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Samuel de Sousa Silva

A perspectiva da identidade como signo linguístico – corporal memorial.

Introdução

Sobre o conceito de identidade há bastante perspectivas e cada qual procura


explicar o fenômeno dando primazia ao campo do saber a partir do qual se fala, seja
pelo viés psicanalítico, cultural – social, linguístico e até biológico. Porém, apesar de
cada um desses vieses discordar entre si de quais seriam os fatores determinantes para a
constituição da identidade, em uma questão não há discordância: identidade e memoria
estão intrinsicamente interligados, e para algumas dessas perspectivas é praticamente
impossível distingui-las.
Diante disso, procuraremos nesse artigo demonstrar a perspectiva da identidade
como uma inscrição mnemônica linguística, ou seja, a identidade seria um signo
memorial que demarcaria as possibilidades de apresentação de um EU, assim como seus
limites, a partir de um sistema linguístico no qual esse indivíduo se insere
mnemonicamente a partir dos variados elementos de constituição de sua memória. O
percurso argumentativo de apresentação dessa perspectiva se dará pela apresentação da
teoria lacaniana da memória como um sistema de inscrição de signos, passando por
Bergson na sua elaboração da constituição da memória mais significativa como aquela
que se inscreve corporalmente, e nesse ponto consideramos que a identidade seria uma
memória extremamente significativa. Depois nos ateremos a antropologia do imaginário
de Gilbert Durand que melhor esclarece essa relação entre signo e corpo, e por fim,
demonstraremos a tese de que a identidade é uma memória signica que se estabelece
como um signo reconhecível pelo indivíduo que o carrega como um ponto originário do
qual se estabelece inter-relações especificas entre um mundo interior (psíquico), um
corpo e um mundo exterior (o cosmos em todas as suas dimensões temporais e
espaciais).
A constituição da memória na perspectiva Lacaniana
A partir de suas leituras de Freud, Lacan vai identificar a constituição do sujeito
como um processo de subversão de um “Eu” pelo sistema do significante (livro XI,
lição IV, item 2). Esse processo se dá, imaginemos que seja assim, por meio do que
Lacan chama de “desvio ou alienação do desejo no significante”, no qual o sujeito
humano “se apropria das condições que lhe são impostas em seu mundo, como se essas
condições fossem feitas para ele” e se satisfaz nessas condições (livro V, p262). Sendo
assim, esse processo marca o fato de que o sujeito é constitutivamente sujeito desejante,
e que o seu desejo é constituído no outro e para o outro, cuja relação com o outro é
sempre uma relação com o significante, “moeda do desejo do outro” (livro V, p262).
Nesse processo de constituição do sujeito subvertido pelo significante, Lacan
elabora a ideia de sujeito barrado [$], na qual o sujeito é “constituído como segundo em
relação ao significante”. Explicando como isso se dá, Lacan fala do estabelecimento do
“traço unário” como estrutura base sobre a qual o sujeito se consolida. Esse traço unário
é para Lacan a espécie de um entalhe que marca uma determinada identidade primaria
do sujeito, um significante primeiro, [S], que é rememorada pelo individuo para a
constituição de suas futuras identidades, [S¹, S², S³] (livro XI, p135). Essa
rememoração, que segundo Lacan: “é algo que nos vem das necessidades de estrutura”
(livro XI, p50), é o processo pelo qual o sujeito se reconhece como um “Eu”, pois ele
pode sempre se reconhecer no que ele já foi. Mas justamente para sustentar um “Eu”
que permaneça, o sujeito se firma nessa cadeia de significante (S³, S², S¹), a qual o
constituiu como desviado ou alienado no significante.
O processo de constituição desse significante primeiro como uma identidade
matricial de um sujeito qualquer, passa pelo recorte feito por meio do significante das
pulsões no seu enfrentamento com as intimações do meio sócio-histórico-cultural
representados na língua. Sendo assim, esse traço unário, que deve designar ao sujeito
“algum lineamento”(seminário 5, p228), está constituído pelas pulsões desejantes do
individuo e as relações estabelecidas entre esses desejos e os objetos desse desejo. No
entanto, conforme a perspectiva Kleiniana, a relação de aprendizagem da realidade pelo
homem é “sustentada pela constituição essencialmente alucinatória e fantástica dos
primeiros objetos, classificados como objetos bons e maus, na medida em que eles
fixam uma primeira relação primordial que, na sequencia da vida do sujeito, fornecerá
os tipos principais de seus modos de relação com a realidade” (Lacan, seminário 5,
p223-224). Esse entalhe marcador desses “tipos principais de seus modos de relação
com a realidade” do sujeito, inscreve mnemonicamente no individuo um modus
operandi de todas suas relações posteriores com o mundo, essa inscrição mnemônica
não é nem a representação da pulsão e nem a representação do objeto, mas sim a
representação da relação entre esses dois, representação ideal, pois representa o que
seria uma relação satisfatória desse sujeito com o mundo.
Para os pensadores da memória como Paul Ricoeur, Bergson, Maurice
Halbwachs, Jacques Le Goff, tudo que nós entendemos como identidade de um sujeito é
atribuída à memória, para esses pensadores, identidade é igual à memória, memória que
por sua vez é constituída tanto de traços individuais quanto coletivos e históricos. Lacan
de certa forma também não discorda desse ponto de vista, mas lhe acrescenta certas
peculiaridades. Para ele a identidade originaria desse sujeito só poderia ser vislumbrada
na “inscrição mnêmica” (memória) da relação modelar desse sujeito com o seu desejo e
o objeto desejado, relação essa que teria como base a satisfação alucinatória do desejo.
Sendo o que sobra dessa relação primordial essa “inscrição mnêmica” que marca uma
primeira relação prazerosa desse sujeito, servindo de modelo para que ele alcance prazer
nas suas futuras relações entre seus desejos e os objetos desejados.
Essa memória primaria do sujeito, ou inscrição mnêmica nas palavras de Lacan,
não é nada mais do que um significante, uma inscrição que marca uma relação de
presença e ausência do objeto desejado, da qual o sujeito guarda um modelo de conduta
para alcançar futuras relações bem sucedidas. Por causa disso, Lacan afirma que para o
“real humano” o significante é “uma realidade originaria”, aquela que funda o mundo, a
maneira como o homem se relaciona com esse mundo, e em consequência disso o
próprio homem.
No entanto, a memoria não pode ser vista a partir da teoria Lacaniana, assim
como na teoria Freudiana, como uma inscrição real e fidedigna de relações perceptivas
entre o homem e o mundo a sua volta. Como já foi dito acima, o entalhe dessa relação
primeira entre o homem e seu meio já é um desvio pelo significante, sendo o
significante sempre uma acomodação entre principio de prazer e principio de realidade
na qual o significante é sempre um deslocamento tanto da pulsão quanto da realidade.
Nesse sentido, a memoria deve ser entendida como um simulacro, ou seja, uma
realidade alternativa à realidade objetiva e que se apresenta como substituta desta, não
necessariamente como um mecanismo de alienação, mas pela impossibilidade de se
recuperar a coisa perdida, o evento de fato.
O evento real ao qual a memoria seria sua reconstituição é entendida pela
psicanalise freudiana\releitura lacaniana como um evento não passível de representação,
da ordem do irrepresentável, por isso a memoria jamais seria uma retomada tal qual um
evento do passado de um sujeito. Nessa perspectiva, a memoria não é constituída tendo
por base as leis da veracidade, sejam quais forem elas, mas sim pelas leis da
verossimilhança, ou seja, uma memoria é real ou não pela logica das relações que ela
estabelece dentro do sistema fechado (sincronia) da memoria do sujeito, uma estrutura
de anaforização (Greimas) na qual o sujeito é arremessado de uma memoria a outra
sendo que uma memoria serve como referente externo, apesar dela ser interna ao
próprio texto memorial, a outra memoria e vice e versa.
Diante disso, Lacan fala sobre a coisa, e aqui relacionamos a coisa a esse evento
da qual a memoria é um registro, como um furo no real instituído pelo recorte do
significante (livro XI, p153) sendo a coisa um objeto eternamente ausente, pois ele já é
em si essa fenda no real aberta pela articulação do significante. Tentando ser o mais
simples possível, a memoria não estabelece necessariamente uma relação entre o
lembrar do presente e o evento do passado, mas o rememorar do presente é a retomada
da cadeia de significantes por meio das relações S1, S2, S3 em busca da reconstituição
de um passado irrecuperável como evento de fato, pois a realidade do sujeito como ser
de linguagem não é constituída por eventos de fato, mas sim por eventos significantes,
recortados e deslocados pela articulação do significante numa dialética entre pulsão e
real, principio de prazer e principio de realidade. No entanto, o significante não é uma
síntese entre principio do prazer e principio da realidade, mas sim um terceiro elemento
que não é nem um nem outro, mas ao mesmo tempo ancorado sobre os dois.
Numa tentativa de fecharmos essa discussão momentaneamente, Lacan entende
a memória como a serviço da realização do desejo por meio da sua acomodação aos
caminhos de realizações possíveis. Pois a memória seria os “traços mnêmicos daquilo
que já respondeu ao desejo” (livroV, p223), um registro recortado da apropriação que o
sujeito inconscientemente faz das condições que lhe são impostas pela realidade como
se elas fossem feitas para ele e se satisfaz com elas, apropriação essa feita e produzida
pela inserção desse sujeito no mundo do significante. Sendo, portanto o processo de
rememoração, uma retomada da cadeia de significantes que constitui esse sujeito
memorialmente. Por causa disso a memória de um sujeito é sempre dinâmica, pois a
cada retomada da cadeia de significantes novos significados lhes são atribuídos devido à
mudança da enunciação.
Memoria corpo, corpo memorial.
Já na elaboração sobre memória de Bérgson, o que se torna realmente
significativo, e por isso memorial, é aquilo que marca afetivamente o indivíduo
deixando seus traços corporalmente inscritos, uma espécie de memória do corpo. Essa
noção de memória corporal de Bérgson dá uma indicação categórica sobre o que seria a
identidade de um indivíduo, pois ele se reconhece como eu a partir daquilo que ele
enxerga, ou lembra, como sendo vivenciado pelo seu corpo num tempo e num espaço.
Conforme argumenta Bérgson:
“Tudo se passa como se, nesse conjunto de imagens
que chamo universo, nada se pudesse produzir de realmente
novo a não ser por intermédio de certas imagens particulares,
cujo modelo me é fornecido por meu corpo” (Bérgson, 1999, p.12).
Ou seja, segundo o autor, o ponto de referência sobre o qual estabelecemos as
relações entre o eu e mundo e fazemos as diferenciações entre o que são os objetos ao
nosso derredor e nós mesmos é uma representação imagética, cuja imagem modelo é o
próprio corpo do indivíduo. Nessa perspectiva, ao pensarmos a identidade como aquilo
que o indivíduo reconhece como o “si mesmo” no qual se vinculam as relações com os
“outros” objetos externos a esse indivíduo, podemos automaticamente fazer uso dessa
mesma relação bergsoniana em que o corpo é a estrutura sobre a qual a identidade se
assenta.
Nesse caminho argumentativo percorrido por Bérgson ele chegará a conclusão,
apesar dele não usar o termo identidade, que a identidade do sujeito é a representação
dos eventuais efeitos desse corpo do indivíduo sobre os objetos a sua volta, e da mesma
forma, das afetações sobre esse corpo pelos objetos a sua volta em que se acrescenta a
essa representação uma percepção/representação de uma duração no tempo desses
efeitos e afetos. Essa percepção/representação da duração dessa rede de relações em
volta desse corpo seria justamente o que chamaríamos de memória. Portanto para
bergson, a identidade seria uma imagem que traz uma noção de conjunto a essa duração
desses movimentos do corpo no tempo e no espaço.
Portanto, para o autor, memoria e identidade se confundem uma com a outra,
pois aquilo que o indivíduo reconhece como sendo seu eu, é sua memória dessa imagem
do seu corpo como ponto de referência das relações desse individuo com o seu meio
externo e as reverberações que isso teve em algo interno a esse corpo desse indivíduo.
Nesse processo todo, o que seria a parte mais essencial dessa identidade é a imagem do
seu corpo que apesar das transformações no decorrer do tempo o indivíduo reconhece
como sendo essencialmente a mesma durante todo o tempo que passou.
Nessa perspectiva a identidade é material, pois ela não se dissocia em nenhum
momento do corpo que a sustenta. Para bergson, o que há além do corpo nesse processo
inicial de formação da identidade é o fato de que esse corpo é consciente, diferente das
pequenas partes desse corpo, o conjunto do todo escolhe entre os efeitos e afetos que o
constituirá e os quais serão descartados, sendo obviamente que nem todas as influencias
são passiveis de serem escolhidas seus rumos. Para ele, o que ele mesmo denomina de
espírito, e que segundo as ciências afirmam só existe no ser humano, não é algo
metafisico no sentido de ser não material, mas ao contrário, é algo adquirido pelo corpo
humano no seu processo evolutivo e não se dissocia dele.
Conforme as próprias palavras de Bérgson;
Meu corpo é portanto, no conjunto do mundo material, uma imagem
que atua como as outras imagens, recebendo e devolvendo
movimento, com a única diferença, talvez, de que meu corpo parece
escolher, em uma certa medida, a maneira de devolver o que recebe
(Bergson, 1999, p. 14).
Nesse sentido, nada para Bérgson nos fenômenos que consideramos humanos podem ser
considerados em detrimento do corpo, seja a consciência, seja a memória ou a
identidade, em Bérgson é difícil distinguir esses fenômenos, mas uma coisa é tranquila
de afirmar; são todos fenômenos corporais.
Escritura viva; o Corpo Memorial e Linguajeiro.
Referencias Bibliográficas

Lacan, Jacques.O Seminário, livro 5 : as formações do inconsciente.  Rio de Janeiro: J.


Zahar, 1999.

Lacan, Jacques.O Seminário, livro XI : os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.


Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985.

Greimas, A. J. Semiótica e Ciências Sociais. Cultrix, 1976.

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