmaria do lugar.
peixinho, uma manjubinha, que era uma coisinha Em sentido inverso, o movimento de turis-
assim que se tornou uma atração”, lembra Simião. tas despencou depois da chegada dos rejeitos.
Assim como na Festa do Robalo, as atra- “Regência talvez teve 10% de pessoal, de turis-
ções culturais faziam parte da programação. ta, que sempre frequenta todos os anos. Então
Um dos destaques eram as bandas de congo, teve uma queda de 90% ou mais, praticamente
ritmo tradicional do litoral do Espírito Santo, que não tinha ninguém na praia. O impacto finan-
mistura percussão com cantos e danças. Si- ceiro, em cima do turismo, do comércio, das
mião chegou a pedir, em fevereiro, uma reunião pousadas, isso aí foi um impacto praticamente
com a Samarco para falar sobre a realização da total. Teve pousada que não teve nenhuma re-
festa ou de alternativas, para evitar que a tradi- serva, não teve ocupação”, diz Fiorot, secretá-
ção acabasse. “Só que eles ficaram enrolando, rio de Cultura, Turismo e Esporte de Linhares,
enrolando, e essa reunião até hoje não saiu”. referindo-se ao primeiro verão após a lama.
A fuga dos turistas 103

Mesmo com a baixa movimentação tanto


em Regência quanto em Povoação e Pontal Quem foi Caboclo
do Ipiranga, mais ao norte, a prefeitura de Li- Bernardo
nhares manteve a agenda para a virada do
ano, que incluía fogos de artifício nas praias O pesquisador de naufrágios Marcello De
Ferrari fez a reconstituição, com base em biblio-
e shows, e para o Carnaval, com apresenta-
grafia sobre o tema, do naufrágio do navio Im-
ções musicais. “Nós tentamos fazer o máxi-
perial Marinheiro e do ato de Caboclo Bernardo.
mo que a gente podia no momento saben-
As informações estão em seu portal na internet.
do que talvez a gente não teria o retorno
Em uma noite de tempestade em se-
financeiro para o município”, afirma Fiorot.
tembro de 1887, o navio Imperial Marinhei-
Apesar dos esforços da prefeitura, a po- ro, enviado à foz do Rio Doce para mapear
pulação de Pontal do Ipiranga, vila ao norte o local e o litoral do Espírito Santo e evitar
da foz, sentiu no bolso os impactos da queda naufrágios de outras embarcações, enca-
no turismo durante o Carnaval de 2016. “Você lhou próximo à foz, em frente à vila de Barra
acha que se os peixes estão morrendo, você do Rio Doce – o antigo nome de Regência.
vai entrar no rio para tomar banho? Ninguém. Os 148 tripulantes do navio não consegui-
Não teve turista. Nós não tivemos Carnaval ram recuperar a embarcação e buscaram a
esse ano. E o prejuízo não foi pouco”, conta Si- salvação subindo nos pontos mais altos do
mony Silva de Jesus, de 28 anos, moradora de barco. Doze marinheiros entraram em um
Pontal do Ipiranga. A família de Simony tem um bote e foram em direção à praia conseguir aju-
quiosque na praia, mas o local está fechado. da. A tempestade estava tão forte que o bote
A diferença entre os eventos realizados em afundou e quatro dos tripulantes morreram
Povoação, Pontal e Regência, os maiores pólos afogados. Os outros chegaram à praia nadan-
de turismo no litoral de Linhares, é que a Samar- do e chamaram a atenção dos moradores.
co custeou boa parte da programação cultural O tempo passava e a tempestade não
em Regência. Não foi apenas no Réveillon e no dava sinais de que iria acalmar. Com a si-
Carnaval que a mineradora ajudou a bancar a in- tuação cada vez mais crítica, não havia
fraestrutura e a programação cultural, mas tam- muitas esperanças para quem estava no
bém na tradicional Festa do Caboclo Bernardo. navio. Foi quando apareceu o pescador
A mineradora comprometeu-se a, por meio Bernardo José dos Santos, o Caboclo Ber-
de uma fundação de direito privado, fazer um nardo, morador da vila. Ele amarrou uma
diagnóstico do patrimônio cultural das comu- corda na cintura e jogou-se ao mar, para
nidades consideradas impactadas. Esse é um atravessar a nado a distância de 150 me-
dos pontos previstos no Termo de Transação e tros que o separava da embarcação. Nas
Ajustamento de Conduta (TTAC) – mais conhe- primeiras quatro vezes, as ondas o lança-
cido como Acordo – assinado em março de 2016 ram de volta à praia. Na quinta, conseguiu
pela Samarco, suas acionistas Vale e BHP Billi- alcançar o navio. Os marinheiros presos
na embarcação que naufragava consegui-
ton, o governo federal e os governos estaduais
ram atravessar o mar agitado agarrados
de Minas Gerais e Espírito Santo. A partir disso,
na corda. Mesmo assim, dez morreram.
a fundação desenvolveria “ações para o resga-
Caboclo Bernardo recebeu das mãos da
te, a transmissão geracional e a promoção das
Princesa Isabel uma medalha de ouro e um
atividades culturais das comunidades, tais
diploma em reconhecimento ao ato heroico.
como festas e celebrações, conhecimentos e Em 1914, já esquecido, ele foi assassinado na
técnicas tradicionais, artesanato e culinária”. porta de casa com um tiro de um morador
Organizada pela Associação de Moradores embriagado da vila. A memória do Caboclo
de Regência, Associação Cultural de Congo de foi resgatada com a morte e com as home-
Regência, Associação Comercial de Regência e nagens posteriores, entre elas a Festa do
Projeto Tamar – que possui uma base na vila – e, Caboclo Bernardo, a comemoração mais
na edição de 2016, bancada em parte pela Samar- antiga de Regência, com início em 1930.
co, a Festa de Caboclo Bernardo é o evento cul-
104 A fuga dos turistas

tural mais antigo de Regência. A comemoração bloco das crianças, organizado pela escola de
teve início na década de 1930 e hoje inclui apre- Regência, por exemplo, a lembrança do desastre
sentações de bandas, desfiles e interpretações fez parte da fantasia: “Esse ano foi Carnavila Lá-
do ato heroico do capixaba Caboclo Bernardo. grima de Lama o nosso tema. A gente fez uma lá-
O apoio da mineradora não passou desper- grima nas crianças aqui. Em todo mundo”, conta
cebido – aliás, a Samarco se esforçou para que a moradora de Regência Maria da Glória Buecker.
isso não acontecesse, o que gerou críticas. “Na
festa do Caboclo Bernardo, toda hora que o
cara [o mestre de cerimônias] pegava o micro- Estudantes tiveram planos soterrados
fone era: ‘Apoio: Samarco!’, ‘Obrigado, Samar-
co!’”, relata o sociólogo da Universidade Fe- “Regência é uma comunidade turística.
deral do Espírito Santo (Ufes) João Paulo Lyrio Hoje, eu arrisco dizer que o turismo tem o mes-
Izoton. A empresa também espalhou cartazes mo grau de importância que a pesca dentro da
em que destacava o investimento na festa. comunidade. Isso fez com que eles estendes-
De acordo com Fiorot, o patrocínio da Sa- sem o cartão também aos comerciantes. Mas
marco para as festas de Regência foi con- o que eles fazem? Só os comerciantes que têm
seguido porque a Associação de Morado- CNPJ. E a manicure que atendia os turistas que
res local “correu atrás” e buscou o apoio da vinham nos finais de semana? E fulana, que fa-
empresa. O sociólogo da Faculdade Pitágo- zia docinhos? E fulano, que tinha uma lancho-
ras de Linhares Hauley Valim acredita que o netezinha com açaí? E fulano que cortava a gra-
apoio aos eventos de Regência, no entanto, ma dos quintais? E beltrano, que dava uma aula
se deve à maior visibilidade da vila na mídia. de surfe?”, questiona o sociólogo Hauley Valim.
Mesmo em festas como o Carnaval, foi difícil Com a queda no número de turistas e, conse-
esconder as marcas deixadas pelo desastre. No quentemente, sem a mesma entrada de dinhei-

A praia de Pontal do Ipiranga, em setembro de 2016, atraiu poucos turistas, motivo de preocupação para pessoas que dependem dos
visitantes para ganhar a vida, como os donos de quiosques e barracas

Foto Luana Melody Brasil


A fuga dos turistas 105

“O povo não tão vindo mais como vinha antes. O que eu acho
que é mode esse impacto dessa água, porque o povo... Eles
vêm pra comer o marisco, com medo de ter algum proble-
ma, eles não querem vir. Eu vejo impacto nisso aí
Sivaldo Luiz da Conceição, morador de Barra Nova e
frequentador do Festival do Camarão

ro de antes, os planos e sonhos de muitos mo- na Cabana. Os custos para manter o quiosque
radores foram frustrados. É o caso de Thalena aberto não compensam os ganhos escassos.
Pereira Maciel, de 25 anos, nativa de Regência. “Se não tem o turista, o comércio fica fra-
A família gere o Restaurante da Zenaide – mãe co. Se o comércio fica fraco, o que movimenta
de Thalena – e possui uma pequena pousada, bastante também é a construção civil. Aí, se
tudo bem perto da praia. Thalena formou-se em não tem turista, por que vai se mexer em casa,
pedagogia na Faculdade Pitágoras, em Linhares. essa coisa toda? O pessoal está indo embora,
“Com esse problema todo, o fluxo de atendi- procurando emprego em outros lugares. Mas
mento caiu bastante, bastante mesmo. Eu tinha isso não é culpa só da Samarco. É a crise que
expectativas, me formei, eu fiz o curso pelo Fies o país está vivendo, então a gente não pode
[Fundo de Financiamento Estudantil], então, as- generalizar. Vai se acumulando”, destaca Mô-
sim, não paguei ele todo. Então eu tô devendo nica Silva, presidente da Associação de Mora-
também. Mas eu tinha um pensamento assim: dores de Pontal do Ipiranga e irmã de Simony.
‘Pô, Regência cada vez mais melhorando, não vou As irmãs concordam, no entanto, que as per-
ter problema’. Eu não esperava, né? Nem sabia das vão muito além do dinheiro. “Às vezes até à
que existia barragem, na verdade”, diz Thalena. noite, minha mãe, que é mais velha, falava as-
Outra estudante da Faculdade Pitágo- sim ‘ah, vamos tomar banho no rio?’. Aí quando
ras também passa por dificuldades. Simony, estavam as quatro filhas, ia todo mundo para o
de Pontal do Ipiranga, tem uma bolsa para rio tomar banho. Aí não dá mais...”, conta Simony.
o curso de fisioterapia na instituição de en-
sino. Como o auxílio não cobre todo o valor
da mensalidade, parte está atrasada. Além Os turistas voltavam com medo
disso, ela está devendo o valor da matrícu-
la que teve de fazer em 2016. Antes, a Caba- Mônica e Simony de vez em quando ma-
na, um quiosque da família na praia, garan- tam a fome na lanchonete da Lucilene Martins
tia que nenhuma conta ficasse pendente. Lozer, de 51 anos. Ela prepara sanduíches, cal-
“Mudou muita coisa em nossa vida. Na dos e, às vezes, porções de peixe e camarão.
Cabana, era no mínimo uns R$ 2 mil, R$ 2.500 Antes um dos pratos mais procurados, hoje
que vendia todo final de semana. E hoje está os frutos do mar ficam esquecidos no freezer.
fechado, não está tirando nada”, diz Simony. O Lucilene teve até que diminuir a quantidade de
fechamento da Cabana afetou também outras peixe que compra, para evitar o desperdício.
pessoas, além da família dela: “Sempre tinha “O movimento caiu. O pessoal não vinha pra
o emprego indireto, porque tinha pelo menos praia com medo. Teve uma época que chegava
dois garçons e uma pessoa que ajudava na co- gente aqui, aí voltava. Ficou deserto. Eu nunca
zinha. Só aí três. Em época de verão, dobrava atrasei um aluguel aqui. Meu aluguel tá todo
isso, eram seis”, conta. Hoje, ninguém trabalha atrasado porque caiu o movimento. Caiu por
106 A fuga dos turistas

causa da Samarco. Antes teve aquela enchen- toda a comunidade de Pontal do Ipiranga. “Eles
te [em 2013], lembra? Mas nem ela me derru- vêm, exploram, fazem essa desgrameira toda e
bou não, tá? Deus é tão bom. Mas depois, meni- ainda querem ter o direito de virar para você e fa-
no, esse negócio ‘ah, eu não vou pra praia, que lar: ‘Não, você não foi impactado. Sua área não foi
tá poluído’, ninguém quer comer o peixe, nin- impactada. Não podemos fazer nada por você.’”
guém queria comer nada”, Lucilene lamenta.
Apesar dos prejuízos, a comerciante não re-
cebe nenhum tipo de assistência da Samarco, Quartos vazios
nem mesmo o cartão subsídio, cujo valor – um
salário mínimo mais o valor de uma cesta bási- Luiza Júlia de Leão, de 66 anos, mais conhe-
ca e 20% por dependente, o que não costuma cida em Pontal do Ipiranga como Dona Júlia,
passar de R$ 1,5 mil – não chega nem à metade não acredita que receberá qualquer repara-
do que ganhava antes em uma semana. “Ven- ção da mineradora ou do governo. “Já cansei
dia muito, meu amigo. Aqui eu vendia por se- de brigar. Eu acho que não vem esse benefício,
mana R$ 2 mil, R$ 2.500. Hoje eu passo a sema- não chega até nós não. ‘Mês que vem’, ‘não, é
na toda e às vezes não vendo nem R$ 200. Tem outro mês’. Não, tenho tempo pra isso não. Te-
semana que eu não vendo nada. Até no inver- nho 66 anos, não tô mais com esse pique”, irri-
no era bom aqui. Verão nem se fala”, relembra. ta-se e conclui afirmando que vai tentar recu-
O presidente da Apescama, Adeci de Sena, perar as perdas sozinha: “Como eu tenho feito”.
vê problemas semelhantes na comunidade de Dona Júlia é proprietária da pousada Recanto
Campo Grande de Barra Nova, no município de Solar, perto da lanchonete de Lucilene. Antes do
São Mateus (ES), ao norte de Pontal do Ipiran- desastre, a maioria dos quartos estava reservada
ga. “Nós tínhamos aqui visitantes de todo Brasil para o verão, que prometia trazer muitos visitan-
para comer o caranguejo, comer uma pesca- tes para a cidade e bons ganhos para os caixas
dinha frita, o camarão… Quando ele [o turista] dos comerciantes locais. “Aqui eu tenho 29 quar-
soube dessa tragédia, nós passamo a perder o tos. Tava quase tudo fechado. Aí um cancela aqui,
nosso equilíbrio social. Como é que as pessoas outro não vem, outro tá com medo da praia inter-
vão vir tomar banho dentro de uma água po- ditada. Aí o que fica? Falavam que era por causa
luída? Como é que eles vão comprar um peixe, da praia. Eu dizia ‘ah, não sei, não tô vendo, mas
um caranguejo, um siri, para poder se alimen- puseram a placa, tá interditada’, não podia entrar…”.
tar, numa coisa que está poluída?”, pergunta. Mesmo nas áreas consideradas impacta-
Numa noite de vento frio em setembro, senta- das e assistidas pela Samarco, os comercian-
da numa das cadeiras da lanchonete da Lucilene tes, muitos dos quais dependiam diretamen-
ao lado da irmã, Mônica expressa sua indigna- te do turismo para dar conta do orçamento


ção com a forma de a mineradora tratar não só do mês, enfrentam dificuldades maiores do
sua família, que perdeu parte do sustento, mas que os pescadores para conseguir o cartão-

Eles vêm, exploram, fazem essa desgrameira toda e ainda querem


ter o direito de virar para você e falar ‘não, você não foi impactado.
Sua área não foi impactada. Não podemos fazer nada por você’
Mônica Silva, presidente da Associação de Moradores
de Pontal do Ipiranga
A fuga dos turistas 107

Foto Victor Pires

A entrada do point, a cinco quilômetros de Regência, (ES) um dos locais utilizados por quem ainda tem coragem de surfar

subsídio. Porque não exercem uma atividade porque se eu te mostrar ali um email, todos
diretamente ligada à pesca, muitos não fo- falam assim: ‘E a lama, chegou aí?’. Todos per-
ram considerados atingidos pela empresa. guntam”, garante Fábio sentado em um banco
Júlia ainda não fez o balanço exato na recepção quase vazia do estabelecimento.
dos prejuízos, mas acredita que vai demo- Ele e a esposa são donos da Pousada Urus-
rar para se recuperar deles. “No fim das suquara desde 1995, quando se mudaram para
conta não ganhei foi nada, porque inves- a vila com a ideia de arriscar um novo rumo na
ti, paguei luz, contratei gente, fiz estoque…”. vida. “Tudo o que eu tentei, eu fazia e não gos-
A situação se repete em Urussuquara. A tava”, explica Fábio. Antes de entrar de cabeça
pousada batizada com o nome da vila vive no ramo hoteleiro, ele acumulou experiências
uma calmaria que inquieta o proprietário Fá- na política: foi servidor do Instituto Estadu-
bio Roberto Vieira Gama, de 55 anos. Se fosse al de Saúde Pública, vereador em Linhares e
no ano anterior, Fábio garante que os quar- Secretário de Meio Ambiente do município.
tos estariam todos reservados com mais Entre uma atividade e outra, Fábio manteve
de um mês de antecedência. Afinal, a data presente um prazer que remonta a 1975: o surfe.
– uma sexta-feira colada em dois feriados, Surfou da adolescência até 2008, quando um
o 7 de setembro e o dia de Vitória, no dia 8 – infarto o proibiu de ir atrás de emoções fortes.
era uma das mais cobiçadas pelos turistas. Não fosse o problema de saúde, provavelmen-
O hoteleiro não culpa diretamente o desas- te estaria surfando até hoje, com ou sem rompi-
tre pela queda no movimento. “A fofoca afe- mento de barragem. Na verdade, ele conta que
tou muito mais do que a lama”, opina. “Afetou não mudou em nada a rotina por causa do de-
108 A fuga dos turistas

sastre. Continua a ir à praia todos os dias com tamo paralisados. Tamo esperando isso aí”, diz
a mulher, a comer peixe, a ficar horas no mar. Rodrigo Arduin Venturini, empresário de Linhares
e presidente da Associação de Surfe do município.
Prejuízos ao surfe Em maio, a Associação promoveu um cam-
peonato em Pontal do Ipiranga. Esse saiu do
Um dos motivos que levaram Fábio a esco- papel, mas também trouxe problemas. “Fi-
lher Urussuquara como seu novo lar, nos anos zemos o campeonato e deu muita conversa.
90, foi o surfe. “Como eu nunca tive condições de Uns apoiaram, outros criticaram e tal. Então a
ir pro Havaí, eu fiz meu Havaí aqui”, explica com o Associação achou melhor paralisar e dar um
jeito bem humorado de falar, sorriso no rosto. As tempo até que venham informações corretas
ondas de Urussuquara são propícias para o es- pra gente voltar às atividades”, explica Rodrigo.
porte, tanto é que um campeonato estava mar- Rodrigo descansava, num dia de sol escal-
cado para acontecer na praia em frente à pousa- dante em setembro, debaixo da sombra impro-
da de Fábio, entre os dias 13 e 14 de julho de 2016. visada de um refúgio feito com folhas de co-
Para tristeza de Fábio e frustração da Asso- queiro e madeira. A prancha de surfe estava ali
ciação de Surfe de Linhares, responsável pela perto, na areia. Ele ainda estava molhado com
organização do evento, a lama levou todo o pla- água do mar. Tinha acabado de surfar no point
nejamento por água abaixo. “Questão de campe- – um local cinco quilômetros ao sul Regência.
onatos e tudo a gente não tá podendo fazer, que “Conversei com alguns médicos, ninguém
era a forma que a Associação tinha de arrecadar me deu certeza de nada, não posso falar que
verbas e tudo pra conseguir fazer outros tipos de eles tão certo, mas ninguém acredita que você
ações. Ações sociais... E sem verba nenhuma, nós caindo na água duas vezes por semana, três

Rodrigo Arduin Venturini não deixou de surfar por causa do desastre, mas ainda sente falta de informações confiáveis
A fuga dos turistas 109

vezes por semana, vai te contaminar pela pele.


Você se alimentar dos crustáceos e dos peixes,
e tal... Eu não estou comendo o peixe daqui. Ain- As primas de Bali
da não”, conta Rodrigo. Ao longo da conversa,
a falta de informações e consequente incerte-
za sempre vêm à tona. São as maiores recla-
mações do surfista, que trabalha em Linhares “A gente tem uma combinação de fa-
e vai para Regência surfar nos fins de semana. tores que faz daquela onda uma onda
O sociólogo Hauley Valim, professor da Facul- especial, especialmente a onda da boca
dade Pitágoras em Linhares, tinha um esquema do rio”, afirma Hauley Valim, que surfa
parecido com o de Rodrigo antes da contami- em Regência desde os anos 1990. Ele
nação da foz. Ele avalia que a lama de rejeitos é proprietário orgulhoso de um exem-
teve impactos sobre o cotidiano de quem vivia plar de novembro de 1993 da revista
em contato com o mar e o rio e dá como exem- Hardcore, uma das publicações espe-
plo seu próprio caso: “Eu trabalhava três dias, cializadas em surfe mais importantes
quatro dias em Linhares e ia para Regência do país. Na edição, guardada com cui-
surfar, ver meus amigos, comer uma moque- dado, que em novembro de 2016 fez 23
ca de robalo, bater papo, andar pela praia...”. anos, Regência é um dos destaques.
Hauley considera-se impactado pelo rom- Hauley conta que foi a primeira aparição
pimento da barragem: “Quando a lama da da vila em uma revista especializada.
Samarco atinge o mar no dia 21 de novembro A posição privilegiada de Regência,
do ano passado, ela atinge aquilo que a gente na foz do Rio Doce, faz com que as on-
tem de mais importante, que é o espaço onde das – as “primas de Bali” – tenham uma
a gente aliviava nosso estresse, o lugar que característica marcante: são muito mais
a gente ia fortalecer nossas relações com os longas do que o normal, como as ondas
amigos, inclusive nossas relações comunitá- da Indonésia. Assim, os surfistas podem
rias, porque a gente está frequentando a vila”. ficar em cima delas, na prancha, por bas-
No início de setembro, dez meses após o de- tante tempo. “Em outros lugares, onda
Foto Victor Pires

sastre, ele tinha surfado 14 vezes desde a chega- boa vai de 20 a 30 segundos. Ali, passa
da da lama ao mar, em todas preocupado com de um minuto tranquilo.Quando tá na
a possibilidade de contaminação. Hauley estima condição perfeita você vai longe, pega
que, se estivesse no ritmo de antes do desas- uma onda e caminha muito tempo den-
tre, provavelmente teria surfado mais de cem tro da água, numa única onda”, explica o
vezes no mesmo período, contando por baixo. surfista e agrônomo Adrian Lucas Xavier.
“Tenho determinados amigos do surfe Uma série de fatores contribui para
que tem três meses que eu não vejo, porque isso: os ventos, as correntes, a formação
o lugar em que eu os via cotidianamente era do fundo do mar no local… A oceanógra-
no outside [zona atrás da rebentação das fa da Universidade Federal do Espírito
ondas], quando o parceiro dropava aquela Santo Fabíola Amorim explica que a mu-
onda bonitona lá atrás, lá atrás da bancada e
dança abrupta de profundidade, uma
vinha surfando e você remando e vendo ele
característica local, é crucial: “Se você
pegando um tubo, entendeu? E a gente com-
estiver no mar profundo, você vê uma
partilhar daquele momento juntos. Isso a gen-
marolinha muito pequena na superfície,
te não tem mais, acabou”, reclama Hauley.
mas ela está ali. Esse impacto abrupto
A atração que as ondas de Regência exer-
entre uma coluna d’água muito profunda
cem sobre Hauley e Rodrigo, capaz de superar
e uma coluna d’água muito rasa muito de
o receio da contaminação, não é por acaso.
repente faz com que essa onda se eleve.
Portais e publicações especializadas apontam
que o local é um dos dez melhores pontos do Tem geração de ondas grandes o tem-
Brasil para a prática de surfe. A qualidade das po todo por causa da topografia local”.
ondas na boca da barra – local onde o rio de-
110 A fuga dos turistas

ságua no mar –, na frente de Regência, é tão fim de tarde, ia pra praia aqui na frente pra dar uma
grande que elas ganham o apelido de “primas remada e tal. E eu tinha aquela conexão muito for-
de Bali”. Bali é uma ilha na Indonésia, país famo- te também com o mar. Se eu não fosse pra surfar,
so mundialmente pela qualidade das ondas. eu ia lá pra dar um mergulho, pra dar uma renova-
“É uma vila de pescadores, então o turismo é da… Afetou assim, dessa forma. Primeiramente,
algo que está surgindo recentemente, há uns dez eu acho que o espiritual. Essa conexão toda eu
anos, e vinculado à prática do surfe, principal- acho que é muito mais forte que qualquer dinhei-
mente, porque lá é um surfe de altíssima qualida- ro, que qualquer outra coisa”. Desde a chegada
de, de renome nacional e com capacidade inter- da lama, ela não entrou no mar nenhuma vez.
nacional bastante forte”, explica o oceánografo O engenheiro agrônomo Lucas Celso de Oli-
e surfista Eric Mazzei, ex-morador de Regência. veira e o agrônomo Adrian Lucas Xavier são ami-
Surfistas do Brasil e de outros países vão a gos e desenvolvem um projeto de construção de
Regência experimentar as ondas. Apesar da con- fossas ecológicas, alternativa sustentável para
taminação, o esporte ainda é um dos grandes deposição de dejetos, que ajuda na economia de
atrativos para o turismo na vila, de acordo com água e evita a contaminação do ambiente. São
moradores. A lama da Samarco e a queda no nú- também surfistas. Passaram dois meses de 2016
mero de praticantes deixaram proprietários de construindo as fossas na vila de Regência, viven-
pousadas, restaurantes e lojas de equipamen- do da ajuda de habitantes apoiadores do proje-
tos para surfe em uma situação complicada. to. No tempo livre, aproveitam para entrar no mar
“Regência foi reconhecida mundialmente e pegar as famosas ondas, sem nenhum medo.
por causa do surfe, mas além disso a gente tem “Pelo conhecimento que eu tenho, nos primei-
muita história, muita cultura, respira isso. Regên- ros dias eu até teria o receio. Mas, pô, se passou
cia respira turismo. Só que foi primeiramente nove meses quando a gente chegou aqui... É mui-
conhecida como o surfe, sim. E, falar a verdade, ta água que já correu do rio, que já entrou no mar.
a gente cresceu, teve uma condição melhor, pri- É muita ondulação que já mexeu”, avalia Xavier.
meiramente por causa do surfe”, relata a nativa Oliveira concorda: “Se for fazer mal, é por
Thalena Pereira Maciel, que também surfava. muito tempo de exposição em baixa quantidade.
Ela conta que o restaurante da mãe cresceu É por isso que eu não senti receio. Eu também
por causa do fluxo de surfistas. “Minha mãe acho que não tem como as pessoas pararem a
começou a servir era um botequinho pequeni- vida delas por causa disso. E, hoje em dia, con-
ninho, não tinha nada, a gente morava dentro versando com as pessoas da vila, elas mesmas
do boteco, com o PF [prato feito] de um real”. dizem que na cabeça delas sempre jogaram as


Thalena perdeu muito mais que dinheiro com coisas no rio, sempre estiveram jogando isso.
a lama. ”Sempre assim, dava um tempinho aqui, A única coisa é que agora foi tudo de uma vez”.

Você trabalha a semana inteira, chega no final de semana você


quer surfar. Pô, não posso surfar porque veio uma empresa lá e não
trabalhou direito e veio aqui e cagou tudo? Ela tem que ser cobrada
Rodrigo Arduin Venturini, presidente da Associação de
Surfe de Linhares
A fuga dos turistas 111

Foto Victor Pires

O sociólogo e surfista Hauley Valim guarda, na casa que tem em Regência, a edição da Hardcore de 1993 com a vila em destaque
8

Feixes
de
VIME

Aqui em Regência eu fui uma das primeiras a fazer ma-
nifesto, a falar, gritar. Sempre fui aqui, do meu mundinho,
mas como aconteceu isso e me feriu na alma, não foi
por questão financeira... Realmente eu fiquei muito mal,
sabe? Aí eu acabei despertando, mas eu nunca tive
interesse de ficar lá envolvida com negócio de reuniões.
Você sai da sua zona de conforto
Thalena Pereira Maciel, de 25 anos, comerciante
e moradora de Regência (ES)
A

quentura da tarde de setembro de Era um grito muito alto que ninguém podia
2016 não foi suficiente para repelir as ouvir. Foi assim que eu comecei a me envolver
mais de 150 pessoas que se amontoa- com os movimentos sociais. O MAB [Movimen-
vam dentro e fora do Centro de Convi- to dos Atingidos por Barragens] convocou to-
vência de Campo Grande de Barra Nova, no mu- dos os atingidos da bacia do Rio Doce e, como
nicípio de São Mateus (ES). A reunião contava eu me sentia uma atingida também, eu fui, pro-
com dezenas de atingidos das vilas litorâneas curei. O Fórum também, o Fórum [Capixaba em
ao norte da foz do Rio Doce, além de represen- Defesa] da Bacia do Rio Doce, que eu conheci
tantes de movimentos sociais, Defensoria Pú- através de uma amiga. Algumas pessoas ain-
blica e acadêmicos de universidades do estado. da acham que a gente quer tirar proveito de
Entre as vítimas que expuseram, em voz alta, uma história dessa, tão triste. Não, eu quero


experiências, informações sobre o desastre do me precaver porque eu amo o local onde eu
rompimento da barragem de Fundão e pala- moro. Eu quero viver aqui o resto da minha
vras de engajamento, estavam os pescadores vida. Quer dizer que eu tenho que pagar esse
Braz Fernandes, Eliane Balke, Creusa Campello e preço, eu tenho que sair daqui, eu tenho que ir
Adeci de Sena. A proposta do encontro foi criar para outro lugar? Não, eu não vou embora da-
um espaço permanente de denúncias e de arti- qui, eu quero ficar aqui no meu lugar. Eu quero
culação dos atingidos pela pluma de rejeitos de uma resposta da Samarco pra vir resolver o
minério para reivindicação de direitos. No fim da nosso caso aqui, de toda a nossa comunidade.
tarde daquele mesmo dia, foi formado o Fórum
do Norte da Foz do Rio Doce, que ficou mais co- O engajamento nos movimentos sociais é
nhecido pelas comunidades como Fórum Norte. novidade no cotidiano da pescadora, que, no
De acordo com Gabriel Riva, especialista entanto, é considerada uma liderança na região
em direito ambiental e integrante do Fórum do norte da foz: “Nunca me envolvi com movi-
Capixaba em Defesa do Rio Doce, a necessi- mento social. Foi a primeira vez porque foi mui-
dade da criação do Fórum Norte se deu pela ta indignação que eu vi nessas águas aí que eu
falta de reconhecimento de diversas comu- tiro o sustento da minha vida. Vi muitos peixes
nidades ao norte da foz como atingidas pela mortos, aplísias [espécies de moluscos], que
lama de rejeitos. “É um pessoal que não só entraram na nossa barra correndo da lama. A
está excluído no nível dos próprios atingidos gente via eles morrendo sem poder fazer nada,
da margem, mas que também não são reco- ligamos para os órgãos ambientais, para a po-
nhecidos pela Samarco. Essa questão de ter- lícia ambiental e ninguém vinha”, revolta-se.


ritorialidade é muito problemática. A região de Companheiro de Eliane e também pescador,
pesca é aquela, só que o indivíduo mora numa Gilmar Abelina, de 46 anos, era um dos partici-
parte, caminha até a outra pra pescar, tem pantes da assembleia em Campo Grande e conta
a região que ele atravessa porque ele sabe o que o levou a atuar com os movimentos sociais:
que tem peixe lá do outro lado”, afirma Riva.
Segundo a pescadora Eliane Balke, de 49 Eu fui correr atrás dos meus direitos jun-
anos, moradora de Urussuquara (ES), no mu- to com o MAB e foi lá onde eu aprendi o plural,
nicípio de São Mateus (ES), as perturbações para não vir só por mim, e sim por todos. Eu tô
no cotidiano de quem escolheu viver do rio, abraçando a causa por todos, pode ser mo-
do mangue e do mar foram combustível para rador, pode ser comerciante, pode ser pesca-
a mobilização das vilas do litoral capixaba. dor formal ou informal. A gente ainda tem al-
114 Feixes de vime

Foto Luana Melody Brasil


gum recurso porque eu peço. Já fui três vezes
na Igreja Católica pedir. Tem outras pessoas
que têm vergonha. Preferem baixar a cabeça
e ficar chorando, deprimidas, andando tris-
tes pela rua chorando sem água, sem energia.
Teve gente que vendeu botijão de gás, vendeu
freezer. Foi embora, abandonou os cachorros
pra trás aí e os vizinhos tavam tomando conta

Moradora da região da foz, em Regência Au-


gusta, no município de Linhares (ES), Maria da
Glória Buecker, de 50 anos, é uma das pessoas
que já pensaram em sair da vila após a chega-


da dos rejeitos de minério, acompanhados dos
desarranjos provocados na região. O afeto pelo
lugar e pela comunidade com a qual convive há
15 anos, no entanto, fizeram a moradora ficar.

A gente tem rezado, orado muito a Deus


pedindo sabedoria. O que fazer? Vamos embo-
ra da vila, vamos abandonar a vila? Já pensei
também. Só que é muito maior você abando-
nar uma vila assim, sabe? Nossa, eu posso até
me aposentar, mas fala mais alto. Num mo-
mento tão difícil eu vou sair de uma luta? Onde


eles me acolheram com tanto carinho naquela
vila, onde eu hoje me considero uma cabocla
branca lá? Eles me amam, eu amo eles. A gen-
te aprendeu a se amar com as nossas diferen-
ças. Eu com meu jeito, eles com o jeito deles. E
a gente construiu muita coisa ali junto. A luta
toda é nossa, é de todo mundo, por um rio, por
uma água, e que a gente sabe que é possível

Na visão da socióloga Flávia Amboss,


da Universidade Federal do Espírito Santo
(Ufes), a mobilização da comunidade é tam-
bém um caminho para combater problemas
psicológicos decorrentes do trauma causa-
do pelo desastre. “Uma das formas de ven-
cer a tristeza e a depressão é justamente a
luta frente à empresa. Participar dos movi-
mentos sociais, participar do MAB, partici-
par do MAM [Movimento dos Atingidos pela
Mineração], vem mostrando para essas pes-
soas uma força pra não cair na depressão.”
Essa força também se destaca na conversa
com José Leite Costa, de 65 anos, morador de
Degredo, pescador e presidente da Associação
de Pescadores de Degredo, em Linhares (ES).
Feixes de vime 115

Entre os participantes da reunião de criação do Fórum Norte, a comerciante Simony Silva [à esquerda] destacou em seu momento de
fala as dificuldades enfrentadas após perder boa parte da renda que conseguia com o restaurante da família. Entre esses problemas
está manter os estudos na Faculdade Pitágoras, em Linhares (ES)
116 Feixes de vime


A luta toda é nossa, é de todo mundo, por um rio, por
uma água, e que a gente sabe que é possível
Maria da Glória Buecker, moradora de Regência (ES)


“É hora do pessoal estar junto, unido! Se Eu me senti assim: ‘Caraca, como é que
você pega uma vara, um vime seco, você que- pode? Tô desesperada aqui e parece que nin-
bra; Se você pegar dez, você não quebra, cara! guém tá nem aí’. Chegava na faculdade, tam-
Nunca vai conseguir quebrar. Nós temos é bém, o assunto não chegava nem perto dessa
que combater a Samarco, porque ela tá pre- questão ambiental e social. Tinha gente que
parada. Eles têm muito dinheiro. Tem a BHP nem sabia, então era um descaso total. Eu
também e a Vale. Então, poxa, peraí! A Vale, faço parte do Fórum Capixaba em Defesa do
você sabe, é das empresa maior do mundo. Rio Doce. Eu me deslocava pra Vitória pra par-
A BHP é a maior exportadora de minério do ticipar do Fórum várias vezes. E tudo assim,
mundo. Pelo amor de Deus, rapaz!”, diz José. no voluntário. A galera do Fórum que ajudava
no transporte. Aqui em Regência eu fui uma
das primeira a fazer manifesto, a falar, gritar.
Nova realidade


Sempre fui aqui, do meu mundinho, mas como
aconteceu isso e me feriu na alma, não foi por
Em meio a impactos e intrigas que não questão financeira... Realmente eu fiquei muito
existiam, o empenho das vítimas dos rejeitos mal, sabe? Aí eu acabei despertando, mas eu
de minério pela mobilização das comunida- nunca tive interesse de ficar lá envolvida com
des é algo que, para a maioria, veio com a negócio de reuniões. Eu sempre fui daqui, nun-
passagem da lama. Isso é o que tem perce- ca fui de lá. Mas como aconteceu isso… tem
bido Marcos Zucarelli, antropólogo da Uni- que ser você. Você sai da sua zona de conforto.
versidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
que participou da criação de comissões de O envolvimento de Thalena com o Fórum
atingidos na região mineira. “Eram pessoas Capixaba e a atuação em Regência a leva-
que viviam tranquilamente em suas casas, ram para uma audiência da Organização dos
com seus empregos, e que de repente tive- Estados Americanos (OEA) em Santiago, no
ram que aprender a se organizar, aprender Chile, em junho de 2016. Escolhida como re-
uma linguagem um pouco mais técnica, às presentante das comunidades impactadas
vezes até jurídica. Tiveram que aprender a no Espírito Santo, Thalena relatou na audi-
lidar com os conflitos, inclusive internos, ência os transtornos causados pelo rompi-
aprender a negociar e a se reunir pratica- mento da barragem de Fundão na região da
mente todo dia. Não é uma coisa fácil. É uma foz. “Eu nunca tinha nem entrado num aero-
realidade muito distante do que eles viviam, porto, quanto mais viajado sozinha. Sozinha
não precisavam disso, de lutar por direitos.” não, com Deus, né? Mas sem acompanhan-
Essa nova situação foi como um despertar te, sem nada. Fui na vontade mesmo de jus-
Foto Luana Melody Brasil

para a comerciante Thalena Pereira Maciel, tiça, de querer ver a diferença, porque aqui
de 25 anos, moradora de Regência, que fala no Brasil é difícil, mas lá fora a gente tem
da luta pela conscientização da comunidade ainda um pouquinho mais de esperança.”
sobre a atual condição de atingidos pela lama. A comerciante lembra que foi elogiada na
Feixes de vime 117

audiência internacional, pois muitos não sa- conseguir abarcar a diversidade social e
biam o que estava acontecendo na região da ao mesmo tempo manter uma forma orga-
foz. A expectativa de que gerasse uma revi- nizativa mais estruturada, e eles têm con-
ravolta na luta frente à mineradora foi, no en- seguido fazer isso, pelo menos até agora.”
tanto, frustrada. “Não teve tanta repercussão Esse movimento tem provocado admiração
quanto deveria. Não senti assim, mas foi po- também em quem acompanha de longe. É o
sitivo porque teve um reconhecimento. Mas é caso do caminhoneiro Enoque Santos Castello,
muito difícil, porque a gente tá aí contra a Vale, de 47 anos, que mora em Vitória (ES) e pesca por
contra a BHP. Infelizmente, vocês sabem como esporte, como ele mesmo define. “Pena que eu
é o sistema, né? Mas a gente tá insistindo.” não me enquadro hoje como pescador ativo pra
A socióloga Cristiana Losekann, da Ufes, poder tá levantando essa bandeira também.”
avalia de forma positiva o movimento de Enoque viaja para a vila de Barra Seca, em
articulação que tem ficado cada vez mais Linhares (ES), a cada 15 dias. Lá ele passa um
sólido nas comunidades. “Como alguém tempo na casa que possui, além de visitar o
que estuda mobilização, eu não posso dei- irmão e a cunhada, os pescadores Albertino
xar de observar como eles estão, os atores, dos Santos Romualdo e Maria da Penha Mo-
respondendo muito bem a isso. É bastan- reira Romualdo, que participaram de encon-
te impressionante. Um poder de articula- tros do Fórum Norte e do MAB. Sempre que
ção, de envolver a sociedade de forma bem pode, Enoque se atualiza sobre os passos da
ampla e ao mesmo tempo de manter uma comunidade, e não esconde a vontade de
constância na articulação. É muito difícil entrar na briga pelos direitos dos atingidos.

Durante encontro de criação do Fórum Norte, Gabriel Riva, Hauley Valim e Eliane Balke [dir. à esq.] abordaram em seus momentos de
fala sobre a importância da união das comunidades, da recuperação do rio e espécies impactadas, além da necessidade de reivindi-
car o reconhecimento das vilas ao norte da foz como área atingida
118 Feixes de vime

Foto Victor Pires


Enoque Santos Castello conta
que o principal impacto na
sua vida foi emocional, uma
vez que agora vivencia outra
realidade durante suas visitas
a Barra Seca. “To pouco me
lixando se deixei de pescar.
Deixei de pescar aqui, mas
posso pescar em outro lugar.
Mas aí o que eu vejo é a co-
munidade se degradando por
causa disso. Hoje o turista vem
aqui, não tem peixe. Ele vem
aqui, vai comer carne de sol
com aipim, na beira da praia,
olha que ridículo!”, indigna-se.


Me dá vontade de acompanhar a luta, por- desastre em Minas Gerais. “Tem vários direitos
que é injusto. É uma briga injusta. Uma em- que a gente percebe e se sente violado. O direi-
presa do tamanho que é se negar a pagar um to de ser uma comunidade tradicional, o direito
direito que pra eles não chega a arranhar o de escolher pra onde ir, de escolher a sua mo-
faturamento mensal. Não arranha. É a mesma rada, o direito de ir e vir, o direito de se organizar
coisa de uma pessoa tá com R$ 1 mil no bolso enquanto público, o direito de escolher a forma
e perder cinquenta centavo. O que me cau- de viver, o tipo de produção”, detalha Souza.
sa mais revolta é que se fosse uma empresa Complementando essa relação, Rafael
grande contra outra empresa grande, tipo se Portella, defensor no Núcleo de Defesa Agrá-
esse problema da Samarco tivesse estourado ria e Moradia da Defensoria Pública do Espí-


uma outra multinacional no caminho e tivesse rito Santo, traz outros direitos que, segundo
dado prejuízo pra eles, já tinham pago. Não é sua análise, estão sendo transgredidos pela
porque dinheiro gera dinheiro não. É porque as Samarco: “Além de tudo isso que a gente está
pessoas que foram atingidas, na grande maio- vendo, de prejuízo, de dano moral, da degrada-
ria, são leigas com relação aos seus direitos. ção ambiental, que tudo isso está atrelado aos
Isso é usado covardemente pelas pessoas que direitos humanos, talvez o principal hoje é as
detém o poder. Compra um político corrup- pessoas não terem absolutamente nenhum
to e resolve o problema. É isso que eu penso. conhecimento do que está sendo feito. Pode-
mos colocar como um direito à informação
básica, mas, muito mais que um direito à infor-
Direitos violados mação, um direito à participação”, considera.
O defensor público, que tem atuado nas re-
De acordo com Geovane da Costa Souza, giões do Espírito Santo atingidas pela lama e
representante do MAB no Espírito Santo, existe pela pluma de rejeitos provenientes do rompi-
um padrão de implantação de barragens que mento da barragem da Samarco, relata que de
tem provocado de maneira recorrente graves fevereiro a setembro de 2016, foram atendidas
violações de direitos humanos. Alguns desses entre 800 a mil pessoas, gerando um total de
direitos também são violados quando ocorrem 155 ações individuais contra as empresas de
rompimentos de barragens, como no caso do mineração Samarco, Vale e BHP Billiton. “A gen-
Feixes de vime 119

te pede nas ações a questão da efetivação do portante para superar diversas falhas na repara-
auxílio subsistência e discute lucro cessante, ção dos danos sociais. “Está faltando representa-
danos patrimoniais e danos morais”, explica. tividade, está faltando trazer as comunidades para
A demora na tramitação das ações na Jus- o espaço público para elas debaterem e conhe-
tiça deve-se, segundo Portella, a dois fatores: o cerem seus problemas, está faltando talvez mais
alto número de demandas e baixa quantidade encaminhamentos específicos a essas comuni-
de defensores públicos dedicados à região. Ele dades. Muitas pessoas não têm ideia de quando
esclarece que o grupo de trabalho que ficou serão definidos os programas do TTAC [Termo
responsável por todo o estado do Espírito Santo de Transação e de Ajustamento de Conduta].
é de sete defensores, o que, segundo Portella, Está faltando contato, está faltando assistência”.
não chega nem à metade do necessário para a De acordo com Geovane da Costa Souza, a
realização de atendimentos da forma adequa- proposta do MAB é reverter algumas dessas
da e com qualidade. “Acho que é uma experi- faltas. “A gente chega em algumas comunida-
ência única que eu posso te colocar. Qualquer des e o povo nunca conversou com o Ministério
defensoria está muito atrelada a buscar a co- Público, nunca conversou com a Defensoria Pú-
munidade, buscar a pessoa. A gente não mexe blica, nunca conversou com a Secretaria de Di-
só com a questão do Rio Doce, a gente mexe reitos Humanos, Secretaria de Mulheres. Então
também com regularização fundiária e mora- a gente acaba fazendo essa ponte, provocan-
dia, que a gente não tem, infelizmente, defen- do esses atores pra que possam se aproximar
sores designados apenas para o Rio Doce.” e dialogar com o povo. A ideia é de emancipa-
ção. Primeiro estudar e conhecer seus direitos.
E aí, a partir disso, ele [atingido] saber que, ele
Experiência impactante tendo esse direito, vai conquistar. Se organi-
zando, fazendo luta, tentando fazer forma-
Rafael Portella era um dos presentes na ção política, trazendo consciência de classe.”
reunião de criação do Fórum Norte e relata Para a pescadora Eliane, a importância da mo-
como tem sido acompanhar as populações bilização está na preservação da comunidade. “É
atingidas: “Isso é uma experiência do pon- melhor se juntar com o povo. Meu pensamento hoje
to de vista humano, falando pessoalmente, é a gente se unir e todo mundo lutar por um objeti-
muito impactante para mim. A gente fica mui- vo só, que é a sobrevivência da nossa região aqui.”
to tocado, muito triste com o que a gente vê”. O sociólogo Hauley Valim, da Faculdade


Na visão do defensor, a articulação social é im- Pitágoras de Linhares, concorda com Eliane

Tiveram que aprender a lidar com os conflitos, inclusive


internos, aprender a negociar e a se reunir praticamente
todo dia. Não é uma coisa fácil. É uma realidade muito dis-
tante do que eles viviam, não precisavam disso, de lutar
por direitos
Marcos Zucarelli, antropólogo da Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG)
120 Feixes de vime

Quais direitos são infringidos


pelas barragens?

A partir de denúncias do MAB, uma comissão do Conselho de Defesa dos Direitos da


Pessoa Humana (CDDPH), órgão com sede no Ministério da Justiça, elaborou em 2010
um relatório que reúne uma lista de 16 direitos que são violados de forma recorrente na
implantação de barragens. Para compor a lista, foram feitos levantamentos dos princi-
pais prejuízos socioambientais causados pela construção de barragens. Foi constata-
do pela equipe do CDDPH que essas violações acentuam ainda mais os problemas de
desigualdades sociais vivenciadas no país, como miséria, violência, desmantelo social,
familiar e individual.
A comissão aponta ainda que, entre os principais fatores que causam as violações
de direitos humanos na implantação de barragens, estão a omissão das especificidades
socioeconômicas e culturais das populações atingidas e a falta de normas de regula-
mentação que descrevam as situações de planejamento, construção e operação dos
projetos envolvendo barragens.
Confira abaixo a lista elaborada pelo CDDPH dos direitos que são infringidos de forma
sistemática com a criação de barragens:

1. Direito à informação e à participação;


2. Direito à liberdade de reunião, associação e expressão;
3. Direito ao trabalho e a um padrão digno de vida;
4. Direito à moradia adequada;
5. Direito à educação;
6. Direito a um ambiente saudável e à saúde;
7. Direito à melhoria contínua das condições de vida;
8. Direito à plena reparação das perdas;
9. Direito à justa negociação, tratamento isonômico, conforme critérios trans-
parentes e coletivamente acordados;
10. Direito de ir e vir;
11. Direito às práticas e aos modos de vida tradicionais, assim como ao acesso
e preservação de bens culturais, materiais e imateriais;
12. Direito dos povos indígenas, quilombolas e tradicionais;
13. Direito de grupos vulneráveis à proteção especial;
14. Direito de acesso à justiça e a razoável duração do processo judicial;
15. Direito à reparação por perdas passadas;
16. Direito de proteção à família e a laços de solidariedade social ou comunitária.
Feixes de vime 121


Se a Justiça, que é Justiça, não tá conseguindo fazer a Samar-
co respeitar e cumprir o que tá feito, você acha que pescador,
coitado, que tá aí morrendo, vai ter força? Se as grandes auto-
ridades não têm poder de mandar na Samarco, que
pescador vai mandar?
Adeci de Sena, presidente da Apescama


e também critica os conflitos nas comunida- po Grande de Barra Nova (Apescama), questiona
des, ressaltando a importância da união dos a atuação de órgãos de fiscalização e a indepen-
atingidos para reconquistar parte do que foi dência da mineradora na resolução dos reparos.
perdido com o desastre. “Só com as comu-
nidades fortalecidas a gente vai ter condi- O Ibama tá acompanhando? O Iema tá
ções de lutar contra a Samarco e lutar pela acompanhando? A Polícia Ambiental tá acom-
regeneração do rio, porque do jeito que está, panhando? Quem é que tá acompanhando?


a gente não tem condições. A gente está bri- Nós falar fica como os mentirosos. Eles vão
gando com um conglomerado que constitui dizer que nós tamos querendo se aprovei-
um dos maiores grupos de mineração do pla- tar. Se a Justiça, que é Justiça, não tá conse-
neta. É uma luta desproporcional, então nós guindo fazer a Samarco respeitar e cumprir
precisamos de regeneração nas relações o que tá feito, você acha que pescador, coi-
para poder ter condições de avançar e lutar.” tado, que tá aí morrendo, vai ter força? Se as
grandes autoridades não têm poder de man-
dar na Samarco, que pescador vai mandar?
Faltam reforços do Estado
O tom de descrença de Adeci não é sem
Embora acredite no valor da criação de motivo. O sociólogo Hauley Valim chama
um fórum de mobilização das comunidades, atenção para a inatividade de atores políti-
o pescador Adeci de Sena, de Campo Gran- cos, mesmo em época de eleições munici-
de de Barra Nova, em São Mateus (ES), cobra pais. “Não teve nenhum vereador que apre-
maior participação das instituições públicas sente nas propostas de ação uma pauta
para que os reparos sejam feitos de forma relacionada à questão da lama em si. Isso
justa pela mineradora. “Não é só criar o Fórum aparece dentro dos programas em relação
Norte. As autoridade deveria fazer a Samarco ao abastecimento de água, mas a lama não
fazer monitoramento nas regiões que estão está na pauta. O município se ausentou.
sendo reclamada no Fórum Norte. Porque Acho que não é diferente nem Linhares, nem
eles lá debater num escritório de advocacia Aracruz, nem São Mateus, que foram as áre-
é fácil. Debater isso lá dentro do Ministério as onde os impactos ficaram mais claros.
lá é fácil. As autoridade têm que forçar ela a Eles não tiveram uma participação efetiva.”
acompanhar, com outros órgãos, pra poder Valim acredita que a principal causa da
saber como está a vida das comunidades.” ausência do estado na exigência do cum-
Adeci, que também é presidente da Associa- primento das ações de recuperação dos
ção de Pescadores, Catadores de Caranguejo, danos provocados pelo rompimento de
Aquicultores, Moradores e Assemelhados de Cam- Fundão está no financiamento de campa-
122 Feixes de vime

Foto Victor Pires


Em setembro de 2015, o MAB promoveu um encontro entre as vítimas da lama de rejeitos de minério de Minas Gerais e Espírito Santo. A
reunião aconteceu nas cidades mineiras de Paracatu de Baixo e Bento Rodrigues, destruídas pela lama. Os pescadores Maria da Penha
Romualdo e Albertino dos Santos Romualdo estavam entre os atingidos que se impressionaram com a paisagem de Paracatu de Baixo

nha. “O Executivo e o Legislativo no Espírito Eu acho que o governo teria que tomar
Santo, e até o Judiciário, não têm interesse a ponta da rédea, mas só que a classe po-
em resolver problema algum relacionado à lítica tá tão desacreditada que se chegar
mineração. Se fizer uma pesquisa na inter- na mão do governo também não chega na
net, você vê quais são os parlamentares que nossa mão. Quase que deixar nas mãos da


tiveram suas campanhas financiadas pela Samarco é até mais fácil a gente ter acesso
Vale. Os caras têm maioria na Câmara. Você aos recurso. Porque vai pro governo, que que
acha que esses caras vão fazer alguma coi- acontece? Bate na mão do político. Aí o polí-
sa? Não vão fazer nada. Isso acontece em tico quer atender a comunidade dele lá por-
nível federal, nível estadual, nível municipal.” que lá que ele teve voto, essa de cá ele não
Um dossiê elaborado pela Samarco em teve voto, ele também pouco vai ligar. Porque
janeiro de 2016 é um dos documentos que já aconteceu com outras coisas, que caiu
realçam a influência econômica que as mi- na mão do político e ninguém recebeu nada.
neradoras exercem sobre o Estado. Somente
a Samarco gera em impostos 54% da receita
de Mariana (MG), o que equivale a R$ 20.552 Omissão
milhões, e 50% da receita de Anchieta (ES),
valor que corresponde a R$ 29.437 milhões. Para a comerciante Simony Silva, de Pontal
O descrédito no compromisso da classe do Ipiranga, em Linhares (ES), outra falha gra-
política com a população fica evidente tam- ve cometida tanto pelas instituições públicas
bém na opinião do pescador Simião Barbosa quanto pela mineradora é a falta de informa-
sobre a demanda de pagamento dos cartões- ção para as comunidades. “É importante falar
-auxílio a todos os atingidos. do que a gente não vê, que é a ação do governo
Feixes de vime 123

que não pode. Eu sou morador, eu tenho que


ter ciência do que aconteceu aqui. Pra mim sa-
ber o que eu posso fazer e o que eu não posso.
Se eu posso comer, se eu posso tomar banho,
se eu posso pescar, se eu posso vender... Eu
não sei. A gente não tem resposta de ninguém.”

Mobilização que deu certo

Na aldeia indígena de Comboios, localiza-


da na Terra Indígena (TI) de mesmo nome ao
sul da foz do Rio Doce, no município de Ara-
cruz (ES), ninguém deixa de receber o auxílio
emergencial. É o que garante o cacique tupi-
niquim Antônio Carlos, de 42 anos, conhecido
na comunidade como Toninho. Ele acrescenta
que a situação só é essa hoje porque os indí-
genas foram para cima dos trilhos. Fizeram
a primeira paralisação da Estrada de Fer-
ro Vitória-Minas em fevereiro de 2016. Outra
se seguiu, em maio, como lembra Toninho:
“Juntou todo mundo, a população indígena
todinha de Aracruz. E deu uma repercussão
muito grande. Aí parou a Fibria, parou a Porto-
cel, parou a Vale por 18 dias. Aí veio mandado de
prisão pra mim, pros caciques. Veio um monte.
quanto a isso, a informação, que a gente não tem Eu cheguei a ser preso, fiquei dois dia em Vitó-
nenhum tipo de informação. Isso por parte de ria. Eu e mais seis caciques do movimento. Aí
tudo, tanto da empresa quanto de governo, de a população botaram ônibus, foi tudo pra lá.”
tudo. Eu não vejo ninguém procurando ajudar.” Ele acabou sendo solto pouco depois.
Segundo a pescadora Eliane Balke, infor- Para Toninho, a luta valeu a pena: ele explica
mações importantes sobre questões jurídi- que cada chefe de família na TI recebe dois
cas, cobertura midiática e situação do meio salários mínimos e meio, mais 20% por de-
ambiente chegam principalmente pelos gru- pendente e o valor de uma cesta básica esti-
pos dos movimentos sociais no aplicativo de pulado pelo Departamento Intersindical de Es-
mensagens WhatsApp. Desde a entrada da tatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
pluma de rejeitos na região onde mora, Elia- A negociação da Samarco com os povos
ne busca esclarecimentos de órgãos gover- indígenas é diferenciada. Segundo o cacique,
namentais, mas não obteve resposta. “Até a cada seis meses, a empresa é obrigada a
aqueles que vieram coletar aqui [amostras renovar o acordo que faz com eles para des-
de animais], eu liguei lá pra saber da respos- tinação do auxílio emergencial. Toninho diz
ta, eles falaram que não podiam dar a res- que a empresa vai fornecer o dinheiro até a
posta pelo telefone e para nenhuma outra execução de um projeto de uso sustentável
pessoa que eles não tivessem autorizados.” da terra pela Fundação Renova – fundação
O que também tem incomodado o pesca- de direito privado instituída no TTAC para exe-
dor Gilmar Abelina é não ter respostas sobre cução das atividades previstas para recupe-
os laudos de análises da qualidade dos peixes ração dos danos provenientes do desastre.
e da água do litoral. “Sempre tem alguma coisa Toninho sorri quando lembra da “carta na
que impede, uma lei, qualquer coisa eles falam manga” dos indígenas de Comboios: “A gen-
124 Feixes de vime

te tem uma carta na manga que é a ferro-


via que passa dentro de território indígena”.
A Terra Indígena de Comboios tem cer-
ca de quatro mil hectares e fica localizada
no litoral do Espírito Santo. O território abri-
ga uma população de 543 indígenas, de
acordo com o último levantamento feito em
2010 pela Fundação Nacional de Saúde (Fu-
nasa). O território, segundo Toninho, abriga
indígenas das etnias Tupiniquim e Guarani.
Toninho diz que, mesmo recebendo o au-
xílio, o valor não cobre o que a comunidade
perdeu de mais importante. “O impacto não só
pela questão econômica, mas social. Eu tam-
bém sempre falo que foi espiritual. A praia é um

Foto Victor Pires


local de sobrevivência da comunidade de Com-
boios. E nós aqui da comunidade coleta maris-
co, pesca dia, pesca noite, e o ano todo tem épo-
ca de peixes. Desde janeiro até o final do ano”.

“O mar foi um pai pra gente”

Quem pescava na praia próxima à co- A admiração das filhas é por causa de um
munidade era o índio tupiniquim Edson Bar- detalhe: Edson, que diz pescar desde crian-
bosa. Um dia antes da chegada da lama ao ça, tinha 99 anos quando pegou aquele ro-
local, pouco depois de desembocar no mar balo. “Tinha vez que eu ia pescar na praia
no dia 21 de novembro, a esposa de Edson, de noite. Levava a noite inteira sozinho na
Nilza Mateus Barbosa, de 67 anos, conta que praia pescando. Hoje eu nem na praia eu
o marido foi pescar. “Ele saiu, ele foi pra praia. não vou... É muito difícil eu ir na praia”, afirma.
Aí quando chegou lá, esperei um pouquinho, A esposa também evita frequentar o local.
ele chegou com um peixe desse tamanho, “Vai fazer ano e eu não fui na praia, que tem
um robalo assim, ó! Ele pegou o peixe, trouxe, tristeza de ver o mar daquele jeito, né? Que a
aí as minha filha tava tudo aqui, né? Aí, elas gente tem assim como ele tivesse morto. Por-
fizero o almoço, todo mundo almoçou do pei- que a gente não pode tomar banho, as crian-


xe. Todo mundo ficou assim, se admirou dele ça não toma banho, nem a gente usa ele pra
ir, pegar e botar aquele peixe na praia”, conta. mais nada. É difícil. É de cortar o coração, né?”

A gente tem uma carta na manga que é a ferrovia que


passa dentro de território indígena
Antônio Carlos, cacique da Aldeia de Comboios
Feixes de vime 125

Antes de a lama atingir a região de Aracruz (ES), Nilza lembra que Edson ia todos os domingos à praia. Nem ela, nem o marido vão ao
mar há quase um ano. “Hoje ele tá triste que ele não pode pescar, não tem nem coragem de ir mais na praia. Nem eu. A gente sente
muito... a gente sente muito. No início eu chorava, eu via e lastimava, né? Agora a gente já tá acostumado mais um pouco. A gente tem
que pensar e pensar... Um dia Deus vai abençoar e a gente vai ter de volta.”

Nilza, porém, deixa claro que ter parado tal da escola da comunidade. Lembra de
de ir ao mar não foi por receio da contami- um dia, depois da chegada dos rejeitos,
nação, mas por outro sentimento: “Eu não quando, numa aula sobre meio ambien-
tenho medo não, é que eu tenho tristeza de te, foi com a turma para a praia. As or-
ver ele do jeito que tá. Que ele foi um pai da dens eram de que ninguém podia entrar
gente. Nos criou. Eu nasci, me criei no mar, no mar, devido ao risco de contaminação.
com peixe do mar. E hoje, nós temos filho, é “Chegou lá, a gente não conseguiu man-
a mesma coisa. Criei eles com peixe do mar”. ter eles. Daqui pra lá foi beleza. Mas quando
A senhora mostra-se especialmente chegou lá, eles não conseguiram se conter.
preocupada com os pequenos da aldeia. Porque como é uma coisa que é da natureza
“E essas criança que estão crescendo, que da pessoa, chegaram lá, eles foram direto
eles não estão nem sabendo... Eu mes- pra água, mesmo a gente falando que não
mo tenho dois netinho aí. Tá pequeninho. podia, que a gente fez o trabalho teórico na
Como a gente vai falar pra eles? Eu tenho escola e depois foi trabalho de pesquisa.
três bisneto, como é que eu vou falar pra Mesmo assim, a gente não conseguiu. Por
eles como é que era o mar antigamen- quê? Porque é uma coisa que é da cultura,
te? Mas a esperança eu não perco, por- entendeu? Você tem esse contato. Você
que tenho fé em Deus que ele vai voltar com a natureza. E aí não consegue”, narra.
ao normal. Eu tenho esperança”, conclui. Rones confessa que, um dia, depois da
O desafio de falar com as crianças de visita com os estudantes à praia, voltou ao
Comboios sobre o desastre é bem conheci- local sozinho e também não resistiu: “Hoje
do pelo professor Rones Coutinho Passos, tem dois dia que eu fui lá na praia olhar o
de 38 anos, também tupiniquim e morador mar. Eu fiquei, assim, emocionado de ir lá,
da aldeia. Ele leciona matemática e ciên- né? Eu não aguentei não. Fui lá e entrei no
cias para os alunos do ensino fundamen- mar e cavei, corri, abri uma [concha] e comi”.
Em 5 de novembro de 2015, tinha início o maior desastre ambiental da
história brasileira. O rompimento da barragem de Fundão, da minera-
dora Samarco, liberou toneladas de rejeitos de mineração de ferro no
ambiente, matou 19 pessoas e milhares de animais aquáticos, além
de contaminar diversos outros bichos, o solo e as águas. A avalanche
também destruiu comunidades inteiras antes de alcançar o Rio Doce
e seguir o rastro de destruição até o mar. Quando a “lama” chegou ao
Oceano, em 21 de novembro, as vidas de milhares de pescadores, co-
merciantes e moradores do litoral capixaba foram modificadas com-
pletamente. É preciso deixar estas histórias em evidência para que o
desastre jamais seja esquecido.

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