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Cândido Grzybowski e Fernanda Lopes de Carvalho (Ibase), Iara Pietricovsky (Inesc), Jorge Eduardo Durão (Fase), Sonia Corrêa (Rede Dawn), Guacira Oliveira (Cfemea), Silvia
Ramos (CESeC/Ucam) e Lúcia Xavier (Criola)
EQUIPE EDITORIAL
Edição internacional
Chefia de redação: Roberto Bissio
Edição: Jorge Suárez
Edição associada: Alejandro Gómez, Amir Hamed e Niki Johnson
Produção: Ana Zeballos
Pesquisa de ciências sociais: Karina Batthyány (coordenadora), Daniel Macadar e Mariana Sol Cabrera
Assistência de pesquisa: Graciela Dede
Tradução: Valerie M. Dee e Richard Manning (inglês), Alvaro Queiruga (espanhol), Clio Bugel e Elena de Munno (francês) e María Laura Mazza (português)
Pesquisa e edição: Gustavo Espinosa
Assistência: Marcelo Singer
Revisão de textos: Lucía Beverjillo
Suporte técnico: Red Telemática Chasque
Edição brasileira
Coordenação: Fernanda Lopes de Carvalho
Assistente de coordenação: Luciano Cerqueira
Coordenação editorial: Iracema Dantas
Edição: Marcia Lisboa
Produção: Geni Macedo
Produção do CD-ROM: Socid – Sociedade Digital
Revisão: Marcelo Bessa
Revisão técnica: Fernanda Lopes de Carvalho e Luciano Cerqueira
Tradução: Jones de Freitas
Apoio: Novib (Organização Holandesa de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento) e Fundação Ford
© Copyright 2004
O conteúdo desta publicação pode ser reproduzido por organizações não-governamentais para fins não-comerciais (enviem-nos cópia). Qualquer outra forma de
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prévia do IteM ou do Ibase.
ISSN: 1679-7035
Universalizando direitos / 67
Por Lena Lavinas
O Observatório da Cidadania dedica sua oitava edição a um tema segurança contra a violência física. Essa noção inclui as
cada vez mais importante: segurança. O aumento das tensões em possibilidades de sobrevivência digna do ser humano, nas suas
quase todo o planeta nos últimos anos – em particular em torno múltiplas dimensões: segurança contra agressão armada, contra
da dialética infernal que opõe a intensificação de atividades as incertezas econômicas, contra as arbitrariedades de toda
terroristas ao unilateralismo imperial alimentado pelo governo de ordem, contra a privação de oportunidades por motivos de
George W. Bush, mas também com o acirramento dos conflitos no natureza racial, de gênero, de renda etc.
Oriente Médio, na África, na Ásia e nas repúblicas que
compunham a antiga União Soviética, além de outros conflitos As últimas décadas têm indicado um agravamento da
localizados, como no Haiti – pode ser sentido pelo número de insegurança em várias dimensões. O rápido crescimento
convocações feitas à Organização das Nações Unidas (ONU) para econômico dos Estados Unidos na década de 1990, sob o
o envio de tropas pacificadoras a vários países. governo de Bill Clinton, por exemplo, deu-se em condições de
acentuada piora na distribuição de renda. Além disso, reformas
O crescimento da sensação de insegurança em praticamente no sistema de seguridade social abriram novas ameaças às
todos os quadrantes não pode ser restrito à contagem de pessoas de mais baixa renda naquele país. George W. Bush
tensões de natureza militar, ainda que estas sejam as mais trouxe consigo a recessão, o crescimento do desemprego, a
visíveis. O avanço da chamada globalização liberal e a redução dos impostos dos mais ricos e um posicionamento
incapacidade mostrada por governos nominalmente internacional inédito, de natureza unilateral, cujos custos para o
progressistas em apresentar alternativas concretas a esse próprio país se revelam na incapacidade de seu governo em
modelo têm contribuído fortemente para o agravamento de mobilizar qualquer apoio internacional à sua ocupação do Iraque,
outras formas de insegurança, que, se não são exatamente além da participação simbólica e semiclandestina de alguns
novas, assumem formas e graus de intensidade que muitas países de pouca expressão política.
pessoas julgavam impossíveis.
Poucas vezes, na história recente, uma eleição mobilizou tanta
Entre essas formas de insegurança, saltam à vista as resultantes atenção mundial quanto a de 2004, para a presidência dos
das iniciativas de demolição, em vários países, dos sistemas de Estados Unidos. Enquanto finalizávamos esta edição, a mídia
segurança social criadas ao longo do século passado, como o internacional divulgava repetidas pesquisas de opinião nas quais
assalto aos direitos de trabalhadores e trabalhadoras, por meio praticamente o mundo todo mostrava sua rejeição à política
das reformas trabalhistas, que nada mais são do que a unilateralista estadunidense.
eliminação dos direitos à estabilidade no emprego, das férias
remuneradas, da organização sindical autônoma e da negociação No caso brasileiro, porém, não é a insegurança ante uma
coletiva com as empresas, entre outros. agressão externa armada que se apresenta na ordem do dia.
Aqui, as inquietações são de outra natureza. Nos nossos grandes
À insegurança do emprego e da renda, sempre muito maior em centros, a degradação da situação no que diz respeito à
países de precárias instituições como o Brasil, somam-se outras segurança pública pode ser vista quase como uma guerra civil de
fontes de insegurança, conhecidas pelo menos de parte baixa intensidade. Mas no Brasil é, antes de mais nada, a
significativa da população. O preconceito racial, por exemplo, insegurança de renda e de trabalho que se destacam como
que torna a pele negra um alvo preferencial da violência, preocupações da maioria das pessoas. A herança de quase um
especialmente a de jovens, gera situações de insegurança quarto de século de estagnação econômica e de adoção de
claramente ilustradas pelas informações sobre vítimas de morte políticas liberais se mostra pesada e preocupante. Oscila-se
violenta. Mas a insegurança também se manifesta na alta entre o desemprego e a oferta de empregos de baixa qualidade,
probabilidade de pessoas afrodescendentes ganharem sempre baixa remuneração e durabilidade duvidosa. A produção mal tem
menos que as pessoas brancas, por trabalho idêntico, mesmo tempo de reagir a surtos passageiros de ativação da demanda,
quando igualmente qualificadas, ou de enfrentarem primeiro o em geral abortados por crises externas, em um padrão que se
desemprego, quando a economia se retrai. repete desde o fim da década de 1980.
Outra dimensão essencial da insegurança diz respeito às A ação do Estado é limitada pelos pesados compromissos
próprias condições de vida. Ampla camada da população carece financeiros acumulados durante o período. O predomínio de
de condições de saúde e moradia que possibilitem uma vida interesses de grupos financeiros na formulação de políticas
digna e segura. Ou não tem acesso a uma educação de econômicas se mostra na prioridade dada aos compromissos
qualidade que ofereça proteção contra a obsolescência de sua com esses setores, na manutenção de taxas de juros muito
qualificação para o trabalho, num ambiente onde as condições elevadas e na redução da capacidade de gasto público em favor
de produção mudam rápida e constantemente. da priorização dos pagamentos de juros sobre a dívida pública.
Assim, os conceitos de segurança e insegurança que inspiram Neste quadro de insegurança em que vive o país há tantos anos,
esta edição do Observatório da Cidadania têm a ver com a a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, trouxe
segurança humana, uma noção multifacetada, que vai além da novas esperanças, que podem talvez ser consideradas
É impossível dar respostas definitivas, sem controvérsias, a globais e o financiamento de programas de desenvolvimento.
perguntas hipotéticas sobre os acontecimentos atuais. No entanto, “Destinamos cerca de US$ 50 bilhões para gastos com o
grande parte do debate internacional atual está centrado justamente desenvolvimento e US$ 1 trilhão para despesas militares; acho que há
numa questão deste tipo: o mundo é um lugar melhor sem Saddam um desequilíbrio”, disse ele. Outras vozes têm apontado conseqüências
Hussein no poder? A pergunta leva inevitavelmente a outra: o mundo ainda piores: vítimas civis diretas, violações dos direitos humanos em
não estaria melhor se o dinheiro e o esforço investidos na guerra grande escala, crescente xenofobia e desrespeito às leis internacionais.
no Iraque tivessem sido destinados a outros fins, por exemplo,
para ajudar as pessoas pobres?1 Ainda é muito cedo para avaliar a extensão dos danos causados por
conflitos que mataram milhões de pessoas a um sistema legal e
É difícil acrescentar algo novo à quantidade enorme de institucional internacional, com a Organização das Nações Unidas (ONU)
informações e comentários que já circulam sobre esses assuntos. em seu centro, construído cuidadosamente ao longo de décadas. No
Porém, é justamente o que este relatório do Social Watch / entanto, está claro que a desconfiança do público na palavra
Observatório da Cidadania faz, ao iluminar essas questões de outro daqueles(as) que o lideram não contribui para fortalecer a democracia.
ângulo – o das organizações populares de todo o mundo que
estão na linha de frente da batalha contra a pobreza e a Quando os governos fazem promessas, uma parte substancial da
discriminação. Quando prevalece a lógica da guerra, a voz de civis opinião pública tende a mostrar-se cética. Afinal, há cinco séculos,
é silenciada, seus sofrimentos são ignorados e até mesmo suas Nicolau Maquiavel, fundador do que hoje é conhecido como “ciência
mortes deixam de ser contabilizadas. política”, justificou essa incredulidade ao afirmar que “um príncipe
nunca carece de razões legítimas para quebrar suas promessas”.
A análise da situação do Iraque apresentada neste relatório foi fornecida Por outro lado, o colunista estadunidense Herbert Agar, ganhador
pela Associação Al-Amal, a única ONG nacional ativa no país. A Al- do Prêmio Pulitzer, atribuiu enorme valor às promessas feitas durante
Amal, antiga integrante da coalizão internacional do Social Watch, já os tempos difíceis da Grande Depressão: “A civilização está baseada
dava informações de dentro do Iraque muito antes da guerra, com numa série de promessas; se elas são quebradas com demasiada
uma visão crítica tanto do regime de Saddam como das ameaças dos freqüência, a civilização morre, não importando o grau de sua riqueza
Estados Unidos contra aquele regime. Com independência e coragem ou avanço tecnológico. A esperança e a fé dependem das promessas;
similares, organizações da sociedade civil da Colômbia2 denunciam se a esperança e a fé desaparecem, tudo desaparece”.
os excessos do governo e da oposição armada na guerra civil de
décadas que assola o país, enquanto o Peru dá um exemplo dramático Presidentes e primeiros(as)-ministros(as) de quase todos os países
de como o terrorismo e o terrorismo de Estado se combinam para independentes do mundo fizeram uma grande promessa no ano
converter pobres e indígenas em vítimas silenciosas e ignoradas de 2000: erradicar a pobreza da face da Terra em uma geração.
uma “guerra suja”. Os meios de comunicação internacionais e nacionais O Social Watch foi criado em 1995 justamente para relembrar aos
cobriram amplamente essa “guerra contra o terrorismo”. Como foi governos os compromissos assumidos de dar prioridade à eqüidade
possível que o genocídio contra a população indígena tenha passado entre os gêneros e à erradicação da pobreza nas suas agendas
despercebido? Essa é a pergunta feita pela sociedade peruana, num nacionais e internacionais. Desde então, coalizões de cidadãos e
exercício saudável para evitar a repetição de tais erros. cidadãs de cerca de 50 países de todos os continentes informam
Da mesma forma, milhares de pessoas morrem diariamente no todos os anos sobre suas conclusões. Nunca essa tarefa parecera
mundo de causas facilmente evitáveis,3 sem que isso vire notícia tão necessária e, ao mesmo tempo, tão difícil de realizar.
na mídia. O mundo se perguntará em alguns anos – como o faz o Por esses motivos, no lugar de pedir que as coalizões nacionais do
povo peruano agora: por que ninguém tomou as decisões para Social Watch concentrassem sua pesquisa para este relatório numa
evitar essas mortes? Se for assim, nenhuma pessoa que governa das numerosas metas de desenvolvimento acordadas pela comunidade
um país poderá alegar não ter sido advertida. internacional,4 a questão que lhes apresentamos foi a seguinte: “Quais
Numa entrevista recente à Australian Broadcasting Corporation, o são os principais obstáculos à segurança humana em seu país?”.
presidente do Banco Mundial, James Wolfensohn, reclamava da enorme A grande variedade de respostas a essa questão constitui a essência
desigualdade entre os gastos governamentais com despesas militares deste relatório.5 Certamente, a segurança inclui a ausência de medo,
porém as pessoas temem a guerra, o terrorismo, o conflito civil,
1 Ver, neste relatório, o artigo de Ziad Abdel Samad para uma perspectiva regional
da relação entre “segurança” e “segurança humana” no Oriente Médio.
2 Alguns informes de países estão disponíveis apenas no CD-ROM que acompanha 4 Por exemplo, relatórios anteriores do Social Watch estavam concentrados na educação,
esta publicação. na pobreza ou em serviços sociais essenciais.
3 Ver, neste relatório, o artigo de Carlos André F. Passarelli para uma análise em 5 Para uma análise dos problemas comuns e diferentes refletidos nos relatórios
profundidade dessa situação em relação à pandemia do HIV/Aids. nacionais, ver o artigo de Karina Batthyány.
Roberto Bissio
Coordenador do Social Watch
Os informes nacionais do Observatório da Cidadania oferecem uma série de argumentos e evidências sobre os
problemas e as dificuldades que põem em risco a segurança das pessoas nos diferentes países. As possíveis
ameaças correspondem a sete dimensões principais: econômica, alimentar, sanitária, pessoal, comunitária, cultural
(incluindo a dimensão de gênero) e política. A pobreza, sem dúvida, destaca-se nos informes como um dos
obstáculos centrais à segurança humana.
Karina Batthyány2 Pnud, a essência da insegurança humana militares e culturais) que dêem às pessoas
é a vulnerabilidade, e a pergunta que de- os elementos básicos de sobrevivência, dig-
A segurança é tema de um debate intenso vemos fazer é como proteger as pessoas, nidade e meios de vida.4
sobre as políticas que podem tornar o insistindo no seu envolvimento direto e
mundo e as sociedades mais seguras, uma no vínculo estreito entre desenvolvimen- Para além da defesa do território
discussão sobre os fatores que causam to e segurança. O conceito de segurança humana comple-
incerteza, medo e insegurança nas pessoas e Como ponto de partida, o Pnud iden- menta o conceito territorial de segurança do
nos Estados. Esse debate é complexo e tificava as seguintes dimensões da segu- Estado, pois diz respeito mais ao indivíduo e
envolve opiniões antagônicas – uma ex- rança: econômica, alimentar, sanitária, à comunidade do que ao Estado. Portanto,
pressão da diversidade do próprio mundo ambiental, pessoal, de gênero, comunitária pode ser estabelecida uma diferenciação clara
e um reflexo dos interesses e das posições e política. Poucos anos depois, governos entre as políticas de segurança nacional –
diferentes que têm os países e seus cen- como os do Japão, da Noruega e do Cana- centradas na integridade territorial de um
tros de decisão política. Nesse constante e dá adotaram um conjunto de idéias Estado e na liberdade de determinar sua for-
inevitável repensar global, o conceito de subjacentes a esse conceito para elaborar ma de governo – e o conceito de segurança
segurança humana pode ajudar a situar o suas políticas exteriores e preparar uma lis- humana, que tem como foco as pessoas e
debate num plano mais próximo ao que ta de temas concretos, como a proibição as comunidades, especialmente civis que
realmente exige o conjunto da humanida- das minas antipessoais, o controle de ar- estejam em situação de vulnerabilidade ex-
de, e não somente naquele que interessa mas leves, o repúdio ao recrutamento de trema, em conseqüência de guerras ou por
a uns poucos Estados e seus organismos crianças como soldados, a promoção do marginalização social e econômica. Os peri-
de segurança. direito internacional humanitário, o apoio gos para a segurança das pessoas incluem
O conceito de segurança humana sur- aos novos organismos de direitos huma- ameaças e condições que nem sempre eram
giu no contexto da pesquisa para a paz nos criados pela Organização das Nações vistas como tais para a segurança do Esta-
na década de 1980, em oposição ao con- Unidas (ONU), a assistência às pessoas re- do; e, o que é ainda mais importante, o cam-
ceito de “segurança nacional”, que pre- fugiadas, a participação em operações para po dos atores envolvidos foi ampliado,
dominou durante a Guerra Fria. Porém, a manutenção da paz etc. deixando de ser exclusivamente estatal. O
sua divulgação ampla em nível internacional Dessa forma, o conceito de segurança objetivo da segurança humana implica não
só ocorreu em 1994, quando o Programa humana vem evoluindo, e a discussão que somente a proteção das pessoas, mas tam-
das Nações Unidas para o Desenvolvimento gera é uma excelente oportunidade para re- bém seu empoderamentoNR, para que pos-
(Pnud) centrou seu Relatório de Desenvol- pensar os velhos esquemas de segurança sam enfrentar as situações por si mesmas.
vimento Humano nessa idéia. 3 Para o centrados nos aspectos militares e para iden-
tificar as necessidades do conjunto do pla-
neta em toda sua diversidade, aspectos que
praticamente não são considerados nas po-
1 Neste volume, encontram-se os informes dos líticas públicas gerais.
seguintes países: Angola, Argentina, Canadá, Coréia do De acordo com a definição da Comis- 4 Ver o relatório final da Comissão de Segurança
Sul, Holanda, Índia, Iraque, México, Nigéria, Palestina,
são de Segurança Humana, a expressão Humana. Disponível em: <www.humansecurity-chs.org/
Peru e Uganda. A edição completa, com todos os finalreport/outline_spanish.html>. Acesso em: 22 set.
países, está disponível no CD-ROM que acompanha significa proteger as liberdades vitais e as 2004.
esta publicação. pessoas expostas a ameaças e a certas si- NR
Na língua inglesa, o verbo empower significa “dar
2 Socióloga, pesquisadora em Ciências Sociais no tuações, reforçando seus aspectos fortes e poder”, “capacitar”, “habilitar”. Não há correspondên-
secretariado internacional do Social Watch. cia exata em português. Organizações da sociedade
suas aspirações, além de criar sistemas
3 PNUD. New dimensions of human security. Nova York: civil vêm usando o verbo “empoderar”, apesar de
Oxford University Press, 1994. (políticos, sociais, ambientais, econômicos, ainda não estar dicionarizado.
Por que o mundo atual se tornou mais perigoso? A insegurança não está presente apenas nos planos belicosos dos
Estados Unidos e nas ações dos grupos islâmicos clandestinos. As “guerras sociais” causam mais mortes do que as
guerras entre exércitos e colocam o problema da segurança civil na agenda mundial. Se, neste novo contexto neo-
imperial, as direções dos movimentos sociais e das ONGs têm sido incapazes de reconciliar a equação do poder com a
legitimidade social, o caminho para a construção da paz, no século 21, passa necessariamente pelos fóruns sociais e os
diferentes movimentos cívicos em todo o mundo.
Gustavo Marin1 pois o medo leva à impotência e à violência. os planos expansionistas dos novos países
As primeiras questões que vêm à mente colonialistas de nossa época? Poderá a edu-
Com freqüência, achamos que segurança é são as seguintes: quais são as causas da cação para a paz acalmar as pessoas? A na-
uma questão de lei, militares e polícia. Mas são insegurança, não somente da insegurança tureza individual dos seres humanos mudará
várias as dimensões da segurança. É uma civil, como também da econômica, social, ao mesmo tempo em que se modificam as
questão econômica porque ter um emprego política e cultural? Por que o mundo de hoje estruturas sociais e os sistemas políticos?
estável, a capacidade de se alimentar e um tornou-se mais perigoso? Respostas para essas questões devem
teto sobre a cabeça são as condições mais As manifestações de insegurança se levar em conta toda a complexidade que os
elementares da segurança para o indivíduo, a fundem e não existem somente nos planos temas envolvem e também devem recorrer
família e a comunidade. É uma questão social belicosos do governo dos Estados Unidos a estratégias que lidem diretamente com a
porque o respeito mútuo entre pessoas da ou nas ações armadas dos grupos islâmicos insegurança. Por um lado, uma democracia
vizinhança e um “entendimento cordial” entre clandestinos. A injustiça e a violência permeiam genuína não pode ser atingida sem uma nova
diferentes grupos sociais são os fundamentos a vida diária na esfera local, no interior das economia, mais justa e mais social; por outro,
de uma vida pacífica. A segurança social, con- famílias, nos distritos e nas cidades, em regiões uma nova economia não será viável sem uma
siderada como o acesso básico aos serviços inteiras e entre os países. Não somente as democracia genuinamente participativa. A
de saúde e educação pública e à aposentadoria guerras “oficiais”, ou aquelas que assim justiça não é possível se as leis não estão
decente, é vista como uma necessidade aparecem na mídia, causam a insegurança. profundamente enraizadas nos princípios
não somente pelos povos dos países ricos A violência existe tanto nas relações cotidianas democráticos, e, sem justiça, a paz é somente
industrializados, mas por grandes parcelas como nas redes mafiosas, assumindo o con- uma ilusão. Porém, como vamos conseguir,
da população dos países pobres em desen- trole de distritos, regiões e países, estenden- ao mesmo tempo, uma economia digna, uma
volvimento. É uma questão política porque do-se pelos continentes. As “guerras sociais” democracia aberta, um sistema jurídico
o direito de expressar idéias e convicções e causam mais mortes do que as guerras entre legítimo e uma sociedade justa? Cada um
de se associar a outras pessoas para assumir exércitos e colocam o problema da segurança desses componentes está relacionado aos
responsabilidades nos assuntos públicos de civil na agenda. demais, o que significa que o importante
uma organização, distrito, partido político, país As tensões e os conflitos que ameaçam mesmo é o todo.
ou organismo internacional constitui um dos a segurança individual e comunitária têm
fundamentos de uma vida social justa – tanto raízes diferentes: desigualdades econômicas, ONU perde legitimidade
quanto o direito à vida. Finalmente, é uma conflitos sociais, sectarismo religioso, dis- A atual insegurança está ligada às políticas
questão cultural porque viver em paz num putas territoriais e pelo controle de recursos unilaterais e imperialistas dos Estados Unidos.
mundo de diversidade é um componente es- vitais, como água e terra. Todas essas cau- Um número cada vez maior de cidadãos e
sencial da condição humana. sas expressam uma crise de valores e a gran- cidadãs se conscientiza de que as pessoas
A necessidade de proteção e a ausência de dificuldade de encontrar significado que lideram a política e a economia das prin-
de perigo são vitais e tão importantes quanto pessoal e coletivo para nossas vidas e nos- cipais empresas e instituições internacionais
o direito à alimentação e ao acesso à água, sas sociedades. não são somente incapazes de lidar com a
Como enfrentar essa situação? Novas insegurança, mas também, acima de tudo,
regulamentações econômicas resultarão na são as principais culpadas.
diminuição das desigualdades e assegurarão Para garantir a segurança e a democracia,
1 Com nacionalidade chilena e francesa, é o diretor de uma vida mais decente para milhões de seres é necessário desmantelar os fundamentos
programa da Fundação Charles Léopold Mayer para o
Progresso do Homem, França. Aliança para um Mundo
humanos? Será que a Organização das Na- centralizadores do poder. Entretanto, na prá-
Responsável, Plural e Unido (www.alliance21.org). ções Unidas (ONU) conseguirá neutralizar tica, a rodada de grandes conferências das
A carga fiscal está passando das nações ricas para as pobres. Os países em desenvolvimento perdem, no mínimo,
US$ 50 bilhões por ano, o equivalente à ajuda oficial dos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento
Econômico (OCDE) às nações em desenvolvimento. De acordo com o Banco Mundial e o Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (Pnud), essa é a quantia necessária para atingir as Metas de Desenvolvimento do Milênio. É
também um montante equivalente a seis vezes os custos anuais estimados para atingir a educação primária universal e
quase três vezes o custo da cobertura universal de atendimento primário à saúde. A única maneira bem-sucedida de
contrabalançar práticas fiscais prejudiciais e a competição fiscal internacional é mediante iniciativas globais.
Coalizão Suíça de Organizações tam gastos e investimentos em serviços bási- adas em segredo com as autoridades, sem
de Desenvolvimento cos e desenvolvimento de infra-estrutura, que levar muito em conta a legislação tributária.
Bruno Gurtner 1 são necessários para o futuro crescimento. A Assim, os paraísos fiscais oferecem a não-
redução dos serviços sociais afeta as pesso- residentes – e somente a eles – isenções com-
Na atualidade, países de todo mundo enfren- as pobres muito mais do que as ricas. Um pletas ou muito substanciais, além de secretas,
tam um problema crescente na arrecadação investimento menor na infra-estrutura nacio- de seus impostos corporativos ou pessoais.
de impostos para financiar bens e serviços nal atrofia o crescimento econômico neces- A regulamentação dos paraísos fiscais é
públicos, como serviços de saúde, educação sário para o desenvolvimento sustentável. Se precária ou inexistente. Onde há códigos e
e infra-estrutura, e poder reduzir a pobreza – não forem revertidas, essas tendências serão leis, muitas vezes não existe nem a vontade
o que é vital nos países em desenvolvimento. desastrosas para o desenvolvimento. política nem os recursos para implementá-
A globalização solapa a base fiscal do Estado los de modo eficaz. Os governos dos cen-
de bem-estar social. Embora os mercados Paraísos fiscais criam “indústria paralela” tros financeiros offshore têm pouca
tenham sido globalizados, as estruturas fis- O papel dos centros financeiros é destrutivo, capacidade administrativa para supervisio-
cais ainda são nacionais. A abertura das fron- atuando como canais de evasão dos siste- nar esses movimentos financeiros. A ausên-
teiras tem causado uma competição fiscal mas tributários da maioria dos países. A fuga cia de regulamentação também oferece
exagerada, que, por sua vez, leva a uma cor- de capitais, associada à evasão fiscal em par- ambientes favoráveis para a lavagem de di-
rida para ver quem taxa menos as empresas ticular, rouba dos países em desenvolvimento nheiro e solapa a estabilidade do sistema
e as rendas mais altas. o capital para financiar investimentos e pro- financeiro. As crises financeiras agora são
A competição fiscal internacional e as prá- ver serviços sociais. Há 20 anos, havia so- mais freqüentes e profundas.
ticas fiscais danosas oferecem cada vez mais mente uns poucos paraísos fiscais, Dentre os serviços oferecidos por esses
oportunidades para que as pessoas ricas es- administrados por um pequeno número de centros financeiros, estão os bancários (para
capem de suas obrigações fiscais. A carga profissionais. Com a liberalização mundial dos pessoas físicas e jurídicas), fundos offshore
fiscal está mudando: indivíduos ricos e em- fluxos de capital, o desmantelamento dos e gestão de fundos de investimentos. A in-
presas transnacionais se beneficiam dos pa- controles de capital e a revolução das comu- dústria offshore não é um fenômeno isola-
raísos fiscais e dos regimes de impostos nicações eletrônicas, a indústria offshore (ex- do, que ocorre somente em ilhas caribenhas
baixos em todo o mundo, enquanto os indi- traterritorial) se transformou num grande exóticas. Ela se tornou uma nova e enorme
víduos comuns e as empresas nacionais negócio global. indústria paralela global. Os centros offshore
menores suportam os custos. Isso afeta ci- Em todo o planeta, existem cerca de 60 estão estreitamente vinculados aos princi-
dadãos e cidadãs de duas maneiras: por um paraísos fiscais, que competem entre si para pais centros financeiros, como Nova York,
lado, os governos aumentam os impostos atrair capitais móveis, oferecendo ambientes Londres, Tóquio, Zurique, Hong Kong e
sobre o consumo, rendas menores e empre- de baixos impostos ou sem impostos, além Cingapura. A maior parte dos paraísos fis-
sas pequenas; por outro, os governos cor- de benefícios duvidosos, como o segredo e a cais do mundo está, na verdade, localizada
regulamentação precária. O segredo estimu- nos grandes centros financeiros. Atualmente,
la a evasão ilegal de impostos e implica não mais de 150 mil empresas para operação
revelar nenhuma informação relacionada às offshore são instaladas todos os anos e há
contas empresariais ou à titularidade de ati- mais de 1 milhão dessas empresas em
1 O autor é economista sênior da Coalizão Suíça de vos, fundos de investimentos e empresas. todo mundo. Por exemplo, a Enron tinha
Organizações de Desenvolvimento e pode ser
contatado pelos seguintes e-mails :
Nos lugares onde se pagam impostos, com 881 subsidiárias offshore , das quais 692
<bgurtner@swisscoalition.ch> e <info@taxjustice.net>. freqüência as alíquotas são mínimas, negoci- estavam nas Ilhas Cayman. As maiores
A segurança humana não é uma alternativa à segurança nacional. Ao contrário, esta é um dos meios de atingir aquela.
É importante destacar os efeitos da ocupação do Iraque pelos Estados Unidos para a segurança humana, assim como
sua influência sobre a política, a economia e a cultura dos países árabes. Está claro que dois elementos são indispensáveis
para enfrentar as raízes dos problemas de segurança humana na região: ações por parte das organizações da sociedade
civil e uma transformação das políticas institucionais.
Rede de ONGs Árabes para minimizou a importância das fronteiras e ge- das organizações internacionais e dos ato-
o Desenvolvimento rou o reconhecimento de que a segurança res estatais, aos mercados interdependen-
Ziad Abdel Samad1 do Estado é essencial, porém não é suficien- tes e à estabilidade como um bem público.
te para garantir o bem-estar individual. Embora a segurança do Estado seja vincu-
É importante assinalar que a segurança lada principalmente à soberania e às ques-
“Em sua expressão mais simples,
humana não é uma alternativa à segurança tões de fronteiras, tende a priorizar a
segurança humana são todas aquelas
do Estado, porém são conceitos comple- segurança dos investimentos.
coisas que homens e mulheres mais
mentares, pois a segurança do Estado deve No caso do mundo árabe, é essencial
valorizam em qualquer parte do mundo:
ser vista como um dos meios para alcançar destacar os efeitos sobre a segurança hu-
alimentação suficiente para a família,
o fim, que é a segurança humana. O concei- mana causados pela ocupação estrangeira
habitação adequada, boa saúde, escola
to de segurança humana “pode até exigir do Iraque e pelo expansionismo dos Esta-
para as crianças, proteção contra a
que as pessoas sejam protegidas dos seus dos Unidos, expressos em seu desejo de
violência infligida pelos seres humanos
Estados”,2 em situações em que os grupos influenciar a política, a economia e a cultura
ou pela natureza e um Estado que não
dominantes não servem ao povo, mas a in- da região. Os dois principais conflitos no
oprima seus cidadãos e cidadãs e
teresses antidemocráticos para se perpetu- mundo árabe – entre Palestina e Israel e
governe com seu consentimento.”
arem no poder. A democracia implica em aquele que ocorre no Iraque – represen-
Louise Frechette, vice-secretária-geral um processo rumo a uma sociedade mais tam uma fonte fundamental de instabilida-
das Nações Unidas responsável e consciente, onde a segurança de global e divisão política, ameaçando a
comum e a segurança individual sejam ga- segurança além das fronteiras dos países
“A segurança humana se refere à
rantidas e respeitadas. diretamente envolvidos. Esses conflitos não
qualidade de vida das pessoas de uma
No início deste século, a noção de se- somente resultaram em perdas de vidas e
sociedade ou nação. O elemento
gurança foi expressa relacionando os danos à propriedade, como também são
essencial da segurança humana são os
conceitos de segurança internacional, se- as causas principais de uma instabilidade
direitos humanos.”
gurança estatal e segurança humana. 3 A que obstrui o desenvolvimento social, eco-
Ramesh Thakur, Universidade das segurança internacional, que é principal- nômico e político, privando os países ára-
Nações Unidas mente identificada com a globalização, está bes da oportunidade de atrair investimentos
dirigida à proteção dos interesses das em- estrangeiros, e agrava os fatores que favo-
Essas citações resumem o conceito de presas transnacionais e vinculada ao peso recem a emigração de recursos humanos
segurança humana como ele é compreendi-
altamente qualificados.
do hoje. Houve uma mudança de foco do
Os países árabes têm sido governados
Estado (segurança pública) para o indiví-
por uma sucessão de regimes antidemocrá-
duo, como ser humano e cidadão/cidadã
ticos que frustraram o desenvolvimento de
(segurança privada). Essa mudança de sig- 2 Palavras de Paul Heinbecker no texto “Peace theme: movimentos democráticos e o respeito
nificado foi resultado do avanço da globali- human security”, apresentado na Conferência de
Lysoen, presidida pelo ministro de Relações Exteriores aos direitos humanos. Seus regimes polí-
zação neoliberal com todas as suas
da Noruega, ocorrida em 19 e 20 de maio de 1999. ticos repressivos são bons para controlar e
implicações. A nova perspectiva global Disponível em: <www.peacemagazine.org/archive/
oprimir os próprios povos, porém têm de-
v15n4p12.htm>. Acesso em: 17 out. 2004
3 Segundo Francisco Rojas Aravena, diretor da
sempenho medíocre como parceiros e ne-
Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais gociadores globais e nas decisões nesse nível.
(Flacso), Chile. Ver o texto “Human security: emerging Essa situação continuará enquanto os líde-
1 Diretor executivo da Arab NGO Network for Development concept of security in the twenty-first century”, de
(Rede de ONGs Árabes para o Desenvolvimento). O 2002. Disponível em: <www.unidir.ch/pdf/articles/pdf-
res árabes não compreenderem a impor-
autor agradece a ajuda de Kinda Mohamdieh. art1442.pdf>. Acesso em: 22 set. 2004. tância do empoderamento de seus povos,
O campo dos direitos humanos tem sido afetado, em grande medida, pelas negociações comerciais. Democracias que
buscam avançar na garantia de direitos sociais e no desenvolvimento humano de suas populações enfrentam a poderosa
aliança conservadora entre o governo de George W. Bush, o Vaticano e os países islâmicos. Pressões desse bloco visam
atacar os direitos e a autodeterminação das pessoas na esfera da sexualidade e da reprodução. Para enfrentá-las, será
fundamental reforçar a coalizão da sociedade civil em defesa da chamada Resolução Brasileira sobre Direitos Humanos
e Orientação Sexual, que deverá ser votada em 2005.
Magaly Pazello1 Sul, em função das denúncias de que os acor- o Desenvolvimento (Unctad, na sigla em in-
dos internacionais sobre patentes criam obs- glês), ocorrida em 2004, em São Paulo, um
O tema dos direitos humanos e suas táculos às políticas nacionais de saúde pública painel promovido pelo programa global, de-
intrincadas relações com o comércio inter- e afetam dramaticamente as populações po- senvolvido pela Unctad e pelo Programa das
nacional – ou seu inverso, as negociações bres e os países menos desenvolvidos. No Nações Unidas para o Desenvolvimento
comerciais e o modo como elas podem es- mesmo ano, o Brasil conseguiu aprovar uma (Pnud), sobre globalização, liberalização e
tar atreladas a situações que põem em risco resolução na Comissão de Direitos Humanos desenvolvimento humano sustentável -–
os direitos humanos – é um desafio para a (CDH) da Organização das Nações Unidas cujos eixos são economia do conhecimen-
democracia e a luta dos movimentos sociais (ONU), na qual se afirma que o acesso aos to, energia e água – apresentou resultados
por um mundo justo e melhor. Negociações medicamentos essenciais deve ser conside- das atividades desenvolvidas em países da
comerciais entre países são bastante com- rado como um dos direitos humanos funda- África, do Sudeste Asiático e da América La-
plexas e técnicas, sobretudo após a conso- mentais. Todos os países que compõem a tina. Entre elas, o uso das novas Tecnologias
lidação da globalização, que cria um ambiente CDH aprovaram a proposta, à exceção dos de Informação e Comunicação (TICs) – com-
na área do comércio totalmente novo no Estados Unidos, que se abstiveram de votar.3 putadores, Internet, celulares – por países
que diz respeito a sua regulação. Os muitos As vinculações entre comércio e direitos em desenvolvimento e menos desenvolvi-
interesses em jogo passam também a incluir humanos podem ser mais ou menos per- dos para alcançar competitividade internaci-
o debate internacional do campo dos direi- ceptíveis, dependendo dos conteúdos em onal com eficiência social, pois cria inúmeros
tos humanos como um elemento integrante disputa nas negociações da esfera internaci- postos de trabalho.
dessas negociações. onal. No caso patentes versus saúde pública,
Devemos recordar como, em 2001, foi estava claro que se tratava de uma luta entre Na arena dos direitos sexuais
importante o argumento dos direitos huma- a preservação a qualquer custo do capital da Um dos fatores positivos enfatizados foram
nos na discussão do painel aberto pelos Es- indústria farmacêutica, defendido pelos Esta- os benefícios para as mulheres decorrentes
tados Unidos contra o Brasil na Organização dos Unidos, e a qualidade de vida de pessoas das TICs, uma vez que os postos de trabalho
Mundial do Comércio (OMC) sobre o que vivem com o HIV, representada pela de- nesse setor econômico são, majoritariamen-
licenciamento compulsório2 de medicamen- terminação do Brasil em garantir o direito do te, ocupados por mulheres, como ocorre no
tos para tratamento do HIV/Aids. Com a pres- acesso aos medicamentos, o que era com- Sudeste Asiático. Contudo, o aumento da
são da opinião pública internacional e das prometido pelo Acordo sobre Direitos de Pro- empregabilidade feminina e a maior
ONGs que atuam nesse campo, os Estados priedade Intelectual Relacionados com o competitividade dos países se fazem às cus-
Unidos retiraram a queixa contra o Brasil. Em Comércio (Trips, na sigla em inglês), da OMC, tas de baixa remuneração e da dupla jornada
2001, as multinacionais farmacêuticas tam- que impunha uma carga financeira. de trabalho. As mulheres, que comprovada-
bém se viram obrigadas a retirar o processo No entanto, as vinculações pouco per- mente recebem menos do que os homens,
judicial aberto contra o governo da África do ceptíveis têm um impacto perverso sobre a ainda que ocupem o mesmo cargo e execu-
vida cotidiana das pessoas, em especial das tem trabalho idêntico, continuam sendo res-
mulheres. Durante a 11ª Reunião da Confe- ponsáveis pela reprodução social (cuidado
rência das Nações Unidas para o Comércio e da casa, de crianças, de doentes etc.), como
1 Colaboradora da rede Development Alternatives with se isso fosse inerente à condição feminina e
Women for a New Era (Dawn). só às mulheres coubesse.
2 Previsto na legislação brasileira, o licenciamento Desse modo, governos e empresas se
compulsório foi alvo de contestação por parte dos
utilizam do trabalho invisível e gratuito das
Estados Unidos, país onde se concentra a maior parte 3 Ver carta do Programa Nacional de DST e Aids.
dos laboratórios que detêm as patentes dos Disponível em: <http://www.aids.gov.br/final/biblioteca/ mulheres na esfera doméstica, bem como
medicamentos para HIV/Aids. bol_htm/boletim1.htm>. Acesso em: 22 set. 2004. da baixa remuneração da força de trabalho
melhora do texto para a inclusão do termo seria conseguida com um número muito se sabe ainda quem vencerá as eleições pre-
“identidade de gênero”, tão importante quan- pequeno de países. Isso poderia ser pior do sidenciais dos Estados Unidos, mas, se John
to “orientação sexual”, com o qual amplia a que adiar a votação outra vez, pois a vitória Kerry ocupar a Casa Branca, no dia seguinte
abrangência na proteção e promoção dos com margem pequena de votos tornaria a à sua posse, o posicionamento em relação
direitos humanos para pessoas LGBT. resolução vulnerável e ineficaz. Assim, a vo- aos direitos sexuais e reprodutivos mudará
A aliança estabelecida entre Estados Uni- tação foi adiada para 2005. radicalmente. Mudanças radicais ocorreram
dos, OIC e Vaticano estrategicamente atacou Segundo Elena Obando, pela dimensão quando Bill Clinton sucedeu George Bush (pai)
todas as referências aos direitos sexuais con- positiva do trabalho realizado na CDH e ape- e também quando o Partido Republicano
tidas em outras resoluções apresentadas para sar da postergação, houve um consenso retornou à Casa Branca em 2001.
votação (que tratavam de violência contra as histórico em todas as regiões para tal. Por- Porém, isso indica que há muito traba-
mulheres, tortura, execuções sumárias ou ar- tanto, o tema permanece na agenda de di- lho pela frente, pois a decisão do governo
bitrárias, saúde, entre outras), ampliando a reitos humanos para ser discutido no brasileiro de reapresentar, em 2004, a reso-
tensão. As negociações a portas fechadas, próximo ano. Dessa maneira, e em termos lução para votação se deveu, sobretudo, à
convocadas pelo bloco opositor, tiveram como de visibilidade histórica, as vozes LGBT do forte pressão da opinião pública favorável
objetivo demover a delegação brasileira da Sul e outras foram ouvidas tanto pela CDH ao texto. Para 2005, será crucial consolidar
intenção de levar à votação a resolução que como pelas diversas relatorias da ONU e por a coalizão da sociedade civil, criada em de-
tratava da orientação sexual. Para tanto, como representantes dos países da comissão (hou- zembro de 2003, assim como as articula-
mencionado, a pressão incluiu a sutil ameaça ve até quem demonstrasse receptividade ao ções nacionais entre os diversos movimentos
de boicote à Unctad e o cancelamento da lobby LGBT). que lutam pelos direitos sexuais e os direitos
cúpula entre a América do Sul e os países humanos, ampliando o diálogo entre setores
árabes. No Brasil, o arcebispo emérito do Rio Os desafios para 2005 da sociedade, e as articulações internacio-
de Janeiro dom Eugenio Sales utilizou sua O cenário parece ser mais positivo para 2005. nais, com as diversas redes que acom-
coluna no jornal O Globo para atacar siste- No que se refere à mudança do quadro dos panham processos globais.
maticamente a resolução, afirmando que ela Estados membros da CDH, por exemplo, Ca- Mas a resolução é apenas um passo no
seria contrária aos direitos humanos e repre- nadá e Nova Zelândia, que são favoráveis à enfrentamento das violações aos direitos hu-
sentava a destruição da família e o estímulo à Resolução Brasileira, passam da condição de manos das pessoas LGBT, das mudanças
discriminação religiosa. Alguns sites religio- observadores para membros efetivos. Não das legislações nacionais punitivas, do fim
sos comparavam a proposta brasileira com da pena de morte de homossexuais e do
as atrocidades de Hitler.11 uso da sexualidade como moeda de troca
Embora houvesse votos suficientes para em negociações comerciais. Esses são de-
aprovar o texto em plenária, o ambiente não 11 Ver <http://www.whrnet.org/docs/tema-
safios que precisamos vislumbrar na luta pela
era favorável a uma votação, pois a vitória derechossexuales-0404.html>. dignidade humana.
Dez anos após a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, ocorrida no Cairo, controvérsias à
esquerda e à direita têm provocado debates acirrados, principalmente no que diz respeito a temas como direitos
reprodutivos e sexualidade. Em aliança com o Vaticano e os países islâmicos, os Estados Unidos pressionam fortemente
os governos que apóiam as deliberações da conferência. Essa atitude, no entanto, vem encontrando resistência, de
modo especial em países da América Latina, que lutam contra o fundamentalismo.
Com exceção de uma lei aprovada pelo governo canadense em maio de 2004, que permite a exportação de medicamentos
genéricos para países em desenvolvimento, desde a Declaração de Doha, em 2001, houve poucas iniciativas por parte
dos Estados de implantar mecanismos legais que destacassem a primazia da saúde pública sobre os interesses comerciais.
A garantia do monopólio de 20 anos para produtos considerados invenções ou novidades tecnológicas, sustentada
pelo Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trips, na sigla em inglês), impõe às
populações apenas uma alternativa: morrer de fome e sem tratamento.
Carlos André F. Passarelli2 Mapa - Estimativa de adultos e crianças que vivem com HIV/Aids,
dezembro de 2003
Cerca de 3 milhões de pessoas morreram
em decorrência de Aids em 2003, e aproxi-
madamente 5 milhões de novas infecções
Europa Oriental e Ásia Central
ocorreram nesse mesmo ano. Em todo o Europa Ocidental 1,2 milhão – 1,8 milhão
mundo, vivem em torno de 40 milhões de América do Norte 520 mil – 680 mil
Ásia Oriental e Pacífico
pessoas com HIV, sendo que a grande mai- 790 mil – 1,2 milhão
África do Norte e 700 mil – 1,3 milhão
oria (95%) encontra-se nos países em de-
Oriente Médio Sul e Sudeste da Ásia
senvolvimento.3 Embora a pandemia esteja Caribe
470 mil – 730 mil 4,6 milhões – 8,2 milhões
na pauta da Assembléia Geral e do Conselho 350 mil – 590 mil
de Segurança da Organização das Nações África Subsaariana
Unidas (ONU) e ainda que tenha sido criado 25 milhões – 28,2 milhões
América Latina
o Fundo Global para Aids, Tuberculose e 1,3 milhão – 1,9 milhão Austrália e Nova Zelândia
Malária, essas estimativas oficiais não vis- 12 mil – 18 mil
lumbram um futuro melhor.
No que diz respeito ao acesso aos trata-
mentos existentes, as estimativas também
são pessimistas. Segundo a Organização
Mundial de Saúde (OMS), cerca de 5,5 mi- Total: 34 milhões – 46 milhões
lhões de pessoas nos países de renda média
e baixa necessitam imediatamente de medi- Fonte: UNAIDS. Aids Epidemic Update. Dezembro 2003. Em: <www.unaids.org/en/default.asp>
camentos anti-retrovirais, mas somente cerca
de 440 mil pessoas (8%) têm acesso a es-
ses insumos. Observando as cifras por re- acesso aos anti-retrovirais no Sudeste Asiá- táveis e orientadas à promoção da saúde
gião, encontramos 150 mil pacientes em tico, ou seja, 5% em relação ao número total pública e do desenvolvimento geral, defen-
tratamento no continente africano, o que re- de pacientes com indicação para tratamen- dem a articulação entre os campos da pre-
presenta somente 4% dos que necessitam to.4 Para a imensa maioria de pacientes, res- venção, do tratamento e da assistência.
ser tratados na África; 40 mil pessoas têm ta unicamente aguardar a morte. O que se Todavia, esta parece ser mais a exceção
pode fazer para impedir o assassinato em do que a regra. As tentativas para ampliar o
massa em decorrência da Aids? acesso aos tratamentos disponíveis
Especialistas e autoridades internacio- freqüentemente esbarram em argumentos
1 Este texto foi elaborado com base no artigo de John W. nais enfatizam a importância de estabelecer que se preocupam mais em afirmar obstá-
Foster para o Social Watch 2004. Foster é pesquisador estratégias que promovam uma abordagem culos do que propor soluções, ao enfatizar a
sênior do North-South Institute (Instituto Norte-Sul), em precariedade da rede de serviços de saúde,
mais integral dos problemas gerados pela
Ottawa, Canadá, e presidente do Comitê Coordenador
do Social Watch. pandemia. Para garantir respostas susten- as dificuldades decorrentes de condições
2 Doutorando em Psicologia Clínica na PUC-Rio e sociais adversas – como o analfabetismo e a
assessor de projetos da Associação Brasileira fome – que impedem a continuidade de tra-
Interdisciplinar de Aids (Abia).
tamentos com alto nível de complexidade e a
3 Dados do 2004 Report on the global Aids epidemic, da
Unaids. Disponível em: <http://www.unaids.org/ 4 Dados da OMS. Disponíveis em: <http://www.who.int/
ausência de recursos para adquirir medica-
bangkok2004/report.html>. Acesso em: 12 ago. 2004. 3by5/coverage/en/print.html>. Acesso em: 12 ago. 2004. mentos de alto custo, entre outras objeções.
Além de destruírem a crença na representatividade do interesse coletivo, a herança das redes clientelísticas e a corrupção
alimentam a desigualdade, a pobreza, a falta de acesso aos bens sociais e culturais e a violência. Nesse contexto, o
desafio brasileiro aponta para a construção de instituições independentes e autônomas, eficientes e centradas no
caráter social do compromisso democrático. Tal perspectiva demanda a efetivação de políticas que envolvam as redes
de solidariedade e garantam a maior participação das organizações sociais na elaboração e no controle das políticas
públicas. A mudança do cenário exige ainda a ampliação da presença de grupos tradicionalmente excluídos das
instâncias de poder, não apenas no âmbito do Executivo e do Legislativo, mas em todas os níveis decisórios e de
intermediação entre governo e sociedade.
bate se dá em torno de argumentos racio- dual e coletiva, presenciamos baixos ín- GUEDES, B.; RIBEIRO NETO, A. Fontes institucionais de
corrupção. In: ROSENN, K.; DOWNES, R. Corrupção e
nais e atitudes de consideração mútua. dices de apoio à democracia nos países reforma política no Brasil: o impacto do impeachment
Participantes dessas redes vêm de grupos latino-americanos. Esse problema é maior de Collor. Rio de Janeiro: FGV, 2004.
organizados da sociedade, e as decisões são na população de baixa renda, dada a pre- IBGE. Síntese de Indicadores Sociais 2003. Rio de Janeiro:
IBGE, 2004.
tomadas de modo inclusivo e transparente sença de polícias que se confundem com
______. Associativismo, Representação de Interesses e
(Della Porta, 2004). bandos de traficantes. No imaginário po- Intermediação Política. Pesquisa Mensal de Trabalho e
A democracia deliberativa vem preen- pular, o pretorianismo encarnado por go- Emprego. Rio de Janeiro: IBGE,1998.
chendo carências deixadas pela incapaci- vernos militares pode ser entendido como MANSO, B. P. Por que se mata tanto na periferia de São Paulo:
homicídios. 2003. Disponível em: <www.aprasc.com.br/
dade dos partidos políticos de intermediar garantia de segurança coletiva, diante do policia/homicidiosemsp.asp>. Acesso em: 20 out. 2004.
sociedade e Estado, como vemos em nu- quadro de deterioração geral. Governos PIZZORNO, A. Introducción al estudio de la participación
merosos grupos organizados cujos mem- munidos de armas dariam conta de tal situa- política. In: PIZZORNO, A.; KAPLAN, M.; CASTELLS, M.
Participación y cambio social em la problemática
bros não se dispõem a entrar nos partidos. ção? Eis uma questão a ser avaliada por go-
contemporânea. Buenos Aires: Siap, 1975.
Ela não exclui protestos, nem engajamen- vernantes, organismos internacionais, ______. La corruzione nel sistema politico. In: DELLA PORTA, D.
tos em outras formas de participação. A sociedade organizada e organizações não-go- Lo scambio occulto. Milão: Società Editrice Il Mulino, 1994.
multiplicação de organizações não-gover- vernamentais. Ou será que no horizonte en- PNUD. La democracia en América Latina: hacia una
democracia de ciudadanas e ciudadanos. Nova York:
namentais em todo o mundo, algumas das contra-se a perspectiva de continuidade de
Pnud, 2004.
quais ligadas aos movimentos sociais de uma ordem social cujo perfil lembra muito REIS, F. W. Atualidade mundial e desafios brasileiros.
referência, valida a tese de que, no con- mais as sociedades de castas? Estudos Avançados, v. 14, n. 39, maio/ago. 2000.
Por que jovens negros que moram em favelas ou na periferia das grandes cidades brasileiras correm maior risco de
serem assassinados? Fatores como incremento do tráfico de armas de fogo, rentabilidade do comércio de drogas,
corrupção, violência policial, ausência do poder público, cultura machista e falta de perspectiva de acesso aos bens de
consumo são algumas explicações. Poucas iniciativas governamentais têm surgido no sentido de associar políticas
sociais preventivas a políticas de controle e modernização das polícias. As boas perspectivas ficam por conta da
aprovação do Estatuto do Desarmamento e das ações de jovens que buscam criar uma cultura alternativa ao tráfico em
áreas violentas.
Silvia Ramos e Julita Lemgruber1 A pequena queda observada entre os anos de Verificam-se importantes diferenças en-
1990 e 1992 é atribuída a um problema no tre os estados brasileiros no que se refere a
O Brasil não está em guerra, mas nossas ta- registro dos dados (Soares, 1999). Nesses taxas de homicídio. Os índices vão de 8,4
xas de mortes violentas nos principais cen- anos, teria havido um grande acréscimo de mortes por 100 mil habitantes, em Santa
tros urbanos superam as de países que vivem registros de “mortes por armas de fogo e Catarina, a 58,5 por 100 mil habitantes, em
conflitos armados. Análises comparativas intencionalidade desconhecida” que não fo- Pernambuco, o único estado que tem taxas
com países em guerra ou em situação de ram contabilizados como homicídios, concen- concorrentes com as do Rio de Janeiro, com
conflito intenso concluíram que na cidade tradamente no Rio de Janeiro. 50,5 homicídios por 100 mil habitantes (Grá-
do Rio de Janeiro, tomados os mesmos O Brasil passou de 11,7 para 27,8 ho- fico 2). É importante observar, contudo, que
períodos, morreram mais pessoas vítimas micídios por 100 mil habitantes, respectiva- a fragilidade dos dados com os quais se
de armas de fogo do que nos combates ar- mente nos anos de 1980 e 2001. Países da trabalha na área da criminalidade implica sé-
mados em Angola (1998–2000); Serra Leoa Europa Ocidental têm taxas inferiores a três rias limitações para a análise. Problemas de
(1991–1999); Iugoslávia (1998–2000); mortes por 100 mil habitantes. Os Estados confiabilidade dos dados – alguns estados
Afeganistão (1991–1999). Em todos esses Unidos encontram-se na faixa de cinco a produzem informações mais qualificadas que
conflitos, jovens são as principais vítimas. seis mortes por 100 mil habitantes, e nossa outros – sugerem que qualquer avaliação
No município do Rio de Janeiro, 3.937 ado- vizinha Argentina tem índices semelhantes definitiva sobre violência letal em cada esta-
lescentes morreram por ferimentos causa- aos dos estadunidenses. do da Federação deve ser considerada com
dos por balas entre dezembro de 1987 e
novembro de 2001. No mesmo período, nos
combates entre Israel e Palestina, 467 ado- Gráfico 1 – Homicídios no Brasil: números absolutos e taxas por 100 mil habitantes
lescentes morreram como resultado da ação de 1980 a 2001
de armas de fogo (Dowdney, 2003).
Em 2001, no Brasil, mais de 47 mil pesso-
60.000 27,8 30
as foram assassinadas. Entre os anos de 1980
e 2001, houve 646.158 homicídios dolosos 50.000 47.899 25
22,2
no país, o que equivale a mais de 30 mil as-
sassinatos por ano. Como se pode observar 40.000 20
31.989
no Gráfico 1,2 a curva de homicídios cresce,
30.000 11,7 15
sistematicamente, ao longo de duas décadas.
20.000 13.910 10
10.000 5
1 Silvia Ramos e Julita Lemgruber são, respectivamente, 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001
coordenadora e diretora do Centro de Estudos de
Segurança e Cidadania (Cesec) da Universidade
Candido Mendes. Nº absoluto Taxa por 100 mil habitantes
Gráfico 4 – Porcentagem dos homicídios no total de mortes segundo cor e idade no Brasil – 1997 a 2000
AISP 17
AISPs 16 e 22
AISP 9
AISP 14
AISP 3
AISPs 1, 5, 13
AISP 27
AISP 39
AISP 18 AISP 2
AISPs 4 e 6
4,7 a 10 AISP 19
mais de 10 a 25 AISP 31
AISP 23
mais de 25 a 40
mais de 40 a 60
mais de 60 a 84
desconsiderada
Fonte: Musumeci (2004), com dados do Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro e IPP (estimativas populacionais 2002).
processo de mobilização de jovens de favelas e Juntamente com o fenômeno de criação SOARES, Gláucio Ary Dillon; BORGES, Doriam. A cor da
morte. Ciência Hoje, out. 2004.
bairros de periferia. São projetos, programas das “ONGs locais”, identificado por analistas (ver
______. Homicídios no Brasil: dados em busca de uma
ou iniciativas locais baseados em ações cultu- Pandolfi e Grynzspan, 2003), esses projetos e teoria. Buenos Aires: Clacso, 1999.
rais e artísticas, freqüentemente desenvolvidos iniciativas – heterogêneos e não articulados en- SOARES, Luiz Eduardo. Meu casaco de general :
e coordenados por jovens. Exemplos dessas tre si, mas que crescem consistentemente em quinhentos dias no front da segurança pública do Rio
de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
iniciativas são o grupo Olodum, em Salvador, favelas de várias cidades do país – vêm se tor-
______. Pacto pela paz: o consenso possível. 2003.
o Afro Reggae, o Nós do Morro e a Cia. Étnica nando importantes, não só como pólos de cons- Disponível em: <www.luizeduardosoares.com.br>.
de Dança, no Rio de Janeiro, além de centenas trução de uma cultura alternativa ao tráfico, mas WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência III: os
de agrupamentos locais (“posses”) mobiliza- como mediadores entre a juventude das fave- jovens no Brasil. Brasília: Unesco, 2002.
Se houve avanços nos últimos anos com a incorporação da ausência de racismo, sexismo e homofobia como condições
necessárias à segurança humana, ainda são poucas as vozes que incluem a ausência da violência de gênero1 como
elemento fundamental para a segurança das mulheres e da sociedade. A violência atinge de maneira diferenciada
homens e mulheres. A grande maioria das agressões sofridas por elas ocorre dentro de casa e é praticada por
pessoas conhecidas, em geral pelos próprios companheiros. O duplo medo, provocado pela violência nos espaços
público e privado, reduz significativamente a força de luta das mulheres pelo acesso à segurança humana e seu
protagonismo social.
Leila Linhares Barsted2 capazes de definirem e de lutarem por agen- Tomando como indicador a esperança de
das gerais e específicas voltadas à superação vida ao nascer, são marcantes as diferenças
Alcançar um padrão de segurança humana é das desigualdades sociais flagradas por pes- entre pessoas brancas e negras: cerca de seis
um grande desafio dos nossos dias, que tem quisas qualitativas e quantitativas, que revela- anos de vida a menos para as negras (Pnad/
como obstáculos: a hegemonia do neolibe- ram um país com graves distorções e IBGE, 1997 apud Paixão, 2004, p. 75). Por
ralismo, a desregulamentação de direitos e o injustiças, incompatíveis com os parâmetros outro lado, se as mulheres brancas têm maior
recuo do Estado em relação a deveres assu- necessários à segurança humana. No con- longevidade que os homens brancos (71 anos
midos no passado recente, a ampliação de junto dessas forças sociais, destacam-se o para as mulheres e 69 anos para os homens)
processos de pobreza e de exclusão social; a movimento de mulheres e o movimento ne- e se as mulheres negras apresentam maior
atuação de grupos criminosos na sociedade gro, que trouxeram para o cenário público longevidade que os homens negros (66 anos
e nas instituições públicas; a intolerância reli- questões que até então não eram politizadas para as mulheres e 62 anos para os homens),
giosa de fundamentalistas; a persistência do pela sociedade: as discriminações e a violên- o diferencial de expectativa de vida entre mu-
sexismo, do racismo e da homofobia; o avanço cia de gênero e raça/etnia. lheres brancas e negras chega a cinco anos.
do militarismo no plano internacional; além De fato, as desigualdades econômicas e Segundo Suely Carneiro,
de outros fatores no processo de deteriora- sociais no Brasil se aprofundam ainda mais
o atual movimento de mulheres negras, ao
ção da qualidade de vida. quando se consideram fatores que interferem
trazer para a cena política as contradições
No Brasil, esse desafio significa ainda ins- no poder de barganha dos indivíduos. Na aná-
resultantes da articulação das variáveis de
crever a noção de segurança humana nas lise dos dados estatísticos produzidos por agên-
raça, classe e gênero, promove a síntese
representações sociais e nas políticas gover- cias governamentais ou internacionais, mulheres
das bandeiras de luta historicamente
namentais, articulando-a aos princípios da e pessoas negras, parcelas majoritárias da po-
levantadas pelos movimentos negros e de
pulação brasileira, aparecem como os grupos
universalidade e da indivisibilidade dos direi- mulheres do país, enegrecendo, de um
de menor acesso às condições necessárias à
tos humanos. A redemocratização do Brasil, lado, as reivindicações das mulheres,
segurança humana. Em todos os indicadores
a partir da década de 1980, revelou um dina- tornando-as, assim, mais representativas
sociais, a população afrodescendente brasileira
mismo das organizações da sociedade civil, do conjunto das mulheres brasileiras e, por
está em patamares muito abaixo dos verifica-
outro, promovendo a feminização das
dos para a população branca. Quando se arti-
propostas e reivindicações do movimento
cula gênero com raça/etnia, a situação das
negro. (2003, p. 52)
mulheres negras se agudiza.
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra A autora destaca ainda o peso diferen-
1 O conceito de gênero é utilizado para dar conta dos
significados culturais da masculinidade e da de Domicílios (Pnad) do Instituto Brasileiro de ciado da questão da violência contra a mu-
feminilidade para além das diferenças biológicas Geografia e Estatística (IBGE) de 2002 indicam lher pela introdução do conceito de violência
inscritas nos corpos de homens e mulheres.
que a renda média das mulheres ocupadas no racial como aspecto determinante das for-
Feminilidade e masculinidade são compreendidos
nesses estudos como construções culturais que, Brasil só alcançava 70,3% da renda masculina mas de violência sofridas pela população
historicamente, orientam as relações entre homens e
(IBGE, 2004). Ao se incluir a variável raça na feminina não-branca do país.
mulheres, definem a forma como a sociedade os trata
e legitimam discriminações no reconhecimento de população feminina, observa-se uma enorme Nesse sentido, como chamou atenção a
direitos e no acesso a benefícios de políticas sociais. disparidade de rendimentos entre mulheres escritora inglesa Sheila Rowbotham, o concei-
O conceito de gênero possibilita tornar visíveis as to de gênero não deve “congelar nosso olhar,
relações de poder entre os sexos.
brancas e mulheres negras. As trabalhadoras
negras recebem cerca de 51,4% menos que tornando difícil enxergar aqueles aspectos
2 Advogada, diretora da organização não-governamental
Cepia – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação. as trabalhadoras brancas. da subordinação das mulheres afetadas por
Analba Brazão Teixeira1 casos de mulheres mortas por seus com- quais um dos parceiros mata e argumenta
panheiros, ex-companheiros, namorados a legítima defesa da honra como motiva-
A pesquisa “Diagnóstico da violência físi- e ex-namorados. Alguns dos crimes jul- ção e aqueles em que se pratica homicí-
ca e sexual contra o sexo feminino na gados apresentaram a justificativa da de- dio seguido de suicídio.
cidade de Natal”,2 baseada nos registros fesa da honra. Para o entendimento desse fenôme-
da Delegacia da Mulher de Natal, teve Vale salientar que a mesma pesquisa no, investigaram-se o ciúme, a honra, a
como base os processos de crimes con- revelou crimes conjugais cometidos por masculinidade e a violência nas relações
tra as mulheres nas varas criminais e os mulheres. Também foram identificados conjugais, buscando compreender as
registros de abuso sexual contra meni- oito casos de homicídios seguidos de sui- concepções do masculino e do feminino
nas no SOS Criança. No período estuda- cídio. Esse dado levou ao questionamento que alimentam a prática do homicídio e
do (1986 a 1996), foram registrados 115 sobre a diferença entre os crimes nos do suicídio. No texto “Os espelhos e as
Grupo 1 (b)
Grupo 1 (b)
Grupo 1 (b)
Grupo 1 (b)
Grupo 1 (b)
Grupo 1 (b)
Grupo 1 (a)
Grupo 1 (c)
Grupo 2
Ciúme Sim Sim Sim Sim Sim Sim - Sim Sim Sim
Traição Não Não Suspeita Não Não Não - Não Não Suspeita
Desemprego Não Não Falência Não Não Não Não Não Não Não
Dívida Não Não Sim Não Não Não Não Não Sim Não
Depressão Não Não Sim Não Não Não Não Não Não Não
Violência conjugal Sim Sim Não Não Não Não Sim Sim Sim Sim
Ameaça de
separação - - Sim Sim Não Não - - Sim Sim
Separação Sim Sim - - Não - Sim Sim - -
Casados durante
anos. Separados
Casados durante
Casados durante
Casados durante
durante quatro
um ano e sete
Juntos há um
Separados há
Separados há
durante três
Situação do
Namorados
Namorados
há um mês
dois meses
Separados
12 anos.
casal no dia
16 anos
16 anos
um mês
meses
da ocorrência
anos
Não
ano
Tentativa
Tentativa
de H/S
de H/S
Ocorrência
H/S
H/S
H/S
H/S
H/S
H/S
H/S
H/S
Caso 1 Jovens casados há um ano e sete meses, sem Existência de ciúme e ameaça
filhos. Ele a mata e se mata. de separação.
Caso 2 Namoraram por três anos. Ela o mata e se mata. Existência de ciúme, violência conjugal
e ameaça de separação.
Caso 3 Casados há 16 anos, quatro filhos. Ele mata três Existência de ciúme, violência conjugal
filhos, a esposa e se suicida. A quarta filha so- e ameaça de separação.
brevive com seqüelas.
Caso 4 Viviam juntos há um ano. Ele a mata e se mata. Existência de ciúme e ameaça
de separação.
Caso 5 Viveram juntos durante 12 anos, um filho em Existência de ciúme e violência conjugal.
comum. Ela com dois filhos do segundo casa- Estavam separados há um mês.
mento. Ele com três filhos do primeiro casa-
mento. Tenta matá-la com quatro tiros e se suicida
em seguida.
marcas”, Lia Zanotta observou que, quan- mente para homens e mulheres. Essas etnia e geração. Os casos de homici-
do se quebram as regras estabelecidas regras delineiam os códigos de morali- das-suicidas apresentaram algumas ca-
na linguagem do contrato conjugal, de- dade que influenciam a construção das racterísticas comuns, que orientaram
sencadeiam-se crises marcadas pelo “ci- representações em torno do masculino sua classificação. No Quadro 1, o gru-
úme”, revestido do medo de “perder o e feminino. po 1 é formado pelos homens que ma-
controle” da companheira de quem o côn- No Brasil, outros elementos relacio- taram as suas companheiras e se
juge se sente “dono”. nados à construção simbólica masculina mataram. Nesse grupo, observam-se
Ao assassinar a companheira, o ho- que contribuem para a recorrência des- três tipos de situações: (a) o homem
mem tenta justificar o seu ato pela defesa ses crimes são, por exemplo, o fato de o tentou matar a companheira e se ma-
da sua honra, maculada por sua compa- homem não conseguir manter financei- tou; (b) o homem matou sua compa-
nheira ao “quebrar o contrato conjugal”. ramente seu lar ou de a mulher assumir nheira e se matou; (c) o homem matou
Nos casos de homicídio seguido de sui- em conjunto com ele a manutenção do- sua companheira e três filhos e se ma-
cídio, qual seria a justificativa de matar e méstica, função socialmente estabelecida tou. No grupo 2, situa-se o único caso
se matar em seguida? como responsabilidade masculina. Um de homicídio seguido de suicídio em
A categoria “honra” pode ser utiliza- homem sem trabalho, no imaginário so- que o agente era uma mulher.
da como um viés de análise para se com- cial, é um homem sem valor. Nos casos identificados, havia situ-
preender as identidades de gênero. É Os crimes analisados têm quase ações recorrentes, algumas delas com
necessário não perder de vista que a sempre a mesma razão: ciúme e separa- maior freqüência: existência de ciúme (9),
construção das identidades de gênero ção. São fatores também recorrentes violência conjugal (6), ameaça de sepa-
constitui-se em um fenômeno cultural, nos homicídios seguidos de suicídio, ração (4) e separação concretizada (4).
estabelecido segundo regras específicas embora não possam ser considerados Em 17 anos (1986 a 2003), ocorre-
de cada cultura, que se manifestam nas os únicos para que o homicídio-suicídio ram 23 homicídios seguidos de suicídios
relações de parentesco, na divisão de se concretize. no Rio Grande do Norte, o que corres-
trabalho, em esferas públicas e priva- Nos dez casos selecionados no Rio ponde à média de 1,3 ao ano. Em 2004,
das, no poder, na religião, na sexualida- Grande do Norte, entre 1995 e 2002, o número de ocorrências cresceu: so-
de e, principalmente, nos critérios de observou-se que o fenômeno acontece mente até agosto, ocorreram cinco ho-
moralidade sexual, definidos diferente- independentemente de classe social, micídios seguidos de suicídios.
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O debate em torno da questão alimentar e nutricional tem articulado as diferentes dimensões do direito à alimentação
e repercutido intensamente na institucionalidade pública. No percurso em que propostas e diretrizes são refeitas,
perdas e ganhos são contabilizados. Perceber algumas importantes lições a partir da experiência brasileira pode, de
alguma forma, contribuir para pavimentar novos caminhos e desenhar novas perspectivas.
Luciene Burlandy e Rosana Magalhães1 criação de novas institucionalidades, como o des que garantam seu acesso aos bens pro-
Conselho de Segurança Alimentar e Nutricio- duzidos prioritariamente no âmbito do mer-
Nos últimos anos, a discussão sobre o di- nal (Consea, 1993 e 2003), o Fórum Brasileiro cado – entre eles, o alimento –, o direito à
reito à alimentação e o desenho de políticas de SAN (FBSAN, 1998) e os fóruns estaduais; alimentação, em linhas gerais, é delimitado
públicas na área de segurança alimentar e e a realização, em 1994 e 2004, de duas con- como um direito de consumidores e consu-
nutricional (SAN) vem sendo ampliada no ferências nacionais de SAN. midoras. No entanto, a afirmação desse di-
cenário internacional e, também, no Brasil. O enfoque restrito que emergiu após a reito, embora seja uma exigência inegável,
Como aponta o relatório brasileiro para a Primeira Guerra Mundial, voltado à garantia não esgota as tensões ligadas à consolidação
Cúpula Mundial de Alimentação realizada em estratégica da produção de alimentos e que de sistemas de segurança alimentar e nutrici-
Roma, em 1996, a política de SAN tem como originou o conceito de segurança, foi revisto, onal, pois, além do mercado, outros princípi-
alvo garantir a possibilidade de uma alimen- e ganhou destaque a discussão de novos as- os regem a distribuição dos alimentos e o
tação saudável, acessível, de qualidade e em pectos, como a eqüidade nutricional, a acesso a eles na direção da garantia da eqüi-
quantidade suficiente. Representa, portan- intersetorialidade e o desenvolvimento de cir- dade nutricional e da alimentação saudável.
to, uma condição para o desenvolvimento cuitos alimentares sustentáveis. No entanto, Na verdade, como mostrou Karl Polanyi, “a
integral, eqüitativo e sustentável. Assim, a ainda que nesse processo tenham sido forja- descoberta mais importante das pesquisas
questão alimentar e seu significado ampliado das ferramentas importantes para o alcance históricas e antropológicas é que a economia
passam a ocupar a agenda pública, reto- da alimentação de qualidade pela população do homem, como regra, está submersa em
mando, em grande parte, os esforços em- brasileira, dimensões distintas da noção de suas relações sociais” (2000, p. 65).
preendidos pelo médico e sociólogo Josué direito à alimentação – direito do consumidor, Diferentemente do credo liberal, os indiví-
de Castro na década de 1940, na direção de direito humano e direito de cidadania – muitas duos não se encontram atomizados, mas par-
tornar a alimentação prioridade política e vezes tendem a se sobrepor e se confundir. ticipam de circuitos de sociabilidade, os quais,
demanda coletiva no país. Nesse sentido, quais seriam as especifi- em última análise, dão sentido aos bens, servi-
No entanto, além de novas convicções e cidades e contribuições de cada enfoque? ços e ao conjunto de mercadorias consumidas.
perspectivas, a trajetória recente de constru- Quais repercussões concretas que o debate Ao mesmo tempo, como analisa Amartya Sen
ção de uma proposta de política de segurança em torno dessas concepções tem trazido (1982), existem diferentes chances e oportu-
alimentar e nutricional evidencia novos para o campo das políticas públicas? Quais nidades de conquista da segurança alimentar
impasses e dilemas. Vários acontecimentos as especificidades da experiência brasileira para além da via do mercado; elas estão liga-
revelam as diversas abordagens e alternativas nesse processo? Quais seriam as estratégi- das ao perfil de inserção social dos indivíduos.
políticas incorporadas ao debate: a realização as prioritárias para a construção de cone- Esse conjunto de prerrogativas ou entitlements,
da 1ª Conferência Nacional de Alimentação e xões virtuosas entre as várias faces do direito em última análise, aponta para a existência de
Nutrição em 1986; o surgimento de mobiliza- à alimentação (direito humano, de cidada- uma pluralidade de formas de acesso aos ali-
ções sociais como a Ação da Cidadania contra nia, do consumidor)? mentos a serem valorizadas e compreendidas
a Miséria e a Fome e pela Vida em 1993; a Sem pretender esgotar essas questões, em sua dimensão coletiva, e não só individual.
este texto busca empreender uma breve Em outra direção, o direito humano à
análise das possibilidades de interação das alimentação, integrado ao Pacto Internacio-
várias faces do direito à alimentação no pro- nal de Direitos Econômicos, Sociais e Cultu-
cesso de construção de uma política nacio- rais (Pidesc),2 desenha um novo cenário para
1 Luciene Burlandy é professora da Faculdade de nal de segurança alimentar e nutricional.
Nutrição da Universidade Federal Fluminense (UFF),
doutora em Saúde Pública e integrante da secretaria
executiva do Fórum Brasileiro de SAN (FBSAN). Rosana A alimentação como direito
Magalhães é pesquisadora associada do Departamen-
to de Ciências Sociais da Escola Nacional de Saúde
Na perspectiva do liberalismo político, em que
Pública Sergio Arouca (Ensp) da Fundação Oswaldo o cidadão e a cidadã são entendidos como 2 Ver a elaboração do relatório brasileiro relativo à
Cruz (Fiocruz). indivíduos racionais, com talentos e habilida- implementação do Pidesc (Valente, 2002).
Ao contrário do que reforça o ideário neoliberal, as políticas universais não são forçosamente regressivas, mas têm
forte impacto na redistribuição de renda. Apesar de o Brasil continuar desenhando programas de combate à pobreza
residuais e ineficazes pelos limites do seu escopo, o país deu um passo importante na direção da universalidade e da
incondicionalidade ao aprovar o princípio da renda básica para todos os cidadãos e cidadãs. Este artigo elege o modelo
que parece mais adequado para transitar dos programas de renda mínima para uma política de renda básica, partindo
das crianças, ou seja, considerando 56 milhões de pessoas como as primeiras beneficiárias da Renda Cidadã.
Lena Lavinas 1 neficiadas, e seu atendimento sempre foi jus- outras instituições internacionais, a grande
Com a colaboração de Marcelo Nicoll, tificado como um ato humanitário ou uma maioria dos países do continente americano
Cristiano Duarte e Roberto Loureiro Filho2 moeda política. se alinha a esse tipo de intervenção focaliza-
A pobreza só aparece como questão so- da e de caráter temporário, cujos benefícios
É notório que o sistema de proteção social cial mais recentemente e parece reforçar um são condicionados à comprovação de renda.
latino-americano jamais se constituiu verda- enfoque cada vez mais distante daquele – uni- Nas suas três vertentes5 – programas de
deiramente num welfare, embora tenha se versalista – que presidiu à reestruturação dos ação social (PAS), fundos de emergência so-
inspirado do modelo europeu nas suas ori- sistemas de proteção social europeus do pós- cial (FES) ou fundos de investimento social
gens, tomando os mesmos valores de soli- guerra. De fato, a dimensão compensatória (FIS) –, as redes mínimas de proteção social6
dariedade e coesão social (ver Draibe, da proteção social parece ganhar autonomia e não acusaram um desempenho satisfatório
1997).3 O Brasil não é exceção nessa maté- existência própria, desarticulada e desvinculada no combate à pobreza, embora, frisa Mesa-
ria. De cunho corporativista-meritocrático, do sistema de seguridade social como um Lago, os resultados tenham sido diversos entre
voltado aos segmentos formais da econo- todo, já que as políticas de combate à pobre- países. Elas seguem apresentando problemas
mia, nosso sistema de proteção social se za passam a caminhar em paralelo e sem me- de focalização e avaliação, não são sustentá-
caracteriza por ainda oferecer cobertura res- tas definidas, polarizadas por suas clientelas. veis e, sobretudo, não tiveram o impacto es-
trita, atendendo a uma parcela reduzida da Tal tendência se manifesta na crise da perado na reforma da seguridade social,
população, da qual as pessoas pobres sem- década de 1990, reconhece Mesa-Lago notadamente na sua dimensão assistencial.
pre foram, de facto, excluídas em razão do (2000), quando as políticas assistenciais tra- O Brasil segue navegando entre águas tur-
seus vínculos instáveis e precários com o dicionais, já limitadas a poucos países da re- vas em matéria de política social e combate à
mercado de trabalho. Não sendo um grupo gião, dispondo de recursos ínfimos, 4 são pobreza, mas surpreendentemente afirma sua
de pressão, sem posição socioocupacional ainda mais penalizadas e passam a se res- excepcionalidade ao dar corpo de lei ao prin-
definida, as camadas pobres da população tringir à implementação de uma rede mínima cípio da renda básica universal para todos os
jamais foram sistemática e regularmente be- de proteção social (RMPS), cujo objetivo não seus cidadãos e cidadãs, independentemente
é vencer a pobreza, mas assegurar um pata- da origem social, nível de renda, sexo, idade,
mar mínimo de reprodução social que ate- crença ou qualquer outro critério distintivo
nue os efeitos devastadores das políticas de de um grupo social. Afora o território estadu-
ajuste. Seguindo a filosofia dos programas nidense do Alasca, que garante de jure e de
de safety netsNR implementados em todo o facto uma renda de igual valor a todas as
1 Doutora em Economia pela Universidade de Paris III e mundo em desenvolvimento pelo Banco pessoas que lá residem, financiada com os
professora do Instituto de Economia (IE) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Mundial (ver Lavinas, 2003), com apoio de royalties do petróleo, nenhum outro país no
2 Respectivamente, economista e mestrando da Escola
mundo, além do Brasil – nem aqueles onde a
Nacional de Ciências Estatísticas; economista formado
pela UFRJ; e aluno da graduação do IE da UFRJ.
3 Sônia Draibe reconhece, no entanto, que tal matriz
sempre funcionou de modo imperfeito e deformado,
quase que permanentemente em crise, o que exigia 4 Em termos de percentual do Produto Interno Bruto
sua reestruturação. “Os sistemas de proteção social (PIB), sempre inferior a 1%. 5 Uma breve caracterização de cada programa
embrionários e distorcidos revelaram no passado NR Safety nets são transferências de renda compensatórias, encontra-se em Mesa-Lago, 2000, p. 36.
reduzida eficácia na redução da pobreza e na reversão cuja finalidade é garantir uma rede de proteção vital 6 Implementadas nos seguintes países: Argentina,
das fortes diferenças segmentadoras e constrangedo- mínima, no plano da subsistência. São asseguradas Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador,
ras da cidadania.” mediante comprovação de insuficiência de renda aguda. México, Peru e Uruguai.
transferência direta de renda em direção à sa Família), implicaria uma despesa de R$ 25 de 3,1%, antes da imputação, para 6,3%.
política de renda cidadã, em consonância bilhões anuais, isto é, cinco vezes mais do Sem dúvida, são excelentes resultados, ja-
com a nova lei. Defende que o programa que o orçamento previsto com o Bolsa Famí- mais obtidos por nenhum programa social
Bolsa Família seja imediatamente estendido lia em 2004 (R$ 5 bilhões). experimentado no Brasil.
ao seu público-alvo potencial (11,2 milhões Para estimar o impacto desse desenho Infelizmente, estamos falando de um de-
de famílias), que deve ser atendido apenas do renda cidadã na redução do número de sempenho ideal, possível apenas caso a
em 2006, mediante um benefício individual pobres e no grau de desigualdade – vetores focalização fosse perfeita, sem vazamentos,
no valor de R$ 40,00 a cada membro de da maior relevância na eleição de qualquer fraudes ou níveis elevados de ineficiência ho-
cada uma das famílias selecionadas. Assim, programa ou política que pretenda comba- rizontal e vertical, amplamente reconhecidos
seria substituído o benefício familiar pelo be- ter de forma eficaz a pobreza –, simulamos, pela própria área governamental (ver Ministé-
nefício, em tese, universal, concedido, entre- em relação ao ano de 2001, uma transfe- rio da Fazenda, 2003). Nada menos provável,
tanto, apenas a quem pertence a famílias que rência de R$ 30,00 mensais23 para os pri- já que a operacionalização e a execução de
preenchem critérios e requisitos estabeleci- meiros 11,2 milhões de famílias situadas na
dos pelo programa, a saber: renda familiar cauda inferior da distribuição. Tomamos
per capita inferior a R$ 90,00 mensais; como linha de pobreza a renda familiar per
cadastramento detalhado mediante registro capita igual ou inferior a meio salário míni-
da declaração dos bens e equipamentos ele- mo. Os resultados revelam que o índice de 23 Em abril de 2004, quando iniciamos nossas simulações,
o valor do salário mínimo era de R$ 240,00. A renda
trodomésticos, que permita inferir se a pos- Gini cairia de 0,587 para 0,546, com efeitos mensal de R$ 40,00, proposta pelo senador Suplicy,
se deles é compatível com a renda declarada; diretos e benéficos até o quarto décimo da equivalia então a 16,67% do mínimo. Como utlizamos o
ano-base de 2001 para nossas simulações, aplicamos
obrigatoriedade das contrapartidas exigidas distribuição (Tabela 2). O número de pobres
essa mesma proporcionalidade ao salário mínimo
para permanência no programa. Tal propos- seria reduzido em 18,5 milhões de pessoas, vigente naquele ano (R$ 180,00), o que teria resultado
ta, de caráter altamente focalizado (porque é e a proporção da renda dos 20% mais po- numa renda mensal à época de R$ 30,00. Por isso, as
simulações referentes à proposta Suplicy foram feitas
restrito ao público habilitado a integrar o Bol- bres sobre a dos 20% mais ricos passaria com um benefício de R$ 30,00 por indivíduo.
Tabela 4 – Impactos da imputação de renda por décimos da distribuição de renda familiar per capita média – Brasil 2001
A paz minada
A assinatura, em abril de 2002, dos Acordos de Luena, entre o governo do Movimento
Popular de Libertação de Angola (MPLA) e o movimento insurgente da União Nacional
para Independência Total de Angola (Unita), abriu caminho para um tenso período pós-
guerra. Os obstáculos à segurança humana são inumeráveis. Depois da guerra, caracterizada
pela destruição e pela pobreza, com milhares de pessoas mortas ou mutiladas por minas,
a resposta do governo tem sido repressão e terror.
Sindicato Nacional dos Professores (Sinprof) sejo de alcançar a reconciliação nacional e • extensão da administração estatal para
Miguel Filho o governo tenha anunciado planos para atingir todas as zonas do país;
superar a crise. • extensão dos serviços sanitários e edu-
A guerra em Angola continuou sem inter- A insegurança, fruto do desemprego e da cacionais a todas as comunidades;
rupções de 1975 até 2002, quando final- falta de alimentos básicos, continua presente • extensão dos serviços financeiros a
mente os acordos de paz foram assinados. em todo o país, mesmo agora, após o fim da todo o país.
guerra. A paz foi conseqüência da rendição de O principal obstáculo para implementar
Cerca de um milhão de mortos, 4 esse programa é a evidente falta de vontade
uma das facções em guerra, sendo marcada
milhões de pessoas deslocadas dentro política de alguns membros do governo, pois
pelo processo que a tornou possível – com
do país, mais de 500 mil refugiadas o Exército e a Polícia continuam recebendo a
suas insuficiências e improvisações.
(numa população de 12 milhões), maior parte das alocações orçamentárias.
Desde o fim da guerra, houve um cresci-
milhões de minas antipessoais enterradas Desde meados de 2003, as necessida-
mento alarmante da criminalidade. O retorno
e a destruição da infra-estrutura física des de sobrevivência geraram aumentos na
do país são o balanço de 27 anos de de centenas de milhares de ex-insurgentes
triplicou o desemprego e o subemprego, que demanda de empregos e na criminalidade.
enfrentamento armado entre o MPLA, no O governo respondeu com repressão. Ma-
governo desde 1979, e a Unita. [...] o atualmente afetam a metade da população. O
número de crianças que vivem nas ruas está nifestações de protestos organizadas pelos
Memorando de Entendimento (conhecido partidos políticos estão proibidas. Para con-
como MOU ou também Acordos de aumentando, assim como o número de pes-
soas mortas e mutiladas por minas deixadas fiscar as armas em poder da população, a
Luena), assinado em 4 de abril de 2002 polícia se comporta de forma terrorista e
pelo governo e a Unita, com base nos pelos exércitos de Cuba, da ex-União Soviéti-
ca e da África do Sul. usa apetrechos de guerra. Embora a Cons-
Acordos de Lusaka de 1994, abriu uma tituição não contemple a pena de morte, as
porta à esperança e uma oportunidade pessoas suspeitas de delinqüência são exe-
histórica de reconstruir um país Pobreza e repressão
cutadas em público. Foi criada uma brigada
totalmente devastado.1 Logo depois da assinatura dos acordos de antiterrorista especial, uma unidade policial
Os Acordos de Luena deveriam ter lan- paz, o gabinete ministerial anunciou as prio- para intervenções rápidas, assim como um
çado as bases para reconstruir o país, que, ridades do governo, enfatizando a reabertu- esquadrão de helicópteros e outro de cães.
após 30 anos de guerra, precisa de mu- ra das estradas principais para restabelecer Os seguranças presidenciais também estão
danças estruturais urgentes. No entanto, as comunicações e o transporte de pessoas envolvidos com a propagação do terror.
é evidente que, na prática, nada foi con- e bens. O orçamento do Programa Econô- Enquanto isso, o Poder Judiciário ainda
cretizado, embora as autoridades militares mico e Social de 2003–2004 determinava as não é independente do Executivo e não pos-
dos dois lados tenham declarado seu de- seguintes prioridades: sui os meios para manter a legalidade cons-
• abrigos de emergência, ajuda alimentar e titucional. Uma grave ameaça à segurança
serviços sanitários para as pessoas deslo- humana está no fato de que, na prática, não
cadas pela guerra e para suas famílias; se respeita o princípio da igualdade de todos
• ajuda para as crianças abandonadas; os cidadãos e cidadãs perante a lei. Um exem-
1 Intermón-Oxfam. Angola: construyendo la paz – Retos y • ajuda para pessoas portadoras de defi- plo são os diplomatas do MPLA julgados
perspectivas tras un año de la firma de los Acuerdos. ciência causada pela guerra; por corrupção, que têm a certeza de jamais
2003. Disponível em: <www.intermonoxfam.org/cms/HTML/
• reinserção na sociedade das pessoas pisarem em uma cadeia, ao contrário da-
espanol/86/Angola_construyendolapaz_mayo03.pdf>.
Acesso em: 8 out. 2004. deslocadas e de ex-combatentes; queles que estão na oposição.
Mortalidade infantil (para cada 1.000 crianças nascidas vivas) 2001 154
Mortalidade de menores de 5 anos (para cada 1.000 crianças nascidas vivas) 2001 260
Mortalidade materna (para cada 100.000 crianças nascidas vivas) 1995 1.300
Fonte: Pnud ( Relatório de Desenvolvimento Humano – 2003 ) e Unicef (Estado Mundial da Infância – 2000 ).
4 Ibidem.
5 A Primeira Conferência de Revisão (“Cúpula de Nairóbi
sobre um Mundo sem Minas 2004”) será realizada de
29 de novembro a 3 de dezembro de 2004 em Nairóbi,
2 Informação do Guía del Mundo 2005-2006, disponível 3 Ver <www.ibacom.es/Unicef/emergencia>. Acesso em: Quênia. Informações podem ser obtidas em:
na Internet. 8 out. 2004. <www.icbl.org/reviewconference/>.
Centro de Estudos Legais e Sociais (Cels) do, a mudança da cúpula das Forças Armadas, reverter essa ação, a atitude equivocada do go-
– Programa de Direitos Econômicos, que procurava fazer um pacto de impunidade, a verno criou um precedente perigoso ao dar a
Sociais e Culturais abertura dos arquivos públicos de segurança e idéia de que a criminalização dos protestos so-
Jimena Garrote e Luis Ernesto Campos inteligência e a anulação pelo Parlamento das ciais continua sendo uma opção política viável.6
leis de Obediência Devida e do Ponto Final.3 A relação existente entre as discussões
O governo de transição dirigido por Eduar- No entanto, os principais indicadores sobre a reformulação institucional, a evolu-
do Duhalde chegou ao fim em 25 de maio que caracterizavam a crise social e econô- ção dos indicadores sociais e econômicos e a
de 2003, quando Néstor Kirchner assumiu mica se mantêm com valores incompatíveis resposta do governo aos protestos sociais
a presidência. Em termos institucionais, essa com o desenvolvimento pleno de uma ver- permite a análise da situação da Argentina
mudança significou um ponto de inflexão. dadeira democracia. quase três anos depois da crise política e ins-
Um passo importante para recuperar O novo governo teve posições ambíguas titucional de dezembro de 2001.
gradualmente a legitimidade do sistema po- em relação à criminalização dos protestos soci-
lítico e a cultura democrática foi o apoio da ais. Embora tenha existido um processo de Indicadores continuam alarmantes
sociedade ao processo de renovação da Cor- aproximação das organizações sociais mais afe- Embora os indicadores macroeconômicos te-
te Suprema de Justiça e a criação de um novo tadas por essa prática, o governo foi incapaz nham começado a dar sinais de recuperação
procedimento participativo para a seleção de de criar uma solução jurídica para os casos de desde o primeiro trimestre de 2003, as conse-
juízes e juízas.1 Assim, foram concretizados pessoas que estão sendo processadas por par- qüências da aplicação das políticas neoliberais
importantes avanços na reconstrução da le- ticiparem de protestos sociais.4 Em outubro durante a década de 1990 são ainda visíveis.
gitimidade desse tribunal superior e do criti- de 2003, o governo reagiu duramente a uma De acordo com informações oficiais, em
cado sistema de justiça em geral, expoentes manifestação das organizações piqueteiras5 e maio de 2003, os 10% mais pobres da Argen-
claros da crise institucional argentina.2 iniciou uma ação penal contra elas. Embora tina se apropriavam de 0,9% da renda, enquanto
Outras medidas tomadas pelo novo gover- tenha posteriormente tomado medidas para os 10% mais ricos ficavam com 44,6%.7 Quase
no, que representaram uma modificação subs- um ano depois da instauração do novo gover-
tancial no processo de fortalecimento das no, não se nota a formulação de uma política
instituições democráticas, foram a reabertura das específica para modificar essa tendência.
ações judiciais por crimes de terrorismo de Esta- 3 Entre as medidas adotadas estão a anulação do
decreto que proibia a extradição de militares acusados
de crimes de lesa-humanidade e a aprovação, com
status constitucional, da Convenção das Nações 6 O governo atuou de modo similar quando propôs a
Unidas sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de criação de um grupo especial da polícia (essa
Guerra e dos Crimes de Lesa-humanidade. proposta foi depois abandonada), que não portaria
1 O novo procedimento para indicação de membros da 4 Segundo estimativas da Central de Trabalhadores armas de fogo e negociaria com dirigentes das
Corte Suprema de Justiça levou em conta as propostas Argentinos, mais de 4 mil pessoas enfrentam mobilizações sociais. Essa proposta dava à polícia um
que um grupo de organizações da sociedade civil processos criminais por terem participado de papel central na resolução de conflitos sociais,
havia formulado durante o ano de 2002 e que estão no mobilizações. reduzindo as demandas originais dos manifestantes à
documento “Uma corte para a democracia”. Os textos 5 Uma das conseqüências mais visíveis da crise social luta pelo espaço público e ignorando que o dever
completos podem ser lidos em <www.cels.org.ar>. da década de 1990 foi o surgimento de numerosas básico do Estado é proteger – e não desativar –
2 Centro de Estudos Legais e Sociais (Cels). La organizações de base que utilizavam como principal manifestantes.
respuesta del Estado a la crisis social. In: Derechos instrumento de protesto o bloqueio de estradas 7 Instituto Nacional de Estatística e Censo (Indec).
humanos en Argentina: Informe 2002–2003. Informe nacionais, também chamados de piquetes. Daí provém Encuesta Permanente de Hogares (EPH), Ingresos para
anual. Buenos Aires: Siglo XXI, 2003. a denominação de organizações piqueteiras. el total de aglomerados urbanos. Maio de 2003.
Centro Canadense para Alternativas O Canadá liderou o mundo industriali- go. Desde a década de 1980, os salários
de Políticas Públicas zado na redução da escala de financiamen- estão, na sua maioria, estagnados ou em
Armine Yalnizyan to dos serviços públicos. Somente no nível declínio. Cortes profundos nos gastos go-
federal, numa tentativa explícita de ter um vernamentais na década de 1990 tiveram
Desde 1993, a economia canadense cresceu Estado pequeno permanente, os gastos como conseqüência uma redução marcante
66% em termos nominais e 41% com o ajus- com os programas encolheram de 16,8% nos benefícios públicos. Moradia, educação
te da inflação.1 Isso significa US$ 361 bilhões do PIB para 11,5% entre 1992–1993 e e saúde tornaram-se menos acessíveis, tan-
por ano a mais do que na década anterior, e 2002–2003, exemplificando o compromis- to em termos de custos como de quantida-
esse valor continua crescendo. A capacidade so do governo canadense com a “filosofia de disponível, para um número crescente
de financiar iniciativas de desenvolvimento de que menos é mais”. de canadenses. Os cortes afetaram a quali-
social é hoje enormemente superior, porém A segurança humana está baseada dade da água e levaram à sua contamina-
isso não é uma prioridade política. numa cultura de desenvolvimento huma- ção, provocando doenças em milhares de
Em termos fiscais, o Canadá parece mui- no, enunciada pela primeira vez na Declara- pessoas e, pelo menos, sete mortes.2
tíssimo seguro. No entanto, o próprio enfoque ção Universal dos Direitos Humanos
político que levou aos superávits fiscais tam- (1948). Essas metas foram reforçadas em Cortes de gastos e receitas crescentes
bém determinou a escassez de recursos pú- 1976 com o Pacto Internacional dos Direi- Do início da década de 1990 até um período
blicos para proteger a segurança humana tos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc) bem avançado da era dos superávits e do
básica. Essa escassez foi planejada, sendo o e reafirmadas repetidamente por centenas “miniorçamento” de outubro de 2000, a ên-
produto de um compromisso político com a de nações em todo o mundo: os dez com- fase foi livrar-se do oneroso Estado de bem-
agenda de cortes de impostos e de uma redu- promissos da Declaração de Copenhague estar social, tornando-o um Estado mínimo.
ção agressiva da dívida. A política canadense sobre o Desenvolvimento Social (1995), as No orçamento de 1995, houve os maio-
na era dos superávits – 1998 a 2003 – não se 12 áreas críticas de preocupação sobre a res cortes de programas da história do Cana-
desviou significativamente da rota traçada du- igualdade entre os gêneros enunciadas na dá. Os maiores valores vieram de cortes nos
rante a era dos déficits. Os investimentos em Plataforma de Ação de Pequim (1995) e, benefícios de apoio à renda (por meio da re-
bens e serviços públicos que melhoram a se- mais recentemente, as oito Metas de De- dução dos benefícios do seguro-desemprego
gurança humana têm sido limitados, em favor senvolvimento do Milênio (2000). pagos a pessoas desempregadas), gastos com
de onerosos cortes de impostos e medidas de Todos esses documentos têm em comum defesa e com desenvolvimento de recursos
redução da dívida. O compromisso com um o reconhecimento de que, para conviverem humanos. Os fundos dos Departamentos de
“Estado mínimo” tem coincidido com econo- harmoniosamente e se desenvolverem Transporte, Recursos Naturais e Desenvolvi-
mias maiores, mas também com uma cres- como indivíduos, as pessoas necessitam mento Regional foram cortados pela metade.
cente insegurança econômica. de segurança, habitação adequada, ali- Repasses às províncias para atendimento às
mentos, renda, acesso à água potável, aten-
dimento à saúde e educação. Isso é tão
verdadeiro no Canadá quanto nas nações
em desenvolvimento.
2 YALNIZYAN, Armine. The road from Monterrey: a
1 Estatísticas do Canadá disponíveis em National Income Muito antes dos eventos de 11 de se- caution from Canada. Social Watch 2002: The social
and Expenditure Accounts, Quarterly Estimates, Second tembro de 2001, o povo canadense viu sua impact of globalization in the world. Montevidéu: Social
Quarter 2003. (Catálogo n. 13-001-PPB). Watch, 2002, p. 96-99.
própria segurança humana posta em peri-
Coalizão dos Cidadãos pela Justiça Estados Unidos, Japão, Rússia e China, Ao mesmo tempo, a sociedade civil sul-
Econômica, Departamento de Pesquisa de para discutir formas possíveis de melho- coreana vem trabalhando duro para incluir
Políticas Públicas rar as relações Norte–Sul, porém essas os seguintes objetivos em sua agenda: esta-
Daehoon Kim negociações não tiveram nenhum efeito belecer uma coexistência pacífica e reduzir
positivo visível. os armamentos como meio de resolver as
A Coréia está dividida em Coréia do Sul e ameaças de guerra na península; exortar a
Coréia do Norte desde sua independência Sociedade civil em ação comunidade internacional a resolver o pro-
do Japão em 1945. Durante a Guerra da Por várias décadas, a sociedade civil sul- blema nuclear do Norte; monitorar as políti-
Coréia (1950–1953), as duas Coréias tive- coreana vem denunciando o uso da con- cas do governo de Seul e dos países vizinhos
ram um grande número de mortes, e todo frontação militar entre as duas Coréias em relação à península; insistir para que as
o país foi devastado. Nos últimos 50 anos, como uma tentativa de parte dos gover- duas Coréias implementem o plano de ação
a Coréia do Sul e a Coréia do Norte vêm nos de se manterem indefinidamente no assinado pelos dois países na reunião de
perpetuando sua histórica rivalidade militar poder. Ao estimularem a cooperação e o cúpula; e promover intercâmbios entre os
e política, mantendo exércitos muito gran- entendimento mútuo, as ONGs da Coréia dois países como meio de fazer avançar o
des para se defenderem uma da outra. A do Sul estão na linha de frente do movi- entendimento mútuo. As ONGs sul-coreanas
divisão da península e a história de con- mento pela paz e reunificação das duas estiveram envolvidas ativamente em ativida-
frontação militar estão inibindo o desenvol- Coréias. Antes da década de 1990, esses des humanitárias para ajudar o povo norte-
vimento político, econômico e social dos esforços das ONGs estavam sujeitos a gran- coreano, especialmente as crianças, que
dois países e gerando um clima de medo des pressões do governo de Seul, capital sofrem dificuldades econômicas. Finalmen-
para todo o povo coreano. da Coréia do Sul. Porém, à proporção que te, tem havido tentativas de alcançar um con-
A ameaça de guerra persiste, embora a Coréia do Sul avançava no sentido de senso no seio da sociedade civil para
nos últimos anos os governos das duas uma sociedade mais democrática, as prin- apresentar sugestões de políticas viáveis ao
Coréias tenham feito tentativas de reduzir a cipais tarefas das ONGs – redução das ten- governo de Seul com respeito a Pyongyang,
tensão e encontrar uma solução pacífica sões e construção de uma situação pacífica capital da Coréia do Norte.
para suas divergências, o que levou à reu- e estável – tornaram-se problemas impor- A sociedade civil sul-coreana tem atual-
nião de cúpula sem precedentes de 15 de tantes para o governo solucionar. mente uma posição muito crítica sobre a de-
junho de 2000 e à Declaração Conjunta do Atualmente, a opinião pública sul- cisão governamental de enviar 3 mil soldados
Norte e do Sul. coreana está dividida em relação às políti- para apoiar a guerra liderada pelos Estados
Mais recentemente, o programa de de- cas de Seul sobre a Coréia do Norte. Uma Unidos no Iraque, e grandes manifestações
senvolvimento nuclear da Coréia do Norte corrente de opinião está a favor da idéia de oposição à guerra foram realizadas em
e a suspeita de que possua armas nuclea- de reduzir a tensão e resolver o conflito toda a Coréia do Sul. Acreditamos firmemente
res levaram os Estados Unidos, em sua entre os dois países; a outra favorece a que não existe nenhuma razão para a guerra
iniciativa mais importante sobre temas re- segurança militar e as alianças militares no Iraque, pois poderia aumentar as amea-
lativos à península, a imporem restrições com os Estados Unidos. Essa divisão tem ças de guerra na península coreana.
políticas, econômicas e militares à Coréia também influenciado, direta e indiretamen-
do Norte. Essa situação de instabilidade te, a política de reconciliação e coopera- Dívidas de cartão de crédito
tem criado incerteza na península. Em agos- ção que existia antes da inclusão da Coréia A crise financeira de 1997–1999 revelou an-
to de 2003, foi realizada a chamada Nego- do Norte no “eixo do mal” definido pela tigas debilidades do modelo de desenvolvi-
ciação das Seis Partes, entre as Coréias, Casa Branca. mento do país, incluindo endividamento
Mortalidade de menores de 5 anos (para cada 1.000 crianças nascidas vivas) 2001 5
Comitê Nacional pela Cooperação de quase 3% – comparada com a média Além de sofrerem os efeitos da recessão,
Internacional e o Desenvolvimento européia de 2%. No início do século 21, a os domicílios pobres são afetados pela dete-
Sustentável (NCDO) Holanda está mais rica do que nunca. rioração dos serviços sociais no seguro de
Novib/Oxfam-Holanda1 Entretanto, esse boom econômico não saúde pública, subsídios habitacionais e be-
foi utilizado para erradicar a pobreza em to- nefícios fiscais. A situação para os grupos
A Holanda se orgulha de sua longa tradição dos os lugares. Mesmo no interior da de baixa renda provavelmente piorará em
de promover a segurança humana, tanto na Holanda, continua a existir pobreza relativa. 2004, uma vez que o governo utiliza a queda
esfera nacional como na internacional. O país Cada vez mais, a globalização significa com- do crescimento econômico para legitimar
goza de boa reputação, com um dos melho- petição não somente entre empresas, como mais cortes no Estado de bem-estar social.
res sistemas de seguridade social do mun- também entre países. Eles competem por A globalização também significou o au-
do, tem uma atitude hospitaleira e tolerante investimentos, reduzindo os custos de mão- mento do fluxo de imigrantes para a Holanda.
em relação a imigrantes e oferece uma con- de-obra e flexibilizando os regimes fiscais. A população, especialmente nas grandes ci-
tribuição ativa para a paz e o desenvolvimen- Em conseqüência, os níveis do salário míni- dades, está se tornando cada vez mais
to internacionais. Infelizmente, a sociedade e mo e os sistemas fiscal e de seguridade so- diversificada. As pessoas estrangeiras não-
a política holandesa, sob pressão da desa- cial estão sob pressão contínua. ocidentais já constituem 10% da população
celeração econômica, estão se afastando des- holandesa total, um quarto da população
sa tradição e adotando atitudes mais duras em Os sofrimentos da economia aberta urbana e um terço de residentes legais das
relação às pessoas mais necessitadas. Inter- Agora que o boom econômico parece ter cidades de Amsterdã e Roterdã.3 Essa situa-
namente, essa mudança se reflete na grada- chegado ao fim, a economia aberta da ção causou tensões entre as comunidades.
tiva redução da seguridade social. No plano Holanda está sofrendo mais do que outros Em 2002, a integração de imigrantes não-
externo, os interesses nacionais estão pre- países europeus. Em 2003, o crescimento ocidentais tornou-se repentinamente o tema
valecendo sobre as prioridades da paz e do econômico caiu abaixo de zero pela primeira político mais importante das campanhas elei-
desenvolvimento internacionais. vez em 20 anos. O “Monitor da Pobreza” do torais. Atualmente, grande parte do debate
Como uma das economias mais abertas governo informou que o percentual de do- político holandês está centrado na aceitação
do mundo, a Holanda foi um dos países da micílios de baixa renda no país, que havia de escolas com predominância de estudan-
Europa que mais se beneficiaram com o cres- caído de 15% em meados da década de 1990 tes de etnia negra, escolas islâmicas, alunas
cimento econômico mundial na década de para 10% em 2001, aumentará outra vez que cobrem a cabeça e mesmo a aceitação
1990. A economia cresceu na média anual para 11% em 2004. O percentual de domicí- do islã como tal. Em geral, o clima político em
lios de baixa renda entre imigrantes não- relação a imigrantes, asilo político e integração
ocidentais é três vezes maior do que a média, endureceu consideravelmente.
e um terço dessas pessoas está abaixo da
linha de pobreza nacional.2
1 Este trabalho foi editado por Bertram Zagema
(consultor) e coordenado por Alide Roerink (NCDO), em
colaboração estreita com Lindy van Vliet (Novib/Oxfam
Netherlands). Deram contribuições especiais Gerard 3 Além disso, calcula-se que entre 46 mil e 116 mil
Oude Engberink (pesquisador e assessor sobre pessoas estrangeiras (0,3% a 0,7%) residam
assuntos sociais da cidade de Roterdã), Arjan El Fassed 2 Escritório de Planejamento Social e Cultural. ilegalmente no país. Escritório Central de Estatísticas.
(Novib/Oxfam Netherlands) e Karlijn Rensink (NCDO). Armoedemonitor 2003, dez. 2003. Statistische Dossiers, n. 7, 2003.
O abandono do Estado
Um paradoxo está embutido no modelo de desenvolvimento da Índia: por um lado, há uma
mobilização crescente dos grupos da sociedade civil e tentativas de empoderar as pessoas
marginalizadas em vários níveis, com influências aparentemente positivas nos pronunciamentos
sobre políticas públicas; por outro lado, existe a retirada do Estado de suas atribuições e papéis
essenciais, especialmente de sua função constitucional de assegurar a eqüidade social. Os resultados
são assustadores, em especial no que diz respeito à segurança humana. As privações e a repressão
crescente dos grupos marginalizados têm resultado no enfrentamento entre comunidades.
Coalizão Nacional do Social Watch piorado relativamente em relação a algu- declinou em alocação per capita real de so-
Bobby Kunhu1 mas dessas necessidades básicas, duran- mente 15,40 rupias indianas (US$ 0,33)
te o que se descreve comumente como o para 14,68 rupias (US$ 0,31), entre 2002
período das reformas econômicas, ou e 2003. A alocação planejada para educa-
A liberdade é o elo entre o desenvolvimento seja, de julho de 1991 em diante. ção foi reduzida de 0,30 rupias (US$ 0,006)
e a democracia. A pobreza é a negação do Embora as pessoas que defendem o per capita, em 2002–2003, para 0,18 rupias
direito de viver com dignidade... O livre comércio celebrem uma taxa de cresci- (US$ 0,003), em 2003–2004. Além disso,
desenvolvimento com eqüidade, justiça, mento de 6% em 2002,3 há consciência da foram eliminados planos de educação im-
distribuição e participação é um pré- crescente desigualdade e marginalização de portantes, como o Programa Nacional de
requisito para a sobrevivência e o grupos que já eram excluídos.4 Educação das Mulheres.5
crescimento da democracia indiana.2
O plano do governo central Sarva
Setores substanciais da população india- Orçamento e direitos socioeconômicos Shiksha Abhiyan (educação para todos, em
na sofrem sérias privações em relação a Quando se observa com cuidado através do híndi) resultou num aumento de alocação
um conjunto bem conhecido de necessi- labirinto do jargão e da retórica oficial, fica-se orçamentária de 15,12 bilhões de rupias
dades básicas, tais como alimentação ade- em dúvida em relação ao compromisso do indianas (US$ 328 milhões), porém sem
quada, habitação, vestimenta, atendimento governo de redução da pobreza e de imple- atingir a meta declarada de que todas as
à saúde, educação primária, água potável e mentação dos direitos socioeconômicos. crianças com menos de 14 anos estives-
saneamento. De fato, as maiores deficiên- Por exemplo, desde que a educação sem na escola até dezembro de 2003. O
cias das transformações econômicas lide- tornou-se um direito fundamental na Cons- silêncio sobre esse fracasso talvez seja de-
radas pelo Estado depois da independência tituição indiana, as alocações orçamentárias masiado ensurdecedor até mesmo para o
não são a falta de crescimento econômico para implementação desse direito ficaram governo. Ficou evidente a crescente depen-
ou de industrialização – ao contrário, nes- progressivamente menores, a despeito das dência das forças do mercado para atender
ses aspectos o desempenho indiano tem promessas regulares do governo de fazer ao déficit educacional.6
sido, no mínimo, respeitável –, e sim as justamente o contrário. No orçamento de
políticas e os processos que facilitam o 2003, houve somente um aumento margi-
atendimento a necessidades e direitos bá- nal na alocação orçamentária real planeja-
sicos. Além disso, existe certa preocupa- da para educação. A conta de receitas, sob
ção de que as perspectivas possam ter alocações não planejadas para educação,
5 CBA. The marginalised matter. 2003. Ver também
SAMUEL e JAGADANANDA, op. cit.
6 Observam Samuel e Jagadananda: “Embora a taxa de
alfabetização tenha subido de 18% em 1951 para 65%
em 2001, a terça parte dos analfabetos do mundo está
1 Bobby Kunhu é advogado de direitos humanos e na Índia. De aproximadamente 200 milhões de
coordenador da Coalizão Nacional do Social Watch da crianças na faixa etária de 6 a 14 anos, somente 120
Índia. 3 Informações obtidas em: <www.adb.org/Documents/ milhões estão matriculadas. Alocação orçamentária
2 SAMUEL, John; JAGADANANDA (Eds.). Making sense of News/2002/nr2002048.asp>. Acesso em: 5 nov. 2004 insuficiente, péssima infra-estrutura escolar nas zonas
democracy: an introduction to Social Watch India. 4 DATT, Gaurav; RAVALLION, Martin. Is India’s economic rurais, elevadas taxas de evasão escolar,
Citizens Report on Governance and Development. Nova growth leaving the poor behind?. World Bank, 2002. preconceitos em função das castas e do gênero etc.
Délhi: Coalizão Nacional do Social Watch , 2003. (Working Paper Series 2846). são as características de nosso sistema educacional”.
Associação Iraquiana Al-Amal1 iraquiano parece já ter terminado porque, Nações Unidas (ONU) e o Comitê Interna-
Shiar Yousef entre outras razões, as aspirações locais cional da Cruz Vermelha, mudaram suas
não foram realizadas e não houve melhoria sedes operacionais para Amã, capital da
Num país tão complexo quanto o Iraque, é na vida das pessoas. Jordânia, e suspenderam alguns projetos
difícil fornecer uma descrição precisa da Acima de tudo, a manutenção de um no Iraque. Também retiraram do país
situação de segurança ou identificar os alto nível de insegurança tem um impacto funcionários(as) estrangeiros(as) e os(as)
obstáculos à segurança humana, quando negativo sobre a vida de iraquianos e substituíram por pessoal local, que, na
existe uma grave falta de informações e iraquianas comuns, que ficam sem aces- maior parte, não é profissional qualifica-
dados estatísticos. A guerra terminou “ofi- so a serviços básicos, especialmente água do. Muitas embaixadas (Espanha, Itália,
cialmente” em 1º de maio de 2003. Porém, potável e atendimento à saúde, e cuja se- Austrália etc.) também reduziram seu pes-
desde então, os Estados Unidos e o Reino gurança pessoal está em perigo quando soal internacional, e algumas chegaram
Unido foram forçados a admitir, em mais se aventuram fora de casa para as tarefas mesmo a fechar seus escritórios em Bag-
de uma ocasião, que a situação de segu- mais simples, como fazer compras, ir ao dá (por exemplo, Holanda e Bulgária), de-
rança no Iraque continuava “séria”. Por trabalho ou levar as crianças à escola. Um pois que receberam telefonemas ou cartas
exemplo, uma avaliação da CIA (agência efeito especialmente negativo do medo de ameaçadores e até mesmo ameaças físi-
de inteligência dos Estados Unidos) sobre seqüestro ou assalto tem sido a restrição cas diretas.
o Iraque alertava que a situação de segu- à liberdade de movimentos das mulheres Outra dimensão da insegurança são
rança pioraria em todo o país. e meninas, o que reduz sua possibilidade as tensões étnicas – entre as populações
de freqüentar a escola e comparecer ao árabe e a turcomana, árabe e curda e con-
Naturalmente, o termo segurança se
trabalho. Além disso, um número con- flitos entre tribos – que estão crescendo
referia principalmente à segurança das for-
siderável de famílias ainda não enviou no norte do país, além das tensões que
ças de ocupação e de “ocidentais” em ge-
suas crianças de volta às aulas por cau- emergem entre as comunidades xiita e
ral. O ministro da Defesa britânico, Geoff
sa de ameaças similares nas universi- curda. Na área de Kirkuk, por exemplo, o
Hoon, enfatizava que sua prioridade era a
dades e escolas. Conselho do Distrito de Dibis decidiu de-
“segurança das forças britânicas” e mui-
O atual estado de insegurança tam- molir 70 casas de famílias árabes, que
tas pessoas do comando das Forças Ar-
bém implica um alto risco para as pesso- tinham sido assentadas nessa área pelo
madas dos Estados Unidos faziam
as envolvidas no trabalho humanitário, antigo regime iraquiano, no programa
comentários similares. No entanto, desde
numa época em que ajuda humanitária é governamental que tinha como objetivo
o término “oficial” da guerra, a segurança
desesperadamente necessária em quase “arabizar” essa zona rica em petróleo.
de ocidentais tem significado insegurança
todos os setores. As ameaças incluem a Ações como essa, embora pequenas e
para a população local, e a lua-de-mel en-
possibilidade de danos físicos, ou mes- que não recebem muita atenção, podem
tre as forças de ocupação e o povo
mo morte, causados por explosões de vir a ter resultados desastrosos e impac-
bombas, fogo cruzado, banditismo, se- to muito grande no equilíbrio das forças
qüestro de carros e saques. Isso tem tido sociais do país. Não podemos esquecer
um efeito negativo na ajuda humanitária e que os Estados Unidos tentaram sem êxi-
1 A Associação Iraquiana Al-Amal é uma associação na reconstrução do país. to, por causa da força da unidade nacio-
apolítica e não-sectária de voluntários(as)
engajados(as) ativamente em projetos para o benefício
Muitas ONGs internacionais e agênci- nal, aumentar as tensões entre xiitas e
e bem-estar da população do Iraque. as humanitárias, como a Organização das sunitas, numa tentativa de provocar uma
Deca Equipo Pueblo, A.C. Fian, Seção do volvimento (Pnud) alerta sobre as ameaças O diagnóstico inclui uma seção sobre
México à segurança humana: econômicas (pobre- os obstáculos estruturais para garantir o di-
Espaço de Coordenação das Organizações za, falta de habitação) e alimentares (fome). reito a um nível de vida adequado no Méxi-
Civis sobre os Desc Nessa perspectiva, são analisadas as seguin- co. Alguns desses obstáculos são:4
Frente Democrática Camponesa de tes questões que formam um círculo vicioso • o modelo de abertura da economia ao
Chihuahua de insegurança humana no México: obstá- mercado externo e a promoção do in-
Areli Sandoval Terán1 culos estruturais para o desfrute de um nível vestimento estrangeiro, iniciada em
de vida adequado; pobreza rural e urbana; 1985, não cumpriram as metas de
O preâmbulo da Declaração Universal dos livre comércio e crise no campo; e o fenô- reativação do crescimento econômico
Direitos Humanos reconhece a aspiração a meno migratório. sustentado do país e sua implementa-
um mundo onde as pessoas possam viver ção não foi socialmente responsável;
livres do temor e da miséria, porém esse Obstáculos estruturais • um desmantelamento contínuo das institui-
direito tem sido ignorado e menosprezado, ções que apoiavam a produção e o consu-
As organizações civis e sociais que vêm
o que constitui um grande obstáculo a esse mo dos pequenos produtores camponeses
monitorando e avaliando os programas de
ideal. Em seu artigo 25, a Declaração consa- de grãos e oleaginosas e a abertura às im-
ajuste estrutural (PAEs) aplicados nos últimos
gra os direitos humanos econômicos, sociais portações maciças desses produtos cria-
20 anos no México documentaram e denun-
e culturais no marco do direito a um nível de ram uma dependência alimentar perigosa e
ciaram publicamente seus impactos econômi-
vida adequado. Este relatório centra sua ar- agravaram o empobrecimento rural;
cos, sociais, culturais e ambientais, tendo
gumentação na análise de certos cenários • embora tenha havido um esforço signifi-
exigido que os poderes Executivo e Legislativo
sociais e econômicos da realidade mexica- cativo para aumentar os recursos dos
federais acabassem com esse processo de de-
na, nos quais é sistematicamente violado o
terioração das condições de vida da popula- programas de combate à pobreza rural
direito a uma vida adequada, o que repre-
ção, considerando que se trata de uma violação direcionados a indivíduos, na formulação
senta uma ameaça à segurança humana.
sistemática dos direitos humanos e, portan- e implementação desses programas não
A Comissão de Segurança Humana con-
to, de um atentado à segurança humana de foi levada em conta a perspectiva dos di-
sidera que são necessárias políticas integrais,
milhões de pessoas no país.3 Algumas dessas reitos humanos, gerando exclusão e dis-
centradas na sobrevivência das pessoas, nos
observações foram retomadas no Diagnósti- criminação na sua operação e cobertura;
meios de vida e na dignidade,2 enquanto o
co sobre a Situação dos Direitos Humanos no • as condições aceitas nos acordos e con-
Programa das Nações Unidas para o Desen-
México, elaborado pelo Escritório do Alto- vênios com os organismos financeiros
comissariado das Nações Unidas para Direitos internacionais e nos acordos e tratados
Humanos, no contexto do Acordo de Coope-
ração Técnica com o governo mexicano.
1 Coordenadora do Programa Diplomacia Cidadã da Deca
Equipo Pueblo, A.C., ponto focal do Social Watch no
México. Contatos com a autora: 4 Escritório do Alto-comissariado das Nações Unidas
<arelisandoval@equipopueblo.org.mx>. 3 Para mais informações, ver “Informes del ejercicio de para Direitos Humanos. Diagnóstico sobre la situación
2 Comissão de Segurança Humana. Human security now. evaluación ciudadana del ajuste estructural”. Casa- de los derechos humanos en México. Mundi-Prensa,
Nova York, 2003. Saprin Disponível em: <www.equipopueblo.org.mx>. 2003, p. 73-74.
tos da população estão concentrados nas 7 Ver a notícia “52% de mujeres rurales vive em pobreza
extrema”, de 7 de fevereiro de 2003. Disponível em:
zonas urbanas (cerca de 75 milhões de pes- <http://www.cimacnoticias.com/noticias/03feb/ 10 As maquiladoras são fábricas de uma empresa
soas), enquanto uma quarta parte vive nas 03020710.html>. Acesso em: 5 nov. 2004. estrangeira ou transnacional que se estabelecem em
8 Essa seção está baseada no texto de Norma países onde a mão-de-obra é mais barata para
Castañeda, Pobreza y libre mercado en México (Deca fabricar ou montar alguns componentes de um
Equipo Pueblo, A.C., mimeografado, dezembro de determinado produto.
2003). Contatos com a autora: 11 NADAL, Alejandro; AGUAYO, Francisco; CHÁVEZ,
<nacastaneda@equipopueblo.org.mx>. Marcos. Siete mitos sobre el TLCAN. Disponível em:
5 Secretaria de Desenvolvimento Social e Comitê Técnico
9 WITKER, Jorge; HERNÁNDEZ, Laura. Introducción al <www.americaspolicy.org/articles/2003/
para a Medição da Pobreza. Estudio sobre evolución y
Comercio Internacional. In: _____. Régimen jurídico sp_0312mitos.html>. Acesso em: 5 nov. 2004.
características de la pobreza en México en la última
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Violações generalizadas
A sucessão de governos autoritários e corruptos é uma ameaça permanente ao povo
nigeriano. Há inúmeros relatos de casos de discriminação sexual, étnica, racial, religiosa
ou política. Massacres e despejos forçados, além de estupros de mulheres e meninas, têm
sido práticas comuns no país, e a luta para controlar ou administrar os recursos derivados
do petróleo e outros minerais resultou em outras centenas de mortes. As condições para
a paz e o desenvolvimento são o respeito aos direitos humanos, o Estado de direito e a
possibilidade de mudar o governo por meios democráticos e pacíficos.
Iniciativa pelos Direitos Socioeconômicos Superior Federal. Conseguiu-se uma liminar Um ano antes, o exército havia matado
Profissionais Conscientes da Nigéria para deter a ação do governo. Houve pro- 2.483 residentes da vila de Odi, no estado de
Rede de Empoderamento das Mulheres Rurais testos e manifestações, e o governo foi for- Bayelsa, onde vivem 50 mil pessoas. Todas
Projeto de Defesa e Assistência Jurídica çado a abandonar o projeto. O Banco as casas da vila foram arrasadas e incendiadas.
Gênero e Direitos Humanos/Social Mundial garantiu às comunidades que ne- Quem sobreviveu fugiu para o mato e se re-
Watch – Nigéria nhum novo recurso para o estado de La- fugiou em vilas vizinhas. Os soldados invaso-
Rede Orçamentária do Sudeste gos seria liberado até que as questões em res estupraram muitas mulheres e meninas.
Ray Onyegu, John Onyeukwu, Mma Odi, disputa fossem resolvidas. Até o momento, nenhuma indenização foi
Itolo Eze-Anaba, Gina Iberi e Cletus Onyegu
Em fins de dezembro de 2001, por cau- paga às vítimas, e as casas destruídas não
sa de negligência das autoridades militares, foram reconstruídas. O governo não apre-
Os obstáculos à segurança humana na explodiram bombas armazenadas no Aquar- sentou desculpas nem deu qualquer garantia
Nigéria são generalizados. Os governos têm telamento Militar de Ikeja (Lagos), destruin- de que isso não se repetiria.
sido arrogantes, fechados, corruptos e não do casas no quartel e na vizinhança e matando Um destino similar atingiu algumas vilas
têm prestado contas ao eleitorado. Há con- mais de mil pessoas, na maioria crianças e e aldeias no estado de Benue em outubro de
flitos étnicos e religiosos e despejos força- mulheres. Muitas das pessoas desabrigadas 2001. Outra vez, os soldados destruíram to-
dos são comuns, enquanto a luta para e sem alternativas habitacionais foram aco- das as construções nas localidades de Pera,
controlar ou administrar os recursos deri- modadas temporariamente numa escola de Kyado, Gbeji, Chome, Ifer, Joolashitile, Torja,
vados do petróleo e outros minerais resul- polícia. Um ano depois, como um amargo Vaase, Zaki-Ibiam, Ise Adoor, Sunkera e Tor
tou na perda de centenas de vidas. Os presente de aniversário, essas pessoas fo- Donga. Eles usaram artilharia pesada, junta-
exemplos a seguir são reveladores. ram despejadas sem indenizações. mente com granadas disparadas por fogue-
Os despejos forçados dos cidadãos e ci- Até 1º de julho de 2000, 1 milhão de tes. Quando a munição se esgotou, jogaram
dadãs da Nigéria têm sido comuns em diver- pessoas viviam em Rainbow Town, em Port gasolina e metano para incendiar as habita-
sas regiões do país. Este relatório não pode Harcourt, a maioria de baixa renda. Apoiado ções. Zaki-Ibiam, por exemplo, era uma vila
citar um único caso no qual o governo tenha por cerca de mil policiais armados, o gover- de 20 mil habitantes com o maior mercado
tomado medidas para respeitar, proteger, no do estado de Rivers demoliu com trato- de inhame do país.1
cumprir ou assegurar o direito à habitação. res de terraplenagem a comunidade,
Em dezembro de 2001, o governo do deixando nas ruas crianças e mulheres, cujos Governo não garante direitos
estado de Lagos decidiu demolir a amplia- pais e maridos tinham saído para trabalhar.
da área favelada de Ajegunle, onde vivem É um hábito rotineiro dos governos da Nigéria
Ações legais contra essa decisão ainda esta-
mais de 2 milhões de pessoas – na maioria demolir mercados e lojas. Em virtude da es-
vam pendentes nos tribunais, porém o go-
mulheres e crianças. Não houve consulta à cassez de residências e do alto custo do alu-
verno alegou que havia agido com a
população local e não havia planos para guel residencial nas cidades grandes, esses
finalidade de fazer renovação urbana, pois a
reassentamento. Para evitar a demolição locais servem tanto para comércio como para
favela, ambientalmente degradada, tinha se
planejada, a antiga Iniciativa pelos Direitos residência. O Mercado Boundary, em Lagos,
tornado um refúgio de criminosos comuns.
de Habitação, atualmente conhecida como No entanto, as autoridades não tinham ne-
Iniciativa pelos Direitos Socioeconômicos, nhum plano para reassentar moradores e
mobilizou a comunidade e entrou com uma moradoras. Mais tarde, a terra foi dividida 1 O inhame é um alimento básico de consumo habitual
ação legal contra o despejo no Tribunal entre membros abastados da comunidade. na Nigéria.
Centro Bisan de Pesquisa e cidades”.2 Embora o muro seja um obstá- tucionalizará ainda mais um sistema de
Desenvolvimento culo tangível à segurança humana do povo apartheid , com os enclaves palestinos na
Izzat Abdul Hadi / Nadya Engler palestino, é somente uma manifestação dos Cisjordânia e na Faixa de Gaza funcionando
efeitos da ocupação ilegal, belicosa e humi- como bantustões marginalizados – uma re-
Seja uma cerca com tela de arame, muro lhante da Cisjordânia e da Faixa de Gaza por ceita segura para a continuação da luta que
de concreto, vala ou rolos de arame farpa- parte de Israel. Sob o disfarce da luta contra ameaça a segurança das duas nações. É
do, a barreira que está sendo construída o terrorismo e da segurança do Estado, a preciso deixar claro que essa barreira não é
por Israel em nome da segurança é certa- barreira viola os direitos fundamentais dos uma questão de segurança, mas sim uma
mente um “obstáculo”, 1 como a denomi- palestinos e palestinas e promete encolher usurpação agressiva de terras.
na as ordens militares israelenses. Com ainda mais a superfície de qualquer futuro Embora Israel alegue que o “obstáculo” é
até 8 metros de altura e 100 metros de Estado palestino. uma medida temporária, os gastos, os esfor-
largura em algumas áreas, a fronteira física ços e a própria área de terra confiscada indi-
que Israel começou a construir em abril de Usurpação agressiva de terras cam o contrário. A maior parte das ordens
2002, e com a qual está cercando e isolan- Aparentemente, o muro está sendo cons- militares israelenses relativas à barreira expira
do unilateralmente o povo palestino na truído por Israel para impedir os ataques pa- em 2005, porém esses documentos podem
Cisjordânia, é uma ameaça grave à popu- lestinos contra civis israelenses. Se essa ser facilmente renovados. Ao emitir essas or-
lação, que já sofre os efeitos da prolonga- construção tivesse realmente a ver com a dens militares temporárias, israelenses tor-
da ocupação israelense. Essa barreira segurança, teria sido erigida na fronteira de nam desnecessários os complexos
viola os direitos básicos de palestinos e 1967 da Cisjordânia (a Linha Verde) ou teria procedimentos jurídicos do confisco perma-
palestinas à sobrevivência, meios de vida, sido estabelecida em terras israelenses, no nente de propriedade.3 Se a barreira fosse uma
dignidade e liberdade – as principais pre- lugar de criar uma nova fronteira física que medida de segurança estrita, baseada no medo
ocupações globais definidas pela Comis- influenciará as discussões futuras sobre so- de ataques, seus limites e postos de controle
são de Segurança Humana. berania, sem qualquer negociação bilateral. seriam guardados muito mais rigorosamente.
Em um relatório de abril de 2003, Essa barreira não aumentará a segurança, A maioria dos homens-bomba suicidas
B’Tselem, o Centro pelos Direitos Humanos porém estenderá o conflito. Sua construção entra em Israel por esses postos de controle
nos territórios ocupados, estimava que essa leva o povo palestino a acreditar que a solu- militar.4 Quase diariamente, os jornais pales-
barreira “provavelmente causará danos di- ção dos dois Estados não é mais viável. tinos publicam fotografias de crianças, estu-
retos a pelo menos 210 mil palestinos e No atual clima político, a solução de um dantes e pessoas idosas passando por cima
palestinas, que vivem em 67 aldeias, vilas e só Estado provocará ressentimento entre das barreiras existentes perto de Jerusalém,
extremistas dos dois lados, e Israel insti- com famílias caminhando penosamente em
Conferência Nacional sobre o Esse grupo iniciou práticas de extrema disso, esse grupo assassinou dissidentes de
Desenvolvimento Social (Conades) violência, demonstrando crueldade inusita- suas próprias fileiras. O MRTA, que tentou
Milagros Varela da, por meio de tortura e maus-tratos, como criar um clima propício à aceitação da idéia
forma de castigar ou dar exemplos para in- do uso da violência como recurso político
O conflito armado interno que o Peru timidar a população que procurava contro- legítimo, acabou favorecendo a política anti-
vivenciou entre 1980 e 2000 foi o episódio lar, incluindo as pessoas que nele militavam. subversiva, autoritária e militarista do go-
de violência mais intenso, amplo e prolon- Procurou, de forma consciente e constante, verno de Alberto Fujimori.
gado de sua história republicana. O número provocar respostas desproporcionais por
mais provável de vítimas alcança 69.280, das parte do Estado. O Sendero Luminoso ex- Polícia e Forças Armadas
quais 79% eram camponesas e 75% fala- pressou seu potencial genocida com con- Mais de mil policiais morreram ou ficaram
vam quíchua ou outras línguas nativas como ceitos tais como “pagar a cota de sangue” incapacitados durante esse período. A polí-
idioma materno. (1982), “induzir genocídio” (1985), “o tri- cia foi incapaz de enfrentar efetivamente o
A tragédia vivida pelas populações ru- unfo da revolução custará um milhão de inimigo por causa de uma formação defici-
rais, andinas e silvícolas, quíchuas e pessoas mortas” (1988). Utilizou algumas ente para a luta anti-subversiva e pelo apoio
achanincas, pobres e com pouca instrução, instituições educacionais como focos de di- logístico precário.
não foi sentida nem assumida como própria fusão de suas mensagens e de recrutamen- Em 1982, o governo decidiu que as For-
pela totalidade da população peruana. Fica- to de grupos minoritários de jovens. ças Armadas enfrentariam os grupos sub-
ram evidentes as limitações do Estado para Para o Sendero Luminoso, a população versivos. Essas forças perderam mais de mil
garantir a ordem pública, a segurança e os camponesa era uma massa que deveria se efetivos. No início, aplicaram uma repressão
direitos fundamentais dos cidadãos e das ci- submeter à vontade do partido. Assim, a dis- indiscriminada e, embora a estratégia tenha
dadãs dentro de um contexto democrático. sidência individual era castigada com assas- depois se tornado mais seletiva, não tiveram
sinatos e aniquilamentos seletivos, e a capacidade de evitar, em certos locais e oca-
O Sendero Luminoso e o MRTA dissidência coletiva, com massacres e a des- siões, a prática generalizada e/ou sistemática
truição de comunidades inteiras. A presença de violações dos direitos humanos.
De acordo com a Comissão da Verdade e
subversiva, assim como a resposta anti-sub- Assim como o fizeram as forças policiais,
Reconciliação,1 a causa imediata e fundamen-
versiva, reativou e militarizou velhos conflitos suas ações foram comprometidas por exe-
tal do desencadeamento do conflito armado
entre comunidades e no interior delas. Lima cuções extrajudiciais, desaparecimentos, tor-
interno foi a decisão do Partido Comunista
e outras cidades sofreram sabotagens, as- turas e maus-tratos, especialmente contra
do Peru (Sendero Luminoso) de iniciar a “luta
sassinatos seletivos, greves armadas e terro- mulheres. Esse tipo de comportamento era
armada” contra o governo, no momento em
rismo urbano, com o uso de carros-bomba. adotado diretamente por indivíduos hierar-
que o país iniciava uma nova etapa demo-
O Movimento Revolucionário Tupac quicamente superiores, ou por seus subor-
crática com eleições livres. O Sendero Lumi-
Amaru (MRTA) iniciou sua luta armada con- dinados, com a permissão dos primeiros.
noso foi o principal executor dos crimes e
tra o governo em 1984 e foi responsável A partir de 1989, as Forças Armadas
das violações dos direitos humanos, sendo
por 1,5% das mortes ocorridas. O MRTA mudaram de estratégia. Seu interesse não
responsável por 54% das mortes ocorridas.
reivindicava suas ações, e seus membros era mais recuperar território, mas eliminar os
utilizavam distintivos para se diferenciar da Comitês Populares do Sendero Luminoso.
população civil. Evitava atacar a população Tentaram isolar a força militar da organiza-
desarmada e, em alguns momentos, mos- ção e ganhar o apoio da população, diminu-
1 Ver o site <www.cverdad.org.pe>. trou-se aberto a negociações de paz. Apesar indo as violações dos direitos humanos.
Deniva receber treinamento militar rudimentar. Qual- ra educacional, haveria enorme superlotação
David Obot quer criança que tenta fugir é morta ou pu- e medo constante de ataques do LRA, o que
nida severamente.4 criaria um ambiente nada propício à apren-
Por 17 anos, a população do norte e do As meninas são estupradas tanto pelos dizagem. Também haveria problemas com o
leste de Uganda tem padecido em um confli- comandantes do LRA como pelos solda- recrutamento de professores e professoras
to devastador.1 O impacto da guerra inclui a dos governamentais. Outros atos de agres- e com a aquisição de materiais didáticos. O
violação e a negação dos direitos humanos são incluem a mutilação de crianças e efeito negativo do conflito sobre a educação
à vida, à alimentação, à saúde, à educação, à pessoas adultas, emboscadas contra veí- primária também causou a queda da produ-
segurança pessoal e ao acesso a recursos culos e a destruição de lares, colheitas e ção agrícola. Um estudo realizado por
públicos e internacionais para 2 milhões de infra-estrutura. Deininger e Okidi revelou uma forte relação
pessoas. O desespero e a insegurança to- Nesse conflito, foram vistas algumas entre os anos de instrução primária e o valor
mam conta da população. As crianças nas- das piores formas de mortes cruéis. Esti- da produção agrícola: há um aumento de
cidas e criadas nesse ambiente não têm futuro ma-se que mais de 23.520 5 pessoas te- 5% por cada ano em que o(a) chefe da famí-
e, na verdade, mal conseguem sobreviver nham sido mortas e 2 milhões tiveram de lia freqüentou a escola primária.8 Portanto, a
no presente: desde 1996 cerca de 20 mil se abrigar nos acampamentos para pesso- perda de anos de educação primária implica
crianças foram raptadas para servir na guer- as internamente deslocadas (PID).6 Somen- o declínio na produção agrícola.
rilha, e aproximadamente 2 milhões de pes- te um desses acampamentos abriga cerca Desnutrição, malária, HIV/Aids, tubercu-
soas foram desalojadas.2 de 10 mil crianças.7 lose e traumas psicológicos são freqüentes
As crianças seqüestradas são amarra- Nos acampamentos para PID, não há no país. Nos acampamentos para PID, o sis-
das entre si pelo tornozelo, forçadas a escolas. Mesmo que existisse infra-estrutu- tema de saneamento é deficiente,9 quase não
transportar cargas pesadas e a caminhar até há remédios e as pessoas preferem morrer
oito horas diárias sem descanso, até chega- de fome a arriscar uma saída dos acampa-
rem ao campo de Nichitu, no sul do Sudão.3 mentos em busca de comida. A água é um
Assim que chegam ao campo, começam a 3 “Andrew Akera, de 13 anos, foi seqüestrado em 2001. luxo: um poço tem de ser compartilhado
Lembra que durante o seqüestro os captores amarraram por mais de 30 mil pessoas.
as pernas das crianças seqüestradas e incendiaram o
acampamento. Segundo ele, cada criança transportava A população não pode plantar a varie-
cerca de 40 quilos de bens saqueados e caminhou dade de alimentos que contribuiriam para
durante quase oito horas. Pararam por duas horas para
a segurança alimentar e uma dieta equili-
1 As populações dos distritos diretamente afetados pelo cozinhar. As crianças seqüestradas comeram verduras,
enquanto os comandantes rebeldes comeram peixe, carne brada. 10 As pessoas dormem sem mos-
maciço deslocamento interno são as seguintes: no
norte, Apac (676.244), Gulu (468.407), Kitgum (286.122), e farinhas. Dormiram no mato. Os seqüestros e saques
Lira (757.763) e Pader (293.679); no leste, Kaberamaido prosseguiram durante um mês. Posteriormente, as
(122.924), Katakwi (307.032) e Soroti (371.986); crianças foram levadas para o acampamento de Nichitu,
totalizando 3.284.157 habitantes, ou seja, 13% da no sul do Sudão.” The Monitor, 19 nov. 2003, p. 15.
população total de 24,7 milhões. As populações dos 4 “As ordens eram para matar qualquer um que tentasse 6 The Monitor, 20 nov. 2003, p. 1.
distritos diretamente afetados pela sua proximidade das escapar. Numa ocasião [Andrew Akera] levou 7 OLOCH, James. 16 mil deslocados internos na Fazenda
zonas de operação dos insurgentes são: no norte, chibatadas em todo o corpo por tentar fugir. Depois Bala Stock não tinham serviços médicos e 10 mil crianças
Adjumani (201.493), Arua (855.055), Kotido (596.130), disso, abandonaram-no, acreditando que estivesse não freqüentavam aulas. The New Vision, 10 nov. 2003.
Moroto (170.506), Moyo (199.912), Nakapiripirit morto.” The Monitor, 19 nov. 2003, p. 15. 8 DEININGER, Klaus; OKIDI, John. Rural households,
(153.862), Nebbi (433.466) e Yumbe (253.325), 5 DORSEY, J.; OPEITUM, S. The Net economic cost of the incomes, productivity and non-farm enterprises. In:
totalizando 2.863.749 habitantes, ou seja, 12% do total conflict in the Acholiland Sub-Region of Uganda. Uganda’s recovery: the role of farms, firms and
da população. Agência de Estatísticas de Uganda, 2001. Campala: Organizações da Sociedade Civil pela Paz no government. Banco Mundial, out. 1991, p. 123-174.
2 The Monitor, 26 out. 2003, p. 1. Norte de Uganda, 2002, p. 7. (Estudos Regionais e Setoriais).