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O que é o Observatório da Cidadania?

A idéia de estabelecer, no âmbito da sociedade civil, mecanismos


permanentes de monitoramento e avaliação do cumprimento da
agenda do ciclo social surgiu em 1995, entre ONGs que participavam
da Conferência da ONU sobre o Desenvolvimento Social, em
Copenhague. Foi criado, então, o Social Watch. Seu objetivo é
garantir que o esforço de participação e advocacy – presente na
preparação e negociação das conferências – continue na
implementação dos compromissos sociais assumidos pelos
governos, nacional e internacionalmente.
A articulação internacional de organizações da sociedade civil
Social Watch inspirou a criação da iniciativa brasileira Observatório
da Cidadania, animada pelo Ibase. Em 1997, o relatório internacional
foi publicado pela primeira vez em português, consolidando, assim,
um grupo de referência nacional do qual atualmente participam: Ibase,
Fase, Inesc, Rede Dawn, Cfemea, Cesec/Ucam e Criola. A edição
brasileira também traz o perfil socieconômico de diversos países.
Mas difere das demais por contar com uma seção especial sobre o
Brasil e trazer artigos inéditos nos Informes Temáticos. As estatísticas,
mostrando avanços e retrocessos dos vários países em relação às
metas de desenvolvimento social, estão no CD-ROM que acompanha
a publicação.
OBSERVATÓRIO DA CIDADANIA

COMITÊ COORDENADOR INTERNACIONAL


Roberto Bissio (Uruguai, Secretariado), Patrícia Garcé (Uruguai, Secretariado), Leonor Briones (Filipinas), Abdul Hamid El Kam (Marrocos), John Foster (Canadá),
Yao Graham (Gana), Jagadananda (Índia), Rehema Kerefu Sameji (Tanzânia), Jens Martens (Alemanha), Iara Pietricovsky (Brasil), Ziad Abdel Samad (Líbano),
Areli Sandoval (México), Simon Stocker (Bélgica)
O Secretariado Internacional do Social Watch está sediado em Montevidéu, Uruguai, no Instituto do Terceiro Mundo (IteM).

OBSERVATÓRIO DA CIDADANIA – BRASIL


Coordenação executiva
Fernanda Lopes de Carvalho (Ibase)

Grupo de referência
Cândido Grzybowski e Fernanda Lopes de Carvalho (Ibase), Iara Pietricovsky (Inesc), Jorge Eduardo Durão (Fase), Sonia Corrêa (Rede Dawn), Guacira Oliveira (Cfemea), Silvia
Ramos (CESeC/Ucam) e Lúcia Xavier (Criola)

EQUIPE EDITORIAL
Edição internacional
Chefia de redação: Roberto Bissio
Edição: Jorge Suárez
Edição associada: Alejandro Gómez, Amir Hamed e Niki Johnson
Produção: Ana Zeballos
Pesquisa de ciências sociais: Karina Batthyány (coordenadora), Daniel Macadar e Mariana Sol Cabrera
Assistência de pesquisa: Graciela Dede
Tradução: Valerie M. Dee e Richard Manning (inglês), Alvaro Queiruga (espanhol), Clio Bugel e Elena de Munno (francês) e María Laura Mazza (português)
Pesquisa e edição: Gustavo Espinosa
Assistência: Marcelo Singer
Revisão de textos: Lucía Beverjillo
Suporte técnico: Red Telemática Chasque

Edição brasileira
Coordenação: Fernanda Lopes de Carvalho
Assistente de coordenação: Luciano Cerqueira
Coordenação editorial: Iracema Dantas
Edição: Marcia Lisboa
Produção: Geni Macedo
Produção do CD-ROM: Socid – Sociedade Digital
Revisão: Marcelo Bessa
Revisão técnica: Fernanda Lopes de Carvalho e Luciano Cerqueira
Tradução: Jones de Freitas
Apoio: Novib (Organização Holandesa de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento) e Fundação Ford

© Copyright 2004

IteM – Instituto del Tercer Mundo


Jackson, 1.136
Montevidéu, 11200, Uruguai
item@item.org.uy
Fax: + 598-2-411-9222

Ibase – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas


Av. Rio Branco, 124/8o andar – Centro
CEP 20040-001 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Tel.: +55-21-2509-0660
Fax: +55-21-3852-3517
observatorio@ibase.br
www.ibase.br

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reprodução, armazenamento em sistema de recuperação de dados ou transmissão de qualquer forma ou por qualquer meio, com fins comerciais, requer autorização
prévia do IteM ou do Ibase.

Projeto gráfico: G. Apoyo Gráfico


Diagramação: Imaginatto Design e Marketing
Fotolitos: Rainer Rio Artes Gráficas e Editora Ltda.
Impressão: J-Sholna Reproduções Gráficas Ltda.

ISSN: 1679-7035

Pedidos de exemplares e CD-ROMs podem ser feitos ao Ibase.

Observatório da Cidadania 2004 / 4


A INICIATIVA SOCIAL WATCH ESTÁ SENDO PROMOVIDA E DESENVOLVIDA PELOS SEGUINTES GRUPOS, ORGANIZAÇÕES E PARCEIROS:
Alemanha: Social Watch Germany (Social Watch da Alemanha), jens.martens@weed-online.org; Caritas Alemanha; EED – Church Development Service (Serviço de Desenvolvimento da Igreja); DGB-
Bildungswerk e.V.; Diakonisches Werk of the Protestant Church in Germany; Fundação Friedrich-Ebert; Terre des Hommes – Alemanha; Vereinte Dienstleistungsgewerkschaft (ver.di); Werkstatt Ökonomie;
Weed (Economia Mundial, Ecologia e Desenvolvimento); Pão para o Mundo • Angola: Sinprof (Sindicato Nacional dos Professores), mi21163@yahoo.es • Argélia: Associação El Amel para o
Desenvolvimento Social, mselougha@yahoo.fr • Argentina: Cels-Desc (Centro de Estudos Legais e Sociais – Programa de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais), desc@cels.org.ar • Bangladesh:
CDL – Community Development Library (Biblioteca de Desenvolvimento Comunitário), rdc@bol-online.com; Unnayan Shamunnay, shamunnay@sdnbd.org • Barein: BHRS (Sociedade de Direitos
Humanos de Barein), cdhrb@hotmail.com, sabikama@batelco.com.bh • Bolívia: Cedla (Centro de Estudos para o Desenvolvimento Trabalhista e Agrário), cedla@caoba.entelnet.bo; Seção Boliviana
de DH, Democracia e Desenvolvimento; Aipe (Associação de Instituições de Promoção e Educação); APDHB (Assembléia Permanente dos Direitos Humanos da Bolívia – CBB); APDH-NAL (Assembléia
Permanente dos Direitos Humanos); Área Identidade Mulher e Trabalho da Fundação Solón; Assembléia Permanente Direitos Humanos; Associação + Vida; Asofamd (Associação de Familiares de Presos
Desaparecidos da Bolívia); Capacitação e Direito Cidadão; Cáritas La Paz; Casa da Mulher; Casdel (Centro de Assessoramento Legal e Desenvolvimento Social); Católicas pelo Direito de Decidir; Ceades
(Coletivo de Estudos Aplicados ao Desenvolvimento Social); Cedib (Centro de Documentação e Pesquisa da Bolívia); Cenprotac (Centro de Promoção de Técnicas de Arte e Cultura); Centro Gregoria Apaza;
Centro Juana Azurduy; Ceprolai (Centro de Promoção dos Leigos); Cidem (Centro de Informação e Desenvolvimento da Mulher); Cipca NAL (Centro de Pesquisa e Promoção do Campesinato); Cisep
(Centro de Pesquisa e Serviço Popular); Cistac (Centro de Pesquisa Social, Tecnologia Apropriada e Capacitação); Coletivo Rebeldia; Comunidade Equidade; Coordenação da Mulher; DNI (Defesa da
Criança Internacional); DNI-NAL (Defesa da Criança Internacional); DNI-Regional CBB; Ecam (Equipe Comunicação Alternativa com Mulheres); Fundação La Paz; Fundação Terra; Iffi (Instituto de Formação
Feminina Integral); Infante (Promoção Integral da Mulher e Infância); IPTK (Instituto Politécnico Tupac Katari); MEPB (Movimento Educadores Populares da Bolívia); Miamsi (Ação Católica Internacional);
Escritório Jurídico da Mulher; Prodis Yanapakuna (Programa de Desenvolvimento e Pesquisa Social); Rede Andina de Informação; Unitas (União Nacional de Instituições para o Trabalho de Ação Social)
• Brasil: Grupo de Referência: Ibase – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, observatorio@ ibase.org.br; Cfemea – Centro Feminista de Estudos e Assessoria; Cesec/Ucam –
Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes; Criola-Rio; Fase – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional; Inesc – Instituto de Estudos
Socioeconômicos; Rede Dawn; Abia – Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids; Abong – Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais; ActionAid; Afirma Comunicação e Pesquisa;
Agende – Ações em Gênero, Cidadania e Desenvolvimento; AMB – Articulação de Mulheres Brasileiras; Articulação de Mulheres Negras Brasileiras; Attac – Ação pela Tributação das Transações Especulativas
em Apoio aos Cidadãos; Caces – Centro de Atividades Culturais, Econômicas e Sociais; Ceap – Centro de Articulação de Populações Marginalizadas; Cebrap – Centro Brasileiro de Análise e Planejamento;
Cedec – Centro de Estudos da Cultura Contemporânea; Cedim – Conselho Estadual dos Direitos da Mulher; Cemina – Comunicação, Informação e Educação em Gênero; CEN/Fórum de Mulheres do Piauí;
Centro de Cultura Luiz Freire; Centro de Defesa da Criança e do Adolescente/Movimento de Emus; Centro de Defesa dos Direitos Humanos Bento Rubião; Centro de Estudos Afro-Brasileiros da
Universidade Candido Mendes; Centro de Estudos de Defesa do Negro do Pará; Centro das Mulheres do Cabo; Cepia – Cidadania Estudo Pesquisa Informação e Ação; Cladem – Comitê Latino-americano
e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher; CMC – Centro de Mulheres do Cabo; CPT/Fian – Comissão Pastoral da Terra; Comunidade Baha’í; CUT – Central Única dos Trabalhadores; Esplar – Centro
de Pesquisa e Assessoria; Fala Preta; Faor – Fórum da Amazônia Oriental; Fórum de Mulheres de Salvador; Fórum de Mulheres do Rio Grande Norte; Geledés - Instituto da Mulher Negra; Grupo de
Mulheres Negras Malunga; Instituto Patrícia Galvão; Ippur/UFRJ – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional; Iser – Instituto de Estudos da Religião; MNDH – Movimento Nacional de
Direitos Humanos; Nova; Observatório Afro-Brasileiro; Observatório da Cidadania; Pólis – Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Estudos Sociais; Redeh – Rede de Desenvolvimento Humano;
Rede Mulher de Educação; Rede Saúde; Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero; Ser Mulher – Centro de Estudos e Ação da Mulher Urbana e Rural; SOS Mata Atlântica; Vitae Civilis Instituto para
o Desenvolvimento, Meio Ambiente e Paz. • Bulgária: BGRF (Fundação de Pesquisa e Gênero da Bulgária), bgrf@fastbg.net; Bepa – Bulgarian-European Partnership Association (Associação da Parceria
Búlgara-Européia); National Trade Union Federation of “Light Industry” (Federação Nacional dos Sindicatos da Indústria Leve); Attac – Bulgária.• Camboja: Silaka, silaka@forum.org.kh; ADD – Action on
Disability and Development (Ação com Portadores de Deficiências no Processo de Desenvolvimento); Adhoc (Associação de Direitos Humanos e Desenvolvimento do Camboja); CDPO – Cambodian
Disabled People’s Organization (Organização Cambojana dos Portadores de Deficiências); Cepa – Cultural and Environment Preservation Association (Associação pela Preservação Cultural e Ambiental);
CLO – Cambodian Labor Organization (Organização Trabalhista Cambojana); CHHRA – Cambodian Health and Human Rights Alliance (Aliança Cambojana pela Saúde e Direitos Humanos); CSD –
Cambodian Women’s Development Agency (Agência de Desenvolvimento das Mulheres Cambojanas); GAD – Gender and Development Agency (Agência de Gênero e Desenvolvimento); Khraco – Khmer
Human Rights and Against Corruption Organization (Organização Khmer pelos Direitos Humanos e contra a Corrupção); KKKHRA – Khmer Kampuchea Krom Human Rights Association (Associação
Khmer Kampuchea Krom de Direitos Humanos); KKKHRDA – Khmer Kampuchea Krom Human Rights and Development Association (Associação Khmer Kampuchea Krom de Direitos Humanos e
Desenvolvimento); KYA – Khmer Youth Association (Associação da Juventude Khmer); LAC – Legal Aid Association (Associação para Assistência Jurídica); Licadho; Padek – Partnership for Development
in Kampuchea (Parceria para o Desenvolvimento no Camboja); USG – Urban Sector Group (Grupo do Setor Urbano); URC – Urban Resource Center (Centro de Recursos Urbanos); UPWD – Urban Poor
Development Fund (Fundo de Desenvolvimento para os Pobres Urbanos); UPDF – Urban Poor Development Fund (Fundo de Desenvolvimento para os Pobres Urbanos); Vigilance (Vigilância) • Canadá:
Social Watch Canada – Canadian Centre for Policy Alternatives/The North–South Institute (Centro Canadense para Alternativas de Políticas Públicas/Instituto Norte–Sul), jfoster@nsi-ins.ca • Cazaquistão:
Center for Gender Studies (Centro de Estudos de Gênero), gender@academset.kz • Chile: Activa – Área Cidadania, activaconsultores@vtr.net; ACJR (Aliança Chilena por um Comércio Justo e
Responsável); Anamuri (Associação Nacional de Mulheres Rurais e Indígenas); CEM (Centro de Estudos da Mulher); Codepu (Corporação para Promoção e Defesa dos Direitos do Povo); Coletivo Con-
Spirando; Corporação La Morada; Eduk; Foro, Rede de Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos; Fundação para Superação da Pobreza; Fundação Terram; Programa de Cidadania e Gestão Local; SOL
(Solidariedade e Organização Local) • China: Network (Research Center) for Combating Domestic Violence of China Law Society – Rede (Centro de Pesquisa) da Sociedade Jurídica da China para
Combater a Violência Doméstica, buwei@public3.bta.net.cn • Colômbia: Corporación Región, coregion@epm.net.co; Plataforma Colombiana de DH, Democracia e Desenvolvimento • Coréia do Sul:
CCEJ – Citizen’s Coalition for Economic Justice (Coalizão Cidadã pela Justiça Econômica), mmm@ccej.or.kr, dohye@ccej.or.kr • Costa Rica: Centro de Estudos e Publicações Alforja, cep@alforja.or.cr;
Ames (Associação de Mulheres da Saúde); Coordenação de Bairros; Centro de Educação Popular de Vizinhos; Sindicato de Profissionais de Ciências Médicas; Frente de Organizações para a Defesa da
Seguridade Social; Limpal (Liga Internacional de Mulheres Pró-Paz e Liberdade); Agenda Cantonal de Mulheres – Desamparadas é masculino mesmo?; Associação Nossas Vozes; Fedeaguas-Guanacaste;
Sinae (Sindicato de Auxiliares de Enfermaria); Sebana (Sindicato dos Empregados do Banco Nacional); Coordenação Técnica do Conselho Consultivo da Sociedade Civil • Egito: LRRC – Legal Research
and Resource Centre for Human Rights (Centro de Recursos Jurídicos e Pesquisas dos Direitos Humanos), lrrc_hr@hotmail.com • El Salvador: Cidep (Associação Intersetorial para o Desenvolvimento
Econômico e o Progresso Social), cidep@cidep.org.sv; Apsal (Ação pela Saúde em El Salvador); Codefam (Comitê de Familiares de Vítimas de Violações dos Direitos Humanos de El Salvador); Fuma
(Fundação Maquilishuatl); Las Dignas (Associação de Mulheres pela Dignidade e a Vida) • Equador: CDES (Centro de Direitos Econômicos e Sociais), cdes@cdes.org.ec • Espanha: Intermón Oxfam,
intermon@intermon.org; Cáritas Espanhola • Estados Unidos: IATP (Instituto para Políticas Agrícolas e de Comércio), iatp@iatp.org; Center of Concern; Wedo – Women’s Environment and Development
Organization (Organização de Mulheres para o Ambiente e o Desenvolvimento) • Filipinas: Social Watch Philippines, sowat@info.com.ph; Accord (Organização Alternativa para o Desenvolvimento Rural
Baseado na Comunidade); ACT (Aliança dos Professores Conscientes); AER (Ação para as Reformas Econômicas); Afrim (Fórum Alternativo de Pesquisas em Mindanao); Alagad-Mindanao (Aliança contra
a Aids em Mindanao); Alay Kapwa-Social Action Center (Alay Kapwa-Centro de Ação Social); Albay NGO-PO Network (Rede de ONGs e Organizações Populares de Albay); Alliance of Community
Development Advocates (Aliança de Defensores do Desenvolvimento Comunitário); Provincial NGO Federation of Nueva Vizcaya (Federação Provincial de ONGs de Nueva Vizcaya); Angoc – Asian NGO
Coalition for Agrarian Reform and Rural Development (Coalizão de ONGs Asiáticas pela Reforma Agrária e o Desenvolvimento Rural); ATD Fourth World Philippines (Ajuda ao Quarto Mundo Filipinas);
Bagasse (Aliança Bisaya para o Crescimento das Comunidades de Reforma Agrária e da Empresa Açucareira Sustentável); Bangon (Aliança Bohol de Organizações Não-Governamentais); Bantay Katilingban;
Banwang Tuburan; Bapaka; Bataan NGO-PO Network (Rede de ONGs e Organizações Populares de Bataan); Beijing Score Board (Placar de Pequim); Bind – Broad Initiative for Negros Development
(Iniciativa Ampla para o Desenvolvimento de Negros); Caret Inc.; Caucus on Poverty Reduction (Cáucus não há essa forma aportuguesada no Houaiss. No dicionário Webster indica apenas que é uma
reunião de chefes. Deixar em inglês e em itálico? sobre Redução da Pobreza); CCAGG; CCF Reconciliation Center (Centro de Reconciliação); CMA-Phils – Center for Migrant Advocacy Philippines (Centro
para a Defesa dos Migrantes – Filipinas); CMLC; Code – NGO – Caucus of Development NGO Networks (Cáucus idem de Redes de ONGs de Desenvolvimento); Compax – Cotabato; Co-Multiversity;
Convergence; CPED – Center for Policy and Executive Development (Centro de Políticas Públicas e Desenvolvimento do Poder Executivo); Daluyong Ugnayan ng mga Kababaihan – National Federation of
Women’s Group (Federação Nacional de Grupos de Mulheres); Dawn-Southeast Asia / Women & Gender Institute (Rede Dawn-Sudeste Asiático/Instituto Mulher & Gênero); Ecpat Philippines; Elac – Cebu;
Emancipatory Movement for People’s Empowerment (Movimento Emancipatório pelo Empoderamento do Povo); E-Net – Civil Society Network for Education Reforms (Rede da Sociedade Civil pelas
Reformas da Educação); FDC (Coalizão pela Libertação da Dívida); Federation of Senior Citizens Association of the Philippines (Federação das Associações de Idosos das Filipinas); Feed the Children
Philippines (Alimentem as Crianças – Filipinas); Focus on the Global South – Philippine Program (Foco sobre o Sul Global – Programa Filipino); Free the Children Foundation (Fundação pela Libertação
das Crianças); Government Watch – Ateneo School of Government (Observatório de Governo – Escola de Governo Ateneo); IBASSMADC; IDS-Phils (Serviços de Desenvolvimento Integral – Filipinas); IID
(Iniciativas para o Diálogo Internacional); Iloilo Code of NGOs; Inam – Indicative Medicine for Alternative Health Care System Phils., Inc. (Medicina Indicativa para um Sistema de Atendimento de Saúde
Alternativo); IPD (Instituto para a Democracia Popular); Issa – Institute for Social Studies and Action (Instituto de Estudos e Ação Social); Jaro Archdiocesan Social Action Center (Centro de Ação Social
da Arquidiocese de Jaro); Jihad Al Akbar; JPIC-IDC – Justice for Peace and Integrity of Creation – Integrated Development Center (Justiça pela Paz e Integridade da Criação – Centro de Desenvolvimento
Integrado); Kamam; Kapatiran-Kaunlaran Foundation, Inc.; Kasamakapa – multi-sectoral organization of CSOs for environmental and development in Marinduque (Organização multissetorial de OSCs pelo
ambiente e desenvolvimento em Marinduque); Katinig (Kalipunan ng Maraming Tinig ng Manggagawang Inpormal); KFI (Kasanyagan Foundation Inc.); KIN (Kitanglad Integrated NGOs); Kinayahan
Foundation (Fundação Kinayahan); Konpederasyon ng mga Nobo Esihano para sa Kalikasan at Kaayusang Panlipunan; La Liga Policy Institute (Instituto de Políticas Públicas La Liga); Labing Kubos
Foundation, Inc. (Fundação Labing Kubos); LRC (Centro de Direitos Legais e Recursos Naturais); Lubong Salakniban Movement; MAG – Medical Action Group (Grupo de Ação Médica); Midsayap
Consortium of NGOs and POs (Consórcio de ONGs e Organizações Populares de Midsayap); Mindanawon Initiative for Cultural Dialogue (Iniciativa pelo Diálogo Cultural de Mindanao); MLF (Fundação
Agrária Mindanao); Mode – Management & Organizational Development for Empowerment (Gestão e Desenvolvimento Organizacional para o Empoderamento); National Anti Poverty Commission Basic
Sectors (Setores Básicos da Comissão Nacional Antipobreza); Natripal; NCCP – National Council of Churches in the Philippines (Conselho Nacional das Igrejas nas Filipinas); NCSD (Conselho Nacional de
Desenvolvimento Social); Negronet; NGO-LGU Forum of Camarines Sur; NGO-PO Network of Quezon (Rede ONGs-Organizações Populares de Quezon); NGO-PO of Tobaco City; Niugan (Nagkakaisang
Ugnayan ng mga Manggagawa at Magsasaka sa Niyugan); Nocfed (Centro para o Desenvolvimento de Negros Oriental); Outreach Philippines, Inc.; Oxfam Grã-Bretanha; Pafpi – Positive Action Foundation
Philippines, Inc. (Fundação Ação Positiva das Filipinas); Pagbag-O (Panaghugpong sa Gagmayng Bayanihang Grupo sa Oriental Negros); Paghiliusa sa Paghidaet-Negros; Pahra (Aliança Filipina dos
Defensores de Direitos Humanos); PCPD – Philippine Center for Population & Development, Inc.(Centro Filipino de População e Desenvolvimento); PCPS – Philippine Center for Policy Studies (Centro
Filipino de Estudos de Políticas Públicas); Peace Advocates Network (Rede de Defensores da Paz); Pepe – Popular Education for People’s Empowerment (Educação Popular pelo Empoderamento do
Povo); Philippine Human Rights Info Center (Centro de Informações sobre Direitos Humanos das Filipinas); Philippine Partnership for the Development of Human Resources in Rural Areas – Davao
(Parceria Filipina para o Desenvolvimento de Recursos Humanos em Áreas Rurais – Davao); Phil-Net Visayas; PhilNet-RDI (Rede Filipina de Institutos de Desenvolvimento Rural); Pinoy Plus Association;
Pipuli Foundation, Inc.; PLCPD (Philippine Legislators Committee on Population and Development Foundation (Fundação da Comissão de Legisladores Filipinos sobre População e Desenvolvimento); PPI
– Philippine Peasant Institute (Instituto do Camponês Filipino); Process-Bohol – Participatory Research Organization of Communities and Education towards Struggle for Self Reliance (Organização pela

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Pesquisa Participativa em Comunidades e Educação para a Luta por Autonomia); PRRM – Alliance of Community Development Advocate (Aliança de Defensores do Desenvolvimento Comunitário); PRRM
(Movimento para a Reconstrução Rural das Filipinas); RDISK (Instituto de Desenvolvimento Rural de Sultan Kudarat); Remedios Aids Foundation; Research and Communication for Justice and Peace
(Pesquisa e Comunicação pela Justiça e Paz); Eletrificação Rural e Crédito na Sociedade Filipina (Reaps); Samapa (Samahang Manggagawa sa Pangkalusugan); Samapaco; Sarilaya; Save the Children Fund
U.K.; Silliman University; Sitmo – Save the Ifugao Terraces Movement (Movimento pela Salvação dos Terraços de Ifugao); Centro de Ação Social de Malaybalay Bukidnon; Tacdrup (Centro de Assistência
Técnica para o Desenvolvimento dos Pobres Rurais e Urbanos); Tambuyog Development Center (Centro de Desenvolvimento Tambuyog); Tanggol Kalikasan; Tarbilang Foundation; Tebtebba Foundation,
Inc.; TFDP (Força-Tarefa Detentos das Filipinas); The Asia Foundation (Fundação da Ásia); The Community Advocates of Cotabato (Defensores Comunitários de Cotabato); TWSC (Centro de Estudos do
Terceiro Mundo); U.S. (Save the Children); UKP (Ugnayan ng mga Kababaihan sa Pulitika); Ulap – Union of Local Authorities of the Philippines (União das Autoridades Locais das Filipinas); U-Lead! (União
por Liderança Nova); UP-Cids – UP Center for Integrative and Development Studies (Centro de Estudos Integrados e de Desenvolvimento); Urban Missionaries (Missionários Urbanos); WHCF – Women’s
Health Care Foundation (Fundação de Atendimento à Saúde das Mulheres); Womanhealth Philippines (Saúde da Mulher nas Filipinas); Women Alliance Movement for Peace and Progress (Movimento da
Aliança das Mulheres pela Paz e o Progresso); Young Moro Professionals (Jovens Profissionais de Moro) • Gana: Third World Network Africa (Rede do Terceiro Mundo África), contact@twnafrica.org;
Abantu for Development – Ghana (Abantu pelo Desenvolvimento – Gana); Centre for Democracy and Development (Centro pela Democracia e Desenvolvimento); Christian Council (Conselho Cristão); Civic
Response (Resposta Cívica); Consumers Association of Ghana (Associação de Consumidores de Gana); Friends of the Earth (Amigos da Terra); Gender Studies and Human Rights Documentation Centre
(Centro de Documentação de Estudos de Gênero e Direitos Humanos); General Agricultural Workers Union (Sindicato Geral de Trabalhadores Agrícolas); Ghana Association of the Blind (Associação de
Cegos de Gana); Ghana National Association of Teachers (Associação Nacional de Professores de Gana); Ghana Registered Nurses Association (Associação de Enfermeiros Registrados de Gana);
Integrated Social Development Centre (Centro para o Desenvolvimento Social Integrado); Islamic Council (Conselho Islâmico); National Union of Ghana Students (União Nacional dos Estudantes de Gana);
Network for Women’s Rights (Rede de Direitos da Mulher); Save the Children Ghana (Salvem as Crianças – Gana); Trades Union Congress (Congresso dos Sindicatos); University of Ghana Students
Representative Council (Conselho de Representantes dos Estudantes da Universidade de Gana) • Guatemala: Iniap (Instituto de Pesquisa e Autoformação Política), iniap@intelnet.net.gt; Coordenação
“Sim, Vamos Pela Paz”; Comitê Pequim • Holanda: NCDO (Comitê Nacional pela Cooperação Internacional e o Desenvolvimento Sustentável), a.roerink@ncdo.nl; Novib/Oxfam Netherlands • Honduras:
CEM-H (Centro de Estudos da Mulher – Honduras), cemh@cablecolor.hn; Cehprodec (Centro Hondurenho de Promoção do Desenvolvimento Comunitário); Iniciativa da Marcha Mundial das Mulheres
– Seção de Honduras • Iêmen: Yemen NGOs for Children’s Rights (ONGs do Iêmen pelos Direitos das Crianças), fouziaabdallah@yahoo.com • Índia: Cysd (Centro para a Juventude e o Desenvolvimento
Social), cysdbbsr@vsnl.net; Ncas (Centro Nacional de Estudos Jurídicos); Samarthan • Indonésia: PPSW (Centro de Desenvolvimento de Recursos para a Mulher), ppsw@cbn.net.id; Asppuk –
Association for Women in Small Business Assistance (Associação para a Assistência às Mulheres de Pequenas Empresas) • Iraque: Iraqi Al-Amal Association (Associação Iraquiana El-Amal), baghdad@iraqi-
alamal.org • Itália: Unimondo, jason.nardi@unimondo.org; Acli (Associação Católica de Trabalhadores Italianos); Arci (Associação Recreativa e Cultural Italiana); Fundação Cultural Responsabilidade
Ética; ManiTese; Movimondo; Sbilanciamoci • Japão: Parc – Pacific Asia Resource Center (Centro de Recursos do Pacífico Asiático), office@parc-jp.org • Jordânia: Jordanian Women’s Union (União
de Mulheres Jordanianas), jwu@go.com.jo; Women Organization to Combat Illiteracy in Jordan (Organização de Mulheres para Combater o Analfabetismo na Jordânia) • Líbano: Annd (Rede de ONGs
Árabes para o Desenvolvimento), annd@annd.org; Coordination of the NGOs working in the Palestinian communities in Lebanon (Coordenação de ONGs que Trabalham na Comunidade Palestina no
Líbano); Lebanese Development Forum (Fórum de Desenvolvimento Libanês); Movement Social (Movimento Social) • Malásia: Consumers’ Association of Penang (Associação de Consumidores de
Penang), meenaco@pd.jaring.my; Cini Smallholders’ Network (Rede de Pequenos Proprietários de Cini); Penang Inshore Fishermen Welfare Association (Associação pelo Bem-estar dos Pescadores
Costeiros de Penang); Sahabat Alam Malaysia (Friends of the Earth, Malaysia); Teras Pengupayaan Melayu; Third World Network (Rede do Terceiro Mundo) • Marrocos: Espace Associatif (Espaço
Associativo), espasso@iam.net.ma • México: Equipo Pueblo, pueblodip@equipopueblo.org.mx; Espaço de Coordenação das Organizações Civis sobre os Desc; Deca Equipo Pueblo; Centro de
Reflexão e Ação Trabalhista; Seção Mexicana de Fian, Casa e Cidade, membro da Coalizão Habitat México; Escritório Regional para a América Latina e o Caribe da Coalizão Internacional do Habitat; Centro
de Direitos Humanos Miguel Agustín Pro-Juárez; Centro de Estudos Sociais e Culturais Antonio de Montesinos; Comissão Mexicana de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos; Defensoria do Direito
à Saúde; Cátedra Unesco de Direitos Humanos (Unam), Liga Mexicana pela Defesa dos Direitos Humanos; Centro de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais; Centro de Análise e Pesquisa
Fundar • Mianmar: Burma Lawyers Council (Conselho dos Advogados de Mianmar), aunghtoo@access.inet.co.th, blcms@cscoms.com • Nepal: Rural Reconstruction Nepal-RRN (Reconstrução
Rural do Nepal), rrn@rrn.org.np; All Nepal Peasant Association (Associação de Camponeses de Todo o Nepal); Alliance for Human Rights and Social Justice (Aliança pelos Direitos Humanos e Justiça
Social); Child Worker Concern; Centre Nepal: General Federation of Nepalese Trade Union (Centro Nepal: Federação Geral dos Sindicatos Nepaleses); Informal Sector Service Centre (Centro de Serviços do
Setor Informal); NGO Federation of Nepal (Federação de ONGs do Nepal) • Nicarágua: CCER (Coordenação Civil para a Emergência e a Reconstrução), ccer@ccer.org.ni • Nigéria: SRI – Socio Economic
Rights Initiative (Iniciativa pelos Direitos Socioeconomicos), s_watchngr@yahoo.com; Center for Human Rights and Development (Centro de Direitos Humanos e Desenvolvimento); Civil Resources
Concern; CP – Concerned Professionals (Profissionais Conscientes); Development Support Initiative (Iniciativa de Apoio ao Desenvolvimento); Devnet; Gender & Human Rights/Social Watch – Nigeria
(Gênero e Direitos Humanos/Social Watch – Nigéria); Ledap – Legal Defence and Assistance Project (Projeto de Defesa e Assistência Jurídica); Legislative and Leadership Project (Projeto Legislativo e de
Liderança); Nigerian Habitat Coalition (Coalizão Nigeriana do Habitat); Peoples’ Rights Organization (Organização dos Direitos dos Povos); Project Alert for Women’s Rights (Projeto Alerta pelos Direitos
da Mulher); Rural Women Empowerment Network (Rede de Empoderamento das Mulheres Rurais); Ruwen – Rural Women of Nigeria (Mulheres Rurais da Nigéria); South East Budget Network (Rede de
Orçamento do Sudeste); Transition Monitoring Group (Grupo de Monitoramento da Transição), Lagos State Branch; Uyo Youths Foundation (Fundação de Jovens de Uyo) • Palestina: Bisan Center for
Research and Development (Centro Bisan de Pesquisa e Desenvolvimento), bisanrd@palnet.com; Palestinian Non-Governmental Organisations’ Network – PNGO (Rede de ONGs Palestinas), composta
de mais de 95 ONGs • Panamá: Fundação para o Desenvolvimento da Liberdade Cidadã, seção panamenha da Transparência Internacional, tipanama@cableonda.net; Ceaspa (Centro de Estudos
e Ação Social Panamenho) • Paquistão: Indus Development Foundation (Fundação de Desenvolvimento de Indus), qureshiaijaz@hotmail.com • Paraguai: Decidamos, direccion@decidamos.org.py;
Base-Ecta (Educação, Comunicação e Tecnologia Alternativa); CDE (Centro de Documentação e Estudos); Cepag (Centro de Estudos Paraguaios Antonio Guasch); Equipe de Educação em D. H.; Fé e
Alegria Movimento de Educação Popular Integral; Ñemonguetara Programa de Educação e Comunicação Popular; Presencia Projeto de Formação e Capacitação da Mulher para a Vida Cívica; Seas – AR
(Serviço de Educação e Apoio Social); Sedupo (Serviço de Educação Popular); Serpaj – PY (Serviço Paz e Justiça do Paraguai); Tarea • Peru: Conades (Comitê de Iniciativa; Grupo de Ação Internacional),
hecbejar@yahoo.com; Ceas (Comissão Episcopal de Ação Social); Cedep (Centro de Estudos para o Desenvolvimento e Participação); Rede Jubileu 2000; Plataforma Interamericana de Direitos
Humanos, Comitê Peru; Grupo Gênero e Economia; Grupo de Economia Solidária e Associação Nacional de Centros • Portugal: Oikos, sec.geral@oikos.pt • Quênia: Social Development Network
(Rede para o Desenvolvimento Social), sodnet@sodnet.or.ke; Action Aid Kenya; Beacon; CGD (Centro de Governança e Desenvolvimento); Coalition Forum on Justice (Fórum da Coalizão sobre a
Justiça); Daraja – Fórum de Iniciativas Cívicas; Econews Africa; Education Rights Forum (Fórum de Direitos Educacionais); Femnet (Rede de Comunicação de Mulheres Africanas); Kendren – Kenya
Debt Relief Network (Rede de Redução da Dívida do Quênia); Kenya Human Rights Commission (Comissão de Direitos Humanos do Quênia); Kenya Land Alliance (Aliança Queniana pela Terra); Kewwo
– Kenya Women Workers Organisation (Organização das Mulheres Trabalhadoras do Quênia); People Against Torture (Povo contra a Tortura); Public Law Institute (Instituto de Direito Público);
Release Political Prisoners (Soltem os Presos Políticos); Ujamaa Centre (Centro Ujamaa); Undugu Society (Sociedade Undugu) • Senegal: Enda Tiers-Monde, enda@enda.sn; Adesen – Association
Pour le Développement Économique Social Environnemental du Nord (Associação pelo Desenvolvimento Econômico, Social e Ambiental do Norte) • Síria: Environmental Tourism Culture Centre –
ETCC (Centro de Cultura do Turismo Ambiental), issamkh@hotmail.com • Sri Lanka: Monlar – Movement for National Land and Agricultural Reform (Movimento pela Reforma Agrária e Agrícola
Nacional), monlar@sltnet.lk • Sudão: National Civic Forum (Fórum Cívico Nacional), h_abdelati@hotmail.com • Suíça: Swiss Coalition of Development Organisations/Coalizão Suíça de
Organizações de Desenvolvimento (Bread for All, Caritas, Catholic Lenten Fund, Helvetas, Interchurch Aid, Swissaid), mail@swisscoalition.ch • Suriname: Stichting Ultimate Purpose,
maggiesc@yahoo.com; Cafra Suriname (National Department of Caribbean Association for Feminist Research and Action/Departamento Nacional da Associação Caribenha pela Pesquisa e Ação
Feminista) • Tailândia: Focus on the Global South (Foco no Sul Global), Tailândia, ranee@focusweb.org; Arom Pongpangan Foundation (Fundação Arom Pongpangan); Center for Social
Development Studies (Centro de Estudos sobre o Desenvolvimento Social); Chulalongkorn University Social Research Institute (Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Chulalongkorn);
Foundation for Children’s Development (Fundação para o Desenvolvimento da Criança); Foundation for Women (Fundação para as Mulheres); Frontiers for the Advancement of Women (Fronteiras
para o Progresso das Mulheres); Political Economy Center (Centro de Economia Política); Thai Development Support Committee (Comitê de Apoio ao Desenvolvimento Tailandês) • Tanzânia: WLAC
– Women’s Legal Aid Center (Centro de Assistência Jurídica da Mulher), wlac@raha.com; Afreda (Ação para a Assistência de Desenvolvimento Emergencial); Anistia Internacional (Tanzânia); APT
– Association for the Prevention of Torture (Associação para a Prevenção da Tortura); Center for Social Ethics (Centro de Ética Social); Chawata (Chama cha Walemavu Tanzania); CHRP (Centro para
a Promoção dos Direitos Humanos); Dolased; Envirocare – Environment, Human Rights Care and Gender Organization (Organização pelo Ambiente, Direitos Humanos e Gênero); Envirohuro –
Environment and Human Rights Organization (Organização do Ambiente e Direitos Humanos); Federation of Women Economists in Tanzânia (Federação das Economistas de Tanzânia); JET – The
Journalists’ Environmental Association of Tanzânia (Associação Ambiental dos Jornalistas da Tanzânia); Kagde – Kagera Group for Development (Grupo Kagera para o Desenvolvimento); Kiwahato
(Kikundi cha Haki za wanawake na Watoto); Kiwashe (Kituo cha Wasaidizi wa Sheria); Koshika Women Group (Grupo de Mulheres Koshika); Kuleana – Center for Children’s Rights (Centro dos Direitos
da Criança); Kwieco – Kilimanjaro Women Information Exchange and Consultancy Organization (Organização para o Intercâmbio de Informações e Consultoria das Mulheres de Kilimanjaro); LHRC –
Legal and Human Rights Center (Centro de Assistência Jurídica e Direitos Humanos); Mbezi Biogas and Environment Conservation (Conservação do Biogás e do Ambiente de Mbezi); Mwanza Women
Development Association (Associação pelo Desenvolvimento das Mulheres de Mwanza); NYF – National Youth Forum (Fórum Nacional da Juventude); TWG – Taaluma Women Group (Grupo de
Mulheres de Taaluma); Tahea – Tanzania Home Economic Association (Associação de Economia Doméstica de Tanzânia); Tahuret – Tanzania Human Rights Education Trust (Fundo para a Educação
de Direitos Humanos da Tanzânia); Tamwa – Tanzania Media Women Association (Associação de Mulheres da Mídia de Tanzânia); Tanga Paralegal Aid Scheme (Plano de Assistência Jurídica de Tanga);
Tango; Tanzania Human Rights Association (Associação de Direitos Humanos da Tanzânia); Tawla – Tanzania Women Lawyers Association (Associação de Advogadas da Tanzânia); Tawova – Tanzania
Women Volunteers Association (Associação de Voluntárias da Tanzânia); Tayoa – Tanzania Youth Association (Associação da Juventude da Tanzânia); TCRC – Tanzania Conflict Resolution Center
(Centro de Resolução de Conflitos de Tanzânia); TGNP; UNA – United Nations Association (Associação das Nações Unidas); Wamata (Walio katika Mapambano na Ukimwi Tanzania); WAT – Women
Advancement Trust (Fundo para o Progresso da Mulher); WiLDAF – Women in Law and Development in África (Mulheres na Lei e no Desenvolvimento na África); Women’s Research and Documentation
Project (Projeto de Pesquisa e Documentação da Mulher); Zahura – Zanzibar Human Rights Association (Associação de Direitos Humanos de Zanzibar) • Tunísia: LTDH – Tunisian League for Human
Rights (Liga Tunisiana de Direitos Humanos), sjourshi@lycos.com • Uganda: Deniva (Rede de Desenvolvimento da Associação Voluntária de Indígenas), deniva@utlonline.co.ug; Action Aid
Uganda; Africa 2000 Network (Rede África 2000); Centre for Basic Research (Centro de Pesquisa Básica); Fort Portal (Portal Fort); International Council on Social Welfare (Conselho Internacional do
Bem-estar Social); Kabarole Research Centre (Centro de Pesquisa Kabarole); MS Uganda; Nurru; Rural Initiatives Development Foundation (Fundação para o Desenvolvimento de Iniciativas Rurais);
Sodann – Soroti District Association of NGOs Network (Associação de Rede de ONGs do Distrito de Soroti); Tororo Civil Society Network (Rede da Sociedade Civil de Tororo); Uganda Debt Network
(Rede da Dívida de Uganda); Uganda Rural Development and Training Programme (Programa de Desenvolvimento Rural e Treinamento de Uganda) • União Européia: Eurostep (Solidariedade
Européia para a Participação Igualitária do Povo), sstocker@eurostep.org • Venezuela: Frente Continental de Mulheres; Comitê de Base “Juana Ramírez, la Avanzadora”; Rede Popular de Usuárias
do Banmujer • Vietnã: Gendcen (Centro de Estudos de Gênero, Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável), que@hn.vnn.vn; Vietnam Women’s Union (Sindicato de Mulheres do Vietnã),
vwunion@netnam.org.vn • Zâmbia: WFC – Women for Change (Mulheres pelas Mudanças), wfc@zamnet.zm

Observatório da Cidadania 2004 / 6


Sumário

Prefácio PANORAMA MUNDIAL


Por Fernanda Lopes de Carvalho
Angola
Apresentação A paz minada / 76
O custo da falta de ousadia
Por Roberto Bissio Argentina
Reconstrução depois da crise / 79

INFORMES TEMÁTICOS Canadá


Trocando segurança humana por equilíbrio fiscal / 82
Obstáculos à segurança humana / 14
Análise dos informes nacionais do Observatório da Cidadania 2004 Coréia do Sul
Por Karina Batthyány Suicídios, dívidas, catástrofes naturais e ameaças de guerra / 86

Insegurança, governança global e democracia / 18 Holanda


Por Gustavo Marin Mais rica do que nunca – e menos solidária / 89

Evasão fiscal: bilhões desviados do desenvolvimento / 21 Índia


Por Bruno Gurtner O abandono do Estado / 92

Países árabes: entre a segurança nacional e a segurança humana / 24 Iraque


Por Ziad Abdel Samad Sob fogo cruzado / 95

Interesses comerciais, políticos e religiosos no caminho dos direitos México


humanos / 28 Rompendo o círculo vicioso / 100
Por Magaly Pazello Nigéria
A ameaça aos consensos do Cairo / 32 Violações generalizadas / 104
Por Sonia Corrêa Palestina
Aids: saúde pública ou assassinatos em massa? / 35 O muro das privações / 107
Por Carlos André F. Passarelli Peru
Rumo a novo pacto fundacional / 111
PANORAMA BRASILEIRO Uganda
(In)segurança humana e democracia no Brasil / 40 Crise esquecida, danos irreversíveis / 114
Por Lúcia Avelar

Criminalidade e respostas brasileiras à violência / 45


Por Silvia Ramos e Julita Lemgruber Fontes e recursos internacionais de informação / 116
Uma vida sem violência: o desafio das mulheres / 53 Grupo de Referência – Brasil / 124
Por Leila Linhares Barsted Fontes nacionais de informação / 125
Segurança, seguridade e direito: as diferentes faces da questão
alimentar e nutricional / 61
Por Luciene Burlandy e Rosana Magalhães

Universalizando direitos / 67
Por Lena Lavinas

Observatório da Cidadania 2004 / 7


PREFÁCIO

O Observatório da Cidadania dedica sua oitava edição a um tema segurança contra a violência física. Essa noção inclui as
cada vez mais importante: segurança. O aumento das tensões em possibilidades de sobrevivência digna do ser humano, nas suas
quase todo o planeta nos últimos anos – em particular em torno múltiplas dimensões: segurança contra agressão armada, contra
da dialética infernal que opõe a intensificação de atividades as incertezas econômicas, contra as arbitrariedades de toda
terroristas ao unilateralismo imperial alimentado pelo governo de ordem, contra a privação de oportunidades por motivos de
George W. Bush, mas também com o acirramento dos conflitos no natureza racial, de gênero, de renda etc.
Oriente Médio, na África, na Ásia e nas repúblicas que
compunham a antiga União Soviética, além de outros conflitos As últimas décadas têm indicado um agravamento da
localizados, como no Haiti – pode ser sentido pelo número de insegurança em várias dimensões. O rápido crescimento
convocações feitas à Organização das Nações Unidas (ONU) para econômico dos Estados Unidos na década de 1990, sob o
o envio de tropas pacificadoras a vários países. governo de Bill Clinton, por exemplo, deu-se em condições de
acentuada piora na distribuição de renda. Além disso, reformas
O crescimento da sensação de insegurança em praticamente no sistema de seguridade social abriram novas ameaças às
todos os quadrantes não pode ser restrito à contagem de pessoas de mais baixa renda naquele país. George W. Bush
tensões de natureza militar, ainda que estas sejam as mais trouxe consigo a recessão, o crescimento do desemprego, a
visíveis. O avanço da chamada globalização liberal e a redução dos impostos dos mais ricos e um posicionamento
incapacidade mostrada por governos nominalmente internacional inédito, de natureza unilateral, cujos custos para o
progressistas em apresentar alternativas concretas a esse próprio país se revelam na incapacidade de seu governo em
modelo têm contribuído fortemente para o agravamento de mobilizar qualquer apoio internacional à sua ocupação do Iraque,
outras formas de insegurança, que, se não são exatamente além da participação simbólica e semiclandestina de alguns
novas, assumem formas e graus de intensidade que muitas países de pouca expressão política.
pessoas julgavam impossíveis.
Poucas vezes, na história recente, uma eleição mobilizou tanta
Entre essas formas de insegurança, saltam à vista as resultantes atenção mundial quanto a de 2004, para a presidência dos
das iniciativas de demolição, em vários países, dos sistemas de Estados Unidos. Enquanto finalizávamos esta edição, a mídia
segurança social criadas ao longo do século passado, como o internacional divulgava repetidas pesquisas de opinião nas quais
assalto aos direitos de trabalhadores e trabalhadoras, por meio praticamente o mundo todo mostrava sua rejeição à política
das reformas trabalhistas, que nada mais são do que a unilateralista estadunidense.
eliminação dos direitos à estabilidade no emprego, das férias
remuneradas, da organização sindical autônoma e da negociação No caso brasileiro, porém, não é a insegurança ante uma
coletiva com as empresas, entre outros. agressão externa armada que se apresenta na ordem do dia.
Aqui, as inquietações são de outra natureza. Nos nossos grandes
À insegurança do emprego e da renda, sempre muito maior em centros, a degradação da situação no que diz respeito à
países de precárias instituições como o Brasil, somam-se outras segurança pública pode ser vista quase como uma guerra civil de
fontes de insegurança, conhecidas pelo menos de parte baixa intensidade. Mas no Brasil é, antes de mais nada, a
significativa da população. O preconceito racial, por exemplo, insegurança de renda e de trabalho que se destacam como
que torna a pele negra um alvo preferencial da violência, preocupações da maioria das pessoas. A herança de quase um
especialmente a de jovens, gera situações de insegurança quarto de século de estagnação econômica e de adoção de
claramente ilustradas pelas informações sobre vítimas de morte políticas liberais se mostra pesada e preocupante. Oscila-se
violenta. Mas a insegurança também se manifesta na alta entre o desemprego e a oferta de empregos de baixa qualidade,
probabilidade de pessoas afrodescendentes ganharem sempre baixa remuneração e durabilidade duvidosa. A produção mal tem
menos que as pessoas brancas, por trabalho idêntico, mesmo tempo de reagir a surtos passageiros de ativação da demanda,
quando igualmente qualificadas, ou de enfrentarem primeiro o em geral abortados por crises externas, em um padrão que se
desemprego, quando a economia se retrai. repete desde o fim da década de 1980.
Outra dimensão essencial da insegurança diz respeito às A ação do Estado é limitada pelos pesados compromissos
próprias condições de vida. Ampla camada da população carece financeiros acumulados durante o período. O predomínio de
de condições de saúde e moradia que possibilitem uma vida interesses de grupos financeiros na formulação de políticas
digna e segura. Ou não tem acesso a uma educação de econômicas se mostra na prioridade dada aos compromissos
qualidade que ofereça proteção contra a obsolescência de sua com esses setores, na manutenção de taxas de juros muito
qualificação para o trabalho, num ambiente onde as condições elevadas e na redução da capacidade de gasto público em favor
de produção mudam rápida e constantemente. da priorização dos pagamentos de juros sobre a dívida pública.
Assim, os conceitos de segurança e insegurança que inspiram Neste quadro de insegurança em que vive o país há tantos anos,
esta edição do Observatório da Cidadania têm a ver com a a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, trouxe
segurança humana, uma noção multifacetada, que vai além da novas esperanças, que podem talvez ser consideradas

Observatório da Cidadania 2003 / 9


exageradas. O governo parece se debater em meio a um dilema negros. Destacam as transformações nas concepções das
entre seus próprios desejos de mudança e a submissão de sua políticas de segurança pública e as mobilizações de grupo de
política econômica a interesses contrários a qualquer mudança. As jovens de favelas e periferias, provocando mudanças culturais e
políticas sociais, não obstante os problemas que recebem sempre buscando criar alternativas ao tráfico.
ampla divulgação, vêm sendo implementadas e ampliadas. Porém,
medidas que impliquem mudanças estruturais, de longo prazo, na O tema da violência é retomado por Leila Linhares, mas da
redução das desigualdades sociais e na desconcentração da renda perspectiva da violência de gênero, que não tem sido devidamente
ainda afligem o país, e a imensa maioria dos seus cidadãos e considerada quando se trata de segurança humana. Para a autora,
cidadãs enfrenta dificuldade na discussão política no Congresso e essas concepções utilizam, em geral, experiências masculinas
em outras esferas, às vezes até mesmo no interior do próprio como parâmetros, enquanto as mulheres sofrem a violência tanto
governo. As indicações, contudo, são de que a cidadania ainda no espaço público como no privado, cerceando seu protagonismo
espera por avanços mais significativos. social. A situação é ainda mais dramática para mulheres negras,
que enfrentam preconceitos de gênero e de raça.
Os informes temáticos, que compõem a primeira parte deste
volume, iniciam-se com uma análise, de Karina Batthyány, dos No governo Lula, a questão alimentar e nutricional foi definida
principais obstáculos às várias dimensões da segurança humana como tema prioritário. O trabalho de Luciene Burlandy e Rosana
relatadas nos informes de 50 países, sendo os obstáculos mais Magalhães mostra como a questão alimentar e nutricional tem
citados a pobreza e as desigualdades sociais. Os artigos diferentes enfoques: seguridade social, segurança alimentar,
seguintes buscam identificar os constrangimentos, no cenário segurança humana e direito humano à alimentação. Cada
internacional. Gustavo Marin indaga sobre as causas da atual enfoque conduz, na prática, a diferentes propostas de
insegurança global e os caminhos para uma globalização institucionalidades – sistema de seguridade social, sistema de
socialmente consciente e democrática. Magaly Pazello busca segurança alimentar e nutricional ou uma plataforma de direito
demonstrar como as negociações comerciais internacionais têm humano à alimentação. Mas concluem que, somente pela
colocado em risco os direitos humanos. Estes e em particular os complementação dessas várias dimensões, será possível superar
direitos reprodutivos e sexuais também sofreram o ataque de os impasses e dilemas para o desenvolvimento de uma política
uma aliança conservadora (Vaticano, países islâmicos e Estados nacional de segurança alimentar e nutricional.
Unidos) durante o processo de revisão da conferência do Cairo Na contramão do que vem sendo freqüentemente afirmado, Lena
analisado por Sonia Corrêa. Carlos Passarelli apresenta uma Lavinas defende que as políticas universais não são
discussão sobre a epidemia de Aids no mundo e a necessidade necessariamente regressivas, mas, ao contrário, podem impactar
de a sociedade global enfrentar o conflito entre interesses positivamente a redistribuição de renda. Nesse sentido, propõe
privados (direitos de propriedade intelectual) e saúde pública um modelo de transição dos programas de renda mínima,
(defesa dos direitos fundamentais do ser humano). focalizados nas pessoas mais pobres, para uma política de renda
A urgência no estabelecimento de mecanismos globais para básica de cunho universal, aliás já prevista na Lei 10.835,
coibir a transferência de recursos dos países pobres para os sancionada em janeiro de 2004.
ricos, por meio da evasão fiscal, é discutida por Bruno Gutner. As entidades do grupo de referência1 do Observatório da
Ziad Abdel Samad analisa o impacto da invasão do Iraque nos Cidadania/Social Watch no Brasil, ponto focal da rede
países árabes e a interconexão das questões de segurança internacional Social Watch, esperam que as provocações e
nacional e de segurança humana, além do papel das variadas análises deste relatório contribuam para estimular os
organizações da sociedade civil nas necessárias transformações debates e as iniciativas da sociedade civil no enfrentamento dos
das políticas institucionais e de valores na região. obstáculos à construção de um outro mundo com justiça social,
No Panorama Brasileiro, Lúcia Avelar considera o igualdade e universalização dos direitos humanos.
desapontamento da população com a democracia, com a
incapacidade do Estado na promoção do desenvolvimento com Fernanda Lopes de Carvalho
redistribuição de renda e no combate à corrupção e à violência.
Analisa a forma clientelística tradicional de intermediação entre
Estado e sociedade, que considera especialmente danosa ao
regime democrático e sugere o remédio: mais democracia. Para
tal, o desafio brasileiro é a construção de instituições
independentes e autônomas, eficientes e centradas no caráter
social do compromisso democrático. 1 Grupo de Referência do Observatório da Cidadania no Brasil: Centro Feminista de
Estudos e Assessoria (Cfemea); Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da
Silvia Ramos e Julita Lemgruber analisam o aprofundamento da Universidade Cândido Mendes (Cesec/Ucam); Criola; Federação de Órgãos para
violência nas grandes cidades que atinge desproporcionalmente Assistência Social e Educacional (Fase); Instituto Brasileiro de Análises Sociais e
as comunidades mais pobres, particularmente os jovens e Econômicas (Ibase); Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e Rede Dawn.

Observatório da Cidadania 2004 / 10


Apresentação

O custo da falta de ousadia

É impossível dar respostas definitivas, sem controvérsias, a globais e o financiamento de programas de desenvolvimento.
perguntas hipotéticas sobre os acontecimentos atuais. No entanto, “Destinamos cerca de US$ 50 bilhões para gastos com o
grande parte do debate internacional atual está centrado justamente desenvolvimento e US$ 1 trilhão para despesas militares; acho que há
numa questão deste tipo: o mundo é um lugar melhor sem Saddam um desequilíbrio”, disse ele. Outras vozes têm apontado conseqüências
Hussein no poder? A pergunta leva inevitavelmente a outra: o mundo ainda piores: vítimas civis diretas, violações dos direitos humanos em
não estaria melhor se o dinheiro e o esforço investidos na guerra grande escala, crescente xenofobia e desrespeito às leis internacionais.
no Iraque tivessem sido destinados a outros fins, por exemplo,
para ajudar as pessoas pobres?1 Ainda é muito cedo para avaliar a extensão dos danos causados por
conflitos que mataram milhões de pessoas a um sistema legal e
É difícil acrescentar algo novo à quantidade enorme de institucional internacional, com a Organização das Nações Unidas (ONU)
informações e comentários que já circulam sobre esses assuntos. em seu centro, construído cuidadosamente ao longo de décadas. No
Porém, é justamente o que este relatório do Social Watch / entanto, está claro que a desconfiança do público na palavra
Observatório da Cidadania faz, ao iluminar essas questões de outro daqueles(as) que o lideram não contribui para fortalecer a democracia.
ângulo – o das organizações populares de todo o mundo que
estão na linha de frente da batalha contra a pobreza e a Quando os governos fazem promessas, uma parte substancial da
discriminação. Quando prevalece a lógica da guerra, a voz de civis opinião pública tende a mostrar-se cética. Afinal, há cinco séculos,
é silenciada, seus sofrimentos são ignorados e até mesmo suas Nicolau Maquiavel, fundador do que hoje é conhecido como “ciência
mortes deixam de ser contabilizadas. política”, justificou essa incredulidade ao afirmar que “um príncipe
nunca carece de razões legítimas para quebrar suas promessas”.
A análise da situação do Iraque apresentada neste relatório foi fornecida Por outro lado, o colunista estadunidense Herbert Agar, ganhador
pela Associação Al-Amal, a única ONG nacional ativa no país. A Al- do Prêmio Pulitzer, atribuiu enorme valor às promessas feitas durante
Amal, antiga integrante da coalizão internacional do Social Watch, já os tempos difíceis da Grande Depressão: “A civilização está baseada
dava informações de dentro do Iraque muito antes da guerra, com numa série de promessas; se elas são quebradas com demasiada
uma visão crítica tanto do regime de Saddam como das ameaças dos freqüência, a civilização morre, não importando o grau de sua riqueza
Estados Unidos contra aquele regime. Com independência e coragem ou avanço tecnológico. A esperança e a fé dependem das promessas;
similares, organizações da sociedade civil da Colômbia2 denunciam se a esperança e a fé desaparecem, tudo desaparece”.
os excessos do governo e da oposição armada na guerra civil de
décadas que assola o país, enquanto o Peru dá um exemplo dramático Presidentes e primeiros(as)-ministros(as) de quase todos os países
de como o terrorismo e o terrorismo de Estado se combinam para independentes do mundo fizeram uma grande promessa no ano
converter pobres e indígenas em vítimas silenciosas e ignoradas de 2000: erradicar a pobreza da face da Terra em uma geração.
uma “guerra suja”. Os meios de comunicação internacionais e nacionais O Social Watch foi criado em 1995 justamente para relembrar aos
cobriram amplamente essa “guerra contra o terrorismo”. Como foi governos os compromissos assumidos de dar prioridade à eqüidade
possível que o genocídio contra a população indígena tenha passado entre os gêneros e à erradicação da pobreza nas suas agendas
despercebido? Essa é a pergunta feita pela sociedade peruana, num nacionais e internacionais. Desde então, coalizões de cidadãos e
exercício saudável para evitar a repetição de tais erros. cidadãs de cerca de 50 países de todos os continentes informam
Da mesma forma, milhares de pessoas morrem diariamente no todos os anos sobre suas conclusões. Nunca essa tarefa parecera
mundo de causas facilmente evitáveis,3 sem que isso vire notícia tão necessária e, ao mesmo tempo, tão difícil de realizar.
na mídia. O mundo se perguntará em alguns anos – como o faz o Por esses motivos, no lugar de pedir que as coalizões nacionais do
povo peruano agora: por que ninguém tomou as decisões para Social Watch concentrassem sua pesquisa para este relatório numa
evitar essas mortes? Se for assim, nenhuma pessoa que governa das numerosas metas de desenvolvimento acordadas pela comunidade
um país poderá alegar não ter sido advertida. internacional,4 a questão que lhes apresentamos foi a seguinte: “Quais
Numa entrevista recente à Australian Broadcasting Corporation, o são os principais obstáculos à segurança humana em seu país?”.
presidente do Banco Mundial, James Wolfensohn, reclamava da enorme A grande variedade de respostas a essa questão constitui a essência
desigualdade entre os gastos governamentais com despesas militares deste relatório.5 Certamente, a segurança inclui a ausência de medo,
porém as pessoas temem a guerra, o terrorismo, o conflito civil,

1 Ver, neste relatório, o artigo de Ziad Abdel Samad para uma perspectiva regional
da relação entre “segurança” e “segurança humana” no Oriente Médio.
2 Alguns informes de países estão disponíveis apenas no CD-ROM que acompanha 4 Por exemplo, relatórios anteriores do Social Watch estavam concentrados na educação,
esta publicação. na pobreza ou em serviços sociais essenciais.
3 Ver, neste relatório, o artigo de Carlos André F. Passarelli para uma análise em 5 Para uma análise dos problemas comuns e diferentes refletidos nos relatórios
profundidade dessa situação em relação à pandemia do HIV/Aids. nacionais, ver o artigo de Karina Batthyány.

Observatório da Cidadania 2004 / 11


o crime e a violência doméstica. Esses temores não podem ser Não basta classificar como insuficiente o desempenho mundial; devem-
dissociados do medo do desemprego, da doença, da pobreza, da se identificar responsabilidades concretas em todos os níveis. O Fundo
exclusão e da discriminação. Em alguns casos, as pessoas temem Monetário Internacional (FMI) com freqüência obriga governos que
as próprias instituições que deveriam garantir a sua segurança. Em não aplicam o suficiente em saúde ou educação a fazer generosos
outros, os mesmos desequilíbrios nas prioridades, assinalados por pagamentos a credores estrangeiros ou mesmo a deixar ociosos
Wolfensohn em escala global, ocorrem em escala nacional. Muito se recursos preciosos nas caixas-fortes dos bancos a título de reservas,
fala, mas pouco se faz sobre as Metas de Desenvolvimento do Milênio para prevenir o tipo de instabilidade gerada pelas políticas econômicas
(MDMs), que estabeleceram objetivos globais para reduzir a pobreza recomendadas pelo próprio Fundo. O Banco Mundial somente
e promover a eqüidade entre os gêneros antes de 2015. O Banco desembolsa créditos para pobres se seus governos adotarem políticas
Mundial, presidido por Wolfensohn, embora esteja teoricamente comerciais que geram desemprego urbano e levam pequenos(as)
comprometido com a luta contra a pobreza e com as MDMs, na agricultores(as) à falência, ou se serviços essenciais destinados a
realidade aloca seus fundos de acordo com um sistema secreto que pobres forem transformados em empreendimentos lucrativos.
promove políticas de efeito contrário.
Nenhuma das promessas de uma “rodada de desenvolvimento” de
As MDMs não deveriam ser somente uma oportunidade para as negociações comerciais foi cumprida, e, na Organização Mundial do
instituições de desenvolvimento, como o Banco Mundial, captarem Comércio (OMC), os países desenvolvidos bloqueiam todas as
mais recursos de países doadores relutantes, mas um ponto de tentativas de reformar o injusto sistema comercial vigente, de forma
referência para medir políticas públicas e resultados. A finalidade que viesse a beneficiar os países em desenvolvimento. Além disso,
essencial de chegar a um acordo sobre parâmetros de referência e os doadores utilizam a corrupção governamental em muitos países
indicadores é permitir ao público avaliar e monitorar o desempenho como desculpa para não conceder a Ajuda Oficial para o
de seus governos e das instituições internacionais que eles Desenvolvimento ou mesmo para reduzir essa ajuda. No entanto, as
controlam. Ao mesmo tempo, a exigência pública do cumprimento empresas que subornam funcionários e funcionárias desses governos
de promessas promove a vontade política para torná-las realidade. para que aceitem contratos abusivos nunca são responsabilizadas
nos países doadores, onde suas sedes estão localizadas.
É justamente para ajudar cidadãos e cidadãs de todo o mundo a
monitorar suas autoridades que o Social Watch complementa Há 2 mil anos, Sêneca escreveu: “Não é porque certas coisas são
anualmente as avaliações produzidas pelas plataformas nacionais difíceis que não ousamos; é justamente porque não ousamos que
com tabelas comparativas internacionais. tais coisas são difíceis”.
Índices, classificações e avaliações para cada uma das diferentes Nenhuma das medidas necessárias para resolver esses e outros
áreas do desenvolvimento social mostram a persistência de problemas é tecnicamente difícil ou politicamente inviável. De fato,
enormes desigualdades no mundo, com uma distância crescente a maioria – ou mesmo a totalidade – teria apoio político maciço em
entre pessoas ricas e pobres, assim como esforços substanciais toda parte. A falta de ousadia, a demora e a ausência de ação só
de muitos países em desenvolvimento para melhorar a situação de farão com que a humanidade não atinja as metas mínimas já
suas populações. Contudo, os compromissos assumidos pelas acordadas. A frustração das esperanças dos povos e nações de
nações mais ricas não foram cumpridos e está claro que, no ritmo todo o mundo certamente não ajudará a fazer do mundo um lugar
atual, não estarão cumpridos em 2015. mais seguro para nossos filhos e filhas.

Roberto Bissio
Coordenador do Social Watch

Observatório da Cidadania 2004 / 12


INFORMES TEMÁTICOS
Obstáculos à segurança humana
Análise dos informes nacionais do Observatório da Cidadania 20041

Os informes nacionais do Observatório da Cidadania oferecem uma série de argumentos e evidências sobre os
problemas e as dificuldades que põem em risco a segurança das pessoas nos diferentes países. As possíveis
ameaças correspondem a sete dimensões principais: econômica, alimentar, sanitária, pessoal, comunitária, cultural
(incluindo a dimensão de gênero) e política. A pobreza, sem dúvida, destaca-se nos informes como um dos
obstáculos centrais à segurança humana.

Karina Batthyány2 Pnud, a essência da insegurança humana militares e culturais) que dêem às pessoas
é a vulnerabilidade, e a pergunta que de- os elementos básicos de sobrevivência, dig-
A segurança é tema de um debate intenso vemos fazer é como proteger as pessoas, nidade e meios de vida.4
sobre as políticas que podem tornar o insistindo no seu envolvimento direto e
mundo e as sociedades mais seguras, uma no vínculo estreito entre desenvolvimen- Para além da defesa do território
discussão sobre os fatores que causam to e segurança. O conceito de segurança humana comple-
incerteza, medo e insegurança nas pessoas e Como ponto de partida, o Pnud iden- menta o conceito territorial de segurança do
nos Estados. Esse debate é complexo e tificava as seguintes dimensões da segu- Estado, pois diz respeito mais ao indivíduo e
envolve opiniões antagônicas – uma ex- rança: econômica, alimentar, sanitária, à comunidade do que ao Estado. Portanto,
pressão da diversidade do próprio mundo ambiental, pessoal, de gênero, comunitária pode ser estabelecida uma diferenciação clara
e um reflexo dos interesses e das posições e política. Poucos anos depois, governos entre as políticas de segurança nacional –
diferentes que têm os países e seus cen- como os do Japão, da Noruega e do Cana- centradas na integridade territorial de um
tros de decisão política. Nesse constante e dá adotaram um conjunto de idéias Estado e na liberdade de determinar sua for-
inevitável repensar global, o conceito de subjacentes a esse conceito para elaborar ma de governo – e o conceito de segurança
segurança humana pode ajudar a situar o suas políticas exteriores e preparar uma lis- humana, que tem como foco as pessoas e
debate num plano mais próximo ao que ta de temas concretos, como a proibição as comunidades, especialmente civis que
realmente exige o conjunto da humanida- das minas antipessoais, o controle de ar- estejam em situação de vulnerabilidade ex-
de, e não somente naquele que interessa mas leves, o repúdio ao recrutamento de trema, em conseqüência de guerras ou por
a uns poucos Estados e seus organismos crianças como soldados, a promoção do marginalização social e econômica. Os peri-
de segurança. direito internacional humanitário, o apoio gos para a segurança das pessoas incluem
O conceito de segurança humana sur- aos novos organismos de direitos huma- ameaças e condições que nem sempre eram
giu no contexto da pesquisa para a paz nos criados pela Organização das Nações vistas como tais para a segurança do Esta-
na década de 1980, em oposição ao con- Unidas (ONU), a assistência às pessoas re- do; e, o que é ainda mais importante, o cam-
ceito de “segurança nacional”, que pre- fugiadas, a participação em operações para po dos atores envolvidos foi ampliado,
dominou durante a Guerra Fria. Porém, a manutenção da paz etc. deixando de ser exclusivamente estatal. O
sua divulgação ampla em nível internacional Dessa forma, o conceito de segurança objetivo da segurança humana implica não
só ocorreu em 1994, quando o Programa humana vem evoluindo, e a discussão que somente a proteção das pessoas, mas tam-
das Nações Unidas para o Desenvolvimento gera é uma excelente oportunidade para re- bém seu empoderamentoNR, para que pos-
(Pnud) centrou seu Relatório de Desenvol- pensar os velhos esquemas de segurança sam enfrentar as situações por si mesmas.
vimento Humano nessa idéia. 3 Para o centrados nos aspectos militares e para iden-
tificar as necessidades do conjunto do pla-
neta em toda sua diversidade, aspectos que
praticamente não são considerados nas po-
1 Neste volume, encontram-se os informes dos líticas públicas gerais.
seguintes países: Angola, Argentina, Canadá, Coréia do De acordo com a definição da Comis- 4 Ver o relatório final da Comissão de Segurança
Sul, Holanda, Índia, Iraque, México, Nigéria, Palestina,
são de Segurança Humana, a expressão Humana. Disponível em: <www.humansecurity-chs.org/
Peru e Uganda. A edição completa, com todos os finalreport/outline_spanish.html>. Acesso em: 22 set.
países, está disponível no CD-ROM que acompanha significa proteger as liberdades vitais e as 2004.
esta publicação. pessoas expostas a ameaças e a certas si- NR
Na língua inglesa, o verbo empower significa “dar
2 Socióloga, pesquisadora em Ciências Sociais no tuações, reforçando seus aspectos fortes e poder”, “capacitar”, “habilitar”. Não há correspondên-
secretariado internacional do Social Watch. cia exata em português. Organizações da sociedade
suas aspirações, além de criar sistemas
3 PNUD. New dimensions of human security. Nova York: civil vêm usando o verbo “empoderar”, apesar de
Oxford University Press, 1994. (políticos, sociais, ambientais, econômicos, ainda não estar dicionarizado.

Observatório da Cidadania 2004 / 14


Pessoas da academia com renome in- promoção de políticas e ações que fortale- O paradigma do desenvolvimento hu-
ternacional, como o ganhador do Prêmio çam a segurança e o desenvolvimento dos mano vincula a segurança humana à eqüi-
Nobel de Economia, Amartya Sen, insis- seres humanos. dade, à sustentabilidade, ao crescimento e à
tem, há vários anos, na necessidade de A segurança humana é multidimensio- participação, ao possibilitar a verificação do
ser adotada essa nova perspectiva da se- nal e tenta definir as esferas políticas, eco- nível de segurança de vida alcançado pelas
gurança humana, como um instrumento nômicas, sociais, culturais e ambientais que pessoas numa sociedade e também ao in-
para repensar o futuro e o próprio desen- afetam a segurança das pessoas, além de terpretar as possibilidades e os desafios que
volvimento, que não se reduz ao cresci- identificar ameaças tradicionais e não-tradi- essa sociedade tem de superar para se apro-
mento da renda per capita , mas inclui a cionais à segurança. A segurança humana ximar de um desenvolvimento humano ple-
expansão das liberdades e da dignidade enfatiza a associação e o esforço conjunto, no e sustentável.
das pessoas. Sen defende a redefinição ou seja, o multilateralismo e a cooperação. O Nessa perspectiva, o que importa, em
das antigas instituições internacionais, cri- contexto internacional e os resultados da glo- termos de segurança, não é tanto que o
adas na década de 1940, e a elaboração balização modificaram a escala dos proble- Estado e a sociedade se preocupem em ga-
de uma agenda para as mudanças neces- mas, antes vistos exclusivamente numa rantir condições para a paz, em função de
sárias, onde estão incluídos acordos co- perspectiva nacional. Agora estamos con- ameaças externas, porém que garantam as
merciais, leis de patentes, iniciativas de frontados com uma nova ordem internacio- condições mínimas para que as pessoas se
saúde global, educação universal, disse- nal, na qual somente a capacidade de sintam seguras em suas sociedades.
minação tecnológica, políticas ambientais, interação pode fazer com que os Estados A segurança humana tem duas dimen-
dívida externa, gestão de conflitos, desar- recuperem sua capacidade de trabalhar com sões fundamentais: a primeira é a proteção
mamento etc. Em suma, uma agenda para outros atores e gerem um sistema capaz de diante de ameaças crônicas, como a fome,
viabilizar a segurança humana. atender às demandas nas instâncias nacio- as doenças e a repressão; a segunda é a
Os objetivos da segurança humana co- nal, regional e internacional. proteção diante de alterações súbitas e pre-
incidem também com o Programa de Ação judiciais na vida cotidiana, seja em casa, no
para uma Cultura de Paz e com a Declara- Paradigmas da segurança humana trabalho ou na comunidade. Tais ameaças
ção do Milênio, aprovados pela Assembléia Ao definir a segurança humana, o secre- podem ter impacto negativo em todos os
Geral da ONU em 1999 e 2000, respectiva- tário-geral da ONU, Kofi Annan, afirmou que níveis de renda e de desenvolvimento em
mente. Embora o conceito e o trabalho ini- esta noção, âmbito nacional.
cial tenham partido de círculos e governos O respeito aos direitos humanos cons-
em seu sentido mais amplo, envolve titui o núcleo de proteção da segurança
predominantemente ocidentais, desde o pri-
muito mais do que a ausência de confli- humana. A promoção dos princípios de-
meiro momento foi aberto o debate inter-
tos. Incorpora os temas: direitos huma- mocráticos é um passo para a consecução
nacional para integrar todos os matizes e
nos, boa governança, acesso à educação da segurança humana e do desenvolvimento,
as posições divergentes, próprios da di-
e à saúde, além de assegurar que cada pois permite que as pessoas participem das
versidade política e cultural do mundo. Por-
indivíduo tenha as oportunidades e a ca- estruturas de governança e sejam escutadas.
tanto, existe um debate acadêmico e político
pacidade de escolha necessárias para Para isso, é necessário criar instituições sólidas,
interessante que questiona se a segurança
desenvolver todo o seu potencial. Cada que estabeleçam o Estado de direito e dêem
humana deve estar centrada nos direitos
passo nessa direção é também um pas- poder às pessoas.
políticos de primeira geração ou se deve
so em direção à redução da pobreza, ao A segurança humana só é possível quan-
incluir, também, os direitos de segunda e
crescimento econômico e à prevenção do está baseada no desenvolvimento sus-
terceira geração, até mesmo o direito ao
de conflitos. A liberdade de não ter de tentável. Isso pressupõe segurança em níveis
desenvolvimento e à alimentação.
enfrentar privações e medo e a liberdade diferentes para toda a sociedade: contra os
Segurança humana é um conceito in-
de as gerações futuras herdarem um riscos e ameaças físicas, de renda, educativa,
clusivo. Surge na sociedade civil, como uma
ambiente natural e saudável são as di- habitacional, de saúde e ambiental.
tentativa de proteger as pessoas e suas co-
mensões que, de forma inter-relaciona-
munidades, para além da preocupação com
da, compõem a segurança humana e, A visão dos informes nacionais
a defesa do território e o poder militar. Está
portanto, a segurança nacional.5
baseada na noção de segurança da pes- Os informes nacionais do Observatório da
soa, com a compreensão de que tanto o Cidadania oferecem uma série de argumen-
Estado como os atores não-estatais e a tos e evidências sobre os problemas e as difi-
sociedade são responsáveis pelo desen- culdades que põem em risco a segurança das
5 Disponível em: <www.un.org/News/Press/docs/2000/
volvimento e devem estar envolvidos na 20000508.sgsm7382.doc.html>. Acesso em: 22 set. 2004. pessoas nos diferentes países. As possíveis

Observatório da Cidadania 2004 / 15


ameaças ou obstáculos correspondem a sete Pobreza e iniqüidade econômica cessárias políticas sociais que satisfaçam
dimensões principais: econômica, alimentar, Lamentavelmente, o tema da pobreza e de suas necessidades básicas e garantam ní-
sanitária, pessoal, comunitária, cultural (in- seus impactos sobre a deterioração das condi- veis econômicos e sociais mínimos. Três
cluindo a dimensão de gênero) e política – ções de vida de milhões de pessoas é recorren- quartos da população do mundo não des-
todas elas claramente aparentes nos dife- te nos informes dos países em desenvolvimento. frutam da proteção da seguridade social
rentes informes nacionais. Em vários paí- Sem dúvida, a pobreza se destaca como um ou não têm trabalho garantido.
ses, são observados os impactos da dos obstáculos centrais à segurança huma- Outro aspecto são os diferentes obstá-
pobreza, da exclusão econômica, das desi- na. A gravidade desse problema aparece de culos que têm suas raízes no gênero. É de
gualdades sociais e da insegurança alimen- forma eloqüente nos informes de países importância vital a possibilidade de as mu-
tar como os maiores e mais comuns como: Argélia, Bangladesh, Bolívia, Colôm- lheres terem acesso à posse e/ou proprie-
obstáculos à segurança humana. bia, El Salvador, Guatemala, Quênia, Nepal, dade da terra, crédito, educação e habitação,
Embora não se pretenda realizar uma Nigéria, Panamá, Uganda, entre outros. especialmente as que vivem na pobreza.
análise regional no sentido estrito, podem- A pobreza está relacionada estreitamen- A distribuição eqüitativa dos recursos é
se identificar claramente problemáticas dis- te a outros obstáculos. O informe da Argélia percebida como fundamental para garantir
tintas de acordo com as diferentes regiões cita a pobreza disseminada e crescente, os os meios de vida, assim como as medidas
ou com as diferentes posições dos países atentados terroristas freqüentes e os desas- de proteção social e as redes de segurança
no contexto internacional. Fica claro, por tres naturais. No Quênia, a pobreza e o crime podem contribuir para estabelecer níveis
exemplo, que nos países industrializados o organizado são os obstáculos centrais. No sociais e econômicos mínimos entre setores
principal obstáculo à segurança humana Panamá, a pobreza afeta 40% da população, mais vulneráveis.
está associado à dimensão econômica, em o que torna a luta contra essa situação – na
virtude da ausência de parâmetros eqüitati- tentativa de assegurar que a população Segurança na saúde
vos na distribuição dos benefícios sociais e receba os serviços mínimos necessários – Outro tema que aparece com destaque es-
na provisão de acesso aos serviços bási- o maior desafio à segurança humana, especi- pecial é a segurança na saúde, ou seja, a
cos para todos setores da sociedade. Os almente na zona rural. Na Colômbia, não será saúde como elemento da segurança huma-
elementos principais mencionados são: possível garantir o gozo de uma segurança na. Apesar dos avanços alcançados no aten-
recessão, pouco crescimento, crise econô- humana plena enquanto a guerra, a pobreza e dimento à saúde, mais de 20 milhões de
mica e deterioração da qualidade e das con- a desigualdade continuarem aumentando. pessoas morreram no último ano em virtu-
dições de vida da população. Condições associadas à pobreza, como de de enfermidades que poderiam ter sido
A esse respeito, os informes de Portu- problemas de desemprego e iniqüidade eco- evitadas. A saúde é um componente essen-
gal, Suíça, Holanda e Alemanha são bem nômica, são também obstáculos citados, cial porque a base da segurança é proteger
ilustrativos. O informe de Portugal apre- como no caso da Bolívia e de El Salvador. O a vida humana, e a boa saúde é uma condi-
senta a deterioração das condições de vida funcionamento adequado dos mercados e ção prévia para a estabilidade social.
da população por causa da crise econômi- o estabelecimento de instituições fora des- Nos informes, foram identificados três
ca, assim como um sentimento crescente tes são aspectos cruciais na erradicação da grandes problemas de saúde vinculados es-
de insegurança pessoal. O informe da Suí- pobreza. Vários informes consideram essen- treitamente à segurança humana: as doen-
ça esclarece o crescimento medíocre de sua ciais a distribuição justa da riqueza e o cres- ças infecciosas, as ameaças sanitárias
economia desde o início da década de 1990 cimento econômico que beneficie as pessoas relacionadas à pobreza e os riscos à saúde
e os impactos dos cortes de impostos, que vivendo em situação de pobreza extrema. gerados pela violência, em virtude de con-
dificultam cada vez mais a implementação Além da pobreza crônica, os obstácu- flitos e guerras.
de melhorias sociais. Isso significa que a los à segurança humana se manifestam em Nessa área, os problemas mais sérios
desigualdade social continuará a crescer na condições econômicas desfavoráveis, im- são a mortalidade infantil e o HIV/Aids. A
Suíça. O informe da Holanda explica como pactos sociais das crises econômicas e de- mortalidade infantil está estreitamente relaci-
os problemas econômicos estão afetando sastres naturais. Para garantir a segurança onada à pobreza e é derivada da desnutrição,
a seguridade social e em que medida tam- das pessoas afetadas pela crise, ou para da carência de água potável e saneamento
bém afetam a tolerância e a hospitalidade possibilitar que saiam da pobreza, são ne- adequado, de infecções, má qualidade da
em relação a imigrantes. O informe da Ale- alimentação e falta de atendimento médico.
manha também se refere a essa problemá- O aumento da população infectada com o
tica e destaca os obstáculos criados por HIV/Aids é outra das principais vulnerabili-
problemas fiscais e pelos cortes dos gas- 6 Alguns desses informes não estão disponíveis na dades na área de saúde. Isto fica claro nos
tos destinados ao bem-estar social.6 seção “Panorama Mundial”, mas todos integram o
CD-ROM que acompanha este volume. países da África Subsaariana.

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Corrupção e violência dos países africanos e latino-americanos: vi- cupação especial e interesse em proporcio-
À abordagem da segurança humana a par- olência urbana, homicídios, crime organiza- nar opções e oportunidades às pessoas que
tir das dimensões econômica e sanitária, do, conflitos armados e atentados terroristas. nunca as tiveram: educação para as meni-
somam-se outras vulnerabilidades que afe- Observa-se um aumento das redes de nas, proteção das mulheres contra a violên-
tam a segurança das pessoas na esfera criminalidade que agravam a violência urba- cia doméstica e no local de trabalho, assim
política e social. São exemplos as debilida- na, especialmente nos países da América como acesso ao poder político e econômico
des em matéria de governança democráti- Latina. No Brasil, destaca-se a violência ur- real para todas as mulheres. A ênfase dada a
ca e a instabilidade dos sistemas políticos. bana, especialmente contra jovens pobres, essas dimensões que afetam a eqüidade entre
Essas vulnerabilidades podem levar a situ- como um dos obstáculos centrais à segu- os gêneros é determinada pela realidade de
ações de violência, como se observa em rança humana. Nesse setor da população, o cada país, e isso está refletido claramente
vários países, tais como: Colômbia, Nepal, índice de homicídios é quase dez vezes su- nos informes que tratam desse problema.
Nigéria e Uganda. perior ao da população em geral.
Os planos de segurança nacional que Cada vez mais, é reconhecido que as mu- Três obstáculos
vários governos desenvolveram no marco lheres e as crianças são as principais vítimas, Para resumir, os três obstáculos mais destaca-
da luta global contra o terrorismo não têm as mais afetadas pelas conseqüências da vio- dos contra a segurança humana foram: a pre-
ajudado a aliviar a situação de segurança lência. De acordo com os informes, a violência ocupação pela segurança dos indivíduos e suas
política dos países. Os informes nacionais relacionada ao gênero está aumentando. comunidades, especialmente nos setores mais
dão ênfase especial à necessidade de condi- vulneráveis; conflitos, ameaças e violências
ções democráticas, boa governança e segu- Desigualdades sociais entre os gêneros de diferentes tipos (conflitos entre Estados,
rança política, como requisitos para a Finalmente, deve-se dar atenção especial aos colapso de Estados, violações de direitos hu-
segurança humana. problemas de gênero em diversos países. Em manos, terrorismo, crime organizado etc.); a
Corrupção, discriminação em função de geral, o panorama da segurança humana entre pobreza e as situações de exclusão econômica.
raça, sexo, etnia, religião ou filiação políti- as mulheres é adverso, e uma de suas expres- Os informes nacionais oferecem uma vi-
ca, juntamente com insegurança política e sões é o não-reconhecimento de direitos espe- são da segurança humana que implicaria per-
ausência de possibilidades democráticas, cíficos das mulheres, principalmente na esfera mitir a todos os seres humanos viverem em
põem em risco a segurança humana em trabalhista e reprodutiva, assim como a violên- condições de justiça, eqüidade, liberdade, to-
muitos países. cia contra as mulheres em diferentes esferas. lerância e boa saúde, e terem acesso a alimen-
Outro grupo de obstáculos relaciona- Embora o tema seja abordado em vári- tação adequada, educação e um meio ambiente
dos a fatos violentos de diferentes tipos é os informes de países industrializados, nos saudável. Em outras palavras, condições que
citado em muitos informes, principalmente países em desenvolvimento há uma preo- nos permitam viver com dignidade.

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Insegurança, governança global e democracia

Por que o mundo atual se tornou mais perigoso? A insegurança não está presente apenas nos planos belicosos dos
Estados Unidos e nas ações dos grupos islâmicos clandestinos. As “guerras sociais” causam mais mortes do que as
guerras entre exércitos e colocam o problema da segurança civil na agenda mundial. Se, neste novo contexto neo-
imperial, as direções dos movimentos sociais e das ONGs têm sido incapazes de reconciliar a equação do poder com a
legitimidade social, o caminho para a construção da paz, no século 21, passa necessariamente pelos fóruns sociais e os
diferentes movimentos cívicos em todo o mundo.

Gustavo Marin1 pois o medo leva à impotência e à violência. os planos expansionistas dos novos países
As primeiras questões que vêm à mente colonialistas de nossa época? Poderá a edu-
Com freqüência, achamos que segurança é são as seguintes: quais são as causas da cação para a paz acalmar as pessoas? A na-
uma questão de lei, militares e polícia. Mas são insegurança, não somente da insegurança tureza individual dos seres humanos mudará
várias as dimensões da segurança. É uma civil, como também da econômica, social, ao mesmo tempo em que se modificam as
questão econômica porque ter um emprego política e cultural? Por que o mundo de hoje estruturas sociais e os sistemas políticos?
estável, a capacidade de se alimentar e um tornou-se mais perigoso? Respostas para essas questões devem
teto sobre a cabeça são as condições mais As manifestações de insegurança se levar em conta toda a complexidade que os
elementares da segurança para o indivíduo, a fundem e não existem somente nos planos temas envolvem e também devem recorrer
família e a comunidade. É uma questão social belicosos do governo dos Estados Unidos a estratégias que lidem diretamente com a
porque o respeito mútuo entre pessoas da ou nas ações armadas dos grupos islâmicos insegurança. Por um lado, uma democracia
vizinhança e um “entendimento cordial” entre clandestinos. A injustiça e a violência permeiam genuína não pode ser atingida sem uma nova
diferentes grupos sociais são os fundamentos a vida diária na esfera local, no interior das economia, mais justa e mais social; por outro,
de uma vida pacífica. A segurança social, con- famílias, nos distritos e nas cidades, em regiões uma nova economia não será viável sem uma
siderada como o acesso básico aos serviços inteiras e entre os países. Não somente as democracia genuinamente participativa. A
de saúde e educação pública e à aposentadoria guerras “oficiais”, ou aquelas que assim justiça não é possível se as leis não estão
decente, é vista como uma necessidade aparecem na mídia, causam a insegurança. profundamente enraizadas nos princípios
não somente pelos povos dos países ricos A violência existe tanto nas relações cotidianas democráticos, e, sem justiça, a paz é somente
industrializados, mas por grandes parcelas como nas redes mafiosas, assumindo o con- uma ilusão. Porém, como vamos conseguir,
da população dos países pobres em desen- trole de distritos, regiões e países, estenden- ao mesmo tempo, uma economia digna, uma
volvimento. É uma questão política porque do-se pelos continentes. As “guerras sociais” democracia aberta, um sistema jurídico
o direito de expressar idéias e convicções e causam mais mortes do que as guerras entre legítimo e uma sociedade justa? Cada um
de se associar a outras pessoas para assumir exércitos e colocam o problema da segurança desses componentes está relacionado aos
responsabilidades nos assuntos públicos de civil na agenda. demais, o que significa que o importante
uma organização, distrito, partido político, país As tensões e os conflitos que ameaçam mesmo é o todo.
ou organismo internacional constitui um dos a segurança individual e comunitária têm
fundamentos de uma vida social justa – tanto raízes diferentes: desigualdades econômicas, ONU perde legitimidade
quanto o direito à vida. Finalmente, é uma conflitos sociais, sectarismo religioso, dis- A atual insegurança está ligada às políticas
questão cultural porque viver em paz num putas territoriais e pelo controle de recursos unilaterais e imperialistas dos Estados Unidos.
mundo de diversidade é um componente es- vitais, como água e terra. Todas essas cau- Um número cada vez maior de cidadãos e
sencial da condição humana. sas expressam uma crise de valores e a gran- cidadãs se conscientiza de que as pessoas
A necessidade de proteção e a ausência de dificuldade de encontrar significado que lideram a política e a economia das prin-
de perigo são vitais e tão importantes quanto pessoal e coletivo para nossas vidas e nos- cipais empresas e instituições internacionais
o direito à alimentação e ao acesso à água, sas sociedades. não são somente incapazes de lidar com a
Como enfrentar essa situação? Novas insegurança, mas também, acima de tudo,
regulamentações econômicas resultarão na são as principais culpadas.
diminuição das desigualdades e assegurarão Para garantir a segurança e a democracia,
1 Com nacionalidade chilena e francesa, é o diretor de uma vida mais decente para milhões de seres é necessário desmantelar os fundamentos
programa da Fundação Charles Léopold Mayer para o
Progresso do Homem, França. Aliança para um Mundo
humanos? Será que a Organização das Na- centralizadores do poder. Entretanto, na prá-
Responsável, Plural e Unido (www.alliance21.org). ções Unidas (ONU) conseguirá neutralizar tica, a rodada de grandes conferências das

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Nações Unidas foi incapaz de gerar novas Novo papel para as Forças Armadas A governança democrática em perigo
formas institucionais, mais democráticas e Com o unilateralismo e as guerras, militares A governança democrática atualmente enfren-
abertas à diversidade internacional. Esse passaram a ter um papel cada vez mais im- ta graves perigos. Os aparatos executivo,
fracasso mostrou as limitações da ONU portante. Com freqüência, afirma-se que o legislativo e judiciário dos governos foram
como organismo multilateral e base da setor deve obedecer ao poder político; en- burocratizados e estão fora de contato com a
governança global. Na maioria das vezes, é tretanto, se as políticas implementadas são realidade. Após várias décadas de hegemonia
o unilateralismo imperial do país mais po- cada vez mais autoritárias e expansionistas, neoliberal, o hiato entre a sociedade civil e
deroso que prevalece. Além disso, a exi- o papel militar cresce, e as práticas mais as instituições democráticas na maioria dos
gência contínua de militarização alimenta repulsivas tornam-se comuns, como foi países vem crescendo de forma alarmante.
uma lógica de terror e guerra. exemplificado pela tortura e pelos maus-tratos Os movimentos sociais e a sociedade civil se
A ONU está perdendo gradualmente contra prisioneiros de guerra no Iraque. desenvolveram sem manifestar, com raras
sua legitimidade e autoridade para tratar O envolvimento militar pode ajudar a exceções, sua presença em instituições
de temas globais. A Assembléia Geral é “reduzir tensões” e separar facções em renovadas, democráticas e democratizantes.
composta de Estados representados pelos conflito, para criar as condições de restau- Em conseqüência, a própria noção de demo-
governos, e não pelos seus povos. Nem ração da calma e, finalmente, da paz. Essa cracia está sendo questionada.
os parlamentos nem as instituições mais ação inicial é muitas vezes essencial, pois Os riscos políticos dessa situação são ób-
representativas dos povos têm acesso à permite que as autoridades políticas, as ONGs vios. Como podemos reverter o atual descré-
ONU. O Conselho de Segurança tem mais e outras organizações entrem em cena e dito da democracia, tanto na imaginação social
poder do que a Assembléia Geral e depende reconstruam a paz. O papel militar não é como nas práticas políticas? O mero reforço
do direito de veto de cinco membros. A “construir a paz”, mesmo que ocasionalmente das instituições políticas não assegura a
Organização Mundial do Comércio (OMC) recebam esse encargo. Essas missões devem democracia, que é forjada pela pressão social.
e as instituições de Bretton Woods não durar períodos curtos, e as forças militares de- Como podemos canalizar os movimentos e as
estão efetivamente subordinadas à ONU e vem entregar o poder tão logo sejam restaura- forças vitais da sociedade de modo a renovar
possuem mais poder do que ela. Organi- das as condições para um diálogo mínimo. a democracia? Por último, pode a democracia
zações internacionais antidemocráticas, Para que militares cumpram um papel participativa ser a forma radical de construção
como o G-8, e contratos internacionais que ajude a promover a paz, são necessári- de uma segurança social genuína?
assinados entre as empresas transnacionais as três condições: Sem dúvida, enfrentamos um grande
têm mais impacto sobre a globalização do • os objetivos e a duração da missão das desafio histórico, que resulta de novas ten-
que a própria ONU. forças armadas devem ser claros e es- sões entre a democracia direta e a democra-
Como a ONU pode ser reinventada e tar de acordo com regras específicas cia representativa. O monopólio das “políticas
revigorada? Será possível abolir o direito de engajamento; de poder” pelos partidos políticos tem sido
de veto? Como fazer para subordinar o • no marco de sua missão, as forças ar- questionado pela autonomia de diferentes
Conselho de Segurança à Assembléia Ge- madas devem ser treinadas para respei- movimentos. A democracia participativa exige
ral? Da mesma forma, é preciso encontrar tar um código de conduta, de modo a movimentos fortes. No entanto, as direções
maneiras para que a Assembléia Geral “controlar” o uso de sua força. Isso dos movimentos sociais e das ONGs têm
tenha autoridade efetiva sobre a OMC e as requer mudanças nos programas de sido incapazes de reconciliar a equação do
instituições de Bretton Woods. Isto será pos- treinamento das academias militares; poder com a legitimidade social, ou seja, tem
sível? Além disso, avançando um passo na • sempre que possível, as forças arma- sido impossível universalizar os direitos. Em
Assembléia Geral de representantes de das devem atuar com um mandato in- conseqüência, a democracia só pode ser
governos, será viável um parlamento mun- ternacional amplamente aceito, que viável se alimentar movimentos fortes e for-
dial? Será possível tornar a Declaração legitime suas ações. mas concretas de representação partidária.
Universal dos Direitos Humanos, comple- No entanto, será justo ou viável criar De outra forma, não será mais do que sim-
mentada pelo Pacto Internacional sobre os uma força militar independente, regida por ples demandas corporativistas, defendidas
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais lei internacional, capaz de intervir em dife- por distintos movimentos que objetivam seus
(Pidesc) e por todos os novos direitos rentes conflitos? Se essa força militar estará próprios interesses. O que deve ser feito para
ambientais, a referência básica de uma baseada na lei, como é possível assegurar reinventar os partidos? Será possível refor-
Constituição mundial para uma globaliza- que a lei seja genuinamente democrática? mar os sistemas políticos e as instituições
ção socialmente consciente e democrática? Poderá essa força existir globalmente e será de governo local, nacional, internacional e
Que alternativas existem para reformar a possível criar um Parlamento dos Povos que global, de modo que reflitam a vontade
ONU nessa direção? legitime a vontade da maioria? democrática do povo?

Observatório da Cidadania 2004 / 19


Entre o neo-imperialismo e o terrorismo atuam em redes. Chegamos ao ponto de civil que buscamos desenvolver, além de
Cresce a convicção de que é preciso romper comemorar anualmente grandes ataques sua simples emergência, deve evitar cair na
um limiar e atingir um novo estágio. Embora o terroristas que mataram milhares de pessoas. posição de refém.
fim do apartheid e a queda do Muro de Berlim Desde então, vivemos num mundo no qual É claro que houve avanços significativos,
tenham despertado esperanças de uma nova lembramos massacres do passado. Esta é a como os fóruns sociais e as diferentes alian-
ordem mundial, baseada no multilateralismo característica singular que demarca nossa ças. O século 21 será um período de grandes
internacional, fundado nas leis e nos princípi- era: o império estadunidense dá as ordens, mudanças em relação a como pensamos,
os democráticos, somos hoje testemunhas porém no meio das explosões. A prova dis- sentimos, produzimos, consumimos, esta-
de um cenário radicalmente diferente. Pre- so pode ser observada não somente no belecemos vínculos e nos governamos. To-
senciamos o reinado ilimitado do império es- Iraque, como também em outras partes do dos sabemos disso, porém sozinhos(as)
tadunidense sobre o restante do mundo. A mundo árabe, nas grandes cidades do Nor- somos paralisados(as) pela nossa impotên-
globalização neoliberal espalha incessante- te e em algumas do Sul. cia. É contra essa impotência que precisa-
mente seus tentáculos pelos quatro cantos Neste contexto, temos que nos pergun- mos reagir, e tal reação já se manifesta em
do mundo, agravando as desigualdades entre tar se não estamos entre a cruz e a caldeirinha. diferentes formas por todo mundo.
pessoas ricas e pobres e entre o Norte e o Sul. De um lado, está um império que dita sua Assim, para enfrentar e superar esse de-
O cenário do início do século 21 está marcado lógica de Pax Americana, por meio da guerra safio, um amplo debate de idéias e propostas
pela mudança da globalização neoliberal para e de sua organização social; de outro, gru- está em curso, como parte de um processo
a globalização neo-imperial, na qual a lógica pos que organizam repetidos ataques terro- desenvolvido pelos fóruns sociais e pelos dife-
da guerra foi a agregada à lógica da competi- ristas. Tampouco podemos esquecer das rentes movimentos cívicos de muitas regiões
ção, arrancando a máscara atrás da qual os redes mafiosas clandestinas que controlam a em todas as partes do mundo. Esses movi-
Estados Unidos e seus aliados se escondiam. vida de milhões de seres humanos, força- mentos podem fornecer não somente as res-
A situação atual está marcada por um dos a viver em condições semelhantes à postas a essas questões, como contribuir para
crescimento forte da violência espetacular escravidão. Nesse marco (se é que pode- a abertura de novas perspectivas, de modo
dos grupos fundamentalistas islâmicos, que mos chamar isso de marco), a sociedade que a humanidade possa viver em paz.

Observatório da Cidadania 2004 / 20


Evasão fiscal: bilhões desviados do desenvolvimento

A carga fiscal está passando das nações ricas para as pobres. Os países em desenvolvimento perdem, no mínimo,
US$ 50 bilhões por ano, o equivalente à ajuda oficial dos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento
Econômico (OCDE) às nações em desenvolvimento. De acordo com o Banco Mundial e o Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (Pnud), essa é a quantia necessária para atingir as Metas de Desenvolvimento do Milênio. É
também um montante equivalente a seis vezes os custos anuais estimados para atingir a educação primária universal e
quase três vezes o custo da cobertura universal de atendimento primário à saúde. A única maneira bem-sucedida de
contrabalançar práticas fiscais prejudiciais e a competição fiscal internacional é mediante iniciativas globais.

Coalizão Suíça de Organizações tam gastos e investimentos em serviços bási- adas em segredo com as autoridades, sem
de Desenvolvimento cos e desenvolvimento de infra-estrutura, que levar muito em conta a legislação tributária.
Bruno Gurtner 1 são necessários para o futuro crescimento. A Assim, os paraísos fiscais oferecem a não-
redução dos serviços sociais afeta as pesso- residentes – e somente a eles – isenções com-
Na atualidade, países de todo mundo enfren- as pobres muito mais do que as ricas. Um pletas ou muito substanciais, além de secretas,
tam um problema crescente na arrecadação investimento menor na infra-estrutura nacio- de seus impostos corporativos ou pessoais.
de impostos para financiar bens e serviços nal atrofia o crescimento econômico neces- A regulamentação dos paraísos fiscais é
públicos, como serviços de saúde, educação sário para o desenvolvimento sustentável. Se precária ou inexistente. Onde há códigos e
e infra-estrutura, e poder reduzir a pobreza – não forem revertidas, essas tendências serão leis, muitas vezes não existe nem a vontade
o que é vital nos países em desenvolvimento. desastrosas para o desenvolvimento. política nem os recursos para implementá-
A globalização solapa a base fiscal do Estado los de modo eficaz. Os governos dos cen-
de bem-estar social. Embora os mercados Paraísos fiscais criam “indústria paralela” tros financeiros offshore têm pouca
tenham sido globalizados, as estruturas fis- O papel dos centros financeiros é destrutivo, capacidade administrativa para supervisio-
cais ainda são nacionais. A abertura das fron- atuando como canais de evasão dos siste- nar esses movimentos financeiros. A ausên-
teiras tem causado uma competição fiscal mas tributários da maioria dos países. A fuga cia de regulamentação também oferece
exagerada, que, por sua vez, leva a uma cor- de capitais, associada à evasão fiscal em par- ambientes favoráveis para a lavagem de di-
rida para ver quem taxa menos as empresas ticular, rouba dos países em desenvolvimento nheiro e solapa a estabilidade do sistema
e as rendas mais altas. o capital para financiar investimentos e pro- financeiro. As crises financeiras agora são
A competição fiscal internacional e as prá- ver serviços sociais. Há 20 anos, havia so- mais freqüentes e profundas.
ticas fiscais danosas oferecem cada vez mais mente uns poucos paraísos fiscais, Dentre os serviços oferecidos por esses
oportunidades para que as pessoas ricas es- administrados por um pequeno número de centros financeiros, estão os bancários (para
capem de suas obrigações fiscais. A carga profissionais. Com a liberalização mundial dos pessoas físicas e jurídicas), fundos offshore
fiscal está mudando: indivíduos ricos e em- fluxos de capital, o desmantelamento dos e gestão de fundos de investimentos. A in-
presas transnacionais se beneficiam dos pa- controles de capital e a revolução das comu- dústria offshore não é um fenômeno isola-
raísos fiscais e dos regimes de impostos nicações eletrônicas, a indústria offshore (ex- do, que ocorre somente em ilhas caribenhas
baixos em todo o mundo, enquanto os indi- traterritorial) se transformou num grande exóticas. Ela se tornou uma nova e enorme
víduos comuns e as empresas nacionais negócio global. indústria paralela global. Os centros offshore
menores suportam os custos. Isso afeta ci- Em todo o planeta, existem cerca de 60 estão estreitamente vinculados aos princi-
dadãos e cidadãs de duas maneiras: por um paraísos fiscais, que competem entre si para pais centros financeiros, como Nova York,
lado, os governos aumentam os impostos atrair capitais móveis, oferecendo ambientes Londres, Tóquio, Zurique, Hong Kong e
sobre o consumo, rendas menores e empre- de baixos impostos ou sem impostos, além Cingapura. A maior parte dos paraísos fis-
sas pequenas; por outro, os governos cor- de benefícios duvidosos, como o segredo e a cais do mundo está, na verdade, localizada
regulamentação precária. O segredo estimu- nos grandes centros financeiros. Atualmente,
la a evasão ilegal de impostos e implica não mais de 150 mil empresas para operação
revelar nenhuma informação relacionada às offshore são instaladas todos os anos e há
contas empresariais ou à titularidade de ati- mais de 1 milhão dessas empresas em
1 O autor é economista sênior da Coalizão Suíça de vos, fundos de investimentos e empresas. todo mundo. Por exemplo, a Enron tinha
Organizações de Desenvolvimento e pode ser
contatado pelos seguintes e-mails :
Nos lugares onde se pagam impostos, com 881 subsidiárias offshore , das quais 692
<bgurtner@swisscoalition.ch> e <info@taxjustice.net>. freqüência as alíquotas são mínimas, negoci- estavam nas Ilhas Cayman. As maiores

Observatório da Cidadania 2004 / 21


empresas de comercialização de petróleo do As empresas transnacionais pressio- Com a liberalização das contas de capital,
mundo estão localizadas na Suíça, embora nam os governos para que reduzam os ficou muito mais fácil para as pessoas ricas
esse país não tenha petróleo. impostos sobre lucros empresariais e ofe- retirarem suas fortunas e rendas de seus
A metade do comércio mundial apa- reçam isenções fiscais temporárias ou ou- países e depositá-las em paraísos fiscais e
rentemente se faz por intermédio dos para- tros incentivos tributários. Os que saem centros financeiros offshore, sem pagar im-
ísos fiscais, embora eles representem perdendo são os Estados e governos, que postos em seus países de origem. Os países
somente 3% do Produto Interno Bruto (PIB) perdem sua soberania sobre as políticas em desenvolvimento perdem, pelo menos,
mundial. O valor dos ativos mantidos tributárias. Quem paga os maiores impos- US$ 15 bilhões por ano em evasão fiscal pra-
offshore, isentos de tributos ou sujeitos a tos são as pequenas e médias empresas ticada por suas elites endinheiradas.
alíquotas mínimas, é de pelo menos US$ nacionais; os pequenos e médios salários; Os ricos da Índia possuem pelo menos
11 trilhões – mais de um terço do PIB mun- e as pessoas que consomem. 1 bilhão de francos suíços (equivalente a
dial. Um terço de todas as operações ban- Pode-se observar uma forte transferên- US$ 785 milhões) em contas bancárias
cárias privadas transnacionais é cia da tributação, dos fatores fiscais móveis fiduciárias na Suíça, muito provavelmente
administrado pelo setor financeiro suíço. A para os imóveis, da tributação progressiva sem pagar impostos na Índia. Num semi-
indústria offshore como um todo está en- (que taxa mais as rendas altas que as bai- nário da Fundação Friedrich Ebert em Nova
volvida em cerca da metade das transações xas) para os impostos únicos, e dos lucros York, em julho de 2002, pessoas que re-
financeiras mundiais. e rendas para impostos indiretos, como o presentavam os países em desenvolvimen-
imposto sobre o valor agregado, que atinge to foram enfáticas em afirmar que, de seu
Ganhadores e perdedores quem consome. Em poucas palavras: a car- ponto de vista, os Estados Unidos e a Eu-
Os que saem ganhando com as tendências ga tributária está mudando das pessoas ri- ropa servem de paraísos fiscais para
recentes são as companhias transnacionais, cas para as pessoas pobres! Portanto, a seus(suas) próprios(as) cidadãos(ãs)
os indivíduos ricos, os paraísos fiscais e bilionária estadunidense, Leona Helmsley, ricos(as), que procuram evadir impostos
centros offshore, a indústria de serviços proprietária de uma cadeia de hotéis, tinha em seus países de origem.
financeiros, as pessoas especialistas em al- razão ao declarar em seu julgamento por As empresas transnacionais pressionam
tas rendas e em fatores móveis, como o evasão fiscal em 1989: “Somente os peque- os países em desenvolvimento para manter
capital. A transferência de recursos para o nos pagam impostos”. bem baixas as alíquotas tributárias sobre os
exterior é freqüentemente uma questão de lucros e o capital das empresas. Elas tam-
abrir uma conta e transferir capitais para Países mais afetados bém fazem lobby sobre os governos desses
um banco offshore. A mudança na carga fiscal ameaça o mundo países para conseguir isenções fiscais tem-
Os paraísos fiscais oferecem às empre- em desenvolvimento de forma especialmen- porárias e exigem que forneçam serviços de
sas muitas maneiras legítimas e “respeitá- te desastrosa. Os países em desenvolvimen- infra-estrutura gratuitos ou muito baratos.
veis” de evasão fiscal. Quase todos os to perdem, pelo menos, US$ 50 bilhões por Os países em desenvolvimento competem
grandes bancos estadunidenses ou euro- ano.2 Essa enorme perda equivale à ajuda entre si para fornecer melhores condições
peus têm sucursais ou contatos comerciais oficial anual dos países da OCDE às nações às companhias transnacionais e conseguir
no Caribe. As companhias transnacionais em desenvolvimento. De acordo com Banco atrair seus investimentos estrangeiros dire-
podem estabelecer facilmente subsidiárias Mundial e o Pnud, é a quantia necessária tos. A falta de regulamentação na competi-
nesses centros offshore, definir trâmites sim- para atingir as Metas de Desenvolvimento ção fiscal internacional e as práticas tributárias
ples e manipular os preços de bens e servi- do Milênio. Corresponde também a um mon- danosas são responsáveis pela perda de pelo
ços, por intermédio dessas subsidiárias tante equivalente a seis vezes os custos anu- menos US$ 35 bilhões anuais. Até mesmo
offshore (preços de transferência). Elas, ais estimados para alcançar a universalização estudos do Fundo Monetário Internacional
então, transferem seus lucros da economia da educação primária e quase três vezes o (FMI) e da empresa de consultoria Mc Kinsey
de altos impostos, na qual ocorre a atividade custo da cobertura universal de atendimen- concluíram que não compensa oferecer es-
econômica real, para um centro offshore, to primário à saúde. ses incentivos fiscais.
onde pagam pouco ou nenhum imposto.
Philip Morris e RJ Reynolds, duas grandes As respostas da rede pela justiça fiscal
empresas de tabaco, mudaram sua sedes Como enfrentar esses abusos? Naturalmen-
internacionais dos Estados Unidos para a 2 Dados da Oxfam Grã-Bretanha. Ver o texto “Tax te, a maioria dos países tenta proteger sua
Suíça, em meados da década de 1990, para havens: releasing the hidden billions for poverty base fiscal, porém a única maneira de se opor
eradication”, Oxfam Policy Paper, 8 jun. 2000.
tirar partido das vantagens fiscais e jurídicas Disponível em: <http://www.oxfam.org.uk/what_we_do/
às práticas fiscais danosas e à competição
desse país europeu. issues/debt_aid/tax_havens.htm>. fiscal internacional é por meio de iniciativas

Observatório da Cidadania 2004 / 22


globais. Há alguns anos, a OCDE iniciou um à incorporação de organizações da América A Rede Européia pela Justiça Fiscal apre-
programa para eliminar as práticas fiscais do Norte e do Sul. No FSM de Mumbai, ocor- sentou no Parlamento britânico a versão
danosas dentro e fora dos países membros. rido na Índia, em janeiro de 2004, ela foi final da declaração/manifesto, em março de
Para isso, publicou uma lista de paraísos estendida para a Ásia. Agora, a rede precisa 2003. Todas as organizações que concor-
fiscais que não cooperam com as autorida- do apoio da África para ser realmente global. dem com o conteúdo da declaração estão
des. A OCDE também promove o intercâm- Os objetivos da TJN são os seguintes: convidadas a assiná-la. Em maio de 2003,
bio de informações com as autoridades • eliminar a evasão fiscal transnacional; a TJN organizou uma conferência de im-
fiscais e com o setor financeiro. O Grupo Ad • limitar o alcance da evasão fiscal; prensa internacional em Berna, na Suíça. A
Hoc de Especialistas sobre Cooperação In- rede também organizou um seminário de
• divulgar temas e educar as partes inte-
ternacional em Matéria Fiscal da Organiza- pesquisa em Essex, na Inglaterra, em julho
ressadas;
ção das Nações Unidas (ONU) se reúne de 2003, e outro, na mesma cidade, em
periodicamente, e a União Européia (UE) tenta • realizar trabalho de advocacy em nível
internacional na ONU, FMI, OCDE, UE etc.; julho de 2004.
coordenar suas políticas tributárias. A TJN iniciou seu trabalho de advo-
Documentos preliminares da Conferência • estimular, apoiar e coordenar atividades
nacionais e regionais;
cacy internacional e já teve contatos in-
sobre o Financiamento do Desenvolvimento, formais com as autoridades fiscais da
ocorrida em Monterrey, em março de 2002, • promover vínculos entre as partes inte-
OCDE. Também contribuiu com o relató-
solicitaram em vão a criação de uma autorida- ressadas em todo o mundo, principal-
rio recém-publicado da Comissão Mun-
de fiscal internacional. Naquela ocasião, o FMI, mente entre Norte e Sul; e
dial sobre as Dimensões Sociais da
o Banco Mundial e a OCDE lançaram a iniciati- • encorajar a pesquisa e o debate.
Globalização, da Organização Internacio-
va “Diálogo Tributário Internacional”, porém Em Porto Alegre, a TJN discutiu uma nal do Trabalho (OIT). Representantes da
não chegaram a promovê-la. Outra proposta, versão preliminar de uma declaração/mani- TJN participaram como observadores(as)
mais discutida entre ONGs e meios científicos, festo.3 Entre outros, ela contém os seguin- da reunião do Grupo Ad Hoc de Especia-
sugeria o estabelecimento de um imposto mí- tes pontos estratégicos: listas sobre Cooperação Internacional em
nimo sobre o lucro corporativo.
• eliminar a evasão fiscal transnacional e Matéria Fiscal da ONU. A rede contribuirá
No Fórum Social Europeu, ocorrido em
limitar o alcance da evasão fiscal, para para o acompanhamento do processo de
Florença, em 2002, algumas ONGs e movi-
que as grandes corporações e pessoas Monterrey (reuniões do Conselho Eco-
mentos sociais europeus que atuam no cam-
físicas abastadas paguem impostos de nômico e Social/Ecosoc da ONU e das ins-
po dos crimes financeiros reuniram-se e
acordo com sua capacidade econômica; tituições de Bretton Woods).
fundaram a Rede Européia pela Justiça Fiscal
(TJN, na sigla em inglês), para lutar contra a • aumentar a influência de cidadãos e ci- A TJN criou seu próprio site (em in-
evasão fiscal. Esta foi a resposta às tendênci- dadãs no controle democrático da apli- glês, francês, espanhol, português e ale-
as prejudiciais da política fiscal internacional cação dos impostos e restringir o poder mão), publicou um boletim e fez intercâm-
causadas pela globalização econômica, que do capital de ditar políticas fiscais exclu- bio de informações por meio de uma lista
inibem a capacidade de o Estado taxar ade- sivamente em seu próprio interesse; de discussão eletrônica. Um comitê diretivo
quadamente contribuintes ricos e as grandes • restabelecer um tratamento fiscal simi- provisório está tentando ampliar a rede,
corporações. A TJN considera que essas ten- lar para as diferentes formas de renda e buscar mais apoio para a declaração e
dências têm implicações preocupantes para reverter a transferência da carga fiscal aprofundar a discussão estratégica. Ini-
o desenvolvimento, a democracia, os servi- para cidadãos e cidadãs comuns; e ciaram-se as discussões preliminares para
ços públicos e a pobreza. • suprimir os incentivos fiscais e o segre- estabelecer um pequeno secretariado in-
No Fórum Social Mundial (FSM) de Por- do que estimulam o fluxo de saída dos ternacional profissional. Aceitamos de
to Alegre, em 2003, a TJN expandiu-se, pas- capitais dos países que mais necessitam bom grado sua contribuição e sua cola-
sando a ter um perfil de rede global, graças de desenvolvimento econômico. boração ativa.

3 Para saber mais informações, ler e assinar a


declaração ou assinar a lista de discussão ou fórum,
visite nosso site: <www.taxjustice.net>.

Observatório da Cidadania 2004 / 23


Países árabes: entre a segurança nacional e a segurança humana

A segurança humana não é uma alternativa à segurança nacional. Ao contrário, esta é um dos meios de atingir aquela.
É importante destacar os efeitos da ocupação do Iraque pelos Estados Unidos para a segurança humana, assim como
sua influência sobre a política, a economia e a cultura dos países árabes. Está claro que dois elementos são indispensáveis
para enfrentar as raízes dos problemas de segurança humana na região: ações por parte das organizações da sociedade
civil e uma transformação das políticas institucionais.

Rede de ONGs Árabes para minimizou a importância das fronteiras e ge- das organizações internacionais e dos ato-
o Desenvolvimento rou o reconhecimento de que a segurança res estatais, aos mercados interdependen-
Ziad Abdel Samad1 do Estado é essencial, porém não é suficien- tes e à estabilidade como um bem público.
te para garantir o bem-estar individual. Embora a segurança do Estado seja vincu-
É importante assinalar que a segurança lada principalmente à soberania e às ques-
“Em sua expressão mais simples,
humana não é uma alternativa à segurança tões de fronteiras, tende a priorizar a
segurança humana são todas aquelas
do Estado, porém são conceitos comple- segurança dos investimentos.
coisas que homens e mulheres mais
mentares, pois a segurança do Estado deve No caso do mundo árabe, é essencial
valorizam em qualquer parte do mundo:
ser vista como um dos meios para alcançar destacar os efeitos sobre a segurança hu-
alimentação suficiente para a família,
o fim, que é a segurança humana. O concei- mana causados pela ocupação estrangeira
habitação adequada, boa saúde, escola
to de segurança humana “pode até exigir do Iraque e pelo expansionismo dos Esta-
para as crianças, proteção contra a
que as pessoas sejam protegidas dos seus dos Unidos, expressos em seu desejo de
violência infligida pelos seres humanos
Estados”,2 em situações em que os grupos influenciar a política, a economia e a cultura
ou pela natureza e um Estado que não
dominantes não servem ao povo, mas a in- da região. Os dois principais conflitos no
oprima seus cidadãos e cidadãs e
teresses antidemocráticos para se perpetu- mundo árabe – entre Palestina e Israel e
governe com seu consentimento.”
arem no poder. A democracia implica em aquele que ocorre no Iraque – represen-
Louise Frechette, vice-secretária-geral um processo rumo a uma sociedade mais tam uma fonte fundamental de instabilida-
das Nações Unidas responsável e consciente, onde a segurança de global e divisão política, ameaçando a
comum e a segurança individual sejam ga- segurança além das fronteiras dos países
“A segurança humana se refere à
rantidas e respeitadas. diretamente envolvidos. Esses conflitos não
qualidade de vida das pessoas de uma
No início deste século, a noção de se- somente resultaram em perdas de vidas e
sociedade ou nação. O elemento
gurança foi expressa relacionando os danos à propriedade, como também são
essencial da segurança humana são os
conceitos de segurança internacional, se- as causas principais de uma instabilidade
direitos humanos.”
gurança estatal e segurança humana. 3 A que obstrui o desenvolvimento social, eco-
Ramesh Thakur, Universidade das segurança internacional, que é principal- nômico e político, privando os países ára-
Nações Unidas mente identificada com a globalização, está bes da oportunidade de atrair investimentos
dirigida à proteção dos interesses das em- estrangeiros, e agrava os fatores que favo-
Essas citações resumem o conceito de presas transnacionais e vinculada ao peso recem a emigração de recursos humanos
segurança humana como ele é compreendi-
altamente qualificados.
do hoje. Houve uma mudança de foco do
Os países árabes têm sido governados
Estado (segurança pública) para o indiví-
por uma sucessão de regimes antidemocrá-
duo, como ser humano e cidadão/cidadã
ticos que frustraram o desenvolvimento de
(segurança privada). Essa mudança de sig- 2 Palavras de Paul Heinbecker no texto “Peace theme: movimentos democráticos e o respeito
nificado foi resultado do avanço da globali- human security”, apresentado na Conferência de
Lysoen, presidida pelo ministro de Relações Exteriores aos direitos humanos. Seus regimes polí-
zação neoliberal com todas as suas
da Noruega, ocorrida em 19 e 20 de maio de 1999. ticos repressivos são bons para controlar e
implicações. A nova perspectiva global Disponível em: <www.peacemagazine.org/archive/
oprimir os próprios povos, porém têm de-
v15n4p12.htm>. Acesso em: 17 out. 2004
3 Segundo Francisco Rojas Aravena, diretor da
sempenho medíocre como parceiros e ne-
Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais gociadores globais e nas decisões nesse nível.
(Flacso), Chile. Ver o texto “Human security: emerging Essa situação continuará enquanto os líde-
1 Diretor executivo da Arab NGO Network for Development concept of security in the twenty-first century”, de
(Rede de ONGs Árabes para o Desenvolvimento). O 2002. Disponível em: <www.unidir.ch/pdf/articles/pdf-
res árabes não compreenderem a impor-
autor agradece a ajuda de Kinda Mohamdieh. art1442.pdf>. Acesso em: 22 set. 2004. tância do empoderamento de seus povos,

Observatório da Cidadania 2004 / 24


como forma de empoderar a si próprios. Além disso, os Estados árabes até agora libaneses durante a última década, teve re-
O Relatório do Desenvolvimento Humano não conseguiram estabelecer parcerias eco- sultados desastrosos. O país terminou acu-
sobre a Região Árabe,4 publicado pelo Pro- nômicas regionais ou desenvolver políticas mulando um déficit orçamentário enorme,
grama das Nações Unidas para o Desenvol- de cooperação eficazes, como estratégia para superior a 40% (chegando a 55% em al-
vimento (Pnud) em 2002, destacava a fortalecer sua posição e enfrentar os desafios guns anos), e as dívidas ultrapassaram 180%
ausência de democracia na região e a neces- de uma economia global. Em conseqüência do PIB. Na conferência sobre o Líbano (Pa-
sidade de democratização dos Estados ára- disso, o intercâmbio econômico entre os pa- ris II), ocorrida na capital francesa, em no-
bes, como condição principal para assegurar íses árabes não ultrapassa 8% do intercâm- vembro de 2002, o Fundo Monetário
o desenvolvimento sustentável e evitar mais bio total da região no mercado global. Internacional (FMI) foi encarregado de
conflito e instabilidade na região. O envolvimento de instituições financei- monitorar a implementação de outro pro-
ras internacionais (IFIs) na região árabe cres- grama de ajuste estrutural.
Reestruturação econômica e desastre ceu nas duas últimas décadas. O apoio Apesar das provas de que as medidas
Tanto em termos de sua inserção nos mer- condicional e os programas de ajuda pro- patrocinadas pelas IFIs estão de fato agra-
cados internacionais como em relação aos postos pelas IFIs representam um desafio vando os desafios enfrentados pela região,
acordos comerciais regionais, fica claro que significativo, especialmente pela ausência de espera-se que essas instituições cumpram,
a região árabe não está tão avançada como estratégias e políticas de desenvolvimento nos próximos anos, um papel importante
outras regiões do mundo. A parcela das eco- locais e regionais.6 Políticas macroeconômi- no Iraque, na Síria e na Líbia.
nomias árabes no Produto Interno Bruto cas e programas de ajuste estrutural inade-
(PIB) global fica entre 2,8% e 3%. As nações quados têm, com freqüência, levado à Antiglobalização e fundamentalismo
árabes têm demorado a aderir aos acordos recessão econômica. Embora tenham ratificado os tratados sobre
comerciais globais, como a Organização Nas últimas três décadas, o crescimen- direitos humanos da Organização das Na-
Mundial do Comércio (OMC), e a maioria to econômico na região árabe tem sido de ções Unidas (ONU) e outras convenções re-
dos países da região avançou pouco no for- aproximadamente 4%, o que está próximo lacionadas ao tema, os Estados árabes o
talecimento das capacidades locais para en- da taxa de crescimento da população, re- fizeram com muitas reservas e não formula-
frentar os desafios dessa integração. Os sultando na estagnação do crescimento per ram políticas efetivas para implementar suas
países árabes não foram suficientemente fle- capita. Além disso, as políticas implementa- recomendações. Além disso, a região tem
xíveis para implementar as mudanças ne- das causaram altas taxas de inflação, ultra- expressado uma desconfiança crescente na
cessárias a fim de reestruturar suas passando 12% na década de 1990, com eficácia do sistema da ONU.
economias e abri-las a parcerias globais. uma queda de 51% nos investimentos es- Vale a pena mencionar o discurso duplo
Mesmo os passos dados na direção da trangeiros diretos.7 A exposição dos inves- usado por certos países em relação à legis-
privatização e da abertura de mercado não tidores e produtores locais à competição lação internacional. Embora os Estados Uni-
incluíram medidas apropriadas para prote- das empresas transnacionais também apre- dos tenham liderado a guerra para desarmar
ger da competição estrangeira os merca- senta um desafio significativo e ameaça à o Iraque de suas supostas armas de des-
dos locais, produtos e mão-de-obra. A soberania nacional. truição em massa (ADMs), todo mundo sabe
maior parte desses processos ocorreu sob Economias em transição do socialismo, que Israel possui suas próprias ADMs, o
regimes antidemocráticos, que não possu- como Egito, Iêmen, Tunísia e Argélia, imple- que constitui uma ameaça à estabilidade de
íam o nível mais básico de transparência. A mentaram um programa de ajuste estrutu- toda a região. Depois de quase um ano de
influência dos países árabes em organiza- ral nas duas últimas décadas, porém esses ocupação, o mundo está agora consciente
ções globais e regionais, como a OMC e a países tiveram resultados medíocres, não das informações distorcidas que os Estados
Parceria Euro-mediterrânea, assim como atendendo às necessidades nacionais. Unidos disseminaram para justificar sua ocu-
nos acordos de livre comércio e na econo- Depois do fim da guerra civil no Líbano, pação do Iraque. Além do mais, as resolu-
mia global em geral, é ainda marginal, e em 1990, o Plano Nacional de Reabilitação ções da ONU sobre a Palestina não são
esses países estão longe de serem capazes Econômica, recomendado basicamente pela implementadas, enquanto outras resoluções
de defender seus próprios interesses e os Bechtel 8 e implementado pelos governos são aplicadas imediatamente – no Iraque e
direitos de seus povos.5 em outras partes do mundo.
No contexto de desigualdades sociais,
políticas e econômicas – e também do cos-
tume de usar discurso duplo em relação às
leis internacionais –, o processo acelerado
6 O caso libanês é um exemplo excelente de como o FMI
impõe as reformas aos países devedores para de globalização está ameaçando as identida-
4 Disponível em: <www.undp.org/rbas/ahdr/>. Acesso
em: 22 set. 2004. considerar a reestruturação da dívida. des dos povos, culturas, religiões e tradi-
5 Doze países árabes são membros da OMC, cinco são 7 HOUBAYKA, Louis. Globalization and the Arab economy. ções sociais da região. Isso teve como
An-Nahar, 16 jan. 2004. Disponível em:
observadores e dois solicitaram a admissão (enquanto conseqüência o crescimento dos movimen-
três ainda não solicitaram). Sete países árabes <www.annaharonline.com>.
tos antiglobalização, fato que tem levado
assinaram o acordo da Parceria Euro-mediterrânea, 8 Bechtel é a empresa de engenharia, reconstrução e
e os países do Golfo negociam um acordo com a União telecomunicações, vinculada estreitamente ao governo países árabes a adotarem diferentes tipos
Européia. O Marrocos e a Jordânia assinaram acordos de dos Estados Unidos, que foi contratada para de isolacionismo. Surgiram várias formas
livre comércio com os Estados Unidos, o Egito está reconstruir a infra-estrutura do Iraque. Sobre a
atualmente em negociação e os países restantes foram empresa, ver os sites <www.bechtel.com> e
de extremismo, e o fundamentalismo reli-
convidados a iniciar negociações com Washington. <www.bechteltelecoms.com>. gioso tornou-se mais vigoroso. Ele tem sido

Observatório da Cidadania 2004 / 25


principalmente vinculado ao Islã9 e, por- truturas debilitadas e antidemocráticas das focalizar nas respostas repressivas de curto
tanto, ao mundo árabe, onde pessoas mu- sociedades árabes, que se manifestaram no prazo, em vez de enfrentar as causas
çulmanas constituem a maior parcela da crescimento do fundamentalismo religioso. subjacentes relacionadas a desigualdade so-
população. Por esse motivo, o mundo ára- No entanto, isso não enfrenta as causas des- cial, exclusão, marginalização e opressão,
be está sendo identificado como uma gran- sas tendências extremistas, que estão na per- tanto dos Estados como de indivíduos.10
de ameaça à segurança global, e o povo da do sentido de valor do indivíduo nas
árabe tem sido submetido a opiniões ten- sociedades árabes e na disseminação dos Ameaças internas à segurança humana
denciosas e a estereótipos preconceituosos. regimes antidemocráticos que centralizam o O conflito entre a Palestina e Israel e suas
No âmbito estatal, a segurança das na- poder de Estado. questões de segurança vêm afetando toda a
ções árabes pode ser medida pelo grau de Entretanto, é essencial diferenciar os região há mais de 50 anos. Os desafios pro-
soberania e de proteção das fronteiras. As três tipos de ameaças à segurança humana duzidos pela globalização liderada pelas em-
ameaças permanentes à soberania geradas na região: primeiro, as ameaças que deri- presas, sejam de ordem econômica, política,
pelo conflito árabe-israelense introduziram vam da ocupação e da guerra que afetam a social ou cultural, afetam os Estados árabes
grandes desafios nas agendas de desenvol- região inteira; segundo, as ameaças que tanto quanto atingem outros países em de-
vimento dos países árabes. Contudo, entre resultam dos acordos de livre comércio e senvolvimento. No entanto, a tendência que
os muitos fatores que impedem o progres- das conseqüências da globalização corpo- prevalece de explicar todos os males dos
so nessas agendas, destaca-se o fato de rativa para o desenvolvimento em geral e Estados árabes fazendo referência a esses
quase todos os países serem governados para os indicadores de desenvolvimento hu- contextos impede a introdução de melhores
por juntas militares que haviam tomado o mano em particular; e, terceiro, as amea- condições da segurança humana na região.
poder por meio de golpes de Estado. ças internas específicas de cada país árabe, Para um melhor entendimento dos aspec-
Assim, foi dada prioridade às ameaças cujas raízes estão fincadas nas práticas tos essenciais da segurança humana nos
externas, com a palavra de ordem “O único antidemocráticas de seus regimes, nas vio- países árabes, deve-se fazer uma distinção
grito é o grito de guerra”, marginalizando lações dos direitos humanos e na deterio- entre as ameaças que afetam toda a região e
as necessidades sociais e econômicas dos ração das condições de vida. as ameaças internas de cada Estado. É crucial
povos. Além disso, a alocação da maior O papel não-regulado da religião nos paí- entender que a segurança do indivíduo nos
parte dos orçamentos nacionais para a mi- ses árabes e a incapacidade de fortalecer o países árabes não depende somente da se-
litarização e a compra de armas, assim como secularismo continuarão a apresentar uma gurança das fronteiras nacionais e da solu-
a ausência de democracia e as restrições ameaça à segurança humana. A maior parte ção dos conflitos na região.
impostas à participação das organizações das guerras do último século tinha raízes em Embora muitos aspectos da segurança
da sociedade civil, resultou na perda de conflitos étnicos (como as relacionadas aos humana (respeito aos direitos humanos, li-
oportunidades para avançar em diferentes povos curdo, berbere e saaráui) e religiosos berdade diante das privações e do medo,
campos do desenvolvimento e no enfra- (Líbano, Argélia, Egito e Sudão). Enquanto alimentação, habitação e educação adequa-
quecimento de estruturas governamentais as questões religiosas não forem separadas das) sejam suprimidos em áreas de conflito,
e dos processos decisórios. da vida política e social, serão uma ameaça como na Palestina e no Iraque, isso não sig-
A “guerra contra o terrorismo” está mu- significativa à segurança humana de cidadãs nifica que deva ocorrer o mesmo em outros
dando o conceito de segurança na região, e cidadãos árabes. países árabes. No entanto, os conflitos na
afastando o foco do indivíduo para enfatizar O fundamentalismo religioso, um as- região geram obstáculos significativos para
outra vez o Estado. Em nome das liberdades pecto central do atual conceito de terroris- os países vizinhos à Palestina e ao Iraque,
individuais e dos direitos humanos e, por- mo global, não tem suas raízes numa única desestabilizando o processo de decisão po-
tanto, em nome da segurança humana, têm fonte. No entanto, a situação dos países lítica e privando-os de muitas oportunida-
sido direcionados esforços globais para con- árabes e as condições nas quais vivem os des para atrair investimentos estrangeiros.
trabalançar os impactos negativos das es- povos árabes tiveram um papel significati- Assim, é essencial que os Estados e líderes
vo no aumento do fundamentalismo na re- árabes compreendam que têm o poder e a
gião. Na maior parte dos países, as eleições capacidade de fortalecer a segurança huma-
não são livres e justas, a participação das na em seus países. Esse processo de empo-
mulheres é muito restrita, as organizações deramento, que os governos poderiam iniciar
9 Os fundamentalismos religiosos, sejam cristãos, da sociedade civil continuam a enfrentar li- dentro de seus próprios países e com apoio
judaicos ou islâmicos, estão crescendo em todo o mitações consideráveis em relação a seu de sua população, é um requisito para aju-
mundo. Esse fenômeno ocorre nos Estados Unidos, onde
os interesses da ultradireita judaica, aliada a grupos
direito de existir e à sua capacidade de cum- dar as causas da Palestina e do Iraque e
cristãos neoconservadores, tiveram uma influência prir um papel ativo, há um controle estrito apoiar seus respectivos povos. Um Estado
importante na política externa dos Estados Unidos. Além do Estado sobre as associações civis e não
disso, o sionismo, como ideologia ultrajudaica, defende a que seja débil internamente não pode ofere-
matança de crianças e civis da Palestina em nome da existe mídia independente. cer apoio a outro, enquanto aquele cujo povo
Torá e da crença de que judeus e judias, como o “povo Todos esses problemas são internos a
eleito”, têm o direito exclusivo de viver na Terra Santa.
Esses grupos, nos Estados Unidos e em Israel, não
cada um dos países árabes e poderiam ser
enxergam as violações dos direitos humanos que sofrem enfrentados independentemente do conflito
diariamente civis de origem palestina no território regional. Contudo, um novo item na agenda
ocupado. No entanto, no caso de outras religiões que não 10 BAJPAI, Kanti. Human security: concept and measurement.
o Islã, o rótulo de “fundamentalista” não é aplicado
da política mundial – a guerra contra o ter- Disponível em: <www.nd.edu/~krocinst/ocpapers/
indiscriminadamente a todos(as) os(as) fiéis. rorismo – tem prejudicado esse avanço, ao ab5_19_1.html>. Acesso em: 17 out. 2004

Observatório da Cidadania 2004 / 26


está empoderado pode mobilizar recursos caso da guerra contra o terrorismo, entre- Os conflitos mais violentos do século
de maneira mais eficaz e consolidar sua pró- tanto, essas reformas estão sendo imple- 20 foram travados em nome da religião,
pria soberania e políticas nacionais. mentadas por meio do uso de coerção, da política, da etnicidade ou da superiori-
No mundo árabe, a opinião geral é a de enquanto no contexto da OMC e da Parceria dade racial. 13 Não somente os países po-
que “a segurança estatal continuará frágil Euro-mediterrânea elas foram defendidas bres estão envolvidos em guerras – “os
até que a segurança regional seja alcançada, sem recorrer à ameaça de ação militar. Como maiores conflitos nesse século foram tra-
o que torna difícil falar de segurança huma- já foi dito, os avanços têm sido em geral vados entre alguns dos povos mais ricos.
na como conceito independente e comple- lentos. No entanto, mesmo um processo Isso significa que são necessários enfo-
to. Ademais, o fato de os mecanismos de lento de integração à OMC e à Parceria Euro- ques políticos para as questões de segu-
direitos humanos estarem submetidos a um mediterrânea pode ser considerado um si- rança humana”. 14 Entre esses enfoques
discurso duplo mina o conceito de seguran- nal positivo, desde que reflita um enfoque políticos está o direito das “organizações
ça humana”.11 construtivo de introduzir mudanças neces- não-governamentais (ONGs) de reconstru-
Fica evidente nessa declaração uma falta sárias que beneficiem a nação como um írem a segurança”.15 É essencial reconhe-
geral de compreensão de que a segurança todo, e não somente uns poucos interesses cer o papel vital das ONGs na contribuição
estatal e regional não são os únicos fatores empresariais. Nesse sentido, as regulamen- de estratégias que atendam aos padrões
que determinam os padrões de segurança tações impostas como condição para entra- de segurança humana e no trabalho por
humana de um país. A liberdade diante das da nessas organizações estão se uma melhor compreensão do conceito de
privações e dos medos também cumpre um transformando em motores fundamentais segurança humana na opinião pública.
papel fundamental no fortalecimento do sen- das mudanças na região – sejam econômi- As ONGs poderiam aproveitar com su-
so de segurança de uma pessoa. A liberdade cas (criação de uma zona de livre comércio), cesso esse conceito das esferas acadêmi-
diante de privações começa com a implemen- sociais (intercâmbios culturais) ou políticas cas e políticas, introduzindo-o na arena
tação de políticas e estratégias econômicas (democracia e direitos humanos). da compreensão e da consciência públi-
saudáveis, que tenham como meta a justiça Entretanto, como observa o relatório ca, e dando-lhe um enfoque prático e di-
social. Essa liberdade pode ser ainda mais de Barein: “O acesso de Barein à OMC teve recionado às mudanças. O papel das
consolidada pelos governos, por meio da luta um efeito positivo nos processos de demo- organizações da sociedade civil árabe é
contra a corrupção e malversação dos recur- cratização e promoção dos direitos huma- essencial no processo de enfrentar as
sos públicos. A liberdade diante do medo de- nos. Porém, a estratégia dos Estados raízes dos problemas de segurança hu-
pende do respeito aos direitos humanos e de Unidos de combinar a guerra contra o ter- mana nos Estados árabes, trabalhando
sua consolidação, assim como da postura rorismo com a reforma dos regimes alia- os temas: direitos humanos, direitos da
do governo de apoiar as pessoas, no lugar dos, como em Barein, embora positiva no mulher, direitos das crianças, seguridade
de reprimi-las e desrespeitá-las. curto prazo, pode ser negativa no longo social, segurança alimentar, habitação etc.
prazo”.12 Assim, a adoção de reformas po- No entanto, esse processo exigirá a trans-
O papel das ONGs e dos movimentos sociais líticas estruturais para assegurar um ambi- formação das políticas institucionais e dos
Algumas pessoas dirão que o objetivo da- ente favorável às empresas transnacionais, valores nos Estados árabes, de modo a
queles países que fazem a guerra contra o no lugar de segurança humana para a po- permitir que as organizações civis árabes
terrorismo é exercer pressão sobre os regi- pulação, causará rupturas em todo o pro- consigam legitimidade e autonomia, as-
mes árabes para que introduzam reformas cesso e trará conseqüências negativas para sim como um marco legal que empodere
políticas que promovam a democracia. No a segurança interna no longo prazo. seu trabalho.

13 BAJPAI, op. cit.


12 Ver o texto “Bahrain: progress and obstacles on the road
to human security”, da Bahrain Human Rights Society, 14 HEIBENCKER, op. cit.
11 Extraído de um discurso de Amro Mousa, secretário-
geral da Liga Árabe. incluído na edição em inglês do Social Watch 2004. 15 Ibidem.

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Interesses comerciais, políticos e religiosos no caminho
dos direitos humanos

O campo dos direitos humanos tem sido afetado, em grande medida, pelas negociações comerciais. Democracias que
buscam avançar na garantia de direitos sociais e no desenvolvimento humano de suas populações enfrentam a poderosa
aliança conservadora entre o governo de George W. Bush, o Vaticano e os países islâmicos. Pressões desse bloco visam
atacar os direitos e a autodeterminação das pessoas na esfera da sexualidade e da reprodução. Para enfrentá-las, será
fundamental reforçar a coalizão da sociedade civil em defesa da chamada Resolução Brasileira sobre Direitos Humanos
e Orientação Sexual, que deverá ser votada em 2005.

Magaly Pazello1 Sul, em função das denúncias de que os acor- o Desenvolvimento (Unctad, na sigla em in-
dos internacionais sobre patentes criam obs- glês), ocorrida em 2004, em São Paulo, um
O tema dos direitos humanos e suas táculos às políticas nacionais de saúde pública painel promovido pelo programa global, de-
intrincadas relações com o comércio inter- e afetam dramaticamente as populações po- senvolvido pela Unctad e pelo Programa das
nacional – ou seu inverso, as negociações bres e os países menos desenvolvidos. No Nações Unidas para o Desenvolvimento
comerciais e o modo como elas podem es- mesmo ano, o Brasil conseguiu aprovar uma (Pnud), sobre globalização, liberalização e
tar atreladas a situações que põem em risco resolução na Comissão de Direitos Humanos desenvolvimento humano sustentável -–
os direitos humanos – é um desafio para a (CDH) da Organização das Nações Unidas cujos eixos são economia do conhecimen-
democracia e a luta dos movimentos sociais (ONU), na qual se afirma que o acesso aos to, energia e água – apresentou resultados
por um mundo justo e melhor. Negociações medicamentos essenciais deve ser conside- das atividades desenvolvidas em países da
comerciais entre países são bastante com- rado como um dos direitos humanos funda- África, do Sudeste Asiático e da América La-
plexas e técnicas, sobretudo após a conso- mentais. Todos os países que compõem a tina. Entre elas, o uso das novas Tecnologias
lidação da globalização, que cria um ambiente CDH aprovaram a proposta, à exceção dos de Informação e Comunicação (TICs) – com-
na área do comércio totalmente novo no Estados Unidos, que se abstiveram de votar.3 putadores, Internet, celulares – por países
que diz respeito a sua regulação. Os muitos As vinculações entre comércio e direitos em desenvolvimento e menos desenvolvi-
interesses em jogo passam também a incluir humanos podem ser mais ou menos per- dos para alcançar competitividade internaci-
o debate internacional do campo dos direi- ceptíveis, dependendo dos conteúdos em onal com eficiência social, pois cria inúmeros
tos humanos como um elemento integrante disputa nas negociações da esfera internaci- postos de trabalho.
dessas negociações. onal. No caso patentes versus saúde pública,
Devemos recordar como, em 2001, foi estava claro que se tratava de uma luta entre Na arena dos direitos sexuais
importante o argumento dos direitos huma- a preservação a qualquer custo do capital da Um dos fatores positivos enfatizados foram
nos na discussão do painel aberto pelos Es- indústria farmacêutica, defendido pelos Esta- os benefícios para as mulheres decorrentes
tados Unidos contra o Brasil na Organização dos Unidos, e a qualidade de vida de pessoas das TICs, uma vez que os postos de trabalho
Mundial do Comércio (OMC) sobre o que vivem com o HIV, representada pela de- nesse setor econômico são, majoritariamen-
licenciamento compulsório2 de medicamen- terminação do Brasil em garantir o direito do te, ocupados por mulheres, como ocorre no
tos para tratamento do HIV/Aids. Com a pres- acesso aos medicamentos, o que era com- Sudeste Asiático. Contudo, o aumento da
são da opinião pública internacional e das prometido pelo Acordo sobre Direitos de Pro- empregabilidade feminina e a maior
ONGs que atuam nesse campo, os Estados priedade Intelectual Relacionados com o competitividade dos países se fazem às cus-
Unidos retiraram a queixa contra o Brasil. Em Comércio (Trips, na sigla em inglês), da OMC, tas de baixa remuneração e da dupla jornada
2001, as multinacionais farmacêuticas tam- que impunha uma carga financeira. de trabalho. As mulheres, que comprovada-
bém se viram obrigadas a retirar o processo No entanto, as vinculações pouco per- mente recebem menos do que os homens,
judicial aberto contra o governo da África do ceptíveis têm um impacto perverso sobre a ainda que ocupem o mesmo cargo e execu-
vida cotidiana das pessoas, em especial das tem trabalho idêntico, continuam sendo res-
mulheres. Durante a 11ª Reunião da Confe- ponsáveis pela reprodução social (cuidado
rência das Nações Unidas para o Comércio e da casa, de crianças, de doentes etc.), como
1 Colaboradora da rede Development Alternatives with se isso fosse inerente à condição feminina e
Women for a New Era (Dawn). só às mulheres coubesse.
2 Previsto na legislação brasileira, o licenciamento Desse modo, governos e empresas se
compulsório foi alvo de contestação por parte dos
utilizam do trabalho invisível e gratuito das
Estados Unidos, país onde se concentra a maior parte 3 Ver carta do Programa Nacional de DST e Aids.
dos laboratórios que detêm as patentes dos Disponível em: <http://www.aids.gov.br/final/biblioteca/ mulheres na esfera doméstica, bem como
medicamentos para HIV/Aids. bol_htm/boletim1.htm>. Acesso em: 22 set. 2004. da baixa remuneração da força de trabalho

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feminina, para alavancar economias no Sul, exterior para os países árabes e a China, além pecificamente voltada para contemplar a ques-
baixando o preço da produção de bens de de consolidar alianças com a Índia e a África tão da orientação sexual foi apresentada à
consumo vendidos no mercado internacio- do Sul. Esse posicionamento no âmbito co- comissão, apesar de os relatórios da CDH
nal. Além disso, na divisão das atividades mercial exige da nossa diplomacia compe- sobre violações terem denunciado seguida-
produtivas das multinacionais de eletroele- tência para manter o equilíbrio entre as mente esse tipo de violação, até por parte de
trônicos, cabem aos países menos desen- parcerias comerciais e os posicionamentos legislações de países como a Índia (que crimi-
volvidos aquelas que agregam menor valor divergentes com esses países em fóruns cujos naliza o homossexualismo, considerando-o
intelectual, isto é, destinam-se a esses paí- contenciosos dizem respeito a temas polêmi- sodomia). O texto da resolução, baseado na
ses as etapas de produção manual. Muitas cos, como os direitos humanos e, ainda mais, Declaração Universal de Direitos Humanos,
empresas se instalam nos países que ofere- os direitos sexuais e reprodutivos. afirma, entre outras coisas, que os direitos de
cem condições especiais, como a não-obri- todas as pessoas devem ser protegidos in-
gação de respeito às leis trabalhistas. A Resolução Brasileira dependentemente de sua orientação sexual e
Quando trazemos à arena do debate so- Para contextualizar o que significa a Resolu- solicita que o Alto Comissariado da ONU dê
bre direitos humanos os chamados direitos ção sobre Direitos Humanos e Orientação Se- especial atenção a esse tipo de violação.5
sexuais e reprodutivos, as vinculações com xual defendida pelo Brasil na CDH, é necessário A Resolução sobre Direitos Humanos e
o comércio não só se tornam mais imper- voltar no tempo. Na 59ª Reunião Anual da Orientação Sexual, chamada simplesmente de
ceptíveis como também perversas. No âm- CDH, em 2003, o Brasil apresentou uma pro- Resolução Brasileira, teve uma resposta favo-
bito global, o grande fórum de debate sobre posta de resolução (E/CN.4/2003/L.92) para rável de apoio, por parte de muitos países, em
direitos humanos é a ONU. Uma vez ao ano, enfrentar as constantes violações dos direi- negociações informais. Entretanto, durante a
os Estados membros que compõem a CDH tos humanos sofridas por lésbicas, gays, reunião de 2003, e diante da oposição encon-
se reúnem em Genebra. Nessas reuniões, bissexuais, transgêneros e transexuais trada, aqueles que apoiavam a resolução pro-
são apresentados informes preparados pela (LGBT). Pela primeira vez, uma proposta es- puseram um texto mais resumido do que foi
ONU sobre violações dos direitos humanos
segundo temas ou casos específicos. Tam-
bém são feitas recomendações aos países. Discriminação e violência contra homossexuais
Como afirma Ana Elena Obando, a “CDH não
é uma exceção na guerra de valores ideoló- Em muitos países, a discriminação e a ponsável pelo menino, que foi alvo de
gicos que atentam contra os princípios e as intolerância baseadas na orientação se- uma disputa judicial movida pelo pai da
normas do direito internacional no campo xual e identidade de gênero têm sido a cantora, baseando-se no argumento mo-
dos direitos humanos”.4 razão da violência contra lésbicas, gays, ral da orientação sexual. Havia um
Em 2004, durante a 60ª reunião da CDH, bissexuais, transgêneros e transexuais. impasse sobre o caso, pois o pai biológi-
ocorrida em Genebra, quando, pela segun- Tal violência inclui desde constrangimen- co de Chicão havia falecido antes de seu
da vez, o Brasil apresentou uma resolução tos até prisões e agressões físicas de todo nascimento. Após intensa batalha judicial
sobre direitos humanos e orientação sexual, tipo, além de tortura, ameaças de morte e de opinião pública, Eugênia ganhou o
a componente comércio foi utilizada como e assassinatos. No Brasil, somente em direito à guarda de Chicão, contando ain-
instrumento de pressão na tentativa de reti- 2001, ocorreram 132 mortes documen- da com o apoio da mãe de Cássia Eller.
rar o texto da pauta da comissão. Para fazer tadas. Nos últimos 20 anos, somam-se Mesmo em contextos políticos de-
prevalecer valores ideológicos conservado- 2.092 assassinatos de homossexuais.6 mocráticos mais estáveis, a orientação
res, na sua maioria fundamentados na reli- Dois casos emblemáticos merecem sexual é motivo de vexame público, so-
gião, o bloco opositor da resolução (países ser mencionados. O primeiro deles refe- bretudo se envolve pessoas do cenário
islâmicos, Vaticano e Estados Unidos) lan- re-se à morte por espancamento do ades- político ligadas a partidos conservado-
çou mão de uma ofensiva que incluiu uma trador de cães Edson Néri, 31 anos, res. Recentemente, o governador de Nova
sutil ameaça de boicote à 11ª Unctad. Isto ocorrida em 2002. Ele passeava com seu Jersey, Estados Unidos, filiado ao Partido
poderia resultar num enorme fracasso da companheiro no centro da maior cidade Republicano, renunciou ao cargo após
conferência, o que, além do vexame, criaria do país, São Paulo, quando um grupo suspeitas, veiculadas publicamente, de
uma imagem de falta de confiança no Brasil. denominado Carecas do ABC atacou-os que ele mantinha relações sexuais com
Por sua vez, o Estado brasileiro perse- porque eram homossexuais. Na mesma outro homem. O anúncio da renúncia de
gue o papel de liderança na esfera internacio- época, iniciava-se a disputa judicial pela James McGreevey foi marcado pelo cons-
nal entre os países em desenvolvimento e os guarda do filho da cantora Cássia Eller, trangimento de admitir que era gay. Mas
menos desenvolvidos. O governo Lula busca falecida no fim de 2001. Cássia vivia com a renúncia não foi suficiente para livrá-lo
explicitamente a ampliação do mercado para sua companheira, Eugênia, desde que o das páginas dos jornais e de estar sendo
exportação de produtos brasileiros. O Brasil filho, Chicão, nasceu. Eugênia ficou res- acusado de assédio por um ex-assessor.
vem expandindo suas ações de comércio

6 Ver texto do Grupo Gay da Bahia (GGB). Disponível 5 Disponível em:


4 Disponível em: <http://www.whrnet.org/docs/tema- em:<http://www.ggb.org.br/crime.html>. Acesso em: 22 <http://www.resolucaobrasileira.blogger.com.br/>.
derechossexuales-0404.html>. Acesso em: 22 set. 2004. set. 2004. Acesso em: 22 set. 2004.

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discutido pela comissão. Mesmo assim, a opo- tarem às suas representações diplomáticas des de direitos humanos internacionais como
sição foi contundente por parte do bloco dos em Brasília ações de persuasão direta. Num Human Rights Watch e Anistia Internacional,
países conservadores e do Vaticano. O embai- ambiente marcado pela ênfase no crescimento bem como organizações especializadas em
xador do Paquistão declarou, em plenária, que econômico e no estabelecimento de parceri- questões LGBT, população e desenvolvi-
considerava a proposta um insulto ao 1,2 bi- as comerciais (países árabes e China), não mento, saúde, além de entidades feministas.
lhão de pessoas muçulmanas no mundo, pois havia como prever qual seria a reação do Participaram do evento dois diplomatas bra-
se tratava de uma expressão cultural exclusiva governo brasileiro. Era necessário, portanto, sileiros que negociaram a resolução.10
do Ocidente. Também disse que não havia ho- saber se o Brasil daria continuidade à negoci-
mossexuais entre o povo árabe. Houve tam- ação, uma vez que o enfrentamento seria de Ameaça de boicote adia votação
bém pressão do Vaticano dirigida a “certos novo contra os países árabes, representados Estavam criadas, portanto, as condições para
países da América Latina” para que votassem pela Organização das Conferências Islâmicas uma grande batalha: de um lado, um podero-
contra a proposta. Na batalha pela aprovação (OIC),7 que integra o bloco opositor à resolu- so bloco opositor que alia os interesses do
da resolução, o bloco opositor chegou a pedir ção, junto com o Vaticano e os Estados Uni- capital aos valores ideológicos da religião; do
que se retirasse o termo “orientação sexual” dos. Paralelamente à apresentação da outro, grupos organizados da sociedade civil
do texto. Diante do impasse, o presidente da resolução em Genebra, o Brasil dava início às de várias partes do mundo que, na sua maio-
comissão propôs, estrategicamente, o adia- negociações para realizar, no país, uma cú- ria, enfrentam o cotidiano de assassinatos,
mento da votação do texto para 2004. pula entre países árabes e sul-americanos. prisões e torturas de homossexuais. No meio,
Muito embora a questão da orientação Essa cúpula foi, finalmente, anunciada para o Brasil, tentando equilibrar-se na tênue fron-
sexual já tivesse sido tratada em reuniões an- abril de 2005, em São Paulo, durante a visita teira de uma agenda extremamente avançada
teriores da CDH, em 2002, apesar do intenso de Lula ao Chile (agosto, 2004). em direitos humanos e o desejo de tornar-se
ataque promovido pelo bloco conservador, Após a decisão de adiamento da votação uma liderança na esfera do comércio interna-
foram aprovadas resoluções contrárias à pena da Resolução Brasileira e como resposta ao cional, consolidando parcerias com os países
de morte e às execuções sumárias que men- bloco opositor, as organizações da socieda- sobre os quais há inúmeras denúncias de vio-
cionavam explicitamente como causas a ori- de civil internacional iniciaram campanhas de lações às liberdades individuais e uma brutal
entação sexual. Em 2003, a Resolução apoio à resolução e visitas às missões e em- regulação da sexualidade dos indivíduos adul-
Brasileira surpreendeu os grupos conserva- baixadas brasileiras. Entre essas ações, des- tos. Tudo isso num contexto em que a ONU
dores. Ainda que, rapidamente, tenham se taca-se a campanha da International Lesbian está sob um forte ataque político e financeiro.
organizado para impedir que a resolução and Gay Association (Ilga).8 Do lado opositor Somavam-se ainda dois fatos relevantes:
pudesse ter chances de aprovação, a argu- também houve campanhas públicas9 contra os debates, no Parlamento Europeu, a respei-
mentação, que fundamenta o texto apresen- a resolução, em grande parte lideradas por to de uma legislação de proteção aos direitos
tado na CDH, estava muito bem construída associações e grupos católicos conservado- LGBT, incluindo o casamento de pessoas do
sob os princípios dos direitos humanos e da res dos Estados Unidos. mesmo sexo, e a iniciativa do secretário-geral
defesa da pessoa humana. Assim, se, de um De certo modo, também houve surpresa da ONU, Kofi Annan, ainda a ser votada, de
lado, houve grande impasse na plenária en- por parte da sociedade civil e de movimentos estender os benefícios a parceiros e parceiras
tre os grupos pró e contra a resolução, de LGBT. O conjunto das organizações brasilei- do mesmo sexo de funcionários e funcionári-
outro, a argumentação firme por parte do ras não se deu conta do processo em curso as da ONU originários de países onde tais be-
governo brasileiro sustentou a aliança a favor na CDH imediatamente. Foi necessário que as nefícios são garantidos. A iniciativa teve apoio
da medida, formada por vários países da organizações presentes na reunião de 2003 do Grupo dos Países Latino-Americanos e do
União Européia, Canadá, República Tcheca, dessem o alerta e propusessem uma mobili- Caribe (Grulac) e da União Européia (UE), ao
Finlândia, Austrália, entre outros. Da América zação global de apoio à resolução e ao gover- passo que a OIC se opunha completamente.
Latina, destacam-se México e Costa Rica, que no brasileiro. Assim, em um encontro A Resolução Brasileira foi reapresentada
inicialmente estavam a favor, mas a pressão realizado no Rio de Janeiro, em dezembro de diante de um bloco opositor ainda mais co-
do Vaticano nitidamente os forçou a recuar. 2003, com ONGs e movimentos de todas as eso e determinado a impedir a votação ou a
Entre as duas reuniões da CDH, houve regiões do mundo, foi criada uma coalizão derrotá-la. Contudo, dessa vez, havia mais
uma intensa movimentação em torno da pro- para organizar e implementar ações de vozes na defesa da resolução. Nova Zelândia
posta brasileira, que foi se tornando mais inci- advocacy com vistas à reunião de 2004. O e Canadá (embora na condição de observa-
siva à medida que se aproximava a reunião de encontro contou com a participação de re- dores que tinham voz, não podiam propor
2004. A pressão exercida, principalmente, pe- textos em plenária e muito menos votar) fo-
los países do bloco árabe, que, na CDH, foi ram aliados importantes nas negociações e
liderado por Paquistão e Egito, somada à reno- sustentação da resolução. A Argentina e o
vação de quadros da missão brasileira em Ge- 7 A OIC é uma associação formada por 56 países México, que são sensíveis à pressão do
islâmicos que visa a promoção da solidariedade
nebra, criou um ambiente de muitas dúvidas Vaticano, também se manifestaram publica-
econômica, social e política. Inclui países
quanto à possibilidade de o Brasil sustentar a tão diversos como Gâmbia, Nigéria, Malásia, mente a favor do texto. As ONGs, por sua
proposta e reapresentá-la na reunião de 2004. Indonésia, Albânia e Guiana. vez, estavam bastante ativas e propuseram a
Portanto, entre os fatores de grande in- 8 Ver texto de apoio à resolução. Disponível em: <http://
www.brazilianresolution.com/>. Acesso em: 22 set. 2004.
certeza com relação à resolução, estava a
9 Ver texto contrário à resolução. Disponível em:
resistência do Brasil às pressões externas, a <http://www.stopbrazilianresolution.com/>. Acesso
ponto de até os países do bloco árabe solici- em: 22 set. 2004. 10 Ver <http://www.resolucaobrasileira.blogger.com.br/>.

Observatório da Cidadania 2004 / 30


A aliança conservadora
Orientação sexual e exercício da sexualida- tam naqueles países que defendem o prin- movidas pela Casa Branca. E seu alvo prin-
de não são temas novos na arena dos di- cípio da regulação estrita da sexualidade cipal, no campo dos direitos humanos, foi
reitos humanos, muito menos na esfera humana. Exemplo disso é a imposição do o cerceamento à autodeterminação das
de negociações multilaterais da ONU. De- Vaticano no que concerne às relações se- pessoas. Os constantes ataques aos direi-
vemos recordar a importância da Confe- xuais, quando prega que devem ser reali- tos sexuais e reprodutivos fazem parte da
rência Internacional sobre População e zadas unicamente para a procriação. marca indelével desse governo.
Desenvolvimento (CIPD), realizada no Cai- O governo de George W. Bush decla- Essa combinação do político com o
ro, em 1994: um de seus resultados mais rou guerra aos casamentos entre pessoas religioso, além de representar um ataque
significativos foi a consagração do termo do mesmo sexo e reproduziu as declara- frontal ao Estado laico, é contra a autono-
“saúde e direitos sexuais e reprodutivos”. ções do papa João Paulo II, além de ter mia das pessoas na esfera da sexualidade,
Desde então, muito se avançou no argumentado que o combate eficaz ao HIV/ e tem como alvo principal o direito à auto-
campo e na definição conceitual desses Aids se faz com a abstinência sexual. Para determinação das mulheres e do reconhe-
termos. Faz-se, hoje, uma distinção entre isso, utilizou-se de todo o aparato de mídia cimento da diversidade sexual. Este é o elo
direitos reprodutivos e direitos sexuais. de que dispõe a Casa Branca. Como os mais forte entre os grupos conservadores
Essa distinção é importante ao se conside- Estados Unidos são a maior força militar e religiosos (por exemplo, entre católicos e
rar o amplo campo da sexualidade em suas econômica no mundo pós-guerra, todos islâmicos) e entre os Estados Unidos e os
dinâmicas e implicações políticas. Orienta- os debates, negociações e decisões na países árabes. Mesmo após os eventos de
ção sexual não é um termo distante do esfera internacional estão enviesados, atu- 11 de setembro e as afirmações de retalia-
debate internacional, assim como o con- almente, pelos posicionamentos e ações ção ao chamado por Bush “eixo do mal”
ceito de identidade de gênero. Eles inte- unilaterais do governo Bush. Os aconte- (Coréia do Norte, Irã e Iraque da época de
gram o complicado quadro dos temas cimentos de 11 de setembro de 2001 Saddam Hussein), não houve mudança na
contenciosos, dada a reação que desper- agravaram as políticas conservadoras pro- aliança Vaticano, Estados Unidos e OIC.

melhora do texto para a inclusão do termo seria conseguida com um número muito se sabe ainda quem vencerá as eleições pre-
“identidade de gênero”, tão importante quan- pequeno de países. Isso poderia ser pior do sidenciais dos Estados Unidos, mas, se John
to “orientação sexual”, com o qual amplia a que adiar a votação outra vez, pois a vitória Kerry ocupar a Casa Branca, no dia seguinte
abrangência na proteção e promoção dos com margem pequena de votos tornaria a à sua posse, o posicionamento em relação
direitos humanos para pessoas LGBT. resolução vulnerável e ineficaz. Assim, a vo- aos direitos sexuais e reprodutivos mudará
A aliança estabelecida entre Estados Uni- tação foi adiada para 2005. radicalmente. Mudanças radicais ocorreram
dos, OIC e Vaticano estrategicamente atacou Segundo Elena Obando, pela dimensão quando Bill Clinton sucedeu George Bush (pai)
todas as referências aos direitos sexuais con- positiva do trabalho realizado na CDH e ape- e também quando o Partido Republicano
tidas em outras resoluções apresentadas para sar da postergação, houve um consenso retornou à Casa Branca em 2001.
votação (que tratavam de violência contra as histórico em todas as regiões para tal. Por- Porém, isso indica que há muito traba-
mulheres, tortura, execuções sumárias ou ar- tanto, o tema permanece na agenda de di- lho pela frente, pois a decisão do governo
bitrárias, saúde, entre outras), ampliando a reitos humanos para ser discutido no brasileiro de reapresentar, em 2004, a reso-
tensão. As negociações a portas fechadas, próximo ano. Dessa maneira, e em termos lução para votação se deveu, sobretudo, à
convocadas pelo bloco opositor, tiveram como de visibilidade histórica, as vozes LGBT do forte pressão da opinião pública favorável
objetivo demover a delegação brasileira da Sul e outras foram ouvidas tanto pela CDH ao texto. Para 2005, será crucial consolidar
intenção de levar à votação a resolução que como pelas diversas relatorias da ONU e por a coalizão da sociedade civil, criada em de-
tratava da orientação sexual. Para tanto, como representantes dos países da comissão (hou- zembro de 2003, assim como as articula-
mencionado, a pressão incluiu a sutil ameaça ve até quem demonstrasse receptividade ao ções nacionais entre os diversos movimentos
de boicote à Unctad e o cancelamento da lobby LGBT). que lutam pelos direitos sexuais e os direitos
cúpula entre a América do Sul e os países humanos, ampliando o diálogo entre setores
árabes. No Brasil, o arcebispo emérito do Rio Os desafios para 2005 da sociedade, e as articulações internacio-
de Janeiro dom Eugenio Sales utilizou sua O cenário parece ser mais positivo para 2005. nais, com as diversas redes que acom-
coluna no jornal O Globo para atacar siste- No que se refere à mudança do quadro dos panham processos globais.
maticamente a resolução, afirmando que ela Estados membros da CDH, por exemplo, Ca- Mas a resolução é apenas um passo no
seria contrária aos direitos humanos e repre- nadá e Nova Zelândia, que são favoráveis à enfrentamento das violações aos direitos hu-
sentava a destruição da família e o estímulo à Resolução Brasileira, passam da condição de manos das pessoas LGBT, das mudanças
discriminação religiosa. Alguns sites religio- observadores para membros efetivos. Não das legislações nacionais punitivas, do fim
sos comparavam a proposta brasileira com da pena de morte de homossexuais e do
as atrocidades de Hitler.11 uso da sexualidade como moeda de troca
Embora houvesse votos suficientes para em negociações comerciais. Esses são de-
aprovar o texto em plenária, o ambiente não 11 Ver <http://www.whrnet.org/docs/tema-
safios que precisamos vislumbrar na luta pela
era favorável a uma votação, pois a vitória derechossexuales-0404.html>. dignidade humana.

Observatório da Cidadania 2004 / 31


A ameaça aos consensos do Cairo 1

Dez anos após a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, ocorrida no Cairo, controvérsias à
esquerda e à direita têm provocado debates acirrados, principalmente no que diz respeito a temas como direitos
reprodutivos e sexualidade. Em aliança com o Vaticano e os países islâmicos, os Estados Unidos pressionam fortemente
os governos que apóiam as deliberações da conferência. Essa atitude, no entanto, vem encontrando resistência, de
modo especial em países da América Latina, que lutam contra o fundamentalismo.

Sonia Corrêa2 elabora uma definição de família, além de Estratégia conservadora


escaramuças pontuais em relação a igualda- Porém, é preciso dizer que as grandes con-
O debate sobre população e desenvolvimento de de gênero, migração, papel das ONGs e trovérsias relacionadas ao Cairo se situam
tem sido, desde o século 18, atravessado usos das tecnologias. no campo dos conteúdos relativos a família,
por controvérsias agudas. Na Conferência Desde 1994, registram-se, em todo mun- sexualidade, reprodução e adolescência, que
Internacional sobre População e Desenvol- do, avanços importantes, seja no que diz res- têm estado sob ataque persistente das for-
vimento (CIPD), ocorrida no Cairo, em 1994, peito à legitimação da linguagem do Cairo – ças do conservadorismo moral. No âmbito
muito embora tenha sido possível construir especialmente no caso da saúde e dos direi- da própria Organização das Nações Unidas
um novo consenso sobre essa correlação – tos sexuais e reprodutivos –, seja em termos (ONU), esse ataque assumiria contornos
ancorado em princípios de direitos huma- de implementação de políticas nacionais con- dramáticos, tanto no Cairo+5 como em Pe-
nos, igualdade de gênero e promoção do sistentes com as diretrizes do Programa de quim+5, 3 quando essas forças fizeram o
bem-estar –, as negociações relativas a Ação. Contudo, críticas ao consenso do Cai- possível para destruir os consensos de 1994
alguns conteúdos consumiram horas inter- ro têm florescido tanto à “esquerda” como à e 1995. Nossa interpretação, já naquele
mináveis de trabalho. Falou-se muito sobre “direita” do espectro político. momento, era de que o Vaticano e os países
as mais de 40 horas gastas no debate dos À esquerda, feministas e vozes da islâmicos haviam optado pela estratégia de
parágrafos 7.2 e 7.3, que definem a saúde demografia, especialmente latino-america- impedir a adoção de novos documentos,
e os direitos reprodutivos, bem como do na e indiana, afirmam que o documento pois isso poderia ser politicamente interpre-
parágrafo 8.25, que trata do aborto como final não dedica suficiente atenção às ques- tado como se os consensos do Cairo e de
um grave problema de saúde pública. tões de desenvolvimento, pobreza e desi- Pequim não tivessem mais ressonância. Essa
Entretanto, deve-se dizer que outros as- gualdade. As posições mais extremas estratégia continua em pauta, e seu poder
pectos do Programa de Ação do Cairo fo- chegam a afirmar que o Cairo foi apenas de fogo foi claramente amplificado a partir
ram também objeto de debates acirrados. uma nova versão suavizada do velho “con- da chegada do governo Bush ao poder no
Um exemplo é o terceiro capítulo, que traz trole populacional”. Mais especificamente, início de 2001.
análises e recomendações sobre população, no campo demográfico, há quem diga que Desde então, os ataques à agenda do
pobreza e desenvolvimento sustentável, o o documento final carece de elementos mais Cairo têm sido sistemáticos e cada vez mais
mesmo se aplicando ao parágrafo 4.1, que precisos sobre a dinâmica demográfica glo- virulentos. Basta lembrar que a primeira
bal, em especial no que se refere à estrutu- medida administrativa tomada por Bush foi
ra etária e ao envelhecimento. exatamente a reatualização da chamada Lei
À “direita”, particularmente nos Estados da Mordaça, que impede o uso de recursos
Unidos, os setores mais empedernidos da Agência Norte-Americana para o Desen-
1 Uma primeira versão deste texto está incluída em Dez
do planejamento familiar desenvolveram volvimento Internacional (Usaid) por parte
anos do Cairo: tendências da fecundidade e direitos o argumento de que a agenda do Cairo de ONGs de países que realizem atividades
reprodutivos no Brasil, publicação organizada por era demasiadamente ampla e complexa, e
André Caetano, Sonia Corrêa e José Eustáquio Diniz
Alves. O Observatório da Cidadania agradece à isso dificultava a implementação e, em es-
Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Abep) pecial, a alavancagem de recursos. Esse
e ao Fundo das Nações Unidas para a População
argumento leva facilmente à conclusão de
(UNFPA), responsáveis pela publicação, e aos editores
a cessão do texto. que é mais fácil retomar aos velhos e bons
3 Cairo+5 é como se convencionou chamar o processo
2 Coordenadora da área de Saúde, Direitos Sexuais e parâmetros das necessidades não aten- de revisão e a avaliação da CIPD, que ocorreu passados
Reprodutivos da Rede Dawn – Alternativas de didas de planejamento familiar, usadas cinco anos da realização da conferência. O mesmo
Desenvolvimento com Mulheres por uma Nova Era, a ocorre com relação a Pequim+5, que é o processo de
partir de um projeto sediado na Associação Brasileira
eventualmente como estratégia para re- revisão e avaliação da Conferência Mundial sobre as
Interdisciplinar de Aids (Abia). duzir a pobreza. Mulheres, ocorrida em Pequim, em 1995.

Observatório da Cidadania 2004 / 32


relacionadas ao aborto. Isso refletiria sobre promissos do Cairo. Todas as referências, Entretanto, o resultado final não foi ideal,
outros processos, como, por exemplo, na no documento final, a serviços de saúde pois se incluiu no texto uma referência ao
Sessão Especial da Assembléia Geral sobre sexual e reprodutiva e a direitos sexuais e relatório da conferência na sua totalidade, o
HIV/Aids, em 2001, quando foi proposta a reprodutivos foram postas entre colchetes, que significa enfatizar as reservas aos tex-
abstinência como único método de prevenção ou seja, tornaram-se objeto de negociação tos. Deve-se dizer, ainda, que, desde 2002,
do HIV/Aids. Árduas batalhas sobre serviços por falta de consenso. A arrogância dos Es- esta tem sido uma estratégia sistemática dos
de saúde sexual e reprodutiva tiveram lugar tados Unidos provocaria reação negativa por Estados Unidos: incluir, no corpo dos textos
na revisão de dez anos da Cúpula da Infância, parte de vários países asiáticos e, sobretu- aprovados ou em notas, a menção explícita
ocorrida em maio de 2002. Nas sessões do, das redes internacionais que se mobili- às reservas feitas no Cairo, de maneira a
ordinárias da Comissão para o Status da zaram rapidamente para evitar um desastre. legitimá-las politicamente.
Mulher, ocorreram vários conflitos relacio- Assim, na etapa final da conferência, os
nados a gênero, violência sexual e tráfico Estados Unidos ficaram completamente iso- Entre o risco e a resistência
de mulheres. É importante mencionar que, lados, e o documento do Cairo foi reafir- O processo do Cairo+10 na América Latina e
nessas ocasiões, os Estados Unidos operaram mado. Posteriormente, ficou claro que no Caribe deve ser situado em relação a esse
em aliança aberta não só com o Vaticano, outras negociações regionais aconteceram: contexto mais amplo, uma vez que os Estados
mas também com os países islâmicos. na América Latina e Caribe e na África. Além Unidos também são membros plenos da
disso, a mesma tensão brutal se reprodu- Comissão Econômica para a América Latina
Estados Unidos garantem restrições ziu nas sessões ordinárias da CPD de 2003 e o Caribe (Cepal), que é a instância institu-
Em 2001, as pressões estadunidenses fize- e 2004. Em todas essas ocasiões, o núcleo cional onde o processo regional se desen-
ram com que as metas do Cairo fossem ex- central do embate foi reafirmar ou não o rola, no qual destacamos a reunião chamada
cluídas da pauta de indicadores, definida para programa de ação. “Mesa Diretiva de Acompanhamento da CIPD”,
monitorar as chamadas Metas de Desenvol- Na sessão da CPD de 2003, foi possí- ocorrida em março, na cidade de Santiago,
vimento do Milênio (MDM), que apenas con- vel, a partir de uma aliança inédita entre o no Chile. Nessa oportunidade, houve a pre-
templam medidas de morte materna e Grupo dos 77 e a União Européia, isolar sença inédita de mais de 40 países e mais
infecção pelo HIV/Aids. Em julho de 2002, o uma vez mais os Estados Unidos. Mas, na de 300 participantes, representando ONGs
Congresso estadunidense bloqueou a trans- sessão de março de 2004, produziu-se um e redes de mulheres e de jovens.
ferência de US$ 34 milhões para o Fundo sério impasse, entre outras razões, por- O resultado político de Santiago foi ex-
das Nações Unidas para a População que, na mesma semana, discutiu-se um cepcional. Não só a declaração final reafirma
(UNFPA), ampliando ainda mais as restri- boletim administrativo do secretário-geral o Cairo como também inclui menção ao
ções financeiras para implementação do Cai- Kofi Annan que anunciara uma nova regra parágrafo 63 do Cairo +5, que trata de me-
ro, especialmente nos países mais pobres. da ONU, assegurando benefícios e pensões didas de atenção ao aborto inseguro. Além
Por essa razão, desde 2002 os países a parceiros e parceiras do mesmo sexo de disso, adota linguagem clara em relação à
amigos do Cairo e as redes internacionais seus funcionários e funcionárias, sempre saúde e aos direitos de atenção aos ado-
engajadas com a agenda da conferência, que a regra exista nas leis nacionais de seus lescentes. Em relação especificamente ao
compreendendo que essas pressões colo- países de origem. aborto, o resultado pode e deve ser atribuí-
cavam em risco o processo dos dez anos da Os países islâmicos, em associação com do à posição firme dos países do Mercosul.
Conferência do Cairo (Cairo+10), empenham os Estados Unidos e o Vaticano, contamina- Uma vez mais, em Santiago, a delegação
esforços para evitar uma nova negociação ram a discussão da CPD, alegando insidio- estadunidense foi isolada. Em sua declaração
global em 2004. Em abril de 2002, a Comis- samente que a reafirmação do Cairo final, os Estados Unidos reiteraram, numa
são de População e Desenvolvimento da ONU significaria também a aceitação do “casamen- sala atenta e silenciosa, sua posição a favor
(CPD) decidiu, com forte apoio europeu, que to gay”. A resolução em negociação na CPD da abstinência e contra o aborto. Fizeram,
o processo de revisão seria realizado apenas só foi finalmente aprovada em maio de 2004, sobretudo, referências veementes aos recur-
nos planos regionais e numa perspectiva “téc- após uma série de negociações informais. sos financeiros que investem na região para
nica”, ou seja, seria evitada a renegociação atender a necessidades de planejamento fa-
de conteúdos e definições. miliar e prevenção do HIV/Aids, indicando que
Ainda em outubro de 2002, numa reu- lançariam mão disso para pressionar e punir
nião preparatória da Comissão Econômica e 4 Os Estados Unidos são membros plenos da Comissão os países que dependem desses recursos.
Social da Ásia e Pacífico, realizada em Bang- Econômica e Social para a Ásia e o Pacífico (Escap) É importante destacar ainda que, no
porque controlam territórios no Pacífico. Da mesma
coc, a delegação estadunidense4 anunciou forma, alguns países europeus tornaram-se membros
início de junho, ocorreram dois processos
publicamente que não reafirmaria os com- plenos por conta de antigos territórios coloniais. de negociação regional, cujos resultados

Observatório da Cidadania 2004 / 33


também podem ser comemorados: o pri- temente, os Estados Unidos se uniram ao (Dacar), a 9ª Conferência Latino-americana
meiro deles foi a reunião regional africana consenso, ainda que – juntamente com El e Caribenha da Mulher (México, 2002) e a
para o Cairo+10, realizada em Dacar, no Salvador, Costa Rica e Nicarágua – tenham aprovação na Assembléia da Organização
Senegal, cujo documento final também rea- feito reservas explícitas em relação ao abor- Mundial de Saúde (OMS) do documento
firmou o Cairo; e o segundo foi a 9ª Confe- to. Muitas pessoas interpretaram essa “fle- “Estratégias para a Saúde Reprodutiva” (maio
rência Regional Latino-Americana e xibilidade” como uma atitude relacionada de 2004). Isso não é exatamente pouca coi-
Caribenha da Mulher (Pequim+10 regional), ao processo eleitoral de 2004. Por esse viés, sa quando se consideram as condições ge-
na Cidade do México, durante a qual a dele- em San Juan (Porto Rico), a administração opolíticas globais.
gação estadunidense teve, novamente, um Bush evitou projetar uma imagem de Finalmente, é preciso dizer que, a des-
desempenho conservador e arrogante. Se- intransigência e arrogância. peito de inúmeros obstáculos, pelo menos
gundo a nota de imprensa produzida pelas na América Latina, a implementação do Cai-
organizações feministas durante o processo Avanços na implementação do Cairo ro avança. A Unidade de Gênero da Faculda-
de negociação: Chegamos, portanto, em meados da primei- de Latino-americana de Ciências Sociais
O governo norte-americano enviou um ra década do século 21, tanto nos planos (Flacso) do Chile elaborou indicadores vi-
comunicado a alguns países da região, nacionais como global, em condições, de sando medir um Índice de Compromissos
no qual informa as suas ações, maneira geral, muito mais desfavoráveis do Cumpridos (ICC), no que diz respeito à Pla-
enfatizando o fato de que há uma soma que as observadas dez anos atrás. Entretan- taforma de Ação de Pequim em oito países
de US$ 2,5 bilhões no orçamento da to, mesmo em tempos tão sombrios, regis- da região: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile,
iniciativa global Desafio do Milênio que tram-se movimentos de resistência e não Colômbia, Equador, Peru e Uruguai. Os indi-
ainda não está aprovada para o ano de poucos “saltos adiante”. Nesse sentido, o cadores foram agrupados em cestas que
2005 e que poderia beneficiar os países momento político mais significativo dos últi- correspondem a três áreas estratégicas: par-
da região. Este comunicado pode ser mos tempos foi, sem dúvida, a grande mar- ticipação e acesso ao poder, autonomia eco-
interpretado como uma tentativa de cha que aconteceu em Washington, em abril nômica e emprego, saúde e direitos sexuais
manipular a posição dos governos de 2004. Nesse evento, ficou explicitada para e reprodutivos das mulheres. O resultado
presentes na 9ª Conferência Regional da o mundo a contradição aberta entre a políti- final indica que há progresso exatamente em
Mulher para que obedeçam aos critérios ca de governo em relação ao aborto e as relação à terceira área.
explicitados pelos Estados Unidos na posições da sociedade estadunidense. A Isso é muito positivo, pois, como bem
negociação. Esta ação parece se marcha foi, de fato, a maior manifestação sabemos, são inúmeros os fatores que
constituir uma clara violação da pública de protesto contra George W. Bush comprometem a qualidade das políticas de
soberania dos países da América Latina desde que ele assumiu em janeiro de 2001. saúde sexual e reprodutiva e, mais especial-
e do Caribe. Mas também podemos – e devemos – mente, o exercício dos direitos sexuais e re-
Porém, a despeito das pressões dos contabilizar os resultados das várias negocia- produtivos. Em relação a isso, contabiliza-se
Estados Unidos e de uma forte presença de ções que tiveram lugar recentemente nas a falta de recursos e de vontade política ou
grupos conservadores mexicanos na con- Nações Unidas como sendo expressão de até a falta de clareza conceitual e dificuldades
ferência, assim como havia acontecido em derrota das posições fundamentalistas con- operacionais. Sobretudo em todos países
Santiago, a declaração final também reafir- trárias ao Programa de Ação da CIPD. Desde da região, os governos se movem com muita
mou as plataformas de Cairo e Pequim, fa- 2002, as posições progressistas que apóiam cautela nesse terreno das políticas públicas,
zendo, ainda, menção explícita aos direitos a agenda do Cairo “venceram” em pelo me- pois estão constantemente reféns das amea-
sexuais e reprodutivos. nos 11 oportunidades: a revisão de dez anos ças feitas pelas hierarquias religiosas ou se
Três meses mais tarde, o processo re- da Cúpula da Criança (Nova York, 2002), mostram temerosos de perder apoio eleito-
gional se encerraria em Porto Rico, territó- Rio+10 (Johanesburgo, 2002), a Conferên- ral dos setores conservadores. Os avanços
rio estadunidense, quando a delegação cia Asiática de População e Desenvolvimento identificados pelo ICC da Flacso sugerem que,
deste país repetiu ameaças, ofereceu resis- (Bangcoc, 2002), duas sessões ordinárias pelo menos na América Latina, a agenda do
tências e pressionou países individualmen- da Comissão de População e Desenvolvimen- Cairo se configura também como uma pla-
te, especialmente os centro-americanos. No to (Nova York, 2003 e 2004), o processo taforma estratégica de resistência política con-
entanto, a resolução final de novo reafirma regional na América Latina e no Caribe (Port tra os fundamentalismos e de defesa
o Cairo e endossa a declaração que resul- of Spain, Santiago e San Juan, 2003 e 2004), sistemática do Estado laico como condição e
tou da reunião de Santiago. Surpreenden- o processo regional Cairo+10 na África garantia da democracia.

Observatório da Cidadania 2004 / 34


Aids: saúde pública ou assassinatos em massa? 1

Com exceção de uma lei aprovada pelo governo canadense em maio de 2004, que permite a exportação de medicamentos
genéricos para países em desenvolvimento, desde a Declaração de Doha, em 2001, houve poucas iniciativas por parte
dos Estados de implantar mecanismos legais que destacassem a primazia da saúde pública sobre os interesses comerciais.
A garantia do monopólio de 20 anos para produtos considerados invenções ou novidades tecnológicas, sustentada
pelo Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trips, na sigla em inglês), impõe às
populações apenas uma alternativa: morrer de fome e sem tratamento.

Carlos André F. Passarelli2 Mapa - Estimativa de adultos e crianças que vivem com HIV/Aids,
dezembro de 2003
Cerca de 3 milhões de pessoas morreram
em decorrência de Aids em 2003, e aproxi-
madamente 5 milhões de novas infecções
Europa Oriental e Ásia Central
ocorreram nesse mesmo ano. Em todo o Europa Ocidental 1,2 milhão – 1,8 milhão
mundo, vivem em torno de 40 milhões de América do Norte 520 mil – 680 mil
Ásia Oriental e Pacífico
pessoas com HIV, sendo que a grande mai- 790 mil – 1,2 milhão
África do Norte e 700 mil – 1,3 milhão
oria (95%) encontra-se nos países em de-
Oriente Médio Sul e Sudeste da Ásia
senvolvimento.3 Embora a pandemia esteja Caribe
470 mil – 730 mil 4,6 milhões – 8,2 milhões
na pauta da Assembléia Geral e do Conselho 350 mil – 590 mil
de Segurança da Organização das Nações África Subsaariana
Unidas (ONU) e ainda que tenha sido criado 25 milhões – 28,2 milhões
América Latina
o Fundo Global para Aids, Tuberculose e 1,3 milhão – 1,9 milhão Austrália e Nova Zelândia
Malária, essas estimativas oficiais não vis- 12 mil – 18 mil
lumbram um futuro melhor.
No que diz respeito ao acesso aos trata-
mentos existentes, as estimativas também
são pessimistas. Segundo a Organização
Mundial de Saúde (OMS), cerca de 5,5 mi- Total: 34 milhões – 46 milhões
lhões de pessoas nos países de renda média
e baixa necessitam imediatamente de medi- Fonte: UNAIDS. Aids Epidemic Update. Dezembro 2003. Em: <www.unaids.org/en/default.asp>
camentos anti-retrovirais, mas somente cerca
de 440 mil pessoas (8%) têm acesso a es-
ses insumos. Observando as cifras por re- acesso aos anti-retrovirais no Sudeste Asiá- táveis e orientadas à promoção da saúde
gião, encontramos 150 mil pacientes em tico, ou seja, 5% em relação ao número total pública e do desenvolvimento geral, defen-
tratamento no continente africano, o que re- de pacientes com indicação para tratamen- dem a articulação entre os campos da pre-
presenta somente 4% dos que necessitam to.4 Para a imensa maioria de pacientes, res- venção, do tratamento e da assistência.
ser tratados na África; 40 mil pessoas têm ta unicamente aguardar a morte. O que se Todavia, esta parece ser mais a exceção
pode fazer para impedir o assassinato em do que a regra. As tentativas para ampliar o
massa em decorrência da Aids? acesso aos tratamentos disponíveis
Especialistas e autoridades internacio- freqüentemente esbarram em argumentos
1 Este texto foi elaborado com base no artigo de John W. nais enfatizam a importância de estabelecer que se preocupam mais em afirmar obstá-
Foster para o Social Watch 2004. Foster é pesquisador estratégias que promovam uma abordagem culos do que propor soluções, ao enfatizar a
sênior do North-South Institute (Instituto Norte-Sul), em precariedade da rede de serviços de saúde,
mais integral dos problemas gerados pela
Ottawa, Canadá, e presidente do Comitê Coordenador
do Social Watch. pandemia. Para garantir respostas susten- as dificuldades decorrentes de condições
2 Doutorando em Psicologia Clínica na PUC-Rio e sociais adversas – como o analfabetismo e a
assessor de projetos da Associação Brasileira fome – que impedem a continuidade de tra-
Interdisciplinar de Aids (Abia).
tamentos com alto nível de complexidade e a
3 Dados do 2004 Report on the global Aids epidemic, da
Unaids. Disponível em: <http://www.unaids.org/ 4 Dados da OMS. Disponíveis em: <http://www.who.int/
ausência de recursos para adquirir medica-
bangkok2004/report.html>. Acesso em: 12 ago. 2004. 3by5/coverage/en/print.html>. Acesso em: 12 ago. 2004. mentos de alto custo, entre outras objeções.

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A experiência brasileira mostra, no en- inteiramente à verdade. Márcia Angell,5 em redução de preços das terapias existentes, ao
tanto, que é possível para um país em de- sua provocante análise sobre a indústria far- mesmo tempo em que se promove o desen-
senvolvimento prover, de forma universal e macêutica, afirma que somente 14% do que volvimento tecnológico local. Outra medida
gratuita, tratamento anti-retroviral a pessoas se lucra com vendas é investido em pesquisa importante, conforme o exemplo canadense
que deles necessitam, beneficiando, aproxi- e desenvolvimento de novos produtos. Ainda anteriormente citado, é implementar dispositi-
madamente, 135 mil pessoas. O Brasil res- assim, tais produtos geralmente não represen- vos que permitam aos países sem capacidade
ponde por mais de 40% do total de pacientes tam uma novidade do ponto de vista científico de produção importar versões genéricas de
em uso de tratamento anti-retroviral nos e tecnológico. Embora sejam patenteados anti-retrovirais, a preço reduzido em relação
países em desenvolvimento. como invenção, eles não passam de versões aos medicamentos de marca. Como o mer-
ligeiramente modificadas ou similares de ou- cado farmacêutico internacional não dispõe
As patentes são úteis à saúde pública? tras moléculas ou produtos já disponíveis no de regras justas – beneficiando, sobretudo,
A resposta brasileira à Aids tem um caráter mercado (as chamadas “drogas me too”). os países ricos, detentores da produção dos
de excepcionalidade. No entanto, quando A garantia do monopólio de 20 anos para farmoquímicos básicos e da tecnologia ne-
comparada às respostas de outras nações produtos considerados invenções ou novi- cessária ao desenvolvimento de fármacos –,
com características econômicas semelhan- dades tecnológicas é sustentada pelo acordo os países em desenvolvimento encontram-
tes, como África do Sul e Índia, por exem- Trips, fazendo com que insumos farmacêuti- se em uma relação de desigualdade e de
plo, os mesmos fatores que impedem o cos – ou seja, produtos que salvam vidas – e profunda dependência diante dos países in-
acesso aos tratamentos nesses países po- computadores, entre outros artigos, sejam dustrializados, sujeitando-se aos preços pra-
dem vir a comprometer a continuidade da tratados pelas legislações dos países mem- ticados pelas indústrias transnacionais.
política brasileira de distribuição de medica- bros da OMC como se pertencessem à mes- É imprescindível, desse modo, que os
mentos. Portanto, é importante encontrar ma categoria de produtos, isto é, inovações países em desenvolvimento apliquem políticas
respostas aos desafios impostos pelas re- que se convertem em bens de consumo. de medicamentos que tenham como estraté-
gras comerciais – mais especificamente pelo Ao situar esse debate no contexto da pro- gia fundamental a pesquisa, a produção e o
Acordo sobre Direitos de Propriedade Inte- moção dos direitos humanos, evidenciam-se desenvolvimento nacional de medicamentos
lectual Relacionados ao Comércio (Trips, os aspectos políticos que muitos governos e a essenciais, mesmo aqueles indicados ao
na sigla em inglês) –, que privilegiam os própria indústria farmacêutica tentam ocultar, tratamento de doenças negligenciadas, para
interesses das nações mais ricas em detri- confrontando-se, assim, com o interesse de as quais não existem alternativas terapêuticas.
mento do desenvolvimento dos países de milhões de pacientes que necessitam de tra- Isso só é possível se os países incorporarem
renda média ou baixa. tamento. A saúde das populações depende em suas legislações as salvaguardas previstas
Para entender a resposta à pandemia de uma revolta contra a única alternativa que as no Trips, mais especificamente a licença com-
de Aids como parte de uma estratégia mais regras do livre comércio lhes impõe: morrer de pulsória e a importação paralela.
ampla que vise à promoção do desenvol- fome e sem tratamento. O governo brasileiro tem sido reticente
vimento humano e social, é necessário su- na adoção dessas medidas, optando por ne-
bordinar as leis de comércio internacional Acesso a medicamentos essenciais gociações com a indústria farmacêutica
aos princípios postulados pela Declaração A Declaração de Doha, ao dispor que os transnacional para a redução de preços.
de Direitos Humanos. Ao menos essa in- acordos comerciais e a proteção da propri- Mesmo que esse objetivo seja alcançado, ele
tenção foi expressa pelos países membros edade intelectual de produtos farmacêuticos ainda é tímido, pois o valor pago pelo gover-
da Organização Mundial de Comércio não devem se constituir em um obstáculo no para a aquisição de medicamentos paten-
(OMC) ao assinarem a Declaração de Doha, para a defesa da saúde pública e dos inte- teados é maior do que os preços praticados
em novembro de 2001, destacando a pri- resses coletivos, estabelece um marco legal em outros países em desenvolvimento. Por
mazia da saúde pública sobre os interesses que os países precisam implementar urgen- exemplo, após várias negociações com o
comerciais. Desde então, no entanto, foram temente. O problema do acesso a medica- laboratório que produz o Kaletra – combina-
poucas as ações e disposições legais que mentos no âmbito interno dos países em ção de duas drogas que compõem o trata-
buscaram incorporar, nas legislações na- desenvolvimento, em nível imediato, confun- mento anti-retroviral –, o Brasil conseguiu
cionais, mecanismos que permitissem de-se bastante com a implementação das uma redução de 17% no preço; ainda as-
transformar o documento em práticas efe- salvaguardas previstas pelo acordo Trips e sim, o valor pago é seis vezes maior que o
tivas. Uma iniciativa nesse sentido foi ado- reafirmadas pela Declaração de Doha e, a melhor preço praticado pelo mesmo labo-
tada pelo governo canadense, que, em médio e longo prazos, volta-se para a ratório, para o mesmo produto, em ou-
maio de 2004, aprovou uma lei permitindo sustentabilidade das soluções encontradas. tros países com médio e baixo índice de
a exportação de medicamentos genéricos O passo mais urgente a ser dado é, por- desenvolvimento humano.6 Além de pagar
para países em desenvolvimento. tanto, o licenciamento compulsório de pro- mais caro, o Brasil ainda se vê privado da
O que prevalece, contudo, é a manutenção dutos farmacêuticos, com vistas a permitir a
dos interesses das indústrias farmacêuticas
transnacionais, que insistem em defender a
proteção dos direitos de propriedade inte- 6 Para mais informações relativas a preços de
lectual como única forma possível para se medicamentos anti-retrovirais, acessar a página
5 ANGELL, Marcia. The truth about the drug companies: da Campanha pelo Acesso a Medicamentos Essenciais
investir no desenvolvimento de novos medi- how they deceive us and what to do about it. Nova da organização Médicos Sem Fronteiras
camentos. Tal argumento não corresponde York: Random House, 2004. (http://www.accessmed-msf.org/).

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tecnologia para a produção do medicamen- pública pode acabar sacrificada para atender (chamada “three by five”), e as experiências
to, pois não exige o uso local da patente, como aos interesses econômicos do agronegócio locais já em curso, como a política brasileira
prevêem o acordo Trips e a legislação brasilei- e de outros setores interessados em vender de distribuição de anti-retrovirais,8 podem
ra. Para tanto, deveria ser concedida a licença seus produtos em outros países. se inviabilizar a médio e longo prazo, caso
a um fabricante nacional, o que não ocorre. A forma como a sociedade global res- não se tenha uma mudança na forma como
A entrada no mercado dos chamados ponder aos dilemas apresentados pelo con- se organiza a agenda global para a promo-
medicamentos de segunda e terceira geração, fronto entre os interesses privados (os direitos ção do desenvolvimento, em todos os seus
utilizados para o tratamento de pessoas que de propriedade intelectual) e a saúde pública aspectos. A concentração do conhecimento
apresentam resistência ou intolerância às (a defesa dos direitos fundamentais da pes- científico e tecnológico em monopólios trans-
drogas nas terapias de primeira linha, ou soa humana) determinará o futuro do mun- nacionais, sustentada por acordos como o
seja, iniciais, onerará ainda mais o orçamen- do em desenvolvimento. Nações inteiras estão Trips e outras regras comerciais, impede a
to do Ministério da Saúde, comprometendo sendo dizimadas pela pandemia de Aids ou emancipação e a soberania das nações e
a elogiada política brasileira na área do trata- por outros agravos à saúde, para os quais já acaba por privatizar a saúde, transformando
mento da Aids. Aliás, grande parte do su- existem tratamentos, mas não são acessíveis. a vida em mercadoria.
cesso de tal política se deve ao fato de o Nos últimos anos, muitos recursos vêm
Brasil produzir localmente significativa par- sendo investidos na tentativa de descobrir
cela das medicações de primeira geração, o uma vacina contra a Aids. Ao lado da pesqui-
que não ocorre no caso dos novos remédi- sa de novos tratamentos, o desenvolvimento
Medidas necessárias
os, protegidos por patentes. de um produto vacinal representará um pas- • Acesso a medicamentos essenciais de
so importante para deter o avanço da baixo custo.
Acordos ameaçam a saúde pública pandemia. Mas de nada adiantará termos um • O reconhecimento e o fortalecimento
A não-adoção de tais medidas, que poderiam produto eficaz se ele só beneficiar uma par- dos direitos humanos, especialmente
ser consideradas mais ousadas, representa cela muito pequena da população, como ocor- do “nível mais alto possível de saúde
uma ameaça à sustentabilidade financeira e re hoje com os medicamentos anti-retrovirais. física e mental”. Pacto Internacional
política do Sistema Único de Saúde (SUS). Essas biotecnologias salvam vidas e, desse dos Direitos Econômicos, Sociais e
Também contribuem para essa ameaça as modo, devem estar acessíveis a quem delas Culturais (Pidesc).
estratégias estadunidenses dirigidas à forma- necessita, e não ficar restritas às pessoas que • O incremento radical de recursos,
ção de áreas de livre comércio com países e as podem comprar. Defender os direitos de por meio do Fundo Global, de ou-
regiões, como a Área de Livre Comércio das propriedade intelectual em detrimento da vida tras vias multilaterais e bilaterais, da
Américas (Alca), que tentam incluir capítulos não é outra coisa senão genocídio. Ajuda Oficial para o Desenvolvimen-
sobre propriedade intelectual, os quais vêm to (AOD). O cancelamento e a redu-
sendo denominados Trips-plus. Basicamen- A cura da Aids ção da dívida, para apoiar os
te, a proposta é fazer os países incorpora- Identificar os responsáveis por esse assas- serviços de saúde pública e outros
rem em suas legislações dispositivos que sinato em massa é uma necessidade. Não se elementos essenciais da capacida-
promovam a proteção sobre os dados rela- pode ficar complacente com a morte de 3 de imune, como água potável, ali-
tivos a produtos patenteados (impedindo a milhões de pessoas em função de um mal mentos e moradia adequados.
produção de genéricos por meio de enge- para o qual existe remédio. Esse era o apelo • Melhores serviços de saúde pública
nharia reversa) e estenderem o prazo de vi- que já nos fazia Herbert de Souza, o Betinho, e apoio, como capacitação, educa-
gência das patentes para além dos 20 anos. em sua incansável luta contra a inércia das ção pública, apoio para a prevenção
Além disso, pretende-se vincular o re- autoridades diante da morte do grande nú- e iniciativas de atenção comunitárias.
gistro de medicamentos na agência sanitária mero de cidadãs e cidadãos brasileiros e de • Pesquisas para vacinas contra HIV/
– no caso brasileiro, a Agência Nacional de todo o mundo. Ele nos dizia que a cura da Aids e medicamentos e tratamentos
Vigilância Sanitária (Anvisa) – à concessão Aids estava na derrocada do preconceito e adaptados a outras enfermidades
da patente pelo escritório responsável, que da intolerância e em uma atitude radical do que atingem em grande escala a
é o Instituto Nacional de Propriedade Indus- governo e da comunidade científica em de- população pobre do mundo.
trial (INPI). Isso também representa uma fesa da vida. Infelizmente, não é isso o que • E, acima de tudo, uma aliança vigi-
ameaça à competitividade, pois impede a se presencia na África e em todo o mundo lante, persistente e criativa das or-
entrada de versões genéricas no mercado e em desenvolvimento. ganizações da sociedade civil, sem a
legitima os monopólios. As iniciativas para a ampliação do aces- qual é pouco provável que se reali-
Não é difícil concluir que a indústria far- so aos tratamentos,7 como a do Fundo Glo- zem outras ações.
macêutica transnacional está apoiando o bal e a da Organização Mundial de Saúde
governo estadunidense na confecção des-
ses acordos. Por essas razões, a sociedade
brasileira deve permanecer atenta aos acor-
dos celebrados pelo governo federal, pois, à
medida que se privilegia o acesso a mercados 7 A esse respeito, ver GALVÃO, Jane et al. Acesso a
medicamentos para Aids: lições da iniciativa 8 Para uma análise mais aprofundada dessa política, ver
estrangeiros para produtos agrícolas como brasileira. Divulgação em Saúde Para Debate, Rio de GALVÃO, J. Access to anti-retroviral drugs in Brazil.
forma de elevar o superávit comercial, a saúde Janeiro, n. 29, p. 13-23, dez. 2003. Lancet, Inglaterra, n. 360, p. 1.862-1.865, 2002.

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PANORAMA BRASILEIRO
(In)segurança humana e democracia no Brasil

Além de destruírem a crença na representatividade do interesse coletivo, a herança das redes clientelísticas e a corrupção
alimentam a desigualdade, a pobreza, a falta de acesso aos bens sociais e culturais e a violência. Nesse contexto, o
desafio brasileiro aponta para a construção de instituições independentes e autônomas, eficientes e centradas no
caráter social do compromisso democrático. Tal perspectiva demanda a efetivação de políticas que envolvam as redes
de solidariedade e garantam a maior participação das organizações sociais na elaboração e no controle das políticas
públicas. A mudança do cenário exige ainda a ampliação da presença de grupos tradicionalmente excluídos das
instâncias de poder, não apenas no âmbito do Executivo e do Legislativo, mas em todas os níveis decisórios e de
intermediação entre governo e sociedade.

Lúcia Avelar1 desenvolvimento redistributivas e não- buscadas à época da ocupação do território


concentradoras de renda, que garantam si- brasileiro pelos grupos colonizadores. Nos
Um dos aspectos essenciais no debate so- tuações progressivas e esperançosas de primórdios de nossa organização política, a
bre a democracia no Brasil é a capacidade de segurança humana para todas as pessoas. Coroa portuguesa atraía os colonizadores
implantação, pelo Estado, de mecanismos Como evitar os erros do passado e adotar com a distribuição de terras, poderes e imu-
que garantam a cidadania e a segurança modelos de desenvolvimento que não fra- nidades, disso resultando a privatização do
humana. Nos organismos internacionais, os cassem no plano redistributivo? Por que as poder nos núcleos territorialmente rarefei-
esforços têm sido de tal monta que concei- elites políticas não elaboram uma idéia de tos e dispersos, de enorme autonomia. O
nação com democracia social? proprietário de terra concentrava poderes
tos de grande proximidade, como os de de-
Os aspectos social e político da distribui- de inúmeras instituições, como a econômi-
senvolvimento humano e segurança
ção de poder ainda se correlacionam forte- ca, a jurídica, a policial e a política. As elites
humana, são reiterados para realçar o fato
mente com a reprodução de padrões seculares políticas se formaram nesse núcleo funda-
de que, se houve méritos nas políticas re-
de representação de interesses e intermedia- dor, originando o que seria conhecido his-
centes, os fracassos são muitos.
ção política, claramente com privilégio das eli- toricamente como “poder local”.
Nosso objetivo é argumentar sobre as
tes tradicionais, sendo recente uma outra As oligarquias brasileiras têm seu po-
falhas nos procedimentos dos governos de-
configuração da elite política voltada aos as- der fundado na classe agrária. Organizadas
mocráticos brasileiros, com destaque para os
pectos sociais da democracia brasileira. O em bases regionais, dominaram a política
aspectos do clientelismo, da corrupção e da
resultado é um país urbano, moderno e com- nacional desde os tempos coloniais, pas-
violência. Todos esses males vêm apresentan-
plexo, mas com extrema desigualdade social, sando pela Independência e chegando à
do níveis inaceitáveis de impunidade em razão
com milhares de pessoas vivendo em condi- República e à ditadura Vargas, sobreviven-
da ineficiência dos órgãos pertinentes em sua
ção de aguda privação, cuja única resposta é
erradicação, produzindo um quadro de inse- do à era populista e ao regime autoritário
o uso da violência individual e grupal diante
gurança humana que mina a confiança da po- instalado em 1964. Até a República Velha,
da ausência de oportunidades oferecidas pela
pulação na democracia como regime. O grande essas oligarquias dominaram o Estado
sociedade e pelo Estado.
desafio da democracia no Brasil é construir como elites agrárias. Com a centralização
O fenômeno da violência em regimes de-
um conjunto de instituições independentes e fiscal do regime Vargas, transferiram sua
mocráticos mina a confiança da população
autônomas, eficientes e centradas no caráter atuação para o centro do Estado, dali reti-
nos governos que não priorizam a demo-
social do compromisso democrático. rando recursos para manter localmente seu
cracia social como projeto político, para que
Até agora os resultados das políticas são eleitorado. Desse modo, de elites agrárias
o país caminhe no sentido da maior proxi-
de continuado distanciamento entre as clas- passaram a elites estatais.2
midade entre as classes. As formas
ses e de aumento crescente da corrupção e Com a passagem da economia de base
clientelísticas de intermediação entre Estado
da violência difusas, num quadro de genera- agrária para a capitalista e com a progres-
e sociedade reproduzem privilégios de pou-
lizada impunidade. Do ponto de vista históri- siva expansão do sufrágio, constituíram-
cas pessoas, deixando as coletividades sem
co, não se conseguiu implantar políticas de
políticas que protejam as liberdades vitais.
2 A bibliografia sobre o tema é ampla. Em numerosos
A formação do clientelismo estudos, encontramos evidências de como a mudança
1 Lúcia Avelar é cientista política, professora titular de institucional do Estado, promovida por Vargas na
As origens do clientelismo político como for-
Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB). O tentativa de corrigir o regionalismo da República
presente trabalho contou com a colaboração da ma estrutural de intermediação de interes- Velha, teve como resultado o alojamento de líderes
estudante de ciência política da UnB Le-Lyne Nunes. ses entre a sociedade e o Estado devem ser locais e regionais no centro do aparelho estatal.

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se elites que, embora apresentassem novo Estado e a conivência com o clientelismo Na medida em que o Estado se torna o
perfil, mantiveram práticas de governar de político. O edifício político-oligárquico é motor do desenvolvimento, com inúmeras ati-
mesma natureza. A industrialização, o constituído por inúmeras burocracias que vidades de investimento, facilitam-se a
desenvolvimentismo e o capital internacio- ligam o aparelho governamental a todos contratação ilegal de obras públicas, os em-
nal não conseguiram diluir o poder desses os estados e municípios brasileiros, que préstimos criminosos, o desvio do dinheiro
grupos no aparelho estatal. Isso se deu, se tornam canais de escoamento de re- do Estado que não chega ao alvo orçamentá-
em parte, porque o desenvolvimento eco- cursos para grupos políticos fechados, rio e o levantamento ilegal de fundos para cam-
nômico, sob a forma de um capitalismo de aumentando a desigualdade social. panhas eleitorais. Nos regimes autoritários, tais
Estado, fez da economia pública o foco das Os mesmos canais utilizados para as atividades eram facilitadas pela forte censu-
atividades políticas. Além disso, as funções atividades clientelísticas servem à corrup- ra à imprensa, mas, com a democratização
de intermediação política de natureza ção, que é uma atividade voltada unica- e maior liberdade das mídias, tornaram-se pú-
clientelística aprofundaram-se particular- mente para o enriquecimento individual blicas as dimensões tomadas pela corrupção.
mente nas regiões em que a economia pú- ou de grupos fechados, no âmbito da ati- Os presidencialismos de coalizão são
blica superava a influência das elites vidade política legal, envolvendo mandan- cada vez mais onerosos. A regra da eleição
econômicas privadas. tes e mandatários, políticos e funcionários majoritária para a presidência da República
Nas décadas recentes, o clientelismo foi do Estado. Se a corrupção esteve pre- e da eleição proporcional para a escolha de
legitimado pela via institucional, por meio sente em todos os regimes políticos, ab- representantes da Câmara Federal obriga o
do sistema de representação proporcional, solutistas, oligárquicos, autoritários ou presidente à negociação com parlamenta-
cujas regras foram idealizadas nos anos revolucionários, por que ela torna a de- res em busca de apoio, para fazer maioria
Vargas e incorporadas à Constituição de mocracia tão vulnerável? congressual e, assim, ter seus projetos vi-
1946. Esse conjunto de regras de repre- Nos regimes democráticos, a corrup- abilizados. Torna-se corrente a distribuição
sentação é o próprio coroamento da vitória ção atinge dois de seus princípios centrais: de bens públicos a parlamentares, como
das oligarquias de base regional e local. o da transparência e o da representação. Ao licenças para instalação de emissoras de
As redes clientelísticas e de patronagem ocorrer em um circuito legal, mas de forma rádio e televisão, bem como o subsídio a
ainda são as atividades utilizadas pelas oli- oculta, são encobertos os processos de de- juros pelos bancos do Estado e a facilitação
garquias dominantes para o controle elei- cisão, de modo semelhante ao que ocorre de negócios para parentes e amigos(as) de
toral e para impedir a organização de nas sociedades secretas, e se envolvem ao funcionários(as) e parlamentares.
movimentos autônomos, uma dinâmica mesmo tempo vários níveis político-admi- A fragmentação partidária aumenta a
que apresenta poucos elementos de im- nistrativos, como as burocracias públicas, chance de trocas ilegais para a formação
previsibilidade eleitoral, já que a relação os poderes Legislativo, Executivo e Judiciá- de maiorias, o que ocorre tanto na Câmara
fundamental é a de fidelidade política em rio e os bancos de Estado. Federal como nas Assembléias Legislativas
troca de recursos materiais. A crise origi- Praticada a corrupção por uma pessoa dos estados e nas Câmaras Municipais. A
nada pelo surgimento das massas urba- eleita para fazer a intermediação entre o Es- corrupção é menor onde as organizações
nas nas décadas de 1950 e 1960 pode ser tado e a sociedade, tendo em vista o benefí- da sociedade civil são ativas e as mídias
considerada um fato histórico essencial cio das coletividades, o interesse coletivo se apresentam alguma independência do po-
que deflagrou outras formas de organiza- transfigura em interesse privado e a repre- der político. Com populações de muito bai-
ção política e de participação. sentação política torna-se ilusão. As redes xa escolaridade, habitualmente sem
de relações pessoais e de amizade com co- condições de avaliar a ligação de seu cotidi-
Corrupção usa os mesmos canais nivência criminosa, constituídas para sub- ano com a política, a accountability é quase
Vimos a constituição de novas forças políti- trair os recursos públicos em beneficio inexistente.
cas expressas em organizações de caráter próprio, anulam os direitos políticos das pes-
associativo, com novas formas de represen- soas representadas. As diferentes faces da violência
tação de interesses, mudanças no quadro Jorge Brovetto, secretário executivo da As-
partidário brasileiro e sinais evidentes de Papel das ONGs e da mídia sociação Universitária Grupo de Montevidéu,
conflito por mudanças substantivas. Para Diante de sua expansão difusa, os estudos diz, em seu livro O Estado da paz e a evolução
amplas camadas da população, o clientelismo sobre o tema procuram evidenciar as fontes da violência – a situação da América Latina,
de Estado não dá conta das demandas de institucionais e as razões da impunidade,3 que podemos identificar grandes áreas de
uma sociedade agora urbana, complexa e destacando, principalmente, a intervenção violência, numa situação que leva milhões
profundamente desigual. do Estado na economia, o clientelismo po- de pessoas à pobreza, à falta de saúde, ao
A concentração de poder e a corres- lítico como estrutura de intermediação de analfabetismo e a outros males responsá-
pondente ausência de instituições autôno- interesse entre a sociedade e o Estado, a veis pela insegurança humana: violência co-
mas, independentes das pressões políticas, fragmentação partidária e o presidencialis- letiva, violência estatal, violência estrutural,
são um processo em construção. Ainda mo de coalizão. cultural e individual.
presenciamos o sistema judiciário atrelado Um exemplo de violência estatal é a au-
aos políticos, em práticas de favorecimento sência das instituições jurídicas e policiais
que solapam a efetividade da lei para a po- 3 Os comentários seguintes fundamentam-se nos
na periferia das grandes cidades, onde se
pulação do país. As burocracias públicas trabalhos de Pizzorno (1994); Pnud (2004); Guedes e edificou uma outra ordem não-constitucio-
encontram-se divididas entre a ética do Ribeiro Neto (2004). nal com justiça privada. Estudo realizado

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por Bruno Manso (2003), em São Paulo, rária é desumana, com superlotação das brancos, e a renda das mulheres negras
evidenciou que em locais de alta taxa de ho- prisões, grupos de crime organizado con- corresponde a 51,4% da renda das mulhe-
micídios, como no município de Diadema, trolando as operações criminosas de den- res brancas (IBGE, 2004). Esses fatores
onde uma série de medidas foram tomadas tro dos presídios e rebeliões de presos combinados retratam mundos e submun-
a partir do ano 2000, com investimentos na que resultam em chacinas. Nesse quadro, dos, à imagem de uma sociedade escravo-
Polícia Civil, especialmente no setor de inteli- misturam-se presos e policiais num en- crata que ainda não se redimiu.
gência, o índice de homicídios caiu 75%. volvimento mútuo, distante de controle efi-
Não foi preciso solucionar o problema da ciente das instituições responsáveis. Para além da democracia política
pobreza e da educação: a efetividade das Tal situação acresce o acesso desigual à No Relatório da Comissão de Segurança
instituições, com a chegada do Estado, por justiça. As instituições do Poder Judiciário Humana das Nações Unidas,5 apresenta-se
si só controlou a violência. são por demais lentas, discriminadoras, e o um conjunto de recomendações para sua
Assim como naquele município da pe- número de juízes e juízas não é compatível promoção, diante da realidade de um mun-
riferia de São Paulo e em muitos outros em com a população. No Brasil há 3,6 juízes(as) do de conflitos, que vai do desrespeito ao
situação semelhante, o Estado é rarefeito para cada 100 mil habitantes, enquanto, na ser humano às guerrilhas; da pobreza extre-
no controle sobre a violência em todo o América Latina como um todo, esse núme- ma e da ausência de oportunidades para
território. São comuns as áreas nas quais o ro é de 4,9 (Pnud, 2004). O número de criar situações de sobrevivência à necessi-
que opera é o Estado não-constitucional, membros da defensoria pública é ainda me- dade de deixar moradias, terras, círculos fa-
com códigos de honra, justiça privada, à nor, levando à descrença e à insegurança a miliares e de amizade para buscar trabalho,
imagem dos rebeldes primitivos do perío- grande maioria da população, de menor con- ajuda e respeito aos direitos humanos.
do pré-industrial, quando as instituições de- dição social. Lembremos a intensidade dos movi-
mocráticas encontravam-se em construção. A violência estrutural encontra-se mui- mentos migratórios que levam brasileiros e
Máfias, redes de crime organizado e ban- tas vezes camuflada por estruturas e meca- brasileiras a países da União Européia e aos
dos justiceiros exercem coerção em deter- nismos que mitigam e acobertam a Estados Unidos, em busca de oportunida-
minados territórios sob a conivência de realidade, como é o caso de grupos discri- des de trabalho para a sobrevivência. Essas
polícias e burocracias, em um claro esvazi- minados de mulheres, pessoas negras e populações não têm escolaridade e “capaci-
amento das liberdades democráticas pela indígenas. A violência estrutural contra as dade de acesso” ao novo mundo do traba-
ausência da autoridade legal e da efetivida- mulheres pode ser medida pelos baixos ín- lho do capitalismo digital globalizado e são
de da aplicação das leis. Nessas áreas de dices de participação na vida política, nas lançadas aos trabalhos domésticos para a
poder privatizado, opera-se na regressão profissões mais bem remuneradas, nas população dos países ricos. São enormes
dos direitos de cidadania e da segurança carreiras tradicionais, como as de os esforços de muitas famílias para financiar
humana, sob o medo da ameaça constante magistrados(as), na direção de empresas e as passagens internacionais daqueles de
à integridade física. de órgãos profissionais, corporativos e par- parentes que trabalharão em outros conti-
O desemprego é outra manifestação tidários. No mercado de trabalho formal, as nentes e realizar a proeza de manter a vida
da violência estatal e representa uma das mulheres apresentam maior escolaridade e atuando como serviçais – babás, faxinei-
maiores ameaças à segurança humana. Pri- menor posição na hierarquia ocupacional e ros(as), cozinheiros(as), pedreiros e pinto-
vando o ser humano de alcançar os meios salarial. Reproduzem-se, na prática, os pa- res na construção civil.
para sua subsistência, retira-lhe a auto-es- drões patriarcais de autoridade masculina, Diante desse quadro, surge o apelo às
tima e o submete a uma situação de vergo- pois as mudanças sociais e culturais fazem elites políticas e econômicas de todo o mun-
nha e humilhação. As taxas de desemprego do país um retrato de carências e moderni- do para que se comprometam com a pro-
aumentaram em todo o mundo, mas a au- dade, vividas por indivíduos inseridos em moção da democracia, não apenas nos seus
sência de proteção social torna a situação universos socialmente distantes. aspectos políticos, mas na sua dimensão
muito grave, levando ao aumento da vio- Para retratar o descaso governamen- social. A democracia política é necessária,
lência e à expansão das atividades ligadas tal, basta ver a taxa de mortalidade infantil, mas insuficiente para que um mínimo de
ao narcotráfico. A taxa anual média de de- que, entre as pessoas brancas, é de 37,3 justiça democrática acolha o ser humano em
semprego aberto urbano no Brasil em seis por mil crianças nascidas vivas, e entre a todos os países.
regiões metropolitanas foi de 7,3%, em população negra, de 62,3 por mil, segun- Segurança humana é também desar-
2002, e chegou a 17% na faixa dos 15 aos do o IBGE.4 Os dois resultados se afastam mar países e indivíduos, abrigar pessoas
17 anos (Pnud, 2004). O dado torna-se ainda mais nas regiões Norte e Nordeste, de regiões onde é impossível viver, recons-
ainda mais alarmante se considerarmos que onde há maior concentração de pessoas truir áreas dizimadas por conflitos violentos,
a ajuda de jovens é essencial à estratégia de negras (pretas e pardas), 71,5% e 69,3%, garantir a cada pessoa uma renda mínima
sobrevivência de famílias pobres. em 2002. A renda média dos homens ne- para a sua sobrevivência, prover as institui-
É assustadora a violência estatal, se gros é de 49,1% em relação à dos homens ções de saúde pública para atendimento
medida pela situação desumana nos cár-
ceres. O nível de ocupação carcerária ul-
trapassa a capacidade em todos os países
da América Latina, com exceção do Uru- 4 IBGE/DPE/Departamento de População e Indicadores
Sociais. Divisão de Estudos e Análises da Dinâmica 5 Human Security Now. Human Security Comission. NY,
guai, que ocupa 97,2% de sua capacidade Demográfica. Dados do Projeto United Nation 2004. Disponível em: <www.humansecurity-chs.org/
(Pnud, 2004). No Brasil, a situação carce- Population – UNFPA/BRASIL. finalreport/FinalReport.pdf>.

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emergencial e de qualidade, oferecer medi- é a de que “a toda a pessoa cabe usufruir o a fim de que se tornem realidade as ações
camentos acessíveis à população pobre, direito de votar e ser votada”, não contem- coletivas. Para tanto, são construídas as re-
garantir o acesso à educação e à informa- pla grande parte da população. A falta de des de solidariedade que se tornam concre-
ção, respeitar as diferenças culturais como capital simbólico – como linguagem, ima- tas com a organização, nas palavras de
fontes legítimas de valores e visões de mun- gem pessoal e relações sociais – retira a pos- Blumer (apud Pizzorno, 1975), de “verda-
do. A justiça democrática encontra-se no sibilidade dessas pessoas de se apresentarem deiras empresas coletivas para estabelecer
centro do conceito de segurança humana, como prováveis candidatas à representação. uma nova ordem de vida”, integrando seus
evidenciando a distância que separa, de um Apenas algumas ascendem quando vêm de (suas) participantes em uma coletividade
lado, as teorias da democracia elaboradas organizações da sociedade, diante da reali- solidária, cada qual com seu coeficiente de
nos países do capitalismo liberal e, de outro, dade histórica recente da construção de desigualdade. A organização contrabalança
a realidade dos países da periferia do mun- novos espaços políticos de participação a falta de recursos materiais e simbólicos de
do capitalista. para quem não pertence à elite. quem participa, como os recursos educaci-
São inúmeros os esforços para avaliar onais, de linguagem, de desembaraço e de
a que ponto as teorias correntes da demo- Redes de solidariedade regras sociais, especialmente para indivídu-
cracia são adequadas à nossa realidade. O Para edificar democracias socialmente com- os de categorias sociais inferiores que so-
universalismo impregnado na maioria das prometidas, o caminho apontado é unâni- frem a desonra da exclusão dos direitos.
formulações não nos permite vislumbrar a me: mais democracia. E isso se dá não apenas O exemplo mais visível é o do movi-
co-responsabilidade de Estados e gover- na instância eleitoral, mas pelas vias da par- mento das mulheres. O feminismo, como
nantes perante quem não tem condições ticipação nos canais organizacionais, o que ideologia, que vinha se estruturando desde
de fruição de direitos. Sem subestimar o é uma tarefa difícil. As atividades de organi- o fim do século 19, materializou a situação
papel da sociedade civil organizada, ou de zação política que fortalecem a sociedade de “déficit de reconhecimento” das mulhe-
focos de solidariedade nacionais e interna- para cobrar de governantes os direitos de res. Com a organização política, foi possível
cionais, as elites políticas ainda não se mos- cidadania são privilégio dos indivíduos que deflagrar lutas pelo reconhecimento e pelo
tram comprometidas no trabalho de apresentam mais recursos simbólicos, capi- direito de igualdade. Os estudos sobre os
superação desse quadro. tal de autoconfiança, capacidade de buscar movimentos das mulheres registram depo-
O resultado é a reprodução de socie- recursos e suporte para a organização. imentos de construção de identidades e de
dades cada vez mais desiguais, sem que se A construção de redes de solidarieda- luta pelo reconhecimento de pessoas que
priorizem, na agenda pública, políticas vol- de para a organização política é tarefa que, jamais se viram reconhecidas como cida-
tadas aos segmentos negligenciados. Os em muitos casos, exige programas de for- dãs, pessoas sem voz e sem alternativa para
governos eleitos democraticamente até ago- mação política sistemáticos, para que as a reclusão da vida familiar.
ra no Brasil foram incapazes de implantar regras democráticas sejam conhecidas e
mecanismos redistributivos, e o lado mais Democracia deliberativa
identificadas como ligadas ao cotidiano in-
perverso dessa derrota é a deterioração dividual e coletivo. Não é sem razão que Os obstáculos à participação são muitos.
difusa do tecido social, com violência e uma corrente adepta da participação liga Como exemplo, citamos o caso das pessoas
criminalidade crescentes (Reis, 2000). ciência e consciência de direitos, no senti- negras e descendentes delas, cuja presen-
A incerteza eleitoral, em algumas regiões do de que o ser humano não chega a exigir ça no associativismo brasileiro é pequeno,
do país, é ainda um fato recente, pois os direitos se não souber de sua existência. E conforme mostra o estudo publicado pelo
resultados se garantem pela compra de vo- quem conhece tais direitos terá de transmi- IBGE (1998) para as regiões metropolita-
tos e pelas trocas clientelísticas que assegu- tir esse conhecimento de geração a gera- nas de Recife, Salvador, Belo Horizonte,
ram o poder aos membros da antiga elite ou ção, em uma tarefa pedagógica de muito Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo. A
a quem os sucede. A incerteza representaria longo prazo. 6 Os indivíduos adeptos da pesquisa apontou que as pessoas que mais
ameaça à hegemonia das elites tradicionais, organização política como instrumento de participavam tinham 11 anos ou mais de
que se reproduzem nos governos manipu- democratização dos direitos apostam na estudo (73%), seguidas pelas que tinham
lando o sufrágio a seu favor. A sobrevivência eficácia desse instrumento. A organização de oito a dez anos (10%). Os indivíduos
da elite tradicional é um dos aspectos mais é também um canal corporativo, um recur- com instrução inferior a quatro anos apre-
marcantes da democracia política, levando- so para o acesso a cargos de maior visibi- sentavam um índice de associativismo em
nos a perguntar até que ponto tais repre- lidade, um canal de acesso ao poder. torno de 4%. Esses resultados, em conjun-
sentantes terão disposição para realizar Por meio da organização, dá-se a mobi- to com a reconhecida baixa escolaridade
reformas que mudem as regras do jogo e lização de recursos de toda ordem para que desses grupos, expressam por que pesso-
implementem políticas redistributivas a fim se concretize o envolvimento dos indivíduos, as negras ou mulatas são as que menos
de alterar o perfil da estrutura social. participam na política. O resultado é a
O debate sobre a efetivação de políticas invisibilidade dessa população na política
socialmente democráticas envolve adeptos brasileira, que será superada apenas quan-
e adeptas da democracia participativa e de- do se reverter tal quadro.
6 Em experiência recente com mulheres brasileiras de
liberativa que pregam o corporativismo setores populares, algumas delas manifestaram A outra via é a da democracia deliberati-
societal para que se efetive a expansão dos surpresa ao serem informadas de que é proibida por lei a va, ao criar espaços para o debate e a decisão
entrada de policiais em suas casas para revista, seja
direitos de cidadania. A lógica da potencia- qual for o motivo. Elas sequer vislumbravam a existência
coletiva, agregando demandas e necessida-
lidade igualitária para o sufrágio, cuja regra de recursos jurídicos de proteção nesses casos. des sem enfrentamentos violentos. A demo-

Observatório da Cidadania 2004 / 43


cracia deliberativa tem sido definida como texto da globalização, a grande novidade Referências bibliográficas
aquela em que o debate político é organiza- foi a emergência de fóruns de deliberação DELLA PORTA, D. Deliberation in movement: why and how
to study deliberative democracy and social
do em torno de concepções alternativas do nacional e internacional.
movements. 2004. Trabalho apresentado à Conference
que seja o “bem público”. Como tem base Diante de um quadro de corrupção e on Empirical Approaches to Deliberative Politics.
nas redes de comunicação horizontal, o de- violência, ausência de segurança indivi- Instituto Universitário Europeu, Florença, Itália, 2004.

bate se dá em torno de argumentos racio- dual e coletiva, presenciamos baixos ín- GUEDES, B.; RIBEIRO NETO, A. Fontes institucionais de
corrupção. In: ROSENN, K.; DOWNES, R. Corrupção e
nais e atitudes de consideração mútua. dices de apoio à democracia nos países reforma política no Brasil: o impacto do impeachment
Participantes dessas redes vêm de grupos latino-americanos. Esse problema é maior de Collor. Rio de Janeiro: FGV, 2004.
organizados da sociedade, e as decisões são na população de baixa renda, dada a pre- IBGE. Síntese de Indicadores Sociais 2003. Rio de Janeiro:
IBGE, 2004.
tomadas de modo inclusivo e transparente sença de polícias que se confundem com
______. Associativismo, Representação de Interesses e
(Della Porta, 2004). bandos de traficantes. No imaginário po- Intermediação Política. Pesquisa Mensal de Trabalho e
A democracia deliberativa vem preen- pular, o pretorianismo encarnado por go- Emprego. Rio de Janeiro: IBGE,1998.
chendo carências deixadas pela incapaci- vernos militares pode ser entendido como MANSO, B. P. Por que se mata tanto na periferia de São Paulo:
homicídios. 2003. Disponível em: <www.aprasc.com.br/
dade dos partidos políticos de intermediar garantia de segurança coletiva, diante do policia/homicidiosemsp.asp>. Acesso em: 20 out. 2004.
sociedade e Estado, como vemos em nu- quadro de deterioração geral. Governos PIZZORNO, A. Introducción al estudio de la participación
merosos grupos organizados cujos mem- munidos de armas dariam conta de tal situa- política. In: PIZZORNO, A.; KAPLAN, M.; CASTELLS, M.
Participación y cambio social em la problemática
bros não se dispõem a entrar nos partidos. ção? Eis uma questão a ser avaliada por go-
contemporânea. Buenos Aires: Siap, 1975.
Ela não exclui protestos, nem engajamen- vernantes, organismos internacionais, ______. La corruzione nel sistema politico. In: DELLA PORTA, D.
tos em outras formas de participação. A sociedade organizada e organizações não-go- Lo scambio occulto. Milão: Società Editrice Il Mulino, 1994.
multiplicação de organizações não-gover- vernamentais. Ou será que no horizonte en- PNUD. La democracia en América Latina: hacia una
democracia de ciudadanas e ciudadanos. Nova York:
namentais em todo o mundo, algumas das contra-se a perspectiva de continuidade de
Pnud, 2004.
quais ligadas aos movimentos sociais de uma ordem social cujo perfil lembra muito REIS, F. W. Atualidade mundial e desafios brasileiros.
referência, valida a tese de que, no con- mais as sociedades de castas? Estudos Avançados, v. 14, n. 39, maio/ago. 2000.

Observatório da Cidadania 2004 / 44


Criminalidade e respostas brasileiras à violência*

Por que jovens negros que moram em favelas ou na periferia das grandes cidades brasileiras correm maior risco de
serem assassinados? Fatores como incremento do tráfico de armas de fogo, rentabilidade do comércio de drogas,
corrupção, violência policial, ausência do poder público, cultura machista e falta de perspectiva de acesso aos bens de
consumo são algumas explicações. Poucas iniciativas governamentais têm surgido no sentido de associar políticas
sociais preventivas a políticas de controle e modernização das polícias. As boas perspectivas ficam por conta da
aprovação do Estatuto do Desarmamento e das ações de jovens que buscam criar uma cultura alternativa ao tráfico em
áreas violentas.

Silvia Ramos e Julita Lemgruber1 A pequena queda observada entre os anos de Verificam-se importantes diferenças en-
1990 e 1992 é atribuída a um problema no tre os estados brasileiros no que se refere a
O Brasil não está em guerra, mas nossas ta- registro dos dados (Soares, 1999). Nesses taxas de homicídio. Os índices vão de 8,4
xas de mortes violentas nos principais cen- anos, teria havido um grande acréscimo de mortes por 100 mil habitantes, em Santa
tros urbanos superam as de países que vivem registros de “mortes por armas de fogo e Catarina, a 58,5 por 100 mil habitantes, em
conflitos armados. Análises comparativas intencionalidade desconhecida” que não fo- Pernambuco, o único estado que tem taxas
com países em guerra ou em situação de ram contabilizados como homicídios, concen- concorrentes com as do Rio de Janeiro, com
conflito intenso concluíram que na cidade tradamente no Rio de Janeiro. 50,5 homicídios por 100 mil habitantes (Grá-
do Rio de Janeiro, tomados os mesmos O Brasil passou de 11,7 para 27,8 ho- fico 2). É importante observar, contudo, que
períodos, morreram mais pessoas vítimas micídios por 100 mil habitantes, respectiva- a fragilidade dos dados com os quais se
de armas de fogo do que nos combates ar- mente nos anos de 1980 e 2001. Países da trabalha na área da criminalidade implica sé-
mados em Angola (1998–2000); Serra Leoa Europa Ocidental têm taxas inferiores a três rias limitações para a análise. Problemas de
(1991–1999); Iugoslávia (1998–2000); mortes por 100 mil habitantes. Os Estados confiabilidade dos dados – alguns estados
Afeganistão (1991–1999). Em todos esses Unidos encontram-se na faixa de cinco a produzem informações mais qualificadas que
conflitos, jovens são as principais vítimas. seis mortes por 100 mil habitantes, e nossa outros – sugerem que qualquer avaliação
No município do Rio de Janeiro, 3.937 ado- vizinha Argentina tem índices semelhantes definitiva sobre violência letal em cada esta-
lescentes morreram por ferimentos causa- aos dos estadunidenses. do da Federação deve ser considerada com
dos por balas entre dezembro de 1987 e
novembro de 2001. No mesmo período, nos
combates entre Israel e Palestina, 467 ado- Gráfico 1 – Homicídios no Brasil: números absolutos e taxas por 100 mil habitantes
lescentes morreram como resultado da ação de 1980 a 2001
de armas de fogo (Dowdney, 2003).
Em 2001, no Brasil, mais de 47 mil pesso-
60.000 27,8 30
as foram assassinadas. Entre os anos de 1980
e 2001, houve 646.158 homicídios dolosos 50.000 47.899 25
22,2
no país, o que equivale a mais de 30 mil as-
sassinatos por ano. Como se pode observar 40.000 20
31.989
no Gráfico 1,2 a curva de homicídios cresce,
30.000 11,7 15
sistematicamente, ao longo de duas décadas.
20.000 13.910 10

10.000 5

1 Silvia Ramos e Julita Lemgruber são, respectivamente, 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001
coordenadora e diretora do Centro de Estudos de
Segurança e Cidadania (Cesec) da Universidade
Candido Mendes. Nº absoluto Taxa por 100 mil habitantes

2 Os gráficos apresentados neste texto foram


elaborados por Leonarda Musumeci e Doriam Borges,
coordenadora e estatístico do Cesec. Fonte: Sistema de Informação sobre Mortalidade – Datasus.

Observatório da Cidadania 2004 / 45


cautela. Estudos da evolução das taxas de to, ao comparar os estados brasileiros, os algumas áreas urbanas pobres, focalizan-
homicídio utilizam duas fontes: a Polícia Ci- mesmos autores concluem que as variáveis do a população jovem, encontramos taxas
vil, cujos dados são baseados nos registros renda, educação e desigualdade têm impac- de mais de 200 homicídios dolosos por
de ocorrências criminais (chamados de ROs to menos significativo nas taxas de homicí- 100 mil habitantes.
ou BOs) e o Sistema Único de Saúde (SUS), dios do que a variável urbanização, ou seja, Paralelamente à idade, estudos recentes
com dados baseados nos certificados de as municipalidades com alta proporção de têm identificado a existência de uma dra-
óbitos (ver Musumeci, 2002). É sempre re- população urbana detêm taxas muito mais mática concentração de mortes violentas
comendável, para análises sobre dinâmicas altas de homicídio. na população negra (soma das pessoas
locais, cotejar as duas fontes. classificadas como pretas e pardas), indi-
As comparações entre os estados bra- Jovens negros são as maiores vítimas cando que a distribuição desigual de rique-
sileiros indicam que variáveis socioeconô- Uma outra característica muito intensa e zas e recursos sociais (educação, saúde,
micas, separadamente, não explicam as preocupante no panorama brasileiro é a saneamento) entre pessoas brancas e ne-
diferenças nos índices de violência letal nos concentração dos homicídios na popula- gras, no Brasil, acaba por provocar outro
estados. Estudos realizados por Cano e San- ção jovem. Na faixa etária dos 15 aos 24 tipo de desigualdade: a distribuição da mor-
tos (2001) em áreas metropolitanas no Bra- anos, as taxas são extraordinariamente mais te violenta. Assim, são as pessoas negras
sil mostram que o número de homicídios é altas do que as verificadas para a popula- e, entre elas, as mais jovens, as vítimas pre-
mais alto nos bairros pobres e mais baixo ção como um todo. A tendência, como se ferenciais da violência letal.
nas áreas favorecidas das cidades, sendo observa no Gráfico 3, é nacional, ocorren- As taxas de homicídios para pessoas ne-
essa região intramunicipal a que revela mais do mesmo nos estados com taxas de vio- gras são mais altas em todas as idades, em-
forte influência da variável renda. No entan- lência letal mais baixas. Quando examinamos bora muito mais acentuadas entre os 14 e 19
anos, faixa em que os números aumentam
sistematicamente. Enquanto a diferença é de
2,8% aos 13 anos de idade, ela sobe para
Gráfico 2 – Taxa de homicídios por 100 mil habitantes nos estados brasileiros
10,3% aos 14 anos, e 17,2% aos 19 anos de
e no DF – 2001
idade. Em seguida, a diferença começa a dimi-
nuir, chegando a 6% depois dos 26 anos e a
menos de 1% depois dos 48 anos de idade.3
Em termos gerais, no Brasil, os riscos de
serem assassinadas são 86,7% maiores para
pessoas negras do que para brancas.
Nas regiões metropolitanas do país,
como se sabe, a criminalidade violenta cres-
ceu predominantemente em favelas e bair-
ros pobres das periferias urbanas. Nessas
áreas, especialmente a partir da década de
1980, instalou-se o tráfico de drogas e com
ele, surgiram os conflitos entre facções ri-
vais que disputam o controle de um merca-
do altamente lucrativo. Também, ao longo
dos anos, cresceram a violência e a
corrupção policiais, umbilicalmente ligadas
ao tráfico de drogas. Nesses territórios po-
bres e carentes de serviços públicos, regis-
tram-se os mais altos índices de violência
letal. Nas cidades brasileiras mais violentas,
é possível identificar uma geografia da mor-
te, em que as maiores vítimas são jovens
negros e pobres.
A Figura 1 ilustra a desigualdade na dis-
tribuição da violência letal entre os diversos
bairros do município do Rio de Janeiro. O

3 Informações contidas no estudo “A cor da morte”, de


Gláucio Soares e Doriam Borges, originalmente
apresentado no seminário Violência e Racismo,
organizado pelo Cesec/Ucam, em 2002, e publicado na
Fonte: Sistema de Informação sobre Mortalidade – Datasus. revista Ciência Hoje (ver Soares e Borges, 2004).

Observatório da Cidadania 2004 / 46


Gráfico 3 – Taxa de homicídios por 100 mil habitantes em diferentes estados Para analistas, está em curso, no país,
brasileiros: jovens e total – 2001 um verdadeiro genocídio de jovens pobres,
sobretudo da cor negra, decorrente da ex-
300 pansão veloz das dinâmicas criminais e do
acesso ilimitado às armas de fogo (Soares,
250 2003). Sem dúvida, a combinação explosi-
va entre armas e drogas foi determinante
200 para a escalada das taxas de criminalidade
violenta nos grandes centros urbanos
150 (Musumeci, 2002; Lemgruber, 2003). Em
1980, as mortes causadas por armas de
100 fogo totalizavam 43,9% do total de homicí-
dios no país. No ano de 2000, o percentual
50 havia subido para 68%.
Boa parte das dinâmicas da violência
0
que se estabelecem e se aprofundam nas
Rio de Janeiro São Paulo Pernambuco Espirito Santo Minas Gerais Bahia
duas últimas décadas se engendra nas re-
des de tráfico e consumo de drogas ilícitas.
total jovens de 15 a 24 anos
O crescimento acelerado de mortes violen-
tas em favelas e bairros pobres pode ser
Fonte: Sistema de Informação sobre Mortalidade – Datasus.
explicado por uma combinação de fatores: a
chegada da cocaína aos centros urbanos –
mapa traz a divisão do município em Áreas no subúrbio, que reúnem bairros pobres e como Rio, São Paulo, Vitória, Belo Horizonte
Integradas de Segurança Pública (Aisps). regiões repletas de favelas, como Penha, – e às grandes cidades do interior, na déca-
Como se pode perceber, as Aisps 2, 19 e 23, Irajá, Rocha Miranda, Acari e Santa Cruz, da de 1980, e sua extrema rentabilidade; o
que englobam os bairros da Zona Sul da chegam a registrar taxas de até 84 homicí- aumento de policiamento violento e repres-
cidade (Copacabana, Ipanema, Leblon, La- dios por 100 mil habitantes. Manchas sivo; as lutas entre facções rivais pelo con-
goa, Jardim Botânico e Barra), nas quais se territoriais de concentração de mortes vio- trole dos pontos de distribuição e venda de
concentram moradores e moradoras com lentas nos bairros pobres e nos aglomera- drogas; e o emprego de armas de uso mili-
maior poder aquisitivo, são aquelas que apre- dos de favelas também se evidenciam em tar. A ausência dos poderes públicos (prin-
sentam as mais baixas taxas de homicídios. cidades nas quais estudos sistemáticos têm cipalmente de uma polícia eficiente e honesta)
Nessas áreas, são comuns taxas que variam sido desenvolvidos, como os do Centro de em tais áreas favoreceu o estabelecimento e
de 4,7 a 10 homicídios por 100 mil habitan- Estudos de Criminalidade e Segurança Pú- a ampliação do controle territorial dessas
tes, próximas dos padrões estadunidenses. blica (Crisp) sobre a violência letal em Belo áreas por grupos armados de traficantes.
Já as Aisps 27 e 9, situadas na Zona Oeste e Horizonte, como mostra a Figura 2. Nesses territórios, o tráfico exerce forte po-

Gráfico 4 – Porcentagem dos homicídios no total de mortes segundo cor e idade no Brasil – 1997 a 2000

Fonte: Sistema de Informação sobre Mortalidade – Datasus.

Observatório da Cidadania 2004 / 47


Figura 1 – Taxa de homicídios por 100 mil habitantes no município do Rio de Janeiro: Áreas Integradas de Segurança
Pública (AISPs) – 2003

AISP 17
AISPs 16 e 22

AISP 9
AISP 14
AISP 3
AISPs 1, 5, 13
AISP 27
AISP 39
AISP 18 AISP 2
AISPs 4 e 6
4,7 a 10 AISP 19
mais de 10 a 25 AISP 31
AISP 23
mais de 25 a 40
mais de 40 a 60
mais de 60 a 84
desconsiderada

Fonte: Musumeci (2004), com dados do Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro e IPP (estimativas populacionais 2002).

Polícia e políticas de segurança


Figura 2 – Clusters de homicídio em Belo Horizonte – 1995 a 2000
O perfil socioeconômico e a baixa capacidade
de pressão política das principais vítimas da
violência podem ajudar a explicar o despertar
tardio dos governos e da sociedade civil bra-
sileira para o tema da segurança pública e
para a necessidade de modernização, con-
trole e democratização das instituições polici-
ais. Apenas na década de 1990 começaram a
ser registrados esforços sistemáticos de ela-
boração de políticas públicas de segurança
baseados numa perspectiva contemporânea,
identificada com a combinação entre eficiência
e direitos humanos. Até então o tema era rele-
gado, pela maioria dos governos, às esferas
corporativas das próprias polícias.4 A indiferen-
ça e o silêncio no que dizia respeito à escalada
de violência letal predominaram também entre
alta amplos setores intelectuais e universitários,
média
baixa
na mídia e mesmo entre as ONGs durante a
inexistente década de 1 parte da década de 1990.
Decorrentes da ausência de investimen-
tos e de políticas públicas racionais, a maio-
Fonte: Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública - Crisp/UFMG.
ria das polícias do país foi se degradando, e
muitas se tornaram violentas e ineficientes.
der de sedução sobre crianças e adoles- freqüentemente letal. Essas práticas ali-
centes, com escassas alternativas de em- mentam uma cultura – na qual predomi-
prego e renda e frágeis perspectivas de nam o despotismo, o machismo, as armas
futuro. Grande parte vislumbra, nos lucros e a violência – que contamina boa parte da 4 No Brasil, a atribuição de polícia pertence aos estados
da Federação, e as funções de policiamento preventivo
rápidos e na vida glamorosa inspirada pelo juventude desses locais, mesmo quem não e ostensivo em espaços públicos e de investigação
poder e pela presença ostensiva das ar- se vincula diretamente ao tráfico de drogas estão dividas entre duas corporações distintas: a
mas, uma saída atraente, ainda que ou ao crime. Polícia Militar e a Polícia Civil.

Observatório da Cidadania 2004 / 48


O crime organizado que se estrutura em tor-
no do tráfico de armas e drogas, por meio Gráfico 5 – Autos de resistência no estado do Rio de Janeiro: 1998 a 2003
de mecanismos em níveis diversos, corrom-
peu amplos segmentos das corporações
policiais, em alguns casos atingindo desde
as bases até as chefias (ver Lemgruber,
Musumeci e Cano, 2003). Em alguns esta-
dos, a violência policial transformou-se em
um problema maior e afeta diretamente as
populações pobres das favelas e das perife-
rias, que se vêem encurraladas entre a vio-
lência dos grupos armados de traficantes e
a violência e a corrupção policiais.
No estado do Rio de Janeiro, a Polícia é
responsável por mais de 10% dos homicídi-
os dolosos, tendo as ocorrências chegado a
900 mortes, registradas como autos de re- Fontes: Planilhas Asplan/PCERJ, Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro e IBGE.
sistência5, em 2002, e a 1.195, em 2003,
denotando um crescimento extraordinário
da violência policial, indicada no Gráfico 5. O Gráfico 6 – Número absoluto e taxa por 100 mil habitantes de homicídios
Gráfico 6, com a taxa e o número absoluto no estado do Rio de Janeiro: 1998 a 2003
de homicídios no mesmo estado, demons-
tra não haver correspondência entre política
de segurança pública orientada para o
confronto com os “bandidos”, como freqüen-
temente assevera o governo do estado do
Rio, e a redução de taxas de homicídios. Em
1999, a Polícia matou 289 pessoas, e a taxa
de homicídios foi de 42,9 por 100 mil habi-
tantes. 6 Em 2003, a Polícia matou 1.195
pessoas, e a taxa de homicídios foi mais ele-
vada: 44,5 por 100 mil habitantes. Enfim,
embora o número de autos de resistência
tenha crescido, consistentemente, entre
1999 e 2003, as taxas de homicídios não se
comportam no sentido inverso.
O número de policiais mortos também
Fontes: Planilhas Asplan/PCERJ, Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro e IBGE.
tem aumentado, ainda que em proporção
muito inferior ao número de civis, como
mostra o Gráfico 7. Além disso, uma carac-
Gráfico 7 – Número de policiais militares mortos no estado do Rio de Janeiro:
terística do fenômeno da morte de policiais
1995 a 2002
no estado do Rio de Janeiro é a incidência
predominantemente maior de mortes fora
de serviço. Aproximadamente 70% das mor-
tes de policiais ocorrem no “segundo em-
prego”, isto é, quando estão fazendo “bicos”
como seguranças particulares.
A violência policial também assume, do
mesmo modo que as taxas de homicídios na
cidade, uma geografia específica: está forte-
mente concentrada na Zona Oeste e nos

5 Mortes provocadas pela polícia que não são


contabilizadas como homicídios.
6 Os Gráficos 5 e 6 foram elaborados a partir dos dados
da Polícia Civil do estado do Rio de Janeiro. Portanto,
Fonte: Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro.
não estamos utilizando aqui informações do Datasus.

Observatório da Cidadania 2004 / 49


bairros do subúrbio, como indica a Tabela 1. dos em favelas, a Polícia matou 512 pes- corporação esclarece apenas 4% dos homi-
A baixa presença de organizações de direi- soas. Fora das favelas, foram mortas 430 cídios registrados. Para se ter uma idéia da
tos civis nessas áreas, o interesse restrito pessoas. Considerando o percentual da po- distância de padrões internacionais, a taxa
dos meios de comunicação em noticiar ações pulação que vive nessas áreas no Rio de de esclarecimento de homicídios na Ingla-
policias violentas em favelas (exceto em casos- Janeiro, este dado representa uma incidên- terra é de 87%. O fato de mais de 90% dos
limite) e uma espécie de “naturalização” da idéia cia de mortes seis vezes maior no interior homicídios permanecerem sem autoria
de que conflitos em favelas provocam vítimas das favelas. Além disso, a análise mostrou identificada, sem indiciados e punidos é um
civis podem ajudar a compreender por que es- que quase a metade dos corpos recebeu indicador do baixo valor que se dá à vida e
ses números só vêm crescendo nos últimos quatro disparos ou mais e a maioria dos um potente motor propulsor do cometimen-
anos. O fato é que a violência policial encontra- cadáveres apresentava pelo menos um tiro to de novos crimes violentos.
se fora de controle dos comandos superiores, nas costas ou na cabeça, configurando ca- Em 2004, levantamento realizado por
bem como a corrupção policial, que cresceu sos evidentes de execuções sumárias entre Musumeci7 indicou que é difícil contabilizar
espantosamente na mesma proporção em que as “mortes em confronto”. a tragédia das mortes violentas, pois, além
a “licença para matar” foi concedida. Em relação a políticas de controle do dos homicídios dolosos registrados pelas
O quadro atual pode ser resumido no uso excessivo da força policial, é digno de instituições policiais e dos autos de resis-
fato de que a Polícia do Rio de Janeiro mata nota o projeto pioneiro da Polícia Militar de tência, o estado convive com uma taxa tam-
mais do que todas as polícias dos Estados São Paulo. O Programa de Acompanhamen- bém crescente de desaparecimentos de
Unidos juntas. E, é bom que se diga, os to de Policiais Envolvidos em Ocorrências pessoas, conforme mostra o Gráfico 8. Au-
Estados Unidos convivem com índices de de Alto Risco (Proar) retirava das ruas, por toridades policiais confirmaram que cerca
violência policial muito superiores a qualquer seis meses, para acompanhamento médi- de 70% desses desaparecimentos devem
país do mundo desenvolvido. As caracterís- co e psicológico, policiais que fizessem estar relacionados a mortes causadas pe-
ticas dessas mortes são importantes para disparos fatais. O programa foi adotado em las disputas no tráfico de drogas.
compreender sua dinâmica. Um estudo mi- 1995, durante a gestão Covas, e extinto em Quando se analisam as prisões
nucioso realizado por Cano (1997), toman- agosto de 2002. efetuadas, a baixa relação entre taxas de
do os autos de resistência ocorridos nos Outro problema grave e generalizado criminalidade violenta e taxas de encarcera-
anos de 1993 a 1996, na cidade do Rio de acerca da atuação das polícias no combate mento se evidencia no crescimento
Janeiro, revelou que as vítimas são majorita- ao crime é a baixa taxa de esclarecimento de exponencial de prisões pelo delito “tráfico
riamente jovens do sexo masculino (de 15 a delitos. Num dos únicos levantamentos fei- de drogas” (Gráfico 9). Em 1980, apenas
29 anos, com ênfase na faixa de 20 a 24 tos no país, Luiz Eduardo Soares concluiu, 7,7% das pessoas presas do estado do Rio
anos) e que 64% das vítimas são negras, em 1996, que a Polícia do Rio de Janeiro de Janeiro haviam sido condenadas por trá-
contrastando com a sua menor presença na esclarecia apenas 8% dos homicídios que fico de drogas. Em 2000, último ano para o
população carioca (39%). registrava. Em 2003, o secretário de Direi- qual há dados disponíveis, 54,3% da po-
O estudo também mostrou que a ação tos Humanos do estado do Rio de Janeiro, pulação carcerária respondia pelo mesmo
policial dentro das favelas é mais letal do que Jorge da Silva, declarou que um levanta- crime. Estima-se que, hoje, essa propor-
em outros locais. Em 523 confrontos arma- mento da própria Polícia Civil concluíra que a ção seja superior a 60%.
A despeito desse aumento, não só as
taxas de mortes violentas, mas também os
crimes contra o patrimônio cresceram ao
Tabela 1 – Autos de resistência e policiais mortos em serviço em BPMs da capital longo da década de 1990 (Gráfico 10).
Rio de Janeiro – 2003
Em relação às políticas de segurança,
População Autos de Policiais militares além das experiências de alguns estados –
residente resistência mortos em serviço e, mais recentemente, de alguns municípi-
os – que passaram a incorporar pesqui-
Subúrbios 2.086.582 501 23 sadores(as) e organizações da sociedade
civil na elaboração e execução de políticas
Zona Oeste 2.280.831 124 8 públicas, em 2002, durante o processo de
eleições presidenciais, o Partido dos Traba-
Zona Norte 625.207 61 2 lhadores apoiou a elaboração de um Pro-
grama Nacional de Segurança,8 que resultou
Centro 221.572 55 0 de um amplo processo nacional de consultas
e contou com a participação de mais de cem
Ilha do Governador 168.765 37 0

Zona Sul 435.368 20 1


7 Os resultados completos foram publicados no jornal O
Globo, de 2 de maio de 2004, e encontram-se
Total Munic. do Rio de Janeiro 5.818.325 798 34 disponíveis em <http://www.cesec.ucam.edu.br/rj/
evolucao/13.xls>.
Fontes: Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro/Asplan e Censo Demográfico 2000, IBGE. Elaboração: Cesec.
8 Disponível em: <http://www.mj.gov.br/senasp>.

Observatório da Cidadania 2004 / 50


especialistas. Pela primeira vez, o país conta
Gráfico 8 – Pessoas desaparecidas no estado do Rio de Janeiro: 1991 a 2003 com um programa elaborado a partir de um
diagnóstico sistemático e uma visão estraté-
gica do problema da violência, com a preo-
cupação de combinar políticas sociais e
preventivas com políticas policiais e repressi-
vas e de controle e modernização das institui-
ções policiais. O programa preconiza o Sistema
Único de Segurança Pública (Susp), por meio
do qual trabalhariam integradas as polícias
estaduais, a Polícia Federal e as guardas mu-
nicipais, compartilhando informações, plane-
jando e executando suas ações.
Desde o início da atual gestão nacio-
nal, contudo, os resultados se mantêm
muito aquém do esperado. De fato, há
propostas no projeto que demandam mu-
Fontes: Planilhas Asplan/PCERJ, Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro e IBGE. danças constitucionais, e, naturalmente,
sua viabilização será demorada e sujeita a
negociações. Mas há uma série de medi-
Gráfico 9 – Percentual de presos por tráfico de drogas no estado das que podem ser tomadas imediatamen-
do Rio de Janeiro: 1980 a2000 te, bastando que se considere a segurança
pública prioridade. Por exemplo, a criação
da Ouvidoria da Polícia Federal, que até
hoje não se efetivou, depende, exclusiva-
mente, do Ministro da Justiça. Se o gover-
no federal quer mostrar que o controle
externo da Polícia é fundamental num país
em que grassam a corrupção e a violência
nas forças policiais, o mínimo esperado é
que crie sua própria ouvidoria.
O Fundo Nacional de Segurança Públi-
ca, para investimentos em todo país, conta,
em 2004, com recursos de aproximadamente
R$ 400 milhões. O orçamento da segurança
pública do estado de São Paulo correspon-
de a R$ 5 bilhões. Se o programa será im-
Fonte: Desipe/RJ. plantado ou não, em grande medida
dependerá da capacidade de pressão que a
sociedade for capaz de exercer para que o
governo federal e os governos locais reco-
Gráfico 10 – Total de roubos registrados por 100 mil habitantes no estado e no nheçam a urgência dos temas da violência
município do Rio de Janeiro: 1991 a 2003
e a prioridade da segurança pública por
detrás da cortina de silêncio favorecida pela
baixa capacidade de vocalização de suas
principais vítimas. Com raras exceções,9 por
um lado, as respostas predominantes dos
governos ao fenômeno da violência – inde-
pendentemente de orientação partidária,
tanto no plano federal como nos planos es-
taduais e municipais – parecem ser, ainda

9 Entre elas, vale mencionar o esforço do governo


de Minas Gerais para apoiar um importante processo
de modernização, reforma e transparência nas
instituições policiais, com apoio de grupos de
Fontes: Planilhas Asplan/PCERJ, Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro e IBGE. pesquisa e entidades civis.

Observatório da Cidadania 2004 / 51


nesses primeiros anos do novo século, a dos em torno da cultura hip-hop nas periferi- las, de um lado, e os governos, a mídia e, mui-
inércia, a lentidão de respostas e a naturaliza- as de São Paulo, nas vilas de Porto Alegre, tas vezes, atores internacionais, como funda-
ção da violência e da criminalidade (especi- nos aglomerados de Belo Horizonte e em ções e agências de cooperação, de outro.
almente quando ela atinge populações bairros pobres de Recife, Brasília e São Luís. Esses “novos mediadores” trazem para o
marginalizadas); e por outro lado, os ímpetos Esses grupos “disputam” jovens com o campo das ONGs, da esquerda e dos movi-
de indignação e as ondas de “lei e ordem”, tráfico, exercendo outro tipo de sedução e mentos sociais, sindicais e associativos tradi-
quando há ocorrências criminais rumorosas. usando estratégias de atração igualmente for- cionais novidades como: o interesse no
tes. São comprometidos com uma cultura de mercado e os “fins lucrativos”, combinados
O Estatuto do Desarmamento paz e sintonizados com o espírito e os inte- com o compromisso com o comunitário; a
Entre as respostas da sociedade civil, em resses contemporâneos: além de cultura e afirmação de identidade territorial e racial,
2003, um importante passo foi dado para arte, valorizam Internet, computação, rou- combinada com identidade social; a ênfase no
reduzir as mortes por armas de fogo. Sob a pas e tênis da moda, viagens e intercâmbio subjetivo, nas trajetórias individuais, no suces-
liderança de ONGs (principalmente o Viva Rio, regional e internacional. Em geral, os proje- so e na fama, que se associam ao mundo da
no Rio de Janeiro, e o Instituto Sou da Paz, tos caracterizam-se por quatro aspectos ino- cultura e da arte. Tais novidades não deveriam
em São Paulo) que mobilizaram grandes vadores no repertório de princípios das ser desprezadas pelas pessoas que preten-
manifestações públicas, além da articulação entidades de “direitos humanos” da década dem acompanhar as saídas que a sociedade
com parlamentares comprometidos(as) com de 1980 e das ONGs da década seguinte: brasileira produzirá, nesta década, a fim de
políticas de paz e do apoio de parte importan- 1) incentivo à geração de renda e emprego enfrentar a violência e construir caminhos para
te da mídia, foi aprovado, no Congresso Na- a curto prazo, buscando sucesso, colo- a segurança, a justiça e a cidadania.
cação no mercado e profissionalização
cional, o Estatuto do Desarmamento, que
para as pessoas que fazem parte dessas
prevê uma série de dispositivos para contro-
organizações;
lar a venda e a posse de armas de fogo e Referências bibliográficas
2) forte componente de afirmação individu-
proibir o porte (exceto para policiais civis e BEATO, C. et al. Programa Fica Vivo: ações simples, e
al, incluindo a formação de artistas e líde-
militares, membros das Forças Armadas e resultados efetivos. Informativo, ano 1, n. 5, fev. 2003.
res, cuja fama passa a servir de exemplo Disponível em: <http://www.crisp.ufmg.br/
guardas municipais de cidades com mais de
e atração para jovens do local; ProgramaFicaVivo.pdf>. Acesso em: 15 out. 2004.
250 mil habitantes). BORGES, Doriam. Dados sobre cor e racismo no Brasil. In:
3) forte componente de afirmação territorial,
O estatuto prevê também a realização de RAMOS, Silvia (Org.). Mídia e racismo. Rio de Janeiro:
sendo freqüente que as letras de músicas, Pallas, 2002.
um plebiscito nacional em 2005, quando a
os nomes dos grupos, as camisetas e CANO, Ignacio; SANTOS, Nilton. Violência letal, renda e
população votará sobre a proibição de ven-
roupas e as lideranças reafirmem os no- desigualdade social no Brasil. Rio de Janeiro: 7Letras, 2001.
da de armas de fogo em território nacional.
mes das comunidades (Vigário Geral, Ci- CANO, Ignacio. Letalidade da ação policial no Rio de
Em 2004, depois de muita luta contra o lobby Janeiro. Rio de Janeiro: Iser, 1997.
dade de Deus, Capão Redondo, Candeal,
das fábricas de armas no Congresso e no DOWDNEY, Luke. Crianças do tráfico: um estudo de caso
Alto Vera Cruz, Alto do Pina) e sua origem
Executivo, começou a ser implementada, com de crianças em violência armada organizada no Rio de
como um signo de “compromisso” com Janeiro. Rio de Janeiro: 7letras, 2003.
sucesso, a etapa do recolhimento de armas,
a mudança da comunidade; LEMGRUBER, Julita. Violência, omissão e insegurança
antes de serem consideradas ilegais as ar-
4) forte componente de denúncia do racis- pública: o pão nosso de cada dia. Rio de Janeiro:
mas em situação irregular. Academia Brasileira de Ciências, 2004.
mo e de afirmação racial negra, seja nas
Ainda é cedo para medir o impacto do ______. Drugs, arms, poverty and governability: a Brazilian
letras de músicas, nas indumentárias (ca-
desarmamento nas taxas de mortes violen- city in the 21rst century. 2003. Disponível em: <http://
belos afros, roupas) ou nos nomes de www.unodc.org/pdf/crime/publications/
tas, e, possivelmente, o efeito mais impor- standards%20&%20norms.pdf> Acesso em: 18 out 2004.
projetos (Música Preta Brasileira,
tante do estatuto, em seu período inicial, será LEMGRUBER, Julita; MUSUMECI, Leonarda; CANO, Ignacio.
AfroReggae, Companhia Étnica, Negros
o debate nacional que o tema é capaz de Quem vigia os vigias? Rio de Janeiro: Record, 2003.
ou siglas como NUC, que quer dizer Ne-
suscitar e a manifestação da vontade da so- MUSUMECI, Leonarda. Homicídios no Rio de Janeiro:
gros da Unidade Consciente). No que diz tragédia em busca de políticas. Boletim Segurança e
ciedade civil brasileira por uma cultura con-
respeito à violência e à criminalidade, a Cidadania, Rio de Janeiro, Cesec, jul. 2002.
trária às armas.
maioria dessas iniciativas se equilibra en- PANDOLFI, Dulce; GRYNZSPAN, Mario (Orgs.). A favela
fala. Rio de Janeiro: FGV, 2003.
tre a denúncia da violência, do desrespei-
Jovens da periferia: nova mediação to e da corrupção policiais e a construção
RAMOS, Silvia; LEMGRUBER, Julita. Urban violence, public
safety policies and responses from civil society.
No contexto das respostas civis à violência, de uma trajetória de autonomia e inde- Social Watch Report 2004. Montevidéu: Instituto del
pode-se vislumbrar um importante e recente pendência em relação ao tráfico local. Tercer Mundo, 2004.

processo de mobilização de jovens de favelas e Juntamente com o fenômeno de criação SOARES, Gláucio Ary Dillon; BORGES, Doriam. A cor da
morte. Ciência Hoje, out. 2004.
bairros de periferia. São projetos, programas das “ONGs locais”, identificado por analistas (ver
______. Homicídios no Brasil: dados em busca de uma
ou iniciativas locais baseados em ações cultu- Pandolfi e Grynzspan, 2003), esses projetos e teoria. Buenos Aires: Clacso, 1999.
rais e artísticas, freqüentemente desenvolvidos iniciativas – heterogêneos e não articulados en- SOARES, Luiz Eduardo. Meu casaco de general :
e coordenados por jovens. Exemplos dessas tre si, mas que crescem consistentemente em quinhentos dias no front da segurança pública do Rio
de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
iniciativas são o grupo Olodum, em Salvador, favelas de várias cidades do país – vêm se tor-
______. Pacto pela paz: o consenso possível. 2003.
o Afro Reggae, o Nós do Morro e a Cia. Étnica nando importantes, não só como pólos de cons- Disponível em: <www.luizeduardosoares.com.br>.
de Dança, no Rio de Janeiro, além de centenas trução de uma cultura alternativa ao tráfico, mas WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência III: os
de agrupamentos locais (“posses”) mobiliza- como mediadores entre a juventude das fave- jovens no Brasil. Brasília: Unesco, 2002.

Observatório da Cidadania 2004 / 52


Uma vida sem violência: o desafio das mulheres

Se houve avanços nos últimos anos com a incorporação da ausência de racismo, sexismo e homofobia como condições
necessárias à segurança humana, ainda são poucas as vozes que incluem a ausência da violência de gênero1 como
elemento fundamental para a segurança das mulheres e da sociedade. A violência atinge de maneira diferenciada
homens e mulheres. A grande maioria das agressões sofridas por elas ocorre dentro de casa e é praticada por
pessoas conhecidas, em geral pelos próprios companheiros. O duplo medo, provocado pela violência nos espaços
público e privado, reduz significativamente a força de luta das mulheres pelo acesso à segurança humana e seu
protagonismo social.

Leila Linhares Barsted2 capazes de definirem e de lutarem por agen- Tomando como indicador a esperança de
das gerais e específicas voltadas à superação vida ao nascer, são marcantes as diferenças
Alcançar um padrão de segurança humana é das desigualdades sociais flagradas por pes- entre pessoas brancas e negras: cerca de seis
um grande desafio dos nossos dias, que tem quisas qualitativas e quantitativas, que revela- anos de vida a menos para as negras (Pnad/
como obstáculos: a hegemonia do neolibe- ram um país com graves distorções e IBGE, 1997 apud Paixão, 2004, p. 75). Por
ralismo, a desregulamentação de direitos e o injustiças, incompatíveis com os parâmetros outro lado, se as mulheres brancas têm maior
recuo do Estado em relação a deveres assu- necessários à segurança humana. No con- longevidade que os homens brancos (71 anos
midos no passado recente, a ampliação de junto dessas forças sociais, destacam-se o para as mulheres e 69 anos para os homens)
processos de pobreza e de exclusão social; a movimento de mulheres e o movimento ne- e se as mulheres negras apresentam maior
atuação de grupos criminosos na sociedade gro, que trouxeram para o cenário público longevidade que os homens negros (66 anos
e nas instituições públicas; a intolerância reli- questões que até então não eram politizadas para as mulheres e 62 anos para os homens),
giosa de fundamentalistas; a persistência do pela sociedade: as discriminações e a violên- o diferencial de expectativa de vida entre mu-
sexismo, do racismo e da homofobia; o avanço cia de gênero e raça/etnia. lheres brancas e negras chega a cinco anos.
do militarismo no plano internacional; além De fato, as desigualdades econômicas e Segundo Suely Carneiro,
de outros fatores no processo de deteriora- sociais no Brasil se aprofundam ainda mais
o atual movimento de mulheres negras, ao
ção da qualidade de vida. quando se consideram fatores que interferem
trazer para a cena política as contradições
No Brasil, esse desafio significa ainda ins- no poder de barganha dos indivíduos. Na aná-
resultantes da articulação das variáveis de
crever a noção de segurança humana nas lise dos dados estatísticos produzidos por agên-
raça, classe e gênero, promove a síntese
representações sociais e nas políticas gover- cias governamentais ou internacionais, mulheres
das bandeiras de luta historicamente
namentais, articulando-a aos princípios da e pessoas negras, parcelas majoritárias da po-
levantadas pelos movimentos negros e de
pulação brasileira, aparecem como os grupos
universalidade e da indivisibilidade dos direi- mulheres do país, enegrecendo, de um
de menor acesso às condições necessárias à
tos humanos. A redemocratização do Brasil, lado, as reivindicações das mulheres,
segurança humana. Em todos os indicadores
a partir da década de 1980, revelou um dina- tornando-as, assim, mais representativas
sociais, a população afrodescendente brasileira
mismo das organizações da sociedade civil, do conjunto das mulheres brasileiras e, por
está em patamares muito abaixo dos verifica-
outro, promovendo a feminização das
dos para a população branca. Quando se arti-
propostas e reivindicações do movimento
cula gênero com raça/etnia, a situação das
negro. (2003, p. 52)
mulheres negras se agudiza.
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra A autora destaca ainda o peso diferen-
1 O conceito de gênero é utilizado para dar conta dos
significados culturais da masculinidade e da de Domicílios (Pnad) do Instituto Brasileiro de ciado da questão da violência contra a mu-
feminilidade para além das diferenças biológicas Geografia e Estatística (IBGE) de 2002 indicam lher pela introdução do conceito de violência
inscritas nos corpos de homens e mulheres.
que a renda média das mulheres ocupadas no racial como aspecto determinante das for-
Feminilidade e masculinidade são compreendidos
nesses estudos como construções culturais que, Brasil só alcançava 70,3% da renda masculina mas de violência sofridas pela população
historicamente, orientam as relações entre homens e
(IBGE, 2004). Ao se incluir a variável raça na feminina não-branca do país.
mulheres, definem a forma como a sociedade os trata
e legitimam discriminações no reconhecimento de população feminina, observa-se uma enorme Nesse sentido, como chamou atenção a
direitos e no acesso a benefícios de políticas sociais. disparidade de rendimentos entre mulheres escritora inglesa Sheila Rowbotham, o concei-
O conceito de gênero possibilita tornar visíveis as to de gênero não deve “congelar nosso olhar,
relações de poder entre os sexos.
brancas e mulheres negras. As trabalhadoras
negras recebem cerca de 51,4% menos que tornando difícil enxergar aqueles aspectos
2 Advogada, diretora da organização não-governamental
Cepia – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação. as trabalhadoras brancas. da subordinação das mulheres afetadas por

Observatório da Cidadania 2004 / 53


outros fatores sociais” (Sorj & Goldenberg, 1998, Publicação elaborada pela Secretaria Es- conseguinte, reconhecem a importância da
p. 366), como classe, etnicidade e raça. Segun- pecial de Políticas para as Mulheres (SPM) garantia, do respeito e da tolerância à diversi-
do a escritora, “é importante perceber o gênero afirma: “A ausência da variável cor na maioria dade humana.
não como um conceito fixo, mas como sendo dos sistemas de informação na área da saú- No entanto, ainda são poucas as vozes que
constantemente redefinido e moldado pelos in- de tem dificultado uma análise mais consis- incluem a referência à ausência específica da
divíduos em situações históricas particulares nas tente sobre a saúde das mulheres negras no violência de gênero como elemento fundamen-
quais eles se encontram” (1998, p. 366). Brasil” (SPM, 2003, p. 49). Essa publicação, tal para a segurança das mulheres e da socie-
citando dados da Pnad/IBGE de 1996 relati- dade como um todo. De fato, essa referência
As diferentes violências vos à atenção ginecológica, sublinha que, do relativa a uma vida sem medo para as mulheres
A ausência de medo, apontada como uma das conjunto das mulheres que, no ano anterior tem sido pouco destacada, em parte pela difi-
condições fundamentais à segurança huma- à pesquisa, realizaram exames ginecológicos, culdade de mensuração desse fenômeno e,
na, introduz o tema da violência em geral e 37,1% eram brancas e 24,7% eram negras. em grande medida, por causa dos padrões
suas formas particulares, que atingem de ma- No que se refere à vitimização por eventos culturais que negligenciam ou subestimam a
neira diferenciada homens e mulheres. As criminosos, pesquisa realizada na década de ocorrência e as conseqüências dessas formas
vulnerabilidades e os obstáculos à segurança 1980 pelo IBGE destacou um dado importante de violência. Por isso mesmo, a percepção de
humana sob as perspectivas de gênero e de na diferenciação entre homens e mulheres que a segurança humana para as mulheres sig-
raça/etnia são potencializados quando consi- (IBGE, 1988). A grande maioria de crimes co- nifica também a superação da violência de gêne-
deramos o fenômeno da violência. metidos contra homens ocorre no espaço pú- ro necessita ser constante e fortemente destacada.
No Brasil, os homicídios e as mortes vio- blico, praticados por outro homem, com grande Muito freqüentemente, as concepções de
lentas são a primeira causa de óbito para a incidência de agressores desconhecidos. No “desenvolvimento humano”, “direitos huma-
população masculina jovem,3 em especial nas caso das mulheres, a maioria dos crimes ocor- nos” e “segurança humana” têm como
camadas pobres. Nesse contexto, as taxas de re no espaço doméstico, cometidos por pesso- parâmetros experiências masculinas, deixan-
homicídios praticados por pessoas estranhas as que privam da intimidade das vítimas, entre do de conhecer as diferenças de gênero e não
ou por policiais e outros agentes públicos atin- as quais maridos e companheiros. revelando sensibilidade para as questões de
gem majoritariamente homens negros jovens, É no campo da violência de gênero que as gênero na segurança humana (ver Zeitlin &
o que explica, em parte, a menor expectativa diferenças entre mulheres brancas e mulheres Mpoumou, 2004).7 A violência contra as mu-
de vida para a população masculina negra.4 negras, com alta ou baixa renda, diminuem lheres, mesmo na família, e seus direitos re-
Para as mulheres, as mortes violentas, para dar espaço a um padrão social que ab- produtivos são questões cruciais para a
por homicídios ou acidentes, não represen- sorve a violência contra as mulheres como um integridade física das mulheres e elementos
tam taxas significativas nos óbitos femininos.5 dado da cultura, chegando mesmo a conside- centrais para sua segurança íntima e para a
As doenças cardiovasculares, as neoplasias rá-la uma não-violência. Este é um grave obs- garantia dos direitos humanos fundamentais.
(principalmente o câncer de mama), as doen- táculo para a segurança das mulheres brancas Vale destacar ainda que a violência contra as
ças do aparelho respiratório e também a Aids e negras. No entanto, nem sempre tem sido mulheres difere muito da que é praticada con-
respondem como as principais causas de considerado nas estatísticas ou nas represen- tra os homens. O assédio, por exemplo, é um
óbitos femininos. Embora a mortalidade as- tações sociais. constrangimento permanente sobre a mobili-
sociada à maternidade não esteja entre as dez dade de milhões de mulheres e limita seu aces-
primeiras causas de óbitos de mulheres,6 ela Agressor dentro de casa so aos recursos e às atividades básicas (Zeitlin
ainda se mantém em patamares altos no Bra- Há consenso entre as pessoas que defen- & Mpoumou, 2004).
sil, particularmente se considerarmos que dem os direitos humanos que a segurança Freqüentemente, a violência contra as mu-
cerca de 92% desses óbitos poderiam ser de homens e mulheres significa a ausência lheres e as meninas ocorre na família ou na
evitados (cf. SPM, 2003), por meio de cuida- do medo da guerra, do desemprego, da po- casa, onde muitas vezes é tolerada e silenciada.
dos rotineiros na gestação, no parto e no breza, da exclusão social e, por conseguinte, Por isso, a negligência, o abuso físico e sexual e
puerpério. Seriam mortes evitáveis em siste- inclui o acesso à riqueza e aos direitos indivi- o estupro por membros da família ou pessoas
mas de saúde preventivos e seguros. duais e sociais, bem como aos bens cultu- próximas são sempre difíceis de serem detecta-
rais, ao progresso científico, à garantia de um dos. Quando ocorrem denúncias, é frágil a pro-
meio ambiente saudável e sustentável. Mui- teção às vitimas ou a punição dos agressores
tas avançam mais e apontam, como neces- (Zeitlin & Mpoumou, 2004).
sários à segurança humana, a ausência do Dados divulgados pela Fundação Perseu
3 Dados do IBGE (Síntese de Indicadores Sociais 2003)
racismo, do sexismo e da homofobia e, por Abramo relativos a 2001, no que se refere à
relativos à cidade do Recife indicam que, entre jovens
de 15 a 24 anos, a taxa de homicídios é de 179,5
violência doméstica, indicam que, do conjunto
mortes por 100 mil habitantes, fato que destaca essa das ocorrências investigadas de violência con-
cidade como a de maior índice de violência no país tra as mulheres, a responsabilidade dos par-
(apud SOS Corpo, 2004).
ceiros, maridos ou companheiros variava
4 Ver, nesta edição do Observatório da Cidadania, o texto 6 Os dados nacionais devem ser relativizados em face
de Silvia Ramos e Julita Lemgruber (página 45) das diferenças regionais. Segundo Anna Volochko, “o
5 No entanto, levando em conta diferenças regionais, registro de óbitos femininos é menos abrangente e de
dados da Secretaria de Defesa Social de Pernambuco qualidade menor que o de masculinos em quase todos
revelam que, no Recife, em 2004, as vítimas de os estados do país, com conseqüências ainda pouco
homicídios distribuíram-se quase igualmente entre quantificadas para a mensuração da mortalidade 7 O texto de Zeitlin e Mpoumou está disponível, em inglês e
homens e mulheres (apud SOS Corpo, 2004). materna” (Volochko, 2003). espanhol, no CD-ROM que acompanha esta publicação.

Observatório da Cidadania 2004 / 54


entre 53% a 70% dos casos, dependendo da mantinham vínculos amorosos, 51,3% são honra. O repúdio jurídico aos homicídios pra-
modalidade da agressão,8 confirmando o que brancas, 32,9% são negras e 13% são par- ticados sob esse argumento ocorreu em 1991,
a Pnad/IBGE de 1988 indicou. das. Isso revela que tanto brancas como não- quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ),
Os dados da Secretaria de Segurança Pú- brancas são suscetíveis a essa forma de em decisão histórica, julgou que a tese da legí-
blica do Rio de Janeiro referentes ao primeiro violência. O perfil socioeconômico e o nível tima defesa da honra não tem amparo legal
semestre de 2002 também apontam um qua- educacional das vítimas que denunciaram as (ver Hermann & Barsted, 1995).
dro semelhante: do total das vítimas de crimes violências revelam mulheres de baixa renda e Segundo a Secretaria de Segurança Públi-
de lesão corporal dolosa ocorridos no estado, de baixa escolaridade. No entanto, a violência ca do Rio de Janeiro, foram notificadas à polí-
nesse período, 33,7% eram homens e 66,2% doméstica e sexual não atinge apenas as mu- cia no estado, em 2002, 643 ocorrências de
mulheres. No que se refere à relação da vítima lheres pobres. estupro no primeiro semestre, das quais 45,3%
mulher com o agressor, em 93,8% das ocor- A invisibilidade da violência de gênero nas das vítimas eram mulheres brancas, 13,7%
rências registradas o agressor era conhecido camadas de rendas média e alta e as estratégi- mulheres negras e 34,4% mulheres pardas.
e destes, 62,2% eram homens com as quais as das mulheres para lidarem com essa vio- Novamente, é registrada pequena diferença
as vítimas tinham envolvimento amoroso, in- lência fazem com que suas características entre brancas e não-brancas para essa forma
cluindo casamento. econômicas e culturais não estejam presentes de violência. Vale ressaltar que, no estado do
No estado do Rio, também se verifica que no perfil de vítimas de violência doméstica e Rio de Janeiro, em 2002, as mulheres bran-
87% dos casos de estupro ocorreram na casa sexual. A violência de gênero nessas camadas cas e não-brancas foram vítimas de crime de
da vítima e foram praticados por conhecidos. sociais só aparece na mídia em situações ex- lesão corporal dolosa e estupro na mesma
Dos casos ocorridos fora de casa, 46,4% tremas, quando ocorrem homicídios pratica- proporção. Outra informação importante é o
também foram cometidos por conhecidos. O dos por maridos ou companheiros, que, não fato de a faixa etária mais agredida ser a de
estupro cometido por desconhecido é signi- raro, ainda alegam a tese da legítima defesa da jovens adolescentes.
ficativamente menor que aquele praticado por
conhecido. Os dados relativos às lesões cor-
porais e aos estupros apontam, portanto, para
a “domesticidade” desses crimes e apresen-
tam um desafio ao debate, habitualmente cal- A Convenção de Belém do Pará
cado na vítima masculina, sobre a violência
urbana que ocorre no espaço público. A mais clara definição normativa de violência ou verbal, ou a participar de relações sexu-
de gênero contra as mulheres está na Con- ais com uso de força, chantagem, suborno,
Gênero, raça/etnia e classe venção para Prevenir, Punir e Erradicar a manipulação, ameaça direta ou indireta ou
É importante observar e refletir sobre a existên- Violência contra as Mulheres – conhecida qualquer outro meio que anule ou limite a
cia de diferentes patamares de segurança hu- como Convenção de Belém do Pará –, apro- vontade pessoal. Essas formas de violência
mana no Brasil, percebendo os distintos graus vada em 1994 pela Organização dos Esta- podem ocorrer na família, no trabalho, na
de vulnerabilidades. Com essa compreensão, a dos Americanos (OEA). Com status sociedade ou nas instituições do Estado.
violência de gênero não pode ser pensada se- legislativo nos países signatários, ela incor- A Assembléia Geral da OEA, que aprovou
paradamente da violência racial que atinge mu- porou a definição contida na Declaração esta convenção, considerou que a violência
lheres negras e indígenas. Ela se agudiza quando sobre a Eliminação da Violência contra a de gênero contra a mulher é uma ofensa à
se trata de mulheres trabalhadoras urbanas e Mulher, das Nações Unidas, de 1993. dignidade humana e uma manifestação de
rurais e, especialmente, meninas e adolescen- Pela Convenção de Belém do Pará, en- relações de poder historicamente desiguais
tes, grupo de grande vulnerabilidade social. tende-se por violência contra a mulher “qual- entre mulheres e homens. Compreendeu
Mesmo considerando a precariedade de quer ação ou conduta, baseada no gênero, também que a violência contra a mulher trans-
dados estatísticos nacionais, em alguns es- que cause morte, dano físico, sexual ou psi- cende todos os setores da sociedade, inde-
tados da Federação existem informações que cológico à mulher, tanto no âmbito público pendentemente de sua classe, raça ou grupo
permitem perceber a magnitude desse fe- como no privado”. A partir dessa conven- étnico, níveis de salário, cultura, nível educa-
nômeno, embora de forma incompleta pela ção, considera-se violência física qualquer cional, idade ou religião, e afeta negativamen-
existência de eventos que não são notifica- conduta que ofenda a integridade física de te as bases da própria sociedade.
dos e registrados pelas delegacias policiais uma pessoa. A violência psicológica é defini- Tal violência, no entanto, apresenta
ou que são registrados sem a indicação da da como qualquer conduta que vise degra- formas distintas de manifestações em con-
raça/etnia das vítimas. dar ou controlar ações, comportamentos, textos sociais específicos e, na maioria das
Ainda de acordo com os dados da Secre- crenças e decisões de outrem, por meio de vezes, é agravada por determinadas ca-
taria de Segurança Pública do Rio de Janeiro ameaça direta ou indireta, humilhação, ma- racterísticas das mulheres. Nesse sentido,
relativos a 2002, do conjunto das mulheres nipulação e isolamento, ou que cause torna-se necessário compreender que as
vítimas de agressões por pessoas com as quais prejuízo à saúde psicológica, à autode- mulheres não são um conjunto abstrato e
terminação e ao desenvolvimento pessoal. indiferenciado de indivíduos do mesmo
A violência sexual é compreendida sexo, mas também se diferenciam inter-
como qualquer conduta que constranja namente e apresentam necessidades e
uma pessoa a manter contato sexual físico vulnerabilidades distintas.
8 Dados da pesquisa “A mulher brasileira no espaço
público e privado” (2001), da Fundação Perseu Abramo.

Observatório da Cidadania 2004 / 55


Duplo medo pela dificuldade das vítimas em denunciá- Di s c r i m i n aç ão contra as Mulheres
A violência de gênero contra as mulheres las, são poucos os atores sociais que se (Cedaw), dando valor jurídico à Declara-
tem tido visibilidade, no Brasil, por pressão manifestam e buscam explicações e solu- ção de 1967. Esta convenção em muito
dos movimentos de mulheres, que deman- ções. Em grande medida, essas ocorrências se beneficiou dos princípios e orientações
daram políticas públicas voltadas à supera- não têm sido consideradas violências ou prá- normativas da Convenção Internacional
ção dessa violência e à atenção às suas ticas criminosas por considerável parcela da contra a Eliminação de todas as Formas
vítimas. Assim, desde meados da década sociedade e de agentes governamentais. Por de Discriminação Racial (CIEFDR), apro-
de 1980, foram criados alguns instrumen- isso, os agressores não compõem o contin- vada pela Assembléia Geral das Nações
tos – como delegacias de mulheres, abri- gente de violentos no imaginário social. Unidas em 1968.
gos e centros de atendimento social e As duas convenções são paradigmá-
psicológico, serviços de atendimento e de Marco normativo internacional ticas, pois, além de definirem o conceito
orientação jurídica, serviços de saúde vol- Desde a década de 1960, os movimentos de discriminação, 10 pela primeira vez, in-
tados para o atendimento aos agravos da feministas de diversos países, articulados cluíram no direito internacional o tema da
violência sexual –, que, apesar de ainda internacionalmente, buscaram dar visibi- diversidade humana e a necessidade da
escassos e pouco avaliados, representam lidade social às distintas formas de discri- criação de proteções especiais voltadas
avanços importantes que devem ser valori- minação e violência contra as mulheres às necessidades de sujeitos de direitos
zados e monitorados para seu aperfeiçoa- de todo o mundo, dando início à cons- específicos, complementando a Declara-
mento e ampliação. trução de uma agenda política que incluía ção Universal dos Direitos Humanos, de
Além do medo da violência no espaço as mulheres como sujeitos de direitos hu- 1948, que se referia a uma proteção ge-
público, que atinge toda a sociedade, as mu- manos, com necessidades específicas. ral, voltada a um sujeito de direito abstra-
lheres temem a violência no espaço privado. Esta agenda foi decisiva para a constru- to. A CIEFDR e a Cedaw reconheceram
A vivência desse duplo medo diminui em muito ção legislativa e doutrinária internacional que, em quase todos os países do mun-
a força necessária de luta pelo acesso às de- orientada pelos princípios da igualdade e do, as discriminações por motivo de sexo
mais condições de segurança humana, res- da eqüidade de gênero. e de raça produziam vulnerabilidades
tringindo seu protagonismo social. Além das discriminações e dos obstá- maiores para determinados grupos; por-
A violência de gênero contra as mulhe- culos encontrados ao acesso a direitos ci- tanto, proteções especiais deveriam ser
res é, portanto, um dos mecanismos soci- vis, políticos, econômicos, sociais e promovidas pelos Estados membros sig-
ais principais para mantê-las em posições culturais, esses movimentos denunciaram natários dessas convenções.
subordinadas às dos homens. Tal como e deram visibilidade aos agravos físicos e A diversidade humana não poderia ser
acontece com a população negra, para as psíquicos sofridos pelas mulheres na vida tomada como fator para discriminações,
mulheres, em grande medida, ainda impe- pública e no espaço privado. Com o slogan mas deveria promover o reconhecimento
ra a regra cultural discriminadora do “co- “o privado é político”, trouxeram para o de direitos especiais, até mesmo não se
nheça o seu lugar”, jocosamente associada debate público a problemática das relações considerando como discriminação as me-
ao fogão e à família – curiosamente o espa- familiares marcadas por desigualdades em didas especiais temporárias tomadas com
ço doméstico onde, mesmo sendo o “seu prejuízo das mulheres. o único objetivo de assegurar o progres-
lugar”, não estão salvas das “correções”. Sob a influência e a pressão desses so adequado que tais grupos necessitam
No entanto, no debate nacional sobre movimentos, a Organização das Nações para usufruírem de direitos humanos e li-
o aumento da violência na sociedade brasi- Unidas (ONU) aprovou, em 1967, a De- berdades fundamentais.
leira e sobre as respostas institucionais a claração sobre a Eliminação da Discrimi-
essa questão, pouco ou quase nada tem nação contra a Mulher, e, em 1972, a Impacto internacional
sido dito sobre a violência de gênero con- Assembléia Geral da ONU proclamou o As conferências mundiais das mulheres rea-
tra as mulheres. Esse debate está sempre ano de 1975 como o Ano Internacional lizadas em 1980 e 1985, respectivamente
fazendo referências à chamada violência da Mulher, demonstrando preocupação em Copenhague e em Nairóbi, foram espa-
urbana, visível nos assaltos, furtos, rou- com as violações dos direitos humanos ços que propiciaram uma avaliação do im-
bos, homicídios, rebeliões em presídios, das mulheres. Em 1975, a ONU realizou pacto da Conferência do México e da
embates entre facções de narcotraficantes na Cidade do México a 1ª Conferência Convenção Cedaw. Em Nairóbi, avaliou-se
e policia. São manifestações de violência que Mundial da Mulher, que impulsionou a que o chamado progresso das mulheres
ocorrem no espaço público e mobilizam a aprovação, em 1979, pela Assembléia
mídia, a população em geral, os(as) cien- Geral das Nações Unidas, da Convenção
tistas políticos(as), psicólogos(as), agen- para a Eliminação de todas as Formas de
tes governamentais, na tentativa de apontar 10 O Artigo 1º da CIEFDR e o Artigo 1º da Cedaw definem,
para soluções das mais diversas naturezas praticamente com as mesmas palavras, a discrimina-
ção racial e a discriminação contra as mulheres como
e clamando contra a impunidade de quem toda distinção, exclusão, restrição ou preferência,
pratica a violência.9 baseada em raça ou em sexo, que tenha como objetivo
9 Nesse contexto, ressurgem com força na sociedade a ou resultado anular ou restringir o reconhecimento, a
Nas ocorrências da violência de gênero
demanda pela segurança pública repressiva e as fruição e o exercício de direitos humanos e liberdades
contra as mulheres, em especial a domésti- tentativas de desqualificar os princípios norteadores fundamentais nos campos político, econômico, social,
ca e a sexual, em grande medida ocultada dos direitos humanos. cultural ou em qualquer outro campo.

Observatório da Cidadania 2004 / 56


não se realizara e que novas estratégias de- constitui em um marco na doutrina jurídica mente deixar de ser percebida se não hou-
veriam ser promovidas em todo o mundo internacional. Esta declaração subsidiou, com ver um reconhecimento ou uma aceitação
para alcançar metas capazes de eliminar as seus princípios e orientações, a elaboração, das diferentes experiências de vida de mulhe-
discriminações. Nessa conferência, os mo- em 1994, pela Organização dos Estados res e homens, na vida pública ou privada.11
vimentos feministas destacaram especial- Americanos (OEA), da Convenção para Pre- Paralelamente às convenções e aos pla-
mente o tema da violência contra as venir, Punir e Erradicar a Violência contra as nos de ação das conferências, os diversos
mulheres como um obstáculo à sua partici- Mulheres, chamada Convenção de Belém do comitês de direitos humanos das Nações
pação na vida social. Pará (ver texto da página 55). Unidas, em especial o Cedaw, têm elaborado
Em 1992, suprindo a ausência do tema O tema da violência contra a mulher nas recomendações gerais e específicas aos Es-
da violência contra as mulheres na Cedaw suas distintas formas de manifestação está tados membros voltadas para superação da
e reconhecendo a magnitude e a gravida- presente também no Plano de Ação da Con- violência contra as mulheres. Destacam, para
de desse fenômeno em todo o mundo, ferência Internacional sobre População e tanto, dois princípios normativos: o da não-
além de seu impacto sobre a vida das mu- Desenvolvimento, realizada em 1994, no discriminação, como base para a eliminação
lheres, o comitê que monitora o cumpri- Cairo. Tal plano reconhece que a violência da violência, e o da quebra da dicotomia
mento dessa convenção aprovou e contra as mulheres tem profundo impacto entre o público e o privado, no que tange à
colocou em vigor a Recomendação nº 19 sobre a saúde das mulheres, em especial violência doméstica, incluindo o abuso se-
sobre a violência contra as mulheres. A sobre a saúde sexual e reprodutiva, e xual, especialmente em relação às crianças.
recomendação reconhece que essa violên- conclama os Estados membros a elaborar No que se refere à violência sexual, em
cia é uma grave forma de discriminação, leis e implementar políticas para a eliminação especial aquela praticada contra as crianças,
que reflete e perpetua a subordinação das dessas violências. os comitês recomendam que a proteção deve
mulheres e que, para a sua superação, nas nortear-se por um conjunto de princípios, tais
esferas pública e privada, exige-se a atua- Compromissos assumidos como: o da eliminação da discriminação, ten-
ção dos Estados membros, por meio de A Declaração da 4ª Conferência Mundial da do em vista que esta acentua o risco de violên-
medidas legislativas e políticas sociais. Mulher, realizada em 1995, em Pequim, tam- cia; o da privacidade, como forma de proteção
Em 1993, a Conferência Mundial de Di- bém destacou o tema da violência contra a da vítima de exploração sexual; o da reintegra-
reitos Humanos, realizada em Viena, produ- mulher. Sua plataforma de ação incluiu um ção social da vítima da violência sexual; o da
ziu impacto na comunidade internacional ao capítulo inteiro sobre esse tema e conside- não-estigmatização da vítima de violência se-
reconhecer que os direitos das mulheres são rou, tal como na Conferência de Viena, a xual; o da quebra do silêncio, no que tange à
direitos humanos e que a violência contra violência contra as mulheres como um obs- exploração sexual; 12 entre outros que in-
mulheres e meninas representa uma viola- táculo à igualdade, ao desenvolvimento e à cluam, por exemplo, a expulsão do agressor
ção desses direitos, conclamando os Esta- paz. A plataforma chamou a atenção para o do ambiente doméstico.
dos membros a adotarem a perspectiva de reconhecimento e a proteção da liberdade O Brasil, como os demais Estados mem-
gênero em suas políticas como forma de das mulheres de tomarem decisões sobre bros das Nações Unidas e da OEA, assinou e
eliminar a violência e a discriminação. suas vidas, incluindo as decisões nos cam- ratificou todas as convenções e tratados de
No Fórum Paralelo das ONGs, o Tribu- pos da sexualidade e da reprodução, sem direitos humanos, bem como os planos e pro-
nal de Crimes contra as Mulheres, organiza- coerção, discriminação ou violência. gramas de ação das conferências da década
do por uma articulação de instituições Em 2001, na Conferência Mundial con- de 1990 que incluíram esses princípios. Isto
feministas, apresentou à comunidade inter- tra o Racismo, realizada em Durban, África significa que assumiu o compromisso de pro-
nacional os testemunhos de mulheres víti- do Sul, organizações de mulheres negras ver a eqüidade e a igualdade de gênero e étni-
mas de violência de gênero, demonstrando denunciaram a articulação da violência de ca/racial como questão de segurança humana.
que isso é um fenômeno de dimensões in- gênero com a violência racial. Tal combina- Para tanto, faz-se necessário, especificamente
ternacionais presente em todas as culturas, ção foi evidenciada também pelo Comitê so- no que se refere à violência de gênero, que o
países e estratos sociais. O Tribunal mos- bre a Eliminação da Discriminação Racial, no Estado brasileiro atue no sentido de mudar
trou também que a impunidade diante da exame e na avaliação dos relatórios nacio- práticas e mentalidades, alterando os padrões
violência contra as mulheres ocorre tanto nais sobre discriminação racial de distintos discriminatórios socioeconômicos, culturais,
em sociedades autoritárias como naquelas países que aderiram a essa convenção políticos e sociais que informam e alimentam
qualificadas de democráticas. (CIEFDR). O comitê assinalou que existem as relações de poder, contribuindo para a mu-
A partir da Conferência de Viena, todas circunstâncias nas quais a discriminação ra- dança da situação de subordinação das mu-
as demais conferências das Nações Unidas cial afeta apenas as mulheres, de maneira e lheres e garantindo a sua segurança.
na última década têm apontado para a ne-
grau diferentes da que atinge os homens.
cessidade de respostas institucionais à vio-
Tal discriminação racial poderá freqüente-
lência contra as mulheres, de forma a haver
coerência na defesa da universalidade e
indivisibilidade dos direitos humanos.
Ainda em 1993, a Assembléia Geral das 12 Sobre uma campanha nacional pela quebra do silêncio
Nações Unidas aprovou, por meio da Reso- 11 General Comments adopted by the Committee on the em relação à exploração sexual, ver um texto do
Elimination of Racial Discrimination, 56 Session Comitê sobre os Direitos da Criança: Concluding
lução 48/104, a Declaração sobre a Elimina- (2000). General Recommendation XXV on Gender- observations on the Committee on the Rights of the
ção da Violência contra a Mulher, que se Related dimension of Racial Discrimination. Child: Mozambique (apud BARSTED et al., 2003).

Observatório da Cidadania 2004 / 57


Homicídio e suicídio nas relações afetivas

Analba Brazão Teixeira1 casos de mulheres mortas por seus com- quais um dos parceiros mata e argumenta
panheiros, ex-companheiros, namorados a legítima defesa da honra como motiva-
A pesquisa “Diagnóstico da violência físi- e ex-namorados. Alguns dos crimes jul- ção e aqueles em que se pratica homicí-
ca e sexual contra o sexo feminino na gados apresentaram a justificativa da de- dio seguido de suicídio.
cidade de Natal”,2 baseada nos registros fesa da honra. Para o entendimento desse fenôme-
da Delegacia da Mulher de Natal, teve Vale salientar que a mesma pesquisa no, investigaram-se o ciúme, a honra, a
como base os processos de crimes con- revelou crimes conjugais cometidos por masculinidade e a violência nas relações
tra as mulheres nas varas criminais e os mulheres. Também foram identificados conjugais, buscando compreender as
registros de abuso sexual contra meni- oito casos de homicídios seguidos de sui- concepções do masculino e do feminino
nas no SOS Criança. No período estuda- cídio. Esse dado levou ao questionamento que alimentam a prática do homicídio e
do (1986 a 1996), foram registrados 115 sobre a diferença entre os crimes nos do suicídio. No texto “Os espelhos e as

Quadro 1 – Características elementares dos casos identificados nos jornais


Grupo 1 (b)

Grupo 1 (b)

Grupo 1 (b)

Grupo 1 (b)

Grupo 1 (b)

Grupo 1 (b)

Grupo 1 (b)
Grupo 1 (a)

Grupo 1 (c)

Grupo 2
Ciúme Sim Sim Sim Sim Sim Sim - Sim Sim Sim
Traição Não Não Suspeita Não Não Não - Não Não Suspeita
Desemprego Não Não Falência Não Não Não Não Não Não Não
Dívida Não Não Sim Não Não Não Não Não Sim Não
Depressão Não Não Sim Não Não Não Não Não Não Não
Violência conjugal Sim Sim Não Não Não Não Sim Sim Sim Sim
Ameaça de
separação - - Sim Sim Não Não - - Sim Sim
Separação Sim Sim - - Não - Sim Sim - -
Casados durante

anos. Separados

Casados durante

Casados durante

Casados durante
durante quatro

um ano e sete

Juntos há um
Separados há

Separados há

durante três
Situação do
Namorados

Namorados
há um mês

dois meses

Separados
12 anos.

casal no dia
16 anos

16 anos
um mês

meses

da ocorrência
anos
Não
ano
Tentativa

Tentativa
de H/S

de H/S

Ocorrência
H/S

H/S

H/S

H/S

H/S

H/S

H/S

H/S

H/S – homicídio e suicídio.

2 A pesquisa foi realizada pela Casa Renascer, tendo


sido concluída em abril de 1999 e publicada no
1 Coordenadora da ONG Coletivo Leila Diniz – Ações livro Histórias para contar: retrato da violência
de Cidadania e Estudos Feministas e membro da física e sexual contra o sexo feminino na cidade de
Coordenação Nacional da Articulação de Mulheres Natal, organizado por Analba Brazão Teixeira e
Brasileiras. Míriam Pillar Grossi.

Observatório da Cidadania 2004 / 58


Quadro 2 – Os casos estudados na pesquisa

Caso 1 Jovens casados há um ano e sete meses, sem Existência de ciúme e ameaça
filhos. Ele a mata e se mata. de separação.

Caso 2 Namoraram por três anos. Ela o mata e se mata. Existência de ciúme, violência conjugal
e ameaça de separação.

Caso 3 Casados há 16 anos, quatro filhos. Ele mata três Existência de ciúme, violência conjugal
filhos, a esposa e se suicida. A quarta filha so- e ameaça de separação.
brevive com seqüelas.

Caso 4 Viviam juntos há um ano. Ele a mata e se mata. Existência de ciúme e ameaça
de separação.

Caso 5 Viveram juntos durante 12 anos, um filho em Existência de ciúme e violência conjugal.
comum. Ela com dois filhos do segundo casa- Estavam separados há um mês.
mento. Ele com três filhos do primeiro casa-
mento. Tenta matá-la com quatro tiros e se suicida
em seguida.

marcas”, Lia Zanotta observou que, quan- mente para homens e mulheres. Essas etnia e geração. Os casos de homici-
do se quebram as regras estabelecidas regras delineiam os códigos de morali- das-suicidas apresentaram algumas ca-
na linguagem do contrato conjugal, de- dade que influenciam a construção das racterísticas comuns, que orientaram
sencadeiam-se crises marcadas pelo “ci- representações em torno do masculino sua classificação. No Quadro 1, o gru-
úme”, revestido do medo de “perder o e feminino. po 1 é formado pelos homens que ma-
controle” da companheira de quem o côn- No Brasil, outros elementos relacio- taram as suas companheiras e se
juge se sente “dono”. nados à construção simbólica masculina mataram. Nesse grupo, observam-se
Ao assassinar a companheira, o ho- que contribuem para a recorrência des- três tipos de situações: (a) o homem
mem tenta justificar o seu ato pela defesa ses crimes são, por exemplo, o fato de o tentou matar a companheira e se ma-
da sua honra, maculada por sua compa- homem não conseguir manter financei- tou; (b) o homem matou sua compa-
nheira ao “quebrar o contrato conjugal”. ramente seu lar ou de a mulher assumir nheira e se matou; (c) o homem matou
Nos casos de homicídio seguido de sui- em conjunto com ele a manutenção do- sua companheira e três filhos e se ma-
cídio, qual seria a justificativa de matar e méstica, função socialmente estabelecida tou. No grupo 2, situa-se o único caso
se matar em seguida? como responsabilidade masculina. Um de homicídio seguido de suicídio em
A categoria “honra” pode ser utiliza- homem sem trabalho, no imaginário so- que o agente era uma mulher.
da como um viés de análise para se com- cial, é um homem sem valor. Nos casos identificados, havia situ-
preender as identidades de gênero. É Os crimes analisados têm quase ações recorrentes, algumas delas com
necessário não perder de vista que a sempre a mesma razão: ciúme e separa- maior freqüência: existência de ciúme (9),
construção das identidades de gênero ção. São fatores também recorrentes violência conjugal (6), ameaça de sepa-
constitui-se em um fenômeno cultural, nos homicídios seguidos de suicídio, ração (4) e separação concretizada (4).
estabelecido segundo regras específicas embora não possam ser considerados Em 17 anos (1986 a 2003), ocorre-
de cada cultura, que se manifestam nas os únicos para que o homicídio-suicídio ram 23 homicídios seguidos de suicídios
relações de parentesco, na divisão de se concretize. no Rio Grande do Norte, o que corres-
trabalho, em esferas públicas e priva- Nos dez casos selecionados no Rio ponde à média de 1,3 ao ano. Em 2004,
das, no poder, na religião, na sexualida- Grande do Norte, entre 1995 e 2002, o número de ocorrências cresceu: so-
de e, principalmente, nos critérios de observou-se que o fenômeno acontece mente até agosto, ocorreram cinco ho-
moralidade sexual, definidos diferente- independentemente de classe social, micídios seguidos de suicídios.

Observatório da Cidadania 2004 / 59


Quadro 3 – Idade, profissão e escolaridade dos homicidas-suicidas e das vítimas dos casos estudados

Caso Idade Profissão Escolaridade


H/S Vítima H/S Vítima H/S Vítima

1 26 26 Ex-empresário Enfermeira Superior Incompleto Superior


completo

2 25 24 Comerciária Assessor parlamentar Ensino médio completo Ensino médio


incompleto

3 37 29 Mecânico Dona de casa (sem informação) (sem informação)

4 37 40 Militar Funcionária pública (sem informação) (sem informação)


estadual aposentada

5 47 37 Autônomo Dona de casa (sem informação) Superior


incompleto

Referências bibliográficas
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Miriam; IKAWA, Daniela. Direitos sexuais e Sheila Rowbotham. Estudos Feministas , Rio de
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des de gênero no Brasil . Goiânia: Grupo Transas
do Corpo, 2004.

Observatório da Cidadania 2004 / 60


Segurança, seguridade e direito: as diferentes faces da questão
alimentar e nutricional

O debate em torno da questão alimentar e nutricional tem articulado as diferentes dimensões do direito à alimentação
e repercutido intensamente na institucionalidade pública. No percurso em que propostas e diretrizes são refeitas,
perdas e ganhos são contabilizados. Perceber algumas importantes lições a partir da experiência brasileira pode, de
alguma forma, contribuir para pavimentar novos caminhos e desenhar novas perspectivas.

Luciene Burlandy e Rosana Magalhães1 criação de novas institucionalidades, como o des que garantam seu acesso aos bens pro-
Conselho de Segurança Alimentar e Nutricio- duzidos prioritariamente no âmbito do mer-
Nos últimos anos, a discussão sobre o di- nal (Consea, 1993 e 2003), o Fórum Brasileiro cado – entre eles, o alimento –, o direito à
reito à alimentação e o desenho de políticas de SAN (FBSAN, 1998) e os fóruns estaduais; alimentação, em linhas gerais, é delimitado
públicas na área de segurança alimentar e e a realização, em 1994 e 2004, de duas con- como um direito de consumidores e consu-
nutricional (SAN) vem sendo ampliada no ferências nacionais de SAN. midoras. No entanto, a afirmação desse di-
cenário internacional e, também, no Brasil. O enfoque restrito que emergiu após a reito, embora seja uma exigência inegável,
Como aponta o relatório brasileiro para a Primeira Guerra Mundial, voltado à garantia não esgota as tensões ligadas à consolidação
Cúpula Mundial de Alimentação realizada em estratégica da produção de alimentos e que de sistemas de segurança alimentar e nutrici-
Roma, em 1996, a política de SAN tem como originou o conceito de segurança, foi revisto, onal, pois, além do mercado, outros princípi-
alvo garantir a possibilidade de uma alimen- e ganhou destaque a discussão de novos as- os regem a distribuição dos alimentos e o
tação saudável, acessível, de qualidade e em pectos, como a eqüidade nutricional, a acesso a eles na direção da garantia da eqüi-
quantidade suficiente. Representa, portan- intersetorialidade e o desenvolvimento de cir- dade nutricional e da alimentação saudável.
to, uma condição para o desenvolvimento cuitos alimentares sustentáveis. No entanto, Na verdade, como mostrou Karl Polanyi, “a
integral, eqüitativo e sustentável. Assim, a ainda que nesse processo tenham sido forja- descoberta mais importante das pesquisas
questão alimentar e seu significado ampliado das ferramentas importantes para o alcance históricas e antropológicas é que a economia
passam a ocupar a agenda pública, reto- da alimentação de qualidade pela população do homem, como regra, está submersa em
mando, em grande parte, os esforços em- brasileira, dimensões distintas da noção de suas relações sociais” (2000, p. 65).
preendidos pelo médico e sociólogo Josué direito à alimentação – direito do consumidor, Diferentemente do credo liberal, os indiví-
de Castro na década de 1940, na direção de direito humano e direito de cidadania – muitas duos não se encontram atomizados, mas par-
tornar a alimentação prioridade política e vezes tendem a se sobrepor e se confundir. ticipam de circuitos de sociabilidade, os quais,
demanda coletiva no país. Nesse sentido, quais seriam as especifi- em última análise, dão sentido aos bens, servi-
No entanto, além de novas convicções e cidades e contribuições de cada enfoque? ços e ao conjunto de mercadorias consumidas.
perspectivas, a trajetória recente de constru- Quais repercussões concretas que o debate Ao mesmo tempo, como analisa Amartya Sen
ção de uma proposta de política de segurança em torno dessas concepções tem trazido (1982), existem diferentes chances e oportu-
alimentar e nutricional evidencia novos para o campo das políticas públicas? Quais nidades de conquista da segurança alimentar
impasses e dilemas. Vários acontecimentos as especificidades da experiência brasileira para além da via do mercado; elas estão liga-
revelam as diversas abordagens e alternativas nesse processo? Quais seriam as estratégi- das ao perfil de inserção social dos indivíduos.
políticas incorporadas ao debate: a realização as prioritárias para a construção de cone- Esse conjunto de prerrogativas ou entitlements,
da 1ª Conferência Nacional de Alimentação e xões virtuosas entre as várias faces do direito em última análise, aponta para a existência de
Nutrição em 1986; o surgimento de mobiliza- à alimentação (direito humano, de cidada- uma pluralidade de formas de acesso aos ali-
ções sociais como a Ação da Cidadania contra nia, do consumidor)? mentos a serem valorizadas e compreendidas
a Miséria e a Fome e pela Vida em 1993; a Sem pretender esgotar essas questões, em sua dimensão coletiva, e não só individual.
este texto busca empreender uma breve Em outra direção, o direito humano à
análise das possibilidades de interação das alimentação, integrado ao Pacto Internacio-
várias faces do direito à alimentação no pro- nal de Direitos Econômicos, Sociais e Cultu-
cesso de construção de uma política nacio- rais (Pidesc),2 desenha um novo cenário para
1 Luciene Burlandy é professora da Faculdade de nal de segurança alimentar e nutricional.
Nutrição da Universidade Federal Fluminense (UFF),
doutora em Saúde Pública e integrante da secretaria
executiva do Fórum Brasileiro de SAN (FBSAN). Rosana A alimentação como direito
Magalhães é pesquisadora associada do Departamen-
to de Ciências Sociais da Escola Nacional de Saúde
Na perspectiva do liberalismo político, em que
Pública Sergio Arouca (Ensp) da Fundação Oswaldo o cidadão e a cidadã são entendidos como 2 Ver a elaboração do relatório brasileiro relativo à
Cruz (Fiocruz). indivíduos racionais, com talentos e habilida- implementação do Pidesc (Valente, 2002).

Observatório da Cidadania 2004 / 61


a implementação e consolidação de siste- Portanto, a luta pela garantia do direito para promoção da segurança humana. O
mas de segurança alimentar e nutricional. humano à alimentação não pode prescindir pertencimento a um Estado é, portanto, um
Para Valente, “a fome e a alimentação, den- da luta pela garantia de inserção dos indiví- direito de todo ser humano, e o conceito de
tro de uma perspectiva de direitos huma- duos num contexto de cidadania política, segurança humana torna-se complemen-
nos, são facetas de um fenômeno muito mais econômica e social. Não basta que os indiví- tar ao conceito de segurança do Estado,
amplo. Elas incorporam dimensões relacio- duos tenham seus direitos garantidos ape- que é territorial. Desse ponto de vista, as
nadas às diferentes necessidades históricas, nas na perspectiva humana, e não na ótica ameaças à segurança humana incluem con-
culturais, psicológicas e espirituais dos se- cidadã. Na sociedade contemporânea, des- dições que nem sempre se apresentam para
res humanos, incluindo a questão básica da se modo, uma prerrogativa fundamental é a a segurança estatal.
dignidade” (2002). Nessa abordagem, o di- de existir não apenas como ser humano,
reito à alimentação seria um direito inerente mas como cidadão(ã) inserido(a) numa de- O significado social dos alimentos
ao ser humano e, portanto, universal e regi- terminada comunidade sociopolítica. Sem dúvida, a importância intrínseca da afir-
do internacionalmente. Tal concepção, na mação de diferentes dimensões do direito
verdade, não é nova: a Declaração Universal Perspectivas humana e cidadã humano é clara, uma vez que possibilita a
dos Direitos Humanos de 1948 previa o di- Seguindo essa linha analítica, podemos in- construção de uma linguagem e um territó-
reito à alimentação, o qual posteriormente corporar a abordagem da segurança huma- rio comum de lutas. No entanto, a efetivação
foi reiterado na Cúpula Mundial de Alimenta- na, que emerge da demanda por uma apli- desses direitos e a emergência de um sólido
ção realizada em Roma em 1996. cação de critérios de segurança mais arcabouço legal e institucional capaz de tor-
Nessa perspectiva, a dimensão do direito centrados no ser humano, ante ameaças nar o direito humano realidade na maioria
humano indica um conjunto de necessida- transnacionais, que envolvem desde o im- dos países e, especialmente no Brasil, im-
des que devem ser garantidas independente- pacto das armas nucleares até as conse- põem o dialogo com outras dimensões do
mente das demais formas de inserção do qüências dos diferentes modelos de desen- direito, especialmente a cidadã. Verifica-se,
indivíduo na sociedade, incluindo a cidadã. volvimento econômico, político e ambiental, assim, a necessidade de reconhecer não só a
Por exemplo, o exercício dos direitos de cida- bem como do terrorismo internacional e força, mas também as possíveis fragilidades,
dania implica a formalização, pelo indivíduo, do tráfico de armas e drogas. O conceito na perspectiva do direito humano como “fa-
de sua inserção numa determinada socieda- de segurança humana pode remeter tam- rol” para as diversas experiências de políticas
de com delimitação territorial legal definida, bém ao atendimento a um conjunto de di- sociais de segurança alimentar e nutricional.
onde, em última instância, são implementadas reitos (alimentação, habitação, saúde, edu- Em parte, tais fragilidades residem no
ações necessárias para garantia real desses cação, proteção contra violência) e a um fato de que, apesar do apelo simbólico, filo-
direitos. As falhas nesse processo de inser- Estado que não oprima seus cidadãos e sófico e humanitário da noção de direito
ção e a não-universalização das prerrogati- cidadãs e governe com seu consentimento humano, que remete a um ser humano es-
vas de cidadania, que geram iniqüidades e (Frechette apud Samad, 2004). A seguran- sencial, é no plano da nação que são social-
diferentes formas de discriminação social, ça humana, portanto, pode ser entendida mente construídos os critérios responsáveis
abrem caminho para lutas por espaços como liberdade diante de possíveis amea- por definir o que é ou não direito. O que é
supranacionais de exercício da justiça. Esses ças aos direitos humanos, incluindo, nesse aceito ou não por um determinado grupo
fóruns internacionais, por sua vez, necessi- aspecto, uma perspectiva já desenvolvida como justo, como direito ou como critério
tam de um arcabouço construído com bases por Amartya Sen (2001). redistributivo depende do significado social
supranacionais, portanto, humanas, como a Algumas definições do termo, no en- dos bens e de como eles são transformados
Declaração Universal dos Direitos Humanos. tanto, tendem a demarcar claramente o e apropriados por conflitos e embates políti-
Tal arcabouço consiste num conjunto contraponto entre a perspectiva humana e cos concretos. Como ressalta Rorty, “a obri-
de prerrogativas desejáveis para qualquer a cidadã. “Em vez de considerar a seguran- gação moral, nesta perspectiva, deve ser
ser humano, em qualquer contexto de cida- ça em relação aos indivíduos como cida- associada a muitas outras considerações,
dania nacionalmente formalizada. Esse locus dãos (ou seja, em referência ao Estado), em vez de automaticamente triunfar sobre
de justiça torna-se um contraponto e uma nosso enfoque considera a segurança em elas” (1994, p. 241).
referência externa para a avaliação de políti- relação aos indivíduos como pessoas” Assim, é o significado social dos alimen-
cas públicas em contextos locais. No entan- (Graham & Poku, 2000). tos, compartilhado e tecido historicamente,
to, para que suas demandas e seus princípios Diferentes concepções do termo incor- que, em última análise, apontará por quais
adquiram materialidade, ele tem que operar poram como questão prioritária a dimensão caminhos e mecanismos serão distribuídos
necessariamente sobre os contextos de po- da governança e responsabilização pública e em cada sociedade. Ou seja, para além das
líticas públicas nacionalmente constituídas. privada na garantia do direitos humanos, prerrogativas de uma condição natural e

Observatório da Cidadania 2004 / 62


essencial vinculada à perspectiva da raça to humano contribui de maneira mais tênue foses ligadas à internacionalização da eco-
humana, parece ser fundamental avançar um para a compreensão da diversidade das de- nomia e ao processo de globalização, vale
pouco mais, a fim de entender o processo mandas e, portanto, para a pluralidade de lembrar que o Estado-nação ainda é im-
real no qual múltiplos pontos de vista en- alternativas de cooperação e de interações portante para a formação de identidades
tram em disputa nos cenários locais de im- conflitivas postas no processo de efetivação culturais e, também, para o enraizamento
plementação de políticas de alimentação e de sistemas de segurança alimentar, como de novos espaços públicos e esferas de
nutrição. Tais cenários podem fazer emergir enriquecer e ampliar seu alcance? governança (Vieira, 2001).
os limites dessa concepção universalista e a No Brasil, como observam vários auto-
necessidade de criar novas mediações em Seguridade social: exigência política res, a trajetória de exclusão, clientelismo e
um território ambíguo de articulação entre Como aponta Dahrendorf (1992, p. 29), é autoritarismo que marcou a nação foi res-
as dimensões privada e pública da alimen- complexa a dinâmica entre os direitos ponsável pela baixa “eficácia simbólica” da
tação humana. (construídos no espaço da política e con- linguagem dos direitos de cidadania (Telles,
Segundo Schwartzman (2004), um ca- cretizados por meio da capacidade institu- 1994). Numa trágica combinação de cen-
minho para tornar a idéia dos direitos hu- cional de garantir ou não o acesso coletivo tralização decisória, assistencialismo, cor-
manos menos “imperialista” e “triunfalista”, a bens e oportunidades) e os provimentos porativismo, superposição de clientela e
abrindo espaço para a negociação entre pers- (mercadorias e serviços que confirmam os objetivos e baixíssimo controle social, a po-
pectivas conflitantes, seria percebê-la como diferentes perfis de bem-estar). Para o au- lítica social mais favoreceu privilégios, sele-
um ponto de partida para o diálogo, o que tor, os direitos ou as prerrogativas des- tividade e desperdícios de recursos do que
pressupõe o reconhecimento de interesses crevem a relação das pessoas com a efetivação das prerrogativas do cidadão e
contraditórios. Na perspectiva do autor, a mercadorias e serviços, ou seja, represen- da cidadã.
idéia de direito humano refere-se a um tipo tam as fronteiras ou mesmo as barreiras Contudo, a partir da Constituição de
de inserção e pertencimento que é muito sociais, por meio das quais o acesso a 1988, a noção de direito de cidadania as-
geral e dificilmente materializável: a inserção diferentes bens, entre os quais os alimen- sumiu relevância no cenário nacional, a
na raça humana. No entanto, a raça humana tos, é legitimado ou bloqueado. Nesse sen- ponto de essa Carta Magna ser identificada
não existe como tal; ela existe e se organiza tido, as prerrogativas e os provimentos como Constituição Cidadã. Nesse momento,
em grupos que definem regras próprias, por combinam-se permanentemente, causan- culminando um processo turbulento de
meio de mecanismos políticos que estão para do efeitos recíprocos, e o resultado será negociação, cooperação e conflito de inte-
além da própria noção de ser humano es- sempre algo em aberto, fruto de um “equi- resses, emergiu o conceito de seguridade
sencial. Os indivíduos e grupos confron- líbrio das tensões” ligadas a diferentes ní- social. A reconstrução democrática era
tam-se, assim, com múltiplas exigências e veis de poder e decisão. entendida como um movimento na dire-
demandas, muitas vezes conflitantes. Por Nos chamados Estados de bem-estar, o ção da eqüidade. Na perspectiva da segu-
outro lado, a definição de direitos naturais acesso à alimentação tornou-se gradativa- ridade social, como aponta Viana (2003),
não estabelece mecanicamente o acesso a mente uma garantia vinculada à condição de estariam diluídas as fronteiras entre previ-
direitos positivos e reais. Esse dilema, na cidadão(ã). Por meio da expansão do em- dência e assistência, desvinculando-se,
verdade, acompanha toda a trajetória de prego e da renda, como fontes legítimas de portanto, a extensão dos benefícios soci-
consolidação dos direitos. suprimento das necessidades básicas, com- ais da capacidade de trabalhar e, também,
Em outras palavras, como estabelecer binada ao processo de ampliação do status da contribuição prévia e proporcional de
politicamente uma agenda em torno do di- político do indivíduo como membro da na- cada segmento social.
reito à alimentação? Como criar uma ção e portador de direitos, foi possível des- Ao mesmo tempo, as necessidades da
institucionalidade capaz de efetivar, respei- vincular bens e benefícios sociais – entre eles, população, no que se refere ao bem-estar
tando heterogeneidades culturais e simbóli- a alimentação – de contribuições prévias ou e à proteção salarial, passariam a orientar a
cas, o acesso universal aos alimentos? Como da lógica estrita do mercado. cobertura, enfraquecendo, assim, a lógica
compatibilizar as dimensões privada e públi- São assim incorporados novos princí- do seguro como fio condutor da política
ca do consumo alimentar? Que tipo de bem pios para o acesso aos alimentos, desvin- social. Nesse aspecto, a saúde – e pode-
é o alimento? Quais os critérios de justiça culados tanto da perspectiva da caridade e mos dizer que também a alimentação – pas-
para redistribuir esse bem? Se há consenso da doação, como da noção de mérito ou sou a integrar o circuito virtuoso e solidário
de que se trata de um direito, o mesmo não privilégio. Ainda que o conceito de cidada- da seguridade social. Ainda que o texto
ocorre no que se refere à garantia desse nia e a compreensão do papel do Estado constitucional não tenha incluído explicita-
direito e o que cabe ao Estado nesse pro- territorial venham sendo transformados a mente o direito à alimentação, tal prerroga-
cesso. Ao mesmo tempo, se a idéia do direi- partir das intensas e complexas metamor- tiva surge ancorada na concepção ampliada

Observatório da Cidadania 2004 / 63


de saúde como acesso à alimentação, à ter- cesso, portanto, o debate pode caminhar a perspectiva de seguridade social é a busca
ra, à habitação, ao saneamento, ao trabalho para a luta por políticas próprias de alocação de um patamar de benefícios sociais que
e ao lazer. Reconhecida como direito dos de recursos em cada área que integra a se- não produza estigmatização e focalização
cidadãos e das cidadãs e dever do Estado, a guridade social, e não para a rediscussão espúrias, pela diminuição de recursos, mas,
garantia de acesso universal à saúde e à ali- dos rumos tomados até aqui. ao contrário, que satisfaça as exigências mí-
mentação torna-se uma exigência política que Sem um desenho claro para a política nimas de renda, trabalho, alimentação, aces-
supera a assistência médica restrita a traba- social como face constitutiva da cidadania, so à saúde, educação e saneamento. Serão
lhadores e trabalhadoras inseridos no siste- são reatualizadas velhas dicotomias, criadas essas exigências qualificadas em sua diver-
ma de previdência social ou a distribuição de falsas polêmicas e preservados interesses sidade que devem consubstanciar um pro-
alimentos para as famílias pobres. corporativos. Como exemplo, o debate em jeto unificado de proteção social e de
torno da contabilização das despesas segurança alimentar e nutricional.
Reversão da agenda de mudanças custeadas pelo Fundo de Combate à Pobre-
No entanto, como apontam Fleury (1997) za, criado em 2001, como ações e serviços O Consea e os novos atores sociais
e Viana (2003), a proposta de seguridade de saúde, em vez de suscitar um retorno Desde a década de 1930, o governo brasi-
social brasileira tornou-se contraditória ao aos princípios que orientaram a reforma leiro vem realizando ações na área de ali-
manter princípios e critérios distintos de constitucional e o resgate do Orçamento da mentação e nutrição, principalmente nos
distribuição dos benefícios públicos. Assim, Seguridade Social, tende a alimentar, em al- campos da suplementação alimentar, pro-
necessidade, incapacidade e proteção a tra- guns momentos, a adoção de estratégias dução e comercialização de alimentos e
balhadores e trabalhadoras alternaram-se seletivas e segmentadas. educação alimentar. Essas ações são desen-
em um arranjo híbrido e excludente. O Or- Pobreza e saúde são fenômenos volvidas por diferentes setores de governo.
çamento da Seguridade Social, que inte- indissociáveis, porém distintos. Uma in- A coordenação e a intersetorialidade delas
graria os recursos das várias fontes de tervenção eficaz sobre ambos os proble- sempre foram desafios importantes a serem
financiamento – as contribuições advindas mas requer perceber singularidades e enfrentados. Também, a falta de eqüidade de
do salário dos(as) trabalhadores(as), complexas mediações. Tanto autonomizar acesso e a participação social em todo o pro-
autônomos(as) e empresários(as) e os re- completamente essas áreas como dissolver cesso de formulação e implementação das
cursos oriundos do lucro líquido das em- suas especificidades forjam um caminho ações se definiram historicamente como ques-
presas financeiras e do faturamento, o estéril para a redefinição de mecanismos tões-chave a serem equacionadas.
Cofins –, não foi concretizado. solidários capazes de garantir bem-estar. Além da 1ª Conferência Nacional de Ali-
A gestão unificada dos recursos foi Igualmente, no que se refere ao debate mentação e Nutrição, citada anteriormente
inviabilizada, e as áreas da saúde, previdên- em torno da segurança alimentar e nutri- – que, como desdobramento da 8a Confe-
cia e assistência permaneceram definindo cional, é necessário estabelecer tanto dis- rência Nacional de Saúde (CNS), reforça o
metas isoladamente. Como analisa Viana tinções como pontos de contato entre as princípio da alimentação como direito de
(2003), desde 1993 a perspectiva de “con- várias faces da proteção social. Como vá- cidadania –, a partir da década de 1990,
taminação solidária” entre os setores da saú- rios autores observam, segurança alimen- diversos arranjos políticos institucionais
de e previdência vem sendo esvaziada. tar e combate à fome não são sinônimos surgiram no país, visando superar esses
Isenção fiscal, sonegação, salários baixos e (Maluf, Valente & Menezes, 1996). Desse problemas. Em 1993, o combate à fome foi
aumento do desemprego são problemas que modo, a segurança alimentar e nutricio- eleito como prioridade nacional, e elabo-
se somam ao não-repasse dos recursos pelo nal, como face do desenvolvimento eco- rou-se um plano de ação com base nos
Tesouro e levam à diminuição do fluxo de nômico sustentável e eqüitativo, não se princípios da intersetorialidade, participa-
recursos para a seguridade. reduz ao combate à miséria. ção social, eqüidade, parcerias Estado–so-
Nesse quadro de “reversão da agenda Não se trata, assim, de estimar apenas o ciedade e descentralização. Foi criado o
de mudanças” consolidada no fim da déca- impacto da pobreza no estado nutricional e Conselho Nacional de Segurança Alimentar
da de 1980, surgem dilemas importantes vice-versa, mas entender conexões muitas e Nutricional (Consea), como órgão de
para a concretização dos princípios de uni- vezes contraditórias e que só serão desven- aconselhamento da Presidência da Repú-
versalidade, gestão democrática e eqüidade. dadas por meio de uma política de seguran- blica, reunindo representantes do governo
As áreas da saúde, previdência e assistência ça alimentar e nutricional com vocação e da sociedade que tinham envolvimento
caminham, hoje, muito mais para a disputa universal e pautada nos direitos de cidada- com o tema. A aproximação entre setores
e segmentação de interesses do que para o nia, capaz, ao mesmo tempo, de reconhecer governamentais e sociedade civil contribuiu
amadurecimento da solidariedade como fio a importância da negociação e da pactuação para a maior coordenação e integração das
condutor para a política social. Nesse pro- entre diferentes atores sociais. O que orienta ações desenvolvidas.

Observatório da Cidadania 2004 / 64


No período de 1995 a 2002, a questão lite o monitoramento da situação de SAN Além disso, foi instituída no Brasil a Se-
da segurança alimentar e nutricional deixou dos diferentes grupos populacionais e sub- cretaria Especial dos Direitos Humanos da
de ser tratada como eixo estratégico de de- sidie a formulação da política nacional de Presidência da República, que vem promo-
senvolvimento, dando lugar ao combate à SAN; e a elaboração de um código internacio- vendo a construção de um Sistema Nacional
pobreza como alvo importante do governo, nal de conduta para a SAN e o direito huma- de Direitos Humanos, uma instância privile-
guardadas as possíveis críticas aos arranjos no à alimentação. giada para monitorar o cumprimento de me-
de implementação. Mas com a renovação tas e prazos acordados e investigar as razões
política do governo federal em 2003, a segu- A plataforma brasileira de possíveis descumprimentos. Propõe-se a
rança alimentar e nutricional e, particularmen- O país também avança em relação à criação de um Conselho Nacional de Promo-
te, o combate à fome foram assumidos como institucionalidade do direito humano à ali- ção do Direito Humano à Alimentação Ade-
prioridade nacional. O projeto Fome Zero sin- mentação, no contexto do debate interna- quada (CNDPHA), integrando a secretaria
tetiza as principais estratégias para o alcance cional sobre o tema. O Comentário Geral nº citada e tendo como atribuições: analisar,
desses objetivos, abarcando ações de dife- 12 do Comitê dos Direitos Econômicos e sugerir e monitorar as políticas públicas na
rentes setores de governo (saúde, educa- Sociais da Organização das Nações Unidas área, expedir recomendações a entidades
ção, trabalho, agricultura, entre outros), (ONU) destaca a importância dos instru- públicas e privadas e investigar denúncias
prevendo medidas emergenciais destinadas mentos legislativos e dos recursos judiciais de violação do direito à alimentação.
a grupos em situação de risco e formulando nacionais que permitam a invocação des- O Ministério Público também vem de-
propostas voltadas a alterar os condicionantes ses direitos nos tribunais internacionais. sempenhando papel de destaque na pro-
estruturais da insegurança alimentar, como Para que a prerrogativa do direito humano moção do direito, por sua prerrogativa de
geração de emprego e renda, reforma agrá- ganhe materialidade institucional, cada país instaurar processos de inquérito civil público,
ria e apoio à agricultura familiar. deve definir metas, prazos e estratégias para pelos quais reúne informação e investiga pos-
Nesse processo de reintrodução do tema a alocação de recursos, por meio de políti- síveis irregularidades ou violações de direi-
na agenda pública, o Consea foi atualizado e cas públicas, e qualquer indivíduo que con- tos, emitindo recomendações ao poder
passou a estimular mais fortemente o diálo- siderar ter sido violado em relação a seus público. A ação civil pública é um outro ins-
go com a pluralidade de fóruns de seguran- direitos deve ter acesso a recursos admi- trumento jurídico previsto na Constituição
ça alimentar e nutricional existentes no pais. nistrativos e judiciais que garantam a devi- Federal e pode ser solicitada por um estado
Os Conseas estaduais e municipais multipli- da reparação, por meio de restituição, da Federação, um município, uma organiza-
caram-se e tornaram-se espaços plurais de indenização, compensação ou garantias de ção não-governamental ou uma empresa
discussão de proposições. Com efeito, a 2ª não-repetição. pública. Essa ação tem a prerrogativa de pre-
Conferência Nacional de Segurança Alimen- No plano internacional, um instrumento ver mecanismos de reparação do dano, po-
tar e Nutricional, realizada em Olinda, em constituído para monitorar a realização do dendo obrigar o Estado a implementar um
março de 2004, como parte das ações do direito à alimentação nos diferentes países determinado programa ou serviço para ga-
novo Consea, deu visibilidade e legitimidade foi a Relatoria sobre Direito à Alimentação, rantir o direito humano à alimentação.
à mobilização prévia nesses espaços amplia- instituída no ano 2000, em sessão anual da
dos de debate. O desenho de uma política Comissão de Direitos Humanos da ONU, que Algumas conclusões
nacional de segurança alimentar e nutricional tem como objetivos principais coletar e dis- A conjuntura brasileira atual tem evidencia-
que emergiu do encontro reflete, em grande seminar informações nacionais sobre todos do a retomada vigorosa da questão alimen-
parte, as perspectivas dos múltiplos atores os aspectos vinculados à realização do direi- tar e nutricional como tema prioritário. A
sociais que participaram das conferências to à alimentação. No Brasil, como parte das criação de uma Lei Orgânica de Segurança
estaduais e municipais promovidas pelos ações da Plataforma Brasileira de Direitos Alimentar e Nutricional, uma das proposi-
fóruns e Conseas estaduais e municipais. Humanos, Econômicos, Sociais e Culturais ções presentes no âmbito da 2a Conferência
Frutos desse debate plural são, em últi- (Plataforma Dhesc Brasil), consolidada a Nacional de Segurança Alimentar e Nutricio-
ma instância: a proposta de criação de um partir de 2002, foi instituído o projeto de nal, e o estabelecimento de princípios bási-
Sistema Nacional de Segurança Alimentar e relatores nacionais nas áreas de saúde, edu- cos para a gestão e o financiamento de um
Nutricional com Lei Orgânica e orçamento cação, moradia, terra, meio ambiente e tra- sistema nacional de SAN configuram uma
próprio, gestão participativa, regionalizada e balho, alimentação, água e terra rural. A perspectiva inovadora. Mas é importante,
com definição clara de papéis dos três níveis plataforma consiste em uma rede nacional neste cenário de florescimento de novas pro-
de governo; a construção de um sistema de organizações da sociedade civil articulada postas, não perder de vista os sólidos vín-
nacional integrado de informações em se- com o objetivo de promover ações comuns culos entre segurança humana, segurança
gurança alimentar e nutricional que possibi- e difusão de uma cultura de direitos no país. alimentar e seguridade social no país.

Observatório da Cidadania 2004 / 65


Trata-se, assim, de aproveitar este mo- cidadania possível em cada contexto nacio- da produção e comercialização de alimentos
mento rico de possibilidades para reafirmar nal, dadas as correlações de forças políticas mais baratos, além de iniciativas educacio-
o compromisso com a idéia de interdepen- e valores sociais existentes. Cada perspecti- nais e de promoção de capital social. Dentro
dência dos problemas sociais. Ao mesmo va (na dimensão da cidadania ou na huma- da perspectiva de “convergência de ações”,
tempo, além de consensos construídos e na), no entanto, só atinge seus propósitos o desenvolvimento de novos programas
consolidados, é importante reconhecer dis- ao ser capaz de dialogar com as estruturas envolvendo diferentes secretarias, órgãos
putas, interesses divergentes e fortes anta- político-institucionais existentes e adotar a governamentais e instituições civis dá refe-
gonismos. Identificar novas estruturas de integralidade e a intersetorialidade como prin- rências claras para a construção de ativida-
incentivo e novas formas de cooperação para cípios estratégicos. Portanto, torna-se im- des capazes de conjugar as várias dimensões
o fortalecimento de compromissos comuns periosa a necessidade de aproximação entre do direito à alimentação. Neste percurso,
é tarefa inescapável. as diferentes dimensões, tanto do ponto de talvez esteja presente o aprendizado neces-
Se falar do direito à alimentação é tam- vista temático como do institucional. sário para a instituição de novos padrões de
bém estabelecer uma aproximação com ou- O esforço em dissipar as fronteiras en- solidariedade social e para a luta pela cida-
tros direitos – acesso a renda, terra, educação, tre segurança alimentar, segurança huma- dania plena no Brasil.
atenção à saúde, habitação, participação so- na, seguridade social e direito humano a
cial e trabalho –, torna-se substantivo para o alimentação pode, sem dúvida, forjar arenas Referências bibliográficas
desenho e para a implementação de progra- e arranjos intersetoriais com a vocação real BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro:
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cer um planejamento e um orçamento soli- pecíficas. Nessa direção, como aponta Cebes. São Paulo: Lemos, 1997.
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Observatório da Cidadania 2004 / 66


Universalizando direitos

Ao contrário do que reforça o ideário neoliberal, as políticas universais não são forçosamente regressivas, mas têm
forte impacto na redistribuição de renda. Apesar de o Brasil continuar desenhando programas de combate à pobreza
residuais e ineficazes pelos limites do seu escopo, o país deu um passo importante na direção da universalidade e da
incondicionalidade ao aprovar o princípio da renda básica para todos os cidadãos e cidadãs. Este artigo elege o modelo
que parece mais adequado para transitar dos programas de renda mínima para uma política de renda básica, partindo
das crianças, ou seja, considerando 56 milhões de pessoas como as primeiras beneficiárias da Renda Cidadã.

Lena Lavinas 1 neficiadas, e seu atendimento sempre foi jus- outras instituições internacionais, a grande
Com a colaboração de Marcelo Nicoll, tificado como um ato humanitário ou uma maioria dos países do continente americano
Cristiano Duarte e Roberto Loureiro Filho2 moeda política. se alinha a esse tipo de intervenção focaliza-
A pobreza só aparece como questão so- da e de caráter temporário, cujos benefícios
É notório que o sistema de proteção social cial mais recentemente e parece reforçar um são condicionados à comprovação de renda.
latino-americano jamais se constituiu verda- enfoque cada vez mais distante daquele – uni- Nas suas três vertentes5 – programas de
deiramente num welfare, embora tenha se versalista – que presidiu à reestruturação dos ação social (PAS), fundos de emergência so-
inspirado do modelo europeu nas suas ori- sistemas de proteção social europeus do pós- cial (FES) ou fundos de investimento social
gens, tomando os mesmos valores de soli- guerra. De fato, a dimensão compensatória (FIS) –, as redes mínimas de proteção social6
dariedade e coesão social (ver Draibe, da proteção social parece ganhar autonomia e não acusaram um desempenho satisfatório
1997).3 O Brasil não é exceção nessa maté- existência própria, desarticulada e desvinculada no combate à pobreza, embora, frisa Mesa-
ria. De cunho corporativista-meritocrático, do sistema de seguridade social como um Lago, os resultados tenham sido diversos entre
voltado aos segmentos formais da econo- todo, já que as políticas de combate à pobre- países. Elas seguem apresentando problemas
mia, nosso sistema de proteção social se za passam a caminhar em paralelo e sem me- de focalização e avaliação, não são sustentá-
caracteriza por ainda oferecer cobertura res- tas definidas, polarizadas por suas clientelas. veis e, sobretudo, não tiveram o impacto es-
trita, atendendo a uma parcela reduzida da Tal tendência se manifesta na crise da perado na reforma da seguridade social,
população, da qual as pessoas pobres sem- década de 1990, reconhece Mesa-Lago notadamente na sua dimensão assistencial.
pre foram, de facto, excluídas em razão do (2000), quando as políticas assistenciais tra- O Brasil segue navegando entre águas tur-
seus vínculos instáveis e precários com o dicionais, já limitadas a poucos países da re- vas em matéria de política social e combate à
mercado de trabalho. Não sendo um grupo gião, dispondo de recursos ínfimos, 4 são pobreza, mas surpreendentemente afirma sua
de pressão, sem posição socioocupacional ainda mais penalizadas e passam a se res- excepcionalidade ao dar corpo de lei ao prin-
definida, as camadas pobres da população tringir à implementação de uma rede mínima cípio da renda básica universal para todos os
jamais foram sistemática e regularmente be- de proteção social (RMPS), cujo objetivo não seus cidadãos e cidadãs, independentemente
é vencer a pobreza, mas assegurar um pata- da origem social, nível de renda, sexo, idade,
mar mínimo de reprodução social que ate- crença ou qualquer outro critério distintivo
nue os efeitos devastadores das políticas de de um grupo social. Afora o território estadu-
ajuste. Seguindo a filosofia dos programas nidense do Alasca, que garante de jure e de
de safety netsNR implementados em todo o facto uma renda de igual valor a todas as
1 Doutora em Economia pela Universidade de Paris III e mundo em desenvolvimento pelo Banco pessoas que lá residem, financiada com os
professora do Instituto de Economia (IE) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Mundial (ver Lavinas, 2003), com apoio de royalties do petróleo, nenhum outro país no
2 Respectivamente, economista e mestrando da Escola
mundo, além do Brasil – nem aqueles onde a
Nacional de Ciências Estatísticas; economista formado
pela UFRJ; e aluno da graduação do IE da UFRJ.
3 Sônia Draibe reconhece, no entanto, que tal matriz
sempre funcionou de modo imperfeito e deformado,
quase que permanentemente em crise, o que exigia 4 Em termos de percentual do Produto Interno Bruto
sua reestruturação. “Os sistemas de proteção social (PIB), sempre inferior a 1%. 5 Uma breve caracterização de cada programa
embrionários e distorcidos revelaram no passado NR Safety nets são transferências de renda compensatórias, encontra-se em Mesa-Lago, 2000, p. 36.
reduzida eficácia na redução da pobreza e na reversão cuja finalidade é garantir uma rede de proteção vital 6 Implementadas nos seguintes países: Argentina,
das fortes diferenças segmentadoras e constrangedo- mínima, no plano da subsistência. São asseguradas Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador,
ras da cidadania.” mediante comprovação de insuficiência de renda aguda. México, Peru e Uruguai.

Observatório da Cidadania 2004 / 67


desigualdade é incomparavelmente menor na lei que tal direito considerará, de início, de partida para a universalização da renda
que a existente entre nós –, foi tão longe no critérios de seletividade, contemplando as básica, as crianças brasileiras, independen-
seu compromisso com a justiça social. pessoas mais pobres. Essa orientação está temente do seu status socioeconômico.
Não deixa de surpreender que, a partir de em franca contradição com os princípios
2005, estejamos adotando a renda básica de de uma renda de cidadania que, por ser in- Transferências diretas de renda
cidadania como direito universal e incondicio- condicional, não obedece a critérios socio- As transferências diretas de renda monetá-
nal de todas as pessoas, brasileiras ou não, que econômicos de elegibilidade. ria a cidadãos e cidadãs pobres, sujeitas à
vivem legalmente no país.7 Deve-se observar O cenário atual levanta a suspeita de que comprovação de insuficiência de renda agu-
que isso ocorre num país no qual a universa- tal lei permaneça letra morta, o que não seria da, tornaram-se, na segunda metade da
lização está, hoje, sob custódia por impera- propriamente uma surpresa. Ora, o que está década de 1990, a grande novidade da po-
tivos macroeconômicos, a sobrefocalização em jogo, hoje, no Brasil, é justamente a natu- lítica social brasileira. A mudança no escopo
do gasto social é tida como o único meio de reza do seu sistema de proteção social, que se da política social e no desenho dos progra-
reduzir a desigualdade e de ampliar a cidadania configura, na prática, cada vez mais como mas sociais compensatórios ocorreu inicial-
e 80%8 das transferências diretas de renda residual, num misto de condicionalidades e mente por força da própria Constituição de
são de cunho contributivo (aposentadorias e acesso fortemente restritivo, na direção oposta 1988, que assegurou, por meio da Lei Or-
pensões), que se tornam alvo de propaladas ao espírito universalista-redistributivo da re- gânica de Assistência Social (Loas), benefí-
críticas por espelharem uma estrutura regres- forma social que levou à constituição da Se-
cios assistenciais,11 a título individual, no valor
siva – somente 2,2% dessas transferências guridade Social em 1988 e que inspira e
de um salário mínimo, a todas as pessoas
são de natureza compensatória, sujeitas a di- legitima a renda básica de cidadania. Em ou-
idosas12 e às portadoras de deficiência com
versas condicionalidades e destinadas a um tras palavras, o quadro institucional-formal que
renda familiar per capita igual ou inferior a
percentual pequeno das dezenas de milhões se forjou com o intuito de consolidar um siste-
um quarto do salário mínimo.13 Assim, os
de pobres existentes no país. ma sólido de proteção social e garantir princí-
benefícios não-contributivos, que antes eram
Pela Lei 10.835, todas as pessoas re- pios de justiça social parece guardar cada vez
escassos, além de caracterizadamente emer-
ceberão um benefício monetário de igual menos correspondência com a prática insti-
genciais e in natura – programa do leite e a
valor, o que “poderá ser feito em parcelas tuída no cotidiano da luta contra a miséria e a
doação de cestas de alimentos (ver Lavinas
iguais e mensais”9 e será “suficiente para pobreza, subordinada aos ditames da política
e Garcia, 2004) –, ganham escala, tomando
atender às despesas mínimas de cada pes- de estabilidade macroeconômica e geração de
como referência o salário mínimo.
soa com alimentação, educação e saúde, elevados superávits primários.
A progressão na concessão desse bene-
considerando-se para isso o grau de de- O que se propõe aqui é discutir como
fício nos últimos dez anos é surpreendente.
senvolvimento do país e as possibilidades enfrentar o desafio de transitar da ausência
Em 2002, foram contemplados com os be-
orçamentárias”.10 No seu parágrafo 1º, é de políticas universais de transferência de
nefícios da Loas 570 mil pessoas idosas e
especificado, ainda, que tal direito será im- renda no país para a adoção da renda básica
958 mil pessoas portadoras de deficiência,
plementado “em etapas”, “a critério do Po- de cidadania incondicional, considerando-se
somando aproximadamente R$ 3,5 bilhões,
der Executivo, priorizando-se as camadas a iminência de implementação da Lei 10.835,
o equivalente a 25,3% das despesas do go-
mais necessitadas da população”, sem re- já a partir de janeiro de 2005. Para tanto,
verno federal com assistência social (Ministé-
ferência a prazos para que seja alcançada a apresentamos desenhos possíveis de uma
rio da Fazenda, 2003)14 e 1,75% do gasto
cobertura universal. Ou seja, é explicitado política a ser implementada gradativamente,
social no seu conjunto.15 É provável que tal
apoiados em simulações que medem o im-
cobertura esteja aquém da demanda efetiva,
pacto de tais transferências na redução da
pobreza e da desigualdade e que foram feitas
tomando parâmetros diferenciados (valor da
transferência e público-alvo). Neste exercí-
7 No caso das pessoas estrangeiras, elas devem ter ao
menos cinco anos de residência.
cio, estaremos demonstrando que, ao con-
11 Denominados BPCs ou Benefícios por Prestação
8 Ver Ministério da Fazenda (2003, tabela 12, p. 59), a
trário do que é reiteradamente salientado Continuada.
tabela 12, na página 59. Consideram-se, para efeito dessa pelos cânones neoliberais, políticas univer- 12 Com idade acima de 67 anos, reduzida a 65 anos a
estimativa, todos os benefícios derivados de contribui- sais não são regressivas, mas têm forte im- partir de 2004.
ções, tais como salário-família, salário-maternidade,
auxílio-doença, auxílio-acidente, entre outras, à exceção
pacto redistributivo. Da mesma maneira, 13 À época, tentou-se estabelecer, como linha de pobreza,
meio salário mínimo per capita, o que fatalmente
das aposentadorias rurais, que representam 10% do total vamos nos posicionar perante o modelo que
elevaria significativamente o número de pessoas que
das transferências diretas de renda. nos parece ser mais o adequado e oportuno, receberiam benefícios. Adotou-se, assim, a linha de
9 Parágrafo 3º da Lei 10.835. dada a sua cobertura universal e seu poten- indigência de um quarto do salário mínimo per capita.
10 Parágrafo 2º da Lei 10.835.
cial redistributivo, e que elege, como ponto 14 Ver Tabela 5, p. 39-40.

Observatório da Cidadania 2004 / 68


pois o acesso ao Benefício de Prestação Con- da que de natureza distintas (aquelas são mais pobres e um índice de Gini dos mais
tinuada (BPC), por exemplo, nada tem de permanentes, e estas têm prazo determina- elevados do mundo (0,587, segundo estima-
automático: implica o fornecimento de com- do), observa-se que totalizaram pouco mais tiva nossa com base na Pesquisa Nacional por
provante de pobreza, prática hoje contestada de 3% do gasto social do governo federal Amostra de Domicílios/Pnad de 2001). Da
por muitos municípios brasileiros.16 Na ver- efetuado em 2002. Isso corresponde a apro- mesma maneira, é preciso atender à demanda
dade, o Instituto Nacional do Seguro Social ximadamente R$ 6,2 bilhões em valores cor- potencial, impedindo disputas entre pobres.
(INSS) é a primeira instância de reconheci- rentes no mesmo ano. Se fôssemos dividir O desafio está em introduzir, por ocasião
mento do direito ao benefício da Loas. Quan- tais recursos pelo número estimado de po- da efetivação da renda universal como direito
do o INSS indefere o requerimento, é freqüente bres, cuja proporção varia entre 30% e 33% de cidadania, um novo modelo de transferên-
atuarem as Secretarias Municipais de As- da população brasileira,21 que corresponde cia de renda monetária direta, redistributivo.
sistência Social no recurso, emitindo um lau- a cerca de 55 milhões de pessoas, o valor O programa carro-chefe da política social
do socioeconômico a ser reencaminhado ao per capita mensal das transferências com- do governo Luiz Inácio Lula da Silva no seu
INSS. A decisão toma, então, caráter judicial, o pensatórias teria sido equivalente a R$ 9,39, segundo ano, o Bolsa Família, carece, no en-
que significa ônus expressivo, de tempo e cus- ou seja, um valor indiscutivelmente baixo (cer- tanto, dessa orientação. Marcadamente sele-
tas. Uma vez deferido o pedido, a concessão ca de R$ 0,30 diários). tivo, promove, ainda assim, algumas
do benefício tem caráter definitivo e irrevogável. mudanças no desenho dos programas com-
Os demais programas de transferência de Baixo impacto na redução da pobreza pensatórios, buscando concluir a unificação
renda vigentes até o fim da gestão de Fernando Considerando-se inexistirem no Brasil – na- já iniciada do que se pretende ser o sistema
Henrique Cardoso, em 2002, constituíam-se, quele ano, hoje e desde sempre – quaisquer de transferências diretas de renda monetária,
na sua maioria, em auxílios monetários tem- de modo a melhorar a coordenação e a ges-
benefícios de caráter universal destinados a
porários, na forma de bolsas,17 dirigidos a tão dos diferentes programas de combate à
reduzir os diferenciais agudos de bem-estar e
clientelas específicas, tal como informa a Ta- pobreza. Nesse processo, o Bolsa Família
renda entre o povo brasileiro, fomentando a
bela 1. Todos eles estavam sujeitos à compro- passa a centralizar os recursos destinados
igualdade e a eqüidade, não há como não re-
vação de insuficiência de renda, sendo, aos demais programas, lutando contra a frag-
conhecer que se gastava – e ainda se gasta –
portanto, means-test18 e tendo, como linha de mentação da ação social, além de ampliar li-
muito pouco com transferências diretas de
pobreza, renda familiar per capita igual a meio geiramente sua dotação orçamentária. O valor
renda não-contributivas às pessoas mais po-
salário mínimo ou menor que isso, além de do benefício médio mensal para as famílias
bres. O problema não é tão-somente, como
condicionados ao cumprimento de exigên- sobe para R$ 72,80. A previsão é de que
pretendem algumas pessoas, de má alocação
cias. Esses distintos formatos de bolsas, vol- venham a ser atendidas, no ano de 2004,
do gasto. Excetuando-se os benefícios da Loas,
tadas para o combate à pobreza, somaram, 6,5 milhões de famílias (de um total estimado
no valor de um salário mínimo, cujos efeitos na
no ano de 2002 (Tabela 1), tão-somente 1,47% de 11,2 milhões de famílias identificadas como
redução da pobreza já foram reconhecidos – o pobres, segundo dados do governo federal).
do gasto social, e o valor médio da transfe-
mesmo ocorrendo com os benefícios deriva- Resulta, portanto, que o marco regulató-
rência situou-se em torno de R$ 40,00.19
dos do acesso à previdência rural, de igual rio de enfrentamento da questão social per-
Agregando-se as duas grandes políticas
valor –, os demais, de valor médio bem inferi- manece sintomaticamente o mesmo – de
compensatórias20 – Loas e safety nets (bolsas)
or, tiveram impacto praticamente nulo na re- regulação estática da pobreza, pois, em mé-
– assentadas em transferências monetárias, ain-
dução da pobreza e da desigualdade. dia, transferem-se R$ 0,60 diários a cada mem-
Isso indica que seria necessário gastar bro das famílias beneficiadas (considerando-se
muito mais para reduzir a pobreza e a desi- serem elas compostas em média de quatro
gualdade de forma expressiva e contundente! pessoas), como complemento de renda.
É preciso aumentar o valor individual das trans- A novidade da proposta do senador
15 Estimado no documento do Ministério da Fazenda em
R$ 204 bilhões em 2002 (Tabela C do anexo).
ferências, hoje fixadas em um patamar insufi- Suplicy 22 consiste em tentar estabelecer
16 A título de exemplo, vale ressaltar que a Secretaria de ciente, dado o hiato de renda das pessoas uma regra de transição dos programas de
Assistência Social (SAS) da Prefeitura de São Paulo
estabeleceu como norma não conferir “certificados de
pobreza”, embora essa prática continue disseminada
nos municípios brasileiros.
17 A bolsa expressa um tipo de incentivo à escolarização 20 Deliberadamente, não incluímos entre as políticas
regular das crianças, medida pela freqüência 22 Publicada no jornal O Globo em 1º de junho de 2004.
compensatórias a aposentadoria rural, porque a A nova proposta diverge da original, que pretendia
obrigatória de 90%. consideramos de natureza distinta, uma vez que está iniciar a implementação da renda de cidadania
18 Sujeito à comprovação de insuficiência de renda aguda. vinculada à comprovação do trabalho assalariado contemplando primeiramente a população idosa para
19 Sendo o salário mínimo então vigente de R$ 180,00, o rural ou em regime de exploração familiar. depois incorporar progressivamente as gerações mais
benefício de R$ 40,00 correspondia a cerca de 23%. 21 Fonte: Ipea e Mapa da Fome II. jovens (ordem etária decrescente).

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Tabela 1 – PROGRAMAS DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA DIRETA A FAMÍLIAS POBRES (2002)

Programa Ministério Objetivo % Gasto Social TOTAL*


1. Bolsa-Escola Educação Bolsa mensal entre R$ 15,00 e R$ 45,00 0,78
para famílias pobres com crianças na faixa
de 6–15 anos que freqüentem a escola
2. Bolsa-Alimentação Saúde Bolsa mensal entre R$ 15,00 e R$ 45,00 para 0,07
famílias pobres com gestantes ou crianças em
situação de risco nutricional na faixa de 0–6 anos
3. Programa de Erradicação Previdência e Bolsa mensal entre R$ 25,00 e R$ 40,00 para 0,25
do Trabalho Infantil (Peti) ou Assistência Social famílias pobres que se comprometam a retirar
Programa Bolsa Criança-Cidadã suas crianças de trabalhos penosos para
retornar à escola
4. Agente Jovem Previdência e Bolsa mensal de R$ 65,00 para jovens pobres 0,02
Assistência Social na faixa de 15–17 anos, em situação de risco
que retornem à escola e atuem nas comunidades
5. Bolsa-renda Integração Nacional Auxílio mensal de R$ 60,00 para famílias 0,04
pobres vítimas da seca no Nordeste, que
mantenham as crianças nas escolas
6. Auxílio-Gás Minas e Energia Auxílio mensal para famílias pobres para 0,31
aquisição de GLP (gás de cozinha)
Fonte: Ministério da Fazenda, Secretaria de Política Econômica, 2003.
* Valor total do Gasto Social do Governo Federal em 2002: R$ 204,2 bilhões ou 15,16% do PIB.

transferência direta de renda em direção à sa Família), implicaria uma despesa de R$ 25 de 3,1%, antes da imputação, para 6,3%.
política de renda cidadã, em consonância bilhões anuais, isto é, cinco vezes mais do Sem dúvida, são excelentes resultados, ja-
com a nova lei. Defende que o programa que o orçamento previsto com o Bolsa Famí- mais obtidos por nenhum programa social
Bolsa Família seja imediatamente estendido lia em 2004 (R$ 5 bilhões). experimentado no Brasil.
ao seu público-alvo potencial (11,2 milhões Para estimar o impacto desse desenho Infelizmente, estamos falando de um de-
de famílias), que deve ser atendido apenas do renda cidadã na redução do número de sempenho ideal, possível apenas caso a
em 2006, mediante um benefício individual pobres e no grau de desigualdade – vetores focalização fosse perfeita, sem vazamentos,
no valor de R$ 40,00 a cada membro de da maior relevância na eleição de qualquer fraudes ou níveis elevados de ineficiência ho-
cada uma das famílias selecionadas. Assim, programa ou política que pretenda comba- rizontal e vertical, amplamente reconhecidos
seria substituído o benefício familiar pelo be- ter de forma eficaz a pobreza –, simulamos, pela própria área governamental (ver Ministé-
nefício, em tese, universal, concedido, entre- em relação ao ano de 2001, uma transfe- rio da Fazenda, 2003). Nada menos provável,
tanto, apenas a quem pertence a famílias que rência de R$ 30,00 mensais23 para os pri- já que a operacionalização e a execução de
preenchem critérios e requisitos estabeleci- meiros 11,2 milhões de famílias situadas na
dos pelo programa, a saber: renda familiar cauda inferior da distribuição. Tomamos
per capita inferior a R$ 90,00 mensais; como linha de pobreza a renda familiar per
cadastramento detalhado mediante registro capita igual ou inferior a meio salário míni-
da declaração dos bens e equipamentos ele- mo. Os resultados revelam que o índice de 23 Em abril de 2004, quando iniciamos nossas simulações,
o valor do salário mínimo era de R$ 240,00. A renda
trodomésticos, que permita inferir se a pos- Gini cairia de 0,587 para 0,546, com efeitos mensal de R$ 40,00, proposta pelo senador Suplicy,
se deles é compatível com a renda declarada; diretos e benéficos até o quarto décimo da equivalia então a 16,67% do mínimo. Como utlizamos o
ano-base de 2001 para nossas simulações, aplicamos
obrigatoriedade das contrapartidas exigidas distribuição (Tabela 2). O número de pobres
essa mesma proporcionalidade ao salário mínimo
para permanência no programa. Tal propos- seria reduzido em 18,5 milhões de pessoas, vigente naquele ano (R$ 180,00), o que teria resultado
ta, de caráter altamente focalizado (porque é e a proporção da renda dos 20% mais po- numa renda mensal à época de R$ 30,00. Por isso, as
simulações referentes à proposta Suplicy foram feitas
restrito ao público habilitado a integrar o Bol- bres sobre a dos 20% mais ricos passaria com um benefício de R$ 30,00 por indivíduo.

Observatório da Cidadania 2004 / 70


um programa fortemente seletivo implicariam mente nos décimos mais altos, por motivos modo a testar os impactos agregados de even-
a multiplicação de controles, que, por sua demográficos e de trajetória socioeconômica. tuais transferências de renda. Em simultâneo,
vez, elevariam os custos administrativos e aca- A população com idade superior a 65 anos é estipulamos frações do salário mínimo que po-
bariam por desviar recursos da atividade-fim. marginal nos primeiros decis, aumentando sig- deriam servir de valor de referência à defini-
Todos esses aspectos são radical e absoluta- nificativamente nos dois últimos (Tabela 3). Isso ção de uma renda básica. Consideramos, assim,
mente contrários ao que se define como uma mostra claramente que um grupo extremamente valores correntes de meio salário (R$ 90,00),
renda de cidadania, cujo pressuposto funda- carente de proteção social são as crianças, pois um terço (R$ 60,00) e um sexto (R$ 30,00).
mental e inalienável é ser incondicional. É di- elas são maioria nos estratos mais pobres da Temos, desse modo, sete colunas: a pri-
fícil acreditar que o melhor atalho para se população. De fato, inexistem programas de meira apresenta a renda familiar per capita
chegar à incondicionalidade universal seja apoio à família e/ou a jovens e crianças, que, à real por decis da distribuição, ao passo que
tomar a direção oposta, cuja trilha impõe imagem do que acontece nos países euro- as subseqüentes informam sobre o ganho
means-tests e contrapartidas, além de pena- peus (ver Lavinas e Garson, 2003), assegu- derivado da imputação de renda, segundo fra-
lização das pessoas beneficiárias cuja renda rem transferências de renda para reduzir a ção do salário mínimo e público-alvo (criança,
familiar per capita varia positivamente. Elas vulnerabilidade e igualar oportunidades. Proposta Suplicy, pessoas idosas).
teriam que ser desligadas por não mais se A população de terceira idade tem-se be- Depreende-se da Tabela 4 que privilegiar
adequarem ao limite de insuficiência de renda neficiado de conquistas importantes no cam- as pessoas idosas tem impacto redistributivo
(linha de pobreza), a menos que se estabele- po previdenciário, como a universalização do quase nulo, sendo até mesmo regressivo, já
çam novos critérios para regular a tolerância acesso às aposentadorias e pensões rurais, a que uma transferência direta de renda monetá-
com tais variações, o que tende a gerar no- isonomia no valor-piso das aposentadorias ria de R$ 90,00 ou R$ 60,00 praticamente não
vas ineficiências. rurais e urbanas, a concessão de BPC (Loas) altera o valor da renda média observada nos
para pessoas idosas pobres. Isso explica o primeiros décimos da distribuição, elevando-a,
Um benefício universal para crianças porquê de as famílias com pessoas idosas ao contrário, à medida que nos deslocamos
Haveria, então, um outro modelo que esca- estarem muito pouco representadas entre os para os decis superiores, como era de se espe-
passe à lógica focalista e, de fato, compro- décimos mais pobres. Vale a pena assinalar rar (porque as pessoas nessa faixa etária são
vasse que a universalidade caminha na que dos 10,2 milhões de pessoas idosas com em menor número e, além disso, concentram-
contramão da regressividade? Para visualizar mais de 65 anos apenas 9% declararam ren- se nas faixas de renda mais altas). Já as simu-
distintos cenários, seus custos e impactos, da própria igual a zero. lações que garantem uma renda às crianças de
realizamos simulações com diferentes públi- Apesar da eloqüência dessa primeira até 16 anos, bem como a Proposta Suplicy,
cos-alvo e valores de benefícios. A síntese constatação, resolvemos ainda assim manter mostram resultados bastante favoráveis. No
desses exercícios encontra-se na Tabela 4, ambos os grupos nas nossas simulações, de caso das crianças, a progressividade é patente
apresentada após alguns esclarecimentos
metodológicos que se fazem necessários. Tabela 2 – Proporção de crianças de 0 a 16 anos
Tomamos dois grupos-alvo que poderiam Segundo decis de renda familiar per capita
constituir-se alternativamente no primeiro gru-
1º decil 54%
po a ser contemplado para dar início à política
de renda básica, de implementação progressi- 2º decil 50%
va. São eles: as crianças (0–16 anos) e as pes- 9º decil 20%
soas idosas (acima de 65 anos), por serem 10º decil 17%
ambos os grupos inativos e, por isso mesmo,
categorias socialmente vulneráveis. A proteção Fonte: Pnad/IBGE 2001.

social se institui, sabemos, ao dar segurança às


pessoas que não podem trabalhar. Em 2001, Tabela 3 – Proporção de pessoas idosas (acima de 65 anos)
havia, no Brasil, 54,4 milhões de crianças nessa Segundo decis de renda familiar per capita
faixa etária e 10,2 milhões de pessoas idosas.
Tais números por si sós revelam que começar 1º decil 1%
pelas crianças seria mais abrangente, provo- 2º decil 2%
cando impacto bem mais significativo. 9º decil 12%
Como mostra a Tabela 2, as crianças estão
sobre-representadas nos primeiros décimos da 10º decil 14%
distribuição; sua participação cai proporcional- Fonte: Pnad/IBGE 2001.

Observatório da Cidadania 2004 / 71


e inquestionável. A renda imputada tem impac- gualdade e no aumento da renda das pessoas ções que partem da população com idade
to proporcionalmente maior nos decis inferio- mais pobres na renda agregada. Os resulta- acima de 65 anos mostram-se inadequadas
res, em particular no primeiro, vis-à-vis os dos obtidos figuram nas Tabelas 5, 6 e 7. ao combate à pobreza.
demais. A Proposta Suplicy registra o melhor O número de pessoas vivendo abaixo Cabe estimar também como o quadro de
desempenho, associando menor valor do be- da linha de pobreza somava, em 2001, apro- desigualdades poderia alterar-se, medindo as
nefício (R$ 30,00) com aumento da renda mé- ximadamente 50,8 milhões. A Tabela 5 in- variações no índice de Gini derivadas de cada
dia nos decis inferiores (do primeiro ao quarto), forma que, novamente, é a Proposta Suplicy proposta. Os resultados figuram na Tabela 6.
semelhante, portanto, ao obtido na simulação a de maior eficácia, pois retiraria da pobreza, Nesse caso, observa-se uma distinção
feita com um benefício universal de R$ 60,00. com um benefício individual de R$ 30,00, clara vis-à-vis com o efeito “redução da po-
Resta saber qual o efeito de cada combi- 18,5 milhões de pessoas, ou seja, 2 milhões breza”, uma vez que a Proposta Suplicy seria
nação de imputação de renda na incidência a mais que uma transferência de R$ 60,00 a menos efetiva que a atribuição de uma renda
da pobreza, na diminuição do grau de desi- todas as crianças brasileiras. As configura- universal no valor de R$ 60,00 às crianças de

Tabela 4 – Impactos da imputação de renda por décimos da distribuição de renda familiar per capita média – Brasil 2001

Crianças Crianças Crianças Suplicy Idosos(as) Idosos(as)


Renda real
R$ 90,00 R$ 60,00 R$ 30,00 R$ 30,00 R$ 90,00 R$ 60,00
1º 14,06 55,95 43,66 29,67 44,07 14,35 14,31
2º 45,02 88,99 74,73 59,91 75,02 45,91 45,70
3º 68,88 108,27 94,99 82,14 94,99 70,64 70,16
Decis de RFPC

4º 94,86 130,89 118,47 106,43 109,45 98,01 97,25


5º 126,01 158,27 147,11 136,32 127,52 131,00 129,41
6º 165,52 190,68 182,18 173,74 165,53 171,27 169,39
7º 214,71 239,46 230,71 222,48 214,73 225,77 222,38
8º 299,83 321,56 314,10 306,85 299,88 308,04 304,63
9º 470,56 490,16 483,45 476,91 470,70 478,53 475,72
10º 1.407,32 1.423,35 1.417,92 1.412,59 1.407,86 1.416,00 1.413,00
Fonte: Pnad/IBGE 2001.

até 16 anos. De fato, o índice de Gini inicial-


Tabela 5 – Impactos da imputação de renda na redução da pobreza
Pessoas que sairiam da pobreza – Brasil 2001 (linha de mente estimado em 0,587 cairia, no primei-
pobreza – renda familiar per capita até meio salário mínimo) ro caso apontado, para 0,546, ao passo que,
no segundo, declinaria de forma mais acen-
Distribuições tuada para 0,537. Logo, o efeito redistribuição
e combate à desigualdade seria maior em-
Nº de pessoas pobres 50.800.000 pregando-se uma política universal, e não for-
Crianças (R$ 90) 27.415.927 çosamente a de recorte focalizado.
Por fim, resta calcular em que proporção
Crianças (R$ 60) 16.538.573
as pessoas pobres ampliariam sua participa-
Crianças (R$ 30) 7.576.437 ção na renda agregada, mediante a transfe-
Suplicy (R$ 30) 18.580.474 rência de uma renda de cidadania. Repetimos,
neste exercício, os mesmos grupos e classes
Idosos(as) (R$ 90) 1.901.419 de benefícios utilizados nos anteriores. Obser-
Idosos(as) (R$ 60) 1.603.127 vamos, assim, como indica a Tabela 7, que a
renda dos 20% mais pobres em 2001 repre-
Fonte: Pnad/IBGE 2001.
sentava nada mais do que 3,1% da renda dos

Observatório da Cidadania 2004 / 72


Tabela 6 – Impactos da imputação de renda na variação Sabemos que amparar crianças e jovens
do índice de Gini – Brasil 2001 contribui diretamente para reduzir não apenas
o custo de oportunidade do trabalho infantil –
Distribuições Gini
justificativa dos inúmeros programas fragmen-
Real 0,587 tados que buscam, sem grandes resultados,
costurar uma plaga ardente e jamais cicatri-
Crianças (R$ 90) 0,516
zada da nossa cidadania –, como permite ain-
Crianças (R$ 60) 0,537 da desmercantilizar (decommodification) parte
Crianças (R$ 30) 0,561 dos custos importantes assumidos pelas fa-
mílias brasileiras, notadamente as mais pobres,
Suplicy (R$ 30) 0,546 na educação dos seus filhos e filhas. Estaría-
Idosos(as) (R$ 90) 0,583 mos, dessa maneira, reatando nosso com-
promisso republicano com a construção de
Idosos(as) (R$ 60) 0,584 uma sociedade do bem-estar compartilhado.
Fonte: Pnad/IBGE 2001. Outra vantagem desse modelo de tran-
sição seria gerar um mecanismo automático
20% mais ricos. A adoção da Proposta Suplicy Julgamos que a proposta mais adequa- de expansão da cobertura, pois a cada ano
ou da renda universal para crianças no valor da à introdução da renda básica de cidada- se incorporariam crianças e jovens que nas-
de R$ 60,00 permitiria apenas dobrar tal par- nia no Brasil, considerados seus efeitos e ceram no ano fiscal de referência. Ou seja,
ticipação, que passaria a 6,2%, percentual sig- custos, e mantida a visão universalista e in- jovens de até 16 anos contemplados com a
nificativamente melhor, mas ainda assim condicional que norteia seus valores de justi- renda básica jamais seriam destituídos des-
terrivelmente insatisfatório. Assusta reconhe- ça social, seria a que contempla todas as se direito, que os acompanharia, em caráter
cer que propostas arrojadas e inéditas no to- crianças brasileiras com um benefício de irrevogável, ao longo da vida. Isso facilitaria
cante à mobilização de recursos num volume R$ 60,00 mensais. Esse benefício reduziria também planejar de forma relativamente se-
jamais disponibilizado nesse país possam ter a pobreza em um terço, levaria a uma queda gura e consistente os acréscimos anuais ao
impacto tão modesto na desconcentração da expressiva do índice de Gini, raramente ob- custo do programa e monitorar as fontes
renda. A Tabela 7 assinala que um benefício servada no país nas décadas passadas, e fiscais necessárias ao seu financiamento.
universal de R$ 90,00 ou de meio salário míni- permitiria que a renda dos 20% mais pobres
mo (valores correntes de 2001) concedido a dobrasse vis-à-vis os 20% mais ricos, além Possibilidades de financiamento
54,4 milhões de crianças (universo na faixa de de instituir um mecanismo de proteção uni- A pergunta incontornável e que carece de res-
0–16 anos) pouco acrescentaria em termos versal para um grupo social que jamais foi posta é como financiar tal proposta, a partir
de desconcentração. Redistribuir renda no Bra- alvo, de forma conseqüente, de qualquer de recursos já existentes ou de possível re-
sil parece missão quase impossível. tipo de política social. manejamento. Quanto custaria a implementa-
ção integral dessa proposta (apenas custos
Tabela 7 – Impactos da imputação de renda no aumento relativo da renda das diretos), desconsiderando-se, no presente
pessoas mais pobres – Proporção da renda de 20% das pessoas mais momento, as despesas adicionais previstas a
pobres sobre a renda das 20% mais ricas – Brasil 2001 cada ano com a extensão da cobertura?
Distribuições % Para efeitos desse cálculo, reestimamos o
número de crianças a serem contempladas com
Real 3,1% uma renda básica em 2004, corrigindo o dado
de 2001 com base na taxa de crescimento
Crianças (R$ 90) 7,6%
populacional observada no período (5%). O
Crianças (R$ 60) 6,2% universo de crianças a serem contempladas
Crianças (R$ 30) 4,7% somaria 56,7 milhões em 2004. Foi também
necessário ajustar o valor do benefício (R$ 60,00
Suplicy (R$ 30) 6,3% ou um terço do salário mínimo vigente em
Idosos(as) (R$ 90) 3,2% 2001) a valores de hoje, o que equivaleria a
R$ 80,00.24 Com isso, o custo direto total do
Idosos(as) (R$ 60) 3,2%
Renda Básica alcançaria R$ 54,6 bilhões anu-
Fonte: Pnad/IBGE 2001. ais. Essa cifra toma proporções alarmantes num

Observatório da Cidadania 2004 / 73


país acostumado a financiar a área social resi- R$ 46,5 bilhões –, também como reflexo do Tampouco se pode desconsiderar o im-
dualmente, mas nos dá a dimensão exata da aumento na arrecadação de algumas fontes de pacto econômico resultante da implantação
desproporcionalidade do quadro de carên- receita do Sistema de Seguridade Social, como dessa proposta de renda básica, que acaba-
cia, desproteção e ausência de políticas uni- a Contribuição para o Financiamento da Segu- ria por gerar mais receita. A partir dos dados
versais que nos caracteriza. De imediato, parece ridade Social (Cofins), cuja previsão de arreca- do Sistema de Contas Nacionais, elaborado
impraticável enfrentar tal desafio. E a renda dação para 2004 é estimada em R$ 79 bilhões, pelo IBGE em 2002, e da Matriz de Insumo-
básica, enquanto benefício universal e incon- contra R$ 59 bilhões recolhidos em 2003. Com Produto de Leontief, podem-se estimar os
dicional, mais se assemelharia a mera ficção. isso o superávit do orçamento da Seguridade impactos diretos e indiretos do aumento do
Difícil é, mas não impossível. Pelo lado Social deve ampliar sua participação no bolo consumo final das famílias inicialmente bene-
das receitas, como alavancar recursos? Ora, da DRU, enquanto o gasto social (custeio e ficiadas, por meio da garantia de uma renda
as despesas previstas com programas de investimento) continua contingenciado. universal de R$ 80,00 mensais a todas as
tipo safety nets em 2004 – que seriam desa- crianças de até 16 anos. Tais impactos, distri-
tivados, pois estariam compensados por Modelo de renda básica buídos nos 42 setores da matriz, proporcio-
uma política universal voltada para a infância Da mesma maneira, uma redução da taxa bá- nariam a criação de 2,3 milhões de postos de
e juventude – somam, segundo previsões, sica de juros na economia, compatível com a trabalhos remunerados, gerando, por sua
R$ 11,5 bilhões (incluindo o Bolsa Família conjuntura econômica atual, permitiria uma vez, uma renda adicional de cerca de R$ 10
que sozinho está orçado em R$ 5 bilhões). diminuição expressiva das despesas com o bilhões. E a retomada do crescimento eco-
A concessão de um benefício universal e in- pagamento dos serviços da dívida pública fe- nômico, que volta como prioridade à agenda
condicional para crianças e jovens de todas deral, viabilizando o financiamento do proces- nacional, por meio de políticas e programas,
as classes sociais justificaria que fossem anu- so de implementação da renda básica. Assim, daria a sustentabilidade necessária à manu-
ladas as isenções fiscais do Imposto de Ren- pode-se calcular o impacto dessa medida. Para tenção e à expansão dessa proposta.
da com instrução,25 posto que seriam em tanto, considerou-se o estoque de dívida pú- Apesar da conjuntura bastante desfavorá-
parte compensadas pela obtenção da renda blica mobiliária federal interna atrelada a juros vel à implementação de políticas verdadeira-
básica (promovendo, portanto, desconcentra- pós-fixados (Letras Financeiras do Tesouro) mente redistributivas, raramente estivemos tão
ção de renda). Obter-se-ia algo em torno de – R$ 513 bilhões em maio de 2004. Admitin- próximos de poder instituir algo verdadeira-
R$ 900 milhões26 a mais para financiamento, do uma redução da taxa Selic27 de 16% para mente novo, porque universal, e de efeitos
além de favorecer mecanismos de coesão e 14%, o serviço anual da dívida seria diminuído substantivos na redução da desigualdade no
reciprocidade. Não é relevante em termos quan- em R$ 10,2 bilhões. Uma redução mais signi- país. A ocasião é esta. Desperdiçá-la pode ter
titativos, mas deve ser amealhado. Todas as ficativa, para 12%, levaria à disponibilização de custos bem mais onerosos para a nação. Cus-
pessoas são beneficiadas, e não apenas aque- R$ 20,5 bilhões para financiamento de outros tos dificilmente estimáveis: quanto custa con-
las que podem deduzir despesas com ensino gastos, notadamente sociais. denar à exclusão nossas gerações futuras?
privado e afins, justamente por disporem de Com isso, não é de todo impossível, em-
recursos para fazer valer suas preferências. bora sem dúvida engenhoso e desafiante, mo-
Outra fonte a ser considerada seria a bilizar recursos existentes – contingenciados Referências bibliográficas
suspensão da Desvinculação da Receita da ou desvinculados do orçamento social – ou DRAIBE, S. M. Uma nova institucionalidade das
União (DRU) referente ao orçamento da Se- previsíveis (derivados da redução da taxa de políticas sociais? – Reflexões a propósito da
guridade Social, que é superavitário, como experiência latino-americana recente de reformas
juros) numa ordem de grandeza, cuja varia- de programas sociais. São Paulo em Perspectiva ,
sabemos. Esse valor em 2004 será expres- ção permitiria introduzir o modelo proposto 11(4), 1997.
sivo – conforme prevê a Receita Federal, para dar início à renda básica no Brasil e, LAVINAS, L. Conditionnalité et innovation: un revenu
minimum pour la scolarisation des enfants au
com ele, a uma política de renda universal.
Mozambique. Issa, jun. 2003.
Para isso, evidentemente, é preciso redefinir
LAVINAS, L.; GARCIA, E. H. Programas sociais de
as prioridades atuais do país, restabelecen- combate à fome : o legado dos anos de estabilização
do o orçamento do social, hoje cativo da econômica. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.
24 O salário mínimo corrente em abril de 2004 era de ortodoxia monetarista. LAVINAS, L.; GARSON, S. Gasto social: Transparência sim,
R$ 240,00. parti-pris, não!. Econômica, Niterói, 2003.
25 Cabe observar que, para 2004, não haverá mais MESA-LAGO, C. Desarollo social, reforma del estado y
isenção fiscal de pessoa física com despesas de la seguridad social, al umbral del siglo XXI .
relativas a dependentes. Santiago, Chile: Cepal, 2000. (Series Politicas
26 A estimativa de ganho de receita com essa medida Sociales).
seria de aproximadamente R$ 900 milhões, segundo o MINISTÉRIO da Fazenda. Secretaria de Política Econômica.
documento “Demonstrativo dos gastos governamentais 27 Taxa de juros básica da economia, estabelecida pelo Gasto social no governo central. Econômica, Niterói, v.
indiretos de natureza tributária – 2004", SRF. Banco Central. 5, n. 1, p. 9-69, jun. 2003.

Observatório da Cidadania 2004 / 74


PANORAMA MUNDIAL
ANGOLA

A paz minada
A assinatura, em abril de 2002, dos Acordos de Luena, entre o governo do Movimento
Popular de Libertação de Angola (MPLA) e o movimento insurgente da União Nacional
para Independência Total de Angola (Unita), abriu caminho para um tenso período pós-
guerra. Os obstáculos à segurança humana são inumeráveis. Depois da guerra, caracterizada
pela destruição e pela pobreza, com milhares de pessoas mortas ou mutiladas por minas,
a resposta do governo tem sido repressão e terror.

Sindicato Nacional dos Professores (Sinprof) sejo de alcançar a reconciliação nacional e • extensão da administração estatal para
Miguel Filho o governo tenha anunciado planos para atingir todas as zonas do país;
superar a crise. • extensão dos serviços sanitários e edu-
A guerra em Angola continuou sem inter- A insegurança, fruto do desemprego e da cacionais a todas as comunidades;
rupções de 1975 até 2002, quando final- falta de alimentos básicos, continua presente • extensão dos serviços financeiros a
mente os acordos de paz foram assinados. em todo o país, mesmo agora, após o fim da todo o país.
guerra. A paz foi conseqüência da rendição de O principal obstáculo para implementar
Cerca de um milhão de mortos, 4 esse programa é a evidente falta de vontade
uma das facções em guerra, sendo marcada
milhões de pessoas deslocadas dentro política de alguns membros do governo, pois
pelo processo que a tornou possível – com
do país, mais de 500 mil refugiadas o Exército e a Polícia continuam recebendo a
suas insuficiências e improvisações.
(numa população de 12 milhões), maior parte das alocações orçamentárias.
Desde o fim da guerra, houve um cresci-
milhões de minas antipessoais enterradas Desde meados de 2003, as necessida-
mento alarmante da criminalidade. O retorno
e a destruição da infra-estrutura física des de sobrevivência geraram aumentos na
do país são o balanço de 27 anos de de centenas de milhares de ex-insurgentes
triplicou o desemprego e o subemprego, que demanda de empregos e na criminalidade.
enfrentamento armado entre o MPLA, no O governo respondeu com repressão. Ma-
governo desde 1979, e a Unita. [...] o atualmente afetam a metade da população. O
número de crianças que vivem nas ruas está nifestações de protestos organizadas pelos
Memorando de Entendimento (conhecido partidos políticos estão proibidas. Para con-
como MOU ou também Acordos de aumentando, assim como o número de pes-
soas mortas e mutiladas por minas deixadas fiscar as armas em poder da população, a
Luena), assinado em 4 de abril de 2002 polícia se comporta de forma terrorista e
pelo governo e a Unita, com base nos pelos exércitos de Cuba, da ex-União Soviéti-
ca e da África do Sul. usa apetrechos de guerra. Embora a Cons-
Acordos de Lusaka de 1994, abriu uma tituição não contemple a pena de morte, as
porta à esperança e uma oportunidade pessoas suspeitas de delinqüência são exe-
histórica de reconstruir um país Pobreza e repressão
cutadas em público. Foi criada uma brigada
totalmente devastado.1 Logo depois da assinatura dos acordos de antiterrorista especial, uma unidade policial
Os Acordos de Luena deveriam ter lan- paz, o gabinete ministerial anunciou as prio- para intervenções rápidas, assim como um
çado as bases para reconstruir o país, que, ridades do governo, enfatizando a reabertu- esquadrão de helicópteros e outro de cães.
após 30 anos de guerra, precisa de mu- ra das estradas principais para restabelecer Os seguranças presidenciais também estão
danças estruturais urgentes. No entanto, as comunicações e o transporte de pessoas envolvidos com a propagação do terror.
é evidente que, na prática, nada foi con- e bens. O orçamento do Programa Econô- Enquanto isso, o Poder Judiciário ainda
cretizado, embora as autoridades militares mico e Social de 2003–2004 determinava as não é independente do Executivo e não pos-
dos dois lados tenham declarado seu de- seguintes prioridades: sui os meios para manter a legalidade cons-
• abrigos de emergência, ajuda alimentar e titucional. Uma grave ameaça à segurança
serviços sanitários para as pessoas deslo- humana está no fato de que, na prática, não
cadas pela guerra e para suas famílias; se respeita o princípio da igualdade de todos
• ajuda para as crianças abandonadas; os cidadãos e cidadãs perante a lei. Um exem-
1 Intermón-Oxfam. Angola: construyendo la paz – Retos y • ajuda para pessoas portadoras de defi- plo são os diplomatas do MPLA julgados
perspectivas tras un año de la firma de los Acuerdos. ciência causada pela guerra; por corrupção, que têm a certeza de jamais
2003. Disponível em: <www.intermonoxfam.org/cms/HTML/
• reinserção na sociedade das pessoas pisarem em uma cadeia, ao contrário da-
espanol/86/Angola_construyendolapaz_mayo03.pdf>.
Acesso em: 8 out. 2004. deslocadas e de ex-combatentes; queles que estão na oposição.

Observatório da Cidadania 2004 / 76


Tabela 1 – Indicadores de Desenvolvimento Humano – 2003

Classificação segundo o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) 2003 164

População total (milhões) 2001 12,8

Crescimento demográfico anual (%) 1975–2001 2,8

População com menos de 15 anos (% do total) 2001 47,4

População com mais de 65 anos (% do total) 2001 2,7

PIB (US$ bilhões) 2001 9,5

PIB per capita (US$) 2001 701

População com acesso a saneamento adequado (%) 2000 44

População com acesso a fontes de água melhorada (%) 2000 38

Partos atendidos por pessoal de saúde qualificado (%) 1995–2001 23

Médicos(as) (por 100.000 habitantes) 1990–2002 5

Pessoas desnutridas (% da população total) 1998–2000 50

Esperança de vida ao nascer (anos) 2000–2005 40,1

Mortalidade infantil (para cada 1.000 crianças nascidas vivas) 2001 154

Mortalidade de menores de 5 anos (para cada 1.000 crianças nascidas vivas) 2001 260

Mortalidade materna (para cada 100.000 crianças nascidas vivas) 1995 1.300

Coeficiente líquido de matrículas no primário (%) 2000–2001 37

Analfabetismo de pessoas adultas (% de 15 anos ou mais) 2001 42

Gastos públicos com educação (% do PIB) 1998–2000 2,7

Gastos públicos com saúde (% do PIB) 2000 2

Gastos militares (% do PIB) 2001 3,1

Serviço total da dívida (% do PIB) 2001 19,7

Deslocados internos (milhares) 2001 202

Total das forças armadas (milhares) 2001 100

Índice das Forças Armadas Total (1985=100) 2001 202

Fonte: Pnud ( Relatório de Desenvolvimento Humano – 2003 ) e Unicef (Estado Mundial da Infância – 2000 ).

Observatório da Cidadania 2004 / 77


Sem escolas ou atendimento médico não têm materiais de ensino, programas ou As minas terrestres continuam a ser uma
Um dos pilares para construir a segurança livros didáticos para suas aulas e seu salário causa significativa de morte na zona rural. Se-
humana a curto prazo é a educação. Por meio mensal médio é cerca de US$ 70. gundo o Instituto Nacional para a Remoção de
dela, adquire-se consciência da importância Em relação à saúde, existe um(a) Explosivos, morrem cerca de 10 pessoas por
da liberdade e do direito à vida. Porém, esse médico(a) para cada 20 mil habitantes e so- dia, durante o trabalho ou quando procuram
privilégio está fora do alcance de muitas cri- mente 30% da população tem acesso a aten- alimentos em campos minados. Existem apro-
anças. Há pouquíssimas escolas – em algu- dimento médico. A mortalidade infantil supera ximadamente 10 milhões de minas não-deto-
mas zonas, não existe nenhuma – e conseguir 154 para cada mil crianças nascidas vivas, e nadas no país. A explosão de minas já mutilou
uma vaga significa expor-se à corrupção a esperança de vida é de menos de 40 anos. 70 mil pessoas, das quais 8 mil eram crianças.4
imperante no sistema educacional.2 As ONGs Durante a guerra, 65% da infra-estrutura de As vítimas dessas minas, civis ou militares, não
enfrentaram esse problema. A Fundação saneamento foi destruída.3 recebem o atendimento médico necessário.
Evangelizadora e Cultural da Igreja Católica, No fim de 2003, o governo ainda não A ajuda financeira do governo é escas-
por exemplo, contratou professores(as) e tinha recuperado nenhuma estrada impor- sa; por isso, procura-se ajuda internacional
educadores(as) em Portugal para projetos tante. O governo não tem os meios para para desativar as minas e fornecer mem-
educativos no interior do país. fornecer alimentos às pessoas mais ne- bros artificiais às vítimas. Uma reunião de
De acordo com o Ministério da Educa- cessitadas ou aos centros populacionais países africanos sobre minas terrestres pro-
ção, cerca de 3 milhões de crianças e jovens mais remotos, como os acampamentos curará adotar uma posição conjunta a ser
estão na escola, enquanto mais 40 mil per- de refugiados para ex-insurgentes e suas apresentada na conferência que fará a revi-
manecem nas ruas esperando a construção famílias, onde aumenta o número de mor- são da Convenção de Ottawa, a ser realizada
de mais escolas. Professores e professoras tes por fome. no Quênia no fim de 2004.5

4 Ibidem.
5 A Primeira Conferência de Revisão (“Cúpula de Nairóbi
sobre um Mundo sem Minas 2004”) será realizada de
29 de novembro a 3 de dezembro de 2004 em Nairóbi,
2 Informação do Guía del Mundo 2005-2006, disponível 3 Ver <www.ibacom.es/Unicef/emergencia>. Acesso em: Quênia. Informações podem ser obtidas em:
na Internet. 8 out. 2004. <www.icbl.org/reviewconference/>.

Observatório da Cidadania 2004 / 78


ARG E NTI NA

Reconstrução depois da crise


As mudanças no sistema político-institucional, depois da crise de 2001, fizeram com que
amplos setores da sociedade voltassem a considerar a política uma ferramenta adequada
para modificar as condições materiais de vida da população. No entanto, a magnitude da
crise social exige medidas urgentes que garantam o pleno exercício dos direitos econômicos,
sociais e culturais de todo o povo argentino. Isso implica conseguir o crescimento sustentado
da economia, a mudança de lógica na formulação e implementação das políticas econômicas
e sociais, assim como da relação do governo com os organismos multilaterais de crédito.

Centro de Estudos Legais e Sociais (Cels) do, a mudança da cúpula das Forças Armadas, reverter essa ação, a atitude equivocada do go-
– Programa de Direitos Econômicos, que procurava fazer um pacto de impunidade, a verno criou um precedente perigoso ao dar a
Sociais e Culturais abertura dos arquivos públicos de segurança e idéia de que a criminalização dos protestos so-
Jimena Garrote e Luis Ernesto Campos inteligência e a anulação pelo Parlamento das ciais continua sendo uma opção política viável.6
leis de Obediência Devida e do Ponto Final.3 A relação existente entre as discussões
O governo de transição dirigido por Eduar- No entanto, os principais indicadores sobre a reformulação institucional, a evolu-
do Duhalde chegou ao fim em 25 de maio que caracterizavam a crise social e econô- ção dos indicadores sociais e econômicos e a
de 2003, quando Néstor Kirchner assumiu mica se mantêm com valores incompatíveis resposta do governo aos protestos sociais
a presidência. Em termos institucionais, essa com o desenvolvimento pleno de uma ver- permite a análise da situação da Argentina
mudança significou um ponto de inflexão. dadeira democracia. quase três anos depois da crise política e ins-
Um passo importante para recuperar O novo governo teve posições ambíguas titucional de dezembro de 2001.
gradualmente a legitimidade do sistema po- em relação à criminalização dos protestos soci-
lítico e a cultura democrática foi o apoio da ais. Embora tenha existido um processo de Indicadores continuam alarmantes
sociedade ao processo de renovação da Cor- aproximação das organizações sociais mais afe- Embora os indicadores macroeconômicos te-
te Suprema de Justiça e a criação de um novo tadas por essa prática, o governo foi incapaz nham começado a dar sinais de recuperação
procedimento participativo para a seleção de de criar uma solução jurídica para os casos de desde o primeiro trimestre de 2003, as conse-
juízes e juízas.1 Assim, foram concretizados pessoas que estão sendo processadas por par- qüências da aplicação das políticas neoliberais
importantes avanços na reconstrução da le- ticiparem de protestos sociais.4 Em outubro durante a década de 1990 são ainda visíveis.
gitimidade desse tribunal superior e do criti- de 2003, o governo reagiu duramente a uma De acordo com informações oficiais, em
cado sistema de justiça em geral, expoentes manifestação das organizações piqueteiras5 e maio de 2003, os 10% mais pobres da Argen-
claros da crise institucional argentina.2 iniciou uma ação penal contra elas. Embora tina se apropriavam de 0,9% da renda, enquanto
Outras medidas tomadas pelo novo gover- tenha posteriormente tomado medidas para os 10% mais ricos ficavam com 44,6%.7 Quase
no, que representaram uma modificação subs- um ano depois da instauração do novo gover-
tancial no processo de fortalecimento das no, não se nota a formulação de uma política
instituições democráticas, foram a reabertura das específica para modificar essa tendência.
ações judiciais por crimes de terrorismo de Esta- 3 Entre as medidas adotadas estão a anulação do
decreto que proibia a extradição de militares acusados
de crimes de lesa-humanidade e a aprovação, com
status constitucional, da Convenção das Nações 6 O governo atuou de modo similar quando propôs a
Unidas sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de criação de um grupo especial da polícia (essa
Guerra e dos Crimes de Lesa-humanidade. proposta foi depois abandonada), que não portaria
1 O novo procedimento para indicação de membros da 4 Segundo estimativas da Central de Trabalhadores armas de fogo e negociaria com dirigentes das
Corte Suprema de Justiça levou em conta as propostas Argentinos, mais de 4 mil pessoas enfrentam mobilizações sociais. Essa proposta dava à polícia um
que um grupo de organizações da sociedade civil processos criminais por terem participado de papel central na resolução de conflitos sociais,
havia formulado durante o ano de 2002 e que estão no mobilizações. reduzindo as demandas originais dos manifestantes à
documento “Uma corte para a democracia”. Os textos 5 Uma das conseqüências mais visíveis da crise social luta pelo espaço público e ignorando que o dever
completos podem ser lidos em <www.cels.org.ar>. da década de 1990 foi o surgimento de numerosas básico do Estado é proteger – e não desativar –
2 Centro de Estudos Legais e Sociais (Cels). La organizações de base que utilizavam como principal manifestantes.
respuesta del Estado a la crisis social. In: Derechos instrumento de protesto o bloqueio de estradas 7 Instituto Nacional de Estatística e Censo (Indec).
humanos en Argentina: Informe 2002–2003. Informe nacionais, também chamados de piquetes. Daí provém Encuesta Permanente de Hogares (EPH), Ingresos para
anual. Buenos Aires: Siglo XXI, 2003. a denominação de organizações piqueteiras. el total de aglomerados urbanos. Maio de 2003.

Observatório da Cidadania 2004 / 79


Uma pesquisa realizada no terceiro tri- de risco nutricional. A incidência do risco medida paliativa e assistencial destinada a
mestre de 2003 verificou que 14,8% da po- nutricional nessa população reflete os aplacar o conflito social de características
pulação economicamente ativa estava efeitos de uma crise prolongada, à qual inéditas, que ameaçava a continuidade do
desempregada e 15,2% dela estava subem- se soma posteriormente o início de um sistema político institucional.
pregada. Isso significa que há pelo menos processo inflacionário, que teve seqüelas Na prática, longe de sua pretensão de
3,5 milhões de pessoas com problemas de mais fortes entre os setores mais consagrar um direito, o programa limitou-se
acesso ao trabalho e procurando ativamen- vulneráveis. De fato, entre maio de 1998 a distribuir precários benefícios assistenciais.
te uma ocupação.8 e outubro de 2002, mais do que O caráter temporário dos benefícios, sua falta
Esses números, no entanto, não refletem duplicou a população de crianças que de universalidade e a imposição de um prazo
a problemática do país em toda sua magni- não têm asseguradas condições máximo para serem solicitados negam a exis-
tude, pois o estudo foi realizado em apenas mínimas de alimentação e cujo tência de um direito social e mantêm o pro-
28 áreas urbanas, que agrupam aproxima- crescimento e desenvolvimento estão grama dentro da lógica dos benefícios
damente 64% da população. Portanto, o concretamente ameaçados.13 assistenciais sem direitos, que caracterizavam
número de pessoas com problemas de tra- Nesse grupo, mais da metade (ou 23,3% as políticas sociais na década de 1990.16
balho é ainda maior. Além disso, esse indica- do total) das crianças estão numa situação O governo não implementou modifica-
dor está distorcido pela existência do crítica de risco. ções substanciais na formulação do progra-
Programa de Chefes de Família Desempre- As últimas estatísticas oficiais (2002) de ma e, portanto, os problemas mencionados
gados, porque, se forem considerados como mortalidade de menores de 1 ano indicam o continuam existindo. Ao contrário, a nova
desempregadas todas as pessoas cuja prin- número alarmante de 11.702 mortes anu- administração decidiu priorizar e fortalecer
cipal ocupação provém desse programa, a ais, ou seja, uma taxa de mortalidade infantil programas sociais que não possuem critéri-
taxa de desemprego subirá para 21,4%. de 16,8 para cada mil. Desse total, 6.898 os objetivos para justificar a inclusão ou a
De acordo com as últimas informações são consideradas mortes evitáveis.14 Com exclusão de pessoas beneficiárias em idênti-
oficiais disponíveis,9 54,7% da população relação a esse indicador, é preciso destacar ca situação de vulnerabilidade de direitos.
(pouco menos de 20 milhões pessoas) vivia que foi o primeiro aumento percentual re-
abaixo da linha de pobreza,10 e 26,3% (cer- gistrado no país desde 1995 e o maior in- Tarifas dos serviços públicos
ca de 9,5 milhões) estavam abaixo da linha cremento anual desde 1986 – num contexto Durante a década de 1990, a lógica de inter-
de pobreza extrema,11 em maio de 2003. internacional de queda desse indicador.15 venção em assuntos econômicos e sociais
A proporção de crianças e adolescentes foi determinada pela relação entre o gover-
pobres ou que vivem na pobreza extrema é Respostas ineficazes do governo no e os organismos multilaterais de crédito,
ainda maior. No segundo semestre de 2003, provocando a maior crise social e institucio-
A principal ferramenta estatal para dar res-
63,4% da população abaixo dos 14 anos nal da história argentina. Os aumentos sem
postas à crise social e econômica continuou
viviam abaixo da linha de pobreza, enquanto precedentes dos níveis de pobreza e de indi-
sendo, quase exclusivamente, o Programa
30,1% estavam na pobreza extrema.12 gência e a impossibilidade de setores cada
Chefes de Família Desempregados, que existe
Segundo um informe oficial, vez maiores da população exercerem de for-
desde o início de 2002. O programa estabe-
em outubro de 2002, 46,1% das leceu um benefício de 150 pesos argentinos ma efetiva seus direitos econômicos, sociais
crianças menores de 2 anos das áreas (cerca de US$ 40) para todas as pessoas e culturais acompanharam a implementação
urbanas do país (cerca de 332 mil que chefiam famílias e que estejam desem- das políticas fomentadas pelos organismos
crianças) se encontravam em situação pregadas, com filhos menores de 18 anos. financeiros internacionais.
Esse valor representava um pouco menos Nos últimos dois anos, um tema central
da metade do necessário para satisfazer as das discussões entre o governo e o Fundo
necessidades básicas alimentares de uma Monetário Internacional (FMI) tem sido a ten-
família típica. Com o passar do tempo, ficou tativa permanente do Fundo de aumentar as
evidente que não se tratava de uma estraté- tarifas dos serviços públicos privatizados.
8 Indec. Mercado de trabajo: principales indicadores (3o
trimestre 2003), de acordo com a nova Pesquisa gia séria para combater a pobreza mediante Desde que as negociações foram reatadas,
Permanente de Domicílios. Dezembro de 2003. a distribuição eqüitativa da renda, mas de em janeiro de 2002, o FMI enfatizou as per-
9 Indec. EPH. Maio de 2003. das sofridas pelas empresas privatizadas cau-
10 Segundo o Indec, o método da “linha de pobreza” sadas pela desvalorização, insistindo na
consiste em estabelecer se a renda dos domicílios é
suficiente para comprar bens e serviços que
necessidade de aumentar as tarifas, embora
satisfaçam um conjunto de necessidades alimentares tivesse sido demonstrado que era insusten-
e não-alimentares consideradas essenciais. 13 Sistema de Informação, Avaliação e Monitoramento tável para as pessoas mais pobres a política
11 A “linha de pobreza extrema” do Indec procura dos Programas Sociais (Siempro). Riesgo nutricional
en niños menores de 2 años. Julho de 2003.
de reajustes sobre reajustes.
estabelecer se a renda dos domicílios é suficiente
para cobrir uma cesta básica de alimentos capaz de 14 Ministério da Saúde e Ação Social. Estadísticas vitales,
satisfazer um limiar mínimo de necessidades información básica, año 2002. Dezembro de 2003. Ver
energéticas e protéicas. também: Decides (Democracia, Cidadania e Direito à
12 Em sete províncias (Entre Ríos, Corrientes, Chaco, Saúde). Aparecen otras víctimas del golpe de
Tucumán, Misiones, Jujuy e Salta), a pobreza de menores mercado. Buenos Aires, fevereiro de 2004. 16 Para uma análise do funcionamento do programa, ver o
de 18 anos superava 80%, e em cinco (Entre Ríos, 15 Indec. Tasas de mortalidad infantil por división texto “Diretos civis, viés para a reconstrução
Corrientes, Chaco, Misiones e Salta) a pobreza extrema político-territorial de residencia de la madre. democrática”, incluído no Observatório da Cidadania
ultrapassava 50%. Indec. EPH. Outubro de 2002. Disponível em: <www.indec.gov.ar>. 2003: população pobre versus mercado (Ibase, 2003).

Observatório da Cidadania 2004 / 80


Na conjuntura atual, um aumento gene- que as pessoas com recursos menores pu- As primeiras decisões do novo governo
ralizado das tarifas dos serviços públicos sig- dessem pagar serviços; por isso, o aumen- modificaram a composição da Corte Supre-
nificaria condenar a maioria da população à to era viável.19 ma de Justiça e impulsionaram medidas con-
subsistência em condições ainda mais in- Depois que o presidente Kirchner assu- tra a impunidade das violações de direitos
dignas, impedindo ou criando obstáculos miu o governo, parece que essa atitude com- humanos na ditadura militar iniciada em
ao acesso a serviços essenciais, como água, placente foi modificada, pois, diferentemente 1976. Isso contribuiu para que amplos se-
eletricidade e gás. do governo de transição, essa nova adminis- tores da sociedade voltassem a considerar a
Esse pedido de aumento de tarifas exi- tração tem respeitado a ordem jurídica vigen- política uma ferramenta adequada para mo-
gido constantemente pelo FMI parece aten- te em relação à renegociação dos contratos dificar as condições materiais de vida da
der à proteção dos interesses empresariais. dos serviços públicos, sem tentar conceder população.
Na verdade, as autoridades do FMI repre- aumentos de tarifas fora desse processo. No entanto, a magnitude da crise social
sentam vários dos países que têm interes- No entanto, o Poder Executivo sancio- exige, de parte do governo, a adoção de
ses econômicos concretos no desempenho nou uma nova lei que modifica a Lei de Emer- medidas urgentes que garantam o exercí-
das empresas privatizadas. Isso afeta sua gência Econômica, que regulava o cio pleno dos direitos econômicos, sociais
imparcialidade e faz supor que atuam em procedimento de aumento de tarifas. En- e culturais de toda a população – único
defesa dos interesses de seus países, e não quanto esta lei subordinava qualquer tipo de modo de reconstruir uma democracia ver-
de um organismo internacional que não de- aumento ao resultado da renegociação inte- dadeira. Isso implica conseguir um cresci-
veria representar em maior medida nenhum gral de cada contrato, garantindo que não mento sustentado da economia, assim
país do mundo. fossem adotadas medidas equivocadas, a como uma mudança de lógica na formula-
Essas pressões motivaram as tentati- nova modificação permite que o Executivo ção e implementação das políticas econô-
vas reiteradas do ex-presidente Duhalde autorize aumentos de tarifas de serviços pú- micas e sociais que possibilite uma
de aumentar as tarifas dos serviços públi- blicos mesmo antes do término da renego- distribuição justa da riqueza gerada pelo
cos, fora do processo de renegociação dos ciação dos contratos. Embora o governo país. Nessa linha, é fundamental que a rela-
contratos com as empresas privatizadas. ainda não tenha tentado aumentar as tarifas ção da Argentina com os organismos mul-
A atitude, além de moralmente questioná- dos serviços, poderá fazê-lo a qualquer mo- tilaterais de crédito respeite esses mesmos
vel, tendo em conta a precarização da situ- mento, pois já conta com os elementos jurí- critérios e deixe de ser um obstáculo ao
ação social, é contrária às leis argentinas17 dicos para isso.20 Se isso acontecer, setores desenvolvimento social do país.
e ao próprio Convênio Constitutivo do amplos ficariam impossibilitados de ter aces- A incipiente recuperação econômica que
FMI.18 Por essa razão, os aumentos foram so a serviços públicos essenciais, tornando começou no início de 2003 impõe ao gover-
bloqueados judicialmente e, até o momen- cada vez mais precário o pleno exercício dos no um grande desafio. É imprescindível en-
to, não se concretizaram. direitos econômicos, sociais e culturais. frentar a discussão sobre a distribuição da
No entanto, a exigência parece seguir, riqueza gerada pelo país, evitando um pro-
agora, com o argumento manifestado pelo Reconstruindo a democracia cesso similar ao da década de 1990 – quan-
diretor do Departamento do Hemisfério Oci- As mudanças no sistema político institucional do um aumento substancial dos níveis de
dental do Fundo, Anoop Singh, em sua visi- depois da crise de dezembro de 2001 permiti- atividade econômica foi acompanhado por
ta à Argentina, segundo o qual o Programa ram que o centro do debate político voltasse a uma crise social sem precedentes na histó-
dos Chefes de Família Desempregados tinha girar em torno dos aspectos que definem o ria do país –, garantindo efetivamente o for-
sido implementado, entre outras razões, para processo de reconstrução democrática do país. talecimento das instituições democráticas.

19 As pressões exercidas pelo FMI para aumentar as tarifas


17 Depois da desvalorização de janeiro de 2002, o Congresso dos serviços públicos, contrárias à legislação argentina
Nacional aprovou a Lei de Emergência Econômica, e ao Convênio Constitutivo do FMI, foram denunciadas
autorizando o governo a renegociar os contratos com as por organizações de usuários(as) e consumidores(as) e
empresas privatizadas para adequá-los ao novo cenário pelo Cels ao Escritório de Avaliação Independente do
econômico. Essa lei previa que o aumento da tarifas Fundo. Mais informações sobre esse tema estão
somente poderia ocorrer no marco de uma renegociação disponíveis em: <www.cels.org.ar/Site_cels/
integral, na qual fosse analisada a totalidade de cada documentos/presentacion_tarifas.pdf>. Acesso em: 9
contrato, com a participação de todas as partes nov. 2004.
interessadas, incluindo as pessoas consumidoras. 20 Além disso, a reforma legislativa limitou a
18 Artigo 12, seção 4 do Convênio Constitutivo do FMI. participação do Congresso na revisão dos novos
textos contratuais (uma vez renegociados).

Observatório da Cidadania 2004 / 81


CANADÁ

Trocando segurança humana por equilíbrio fiscal


Após uma série de superávits orçamentários nos últimos seis anos, o Canadá é a única nação do
G-7 que prevê superávits no seu orçamento. Refletindo sobre esse período de luxo econômico
e fiscal, será o país acusado no futuro de haver desperdiçado essa oportunidade fiscal única? O
Canadá parece convencido de investir menos no seu próprio povo e nos países em
desenvolvimento – o futuro do planeta – para ter um “Estado mínimo”. Uma chance que aparece
uma única vez na vida de investir no desenvolvimento humano pode ser desperdiçada para reduzir
um pouco mais a dívida e para aumentar um pouco mais os gastos de consumidores e consumidoras.

Centro Canadense para Alternativas O Canadá liderou o mundo industriali- go. Desde a década de 1980, os salários
de Políticas Públicas zado na redução da escala de financiamen- estão, na sua maioria, estagnados ou em
Armine Yalnizyan to dos serviços públicos. Somente no nível declínio. Cortes profundos nos gastos go-
federal, numa tentativa explícita de ter um vernamentais na década de 1990 tiveram
Desde 1993, a economia canadense cresceu Estado pequeno permanente, os gastos como conseqüência uma redução marcante
66% em termos nominais e 41% com o ajus- com os programas encolheram de 16,8% nos benefícios públicos. Moradia, educação
te da inflação.1 Isso significa US$ 361 bilhões do PIB para 11,5% entre 1992–1993 e e saúde tornaram-se menos acessíveis, tan-
por ano a mais do que na década anterior, e 2002–2003, exemplificando o compromis- to em termos de custos como de quantida-
esse valor continua crescendo. A capacidade so do governo canadense com a “filosofia de disponível, para um número crescente
de financiar iniciativas de desenvolvimento de que menos é mais”. de canadenses. Os cortes afetaram a quali-
social é hoje enormemente superior, porém A segurança humana está baseada dade da água e levaram à sua contamina-
isso não é uma prioridade política. numa cultura de desenvolvimento huma- ção, provocando doenças em milhares de
Em termos fiscais, o Canadá parece mui- no, enunciada pela primeira vez na Declara- pessoas e, pelo menos, sete mortes.2
tíssimo seguro. No entanto, o próprio enfoque ção Universal dos Direitos Humanos
político que levou aos superávits fiscais tam- (1948). Essas metas foram reforçadas em Cortes de gastos e receitas crescentes
bém determinou a escassez de recursos pú- 1976 com o Pacto Internacional dos Direi- Do início da década de 1990 até um período
blicos para proteger a segurança humana tos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc) bem avançado da era dos superávits e do
básica. Essa escassez foi planejada, sendo o e reafirmadas repetidamente por centenas “miniorçamento” de outubro de 2000, a ên-
produto de um compromisso político com a de nações em todo o mundo: os dez com- fase foi livrar-se do oneroso Estado de bem-
agenda de cortes de impostos e de uma redu- promissos da Declaração de Copenhague estar social, tornando-o um Estado mínimo.
ção agressiva da dívida. A política canadense sobre o Desenvolvimento Social (1995), as No orçamento de 1995, houve os maio-
na era dos superávits – 1998 a 2003 – não se 12 áreas críticas de preocupação sobre a res cortes de programas da história do Cana-
desviou significativamente da rota traçada du- igualdade entre os gêneros enunciadas na dá. Os maiores valores vieram de cortes nos
rante a era dos déficits. Os investimentos em Plataforma de Ação de Pequim (1995) e, benefícios de apoio à renda (por meio da re-
bens e serviços públicos que melhoram a se- mais recentemente, as oito Metas de De- dução dos benefícios do seguro-desemprego
gurança humana têm sido limitados, em favor senvolvimento do Milênio (2000). pagos a pessoas desempregadas), gastos com
de onerosos cortes de impostos e medidas de Todos esses documentos têm em comum defesa e com desenvolvimento de recursos
redução da dívida. O compromisso com um o reconhecimento de que, para conviverem humanos. Os fundos dos Departamentos de
“Estado mínimo” tem coincidido com econo- harmoniosamente e se desenvolverem Transporte, Recursos Naturais e Desenvolvi-
mias maiores, mas também com uma cres- como indivíduos, as pessoas necessitam mento Regional foram cortados pela metade.
cente insegurança econômica. de segurança, habitação adequada, ali- Repasses às províncias para atendimento às
mentos, renda, acesso à água potável, aten-
dimento à saúde e educação. Isso é tão
verdadeiro no Canadá quanto nas nações
em desenvolvimento.
2 YALNIZYAN, Armine. The road from Monterrey: a
1 Estatísticas do Canadá disponíveis em National Income Muito antes dos eventos de 11 de se- caution from Canada. Social Watch 2002: The social
and Expenditure Accounts, Quarterly Estimates, Second tembro de 2001, o povo canadense viu sua impact of globalization in the world. Montevidéu: Social
Quarter 2003. (Catálogo n. 13-001-PPB). Watch, 2002, p. 96-99.
própria segurança humana posta em peri-

Observatório da Cidadania 2004 / 82


áreas de saúde, educação pós-secundária e rante um período de cinco anos para a lhão de fundos de superávits foi separa-
assistência social também sofreram cortes pro- polícia e serviços de inteligência, pre- do para o desenvolvimento de grandes
fundos, após uma década em que esses fun- paração para emergências, segurança obras estratégicas de infra-estrutura,
dos não tinham acompanhado o ritmo do aérea, segurança das fronteiras e o con- como auto-estradas, transporte urba-
crescimento econômico.3 Os municípios do trole das pessoas que entram no Cana- no e tratamento de esgoto. Esses re-
Canadá também perderam apoio federal para dá. Foi criado um novo Departamento de cursos seriam utilizados durante o
programas habitacionais destinados a setores Segurança, e o orçamento de defesa re- período de cinco anos, a começar em
de baixa renda. ceberá uma injeção significativa de re- 2003. No ano passado, o governo fe-
Numa economia em expansão, os cor- cursos. Recentemente, o governo deral anunciou que financiaria outros
tes profundos nos gastos e as receitas cres- anunciou um plano decenal de US$ 750 US$ 2,25 bilhões ao longo de dez anos
centes produziram resultados mais rápidos milhões para apoiar a iniciativa do G-8 para projetos estratégicos e municipais
do que os esperados: surgiram rapidamen- contra a disseminação de armas de des- de infra-estrutura. Em 2003, mais US$
te grandes superávits. Entre 1998 e 2003, truição em massa. Até o momento, US$ 1,5 bilhão foi destinado à produção de
seis anos de grandes superávits orçamentá- 4,3 bilhões foram gastos, com um míni- energia e medidas de conservação, por
rios criaram uma era favorável às escolhas. mo de US$ 8,7 bilhões comprometidos meio da iniciativa qüinqüenal de mudan-
No entanto, permaneceu o foco nos cortes para o período de 2008–2009. ça climática. Ainda não está confirmado
de impostos e na redução da dívida. As inici- que montante desses recursos foi libe-
• Saúde pública. No ano 2000, foi anun-
ativas e os investimentos públicos relativos à rado até o momento. A maior parte só
ciado o compromisso de US$ 15,8 bi-
segurança humana estão resumidos a se- estaria disponível em 2003–2004.
lhões, durante o período de cinco anos,
guir, ordenados segundo o volume do com- em novos fundos federais, direcionados • Ajuda internacional. O governo federal
promisso financeiro. principalmente ao atendimento à saú- prometeu duplicar a ajuda internacional
de. O governo anunciou outro acordo até 2010, tendo como base os níveis de
• Agenda da criança. Os benefícios para
qüinqüenal de saúde, no valor de US$ 2001–2002 de aproximadamente US$
as crianças concedidos por meio do sis-
26,2 bilhões, em 2003. Isso foi uma 1,6 bilhão, com uma taxa anual de cres-
tema de impostos foram aumentados
resposta ao sentimento crescente de cimento de 8%. Foi criado o Fundo Áfri-
para mães e pais trabalhadores mais
crise na saúde pública, um problema ca, com recursos de US$ 376 milhões
pobres (excluindo quem recebia assis-
que teve sua origem na redução inicial para os próximos três anos, destina-
tência pública). A duração da licença-
de fundos do governo federal na déca- dos a iniciativas naquele continente, o
maternidade e da licença-paternidade
da de 1990. Até o momento, foram que corresponde à metade do cresci-
dobrou para um ano, no caso do(a)
alocados diretamente à saúde US$ 4 mento da ajuda internacional para o de-
primeiro(a) filho(a), porém somente a
bilhões, com outros US$ 21,8 bilhões senvolvimento a ser recebida pela África
quem tinha direito aos benefícios do
prometidos para o futuro.4 nos próximos anos. O governo tam-
seguro-desemprego (muitas pessoas no
bém concedeu US$ 224,7 milhões para
Canadá não cumprem os requisitos para • Infra-estrutura. Cerca de US$ 2 bilhões
a redução da dívida dos Países Pobres
recebê-lo). Foi lançado um modesto pla- foram separados para conserto e cons-
Altamente Endividados (HIPC, na sigla
no de cinco anos sobre os cuidados com trução de estradas, pontes, cais, habita-
em inglês) e outros US$ 56,4 milhões
a criança e seu desenvolvimento na pri- ção e infra-estrutura “verde”,NT ao longo
para o fundo de investimentos dos
meira infância. Essas mudanças totali- de um período de cinco anos. A maior
parte desses recursos ainda não come- HIPC. Até o momento, cerca de US$
zaram US$ 6,8 bilhões até o momento.
çou a ser liberada.5 Outro US$ 1,5 bi- 1,65 bilhão foi empregado na melhoria
Cerca de US$ 7,8 bilhões a mais serão
da ajuda internacional na era dos supe-
empregados até abril de 2005.
rávits e outro US$ 1,65 bilhão está pro-
• Segurança nacional. Em conseqüência metido para 2010.
dos eventos de 11 setembro, o gover- Atualmente, a ajuda internacional
no federal alocou US$ 5,8 bilhões du- representa 0,26% do PIB ou US$ 2,3
4 YALNIZYAN, Armine. Squandering the surplus. Ottawa:
Centro Canadense para Alternativas de Políticas bilhões numa economia de US$ 900
Públicas. No prelo. bilhões. A meta explícita da comunidade
NT O conceito de infra-estrutura “verde” considera o ar, internacional, expressa pela primeira vez
a terra e a água tão importantes quanto a infra-
em 1969 pelo então embaixador do Ca-
3 YALNIZYAN, Armine. Paul Martin’s permanent estrutura construída ou “cinzenta”, valorizando os
revolution. Ottawa: Centro Canadense para Alternativas espaços abertos. nadá na Organização das Nações Unidas
de Políticas Públicas, 26 jan. 2004. (Alternative Federal 5 Departamento de Finanças do Canadá. The Budget Plan (ONU), o ex-primeiro-ministro Lester
Budget Working Paper n.3). 2000, p. 121. Pearson, é que as nações desenvolvidas

Observatório da Cidadania 2004 / 83


separem 0,7% do seu PIB para dar apoio • Redução da dívida. Desde 1998, os su- Novo governo, velhos compromissos?
aos países em desenvolvimento. Quan- perávits do orçamento federal também Os fatores que geram segurança no Canadá
do a ajuda internacional houver duplica- têm sido utilizados para reduzir a dívida. são os mesmos que geram segurança nos
do e atingido US$ 3,15 bilhões, a Até hoje, os pagamentos totalizaram US$ outros países: habitação barata, água potá-
economia também terá crescido no mes- 39,3 bilhões. Os planos orçamentários vel, acesso a saúde e educação. Os superá-
mo ritmo. Mesmo considerando taxas incluem uma linha para contingências de vits no Canadá oferecem os recursos
de crescimento conservadoras (em mé- US$ 2,25 bilhões por ano, que automa- imediatos para apoiar uma política vigorosa
dia 2,8% ao ano), aqueles US$ 3,15 bi- ticamente são aplicados na redução da e eficaz que aumente a segurança humana e
lhões representarão somente 0,28% do dívida se não forem utilizados. Os supe- o desenvolvimento, no país e no exterior. No
PIB em 2010–2011. Embora seja um rávits superaram essa quantia nos últi- entanto, essa oportunidade fiscal não se re-
avanço, não atenderão às necessidades, mos seis anos. A utilização anual de todo flete na vontade política.
nem cumprirão a meta estabelecida. o orçamento para contingências (US$ Com cerca de US$ 37,6 bilhões de su-
• Habitação de baixo custo. O governo 2,25 bilhões) reduzirá a dívida a 39,6% perávit nos próximos cinco anos, uma mé-
federal anunciou uma iniciativa de cus- do PIB até 2004–2005. Se nada for feito, dia de US$ 7,5 bilhões “extras” por ano, o
to compartilhado para lidar com o pro- mas for permitido o livre crescimento da governo federal poderia facilmente assegu-
blema das pessoas sem casa, no valor economia, aquela relação cairá para rar seu apoio às necessidades básicas. Uma
de US$ 752 milhões, para serem utili- 40,1%.7 O novo primeiro-ministro, Paul análise criteriosa mostra que os seguintes
zados até 2007–2008. Isso foi uma Martin, declarou que a meta deve ser uma aumentos anuais do financiamento federal,
resposta à declaração de Desastre Na- redução da dívida de 25% do PIB.8 acima dos atuais níveis de compromissos
cional da Habitação feita pelas prefeitu-
ras das maiores cidades do Canadá em
Gráfico 1 – As prioridades de um governo seguro – Iniciativas federais desde o
1998. A iniciativa foi anunciada três ve- início dos superávits orçamentários
zes de várias formas desde o ano de
1999. Entretanto, só uma pequena parte
desses recursos foi realmente gasta –
US$ 66,2 milhões até o momento –
porque o dinheiro estava condiciona-
do à liberação de fundos equivalentes
por parte das províncias e ao início de
novas construções. Porém, no mesmo
período, as províncias estavam igual-
mente concentradas em limitar os gas-
tos com programas. Essas cifras são
ofuscadas pelas iniciativas para cortar
impostos e reduzir a dívida.
• Cortes de impostos. Um plano de cinco
anos no valor de US$ 75,2 bilhões para
cortar impostos foi anunciado em outu-
bro de 2000. Desde então, novos cortes
têm sido anunciados a cada orçamento.
Até o momento, a perda total de receitas
federais alcança US$ 51,3 bilhões. Os cor-
tes de impostos custarão mais US$ 52,1
bilhões até 2004–2005.6

6 Departamento de Finanças do Canadá. Economic


Statement and Fiscal Update, out. 2000 (Tabela A 5.3, p. 7 Departamento de Finanças do Canadá. The Budget Plan 8 Discurso de Paul Martin na Câmara do Comércio de
97); Orçamento de 2003. 2003, p. 202. Montreal, em 18 de setembro de 2003.

Observatório da Cidadania 2004 / 84


federais, poderiam nos deixar perto de nos- dência que está abalando as fundações so- Canadá parece pronto para investir menos em
sos objetivos: saúde pública (US$ 3,76 bi- ciais do Canadá, também vem exacerbando seu próprio povo e nas nações em desenvol-
lhões),9 desenvolvimento infantil (US$ 1,13 as tensões globais. vimento – o futuro do planeta – por causa do
bilhão), 10 infra-estrutura (US$ 752 mi- Ao contrário, os cortes de impostos e a “Estado mínimo”. Se isso acontecer, uma
lhões),11 um programa nacional de habita- redução da dívida continuam a ser apresen- oportunidade que ocorre uma vez na vida de
ção (US$ 752 milhões) 12 e ajuda tados como fundamentais para a gestão sau- investir no desenvolvimento humano terá sido
internacional (US$ 150,4 milhões).13 dável das finanças nacionais no futuro desperdiçada por um pouco mais de redu-
Esses investimentos sociais são viáveis, previsível. No mínimo, isso é uma aborda- ção da dívida e um pouco mais de gastos de
considerando nossa capacidade econômi- gem discutível da sustentabilidade fiscal. As- consumidores e consumidoras.
ca e fiscal, e urgentes por causa dos déficits sim como os déficits, os superávits não O desperdício intencional dos superá-
sociais não atendidos. A distância crescen- podem ser sustentados indefinidamente. Ape- vits pode tornar-se o legado dessa geração
te entre pessoas ricas e pobres, uma ten- sar da oportunidade fiscal sem paralelos, o de líderes.

9 Orçamento Federal Alternativo (2004); Comissão


Permanente do Senado sobre Assuntos Sociais, Ciência
e Tecnologia. The Health of Canadians: vol. 6 –
Recommendations for reform (2002); LAZAR, Harvey;
St. HILAIRE, France. (Eds.). Money, politics and health
care. Institute for Research in Public Policy, 2004.
10 Campaign 2000. 2003 Report card on child poverty in
Canada .
11 Federação dos Municípios Canadenses. A better quality
of life through sustainable community development:
priorities and investment plan, ago. 2001.
12 National Housing and Homelessness Network, The 1%
Solution.
13 Canadian Council for International Cooperation.
Apresentação à Comissão Federal Permanente sobre
Finanças, 21 de outubro de 2003.

Observatório da Cidadania 2004 / 85


CORÉIA DO SUL

Suicídios, dívidas, catástrofes naturais e ameaças de guerra


A Coréia, o último país dividido, encontra-se num estado de alta tensão militar, e as
ameaças de guerra são fonte de medo para todo o povo coreano. Os problemas
econômicos da Coréia do Sul, assim como os problemas sociais estruturais, resultaram
numa onda de suicídios sem precedentes. Além disso, a falta de medidas eficazes para
enfrentar grandes acidentes e catástrofes naturais vem agravando o sentimento de
insegurança do povo sul-coreano.

Coalizão dos Cidadãos pela Justiça Estados Unidos, Japão, Rússia e China, Ao mesmo tempo, a sociedade civil sul-
Econômica, Departamento de Pesquisa de para discutir formas possíveis de melho- coreana vem trabalhando duro para incluir
Políticas Públicas rar as relações Norte–Sul, porém essas os seguintes objetivos em sua agenda: esta-
Daehoon Kim negociações não tiveram nenhum efeito belecer uma coexistência pacífica e reduzir
positivo visível. os armamentos como meio de resolver as
A Coréia está dividida em Coréia do Sul e ameaças de guerra na península; exortar a
Coréia do Norte desde sua independência Sociedade civil em ação comunidade internacional a resolver o pro-
do Japão em 1945. Durante a Guerra da Por várias décadas, a sociedade civil sul- blema nuclear do Norte; monitorar as políti-
Coréia (1950–1953), as duas Coréias tive- coreana vem denunciando o uso da con- cas do governo de Seul e dos países vizinhos
ram um grande número de mortes, e todo frontação militar entre as duas Coréias em relação à península; insistir para que as
o país foi devastado. Nos últimos 50 anos, como uma tentativa de parte dos gover- duas Coréias implementem o plano de ação
a Coréia do Sul e a Coréia do Norte vêm nos de se manterem indefinidamente no assinado pelos dois países na reunião de
perpetuando sua histórica rivalidade militar poder. Ao estimularem a cooperação e o cúpula; e promover intercâmbios entre os
e política, mantendo exércitos muito gran- entendimento mútuo, as ONGs da Coréia dois países como meio de fazer avançar o
des para se defenderem uma da outra. A do Sul estão na linha de frente do movi- entendimento mútuo. As ONGs sul-coreanas
divisão da península e a história de con- mento pela paz e reunificação das duas estiveram envolvidas ativamente em ativida-
frontação militar estão inibindo o desenvol- Coréias. Antes da década de 1990, esses des humanitárias para ajudar o povo norte-
vimento político, econômico e social dos esforços das ONGs estavam sujeitos a gran- coreano, especialmente as crianças, que
dois países e gerando um clima de medo des pressões do governo de Seul, capital sofrem dificuldades econômicas. Finalmen-
para todo o povo coreano. da Coréia do Sul. Porém, à proporção que te, tem havido tentativas de alcançar um con-
A ameaça de guerra persiste, embora a Coréia do Sul avançava no sentido de senso no seio da sociedade civil para
nos últimos anos os governos das duas uma sociedade mais democrática, as prin- apresentar sugestões de políticas viáveis ao
Coréias tenham feito tentativas de reduzir a cipais tarefas das ONGs – redução das ten- governo de Seul com respeito a Pyongyang,
tensão e encontrar uma solução pacífica sões e construção de uma situação pacífica capital da Coréia do Norte.
para suas divergências, o que levou à reu- e estável – tornaram-se problemas impor- A sociedade civil sul-coreana tem atual-
nião de cúpula sem precedentes de 15 de tantes para o governo solucionar. mente uma posição muito crítica sobre a de-
junho de 2000 e à Declaração Conjunta do Atualmente, a opinião pública sul- cisão governamental de enviar 3 mil soldados
Norte e do Sul. coreana está dividida em relação às políti- para apoiar a guerra liderada pelos Estados
Mais recentemente, o programa de de- cas de Seul sobre a Coréia do Norte. Uma Unidos no Iraque, e grandes manifestações
senvolvimento nuclear da Coréia do Norte corrente de opinião está a favor da idéia de oposição à guerra foram realizadas em
e a suspeita de que possua armas nuclea- de reduzir a tensão e resolver o conflito toda a Coréia do Sul. Acreditamos firmemente
res levaram os Estados Unidos, em sua entre os dois países; a outra favorece a que não existe nenhuma razão para a guerra
iniciativa mais importante sobre temas re- segurança militar e as alianças militares no Iraque, pois poderia aumentar as amea-
lativos à península, a imporem restrições com os Estados Unidos. Essa divisão tem ças de guerra na península coreana.
políticas, econômicas e militares à Coréia também influenciado, direta e indiretamen-
do Norte. Essa situação de instabilidade te, a política de reconciliação e coopera- Dívidas de cartão de crédito
tem criado incerteza na península. Em agos- ção que existia antes da inclusão da Coréia A crise financeira de 1997–1999 revelou an-
to de 2003, foi realizada a chamada Nego- do Norte no “eixo do mal” definido pela tigas debilidades do modelo de desenvolvi-
ciação das Seis Partes, entre as Coréias, Casa Branca. mento do país, incluindo endividamento

Observatório da Cidadania 2004 / 86


elevado, empréstimos estrangeiros maciços inadimplentes em seus cartões de crédito Desastres naturais, como ciclones tro-
e um setor financeiro indisciplinado. Embo- atingiu 4 milhões, numa população total de picais e tempestades de areia, têm causado
ra o crescimento, liderado pelos gastos dos 48 milhões. Além disso, 10% da dívida atual destruição. O tufão Rusa, um dos mais for-
consumidores e pelas exportações, tivesse de cartão de crédito do país está vencida há tes da história coreana, destruiu 650 navios
atingido 6,2% em 2002, a pobreza tornou- pelo menos um mês. Após o início da crise e barcos no início de setembro de 2002 e
se um problema sério, como está explicado econômica, o governo adotou uma política infligiu danos graves aos criadouros de pei-
nos relatórios da Coréia do Sul publicados de promover a emissão de cartões de cré- xes e às instalações portuárias do país. Mui-
nas edições de 2001 e 2002 do Social Watch. dito, para estimular a demanda interna. Em tas cidades e vilas também foram devastadas.
Em 2001, o governo adotou uma política conseqüência disso, muitas pessoas con- Os danos à propriedade atingiram US$ 4,9
que garante a sobrevivência básica das pes- traíram dívidas imensas que não puderam bilhões, dos quais somente US$ 170 mi-
soas que vivem abaixo da linha de pobreza. pagar, e algumas abandonaram suas roti- lhões estavam segurados.
Embora 10% da população seja composto nas ou apelaram para a decisão extrema de Em março, abril e agosto de 2002, o país
de pobres, essa política só beneficia 3%. Isso cometer suicídio. foi atingido pelas piores tempestades de areia
é explicado pelos recursos inadequados Em julho de 2003, quando a Federação da história recente. Foram registrados níveis
alocados a esse projeto no orçamento e pela Coreana de Bancos registrava o recorde recordes de concentração de poeira (a acu-
percepção negativa que as pessoas têm do histórico de 3,22 milhões de inadimplen- mulação máxima chegou a 10 centímetros).
sistema de assistência pública. tes em cartões de crédito, na cidade de As pessoas sofreram com doenças respira-
As conseqüências da crise ficaram cla- Inchon, uma mulher que lutava para pa- tórias e oftálmicas, escolas tiveram de ser
ramente demonstradas nas manifestações gar uma enorme dívida no seu cartão de fechadas, vôos foram cancelados, e a indús-
maciças e violentas e nos chocantes suicí- crédito matou seus três filhos e cometeu tria sofreu perdas enormes. O tufão Maemi
dios de trabalhadores em 2003, como for- suicídio. Se o governo não tomar medidas golpeou a Coréia do Sul em setembro de
ma de protesto contra as condições de drásticas para restabelecer o crédito e apoiar 2003, com ventos de 210 km/h e extensas
trabalho. Em 9 de novembro, uma mani- as pessoas pobres, esses trágicos suicídi- inundações, que representaram quase US$ 6
festação de 40 mil sindicalistas encheu o os continuarão ocorrendo. bilhões de perdas nos danos totais.
centro de Seul, em protesto contra a legis-
lação trabalhista repressiva do governo. Acidentes e catástrofes naturais A resposta da sociedade civil
Quando foram atacados pela polícia, traba-
lhadores responderam com coquetéis Em fevereiro de 2003, num incêndio crimi- As ONGs sul-coreanas chamam a atenção
molotov e combate corpo-a-corpo. Outro noso no metrô de Taegu, a terceira maior do público para as calamidades causadas
motivo para os protestos foi a imolação em cidade da Coréia do Sul, 192 pessoas mor- por esses desastres e monitoram as medi-
outubro de três pessoas, que, num gesto reram e 147 ficaram feridas. O incendiário, das de segurança em lugares públicos, tais
de desespero diante de seu infortúnio, co- que foi preso, não declarou nenhum moti- como cinemas, lojas de departamento e lo-
meteram suicídio, em incidentes separados, vo específico para ter cometido o crime, e jas subterrâneas. Sempre que acontecem
em outubro. O primeiro suicídio foi de Kim seu ataque despertou grande temor entre acidentes em grande escala, a sociedade
Joo-Ik, ex-presidente do Sindicato das In- cidadãos e cidadãs comuns de que mais civil e as ONGs estão ativamente envolvidas
dústrias Pesadas Hanjin, que se enforcou atos dessa natureza pudessem voltar a ocor- na ajuda humanitária e no levantamento de
após permanecer 129 dias protestando em rer no futuro. No entanto, medidas gover- fundos para ajudar as vítimas. As ONGs
cima de um guindaste. No mesmo mês, namentais para prevenir esse tipo de têm estimulado o governo a tomar medi-
outros dois trabalhadores se mataram em incidente ainda estão nas etapas iniciais. das preventivas, instalar um sistema efici-
dias consecutivos. O povo da Coréia do Sul não consegue ente para responder aos desastres,
A crise econômica também disparou por se esquecer da série de grandes acidentes implementar regulamentos de segurança
causa do número crescente de inadimplen- ocorridos no passado recente, como o de- eficazes e alocar fundos suficientes para
tes em cartões de crédito. Nos últimos cin- sabamento de uma loja de departamentos enfrentar acidentes dessa natureza. No
co anos desde o início da crise econômica, em 1995, que causou muitas mortes e da- entanto, o governo tem sido negligente
o número de pessoas da Coréia do Sul nos à propriedade. em tomar essas providências.

Observatório da Cidadania 2004 / 87


Tabela 1 – Indicadores de Desenvolvimento Humano – 2003

Classificação de acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano 2003 30

População total (milhões) 2001 47,1

População urbana (% do total) 2001 82,4

População com menos de 15 anos (% do total) 2001 20,6

População com mais de 65 anos (% do total) 2001 7,4

PIB (US$ bilhões) 2001 422,2

PIB per capita (US$) 2001 8.917

Pessoas adultas alfabetizadas (% para 15 anos e mais) 2001 97,9

População com acesso a fontes de água melhorada (%) 2000 92

População com acesso a saneamento adequado (%) 2000 63

Partos atendidos por pessoal de saúde qualificado (%) 1995–2001 100

Médicos(as) (por 100.000 habitantes) 1990–2002 173

Esperança de vida ao nascer (anos) 2000–2005 75,5

Mortalidade infantil (para cada 1.000 crianças nascidas vivas) 2001 5

Mortalidade de menores de 5 anos (para cada 1.000 crianças nascidas vivas) 2001 5

Mortalidade materna (para cada 100.000 crianças nascidas vivas) 1985–2001 20

Gastos públicos com educação (% do PIB) 1998–2000 3,8*

Gastos públicos com saúde (% do PIB) 2000 2,6

Gastos militares (% do PIB) 2001 2,8

Serviço total da dívida (% do PIB) 2001 6,2

Total das Forças Armadas (milhares) 2001 686

Índice Total das Forças Armadas (1985=100) 2001 115


Fonte: Pnud. Relatório de Desenvolvimento Humano 2003 ;* cálculo preliminar da Unesco, sujeito a revisão posterior.

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HOLANDA

Mais rica do que nunca – e menos solidária


Embora a segurança física ocupe um lugar de destaque na agenda pública e política da
Holanda, ela carece de visibilidade no contexto mais amplo da segurança humana. O fato
de a economia nacional ter se tornado mais rica não abriu espaços a políticas humanitárias
nem a atitudes mais tolerantes em relação a imigrantes, refugiados(as), pessoas idosas e
outros grupos vulneráveis da sociedade. Ao contrário, surgiram mais obstáculos à
segurança humana. A política externa holandesa mostrou continuidade no que se refere
à segurança humana global, mas sofre cada vez mais pressões políticas.

Comitê Nacional pela Cooperação de quase 3% – comparada com a média Além de sofrerem os efeitos da recessão,
Internacional e o Desenvolvimento européia de 2%. No início do século 21, a os domicílios pobres são afetados pela dete-
Sustentável (NCDO) Holanda está mais rica do que nunca. rioração dos serviços sociais no seguro de
Novib/Oxfam-Holanda1 Entretanto, esse boom econômico não saúde pública, subsídios habitacionais e be-
foi utilizado para erradicar a pobreza em to- nefícios fiscais. A situação para os grupos
A Holanda se orgulha de sua longa tradição dos os lugares. Mesmo no interior da de baixa renda provavelmente piorará em
de promover a segurança humana, tanto na Holanda, continua a existir pobreza relativa. 2004, uma vez que o governo utiliza a queda
esfera nacional como na internacional. O país Cada vez mais, a globalização significa com- do crescimento econômico para legitimar
goza de boa reputação, com um dos melho- petição não somente entre empresas, como mais cortes no Estado de bem-estar social.
res sistemas de seguridade social do mun- também entre países. Eles competem por A globalização também significou o au-
do, tem uma atitude hospitaleira e tolerante investimentos, reduzindo os custos de mão- mento do fluxo de imigrantes para a Holanda.
em relação a imigrantes e oferece uma con- de-obra e flexibilizando os regimes fiscais. A população, especialmente nas grandes ci-
tribuição ativa para a paz e o desenvolvimen- Em conseqüência, os níveis do salário míni- dades, está se tornando cada vez mais
to internacionais. Infelizmente, a sociedade e mo e os sistemas fiscal e de seguridade so- diversificada. As pessoas estrangeiras não-
a política holandesa, sob pressão da desa- cial estão sob pressão contínua. ocidentais já constituem 10% da população
celeração econômica, estão se afastando des- holandesa total, um quarto da população
sa tradição e adotando atitudes mais duras em Os sofrimentos da economia aberta urbana e um terço de residentes legais das
relação às pessoas mais necessitadas. Inter- Agora que o boom econômico parece ter cidades de Amsterdã e Roterdã.3 Essa situa-
namente, essa mudança se reflete na grada- chegado ao fim, a economia aberta da ção causou tensões entre as comunidades.
tiva redução da seguridade social. No plano Holanda está sofrendo mais do que outros Em 2002, a integração de imigrantes não-
externo, os interesses nacionais estão pre- países europeus. Em 2003, o crescimento ocidentais tornou-se repentinamente o tema
valecendo sobre as prioridades da paz e do econômico caiu abaixo de zero pela primeira político mais importante das campanhas elei-
desenvolvimento internacionais. vez em 20 anos. O “Monitor da Pobreza” do torais. Atualmente, grande parte do debate
Como uma das economias mais abertas governo informou que o percentual de do- político holandês está centrado na aceitação
do mundo, a Holanda foi um dos países da micílios de baixa renda no país, que havia de escolas com predominância de estudan-
Europa que mais se beneficiaram com o cres- caído de 15% em meados da década de 1990 tes de etnia negra, escolas islâmicas, alunas
cimento econômico mundial na década de para 10% em 2001, aumentará outra vez que cobrem a cabeça e mesmo a aceitação
1990. A economia cresceu na média anual para 11% em 2004. O percentual de domicí- do islã como tal. Em geral, o clima político em
lios de baixa renda entre imigrantes não- relação a imigrantes, asilo político e integração
ocidentais é três vezes maior do que a média, endureceu consideravelmente.
e um terço dessas pessoas está abaixo da
linha de pobreza nacional.2
1 Este trabalho foi editado por Bertram Zagema
(consultor) e coordenado por Alide Roerink (NCDO), em
colaboração estreita com Lindy van Vliet (Novib/Oxfam
Netherlands). Deram contribuições especiais Gerard 3 Além disso, calcula-se que entre 46 mil e 116 mil
Oude Engberink (pesquisador e assessor sobre pessoas estrangeiras (0,3% a 0,7%) residam
assuntos sociais da cidade de Roterdã), Arjan El Fassed 2 Escritório de Planejamento Social e Cultural. ilegalmente no país. Escritório Central de Estatísticas.
(Novib/Oxfam Netherlands) e Karlijn Rensink (NCDO). Armoedemonitor 2003, dez. 2003. Statistische Dossiers, n. 7, 2003.

Observatório da Cidadania 2004 / 89


Asilo e eficiência demora somente dois dias úteis, foi planeja- nal para o desenvolvimento. No entanto, como
Quando foi entrevistado em 2002, Ruud do originalmente para filtrar casos “clara- todos os governos recentes, essa nova ad-
Lubbers, alto-comissário das Nações Uni- mente sem fundamentos”, porém está agora ministração sobrecarregou o orçamento da
das para refugiados e ex-primeiro-ministro, sendo utilizado para processar pelo menos Ajuda Oficial para o Desenvolvimento (AOD)
mostrou sua decepção com as políticas 60% dos pedidos de asilo. O Human Rights com despesas que não contribuem para a
européias – especialmente a holandesa – para Watch declarou que o procedimento dá a erradicação da pobreza nos países em de-
pessoas refugiadas: “A alta temperatura con- quem solicita asilo poucas oportunidades de senvolvimento. Gastos importantes derivam
tra estrangeiros(as) na Europa ultrapassou documentar suas necessidades de proteção, do alojamento de pessoas refugiadas duran-
um novo limiar, especialmente em países de receber orientação legal ou de apelar com te o primeiro ano no país, atingindo o mon-
como a Dinamarca e a Holanda, tradicional- eficácia de uma decisão negativa. Especial- tante de quase € 200 milhões (US$ 255,7
mente grandes doadores e defensores do mente em casos que envolvam preocupa- milhões) ou 5% do orçamento da AOD.
Alto Comissariado das Nações Unidas para ções humanitárias e questões legais ou Ainda maiores são os recursos reserva-
Refugiados (Acnur). É interessante observar factuais complexas, o procedimento AC se- dos ao cancelamento de dívidas relacionadas
que, embora o número de pessoas refugia- ria inadequado, segundo o Human Rights aos seguros de créditos concedidos a em-
das na Europa tenha declinado consideravel- Watch. “A Holanda corre um risco muito presas nacionais que exportam para os países
mente, muitos indivíduos, incluindo aqueles real de violar sua obrigação de non- em desenvolvimento: € 500 milhões (US$
ligados à política, ainda bradam como se es- refoulement, ou seja, a obrigação de não 639,2 milhões) ou 13% do orçamento da
tivessem enfrentando desastres nacionais por devolver ninguém a um país onde sua vida AOD em 2004. Créditos e garantias para ex-
causa desses(as) refugiados(as)”.4 ou liberdade estariam ameaçadas por cau- portação não são instrumentos de coopera-
Desde meados da década de 1990, o sa de perseguição”.7 ção para o desenvolvimento, mas de
número de pessoas refugiadas que buscam Também são inadequadas as políticas e promoção das exportações. Além disso, na
asilo na Holanda caiu significativamente em práticas holandesas no que diz respeito ao Conferência da Organização das Nações Uni-
conseqüência da introdução de procedimen- cuidado e à proteção das crianças imigran- das (ONU) sobre Financiamento do Desen-
tos decisórios mais eficientes e restritivos. tes, conforme as obrigações da Convenção volvimento, em Monterrey (2002), ficou
Em abril de 2003, o Human Rights Watch sobre os Direitos da Criança. O Human Rights acordado que o cancelamento de dívidas se-
(Observatório dos Direitos Humanos) publi- Watch concluiu que as entrevistas com as ria um benefício adicional aos compromissos
cou um extenso relatório no qual expressa- crianças são muitas vezes conduzidas de existentes da AOD.
va grande preocupação com políticas forma inapropriada e sem a ajuda consis- Esses cortes orçamentários ocultos re-
recentes adotadas para acelerar o trâmite tente de alguém que as guarde ou as assista fletem uma mudança no clima político, e não
dos pedidos de asilo, em detrimento das legalmente. Além disso, o relatório criticou a mudanças no apoio público. Pesquisas reali-
necessidades de proteção de refugiados(as): política holandesa em relação às condições zadas pela Organização para Cooperação e
“Nos últimos anos, a Holanda deixou para de recepção das pessoas que solicitam asi- Desenvolvimento Econômico (OCDE) e pelo
trás sua tradicional postura protetora em lo, incluindo a alimentação e a habitação. NCDO sobre o apoio público à cooperação
relação às pessoas que buscam asilo, para Num dos casos relatados, uma família de internacional para o desenvolvimento mos-
assumir um enfoque restritivo que se desta- Ruanda foi expulsa do centro de recepção tram que o público está relativamente bem in-
ca entre os países da Europa Ocidental”.5 de pessoas asiladas, depois que as autori- formado e altamente engajado. Em geral,
O Human Rights Watch informa que o dades de imigração rejeitaram seu pedido comparado com a maioria dos países da
trâmite holandês denominado “procedimen- de asilo. Quando um tribunal modificou pos- OCDE, o apoio público holandês à cooperação
to AC”6 está sendo usado em casos nos quais teriormente essa decisão, a família não pôde para o desenvolvimento é forte.8 Esse apoio
não seria adequado. Esse procedimento, que ser encontrada. público sólido pode ser explicado pelo per-
manente suporte do governo às campanhas
Cooperação para o desenvolvimento educacionais na Holanda e à cooperação para
o desenvolvimento de “pessoa a pessoa”.
O governo que iniciou seu mandato em 2003 Uma parte considerável do orçamento da
manteve o compromisso da Holanda de gas- AOD é canalizada pelas ONGs.
4 Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados
(Acnur). Refugees , n. 129, 1 dez. 2002.
tar 0,8% do PNB na cooperação internacio-
5 Human Rights Watch. Fleeting refuge: the triumph of
efficiency over protection in Dutch asylum policy.
2003. Disponível em: <www.hrw.org/reports/2003/
netherlands0403>. Acesso em: 8 out. 2004.
6 Nota do editor: AC é a sigla de Aanmeldcentra , centros 8 OCDE. Public opinion and the fight against global
de inscrição para as pessoas que solicitam asilo. 7 Human Rights Watch, op cit., p. 13. poverty, 2003. Ver <www.ncdo.nl>.

Observatório da Cidadania 2004 / 90


Do lado positivo, a redução sustentável víncia de Aceh). Isso assumiu a forma de mas para países onde há risco de serem uti-
da pobreza continua a ser o principal objeti- missões conjuntas dos ministros – das Re- lizadas na repressão interna, contra outro país
vo da cooperação para o desenvolvimento e lações Exteriores e da Cooperação para o ou na violação de direitos humanos.
as Metas de Desenvolvimento do Milênio são Desenvolvimento – para promoverem a paz, No entanto, embora os resumos com-
seus objetivos concretos. A ajuda holandesa com participação ativa em negociações de pletos das licenças de exportação não este-
será focalizada em cinco setores: educação, paz, pressão sobre as partes em conflito e jam disponíveis ao público, é sabido que a
saúde, erradicação do HIV/Aids, meio ambi- destinação de fundos para as forças de paz Holanda tem fornecido armas e equipamen-
ente e água. Uma parcela crescente do orça- da ONU naquelas regiões. tos militares a países que não cumprem o
mento da AOD (até 15% em 2007) está No entanto, somente numa ocasião tro- Código de Conduta da União Européia. 11
destinada à educação, uma resposta muito pas holandesas foram enviadas à África: para Por exemplo, a Holanda tem fornecido ar-
positiva à campanha global pela educação. a Etiópia, em 2002. Em 2003, um navio- mas à Indonésia, quando o exército
Por outro lado, a estratégia governamental hospital militar foi enviado para a costa da indonésio vem sendo acusado de violações
de eqüidade entre os gêneros continua con- Libéria, porém não houve desembarque de sistemáticas dos direitos humanos.12 Es-
fusa. A eqüidade entre os gêneros será in- tropas. A sociedade civil holandesa e uma sas armas podem estar sendo usadas ago-
corporada a todas as políticas e operações, minoria parlamentar reivindicaram em 2003 ra pelo exército na província de Aceh.13 Pelo
porém não foi revelada nenhuma estratégia que tropas ajudassem na redução dos con- menos 20% das garantias oficiais a crédi-
para fazer isso funcionar. flitos na Libéria e na República Democrática tos para exportação são concedidas a pe-
do Congo. Essas reivindicações foram rejei- didos militares, estimulando, assim, o fluxo
Guerra e paz tadas porque a segurança das tropas holan- internacional de armas, incluindo armas
Um novo e importante desenvolvimento das desas não podia ser garantida. Entretanto, para a Indonésia, Jordânia, Turquia,
políticas é a abordagem integrada nos con- tropas holandesas participam como forças Venezuela e Coréia do Sul, onde as Forças
flitos internacionais. A prevenção de confli- de estabilização no Afeganistão e fazem par- Armadas têm um histórico questionável em
tos e a construção da paz são prioridades te da força de ocupação do Iraque, onde a relação aos direitos humanos.14
importantes para o ministro da Cooperação segurança não está garantida. A Holanda, no coração da Europa Oci-
para o Desenvolvimento: “As estratégias de dental, é um importante país de trânsito,
redução da pobreza não funcionam num país Armas e comércio especialmente através do porto de Roterdã
onde se desenrola um conflito violento. A A Holanda apóia o apelo de ganhadores do (o maior porto marítimo do mundo) e do
paz e a estabilidade são precondições ne- Prêmio Nobel da Paz e da Campanha de Con- aeroporto de Schiphol (o quarto maior ae-
cessárias para o desenvolvimento”.9 Foi es- trole de Armas10 por um Tratado Internacio- roporto da Europa). Há pouco controle ou
tabelecido um fundo de estabilidade para nal sobre o Comércio de Armas de caráter conhecimento sobre o volume do trânsito
permitir o financiamento rápido de ativida- legalmente vinculatório. Em geral, a Holanda de equipamentos militares. Em contraste
des que promovam a paz e a estabilidade. esforça-se para cumprir o Código de Condu- com suas políticas restritivas de exporta-
Existe um grande esforço comum, polí- ta da União Européia sobre Exportações de ção, a Holanda ainda permite o trânsito de
tico e material para facilitar processos de paz, Armas, um instrumento que tem a obrigação armas para países que não cumprem o
especialmente na área dos Grandes Lagos, política de cumprir, mas não a obrigação le- Código de Conduta da União Européia, prin-
Sudão, Chifre da ÁfricaNT e Indonésia (pro- gal. Esse código proíbe a exportação de ar- cipalmente Israel.

11 Ministérios de Relações Exteriores e de Economia. The


Netherlands arms export policy in 2001, 2002.
12 European Network Against Arms Trade. Indonesia: arms
9 Ministérios de Relações Exteriores e de Cooperação trade to a military regime, 1997.
para o Desenvolvimento. Kamerbrief Oprichting 13 Uma fotografia que revelava o uso de tecnologia militar
Stabiliteitsfonds (Carta ao Parlamento sobre a criação holandesa em Aceh apareceu no NRC Handelsblad, de
de um fundo de estabilidade), 3 out. 2003. Tweede 23 de maio de 2003.
Kamer, vergaderjaar 2003–2004, 29 200 V, n. 10. 14 Disponível em: <http://atradius.com/nl/
NT A região mais oriental da África, composta da Somália, dutchstatebusiness/overheid/afgegevenpolissen>.
Djibuti, Eritréia e parte da Etiópia. 10 Ver <www.controlarms.org>. Acesso em: 5 nov. 2004.

Observatório da Cidadania 2004 / 91


ÍNDIA

O abandono do Estado
Um paradoxo está embutido no modelo de desenvolvimento da Índia: por um lado, há uma
mobilização crescente dos grupos da sociedade civil e tentativas de empoderar as pessoas
marginalizadas em vários níveis, com influências aparentemente positivas nos pronunciamentos
sobre políticas públicas; por outro lado, existe a retirada do Estado de suas atribuições e papéis
essenciais, especialmente de sua função constitucional de assegurar a eqüidade social. Os resultados
são assustadores, em especial no que diz respeito à segurança humana. As privações e a repressão
crescente dos grupos marginalizados têm resultado no enfrentamento entre comunidades.

Coalizão Nacional do Social Watch piorado relativamente em relação a algu- declinou em alocação per capita real de so-
Bobby Kunhu1 mas dessas necessidades básicas, duran- mente 15,40 rupias indianas (US$ 0,33)
te o que se descreve comumente como o para 14,68 rupias (US$ 0,31), entre 2002
período das reformas econômicas, ou e 2003. A alocação planejada para educa-
A liberdade é o elo entre o desenvolvimento seja, de julho de 1991 em diante. ção foi reduzida de 0,30 rupias (US$ 0,006)
e a democracia. A pobreza é a negação do Embora as pessoas que defendem o per capita, em 2002–2003, para 0,18 rupias
direito de viver com dignidade... O livre comércio celebrem uma taxa de cresci- (US$ 0,003), em 2003–2004. Além disso,
desenvolvimento com eqüidade, justiça, mento de 6% em 2002,3 há consciência da foram eliminados planos de educação im-
distribuição e participação é um pré- crescente desigualdade e marginalização de portantes, como o Programa Nacional de
requisito para a sobrevivência e o grupos que já eram excluídos.4 Educação das Mulheres.5
crescimento da democracia indiana.2
O plano do governo central Sarva
Setores substanciais da população india- Orçamento e direitos socioeconômicos Shiksha Abhiyan (educação para todos, em
na sofrem sérias privações em relação a Quando se observa com cuidado através do híndi) resultou num aumento de alocação
um conjunto bem conhecido de necessi- labirinto do jargão e da retórica oficial, fica-se orçamentária de 15,12 bilhões de rupias
dades básicas, tais como alimentação ade- em dúvida em relação ao compromisso do indianas (US$ 328 milhões), porém sem
quada, habitação, vestimenta, atendimento governo de redução da pobreza e de imple- atingir a meta declarada de que todas as
à saúde, educação primária, água potável e mentação dos direitos socioeconômicos. crianças com menos de 14 anos estives-
saneamento. De fato, as maiores deficiên- Por exemplo, desde que a educação sem na escola até dezembro de 2003. O
cias das transformações econômicas lide- tornou-se um direito fundamental na Cons- silêncio sobre esse fracasso talvez seja de-
radas pelo Estado depois da independência tituição indiana, as alocações orçamentárias masiado ensurdecedor até mesmo para o
não são a falta de crescimento econômico para implementação desse direito ficaram governo. Ficou evidente a crescente depen-
ou de industrialização – ao contrário, nes- progressivamente menores, a despeito das dência das forças do mercado para atender
ses aspectos o desempenho indiano tem promessas regulares do governo de fazer ao déficit educacional.6
sido, no mínimo, respeitável –, e sim as justamente o contrário. No orçamento de
políticas e os processos que facilitam o 2003, houve somente um aumento margi-
atendimento a necessidades e direitos bá- nal na alocação orçamentária real planeja-
sicos. Além disso, existe certa preocupa- da para educação. A conta de receitas, sob
ção de que as perspectivas possam ter alocações não planejadas para educação,
5 CBA. The marginalised matter. 2003. Ver também
SAMUEL e JAGADANANDA, op. cit.
6 Observam Samuel e Jagadananda: “Embora a taxa de
alfabetização tenha subido de 18% em 1951 para 65%
em 2001, a terça parte dos analfabetos do mundo está
1 Bobby Kunhu é advogado de direitos humanos e na Índia. De aproximadamente 200 milhões de
coordenador da Coalizão Nacional do Social Watch da crianças na faixa etária de 6 a 14 anos, somente 120
Índia. 3 Informações obtidas em: <www.adb.org/Documents/ milhões estão matriculadas. Alocação orçamentária
2 SAMUEL, John; JAGADANANDA (Eds.). Making sense of News/2002/nr2002048.asp>. Acesso em: 5 nov. 2004 insuficiente, péssima infra-estrutura escolar nas zonas
democracy: an introduction to Social Watch India. 4 DATT, Gaurav; RAVALLION, Martin. Is India’s economic rurais, elevadas taxas de evasão escolar,
Citizens Report on Governance and Development. Nova growth leaving the poor behind?. World Bank, 2002. preconceitos em função das castas e do gênero etc.
Délhi: Coalizão Nacional do Social Watch , 2003. (Working Paper Series 2846). são as características de nosso sistema educacional”.

Observatório da Cidadania 2004 / 92


Gasto com saúde é o mais baixo do mundo so a medicamentos e aos sistemas de aten- alocação insuficiente de US$ 110 milhões
O cenário do setor da saúde também não é dimento à saúde, especialmente para os se- com a meta impossível de retirar da pobre-
encorajador. Como afirmava o Relatório Ci- tores mais marginalizados da sociedade.8 za um quarto da população que vive abaixo
dadão sobre Governança e Desenvolvimen- O governo reduziu os gastos com o da linha de pobreza. Houve um decréscimo
to 2003, do Social Watch da Índia, programa geral de nutrição, de 79,2 milhões geral dos gastos com o setor social, espe-
de rupias (US$ 1,7 milhão) para 77,7 mi- cialmente no que diz respeito aos setores
o nível dos gastos públicos com o setor lhões de rupias (US$ 1,6 milhão) no orça- marginalizados, como os dalits,9 adivasis,10
de saúde é o mais baixo do mundo. O mento de 2003. Foi feita também uma mulheres etc.
sistema de saúde da Índia é o mais
privatizado de todo o mundo. Dos gastos
com saúde agregados, 83% estão Tabela 1 – Gastos públicos com saúde como percentual dos gastos públicos totais (%)
alocados a gastos privados, ao passo
ESTADO 1 9 8 0 –8 1 1 9 9 8– 9 9
que 43% das pessoas pobres dependem
dos hospitais do setor público para Andhra Pradesh 7,63 8,45
atendimento médico. A privatização e a Arunachal Pradesh 5,43 —
desregulamentação do sistema de saúde Assam 5,23 4,65
resultaram em aumentos nos preços dos Bihar 5,49 4,81
medicamentos. Embora crivada de Goa — 5,11
contradições, a nova Política Nacional Gujarat 6,08 5,41
de Saúde de 2002 legitima a privatização
Haryana 6,51 3,84
em curso. Os gastos com a saúde
Himachal Pradesh 10,65 6,38
pública, atualmente abaixo de 1% do PIB,
são muito inferiores aos 5% do PIB Jammu e Caxemira 11,82 5,16
recomendados pela Organização Kerala 9,57 5,47
Mundial da Saúde (OMS). Madhya Pradesh 7,59 5,80
Os gastos com saúde, que já eram re- Maharashtra 6,53 4,84
duzidos, caíram drasticamente no orça- Manipur 8,66 4,67
mento de 2003. Na verdade, a maioria dos Meghalaya 15,34 7,22
compromissos assumidos pelo governo Mizoram — 4,93
está relacionada à privatização do setor Nagaland 9,57 5,39
saúde e foi feita em benefício dos interes- Orissa 6,70 5,58
ses do mercado. 7
Punjab 6,52 4,73
A política farmacêutica de 2003 também
Rajastão 10,21 6,42
contribuiu para tornar ineficaz o mecanismo
de controle de preços de medicamentos. Sikkim 5,65 2,84
Esse mecanismo foi instituído em 1978 para Tamil Nadu 6,56 8,32
manter os preços de todos os medicamen- Tripura 4,57 4,69
tos sob controle. No entanto, o número de Uttar Pradesh 5,89 4,10
remédios controlados diminuiu para 35, o Bengala Ocidental 9,07 6,49
que representa cerca de 22% do mercado Fonte: Versão Preliminar do Décimo Plano Qüinqüenal, vol. III, Comissão de Planejamento.
total. A conseqüência disso é o menor aces-

9 Os dalits ou intocáveis são o grupo mais marginalizado


da Índia. Há cerca de 240 milhões de dalits (25% da
população) no país e, na maioria dos casos, são
7 Samuel e Jagadananda indicam: “Atualmente, os gastos pessoas relegadas a trabalhos servis.
com saúde pública, como percentual dos gastos públicos 10 Acredita-se que adivasis eram habitantes originais
anuais agregados com saúde, é de 96,9% no Reino da Índia. Há cerca de 70 milhões de adivasis (8%
Unido, 44,1% nos Estados Unidos, 45,4% em Sri Lanka e 8 RAMACHANDRAN, P. Unhealthy policy. Frontline, 15 mar. da população) do país. Na maior parte, são pessoas
24,9% na China, porém na Índia são somente 17,3%”. 2002. Ver também SAMUEL e JAGADANANDA, op. cit. marginalizadas, dedicadas à agricultura e à caça/coleta.

Observatório da Cidadania 2004 / 93


Desemprego Nesse contexto, o debate sobre mega- O pretexto do terrorismo
O desemprego foi uma das tendências mais projetos de desenvolvimento e o desloca- Outro problema de segurança humana é a
perturbadoras que acompanharam a mudança mento de populações é especialmente desculpa do terrorismo, que está sendo utili-
para a economia de mercado. O desemprego grave. O exemplo mais gritante disso é a zado como pretexto para o aumento dos gas-
oculto continua a ser uma preocupação, mas discussão sobre o projeto do Vale de tos militares, assim como para a introdução
o desemprego aberto tornou-se um proble- Narmada. A Agência de Controle de Narmada de mudanças repressivas no sistema de justi-
ma sério. O colapso do setor público e as recomendou que a altura da represa de ça criminal, com pouca atenção às normas
conseqüências em termos de falta de opor- Sardar Sarovar fosse aumentada de 95 constitucionais. O melhor exemplo é o pro-
tunidades e o crescimento lento do setor pri- metros para 100 metros.12 nunciamento recente feito pela Comissão do
vado resultaram em forte desaceleração do Um grande número de adivasis foi des- Juiz Malimath, recomendando que poderes
emprego no setor organizado da economia. locado por causa das inundações em con- draconianos de polícia, próprios de legislação
De fato, a parcela da força de trabalho no seqüência do aumento da altura da represa especial como a Lei de Prevenção do Terroris-
setor formal é somente de 8% e há sinais de e seu reassentamento foi muito insatisfatório. mo, sejam estendidos à legislação criminal
que a vulnerabilidade da força de trabalho no As condições das pessoas afetadas em geral.16 Mesmo dentro do sistema atual, são
setor informal possa estar crescendo. O mais Madhya Pradesh são ainda piores: a grande os grupos marginalizados que levam a pior.
alarmante é o aumento das mortes por fome maioria das 35 mil famílias deslocadas ainda Após ter analisado a atitude governa-
e suicídios de pessoas que vivem da pequena não foi reassentada e outras 12 mil famílias mental em relação ao compromisso orça-
agricultura e daquelas excluídas do processo enfrentam o desalojamento nessa estação mentário com a sociedade em geral e com
produtivo, em 2003. Essas mortes podem de monções.13 O governo estadual declarou as comunidades marginalizadas em particu-
ser atribuídas à crescente insegurança em abertamente que não há terras disponíveis lar, devemos observar as condições reais de
relação aos meios de sobrevivência, tanto na para as pessoas desalojadas e está conce- comunidades específicas. As privações e o
zona rural como urbana. dendo uma indenização em dinheiro – uma aumento da repressão estatal contra as co-
violação das diretrizes do Tribunal de Dispu- munidades marginalizadas, tanto em termos
Conflito de terra tas da Água de Narmada, ratificadas pela econômicos como culturais, estão levando
A situação da distribuição de terras também Corte Suprema em 2000.14 a uma situação em que as comunidades se
merece atenção. Com raras exceções, como A classificação de terras geradoras de voltam umas contra as outras na disputa
a iniciativa do governo estadual de Madhya receita como áreas florestais é outro pro- pelo pouco que o Estado tem a oferecer em
Pradesh de entregar pequenos lotes de ter- cesso que nega os direitos de propriedade e termos de direitos humanos básicos. Isso
ra a dalits, as políticas de distribuição de ter- o acesso à terra a comunidades inteiras e às levou a situações, como em Gujarat, onde
ra em todo o país têm sido, em geral, de pessoas a que legitimamente pertencem. forças repressivas e fundamentalistas usa-
caráter regressivo. Terras públicas foram Isso até levou à violência em Wayanad, no ram comunidades marginalizadas para ata-
transferidas para empresas privadas, como norte de Kerala, onde a polícia abriu fogo car grupos minoritários. Na Índia, a
no estado de Tamil Nadu, ao passo que não contra um grupo de adivasis, que suposta- privatização indiscriminada e a resultante ero-
existe praticamente nenhuma tentativa de mente estavam ocupando terras florestais, são dos direitos socioeconômicos têm tido
distribuição para os sem-terra.11 matando várias pessoas.15 conseqüências desastrosas.

12 The Hindu, 14 maio 2002.


13 Vento periódico típico do sul e do sudeste da Ásia que,
no verão, sopra do mar para o continente.
14 Informações obtidas em: <www.narmada.org/sardar-
sarovar/damincrease.html>. Acesso em: 5 nov. 2004
15 THAKKAEKARA, Mari. What really happened. Frontline, 16 NARRAIN, Siddharth. Rights and criminal justice.
11 SAMUEL e JAGADANANDA, op. cit. 15 mar. 2002. Frontline, 13 set. 2003.

Observatório da Cidadania 2004 / 94


I RAQU E

Sob fogo cruzado


Após o término “oficial” da guerra, o sentimento geral da população iraquiana era de que
as forças de ocupação dos Estados Unidos não faziam nada mais do que se preocupar
obsessivamente com sua própria segurança. Para a opinião pública, a presença dos Estados
Unidos no país é tão ilegítima quanto o era o regime de Saddam Hussein. Atualmente, é
quase unânime entre a população no Iraque a crença de que o governo Bush deseja
perpetuar a ocupação militar, com a manutenção do caos, a exacerbação da violência e a
promoção de divisões entre o povo iraquiano. Os fatos parecem confirmar essa percepção.

Associação Iraquiana Al-Amal1 iraquiano parece já ter terminado porque, Nações Unidas (ONU) e o Comitê Interna-
Shiar Yousef entre outras razões, as aspirações locais cional da Cruz Vermelha, mudaram suas
não foram realizadas e não houve melhoria sedes operacionais para Amã, capital da
Num país tão complexo quanto o Iraque, é na vida das pessoas. Jordânia, e suspenderam alguns projetos
difícil fornecer uma descrição precisa da Acima de tudo, a manutenção de um no Iraque. Também retiraram do país
situação de segurança ou identificar os alto nível de insegurança tem um impacto funcionários(as) estrangeiros(as) e os(as)
obstáculos à segurança humana, quando negativo sobre a vida de iraquianos e substituíram por pessoal local, que, na
existe uma grave falta de informações e iraquianas comuns, que ficam sem aces- maior parte, não é profissional qualifica-
dados estatísticos. A guerra terminou “ofi- so a serviços básicos, especialmente água do. Muitas embaixadas (Espanha, Itália,
cialmente” em 1º de maio de 2003. Porém, potável e atendimento à saúde, e cuja se- Austrália etc.) também reduziram seu pes-
desde então, os Estados Unidos e o Reino gurança pessoal está em perigo quando soal internacional, e algumas chegaram
Unido foram forçados a admitir, em mais se aventuram fora de casa para as tarefas mesmo a fechar seus escritórios em Bag-
de uma ocasião, que a situação de segu- mais simples, como fazer compras, ir ao dá (por exemplo, Holanda e Bulgária), de-
rança no Iraque continuava “séria”. Por trabalho ou levar as crianças à escola. Um pois que receberam telefonemas ou cartas
exemplo, uma avaliação da CIA (agência efeito especialmente negativo do medo de ameaçadores e até mesmo ameaças físi-
de inteligência dos Estados Unidos) sobre seqüestro ou assalto tem sido a restrição cas diretas.
o Iraque alertava que a situação de segu- à liberdade de movimentos das mulheres Outra dimensão da insegurança são
rança pioraria em todo o país. e meninas, o que reduz sua possibilidade as tensões étnicas – entre as populações
de freqüentar a escola e comparecer ao árabe e a turcomana, árabe e curda e con-
Naturalmente, o termo segurança se
trabalho. Além disso, um número con- flitos entre tribos – que estão crescendo
referia principalmente à segurança das for-
siderável de famílias ainda não enviou no norte do país, além das tensões que
ças de ocupação e de “ocidentais” em ge-
suas crianças de volta às aulas por cau- emergem entre as comunidades xiita e
ral. O ministro da Defesa britânico, Geoff
sa de ameaças similares nas universi- curda. Na área de Kirkuk, por exemplo, o
Hoon, enfatizava que sua prioridade era a
dades e escolas. Conselho do Distrito de Dibis decidiu de-
“segurança das forças britânicas” e mui-
O atual estado de insegurança tam- molir 70 casas de famílias árabes, que
tas pessoas do comando das Forças Ar-
bém implica um alto risco para as pesso- tinham sido assentadas nessa área pelo
madas dos Estados Unidos faziam
as envolvidas no trabalho humanitário, antigo regime iraquiano, no programa
comentários similares. No entanto, desde
numa época em que ajuda humanitária é governamental que tinha como objetivo
o término “oficial” da guerra, a segurança
desesperadamente necessária em quase “arabizar” essa zona rica em petróleo.
de ocidentais tem significado insegurança
todos os setores. As ameaças incluem a Ações como essa, embora pequenas e
para a população local, e a lua-de-mel en-
possibilidade de danos físicos, ou mes- que não recebem muita atenção, podem
tre as forças de ocupação e o povo
mo morte, causados por explosões de vir a ter resultados desastrosos e impac-
bombas, fogo cruzado, banditismo, se- to muito grande no equilíbrio das forças
qüestro de carros e saques. Isso tem tido sociais do país. Não podemos esquecer
um efeito negativo na ajuda humanitária e que os Estados Unidos tentaram sem êxi-
1 A Associação Iraquiana Al-Amal é uma associação na reconstrução do país. to, por causa da força da unidade nacio-
apolítica e não-sectária de voluntários(as)
engajados(as) ativamente em projetos para o benefício
Muitas ONGs internacionais e agênci- nal, aumentar as tensões entre xiitas e
e bem-estar da população do Iraque. as humanitárias, como a Organização das sunitas, numa tentativa de provocar uma

Observatório da Cidadania 2004 / 95


guerra civil antes da invasão, assim como • um terço das crianças iraquianas (1mi- outras perdas incluíram a destruição da
apoiaram a população curda de forma lhão) sofre de desnutrição, que au- infra-estrutura civil já deteriorada, com im-
abertamente provocadora. mentou 160% na última década; pacto devastador a longo prazo.
Nesse cenário sombrio, é mais urgen- • sete de cada dez mortes infantis são Tendo passado por três grandes con-
te do que nunca assegurar a lei e a ordem causadas por diarréias ou infecções flitos em três décadas, o Iraque ficou muito
pública. O atendimento à saúde é um bom respiratórias agudas vinculadas à água prejudicado pelo legado dessas guerras. As
exemplo. A Organização Mundial da Saúde poluída ou à desnutrição; estimativas do número de minas terrestres
(OMS) declarou ter recebido relatórios • de acordo com a Agência dos Esta- no país variam de 8 a 12 milhões, sem in-
preocupantes de Bagdá, informando que dos Unidos para o Desenvolvimento cluir bombas, munições não-detonadas e
a capacidade dos hospitais foi muito Internacional (Usaid), havia, antes da outros resíduos bélicos. A maior parte foi
restringida pela ausência de ordem civil e guerra, somente 9.400 profissionais instalada durante a guerra entre o Irã e o
que estava “extremamente preocupada” de de medicina para uma população de Iraque, que ocorreu de 1980 a 1988. Além
que isso pudesse ter impacto sério na saú- 25 milhões. dessas, muitas minas terrestres, bombas e
de e no atendimento médico da capital. munições não-detonadas permanecem ati-
Os seguintes fatos são importantes O custo civil da guerra vas desde os conflitos internos das déca-
para a segurança humana no Iraque do Um pouco antes do início das hostilida- das de 1960 e 1970, somando-se às da
pós-guerra: des, o secretário-geral da ONU afirmava Guerra do Golfo (1990–1991). Alguns des-
• mesmo antes dessa guerra, a infra- que o uso da força sem o endosso do ses explosivos remontam à Segunda Guer-
estrutura do Iraque era extremamen- Conselho de Segurança “não estaria em ra Mundial.
te frágil por causa de duas guerras conformidade com a Carta [da ONU]”. Da Além de serem ameaça à vida das pes-
anteriores e das prolongadas sanções mesma forma, muitos especialistas des- soas, as minas terrestres, as bombas e
econômicas, impostas pela ONU des- creveram o ataque dos Estados Unidos e munições não-detonadas são um obstá-
de 1991; do Reino Unido como um ato de agres- culo substancial ao crescimento econômi-
• um total de 16 milhões de civis do são, que violava a lei internacional. Tam- co, especialmente em relação à pastagem
Iraque dependem completamente da bém apontaram ilegalidades na conduta animal, criação de gado e agricultura. É
ajuda alimentar do governo; estadunidense na guerra e violações das comum encontrar minas perto de fontes
• a ONU estima que 5 milhões de Convenções de Genebra pelos Estados de água ou em terras agrícolas, o que com-
iraquianos e iraquianas não têm acesso Unidos e pelo Reino Unido, com relação plica as atividades do cotidiano. Os cam-
a água potável e saneamento. A princi- a suas responsabilidades como potências pos minados também dificultam o acesso
pal fonte de água do país, o rio Tigre, ocupantes. Na verdade, as forças da coa- a muitas estradas importantes, portos,
recebe todos os dias meio milhão de lizão cometeram graves violações da Lei canais de irrigação e centrais elétricas.
toneladas de esgoto não-tratado ou só Humanitária Internacional, entre elas o uso Embora representem um perigo per-
parcialmente tratado; generalizado de bombas de fragmenta- manente, as minas e as bombas de frag-
• a metade das estações de tratamento de ção, que tem causado os maiores danos mentação não são a maior ameaça
esgoto não funciona, e, entre aquelas no pós-guerra. imediata para a população. De acordo
que estão trabalhando, um quarto não As violações do lado iraquiano durante com a ONG internacional Grupo de As-
cumpre os padrões ambientais do pró- a guerra não foram menos graves. As for- sessoria sobre Minas, a ameaça princi-
prio Iraque. De acordo com informes ças iraquianas não somente deixaram de pal, especialmente ao sul de Bagdá,
do Fundo das Nações Unidas para a In- tomar medidas adequadas para proteger provém dos grandes arsenais, sistema de
fância (Unicef), somente 45,7% (com- civis, como seguidamente violaram a Lei armas e locais de lançamento de mísseis
parado com 75%, antes da Guerra do Humanitária Internacional, de acordo com que foram instalados pelo antigo regime
Golfo de 1991) dos lares possuem água o Human Rights Watch (Observatório dos em áreas residenciais civis. Os saques dei-
encanada, dos quais 65% são abasteci- Direitos Humanos), ao usarem escudos hu- xaram esses depósitos expostos e desor-
dos com água não-tratada; manos, minas terrestres antipessoais, em- denados, e muitas dessas armas são
• uma criança em cada oito morre antes blemas da Cruz Vermelha e do Crescente instáveis. Embora os homens adultos e
de atingir os 5 anos, e a mortalidade de Vermelho, trajes civis e ao instalarem alvos
menores de 5 anos aumentou de 56 militares em edifícios civis e protegidos
para cada mil crianças nascidas vivas, (como mesquitas e hospitais).2
2 Human Rights Watch. Off target: the conduct of the war
no fim da década de 1980, para 131 O número de vítimas civis é extraordi- and civilian casualties in Iraq. Nova York: HRW.
para cada mil, uma década depois; nariamente alto. Além das mortes diretas, Dezembro de 2003.

Observatório da Cidadania 2004 / 96


os meninos sejam os que correm mais Depois do uso de granadas lançadas De acordo com estatísticas publicadas
riscos, esses arsenais e munições são uma por foguetes (RPG, na sigla em inglês) e de em 6 de novembro de 2003 pelo Comitê
grave ameaça para toda a população. morteiros, novos meios de ataque surgi- de Coordenação das ONGs no Iraque, a
Logo após maio de 2003, era bastan- ram no último período: caminhões-bomba distribuição dos ataques era a seguinte:
te comum a cena chocante de pessoas ven- (especialmente caminhões de lixo) e os cha- 72% contra as forças da Coalizão, 11%
dendo armas nas ruas, entre muitos outros mados “aparatos explosivos melhorados co- contra a polícia iraquiana, 8% contra ins-
objetos. No mercado negro, havia todo tipo locados sob veículos” (Uvied, na sigla em talações governamentais, 2% contra di-
de artefato: armas de mão, metralhado- inglês). Outra tática consiste em mulheres plomatas, 2% contra a comunidade
ras, granadas etc. que carregam explosivos como se fossem internacional e 5% desconhecidos. Atual-
Apesar das campanhas de desarma- bebês e tentam entrar em hospitais. Dois mente, há quase 20 mil fornecedores e
mento realizadas pelas forças da coalizão, hospitais de Bagdá foram atacados com empreiteiros privados no país, o que equi-
as pessoas no Iraque preferem continuar essa tática no início de novembro de 2003. vale, ou mesmo supera, em números a
pesadamente armadas, uma decisão que Como é óbvio, os carros-bomba, os presença do exército britânico. Além dis-
justificam apontando o clima de insegu- homens-bomba e as mulheres-bomba, que so, há 132 mil militares dos Estados Uni-
rança. Não podemos esquecer que o regi- se tornaram as formas mais comuns de dos e 23 mil de outras nacionalidades.3
me baathista de Saddam não se rendeu; ataque, são também as mais destrutivas. Também aumentaram os atentados con-
retirou-se de Bagdá com muitas de suas Um dos incidentes mais infames desse tipo tra os iraquianos e iraquianas. Em 10 de
melhores armas intactas. Se acrescentar- foi o ataque à sede da ONU, no qual mor- dezembro de 2003, foram realizadas gran-
mos a isso o fato de que foram distribuí- reram o representante especial do secre- des manifestações em todo país para con-
das à população 6 milhões de armas pelo tário-geral da ONU, Sérgio Vieira de Mello, denar o terrorismo. No entanto, cada vez
Partido Baath,NT antes do início da guerra, juntamente com outros 20 altos-funcio- mais pessoas do Iraque se unem a
e que um fuzil kalachnicov, de fabricação nários e funcionárias dessa organização. guerrilheiros(as), muitos(as) dos(as)
romena, pode ser comprado no mercado Outros tipos de ataque incluem fran- quais sunitas, que anteriormente estavam
negro de Bagdá por menos de US$ 20, é co-atiradores e assassinatos de autorida- à margem dos acontecimentos, porém ago-
fácil imaginar o alto nível de ameaça à vida des locais iraquianas, assim como ataques ra acreditam que podem “causar danos cor-
de civis do Iraque. às pessoas que “colaboram com a ocupa- porais” às forças dos Estados Unidos.
ção”, tais como intérpretes. Houve tam- Munições são facilmente encontradas, o
Ataques terroristas bém vários casos de seqüestros, embora que facilita muito a preparação dos atenta-
Tem havido um aumento contínuo dos ata- pareça que, na maioria desses casos, o dos. Também há relatos de maior organi-
ques contra as forças de ocupação na zona principal motivo seja a extorsão. zação e coordenação entre insurgentes de
central do Iraque (o triângulo sunita). Na As pessoas que moram perto das de- outras nacionalidades (incluindo membros
verdade, está aumentando a pressão das legacias policiais e das bases das forças da Al-Qaeda e do Hezbollah, mas não ape-
forças anticoalizão (basicamente grupos da Coalizão são ameaçadas e escolhidas nas essas organizações) e membros do
leais ao antigo regime e grupos extremis- como alvos. No entanto, atualmente têm regime deposto.
tas), assim como o número de operações sido escolhidos novos alvos civis – juízes
bem-sucedidas. As forças da coalizão en- e funcionários(as) iraquianos(as), forne- Em busca da governança
contram-se cada vez mais vulneráveis e cedores dos Estados Unidos etc. –, apa- Em qualquer país, a responsabilidade prin-
não têm segurança em nenhuma parte do rentemente por causa de suas relações cipal de atender às necessidades humani-
país. Isso aumenta a tensão da tropa da coa- estreitas com as forças da Coalizão. Tam- tárias e prover segurança é do governo.
lizão, já cansada, o que pode levar a reações bém estão sendo atacadas organizações Um governo iraquiano representativo e res-
impulsivas. internacionais (escritórios do Comitê In- ponsável garantirá que o povo iraquiano
Embora muitos dos incidentes tenham ternacional da Cruz Vermelha, sede da tenha a possibilidade de usar seus recur-
sido isolados e contra indivíduos ou o re- ONU, escritórios do Care Internacional) e sos consideráveis na construção de um
sultado de ações criminosas comuns, os instalações civis (hospitais, hotéis, estra- futuro melhor. Até lá, essa responsabilida-
ataques mais recentes parecem ter sido das e ferrovias). Na verdade, a crença de de é do governo interino que assumiu em
bem planejados e, cada vez mais, dire- que a ONU e algumas ONGs internacionais
cionados contra pessoas estrangeiras. têm vínculos com as forças da Coalizão
pode dificultar o oferecimento de segu-
rança adequada ao pessoal que trabalha 3 NCCI’s Security Briefs (No 1-6). Distribuídos pelo
para essas organizações. Escritório de Segurança do Comitê de Coordenação das
NT Renascimento em árabe. ONGs no Iraque, Bagdá.

Observatório da Cidadania 2004 / 97


28 de junho de 2004. No entanto, o impe- tituições, diminuirá ainda mais em 2004. tificados, dedicados exclusivamente a seus
rativo de derrotar o governo de Saddam O ministro da Fazenda, Ali al-Kelani, men- próprios interesses egoístas e, quando con-
Hussein e localizar e desativar as armas de cionou, na última reunião do Fórum Inter- frontados com dissidências, reagem com a
destruição em massa (nunca encontradas) nacional em Dubai, que o déficit força bruta. Atualmente, é quase unânime
absorveu inicialmente todas as energias e orçamentário de 2004 poderia atingir US$ entre o povo iraquiano a crença de que o
criou um vácuo de segurança em nível lo- 600 milhões, assinalando que cerca de 500 governo Bush deseja perpetuar a ocupa-
cal. O policiamento e a segurança locais mil funcionários(as) públicos(as) não re- ção militar, por meio da manutenção do
dificilmente seriam prioridades para mili- cebiam seus salários. caos, da exacerbação da violência e da pro-
tares dos Estados Unidos, e a derrubada O Banco Mundial informou que, mes- moção de divisões entre cidadãos e cida-
do governo deixou o Iraque com pouca mo se a comunidade internacional ofere- dãs iraquianos. Os fatos parecem confirmar
capacidade de atuação policial. Isso tem cesse durante os próximos quatro anos essa percepção.
criado instabilidade em nível local, bloque- US$ 35 bilhões, valor calculado para a
ando a ajuda efetiva e os esforços de re- reconstrução do Iraque (outras estimati- O longo caminho da recuperação
construção. Como conseqüência, civis não vas variam de US$ 50 bilhões a US$ 75 Vemos a segurança nacional e a segu-
desfrutam de proteção adequada e não bilhões), não seria possível aplicar mais rança humana como dois lados da mes-
conseguem recorrer à lei quando seus di- do que US$ 5 bilhões, por falta de capa- ma moeda. Nenhuma delas ameaça a
reitos são violados. cidade institucional do Estado iraquiano. estabilidade global, porém cada uma im-
A falta de infra-estrutura funcional sig- No entanto, essa avaliação das necessi- plica um sofrimento humano inaceitável.
nifica que serviços essenciais não estão dades da reconstrução não incluía itens Em conseqüência, o apoio para restabe-
sendo fornecidos, o que tem um efeito es- como cultura (a Organização das Nações lecer a sociedade civil é de importância
pecialmente devastador sobre as pessoas Unidas para a Educação, Ciência e Cultu- vital para o desenvolvimento de um Iraque
mais vulneráveis. As necessidades de re- ra/Unesco realizou uma avaliação pró- estável e seguro, o que inclui, principal-
construção são enormes, depois de 20 pria), meio ambiente, direitos humanos, mente, o respaldo à capacitação das ONGs
anos de abandono e corrupção na infra- segurança etc. iraquianas.
estrutura econômica, ambiental e de ser- O desemprego é o maior problema Diferentemente do que ocorre no
viços. Além disso, os recursos públicos atual da economia iraquiana. Dados do Afeganistão, existem pouquíssimas ONGs
eram gastos com as Forças Armadas e para Ministério do Trabalho mostram que 12 e agências da ONU fora de Bagdá, especi-
manter o antigo regime no poder. Por últi- milhões de pessoas estão sem emprego almente nas áreas do sul e do centro do
mo, o país sofreu o impacto avassalador no país. Esse número representa cerca Iraque. Tal fato causa dificuldades extre-
dos conflitos armados e das sanções in- de 50% da população iraquiana (de 24,5 mas ao fornecimento de ajuda humanitá-
ternacionais que levaram a uma deteriora- milhões), ou seja, metade está desempre- ria a populações vulneráveis. Além disso,
ção do padrão de vida do povo iraquiano. gada ou tem somente empregos de meio muitas ONGs ainda reclamam que as res-
O término do programa Petróleo por Ali- expediente. Vale destacar que 30% da trições de licenciamento dos Estados Uni-
mentos e a conseqüente transição para o população tinha empregos públicos an- dos impedem que as agências possam dar
Sistema de Distribuição Pública é um exem- tes da guerra. De acordo com o então uma resposta humanitária adequada. Es-
plo claro dessa situação. Como quase a representante do ministro do Trabalho no sas organizações acreditam que as forças
metade da população era totalmente de- Conselho de Governo, Nouri Ja’far, a prin- militares não devem se engajar em assis-
pendente da ajuda governamental, há pre- cipal razão para as altas taxas de desem- tência humanitária, a menos que não haja
ocupações sérias de que essa mudança prego era a dissolução do Exército e das outra forma de enfrentar necessidades vi-
tenha um impacto negativo muito forte forças policiais, assim como o congela- tais da população, e que a ajuda e os es-
sobre as famílias pobres, aumentando a mento das alocações dos ministérios e forços de reconstrução devem passar às
desnutrição e possivelmente causando instituições governamentais. mãos das autoridades civis o mais rapida-
mortes por fome. O sentimento atual entre o povo mente possível, para assegurar uma ação
O Fundo Monetário Internacional (FMI) iraquiano é de que as forças dos Estados humanitária imparcial.
e o Banco Mundial estimam que a econo- Unidos não fazem nada mais do que se pre- A operação Liberdade Iraquiana, como
mia iraquiana encolherá 22% em 2004, ocupar obsessivamente com sua própria foi chamada a invasão e a ocupação do
comparado com 21% em 2002 e 12% em segurança. Para a opinião pública, a inércia Iraque pelos Estados Unidos e seus par-
2001. A renda média per capita caiu de dos Estados Unidos tornou-se inevitavel- ceiros da Coalizão, representou um novo
US$ 3.600 em 1980 para US$ 530 no fim mente associada ao regime de Saddam: sua enfoque para a ação humanitária no pós-
de 2003. Ainda de acordo com essas ins- presença é ilegítima, vivem em abrigos for- guerra. Essa abordagem unificou seguran-

Observatório da Cidadania 2004 / 98


ça, governança, resposta humanitária e re- Diante das enormes dificuldades enfren- de. De fato, as ONGs estão avançando de
construção sob o controle do Departamento tadas por esse processo centralizado pelo forma significativa em termos de segurança
de Defesa. A ação humanitária tem um ca- Pentágono, as autoridades estão finalmente em comparação com experiências anterio-
ráter unilateral e está vinculada intrinseca- procurando a ajuda da ONU e das ONGs. O res. Por exemplo, vêm realizando tentativas
mente à agenda de segurança dos Estados problema é que, em todo país, os papéis e as sem precedentes para monitorar e denunciar
Unidos, no contexto da guerra global con- responsabilidades estão sendo definidos de violações do direito internacional humanitá-
tra o terrorismo. Das agências da ONU e forma improvisada, diante das imensas difi- rio, têm compartilhado informações sobre
das ONGs, que tradicionalmente coorde- culdades práticas, no lugar de terem sido an- segurança, divulgado avisos de segurança
nam e implementam a assistência humani- teriormente planejados de forma conjunta. etc. Entretanto, essas ONGs não têm a capa-
tária e os programas de reconstrução do Com a esperança de eliminar o medo e cidade de arcar com todas as responsabilida-
pós-guerra, esperava-se que cumprissem restaurar a sensação de segurança do povo des que a ONU não pôde assumir, nem
um papel de apoio, dentro de um esforço iraquiano, várias ONGs locais e internacionais cumprir o mesmo papel do governo na re-
administrado pelo Pentágono. começaram a assumir essa responsabilida- construção do país.

Observatório da Cidadania 2004 / 99


MÉXICO

Rompendo o círculo vicioso


As políticas econômicas neoliberais geram diversos círculos viciosos de insegurança
humana. Um deles, relacionado à abertura comercial indiscriminada, crise no campo e
migração, é uma das múltiplas expressões do grau de vulnerabilidade dos direitos
econômicos, sociais, culturais e ambientais. A partir das recomendações do Diagnóstico
sobre a Situação dos Direitos Humanos no México, o presidente Vicente Fox assumiu o
compromisso de elaborar o Programa Nacional de Direitos Humanos, em dezembro de
2003. É indispensável que o Estado mexicano aborde os direitos em sua integralidade e
interdependência, para começar a gerar “círculos virtuosos” de segurança humana.

Deca Equipo Pueblo, A.C. Fian, Seção do volvimento (Pnud) alerta sobre as ameaças O diagnóstico inclui uma seção sobre
México à segurança humana: econômicas (pobre- os obstáculos estruturais para garantir o di-
Espaço de Coordenação das Organizações za, falta de habitação) e alimentares (fome). reito a um nível de vida adequado no Méxi-
Civis sobre os Desc Nessa perspectiva, são analisadas as seguin- co. Alguns desses obstáculos são:4
Frente Democrática Camponesa de tes questões que formam um círculo vicioso • o modelo de abertura da economia ao
Chihuahua de insegurança humana no México: obstá- mercado externo e a promoção do in-
Areli Sandoval Terán1 culos estruturais para o desfrute de um nível vestimento estrangeiro, iniciada em
de vida adequado; pobreza rural e urbana; 1985, não cumpriram as metas de
O preâmbulo da Declaração Universal dos livre comércio e crise no campo; e o fenô- reativação do crescimento econômico
Direitos Humanos reconhece a aspiração a meno migratório. sustentado do país e sua implementa-
um mundo onde as pessoas possam viver ção não foi socialmente responsável;
livres do temor e da miséria, porém esse Obstáculos estruturais • um desmantelamento contínuo das institui-
direito tem sido ignorado e menosprezado, ções que apoiavam a produção e o consu-
As organizações civis e sociais que vêm
o que constitui um grande obstáculo a esse mo dos pequenos produtores camponeses
monitorando e avaliando os programas de
ideal. Em seu artigo 25, a Declaração consa- de grãos e oleaginosas e a abertura às im-
ajuste estrutural (PAEs) aplicados nos últimos
gra os direitos humanos econômicos, sociais portações maciças desses produtos cria-
20 anos no México documentaram e denun-
e culturais no marco do direito a um nível de ram uma dependência alimentar perigosa e
ciaram publicamente seus impactos econômi-
vida adequado. Este relatório centra sua ar- agravaram o empobrecimento rural;
cos, sociais, culturais e ambientais, tendo
gumentação na análise de certos cenários • embora tenha havido um esforço signifi-
exigido que os poderes Executivo e Legislativo
sociais e econômicos da realidade mexica- cativo para aumentar os recursos dos
federais acabassem com esse processo de de-
na, nos quais é sistematicamente violado o
terioração das condições de vida da popula- programas de combate à pobreza rural
direito a uma vida adequada, o que repre-
ção, considerando que se trata de uma violação direcionados a indivíduos, na formulação
senta uma ameaça à segurança humana.
sistemática dos direitos humanos e, portan- e implementação desses programas não
A Comissão de Segurança Humana con-
to, de um atentado à segurança humana de foi levada em conta a perspectiva dos di-
sidera que são necessárias políticas integrais,
milhões de pessoas no país.3 Algumas dessas reitos humanos, gerando exclusão e dis-
centradas na sobrevivência das pessoas, nos
observações foram retomadas no Diagnósti- criminação na sua operação e cobertura;
meios de vida e na dignidade,2 enquanto o
co sobre a Situação dos Direitos Humanos no • as condições aceitas nos acordos e con-
Programa das Nações Unidas para o Desen-
México, elaborado pelo Escritório do Alto- vênios com os organismos financeiros
comissariado das Nações Unidas para Direitos internacionais e nos acordos e tratados
Humanos, no contexto do Acordo de Coope-
ração Técnica com o governo mexicano.
1 Coordenadora do Programa Diplomacia Cidadã da Deca
Equipo Pueblo, A.C., ponto focal do Social Watch no
México. Contatos com a autora: 4 Escritório do Alto-comissariado das Nações Unidas
<arelisandoval@equipopueblo.org.mx>. 3 Para mais informações, ver “Informes del ejercicio de para Direitos Humanos. Diagnóstico sobre la situación
2 Comissão de Segurança Humana. Human security now. evaluación ciudadana del ajuste estructural”. Casa- de los derechos humanos en México. Mundi-Prensa,
Nova York, 2003. Saprin Disponível em: <www.equipopueblo.org.mx>. 2003, p. 73-74.

Observatório da Cidadania 2004 / 100


de livre comércio restringiram as mar- áreas rurais (aproximadamente 25 milhões), Livre Comércio da América do Norte (Nafta,
gens de ação do governo para definir esses percentuais significam que cerca de na sigla em inglês) de 1994, que há dez
de forma autônoma sua política econô- 18 milhões de pessoas no campo e outras anos foi apresentado como o meio para con-
mica e social e subordinaram as políti- 33 milhões nas cidades vivem nessa situa- verter o México num grande exportador,
cas e programas sociais aos acordos ção lamentável de pobreza.6 reduzir a pobreza, aumentar o emprego e
econômicos de livre mercado; A distância entre a população urbana e ru- conseguir a estabilidade macroeconômica.
• nos últimos 20 anos, as políticas econô- ral fica ainda maior quando analisamos a situa- No entanto, nenhum dos supostos benefí-
micas mais destacadas incluíram o des- ção da população feminina – da infância até a cios mencionados tornou-se realidade, pois,
mantelamento do Estado, a privatização terceira idade. De acordo com a Organização embora o México tenha um superávit co-
das empresas públicas, a abertura do das Nações Unidas para Agricultura e Alimenta- mercial com os Estados Unidos, este é com-
mercado, o controle inflacionário, orça- ção (FAO), o percentual de mulheres do campo posto basicamente das exportações das
mentos equilibrados, disponibilidade in- que vive na pobreza extrema atingiu 52%.7 maquiladoras,10 dos setores automotivos e
suficiente e volátil de crédito, competição Embora exista uma limitação estatística do petróleo, qualificadas como “exporta-
desleal com a produção nacional, elimi- para encontrar dados desagregados por sexo, ções de mão-de-obra barata e recursos
nação de subsídios, contenção salarial e a desigualdade entre os gêneros na pobreza naturais; além disso, as exportações estão
desregulamentação dos mercados. Tudo é uma realidade. Um exemplo disso é a cha- concentradas em poucas atividades e são
isso causou mudanças na estrutura pro- mada jornada de trabalho tripla ou até quá- dominadas por um grupo minúsculo de
dutiva do país que tiveram repercussões drupla que realizam muitas mulheres, desde empresas transnacionais”.11
profundas nos níveis de vida e nos direi- crianças até idosas, para enfrentar diversas Focalizando o setor rural, o próprio Ban-
tos econômicos, sociais e culturais dos carências: de garantir a alimentação da família co Mundial reconheceu num estudo que os
indivíduos e das famílias. até o cuidado de pessoas doentes, idosas ou benefícios do Nafta não alcançaram a zona
com necessidades especiais e sem nenhuma rural e que os estados do sul não foram
Pobreza rural e urbana possibilidade de acesso a serviços públicos. contemplados pelo tratado. Ao contrário, nos
estados de Guerrero, Oaxaca e Chiapas, um
Os efeitos dos PAEs também aparecem na
Livre comércio e a crise no campo8 quarto da população de 28 milhões de habi-
geração de condições de insegurança eco-
tantes vive na pobreza extrema. Embora o
nômica e social e, nas áreas rurais, têm re- O México negociou 11 tratados de livre co-
Banco Mundial tenha concluído que isso se
sultado em maior empobrecimento da mércio com 32 países de três continentes e
deva em parte ao fato de esses estados não
população. A Secretaria de Desenvolvimen- 19 Acordos para a Promoção e a Proteção
estarem preparados para enfrentar a aber-
to Social (Sedesol) considera que 53,7% da Recíproca de Investimentos, nos quais “os
tura econômica, também reconhece que o
população, cerca de 53 milhões de pessoas, interesses nacionais são sobrepujados por
nível dos gastos sociais a eles destinados
tem uma renda diária per capita de 28,1 pe- interesses desregulados e privados das
pelo governo é relativamente baixo, se levar-
sos mexicanos (US$ 2,6) nas áreas rurais e transnacionais”.9 Destaca-se o Tratado de
mos em conta o seu nível de desenvolvi-
41,8 pesos mexicanos (US$ 3,8) nas zonas
mento econômico, e que, em termos fiscais,
urbanas, quantia insuficiente para cobrir ne-
esses gastos poderiam ser aumentados.12
cessidades básicas de alimentação, educa-
Desde que o Nafta entrou em vigor, o
ção, saúde, vestimenta, calçado, habitação e
México aumentou suas importações agro-
transporte público. 6 Os cálculos são aproximados e baseados nos dados
da evolução da população rural e urbana do Conselho pecuárias, perdendo soberania e segurança
Nessa situação, estão 69,3% da popu- Nacional de População e do Instituto Nacional de
lação rural e 43,8% da população urbana.5 Estatística, Geografia e Informática (cf. Poder
Levando em conta que atualmente três quar- Executivo, Segundo informe de gobierno, 2002).

tos da população estão concentrados nas 7 Ver a notícia “52% de mujeres rurales vive em pobreza
extrema”, de 7 de fevereiro de 2003. Disponível em:
zonas urbanas (cerca de 75 milhões de pes- <http://www.cimacnoticias.com/noticias/03feb/ 10 As maquiladoras são fábricas de uma empresa
soas), enquanto uma quarta parte vive nas 03020710.html>. Acesso em: 5 nov. 2004. estrangeira ou transnacional que se estabelecem em
8 Essa seção está baseada no texto de Norma países onde a mão-de-obra é mais barata para
Castañeda, Pobreza y libre mercado en México (Deca fabricar ou montar alguns componentes de um
Equipo Pueblo, A.C., mimeografado, dezembro de determinado produto.
2003). Contatos com a autora: 11 NADAL, Alejandro; AGUAYO, Francisco; CHÁVEZ,
<nacastaneda@equipopueblo.org.mx>. Marcos. Siete mitos sobre el TLCAN. Disponível em:
5 Secretaria de Desenvolvimento Social e Comitê Técnico
9 WITKER, Jorge; HERNÁNDEZ, Laura. Introducción al <www.americaspolicy.org/articles/2003/
para a Medição da Pobreza. Estudio sobre evolución y
Comercio Internacional. In: _____. Régimen jurídico sp_0312mitos.html>. Acesso em: 5 nov. 2004.
características de la pobreza en México en la última
década del siglo XX. Agosto de 2002, p. 31. Disponível del comercio exterior de México . Cidade do México: 12 Banco Mundial. Estrategia de desarrollo de los Estados del
em: <www.sedesol.gob.mx>. Unam, 2001, p. 14. Sur, Vol. I. Disponível em: <www.bancomundial.org.mx>.

Observatório da Cidadania 2004 / 101


alimentar e impondo um obstáculo à segu-
rança humana de milhões de pessoas, com Tabela 1 – Remessas de imigrantes
impacto direto sobre milhares de produto- 2002 2003
res(as) rurais. Alguns dos dados mais signi-
ficativos são:13 População mexicana nos Estados Unidos 9,5 milhões 9,9 milhões
• o Nafta significou um aumento das im- Total de remessas US$ 8,953 bilhões US$ 14,5 bilhões
portações agroalimentares. Em 1995,
Fonte: Instituto Nacional de Emigração <www.inami.gob.mx>.
importamos dos Estados Unidos US$
3,254 bilhões e exportamos US$ 3,835
bilhões. Em 2001, as importações dis- donam suas terras diariamente. O cam- vos indígenas; e diminuição do atraso social
pararam para US$ 7,415 bilhões, e as po perdeu 1,78 milhão de empregos e jurídico do setor agrário, assim como a
exportações atingiram US$ 5,267 bilhões. desde que o Nafta entrou em vigor; revisão do marco legal agrário.14
Nossa balança agroalimentar com os • os subsídios do governo estaduniden-
Estados Unidos passou de um superávit se a seus(suas) produtores(as) atingem Imigração: o auto-exílio econômico
de US$ 581 milhões, em 1995, para um a média de US$ 21 mil por produtor(a), Nesse contexto de pobreza e desmantela-
déficit de US$ 2,148 bilhões, em 2001; enquanto no México chega a US$ 700. mento do campo, não é de estranhar a in-
• em 1990, a média anual das importa- Depois da promulgação da Lei Agrícola tensa migração interna para as cidades,
ções das dez colheitas básicas (milho, dos Estados Unidos, os subsídios a agri- assim como uma grande emigração inter-
feijão, trigo, sorgo, arroz etc.) era de cultores e agricultoras aumentarão 80% nacional para os Estados Unidos, proveni-
8,7 milhões de toneladas. Em 2000, atin- nos próximos dez anos. ente principalmente dos estados do sul e do
giu 18,5 milhões de toneladas – um au- A partir de novembro de 2002, na oeste, que têm o menor desenvolvimento
mento de 112%. Antes do Nafta, o iminência da redução da maioria das tarifas humano no país.15
máximo de milho importado tinha sido de importações agroalimentares, de acor- O fenômeno migratório é muito mais
2,5 milhões de toneladas; porém, em do com dispositivos do Nafta, 12 organiza- complexo do que antes. Agora, trabalha-
2001, a importação já tinha alcançado ções camponesas regionais e nacionais dores e trabalhadoras emigram definitiva-
6,15 milhões de toneladas; iniciaram um movimento chamado “O Cam- mente com a família, e não individualmente,
• em conseqüência da competição des- po não Agüenta mais”. Suas reivindicações buscando inserção em diversos setores da
leal das importações estrangeiras, o valor básicas são as seguintes: renegociação do atividade econômica, e não somente no
real dos produtos rurais caiu muito. En- Nafta em questões agropecuárias; reforma setor agrícola. Esse tipo de “auto-exílio
tre 1985 e 1999, o milho perdeu 64%, e estrutural no campo, baseada num pro- econômico” é uma forma de expulsão de
o valor do feijão, 46%, sem que isso grama emergente e num planejamento de centenas de pessoas que não se benefici-
significasse comida mais barata para médio e longo prazo, por uma comissão am das políticas governamentais, porém
consumidores e consumidoras, pois, estatal; incremento significativo e sustentá- recebem todo o impacto de suas conse-
entre 1994 e 2002, a cesta básica au- vel do orçamento para o desenvolvimento qüências negativas.
mentou 257%; rural, com a exigência de que esse orça- Como sabemos, a maioria das pessoas
• a pobreza expulsa a população campo- mento seja plurianual; um sistema de fi- que emigram cruza ou tenta atravessar a fron-
nesa para as cidades e para os Estados nanciamento rural a serviço dos(as) teira norte sem documentação, arriscando a
Unidos. De acordo com a própria Sedesol, pequenos(as) e médios(as) produtores(as); vida pela necessidade profunda de encontrar
600 pessoas do campo, em média, aban- alimentação saudável e nacional, suficiente meios de subsistência pessoal e familiar. Nes-
para todo o povo do México; cumprimento se trajeto, muitos homens e mulheres, jo-
total dos acordos de San Andrés, no que vens e até crianças morrem por diversos
diz respeito aos direitos e à cultura dos po- motivos: em conseqüência do clima adverso
do deserto, da falta de alimento e água, das
13 Centro de Pesquisas Econômicas e Políticas da Ação
Comunitária, A.C. Datos sobre la situación del campo
en México. Algunos resultados del Tratado de Libre
Comercio de América del Norte (TLCAN) en agricultura
y alimentación. Disponível em: <www.ciepac.org/ 14 Documento de Postura del Frente Democrático
analysis/sitcampmex.htm>; MOLINA RAMÍREZ, Tania. Campesino de Chihuahua. 24 de abril de 2003. Mimeo.
Recuento de un desastre. El campo en cifras. Boletim 15 Para mais informações sobre o Índice de Desenvolvi-
n. 264, 12 de janeiro de 2003. Disponível em: mento Humano por regiões e estados, ver Informe sobre
<www.ceccam.org.mx>. Desarrollo Humano México 2002, publicação do Pnud.

Observatório da Cidadania 2004 / 102


picadas ou ataques de animais, por asfixia Depois dos atentados de 11 de setem- Na agenda do Executivo, assim como
nos meios de transporte onde se escondem, bro de 2001, a agenda bilateral entre o Méxi- na do Legislativo e do Judiciário, um objeti-
por afogamento em rios e canais ou por abu- co e os Estados Unidos em termos de vo central deve ser a proteção e a promoção
sos e assaltos das próprias pessoas que imigração foi ampliada, para incorporar o da segurança humana. Em dezembro de
os(as) conduzem (chamadas polleros). tema dos vínculos entre a segurança nacio- 2003, o presidente Vicente Fox assumiu o
Tais emigrantes enfrentam o grande ne- nal e a migração. Em janeiro de 2004, o pre- compromisso de elaborar um Programa
gócio do tráfico de pessoas sem documen- sidente George W. Bush propôs ao Congresso Nacional de Direitos Humanos a partir das
tos, assim como a corrupção, indiferença e estadunidense um programa que permitiria recomendações do Diagnóstico Nacional,
até negligência das autoridades de imigra- que milhões de trabalhadores e trabalhado- que identificou obstáculos estruturais para
ção mexicanas. São vítimas de abusos e ras sem documentos e pessoas de outros o cumprimento dos direitos humanos e, por-
maus-tratos por parte das patrulhas de fron- países que têm ofertas de emprego nos Esta- tanto, para a segurança humana no país.
teira e outras autoridades estadunidenses dos Unidos trabalhassem legalmente duran- Se for elaborado de forma adequada, o
que criminalizam a imigração sem documen- te três anos, com a possibilidade de uma Programa Nacional será um sinal de vonta-
tos. Após cruzar a fronteira, tampouco es- prorrogação, se não fossem encontrados ci- de política, porém sua avaliação deve ser
sas pessoas estão seguras: podem ser dadãos e cidadãs estadunidenses para de- feita com base na sua execução efetiva. Além
vítimas da xenofobia e do racismo de resi- sempenhar aquela tarefa. 16 No entanto, a disso, é indispensável que o Estado enfrente
dentes locais ou de grupos que pregam a eventual adoção do novo programa nos Es- os problemas sociais e econômicos do país
supremacia branca, atuando até contra tra- tados Unidos para trabalhadores e trabalha- de maneira integral e de forma totalmente
balhadores e trabalhadoras agrícolas já es- doras imigrantes temporários é uma medida coerente com seus compromissos e obri-
tabelecidos. Quando já moram no país insuficiente e deficiente para resolver um pro- gações em termos de direitos humanos –
vizinho, enfrentam diversos tipos de explo- blema tão complexo. Além disso, num con- sobretudo os econômicos, sociais, cultu-
ração: econômica, trabalhista, sexual etc. As- texto de interdependência econômica, o rais e ambientais –, os quais não tem de-
sim, é produzido um círculo vicioso de governo estadunidense não deveria definir monstrado interesse verdadeiro em
insegurança humana. sua política de imigração de modo unilateral. promover e proteger.

16 Serviço de notícias em Washington. “Bush propõe


importante reforma do sistema de imigração. Daria
situação legal temporária a trabalhadores sem
documentos”, 8 de janeiro de 2004. Disponível em:
<http://usinfo.state.gov/espanol/>.

Observatório da Cidadania 2004 / 103


NIGÉRIA

Violações generalizadas
A sucessão de governos autoritários e corruptos é uma ameaça permanente ao povo
nigeriano. Há inúmeros relatos de casos de discriminação sexual, étnica, racial, religiosa
ou política. Massacres e despejos forçados, além de estupros de mulheres e meninas, têm
sido práticas comuns no país, e a luta para controlar ou administrar os recursos derivados
do petróleo e outros minerais resultou em outras centenas de mortes. As condições para
a paz e o desenvolvimento são o respeito aos direitos humanos, o Estado de direito e a
possibilidade de mudar o governo por meios democráticos e pacíficos.

Iniciativa pelos Direitos Socioeconômicos Superior Federal. Conseguiu-se uma liminar Um ano antes, o exército havia matado
Profissionais Conscientes da Nigéria para deter a ação do governo. Houve pro- 2.483 residentes da vila de Odi, no estado de
Rede de Empoderamento das Mulheres Rurais testos e manifestações, e o governo foi for- Bayelsa, onde vivem 50 mil pessoas. Todas
Projeto de Defesa e Assistência Jurídica çado a abandonar o projeto. O Banco as casas da vila foram arrasadas e incendiadas.
Gênero e Direitos Humanos/Social Mundial garantiu às comunidades que ne- Quem sobreviveu fugiu para o mato e se re-
Watch – Nigéria nhum novo recurso para o estado de La- fugiou em vilas vizinhas. Os soldados invaso-
Rede Orçamentária do Sudeste gos seria liberado até que as questões em res estupraram muitas mulheres e meninas.
Ray Onyegu, John Onyeukwu, Mma Odi, disputa fossem resolvidas. Até o momento, nenhuma indenização foi
Itolo Eze-Anaba, Gina Iberi e Cletus Onyegu
Em fins de dezembro de 2001, por cau- paga às vítimas, e as casas destruídas não
sa de negligência das autoridades militares, foram reconstruídas. O governo não apre-
Os obstáculos à segurança humana na explodiram bombas armazenadas no Aquar- sentou desculpas nem deu qualquer garantia
Nigéria são generalizados. Os governos têm telamento Militar de Ikeja (Lagos), destruin- de que isso não se repetiria.
sido arrogantes, fechados, corruptos e não do casas no quartel e na vizinhança e matando Um destino similar atingiu algumas vilas
têm prestado contas ao eleitorado. Há con- mais de mil pessoas, na maioria crianças e e aldeias no estado de Benue em outubro de
flitos étnicos e religiosos e despejos força- mulheres. Muitas das pessoas desabrigadas 2001. Outra vez, os soldados destruíram to-
dos são comuns, enquanto a luta para e sem alternativas habitacionais foram aco- das as construções nas localidades de Pera,
controlar ou administrar os recursos deri- modadas temporariamente numa escola de Kyado, Gbeji, Chome, Ifer, Joolashitile, Torja,
vados do petróleo e outros minerais resul- polícia. Um ano depois, como um amargo Vaase, Zaki-Ibiam, Ise Adoor, Sunkera e Tor
tou na perda de centenas de vidas. Os presente de aniversário, essas pessoas fo- Donga. Eles usaram artilharia pesada, junta-
exemplos a seguir são reveladores. ram despejadas sem indenizações. mente com granadas disparadas por fogue-
Os despejos forçados dos cidadãos e ci- Até 1º de julho de 2000, 1 milhão de tes. Quando a munição se esgotou, jogaram
dadãs da Nigéria têm sido comuns em diver- pessoas viviam em Rainbow Town, em Port gasolina e metano para incendiar as habita-
sas regiões do país. Este relatório não pode Harcourt, a maioria de baixa renda. Apoiado ções. Zaki-Ibiam, por exemplo, era uma vila
citar um único caso no qual o governo tenha por cerca de mil policiais armados, o gover- de 20 mil habitantes com o maior mercado
tomado medidas para respeitar, proteger, no do estado de Rivers demoliu com trato- de inhame do país.1
cumprir ou assegurar o direito à habitação. res de terraplenagem a comunidade,
Em dezembro de 2001, o governo do deixando nas ruas crianças e mulheres, cujos Governo não garante direitos
estado de Lagos decidiu demolir a amplia- pais e maridos tinham saído para trabalhar.
da área favelada de Ajegunle, onde vivem É um hábito rotineiro dos governos da Nigéria
Ações legais contra essa decisão ainda esta-
mais de 2 milhões de pessoas – na maioria demolir mercados e lojas. Em virtude da es-
vam pendentes nos tribunais, porém o go-
mulheres e crianças. Não houve consulta à cassez de residências e do alto custo do alu-
verno alegou que havia agido com a
população local e não havia planos para guel residencial nas cidades grandes, esses
finalidade de fazer renovação urbana, pois a
reassentamento. Para evitar a demolição locais servem tanto para comércio como para
favela, ambientalmente degradada, tinha se
planejada, a antiga Iniciativa pelos Direitos residência. O Mercado Boundary, em Lagos,
tornado um refúgio de criminosos comuns.
de Habitação, atualmente conhecida como No entanto, as autoridades não tinham ne-
Iniciativa pelos Direitos Socioeconômicos, nhum plano para reassentar moradores e
mobilizou a comunidade e entrou com uma moradoras. Mais tarde, a terra foi dividida 1 O inhame é um alimento básico de consumo habitual
ação legal contra o despejo no Tribunal entre membros abastados da comunidade. na Nigéria.

Observatório da Cidadania 2004 / 104


e vários mercados de Abuja, território da de água potável, energia para cozinhar, aque- O percentual da população nigeriana que
capital federal, foram arrasados. Os postos cimento e iluminação, saneamento, instala- têm acesso à educação básica é mínimo.2 As
de venda e as barracas de Lagos tinham ções para banho e depósitos de lixo é ainda áreas rurais são as que apresentam a pior
sido construídos e alugados às vítimas pelo um grave problema, sobre o qual o governo situação. O problema da educação não pode
governo local de Ajeromi-Ifelodun. Posterior- não tem feito nenhum esforço para resolver. ser separado do declínio econômico da
mente, o governo estadual declarou essas Nigéria em conseqüência da corrupção e da
construções ilegais, privando muitas famíli- Mulheres sem acesso à propriedade queda das receitas do petróleo cru – o pilar
as de seu meio de subsistência. Em conseqüência do trabalho de ONGs e da economia. A falta de instrução impede
Em Satellite Town, um subúrbio de Lagos, outros grupos defensores dos direitos das que as pessoas jovens tenham capacidade
15 grandes empresas, incluindo o Banco Cen- mulheres, um número maior de mulheres de atuar como agentes das mudanças. As
tral da Nigéria, estão empenhadas em despe- recebe educação e existe uma consciência escolas nas áreas rurais, quando existem,
jar mais de 2.500 famílias, que adquiriram suas maior sobre seus direitos. Esses fatos re- têm deficiência de equipamentos e a falta de
propriedades pela política de habitação do sultaram em um acesso maior das mulhe- professores e professoras, que, na maioria,
governo federal de 1997. Por esse plano, o res a cargos públicos e a oportunidades de preferem trabalhar nas zonas urbanas. Quan-
governo forneceu terras a empresas que ti- emprego. As mulheres têm mais capacida- do destinados às áreas rurais, preferem re-
nham mais de 500 pessoas empregadas, sob de de adquirir propriedade e assegurar nunciar a assumir seus postos. Como se
a condição de que construíssem casas e as uma situação econômica mais alta, embo- isso não bastasse, nas zonas rurais, pais e
cedessem a seus funcionários e funcionárias, ra o percentual de mulheres nessa situa- mães ainda priorizam a educação dos filhos
permitindo-lhes não só a ocupação, mas tam- ção seja ínfimo. homens, por acreditarem que as mulheres
bém dando-lhes a propriedade. As terras eram No entanto, a maioria das mulheres da só têm utilidade na cozinha.
pantanosas e todos os custos de aquisição, Nigéria ainda é vítima de discriminação em As finanças públicas ainda são opera-
aterro, construção de estradas, esgotos e ins- relação à herança de propriedade. Embora das de forma clandestina, e as informações
talações elétricas foram arcados pelo gover- haja uma decisão da Corte de Apelações sobre os orçamentos são tratadas como
no. Os custos restantes seriam cobertos pelos contrária às leis de herança discriminatórias, segredo absoluto. A única maneira de ga-
aluguéis pagos durante um período, até a essa decisão é em grande parte ignorada rantir a transparência, a prestação de con-
amortização completa. Hoje, embora morado- na prática. Em algumas partes da Nigéria, a tas por parte do governo e a participação
res e moradoras tenham pago o equivalente a herança de propriedade da terra por testa- popular no processo orçamentário é tor-
mais de 2.000% do custo das habitações, al- mentos escritos continua sendo a principal nar disponível ao público em geral as infor-
gumas empresas fazem ameaças de despejo. via de acesso à propriedade para as mulhe- mações sobre os orçamentos em todos os
Nos últimos quatro anos, tem havido res. Entretanto, como não é comum que as níveis de governo.
surtos de violência comunitária, étnica, reli- pessoas façam testamentos escritos, so-
giosa e política em diferentes áreas do país; mente um pequeno percentual consegue a Ações e recomendações da sociedade civil
como conseqüência, ocorrem mortes, des- propriedade da terra por meio de herança. As condições básicas para a paz e o verda-
truição de casas e deslocamento de pessoas. Muitas mulheres que teriam herdado pro- deiro desenvolvimento são o respeito aos
Essas crises, que ocorreram em Jos, Kaduna, priedade e que poderiam tê-la vendido para direitos humanos, o Estado de direito e a
Modakeke e Idi-Araba, tiveram um grande abrir pequenos negócios não possuem possibilidade de mudar o governo pelos mei-
impacto na população. A violência ainda é nada para vender. os democráticos e pacíficos. Injustiças fla-
intensa em Warri. Em todos os casos, o No setor dos aluguéis, a prática de dis- grantes e insegurança pessoal são a antítese
governo e agentes de segurança governa- criminação contra as mulheres ainda preva- da vida, da paz e da liberdade. A discrimina-
mental se mostraram grosseiramente inca- lece. Os donos de imóveis pressupõem que ção em função de sexo, etnicidade, tribo, cor,
pazes de desempenhar suas funções legais moças ou mulheres solteiras são prostitutas raça, religião ou credo político é incompatível
de proteger vidas e propriedades, especial- ou, no mínimo, sexualmente disponíveis. com a segurança humana. O predomínio da
mente porque a origem da maioria desses No norte, onde se pratica o purdah –
choques pode ser encontrada nos próprios uma tradição religiosa islâmica que obriga
atos e omissões do governo. O pagamento as mulheres a ficarem em casa durante o
de indenizações às vítimas foi completamen- dia, saindo somente no início da noite com
te abandonado. a cabeça coberta –, a situação de pobreza 2 O total é de 40%, de acordo com o “Study on the right
Diariamente, desmoronam edificações consolidada é a mesma. As conseqüências to education in Nigeria” (p. 7), realizado em 1998 pelo
em várias zonas da Nigéria, e muitas pesso- são desnutrição, deterioração da saúde e professor Osita Eze, do Instituto Nigeriano pela Paz e
as morrem presas nos escombros. A falta Resolução de Conflitos, para a Shelter Rights Initiative
outras enfermidades. (Iniciativa pelo Direito à Habitação).

Observatório da Cidadania 2004 / 105


injustiça faz com que várias ONGs procurem • devem ser envidados esforços conscientes • as mulheres que vivem em favelas e em
atuar como agentes de mudanças, defen- para reduzir as irregularidades eleitorais; zonas rurais devem receber estímulo
dendo as seguintes medidas: • o governo deve incrementar o desenvol- para formarem cooperativas, por meio
• a Constituição de 1999 prevê a incorpora- vimento nas zonas rurais, para reduzir a das quais possam ter acesso a financia-
ção de tratados internacionais: após a rati- migração do campo para os centros ur- mentos de instituições públicas e levan-
ficação do tratado, a Assembléia Nacional banos. As escolas rurais devem ser tão tar recursos para projetos comunitários
deve aprovar leis para sua implementação. equipadas quanto as demais, estimulan- de auto-ajuda;
Este relatório recomenda uma emenda do professores e professoras a aceitarem • o governo deve fazer um esforço consci-
constitucional para que os tratados ratifi- posições em zonas rurais; ente para assegurar que os recursos dos
cados pela Nigéria sejam incorporados au- • a educação das mulheres é uma ferra- programas de redução da pobreza se-
tomaticamente ao sistema jurídico do país; menta eficaz para enfrentar as práticas cul- jam desembolsados como créditos facili-
• é urgente que a Assembléia Nacional apro- turais que as discriminam; tados para mulheres de baixa renda,
ve a Lei de Acesso à Informação, de modo • devem ser construídos mais centros para estimulando seu empoderamento eco-
a que o público possa acompanhar as educação profissionalizante e serviços nômico e as libertando da pobreza. Os
atividades das autoridades públicas; para indivíduos adultos, especialmente recursos públicos para pessoas pobres
• as autoridades governamentais preci- nas áreas rurais; devem alcançar os grupos aos quais es-
sam ser mais tolerantes e devem parar • a educação das massas deve ser tão dirigidos;
de perseguir as pessoas que discordam implementada pela mídia, por oficinas e • deve haver mais transparência no gover-
das posições oficiais; outros meios; no da Nigéria.

Observatório da Cidadania 2004 / 106


PALESTINA

O muro das privações


Ao impor punições coletivas, confiscar e destruir propriedades privadas, demolir casas,
tornar difíceis o acesso à saúde e à educação, separar famílias, anexar terras ocupadas
e violar os direitos do povo palestino ao trabalho e à liberdade de movimento, Israel
viola uma longa lista de direitos humanos, sociais, culturais e econômicos, assim como as
leis internacionais.

Centro Bisan de Pesquisa e cidades”.2 Embora o muro seja um obstá- tucionalizará ainda mais um sistema de
Desenvolvimento culo tangível à segurança humana do povo apartheid , com os enclaves palestinos na
Izzat Abdul Hadi / Nadya Engler palestino, é somente uma manifestação dos Cisjordânia e na Faixa de Gaza funcionando
efeitos da ocupação ilegal, belicosa e humi- como bantustões marginalizados – uma re-
Seja uma cerca com tela de arame, muro lhante da Cisjordânia e da Faixa de Gaza por ceita segura para a continuação da luta que
de concreto, vala ou rolos de arame farpa- parte de Israel. Sob o disfarce da luta contra ameaça a segurança das duas nações. É
do, a barreira que está sendo construída o terrorismo e da segurança do Estado, a preciso deixar claro que essa barreira não é
por Israel em nome da segurança é certa- barreira viola os direitos fundamentais dos uma questão de segurança, mas sim uma
mente um “obstáculo”, 1 como a denomi- palestinos e palestinas e promete encolher usurpação agressiva de terras.
na as ordens militares israelenses. Com ainda mais a superfície de qualquer futuro Embora Israel alegue que o “obstáculo” é
até 8 metros de altura e 100 metros de Estado palestino. uma medida temporária, os gastos, os esfor-
largura em algumas áreas, a fronteira física ços e a própria área de terra confiscada indi-
que Israel começou a construir em abril de Usurpação agressiva de terras cam o contrário. A maior parte das ordens
2002, e com a qual está cercando e isolan- Aparentemente, o muro está sendo cons- militares israelenses relativas à barreira expira
do unilateralmente o povo palestino na truído por Israel para impedir os ataques pa- em 2005, porém esses documentos podem
Cisjordânia, é uma ameaça grave à popu- lestinos contra civis israelenses. Se essa ser facilmente renovados. Ao emitir essas or-
lação, que já sofre os efeitos da prolonga- construção tivesse realmente a ver com a dens militares temporárias, israelenses tor-
da ocupação israelense. Essa barreira segurança, teria sido erigida na fronteira de nam desnecessários os complexos
viola os direitos básicos de palestinos e 1967 da Cisjordânia (a Linha Verde) ou teria procedimentos jurídicos do confisco perma-
palestinas à sobrevivência, meios de vida, sido estabelecida em terras israelenses, no nente de propriedade.3 Se a barreira fosse uma
dignidade e liberdade – as principais pre- lugar de criar uma nova fronteira física que medida de segurança estrita, baseada no medo
ocupações globais definidas pela Comis- influenciará as discussões futuras sobre so- de ataques, seus limites e postos de controle
são de Segurança Humana. berania, sem qualquer negociação bilateral. seriam guardados muito mais rigorosamente.
Em um relatório de abril de 2003, Essa barreira não aumentará a segurança, A maioria dos homens-bomba suicidas
B’Tselem, o Centro pelos Direitos Humanos porém estenderá o conflito. Sua construção entra em Israel por esses postos de controle
nos territórios ocupados, estimava que essa leva o povo palestino a acreditar que a solu- militar.4 Quase diariamente, os jornais pales-
barreira “provavelmente causará danos di- ção dos dois Estados não é mais viável. tinos publicam fotografias de crianças, estu-
retos a pelo menos 210 mil palestinos e No atual clima político, a solução de um dantes e pessoas idosas passando por cima
palestinas, que vivem em 67 aldeias, vilas e só Estado provocará ressentimento entre das barreiras existentes perto de Jerusalém,
extremistas dos dois lados, e Israel insti- com famílias caminhando penosamente em

1 Ver “Definitions”, Artigo 1º da “Israeli Defense Forces


Order Concerning Security Directives (Judea and 2 B’Tselem. “Behind the barrier: human rights violations 3 Escritório da ONU para a Coordenação de Assuntos
Samaria) (Number 378), 1970 Declaration in the Matter as a result of Israel’s separation barrier”. Centro Humanitários. The West Bank Wall: Humanitarian
of Closing Territory Number s/2/03 (seam area) (Judea Israelense de Informação pelos Direitos Humanos nos Status Report, July 2003 – Northern West Bank
and Samaria), 2003”, que entrou em vigor em 2 de Territórios Ocupados (B’Tselem), abril de 2003, p. 3. Trajectory. Centro de Informação Humanitária nos
outubro de 2003. Disponível em: <www.nad-plo.org/ Os itálicos no texto citado estão no original. Territórios Palestinos Ocupados, julho de 2003.
hborders3.php>. Acesso em: 5 nov. 2004. Disponível em: <www.btselem.org>. 4 B’Tselem, op. cit., p. 29.

Observatório da Cidadania 2004 / 107


encostas lamacentas em áreas rurais, para reira é outro passo que aumenta ainda mais em construção por Israel, o poder ocupan-
evitar esses pontos de controle, muitas ve- seu deslocamento e que “causará mais sofri- te, nos territórios palestinos ocupados [...]
zes sob as vistas de soldados ou de habitan- mento humanitário”.9 O muro está contribuin- poderia prejulgar negociações futuras e tor-
tes dos assentamentos. do para que mergulhem mais fundo na pobreza. nar a solução dos dois Estados fisicamente
Atualmente, o muro se desvia da Linha Há provas de que, desde o outono de 2003, impossível de implementar”.13 O trajeto tem
Verde, entrando na Cisjordânia até 7,5 quilô- “mais 25 mil pessoas passaram a receber as- sérias implicações políticas. Ao “criar fatos
metros em algumas áreas. Se for concluída sistência alimentar como conseqüência direta consumados” difíceis de serem revertidos,
de acordo com o planejado, ela penetrará até da construção da barreira”.10 Sem acesso ade- muitas pessoas da Palestina temem que as
22 quilômetros.5 Nas áreas em que coincide quado, agricultores(as) separados(as) de suas terras da “zona de costura” corram o risco
com a Linha Verde, estão planejadas novas terras correm o risco de perder suas colheitas, de serem expropriadas permanentemente
barreiras por vários quilômetros para o leste, e pastores(as) precisam buscar novas áreas por Israel, pois esse país “já expropriou ter-
ou seja, penetrando mais ainda no território onde os animais possam pastar. O movimen- ras por não serem adequadamente cultiva-
palestino.6 O muro está projetado para re- to de mercadorias e equipamentos fica restri- das ou de acordo com ordens militares”.14
cortar aproximadamente 975 quilômetros to, e o acesso aos mercados se torna incerto.
quadrados de área do território da Cisjordânia. Com poucas esperanças de conseguir uma O controle do “ouro azul”
De fato, algo em torno de 16,6% da su- forma de vida sustentável na chamada “zona As terras que correm perigo de desapropria-
perfície da Cisjordânia, definida pelas frontei- de costura”,11 muitos palestinos e palestinas ção são estratégicas por causa de seus recur-
ras de 1967, vai se tornar uma entidade já pensam em abandonar suas terras, arris- sos (terras agrícolas férteis e acesso ao
fisicamente separada, enquanto grande parte cando seu posterior confisco. principal aqüífero da área) e pelo potencial
da zona restante permanecerá sob controle Israel tem imposto repetidamente puni- que oferecem para expansão dos assenta-
israelense – uma anexação de aproximada- ções coletivas à população civil palestina. Es- mentos israelenses. Um membro do Grupo
mente 50% da Cisjordânia. A própria barreira sas punições são administradas na forma de Hidrologia Palestino escreveu: “A aparição
deixa um rastro de destruição, com a demoli- de toques de recolher e restrições de movi- da barreira não foi uma surpresa, mas a con-
ção de casas e pomares pelos tratores que mento e, com freqüência, terminam em mor- cretização da teoria e dos esforços de Israel,
limpam a área. Desde junho de 2003, 102.320 te ou ferimento de inocentes. A barreira é a nas últimas décadas, para controlar o vital
árvores foram arrancadas e, somente em uma última manifestação das punições coletivas Aqüífero Ocidental. A barreira tornará a zona
única cidade, 86 edificações foram destruí- e transformará efetivamente a Cisjordânia e do aqüífero inacessível ao povo palestino, ga-
das.7 Na área de Jerusalém, passará por cima partes de Jerusalém Oriental numa grande rantindo que Israel controle a quantidade e a
de um cemitério palestino. prisão de pessoas da Palestina. As Regula- qualidade das águas”.15 É esse Aqüífero Oci-
mentações da Convenção de Haia de 1907, dental que fornece a água necessária (tam-
Uma grande prisão aceitas pela Corte Suprema de Israel, proí- bém chamada de “ouro azul”) para as terras
Para israelenses, a “falta de transparência em bem explicitamente punições coletivas de re- agrícolas mais férteis do povo palestino.
relação ao trajeto da barreira é uma violação sidentes de territórios ocupados.12 A barreira infringe o direito à liberdade
flagrante das regras da boa administração e Como afirma a Resolução A/RES/58/3 de movimento, garantido no artigo 13 da
prejudica o debate público informado sobre da Assembléia Geral da Organização das Declaração Universal dos Direitos Humanos
um projeto de longo prazo, de significado Nações Unidas (ONU), adotada em outubro e no artigo 12 do Acordo Internacional so-
abrangente e que custa centenas de milhões de 2003, “o trajeto marcado para a barreira bre Direitos Civis e Políticos. Os enclaves que
de shekels”.8 Para o povo palestino, essa bar- ficaram fora da barreira, porém não dentro

9 A/ES-10/248, op. cit., p. 6.


10 Ibidem. 13 Resolução A/RES/58/3 da Assembléia Geral da ONU,
5 Informe do secretário-geral preparado para a “Illegal Israeli actions in occupied East Jerusalem and
Resolução ES-10/13 da Assembléia Geral das Nações 11 B’Tselem. “No início de outubro de 2003, o Comando
Central OC ordenou que a área entre a barreira de the rest of the occupied Palestinian territory”, 21 de
Unidas, A/ES-10/248, 24 de novembro de 2003, p. 3. outubro de 2003.
separação no setor norte da Cisjordânia e a Linha
6 B’Tselem, op. cit., p. 7. Verde fosse área militar fechada por um período de 14 A/ES-10/248, op. cit., p. 6.
7 Rede Palestina de ONGs Ambientalistas (Pengon). Stop tempo indeterminado. Essa área é conhecida como 15 Abdel Rahman Al Tamimi, Grupo Palestino de
The Wall in Palestine: facts, testimonies, analysis, and ‘zona da costura’ (seam area ).” Disponível em: Hidrologia. “Theory into practice into final
call to action. Jerusalém, junho de 2003, p. 28 e 32-33. <www.btselem.org/English/Separation_Barrier/ implementation: the wall’s path is based on ultimate
8 B’Tselem, op. cit., p. 8. Aproximadamente, US$ 1,00 Enclaves.asp>. Acesso em: 5 nov. 2004. control over Palestinian water resources”. Pengon, op.
equivale a 4,4 shekels israelenses. 12 Pengon, op. cit., p. 80. cit., p. 163.

Observatório da Cidadania 2004 / 108


de Israel – as “zonas de costura” –, foram entrar, sem que tenham um motivo.17 Um Em outubro de 2003, a Assembléia Geral
designados como zonas militares fechadas informe assinala que os soldados que guar- da ONU adotou uma resolução exigindo que
no dia 2 de outubro de 2003. Palestinos e dam os portões na barreira têm negado aces- Israel “interrompesse e revertesse a cons-
palestinas maiores de 16 anos que residem so de pastores(as) a seus próprios pastos, trução da barreira nos territórios palestinos
nesses enclaves agora precisam de autori- alegando que não têm permissão especial ocupados, incluindo Jerusalém Oriental e
zação escrita específica para permanecer em para suas cabras.18 seus arredores”.19 A maioria dos membros
seus lares; se desejarem entrar numa des- (144) votou a favor, somente quatro vota-
sas áreas, necessitam de permissão especial O que fazer? ram contra (Micronésia, Israel, Ilhas Marshall
emitida por um comando militar israelen- Talvez, por causa de suas proporções des- e Estados Unidos) e houve 12 abstenções.
se.16 Estima-se que cerca de 400 mil pales- comunais, essa barreira tenha se tornado Em dezembro, a Assembléia Geral solicitou à
tinos e palestinas ficarão “trancados” nesses um tema de preocupação internacional e assessoria da Corte Internacional de Justiça,
enclaves fechados, quando a barreira esti- gerado muitas críticas. Os movimentos de com sede em Haia, que determinasse as con-
ver concluída. solidariedade estão atuando, com residen- seqüências jurídicas da construção da bar-
Ao longo dos 720 quilômetros projetados tes locais, para protestar contra a barreira reira.20 As audiências foram realizadas de 23
de barreira, há um número proporcionalmente ou acompanhar essas pessoas aos campos a 25 de fevereiro de 2004, e a Corte iniciou
pequeno de “portões” ou “passagens” de- ou às escolas do outro lado. Criaram-se sites suas deliberações logo depois.21
signados como pontos de cruzamento. Não na Internet e grupos de ativistas para seguir
há garantia de que as permissões sejam con- o avanço da barreira, monitorar o confisco Algumas medidas positivas
cedidas ou, se emitidas, sejam aceitas na prá- de terras, realizar estudos de caso das pes- Embora a barreira continue sendo um obstá-
tica. Atualmente, esses “portões” são abertos soas afetadas e coordenar campanhas de culo à paz, à segurança humana, às negocia-
somente em intervalos muito curtos, muitas advocacy e atividades que contribuam para ções reais e a um Estado palestino viável, é
vezes por 15 minutos, e não seguem nenhum deter a construção do muro, demolir o que um tema que está começando a mobilizar
horário fixo, tornando quase impossível o aces- já foi construído, devolver as terras confis- diferentes setores da população palestina,
so, em tempo hábil, a serviços de saúde e de cadas e indenizar as pessoas pela destruição numa época em que a maior parte da energia
educação, assim como aos empregos. e perda de propriedade. foi esgotada na Intifada Al Aqsa (o levante
O sistema de autorizações militares está A Rede Palestina de ONGs Ambientalistas contra a ocupação). Apesar da insegurança e
pondo em risco o acesso das crianças e pro- (Pengon, na sigla em inglês) tem liderado a da incerteza que o povo palestino continua
fissionais de ensino às escolas, de agriculto- campanha local contra a barreira, que rece- sentindo nas mãos de um ocupante hostil e
res e agricultoras a suas colheitas, de doentes beu apoio de todo o mundo. O trabalho con- sem ter um governo representativo, no último
ao atendimento de saúde e de toda a popula- tra a barreira está sendo coordenado pela ano houve algumas medidas muito positivas.
ção a seus locais de trabalho, sem falar no Pengon e pela Rede de ONGs Palestinas, que A despeito das numerosas invasões, fe-
acesso aos recursos familiares, sociais, cul- contrataram cinco pessoas em tempo inte- chamento de áreas e toques de recolher,
turais ou comerciais. Como tradicionalmente gral nas áreas de Qalqilia e Tulkarem para foram desenvolvidos programas substanci-
as famílias palestinas se preocupam com a monitorar a barreira e administrar as rela- ais de desenvolvimento e de resposta a emer-
honra e a segurança das mulheres, prefe- ções com a mídia local e as atividades da gências. Esses programas podem ser
rindo que elas não viajem muito longe para campanha. O muro foi o tema principal das divididos em quatro áreas principais: man-
chegar à escola ou ao trabalho, essa barrei- organizações palestinas que participaram ter e melhorar a prestação de serviços em
ra está tendo efeitos negativos sobre a edu- do Fórum Social Mundial em Mumbai, em diferentes setores; crescente trabalho de
cação e o emprego das mulheres. janeiro de 2004. A Autoridade Palestina ain- advocacy, tanto nacional como internacio-
Até agora, a maioria das pessoas resi- da não tinha uma agenda clara para lidar nal; maior concentração na capacidade
dentes da “zona de costura” tem recebido com o tema, porém se preparou para o
autorizações, embora elas precisem ser re- julgamento em Haia.
novadas em intervalos de um a três meses.
Porém, poucas pessoas que residem fora
dessas áreas conseguem permissão para
19 A/RES/58/3, op. cit.
20 “Legal consequences of the construction of a wall in
the Occupied Palestinian Territory” (Solicitação de uma
17 A/ES-10/248, op. cit., p. 6. opinião consultiva), Ordem, Corte Internacional de
18 Ver “A day in the North”, Pengon/Campanha contra o Justiça, 19 de dezembro de 2003.
Muro do Apartheid, 10 de janeiro de 2004. Disponível 21 Corte Internacional de Justiça. Disponível em:
16 Ibidem. Ver também notas 1 e 11. em: <www.stopthewall.org/latestnews/258.shtml>. <www.icj-cij.org>.

Observatório da Cidadania 2004 / 109


institucional; e, finalmente, o marcante de- acatasse a opinião consultiva da Corte Inter- piorar por causa dessa barreira. A campanha
bate público sobre as transformações e re- nacional de Justiça sobre a barreira.24 Essas contra essa construção, tanto dentro como
formas democráticas. Alguns sucessos decisões fornecem uma ampla base para o fora dos territórios palestinos ocupados, deve
específicos de 2003 merecem menção: a trabalho de advocacy local e internacional.25 prosseguir. O povo palestino acredita que che-
conclusão da Avaliação Participativa da Po- Embora as decisões da Corte Internaci- gou o momento de todos os movimentos
breza Palestina, feita pelo Programa das Na- onal de Justiça e da Assembléia Geral da sociais e membros da sociedade civil, que
ções Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) ONU tenham encorajado o povo palestino, acreditam numa paz justa na região, apoiarem
e pelo Ministério do Planejamento, e o pro- reiterando o fato de que Israel tem cometido as decisões da Corte Internacional de Justiça e
grama do Welfare Consortium, de US$ 36 numerosas violações da lei internacional, es- da Assembléia Geral da ONU e trabalharem
milhões, para ajudar o desenvolvimento e pecialmente a ocupação da Cisjordânia, da por sua implementação. Nesse contexto, soli-
estimular parcerias entre ONGs, setor públi- Faixa de Gaza e de Jerusalém Oriental, assim citamos que estimulem seus governos a pres-
co e setor privado. como tem reconhecido que a construção da sionar Israel para que cumpra a lei internacional
Em 9 de julho de 2004, a Corte Interna- barreira é uma usurpação de terras, essas e acabe com a ocupação ilegal da Cisjordânia,
cional de Justiça concluiu que “a construção decisões foram ignoradas pelo governo is- da Faixa de Gaza e de Jerusalém Oriental.
da barreira realizada por Israel, o poder ocu- raelense, que as considerou parciais e in- Embora a matança de civis nos dois la-
pante, nos territórios palestinos ocupados, fundadas. Israel questiona a legitimidade e a dos deva ser condenada, é preciso desen-
incluindo Jerusalém Oriental e arredores, e validade das leis internacionais, referindo-se volver ações preventivas para monitorar e
seu regime associado são contrários à lei ao testemunho palestino como uma “narra- assegurar direitos de todas as partes envol-
internacional”.22 A opinião consultiva da Corte tiva de quadrinhos de vítima e vilão” e acu- vidas, sejam direitos humanos, civis, sociais,
prossegue afirmando que Israel deve inter- sando representantes da Palestina de econômicos ou culturais. A barreira não dará
romper a construção da barreira, desmante- tentarem impor uma “realidade virtual”.26 segurança a Israel e continuará a violar os
lar a estrutura existente e prover reparações Apesar de Israel ter concordado em revi- direitos do povo palestino. Enquanto há mui-
por todos os danos. Além disso, essa opi- sar e modificar o trajeto de alguns trechos da ta atenção concentrada na prevenção dos
nião afirma que, em relação à barreira, os barreira, continua a apropriar-se de terras di- chamados ataques terroristas, pouco se fala
outros Estados estão obrigados “a não pres- ariamente e, recentemente, emitiu uma or- das razões subjacentes: pobreza, desigual-
tar ajuda ou assistência para manter a situa- dem de confisco de 200 dunumsNT de terras dade e opressão. Essas questões precisam
ção criada por essa construção” e que a ONU palestinas em Beit Jala (14 de agosto de 2004), ser compreendidas e enfrentadas, para ga-
deve analisar como enfrentar as violações das para continuar a construção da barreira.27 O rantir a segurança humana em todo o mun-
leis internacionais por parte de Israel.23 Em cotidiano da maioria da população continua a do. Para a população palestina, o passo
20 de julho de 2004, a Assembléia Geral da imediato nesse processo está escrito na pró-
ONU adotou resolução exigindo que Israel pria barreira: “Este muro deve cair”.28

24 Os 25 membros da União Européia votaram a favor da


resolução, enquanto Israel e os Estados Unidos
votaram contra, juntamente com Austrália, Ilhas
Marshall, Micronésia e Palau. Camarões, Canadá, El
Salvador, Nauru, Papua Nova Guiné, Ilhas Salomão,
Tonga, Uganda, Uruguai e Vanuatu se abstiveram.
25 “Press Release GA/10248: General Assembly
Emergency Session overwhelmingly demands Israel’s
compliance with International Court of Justice advisory
opinion”, 20 de julho de 2004. Disponível em: <http://
www.un.org/News/Press/docs/2004/ga10248.doc.htm>.
Acesso em: 16 ago. 2004.
26 “Tenth Emergency Special Session: illegal Israeli
actions in occupied East Jerusalem and the rest of the
occupied territories”. Declaração do embaixador Dan
Gillerman, 16 de julho de 2004. 58ª Sessão da
Assembléia Geral da ONU.
NT Um dunum equivale a mil metros quadrados.
27 “New confiscation orders for the Apartheid Wall in Beit
22 “Summary of the advisory opinion of 9 July 2004”, Corte Jala”. Pengon/Campanha contra o Muro do Apartheid, 15
Internacional de Justiça, 10 de julho de 2004, Haia, p.13. de agosto de 2004. Disponível em: <http://stopthewall.org/
23 Ibidem, p. 14 latestnews/722.shtml>. Acesso em: 16 ago. 2004. 28 “This wall must fall”, pichação em inglês no muro.

Observatório da Cidadania 2004 / 110


PERU

Rumo a novo pacto fundacional


Depois do período de violência mais intenso, amplo e prolongado da história do Peru,
durante o qual ficaram evidentes as limitações do Estado para garantir a segurança humana,
é necessário um processo de reconciliação nacional. Isso pressupõe um novo pacto
fundacional entre o Estado e a sociedade, com o objetivo de construir um país que se deve
reconhecer como multiétnico, multicultural e multilíngüe. Este relatório sintetiza as
conclusões da Comissão da Verdade e Reconciliação.

Conferência Nacional sobre o Esse grupo iniciou práticas de extrema disso, esse grupo assassinou dissidentes de
Desenvolvimento Social (Conades) violência, demonstrando crueldade inusita- suas próprias fileiras. O MRTA, que tentou
Milagros Varela da, por meio de tortura e maus-tratos, como criar um clima propício à aceitação da idéia
forma de castigar ou dar exemplos para in- do uso da violência como recurso político
O conflito armado interno que o Peru timidar a população que procurava contro- legítimo, acabou favorecendo a política anti-
vivenciou entre 1980 e 2000 foi o episódio lar, incluindo as pessoas que nele militavam. subversiva, autoritária e militarista do go-
de violência mais intenso, amplo e prolon- Procurou, de forma consciente e constante, verno de Alberto Fujimori.
gado de sua história republicana. O número provocar respostas desproporcionais por
mais provável de vítimas alcança 69.280, das parte do Estado. O Sendero Luminoso ex- Polícia e Forças Armadas
quais 79% eram camponesas e 75% fala- pressou seu potencial genocida com con- Mais de mil policiais morreram ou ficaram
vam quíchua ou outras línguas nativas como ceitos tais como “pagar a cota de sangue” incapacitados durante esse período. A polí-
idioma materno. (1982), “induzir genocídio” (1985), “o tri- cia foi incapaz de enfrentar efetivamente o
A tragédia vivida pelas populações ru- unfo da revolução custará um milhão de inimigo por causa de uma formação defici-
rais, andinas e silvícolas, quíchuas e pessoas mortas” (1988). Utilizou algumas ente para a luta anti-subversiva e pelo apoio
achanincas, pobres e com pouca instrução, instituições educacionais como focos de di- logístico precário.
não foi sentida nem assumida como própria fusão de suas mensagens e de recrutamen- Em 1982, o governo decidiu que as For-
pela totalidade da população peruana. Fica- to de grupos minoritários de jovens. ças Armadas enfrentariam os grupos sub-
ram evidentes as limitações do Estado para Para o Sendero Luminoso, a população versivos. Essas forças perderam mais de mil
garantir a ordem pública, a segurança e os camponesa era uma massa que deveria se efetivos. No início, aplicaram uma repressão
direitos fundamentais dos cidadãos e das ci- submeter à vontade do partido. Assim, a dis- indiscriminada e, embora a estratégia tenha
dadãs dentro de um contexto democrático. sidência individual era castigada com assas- depois se tornado mais seletiva, não tiveram
sinatos e aniquilamentos seletivos, e a capacidade de evitar, em certos locais e oca-
O Sendero Luminoso e o MRTA dissidência coletiva, com massacres e a des- siões, a prática generalizada e/ou sistemática
truição de comunidades inteiras. A presença de violações dos direitos humanos.
De acordo com a Comissão da Verdade e
subversiva, assim como a resposta anti-sub- Assim como o fizeram as forças policiais,
Reconciliação,1 a causa imediata e fundamen-
versiva, reativou e militarizou velhos conflitos suas ações foram comprometidas por exe-
tal do desencadeamento do conflito armado
entre comunidades e no interior delas. Lima cuções extrajudiciais, desaparecimentos, tor-
interno foi a decisão do Partido Comunista
e outras cidades sofreram sabotagens, as- turas e maus-tratos, especialmente contra
do Peru (Sendero Luminoso) de iniciar a “luta
sassinatos seletivos, greves armadas e terro- mulheres. Esse tipo de comportamento era
armada” contra o governo, no momento em
rismo urbano, com o uso de carros-bomba. adotado diretamente por indivíduos hierar-
que o país iniciava uma nova etapa demo-
O Movimento Revolucionário Tupac quicamente superiores, ou por seus subor-
crática com eleições livres. O Sendero Lumi-
Amaru (MRTA) iniciou sua luta armada con- dinados, com a permissão dos primeiros.
noso foi o principal executor dos crimes e
tra o governo em 1984 e foi responsável A partir de 1989, as Forças Armadas
das violações dos direitos humanos, sendo
por 1,5% das mortes ocorridas. O MRTA mudaram de estratégia. Seu interesse não
responsável por 54% das mortes ocorridas.
reivindicava suas ações, e seus membros era mais recuperar território, mas eliminar os
utilizavam distintivos para se diferenciar da Comitês Populares do Sendero Luminoso.
população civil. Evitava atacar a população Tentaram isolar a força militar da organiza-
desarmada e, em alguns momentos, mos- ção e ganhar o apoio da população, diminu-
1 Ver o site <www.cverdad.org.pe>. trou-se aberto a negociações de paz. Apesar indo as violações dos direitos humanos.

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Diante dessa mudança de estratégia, o versiva. Recrutou agentes da inteligência mi- nalização do terrorismo, e a rejeição de pedi-
Sendero Luminoso optou por uma violência litar, entre os quais o mais emblemático foi dos de habeas corpus tornou-se uma práti-
sem limites contra os povos quíchua e Vladimiro Montesinos. Também fortaleceu o ca generalizada.
achaninca, assim como contra habitantes das Serviço de Inteligência Nacional e assegurou Tudo isso contribuiu para que as pri-
zonas urbanas. Em resposta a essa ofensi- a lealdade das cúpulas militares. A partir de sões terminassem em tortura, execuções
va, espalharam-se os Comitês de Autodefe- 1992, foi priorizada a eliminação seletiva dos arbitrárias e desaparecimentos forçados. As
sa, constituídos por setores mais pobres do grupos subversivos e surgiu o grupo “Coli- pessoas detidas não tinham garantia de tra-
campesinato. Esses setores infligiram ao na”, responsável por assassinatos, desapa- tamento imparcial e justo. Indivíduos ino-
Sendero Luminoso sua primeira derrota es- recimentos forçados e massacres. A centes foram condenados a longas penas e
tratégica nas zonas rurais. responsabilidade das ações desse grupo re- tiveram violadas todas as suas garantias
As Forças Armadas vitoriosas contra o cai sobre Fujimori e Montesinos. constitucionais. Com o tempo, o Estado teve
Sendero Luminoso justificaram o golpe de Em setembro de 1992, foram captura- que realizar novos julgamentos a partir das
Estado de 1992, assim como uma trégua ao dos os líderes máximos do Sendero Lumi- poucas provas. Isso gerou descrédito tal em
narcotráfico, e ficaram sob o controle de uma noso e do MRTA. Nas eleições, o governo relação à justiça que terminou beneficiando
cúpula que se aliou ao governo ditatorial. A utilizou a seu favor essa vitória. os verdadeiros terroristas do conflito: de um
partir de 1992, as Forças Armadas passaram Durante os últimos anos de seu gover- lado, o Sendero Luminoso e grupos afins;
a conduzir ações em esferas não-militares. O no, Fujimori manipulou o conflito armado do outro, os grupos que praticavam assas-
Sistema de Defesa Nacional foi modificado, interno com a finalidade de se perpetuar no sinatos seletivos de líderes sindicais e da
assim como a Lei do Serviço de Inteligência poder. O conflito se prolongou de 1980 até oposição, com o apoio do próprio governo.
Nacional e a Lei da Situação Militar. Esses 1992, porém o governo manteve uma lógi- Dirigentes sindicais, empresários(as) e
novos dispositivos violavam as garantias do ca de guerra durante todo o seu mandato, funcionários(as) de empresas sofreram
processo legal, ao instituírem a prática de tri- até 2000. O país esteve imerso numa nova agressões violentas dos grupos subversi-
bunais e juízes “sem rosto”. Além disso, cria- crise econômica, além de corrupção, decom- vos. O Sendero Luminoso teve como objeti-
ram novas ofensas criminais, como o posição moral, debilitação do tecido social e vo a destruição dos sindicatos existentes,
“terrorismo agravado” e a “traição à pátria”. institucional e uma desconfiança profunda enquanto o MRTA procurou utilizar os sindi-
A delegação de poderes do governo ci- na esfera pública. catos para seus fins diversos.
vil às Forças Armadas foi acompanhada de
uma aceitação tácita por parte de um setor Poder Judiciário Igrejas e ativistas dos direitos humanos
considerável da sociedade, principalmente A abdicação da autoridade democrática atin- Tanto a Igreja Católica como as igrejas evan-
pelo setor urbano instruído, beneficiário dos giu as funções próprias da administração gélicas protegeram a população dos crimes
serviços do Estado e que vivia em áreas afas- da justiça. O Poder Judiciário liberava pes- e violações dos direitos humanos. Em ter-
tadas do epicentro do conflito. soas culpadas e condenava inocentes. mos institucionais, a Igreja Católica conde-
Em 1990, logo no início de seu gover- Agentes deixaram de cumprir o papel de nou desde o início as violações dos direitos
no, Alberto Fujimori2 deu mostras de des- garantir os direitos dos indivíduos deti- humanos praticadas pelo Estado.
prezo pela democracia. Entregou a solução dos, não levando à justiça os membros Durante o conflito, dezenas de associa-
dos problemas econômicos a tecnocratas e das Forças Armadas acusados de delitos ções da sociedade civil foram organizadas
assumiu o controle da estratégia anti-sub- graves e sistematicamente tomando deci- em torno da Coordenação Nacional de Direi-
sões, em disputa de competência, a favor tos Humanos, que se constituiu em referên-
do foro militar, no qual essas situações fi- cia ética e recurso para que as vítimas
cavam impunes. Entre 1980 e 1992, não pudessem exigir verdade e justiça.
existia uma tipificação clara do delito de As investigações jornalísticas foram nu-
2 Alberto Fujimori ganhou as eleições gerais de 1989 terrorismo, e os processos judiciais eram merosas, corajosas e indispensáveis para
com 56,4% dos votos. Em abril de 1992, liderou um pouco claros. identificar a responsabilidade em crimes atro-
golpe de Estado, alegando que o Parlamento era
corrupto e ineficiente. Reeleito por maioria
A partir de 1992, o Executivo começou zes. Muitos(as) jornalistas arriscaram suas vi-
arrasadora, em abril de 1995, concedeu anistia aos a interferir no Judiciário, demitindo juízes e das e houve assassinatos de profissionais. Desde
membros das Forças Armadas e da Polícia juízas e fazendo indicações provisórias. Fo- o início da década de 1980, os meios de comu-
condenados por violações aos direitos humanos. Nas
eleições de abril de 2000, Fujimori se apresentou
ram criados órgãos de gestão estranhos à nicação condenaram a violência, com nuanças
como candidato, apesar dos impedimentos estrutura do sistema judicial, e o Tribunal ideológicas, de acordo com a posição de
constitucionais. Finalmente, imerso em corrupção e Constitucional deixou de funcionar. A nova cada veículo. Não tiveram a mesma atitude
escândalos, fugiu para o Japão e renunciou ao cargo
em novembro do mesmo ano. legislação caracterizou-se pela supercrimi- diante das violações dos direitos humanos,

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especialmente as cometidas pelo governo, sen- em paz e na democracia, é imprescindível interno que assolou o país entre 1980 e
do a ambigüidade ou mesmo o aval a caracte- realizar as reformas institucionais necessári- 2000 ou em conseqüência dele, tenham
rística de alguns desses meios de comunicação. as a fim de concretizar o Estado de direito e sofrido atos ou omissões que violaram as
A apresentação e o tratamento desses prevenir a violência. A reparação é parte do normas internacionais dos direitos huma-
fatos violentos eram feitos de maneira crua, processo ético e político de ressarcimento e nos”. Foram consideradas como violações
com pouco respeito às vítimas, o que ge- de dignificação das vítimas e um componen- o desaparecimento forçado, seqüestro, exe-
rou uma insensibilidade diante desse tema. te importante do processo de reconciliação cução extrajudicial, assassinato, desloca-
Em alguns casos, a lógica comercial se im- nacional. No caso peruano, a situação é ain- mento, prisão arbitrária, violação dos
pôs, conduzindo ao jornalismo sensacio- da mais grave, pois as vítimas são parte da processos legais, recrutamento forçado,
nalista, o que, em meados de 1990, estava população menos favorecida do país. tortura, violação sexual, ferimento, lesão ou
associado à megacorrupção e à compra dos Uma parte importante do processo de morte em atentados que violavam o direito
meios de comunicação. reparação é a justiça, o que implica compen- internacional humanitário.
A violência armada empurrou centenas de sar as vítimas pelos danos sofridos, o justo O Plano Integral de Reparações combi-
milhares de peruanos e peruanas para a pobre- castigo de quem tem culpa e, por conseqüên- na formas individuais e coletivas, simbólicas
za e os desalojou das áreas onde viviam. Isso cia, o fim da impunidade. Por exemplo, um e materiais de ressarcimento: a) o resgate
produziu uma urbanização forçada, assim como elemento constituinte da justiça e da repara- da memória e a dignificação das vítimas; b)
um retrocesso histórico no padrão de ocupa- ção simbólica é a descoberta dos lugares provisão de educação e atendimento à saú-
ção do território andino, limitando seu possível onde as vítimas foram enterradas, para de mental; e c) as reparações econômicas
desenvolvimento humano sustentável. identificá-las, de modo que a população pe- individuais e coletivas (programas de recons-
As pessoas deslocadas perderam seus ruana possa velar por seus desaparecidos e trução institucional, desenvolvimento comu-
bens e suas redes sociais, além de sofrerem suas desaparecidas. Para essa finalidade, foi nitário, serviços básicos e geração de renda).
estigma e discriminação nos lugares aonde elaborado um Cadastro Nacional de Locais O grande horizonte da reconciliação na-
chegaram. Toda uma geração de crianças e de Sepultamento. cional é a cidadania plena para todo o povo
jovens viu suas expectativas de desenvolvi- O Programa Integral de Reparações fixa peruano. Isso é um novo pacto fundacional
mento serem obstruídas; portanto, mere- como objetivo geral “reparar e compensar entre o Estado e a sociedade. A reconcilia-
cem a atenção preferencial do Estado. a violação dos direitos humanos, assim ção deve ocorrer na esfera pessoal e fami-
como as perdas ou danos sociais, morais e liar, entre as organizações da sociedade e
Reparar danos e punir culpados materiais sofridos pelas vítimas em conse- na reformulação das relações entre o Esta-
Nas décadas de 1980 e 1990, podia-se alegar qüência do conflito armado interno”. As ví- do e a sociedade em seu conjunto. Tudo
certa ignorância e incompreensão diante da timas e quem se beneficia definem-se como isso deve ser orientado para a construção
situação reinante. A partir de agora, isso não é “todas aquelas pessoas ou grupos de pes- de um país que precisa se reconhecer como
mais possível. Para viver de forma civilizada, soas que, em virtude do conflito armado multiétnico, multicultural e multilíngüe.

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UGAN DA

Crise esquecida, danos irreversíveis


Nos últimos 17 anos, a população do norte e do leste do país sofreu um conflito armado que
foi descrito pelo subsecretário-geral das Nações Unidas para Assuntos Humanitários como
uma “crise esquecida”. Durante a guerra entre as tropas governamentais e os membros da
guerrilha do Exército de Resistência do Senhor (LRA, na sigla em inglês), foram cometidas
as atrocidades mais brutais, e os direitos humanos de mais de 2 milhões de pessoas foram
violados. A resolução desse conflito exige uma urgente intervenção internacional.

Deniva receber treinamento militar rudimentar. Qual- ra educacional, haveria enorme superlotação
David Obot quer criança que tenta fugir é morta ou pu- e medo constante de ataques do LRA, o que
nida severamente.4 criaria um ambiente nada propício à apren-
Por 17 anos, a população do norte e do As meninas são estupradas tanto pelos dizagem. Também haveria problemas com o
leste de Uganda tem padecido em um confli- comandantes do LRA como pelos solda- recrutamento de professores e professoras
to devastador.1 O impacto da guerra inclui a dos governamentais. Outros atos de agres- e com a aquisição de materiais didáticos. O
violação e a negação dos direitos humanos são incluem a mutilação de crianças e efeito negativo do conflito sobre a educação
à vida, à alimentação, à saúde, à educação, à pessoas adultas, emboscadas contra veí- primária também causou a queda da produ-
segurança pessoal e ao acesso a recursos culos e a destruição de lares, colheitas e ção agrícola. Um estudo realizado por
públicos e internacionais para 2 milhões de infra-estrutura. Deininger e Okidi revelou uma forte relação
pessoas. O desespero e a insegurança to- Nesse conflito, foram vistas algumas entre os anos de instrução primária e o valor
mam conta da população. As crianças nas- das piores formas de mortes cruéis. Esti- da produção agrícola: há um aumento de
cidas e criadas nesse ambiente não têm futuro ma-se que mais de 23.520 5 pessoas te- 5% por cada ano em que o(a) chefe da famí-
e, na verdade, mal conseguem sobreviver nham sido mortas e 2 milhões tiveram de lia freqüentou a escola primária.8 Portanto, a
no presente: desde 1996 cerca de 20 mil se abrigar nos acampamentos para pesso- perda de anos de educação primária implica
crianças foram raptadas para servir na guer- as internamente deslocadas (PID).6 Somen- o declínio na produção agrícola.
rilha, e aproximadamente 2 milhões de pes- te um desses acampamentos abriga cerca Desnutrição, malária, HIV/Aids, tubercu-
soas foram desalojadas.2 de 10 mil crianças.7 lose e traumas psicológicos são freqüentes
As crianças seqüestradas são amarra- Nos acampamentos para PID, não há no país. Nos acampamentos para PID, o sis-
das entre si pelo tornozelo, forçadas a escolas. Mesmo que existisse infra-estrutu- tema de saneamento é deficiente,9 quase não
transportar cargas pesadas e a caminhar até há remédios e as pessoas preferem morrer
oito horas diárias sem descanso, até chega- de fome a arriscar uma saída dos acampa-
rem ao campo de Nichitu, no sul do Sudão.3 mentos em busca de comida. A água é um
Assim que chegam ao campo, começam a 3 “Andrew Akera, de 13 anos, foi seqüestrado em 2001. luxo: um poço tem de ser compartilhado
Lembra que durante o seqüestro os captores amarraram por mais de 30 mil pessoas.
as pernas das crianças seqüestradas e incendiaram o
acampamento. Segundo ele, cada criança transportava A população não pode plantar a varie-
cerca de 40 quilos de bens saqueados e caminhou dade de alimentos que contribuiriam para
durante quase oito horas. Pararam por duas horas para
a segurança alimentar e uma dieta equili-
1 As populações dos distritos diretamente afetados pelo cozinhar. As crianças seqüestradas comeram verduras,
enquanto os comandantes rebeldes comeram peixe, carne brada. 10 As pessoas dormem sem mos-
maciço deslocamento interno são as seguintes: no
norte, Apac (676.244), Gulu (468.407), Kitgum (286.122), e farinhas. Dormiram no mato. Os seqüestros e saques
Lira (757.763) e Pader (293.679); no leste, Kaberamaido prosseguiram durante um mês. Posteriormente, as
(122.924), Katakwi (307.032) e Soroti (371.986); crianças foram levadas para o acampamento de Nichitu,
totalizando 3.284.157 habitantes, ou seja, 13% da no sul do Sudão.” The Monitor, 19 nov. 2003, p. 15.
população total de 24,7 milhões. As populações dos 4 “As ordens eram para matar qualquer um que tentasse 6 The Monitor, 20 nov. 2003, p. 1.
distritos diretamente afetados pela sua proximidade das escapar. Numa ocasião [Andrew Akera] levou 7 OLOCH, James. 16 mil deslocados internos na Fazenda
zonas de operação dos insurgentes são: no norte, chibatadas em todo o corpo por tentar fugir. Depois Bala Stock não tinham serviços médicos e 10 mil crianças
Adjumani (201.493), Arua (855.055), Kotido (596.130), disso, abandonaram-no, acreditando que estivesse não freqüentavam aulas. The New Vision, 10 nov. 2003.
Moroto (170.506), Moyo (199.912), Nakapiripirit morto.” The Monitor, 19 nov. 2003, p. 15. 8 DEININGER, Klaus; OKIDI, John. Rural households,
(153.862), Nebbi (433.466) e Yumbe (253.325), 5 DORSEY, J.; OPEITUM, S. The Net economic cost of the incomes, productivity and non-farm enterprises. In:
totalizando 2.863.749 habitantes, ou seja, 12% do total conflict in the Acholiland Sub-Region of Uganda. Uganda’s recovery: the role of farms, firms and
da população. Agência de Estatísticas de Uganda, 2001. Campala: Organizações da Sociedade Civil pela Paz no government. Banco Mundial, out. 1991, p. 123-174.
2 The Monitor, 26 out. 2003, p. 1. Norte de Uganda, 2002, p. 7. (Estudos Regionais e Setoriais).

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quiteiros, e os mosquitos transmissores dos distritos do norte representava o go- A segurança humana exige o envolvi-
de malária proliferam sem controle. Além verno e chegou a fazer reuniões com re- mento da comunidade internacional. Em
disso, os estoques dos remédios para tra- presentantes do LRA. No entanto, essa uma recente visita, o subsecretário-geral
tamento da malária são muito escassos. O iniciativa fracassou, pois o governo insistia das Nações Unidas para Assuntos Huma-
resultado dessas condições precárias de em que os rebeldes entregassem suas ar- nitários reconheceu que esta era uma “cri-
saúde é a alta taxa de mortalidade: em dez mas num determinado período de tempo. se esquecida”. A ministra holandesa de
acampamentos, que abrigavam 220 mil O LRA recusou essa condição e recome- Cooperação para o Desenvolvimento tam-
pessoas, foi registrada a média diária de çou suas atividades insurgentes, e isso con- bém informou ao presidente que a opção
cem mortes causadas por malária, saram- tinua até hoje. Posteriormente, o governo militar não tinha conseguido a paz e que ela
po, diarréia ou infecções respiratórias. tentou derrotar o LRA, assinando um acor- pretendia fazer uma campanha na União
Em conseqüência dos estupros sofri- do militar com o governo sudanês (Opera- Européia para que as partes em guerra
dos, as meninas raptadas são contamina- ção Punho de Ferro), que permitia a entrada sentassem à mesa de negociações.14 Tam-
das por doenças sexualmente transmissíveis das Forças de Defesa do Povo de Uganda bém é necessário prestar muita atenção ao
(DSTs). Segundo levantamento da Organi- (UPDF, na sigla em inglês) no território que está acontecendo no Sudão. Embora o
zação Social e de Aconselhamento de Gulu sudanês em perseguição aos combatentes governo sudanês negue,15 o LRA tem bases
(Gusco, na sigla em inglês) com meninas do LRA, para destruir suas bases. Desde nesse país e recebe o apoio do sul do Sudão.
resgatas e examinadas por profissionais de então, pouco se avançou.
saúde, 85% delas estavam infectadas por Houve outros esforços para negociar a Em busca de alternativas
DSTs. Como existe uma correlação alta entre paz. A Lei de Anistia de 2000 concedeu anis- Não existe uma coordenação eficaz dos me-
DSTs e HIV/Aids, teme-se que a maioria des- tia e reassentamento aos rebeldes que se canismos de resolução do conflito. Este não
sas meninas seja soropositiva. rendessem. De um total estimado de 50 mil é o momento para atribuir culpas. Vale a
A coalizão de Organizações da Socieda- rebeldes, somente 10 mil aproveitaram a pena considerar outras opções:
de Civil pela Paz no Norte de Uganda anistia até o momento, de acordo com da- • participação do Conselho de Segurança
(CSOPNU, na sigla em inglês) avalia que o dos da Comissão de Anistia. Tal benefício da Organização das Nações Unidas
conflito tenha custado ao país cerca de 3% expirou em 31 de dezembro de 2003, e o
(ONU), que trataria das questões relaci-
de seu PIB anual ou aproximadamente US$ mandato da Comissão de Anistia terminou
onadas às bases do LRA fora das fron-
1,33 bilhão, nos últimos 17 anos. Os custos em 17 de janeiro de 2004. A Comissão de
teiras de Uganda;
principais derivam de pesados gastos milita- Paz Presidencial tentou sem sucesso reunir-
• negociações diretas por meio de tercei-
res e da perda de receitas de exportações de se com representantes do LRA.12
ros ou um processo supervisionado
produtos primários, como algodão, tabaco Organizações e representantes da socie-
pela comunidade internacional;
e sementes de gergelim produzidos na re- dade civil também tentaram iniciar negocia-
• elaboração, por parte do governo, de
gião em conflito. Também foram perdidas ções de paz. Em 2001, uma iniciativa de paz
uma política de gestão de desastres e de
oportunidades de desenvolvimento, como local, liderada pelo padre Tarcisio e pelo che-
no caso de ajuda internacional para quatro fe “Rwot” Joseph Oywak, tentou convencer construção da paz;
hospitais regionais, que teve de ser cancela- o LRA a negociar com o governo. Entretan- • sensibilização, por parte do governo, da
da por falta de segurança.11 to, a invasão das UPDF ao local da reunião sociedade civil, dos meios de comuni-
O governo aplicou recursos numa ten- abortou a tentativa. A iniciativa de paz de cação e de formadores de opinião, para
tativa de organizar as pessoas deslocadas dirigentes religiosos de Acholi também con- conscientizar a população de que esse
nos acampamentos, já que estes não estão seguiu reunir-se com representantes do conflito tem alcance nacional, regional
livres dos ataques do LRA. Com mais de 2 LRA, e a Comissão de Justiça e Paz da e internacional;
milhões de pessoas vivendo nesses acam- Arquidiocese de Gulu procurou abrir nego- • extensão da anistia que terminou em 31
pamentos, atender a suas necessidades bá- ciações. Em todas essas tentativas, ficou clara de dezembro 2003;
sicas é uma luta difícil e constante. a ausência de um mecanismo central para • ajuda humanitária urgente;
coordenar os esforços de paz. • um programa abrangente de reabilita-
Esforços para a resolver o conflito No plano nacional, 34 parlamentares re- ção e desenvolvimento.
No início da década de 1990, foram inicia- presentantes do norte abandonaram o Par- Embora os danos sejam irreversíveis, é
das negociações de paz entre o governo e lamento em protesto contra a inabilidade do absolutamente necessário achar uma solu-
o LRA. O então ministro de Estado a cargo governo de pôr um fim ao sofrimento da ção para essa complexa situação geopolítica.
população.13 O presidente Yoweri Kaguta Há urgência em encontrar um marco jurídi-
Museveni concedeu uma audiência a parla- co para a resolução do conflito, assim como
mentares, e atualmente vários grupos das é preciso ter persistência e compromisso.
milícias locais recebem treinamento para
9 THE MONITOR. Funcionários do distrito de Gulu
informam que 250 pessoas compartilham uma latrina defender a população de várias aldeias.
nos acampamentos de deslocados internos. The
Monitor, 1 nov. 2003, p. 4.
10 The Sunday Monitor, 16 nov. 2003, p. 14-15.
11 Por falta de segurança, o Japão teve de cancelar as
doações para reabilitar hospitais nos distritos de 12 The New Vision, 25 out. 2003, p. 3. 14 The Monitor, 15 out. 2003, p. 4.
Yumbe, Moyo e Adjumani. 13 The Monitor , 20 nov. 2003, p. 1. 15 The Monitor, 25 out. 2003, p. 1.

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