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Arte e educação
Reinaldo Reis
e Rogério Chaves
Entrevista
Nina Pacari
Gênero e questão
indígena
Begoña Fernández
e d i t o r i a l
Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Nesta edição, estamos trazendo, em primeiro lugar, um olhar atento sobre a insurgência indí-
gena na América do Sul e seu significado para nós, brasileiros e brasileiras. Ao nosso lado, vive um povo quase
desconhecido pela maioria de nós. A Bolívia tem um povo diverso e aguerrido, com mais de 60% da população
composta por indígenas. Vale ressaltar que capitais brasileiros invadem suas terras e se apropriam delas para
plantar soja e obter gás para suas indústrias. Os povos indígenas bolivianos estão no centro de uma cidadania que
praticamente impõe uma revolução permanente à democracia no país. Mas vale a pena comparar o que se passa
com o Equador, outro país de marcante presença indígena em sua composição, história e identidade. A emblemática
Nina Pacari, forjada nas lutas pela causa de seu povo, líder do Movimento Pachakuti, conta-nos sua história e
nos dá uma visão da atualidade política no seu país e em toda a região, tendo os povos indígenas no centro. Para
completar, há um artigo e uma entrevista sobre os(as) tapebas, povo indígena esquecido no interior do Ceará.
O processo das eleições municipais no Brasil, neste ano, acentuou um lado publicitário de venda
de candidatos(as) mais do que um confronto de idéias e propostas. Essa forma de construção do poder democrático
traz, em si mesmo, o germe de profunda crise política, com riscos para a própria democracia. É inadiável pautar o
tema da mídia e de seu uso nas campanhas políticas como parte de um amplo debate sobre partidos e institucionalidade
política da nossa democracia. Tal debate é fundamental para uma refundação democrática do Estado. Afinal, precisa-
mos sair da armadilha de uma Lei de Responsabilidade Fiscal que se sobrepõe a tudo, menos ao Banco Central e sua
irresponsável política macroeconômica, que só preserva os interesses de especuladores em relação à dívida pública.
Uma Lei de Responsabilidade Social parece o contrapeso fundamental para recolocar a “coisa pública” (república),
materializada no Estado, no seu devido lugar para a construção de uma democracia substantiva no Brasil. Mas como
desmercantilizar a política partidária e eleitoral para desmercantilizar o Estado?
A revista não pára aí. Mais uma vez, traz ao debate aquilo que, no Brasil, teimamos em dei-
xar escondido: o racismo cotidianamente impregnado em nossas relações. Uma ampla coalizão de movimentos
negros e organizações de cidadania ativa do Brasil, entre elas o Ibase, lançará uma campanha contra o racismo.
Aproveitamos a ocasião para apresentar a campanha e mostrar que não dá para continuar dando as costas ao
racismo, uma das mais perversas formas de exclusão social e desigualdade entre nós.
Produção
Geni Macedo
Distribuição
Maria Edileuza Matias
Projeto Gráfico
Mais Programação Visual
Diagramação
Imaginatto Design e Marketing
Capa
Mosaico “Terra é vida”, publicado no livro Alfabetização
cultural - A luta íntima por uma nova humanidade
Fotolitos
Rainer Rio
Impressão
O Ibase adota a linguagem de gênero em suas publicações por acreditar que essa é uma estraté- J. Sholna
gia para dar visibilidade à luta pela eqüidade entre mulheres e homens. Trata-se de uma política Tiragem
editorial, fruto de um aprendizado e de um acordo entre os(as) funcionários(as) do Ibase. No caso 5 mil exemplares
de artigos redigidos voluntariamente por convidados(as), sugerimos a adoção da mesma política. democraciaviva@cidadania.org.br
artigo
Davys Sleman de Negreiros*
Mídia e
política, a
metamorfose
Pode-se aceitar o argumento de que a propaganda/marketing, a mídia e as estatísticas
(as polêmicas pesquisas de opinião) impõem-se à medida que se retrai a cena tradicional
controu, com o nome de partidos políticos, máquinas burocráticas que giram na órbita
4 Democracia Viva Nº 24
Mídia e política, a metamorfose do poder
6 Democracia Viva Nº 24
Mídia e política, a metamorfose do poder
no sentido de não estarem diretamente ligados El partido de masas, que según los prog-
a partidos políticos em competição, embora nósticos emitidos hasta la posguerra se-
possam apresentar preferências políticas. A ría la forma dominante de organización
neutralidade relativa da mídia na democracia política en el mundo contemporáneo,
do público é um contraponto para a falta de está a punto de ser un recuerdo del
neutralidade na democracia dos partidos, em pasado más que un espejo del futuro.20
que os meios de informação estavam atrelados A singularidade dessa perspectiva é,
aos partidos. Manin argumenta que, atualmen- portanto, a ênfase na necessidade de aperfei-
te, isso não acontece, pois as informações são çoamento dos mecanismos políticos de media-
veiculadas pelos diferentes meios de forma ção e agregação de interesses nas sociedades
homogênea, não existindo uma diferença gri- complexas nas quais vivemos, em que pesem a
tante entre o que é noticiado em um ou outro centralidade da mídia e a fragilidade institucio-
veículo.17 O elemento novo é que, embora os nal dos partidos políticos, tanto no Brasil como
indivíduos formem opiniões divergentes sobre na América Latina.
os objetos políticos, essas opiniões são constru- A influência da mídia no campo políti-
ídas sobre elementos identicamente apresen- co, especificamente nas campanhas eleitorais
tados a todas as pessoas e são percebidas de – até porque elas são um dos objetos deste
forma relativamente homogênea. Isso permite texto –, tem sido item recente de estudos
que a identificação entre eleitor e candidato se comparativos internacionais: as campanhas
forme a partir de preferências sobre os objetos, eleitorais são descritas por parte da literatura
e não a partir de preferências partidárias. Uma mais informada ora como um processo de
conseqüência dessa relativa neutralidade na “americanização”, ora como um processo de
divulgação de informações é a volatilidade do “modernização”.
voto, a existência de um novo eleitor indeciso: De acordo com Paolo Mancini e David
o sujeito informado, interessado pela política Swanson, as campanhas eleitorais são assuntos
e relativamente instruído. Em função da am- difíceis de serem estudados, e o que acontece
plitude do número de eleitores e de temas, os com elas reflete oportunidades, tradição, perso-
representantes ou candidatos têm que debater nalidades, cultura política e outras coisas. Além 16 Quando Manin se refere à
no público, constituindo, desse modo, um disso, nenhuma campanha é exatamente como opinião pública, está falando
de manifestações, petições e
novo local para a apresentação dos políticos e outra, e, certamente, nenhuma campanha da nova forma de expressão
que é a sondagem de opinião.
para o debate: a mídia. Assim, as Assembléias eleitoral de uma nação é exatamente igual a
deixam de ser o local por excelência da discus- outras de outros países, assim como métodos 17 Essa discussão remete ao
que Bourdieu denomina de
são do político e passam a dividir esse espaço e práticas usados nas campanhas eleitorais vêm uniformidade da oferta. Se-
gundo o autor, a concorrência
com a mídia. Observe-se, no entanto, que, mudando constantemente. Porém, e a lógica de mercado, que
são características expressivas
para Manin, ao contrário de outros autores,18 [...] o resultado desta literatura recente do campo jornalístico, levam
esses dados indicam uma alteração na prática é o que poderia parecer um fenômeno à homogeneidade do campo,
pois trabalham com as mesmas
política, que não significa, porém, uma crise de curioso: ao redor do mundo, muitas fontes, as mesmas restrições, as
mesmas pesquisas de opinião,
representação, uma vez que: das mudanças recentes nas campanhas os mesmos anunciantes.
eleitorais dividem temas em comum
quando se reconhece a existência de 18 Entre vários, podemos
apesar das grandes diferenças de cul- citar: NOVARO, Marcos. O
uma diferença fundamental entre go- debate contemporâneo sobre
tura política, histórica e instituições dos a representação política. Novos
verno representativo e autogoverno do Estudos Cebrap, 42, p. 77-
países nas quais elas ocorreram.21
povo, o fenômeno atual deixa de ser 97, jul. 1995; COSTA, S. Do
simulacro e do discurso: esfera
visto como sinalizador de uma crise de Os autores acreditavam, desse modo, pública, meios de comunicação
de massa e sociedade civil.
representação e passa a ser interpretado que as práticas de campanha mereciam ser Comunicação&Política, nova
como um deslocamento e um rearranjo examinadas, em parte, como ponto inicial para série IV, n. 2, p. 117-136,
maio/ago. 1997; DEBORD, G.
da mesma combinação de elementos considerar as mudanças fundamentais que A sociedade do espetáculo. Rio
de Janeiro: Contraponto, 1997.
que sempre esteve presente desde o poderiam estar ocorrendo nas democracias
19 Manin, 1995, p. 33.
final do século XVIII.19 ao redor do mundo. Nesse sentido, supunham
que a adoção de métodos de campanha 20 MOUCHON, Jean. Política
Em suma, observa-se o deslocamento y médio: los poderes bajo
americanizada poderia refletir em um amplo influencia. Barcelona: Gedisa,
dos partidos políticos como sujeitos da demo- 1999, p. 107.
e imparcial processo que estaria produzindo,
cracia. Apesar do registro da fragilização dos 21 MANCINI, Paolo; SWANSON,
em muitas sociedades, mudanças que seriam
partidos políticos, excepcionalmente, nesta David L. Politics, media and
difíceis de serem atribuídas a uma simples causa modern democracy: an inter-
abordagem vislumbra-se uma perspectiva favo- national study of innovations
e que iriam além da política e da comunicação. in electoral campaingning and
rável a seu desempenho, sob a condição de que their consequences. Londres:
eles consigam adaptar-se aos novos tempos. Dessa forma, dizem Mancini e Swanson: Praeger, 1996, p. 12.
[...] estamos interessados na americani livros e manuais sobre o assunto também tem
zação, na exportação e na adaptação ajudado a espalhar os métodos das campanhas
local das técnicas particulares de cam americanas para outros países. Além disso, essa
panha, na modernização, no mais amplo profissionalização é apoiada pelo freqüente
e fundamental processo de mudanças envolvimento de consultores políticos ame-
que supomos conduzir para a adaptação ricanos em campanhas de outros países. Em
destas técnicas nos diferentes contextos decorrência, a disseminação desses elementos
nacionais.22 tem naturalmente sido descrita como campanha
política americanizada em outros países.
Desse modo, as inovações nas campa-
Já o conceito de modernização diz res-
nhas eleitorais dos últimos anos, que parecem
peito a um contexto de mudanças mais amplas
ser práticas que foram primeiramente desen-
e induzidas por variáveis que vão muito além da
volvidas nos Estados Unidos, resultam funda-
esfera política ou da esfera da comunicação e
mentalmente, como
que dizem respeito à transformação estrutural
já foi notado por
da sociedade e das formas da democracia. Desse
Manin, 23 em outra
modo, colocando os dois conceitos frente a
parte deste trabalho,
frente, a americanização das campanhas elei-
da transformação da torais deve ser entendida restritivamente como
estrutura social e da um conjunto de indicadores específicos de um
forma das demo- processo mais geral de modernização da so-
cracias nos países ciedade, cuja difusão vem sendo notavelmente
onde as inovações acelerada pelo fenômeno da globalização da
têm sido adotadas. mídia que, malgrado as diferenças nacionais de
Essas transformações cultura política, vem crescentemente unificando
fazem parte do pro- e estabelecendo agendas e comportamentos
cesso de moderniza- políticos, econômicos e culturais em escala
ção. Então, quanto mundial.
mais avançado esteja Entre as principais características apon-
o processo de mo- tadas por Mancini e Swanson no processo de
dernização em um modernização das campanhas eleitorais e a sua
país, mais provável americanização, podemos citar cinco.
será encontrarmos 1. Personalização da política: expressa
inovações nas cam- pelo predomínio da relação entre o eleitorado
panhas eleitorais e quem se candidata em detrimento dos laços
send o adot adas e tradicionais de confiança e de ideologia entre
adaptadas. Assim, os partidos, que, dessa forma, perdem subs-
é nec essário defi- tância como agregação simbólica e estrutura
nirmos os conceitos organizada.
de americanização Los paradestinatarios empezaron a
e modernização, de aumentar en las mediciones de las
acordo com Mancini campañas subsiguientes y el índice de
e Swanson. indecisos comprobó el fin de una era
O conceito de lealtades y compromisos partida-
de americanização é rios con el consiguiente nascimiento
usado para referir-se de un pragmatismo individualista. Del
descritivamente a elementos das campanhas mismo modo, la incorporación de las
eleitorais e à atividade profissional conectada herramientas de la ingeniería política:
a elas. Isso foi primeiramente desenvolvido nos encuestas de intención de voto, a
Estados Unidos e, agora, está sendo aplicado boca de urna, tendencias de imagem
e adaptado de várias formas em outros países. positiva, porcentajens de crerdibilidad,
22 Idem, ibidem, p. 16.
Esse fato tem ocorrido por duas razões: pri- personalización y dramatización de las
23 Manin também descreveu
as transformações da sociedade meiro, em virtude do grande interesse que as campañas, complejizaron los sistemas
(modernização), porém fazendo campanhas americanas recebem da cobertura de comunicación de los políticos con
a relação com as mudanças no
contexto da representação de jornalística de todo o mundo; segundo, pelo sus potenciales electores.24
governo, ao passo que Mancini
e Swanson as relacionaram
grande número de especialistas de campanhas
com a questão das campanhas que visitam os Estados Unidos para estudar e Os candidatos, nesse caso, parecem
eleitorais.
conhecer o processo eleitoral. A publicação de competir por conta própria ao mesmo tempo
8 Democracia Viva Nº 24
Mídia e política, a metamorfose do poder
em que sua imagem pessoal, construída pela firmando uma tradição de estudos de mídia e
mídia, toma o lugar das ligações simbólicas que política que passou a conferir centralidade à
antes eram asseguradas pelos partidos políticos, presença da mídia, especialmente da televisão
ou seja, não existe mais uma identificação do no cenário político da representação contem-
candidato com o partido. porânea.
2. Cientifização da política: o concei- De fevereiro de 84, quando se deflagrou
to elaborado por Habermas25 é usado nesse a campanha das ‘Diretas já’, a abril de
contexto para exprimir a crescente prepon- 85, morte de Tancredo, são 14 me-
derância nas campanhas modernas do time ses de imensa efervescência política,
da campanha formado por especialistas e durante os quais os meios de comu-
técnicos que cada vez mais controlam não nicação – em especial a TV Globo, pro
só a produção de informações, como tam- tagonista principal – desempenharam
bém sua interpretação com vistas à tomada papel inédito
de decisões críticas no desenvolvimento da em sua his-
campanha. tória e se
A expansão da função dos técnicos destacaram
(experts) nas campanhas reflete, por um por sua ca-
lado, os métodos sofisticados e as habi- pacidade de
lidades que são dadas como necessárias intervir no
para a condução de uma campanha na quotidiano
política contemporânea dentro do am- extraordina-
riamente rico
biente da mídia (incluindo as habilidades
de uma cri-
associadas com as pesquisas de opinião
se de transi-
pública e outros métodos para monitorar
ção. Aparato
os desejos e as vontades dos eleitores,
criado pelo
criando fortes propagandas de televisão,
regime auto-
cobertura favorável, positiva e freqüente
ritário, e com
da mídia para o candidato e obtenção
ele comple-
de fundos financeiros) e, por outro lado,
mente iden-
o grande enfraquecimento do papel dos
tificado, a TV
partidos, que não são mais capazes, por
Globo exerce
exemplo, de suprir as necessidades de
o inesperado
fundos e de pessoal competente.26
papel de pro-
Assim, publicitários, marqueteiros, tagonista das
pesquisadores, cientistas políticos, relações- oposições,
públicas e jornalistas ganham crescente relevo com isso
no interior da campanha e tomam decisões que ampliando
antes eram processadas dentro do aparato dos um arco de
partidos pelas lideranças políticas e executadas alianças ines-
por entusiastas e militantes. Dessa forma, o ob- peradas. Na
jetivo da cientifização é simplesmente a vitória medida em
eleitoral, e não encontrar alternativas úteis à que legitima-
política pública. Esse objetivo parece resultar va o regime
do inevitável enfraquecimento das organizações emergente,
partidárias e das mudanças que podemos notar legitimava-se
nos sistemas políticos. também junto à opinião pública. Uma
3. Estrutura autônoma da comunicação: nova TV Globo surgia com uma Nova
um dos traços mais salientes da modernização República.27
é o desenvolvimento de uma poderosa e autô- 24 MURARO, Heriberto. Políti-
cos, periodistas y ciudadanos.
noma comunicação de massa, cuja influência A mídia, em conseqüência, tende a Buenos Aires: FCE, 1997, p. 23.
penetra em todas as dimensões da vida social, assumir funções políticas antes exclusivas
25 HABERMAS, J. A mudança
política, econômica e cultural. de organizações partidárias ou de órgãos estrutural da esfera pública.
Rio de Janeiro: Tempo Brasi-
No caso brasileiro, a concentração oli- de imprensa controlados por partidos ou leiro, 1984.
gopolista da Rede Globo tem sido enfatizada governos, tais como a socialização política 26 WATTENBERG, M. The decli-
com especial destaque pela sua influência na e a divulgação de informação para o públi- ne of american political parties.
Cambridge: Harvard University
política no período da transição democrática, co sobre política e ação governamental. A Press, 1984, p. 131.
autonomia da comunicação de massa torna
10 Democracia Viva Nº 24
O Balanço Social das Cooperativas, uma iniciativa do Ibase em parceria com diversas ins-
tituições, oferece às cooperativas um meio para que suas ações internas e externas sejam
transparentes e conhecidas pela sociedade em geral. Ao tornar públicas suas ações e seus
investimentos – que devem estar de acordo com os princípios cooperativistas definidos pela
Associação Cooperativa Internacional e pela Recomendação 193 da OIT (Organização Inter-
nacional do Trabalho) –, as cooperativas estarão ajudando a coibir práticas do setor que não
estejam de acordo com os princípios democráticos e distributivos
que o caracterizam.
www.balancosocial.org.br
www.ibase.br
Para se contrapor
ao Estado-
12 Democracia Viva Nº 24
onal
o município gaúcho de São Sepé instituiu a entre a agenda econômica e a agenda social
primeira Lei de Responsabilidade Social local era compreendida pelos gestores públicos como
do país. 2 base da legitimação da ação governamental.
Este texto procura apresentar as bases O momento atual parece ser outro. A agenda
desse arranjo institucional, começando pelo social passou a ser condicionada, desde a dé-
cenário político institucional que essa elabora- cada de 1990.
ção procura enfrentar. Em seguida, apresenta Essa mudança de paradigma na gestão
um esboço dos contornos do que seria essa pública é reflexo de uma crise de legitimidade
formulação. Portanto, é um texto-provocação das instituições públicas, fundada na diluição
e se apresenta como uma sugestão ao debate da representação social. Alain Touraine sugeriu
das redes sociais engajadas nessa construção. a crise de representação com a emergência da
globalização econômica num ensaio cujo título
revela suas preocupações e perplexidades: Po-
Limitações estruturais
deremos viver juntos?. No ensaio, o sociólogo
Um estatuto legal que procura normatizar o francês sustenta a instalação de uma profunda
direcionamento dos gastos públicos para a dissociação entre a dimensão cultural e a di-
área social parte, obviamente, da constatação mensão econômica globalizada, que colocaria
dos percalços crescentes para uma agenda em questão todo sistema de representação
de investimentos sociais em nosso país. Com construído na modernidade. Para o autor, o
efeito, o cenário político que se apresenta é mundo da economia globalizada caracteriza-se
de conformação dos investimentos sociais à pelo aumento da competitividade intersetorial,
lógica da estabilidade fiscal, subordinando-se à fluidez do tempo e do espaço, pela baixa valo-
capacidade de atração de poupança externa – rização da memória, do passado e, portanto,
mesmo que esses investimentos sejam voltados dos valores sociais. A dimensão cultural, por
apenas para especulações financeiras – e ao seu turno, caracteriza-se justamente pelas re-
rígido controle dos gastos públicos. ferências comunitárias, pelas tradições e pelos
A subordinação dos investimentos so- rituais morais, pela afetividade e identidade 2 Essa lei sugere uma série de
ciais ao equilíbrio fiscal e ao fluxo de capital locais, pelo lugar. Ambas as dimensões não iniciativas e etapas para sua
implementação: a) elaboração
rompe com qualquer propósito social ou com contribuem para a construção de regras uni- do mapa social da cidade
(diagnóstico anual da realidade
a histórica agenda nacional que estabelecia, versais, porque são intrinsecamente excludentes social local); b) montagem do
ainda que timidamente, um diálogo entre a e seletivas. O mundo globalizado possui uma Cadastro Social, registro indivi-
dualizado do público-alvo dos
dimensão econômica e a dimensão social do de- dinâmica particularista e altamente conflitiva. programas e projetos da área
social; c) montagem do Mapa
senvolvimento brasileiro. Em alguns momentos Em parte, os atentados de 11 de setembro de da Cidadania, um inventário de
da política nacional, esse diálogo, é verdade, 2001 são expressão desse embate entre um todas as organizações do tercei-
ro setor, da iniciativa privada
beirou o cinismo, quando se sugeriu que seria mundo marcado pelas tradições e identidades e órgãos públicos envolvidos
com ações sociais; d) definição
necessário crescer para depois investir na área comunitárias e um mundo da alta competitivi- de indicadores de pobreza do
social ou promover a distribuição de renda. dade racional, impessoal e excludente. município para definição de
metas anuais e plurianuais.
Mesmo assim, essa busca de relacionamento Com tal pano de fundo, qual sua conse-
qüência direta no que tange às práticas políticas
e estatais? Manuel Castells sugere uma hipótese abordagem da questão urbana, ante-
para essa resposta. Num ensaio recente, afirma riormente centrada na problemática
o autor: da produção e gestão do solo urbano,
[...] seu papel essencial consiste em e dos conflitos redistributivos entre os
receber e processar os sinais do siste- diferentes agentes produtores e usuá-
ma global interconectado e adequá-lo rios da cidade. Nesse paradigma, cabia
às possibilidades do país, deixando ao Estado não só a provisão de bens e
que sejam as empresas privadas que serviços urbanos, como também a ges-
assumam o risco [...]. A incapacidade tão dos instrumentos de planejamento
do Estado para decidir por si só, em urbano. [...] No novo modelo, o eixo de
um mundo em que as economias análise se desloca para a produtividade
nacionais são globalmente interde- urbana, e a identificação dos obstáculos,
pendentes, obriga a adaptação de para a inserção competitiva das cidades
regulações inaplicáveis [...]. Assim, nos circuitos globais. As funções do
surge um novo tipo de Estado, que poder público também se deslocam: as
não é o Estado-nação, mas que não da gestão e do planejamento da cidade,
o elimina e sim o redefine. O Estado para a garantia de um meio ambiente
que denomino Estado-rede se carac- favorável aos negócios e ao desenvol-
teriza por compartilhar a autoridade vimento econômico; as da provisão
(ou seja, a capacidade institucional de universal de bens e serviços urbanos,
impor uma decisão) através de uma para o desenvolvimento de práticas
série de instituições. (Castells, 1999, focalizadas que visem reduzir os níveis
p. 153, 156 e 164) crescentes de pobreza. (Santos Júnior,
2001, p. 34 e 35)
O que, em termos práticos, tal leitura
propõe é a emergência de um Estado-facilita- O autor prossegue e afirma que essa
dor, limitado à indução do desenvolvimento a orientação transfigurou-se, em 1997, em base
partir de instrumentos de informação e adequa- conceitual para desenvolvimento das parcerias
ção do ambiente econômico a partir do fluxo e políticas de descentralização fomentadas
de capital internacional. pelo Instituto de Desenvolvimento Econômico
O Estado-facilitador estaria determina- do Banco Mundial, pelo Programa das Nações
do, assim, por uma nova cultura política, extre- Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e pela
mamente pragmática, destituída de criticidade e Fundação Interamericana (IAF, na sigla em in-
utopia, desprovida de projetos estratégicos que glês). O Programa Parcerias para Redução da
seriam substituídos por ações táticas, pontuais. Pobreza destacava a necessária articulação do
Uma espécie de discurso único da ação política. setor público com o privado para ampliar os
Orlando Santos Júnior localiza com recursos para redução de pobreza, mas também
maior precisão os movimentos políticos que para ser uma alternativa de desenvolvimento,
deslocaram e acomodaram a ação estatal nas no contexto das transformações políticas e
últimas duas décadas (Santos Júnior, 2001). O institucionais em curso, assim como supera-
autor destaca um documento-referência dessa ção das ações estatais tutelares e altamente
inflexão no caso da ação municipal: trata-se centralizadas.
de Política urbana y desarrollo economico: un Nessa perspectiva, descentralização
paradigma para el decenio de 1990, publica- administrativa vincula-se à adoção de um
do pelo Banco Mundial. Nesse documento, novo modelo gerencial baseado nas parcerias
sugere-se que a pobreza estaria diretamente público-privado e, ainda, ao objetivo de au-
relacionada à produtividade da economia ur- mento de competitividade local. Tal propo-
bana. A partir de então, são propostos quatro sição aproxima-se em muito da adoção de
eixos de iniciativas: superação dos obstáculos um modelo empresarial da ação pública. São
de infra-estrutura urbana; incorporação das eliminados do planejamento local todos os
pessoas pobres aos circuitos econômicos; conflitos de interesse. As arenas de elaboração,
enfrentamento dos efeitos da degradação am- planejamento e ação pública são de tipo neo-
biental; e aumento da capacidade de pesquisa corporativo, no qual os interesses empresariais
sobre desenvolvimento urbano. Como sugere são alçados à condição de demandas públicas.3
Santos Júnior: Haveria, assim, uma apropriação privada dos
fundos públicos.
Há um deslocamento conceitual na
Assim, a construção da ação facilitadora
14 Democracia Viva Nº 24
Para se contrapor ao Estado-facilitador
16 Democracia Viva Nº 24
Para se contrapor ao Estado-facilitador
18 Democracia Viva Nº 24
Para se contrapor ao Estado-facilitador
Para finalizar essa proposição, indicamos a se- qualitativo, que procurem captar as intenções
guir os contornos do que seria um sistema de subjetivas, o ideário e imaginário das comuni-
monitoramento e avaliação social, elemento dades, além das mudanças de comportamento
central do sistema de governança social a ser social e político, a partir do desenvolvimento
constituído pela Lei de Responsabilidade Social. de cada etapa de uma ação ou projeto de po
O desenho aqui apresentado se inspira direta- lítica pública.
mente nas elaborações da ONG Visão Mundial Ainda segundo Oakley e Clayton, se o
(Sistema Regional de Monitoreo, Evaluación y objetivo de uma política pública é o empode-
Planeamento; World Vision Partnership Pro- ramento ou desenvolvimento organizacional da
gram Monitoring and Evaluation Standards) e comunidade, os indicadores de cada etapa de
nos sistemas de monitoramento desenvolvidos um projeto são definidos e nítidos:
pela Oxfam/Inglaterra, cujos autores são Pratt • para o monitoramento de resultado, os
Oakley e Andrew Clayton. indicadores devem captar a formação da
Parte-se da necessidade do monito- organização, a construção da capacidade
ramento para medir mudanças qualitativas, de crescimento organizacional, a freqüência
usando metodologia e instrumentos que não e o tipo das atividades organizacionais e as
demandem tempo e possam ser apropriados ações planejadas e executadas;
pela população dos territórios. O próprio • para o monitoramento de efeitos, os in-
processo de monitoramento gera, portanto, dicadores devem captar a emergência e os
empoderamento e controle social. fortalecimentos das comunidades, além do
O monitoramento é contínuo porque é envolvimento crescente da organização em
flexível, adaptando-se às mudanças conjuntu- assuntos vinculados ao desenvolvimento
rais e às avaliações das populações a partir de territorial;
valores específicos e reformatando as ações a • para a avaliação de impactos, os indicadores
partir da experiência concreta de implementa- devem captar a consolidação de organiza-
ção de ações. ções autônomas envolvidas no desenvolvi-
A Tabela 1 auxilia a compreender o que mento territorial.
se mede quando se monitora ou avalia uma Assim, os indicadores devem expressar
política pública: mudanças culturais e de comportamento social
Oakley e Clayton (2003) propõem significativas. A título de ilustração, apresenta-
uma síntese das intenções de todo processo mos a Tabela 2, que foi construída para insti-
de monitoramento e avaliação. Para eles, as tucionalizar um sistema de monitoramento do
intenções devem: orçamento participativo da cidade de São Paulo
a) indicar se um projeto está sendo implemen- (OP-SP).12 A tabela apresenta os indicadores de
tado conforme o planejado; empoderamento, exemplificando mudanças
b) identificar problemas e dificuldades de desejáveis com a prática do OP que podem e
implementação; devem ser captadas pelos indicadores de mo-
c) tratar dos recursos utilizados (prestação de nitoramento e avaliação eleitos.
contas); É possível armazenar os dados a partir de
d) verificar se os pressupostos de cada etapa um gradiente (ou diagrama) que classifica o grau
do que foi planejado são realmente válidos de empoderamento observado. Um exemplo é a
ou relevantes à comunidade beneficiada; adoção de um gradiente a respeito do aumento
e) avaliar se uma ação continua relevante à de redes locais, que podem iniciar com “poucas
comunidade. lideranças locais”, passando por “aumento de
Um dos princípios de um sistema de mo- participação e baixa rotatividade em plenárias
nitoramento para aumento de empoderamento e reuniões temáticas”, chegando à “criação de
de comunidades é a articulação dos processos estruturas permanentes de organização por terri-
de planejamento-monitoramento-avaliação, tório” e finalizando com “formação de redes lo-
integrados num mesmo sistema que se alimen- cais de gestão territorial”. Tal expediente facilita
tam mutuamente. Por isso, a execução de um a análise com maior segurança na interpretação
planejamento deve incorporar elaboração de de dados coletados.
relatórios e amplas discussões e análises com A elaboração de uma Lei de Respon-
participação efetiva das comunidades. sabilidade Social merece uma formulação
Peru (44,5), Colômbia (44,2),
Argentina (44,0), El Salvador
Em projetos que visam ao empode- técnica muito mais sofisticada que a LRF, (40,3) e Equador (30,5).
ramento social, é fundamental a ampliação porque parte de pressupostos mais ousados 11 O autor sustenta que o
terceiro setor, por si só, pode
dos indicadores, priorizando os de caráter e abrangentes. Seu fundamento é a radicali- sucumbir ao autoritarismo de
20 Democracia Viva Nº 24
Para se contrapor ao Estado-facilitador
Tabela 1
Objetos de avaliação e monitoramento de políticas públicas
A variável de medida O que mede Qual indicador
Resultados Esforço Implementação de ações
Efeito Efetividade Uso de resultados e sustentabilidade
Impacto Mudança Diferenças entre situação inicial e final
Tabela 2
Exemplo de indicadores de empoderamento do OP-SP
Antes do ciclo de OP Depois do ciclo de OP
Poucas lideranças locais Formação de redes locais de gestão territorial
Dependência política Estruturas de tipo autogestionário territorial
Participação por interesse específico Aumento do capital social
Avaliação impressionista e críticas difusas às Monitoramento e acompanhamento das
ações públicas ações públicas
Apropriação de obras e serviços por parte das Apropriação de obras e serviços por parte
autoridades e lideranças instituídas da comunidade do território
Gestor público como agente estatal Gestor público coletivo
Isolamento político Instâncias e fóruns territoriais permanentes e
capacidade de relacionamento social
A organização Justiça Global de- Partindo de uma idéia do Comitê A Biblioteca Jenny Klabin Segall, do
nunciou ao relator especial sobre Organizador do Fórum Social Mun- Museu Lasar Segall, em parceria com
moradia adequada do Centro de dial, o Ibase está estimulando que a Cinemateca Brasileira, está debru-
Direitos Humanos da ONU, o in- seus(suas) funcionários(as) contri- çada sobre um importante projeto:
diano Miloon Kothari, a operação buam com 0,5% de seus salários, a restauração e a digitalização das
“cata-tralha”, realizada pelas sub- mensalmente, para um fundo de coleções completas das primeiras
prefeituras do Rio. solidariedade. Não se trata de ação revistas brasileiras de cinema, A
Antes que fosse enviado o ofício filantrópica, mas de estímulo à par- Scena Muda (1921–1955) e Cine
a Genebra, a organização Médi- ticipação ativa. A idéia é propiciar a arte (1926–1942). Com o trabalho,
cos sem Fronteiras (MSF) tentou ida de pessoas de baixa renda para o acervo de 1.820 fascículos, da
encontrar solução doméstica para o V FSM, em Porto Alegre, entre primeira, e de 884 números, da
o problema que afeta a população 26 e 31 de janeiro. segunda, poderão ser consultados
em situação de rua da Cidade Ma- As bases têm estado de fora dos na Web, bem como artigos sobre
ravilhosa: o recolhimento de seus debates nas edições do FSM reali- cinema nacional.
pertences pela Comlurb com a ajuda zadas no Brasil. O coordenador do Essas publicações são os exem-
da Guarda Municipal e acompa- Ibase, Itamar Silva, chama a atenção plos de maior longevidade na im-
nhamento, muitas vezes, da Polícia para a armadilha que a permanência prensa cinematográfica brasileira.
Militar. Mas, apesar do esforço, a de tal situação criaria: “O Fórum Além disso, são os títulos mais
operação ainda não foi suspensa. só tem sentido se conseguirmos representativos dos mecanismos
A iniciativa teria sido criada com integrar a base ao processo. Caso de produção e comercialização
o objetivo de impedir que pessoas contrário, esse outro mundo que de filmes no Brasil. Fontes para a
se fixem nas ruas. A MSF faz algu- o Fórum propõe fica capenga, um recuperação da memória do cinema
mas colocações que mostram que mundo que carrega a exclusão, nacional, da exibição e da crítica
o objetivo vem sendo perseguido reproduzindo o que já vivemos”. cinematográfica brasileira, esses
de maneira equivocada. Denuncia O Ibase também destinou uma documentos possuem valor histórico
que a “perda” de documentos, parte de sua receita para o fun- inegável.
laudos médicos, cobertores, roupas, do, que beneficiará lideranças de O projeto será executado du-
fotografias e demais pertences só comunidades da Grande Tijuca, rante 2005 com a participação de
prejudica a inclusão da população Zona Norte do Rio; da favela Santa diferentes profissionais: pesquisa
de rua nas estruturas públicas. Além Marta, em Botafogo, Zona Sul; e dores(as), bibliotecários(as), espe
disso, o recolhimento de remédios, da Cidade de Deus, na Zona Oeste. cialistas em digitalização, web de
com a interrupção de tratamentos, As pessoas físicas interessadas em signers, especialistas em informática
acarreta problemas em termos de contribuir podem depositar qual- e em conservação de papel. O custo
saúde pública. E lembra que até mes- quer quantia, em nome do Ibase, total é de R$ 400 mil. A maior parte
mo objetos de trabalho estão sendo na conta 6950-7, agência 1629-2, foi aprovada pela Petrobras, mas a bi-
descartados como lixo na operação. Banco Bradesco. blioteca está buscando complemento
Acorda, prefeitura! à verba, o que permitiria a microfil-
Mais informações: rodrigues@
magem dos títulos e reencadernação
ibase.br
dos originais.
Tel.: 11 5574-7322
<http://www.museusegall.org.br>
22 Democracia Viva Nº 24
d
d a d e a d e s
Bolívia –
da
riais da Bolívia sem fazer referência ao processo democrático de 1982. A Bolívia vive,
desde aquela época, seu mais longo período de história democrática – 22 anos –, com
uma alternância de partidos sistêmicos no governo, a cada quatro anos. Esta é a etapa
para a construção da cidadania, no decorrer das duas décadas posteriores. A partir desse
24 Democracia Viva Nº 24
acional
Nos últimos anos, esses partidos políticos expro- Outro aspecto importante, no início do
priaram a representação cidadã, enlamearam- desenvolvimento democrático, que deve ser
-se na corrupção e na sinecura, como formas recordado, é o processo de responsabilidades
sistemáticas de assalto ao erário público, e iniciado contra o ditador e ex-presidente Luis
desonraram, até limites inacreditáveis, o exercício García Meza, por um pequeno grupo de advoga-
de servidores e servidoras públicos. Por sua vez, dos, dirigidos pelo deputado Juan Del Granado,
hoje, muitos meios de comunicação – e especial- que, atualmente, é prefeito da cidade de La Paz.
mente as emissoras de rádio e canais de televisão Esse processo finalizou com uma sentença his-
– abusam, de forma extrema, da liberdade de in- tórica – 30 anos de prisão para o ditador, sem
formação, manipulam e desorientam a opinião direito a indulto – e converteu-se em um caso
pública e perderam o sentido de responsabilidade inédito na história de toda a América Latina.
e ética jornalística. Transformaram-se em atores García Meza é o único presidente golpista, ex-
sociais e políticos protagônicos, sem qualquer -general da República, que está preso em uma
controle cidadão. Tudo é válido para aumentar prisão de segurança máxima, onde ficará até o
os índices de audiência. fim de seus dias.
Apesar do papel monopólico e exclu A hiperinflação de 8.000%, em 1985,
dente da maioria dos partidos, é necessário acabou com a UDP um ano antes da finalização
ressaltar que o processo de construção da de seu mandato, abrindo as portas para que
cidadania teve uma dinâmica ascendente e foi a cidadania em geral aceitasse o programa de
marcado por acontecimentos fundamentais. O ajuste estrutural e de estabilização monetária, que
primeiro deles foi o governo da Unidad Demo o governo de Victor Paz Estensoro implementou
crática Popular (UDP), do presidente Hernán em agosto de 1985. Nessa oportunidade, entrou
Siles Zuazo, que teve a lucidez de nunca utilizar em cena uma disposição legal emblemática – o
a força pública para reprimir os movimentos Decreto Supremo 21.060 –, que, sintetizando o
sociais emergentes daquela época. Paradoxal- declínio de uma economia que, até esse momen-
mente, o líder da Central Obrera Boliviana (COB), to, era quase totalmente estatal e baseada nas
Juan Lechín Oquendo, inimigo pessoal de Siles empresas públicas, promoveu o desenvolvimento
Zuazo, levou trabalhadores e trabalhadoras da de uma ortodoxia neoliberal. O principal efeito
poderosa central operária a um grau extremo dessa disposição, no plano monetário, foi imedia-
de polarização, lutando por reivindicações to: a inflação parou bruscamente e, a partir de
trabalhistas que não podiam ser atendidas. As então, a paridade cambial do peso boliviano em
ditaduras anteriores tinham deixado o erário relação ao dólar aumentou gradativamente até
nacional na mais completa falência, e a inflação atingir, 19 anos depois, a relação de oito pesos
monetária foi incubada em gastos dispendiosos, bolivianos por um dólar. Paradoxalmente, o peso
especialmente durante o irascível governo do boliviano é uma das moedas mais sólidas e está-
ditador García Meza (1980–1981). Essa atuação veis da região, em um dos países mais pobres e
dos movimentos sociais radicalizados acabava atrasados do mundo.
concordando com os setores mais conservadores
da sociedade boliviana que eram representados,
O “milagre” do ajuste
naquele momento, por uma ampla maioria no
parlamento do Movimiento Nacionalista Revo- Quando, em 1982, o governo da UDP iniciou seu
lucionário (MNR), de Víctor Paz Estensoro, e da mandato, a proporção de ajuda externa à Bolívia
Acción Democrática Nacionalista (ADN), de era praticamente nula. No entanto, a partir da
Hugo Bánzer Suárez. estabilização monetária, em 1985, houve um
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Bolívia – da recuperação democrática à agonia dos partidos
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Bolívia – da recuperação democrática à agonia dos partidos
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Bolívia – da recuperação democrática à agonia dos partidos
vigentes. Não só os movimentos sociais estão O dirigente indígena Felipe Quispe, por
fragmentados, mas também o Estado, suas sua vez, não conseguiu generalizar o bloqueio
instituições e seus operadores. Há muitos anos, dos caminhos como tinha feito em 2002,
os movimentos sociais vêm sendo acostumados, mesmo quando um de seus seguidores, Rufo
pelas esferas governamentais, a pensar que a Calle, manteve a região do altiplano norte,
única forma de obter “conquistas sociais” é por especialmente a estrada de exportação dos
meio da pressão e do bloqueio dos caminhos. portos do Pacífico, completamente paralisada
Existem somente dois projetos políticos durante duas semanas.
com uma visão de Estado e de sociedade. Por Ao mesmo tempo, os setores mais con-
um lado, o autodenominado movimento Nación servadores da sociedade boliviana, relacionados
Camba (ou da meia-lua, porque inclui todos os a movimentos cívicos do oriente, proclamavam
departamentos e províncias andinas), que aglu- tentativas separatistas e a formação de go-
tina setores do oriente e do Chaco boliviano, e, vernos autônomos.
por outro, a proposta de reconstituição Aymara Provavelmente, essas
del Collasuyo no altiplano de La Paz. Essas duas iniciativas procura-
propostas nacionalistas, racistas e conservadoras vam não só a ruptura
baseiam-se na exclusão, na rejeição e na negação da ordem institu-
do “outro”, de quem é diferente. Nenhum dos cional democrática,
movimentos era favorável ao referendo sobre o gás como também da
nem à realização da Assembléia Constituinte no própria configuração
próximo ano. Essas posições têm radicalizado os estatal boliviana.
comportamentos da sociedade boliviana até graus No mês de
de intolerância extrema. junho, o presidente
Maio de 2004 foi um mês de definições Mesa enfrentava o
que marcaram um novo rumo da história bo- momento mais pre-
liviana. O governo do presidente Carlos Mesa cário de sua gestão
não foi deposto pela ação combinada das de governo. Os bo-
forças de extrema esquerda que coincidem atos sobre um gol-
com os interesses das empresas de petróleo, pe de Estado eram
da embaixada norte-americana e dos grupos permanentes, e as
tradicionais de poder. ocupações de terras
lideradas por outro
dirig ente obscuro,
Conspiração contra o referendo do
Ángel Duran, multi-
gás
plicavam-se por to
Obviamente, não existem provas das conspira- do o país. Muitos
ções. Analisando em detalhe, é possível chegar prefeitos, questiona-
à conclusão de que a declaratória de greve geral dos pelo eleitorado,
indefinida, em maio de 2004, foi o ponto cul- iniciaram protestos
minante de uma conspiração contra o governo exigindo o descon-
do presidente Carlos Mesa. Essa greve, decretada gelamento de suas
pela Central Obrera Boliviana, dirigida por Jaime contas. Em 15 de ju-
Solares – um líder obscuro, conhecido por sua nho, no município de
vinculação com a ditadura do general García Avo-Avo, o prefeito
Meza –, foi o centro de confluência das ações foi seqüestrado, tras-
desestabilizadoras dos setores mais duros do ladado para diversas
governo deposto em outubro de 2003. Gru- comunidades do al-
pos ultra-radicais, trotskistas e do magistério tiplano, torturado, assassinado e, finalmente,
conseguiram paralisar as atividades em toda a queimado e exposto aos meios de comunicação
educação fiscal boliviana durante três semanas. aos pés do monumento a Tupak Katari.
No entanto, cometeram o gravíssimo erro de As ameaças de queimar as urnas, boi-
seqüestrar um vice-ministro de Educação de cotar o referendo, exigir a nacionalização dos
origem indígena, vexá-lo e humilhá-lo através das hidrocarbonetos, entendida como confisco
emissoras de televisão do país inteiro, gerando sem indenização, a demanda da renúncia de
uma grande rejeição da cidadania em relação Carlos Mesa, as inúmeras sugestões para que
a essa greve. as eleições fossem antecipadas e a sistemática
32 Democracia Viva Nº 24
Bolívia – da recuperação democrática à agonia dos partidos
as eleições municipais do mês de dezembro, Certamente, muitos desses 800 requerimentos * Miguel Urioste
promover a instalação de uma Assembléia não poderão cumprir com as exigências legais F. de C.
Constituinte para o ano 2005, reduzir o déficit em um prazo tão curto (6 de setembro), mas Diretor da Fundação
fiscal de 9%, criar novas fontes de emprego e também é provável que mais de uma centena Tierra, presidente da
reativar a economia nacional. dessas agrupações consiga ser reconhecida diretoria da Asociación
Até o momento, o cenário está sendo legalmente e postule seus próprios candidatos. para la Ciudadania
dominado pelo debate sobre o caráter da Lei A Lei de Convocatória à Assembléia Apostamos por Bolívia
34 Democracia Viva Nº 24
LO MUNDO P ELO MUNDO P ELO MUNDO
Quem estiver fazendo as malas para O Fórum Social Chileno, que acon- Santiago do Chile é a Capital Ame-
o Fórum Social Mundial 2005, em tece entre 19 e 21 de novembro, ricana da Cultura este ano. A idéia,
Porto Alegre, pode aproveitar para vem como um contra-espetáculo que nasceu em 1997, está dirigida
chegar mais cedo. O Fórum Social à reunião do Conselho Econômico aos países das Américas e tem o
das Migrações que ocorrerá nos dias Ásia-Pacífico (Apec). “No encontro objetivo de ser um instrumento de
23 e 24 de janeiro, tem nessa edição estarão reunidos os países mais po- integração interamericana a partir do
o lema “Travessias na De$ordem derosos dessa parte do planeta, que, âmbito da cultura, contribuir para um
Mundial”. em conjunto, produzem mais de melhor conhecimento entre os povos
O assunto merece atenção cada 50% da riqueza mundial”, denuncia do continente americano, respeitando
vez mais delicada, afinal, em 1990, a organização do Fórum. sua diversidade nacional e regional.
o número de migrantes era de 90 O Fórum pretende ser um espaço Quer destacar, ao mesmo tempo, o
milhões de pessoas. Hoje, são mais aberto, participativo e democrático patrimônio cultural comum e promo-
de 175 milhões. “Se considerarmos para que se conheça, compartilhe e ver as cidades nomeadas como Capital
o volume de recursos financeiros se debata os problemas do país e se Americana da Cultura no continente
que enviam para seus países, nós possam elaborar e propor caminhos americano e no resto do mundo. A
nos daremos conta não somente da e alternativas que tragam a possibi- idéia também visa estabelecer novas
dimensão do fenômeno migratório, lidade de um Chile melhor, baseado pontes de cooperação com a Europa,
mas em especial da pertinência da em um modelo econômico e susten- o outro único continente que tem
realização de um Fórum Social tável que respeite a diversidade e estabelecida a iniciativa das capitais
sobre as migrações”, explica-se no inclua todo o povo chileno. culturais.
site do evento. Como o encontro da Apec terá O delegado no Brasil da orga-
Além disso, só de pessoas refu- a presença do presidente dos Es- nização da Capital Americana da
giadas o planeta contabiliza mais de tados Unidos, George W. Bush, o Cultura, Mario Vendrell, diz que
16 milhões, e cerca de 25 milhões de tom da organização do Fórum é de os benefícios da iniciativa para
pessoas que fugiram de desastres natu- indignação. Primeiro, porque não a cultura são muito importantes:
rais, e da violência e estão deslocadas poderão se manifestar pelas ruas “Permite que toda a cidade e o país
internamente em seus países e não em virtude do aparato de segurança possam se sentir partícipes de um
são consideradas refugiadas. que envolve essa visita. “Não é mesmo projeto comum que aumente
Algumas propostas de temas a possível que o Chile receba com a coesão social e a auto-estima da
serem debatidos pelo Fórum são: honras um homem que representa a população. Possibilita o resgate e a
ética e migrações no contexto mun dor de pessoas inocentes, devastadas valorização do patrimônio cultural
dial, migrações e a guerra na ordem pela intervenção militar amparada em material e imaterial e o desenvol-
mundial e impactos da globalização premissas que não podem ser susten- vimento dos setores educacional,
na redistribuição espacial da popu- tadas com coerência”, argumentam. desportivo, artístico e urbano”.
lação. As inscrições já estão abertas A próxima cidade foi anunciada
As inscrições para o Fórum
e podem ser feitas pelo site <www. em 29 de outubro: Guadalaraja, no
Chileno estão abertas no <www.
migracoes.com.br>. O processo México. Podem ser candidatos os ter-
forosocialchileno.cl>
de cadastramento começa em 22 ritórios dos países da América. Para
de janeiro, à tarde, na Rua Barros isso, é preciso preencher o formulário
Cassal, 220 – Porto Alegre, RS. de candidatura, solicitado pelo e-mail
Quem colaborar com R$ 10 recebe <info@cac-acc.org>
uma bolsa com o material do Fórum.
VISTA
Nina Pacari
A equatoriana Nina Pacari é líder do movimento indígena Pachakuti e
dirigente da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador
(Conaie). Dona de uma trajetória que começou ainda na juventude,
como militante e advogada popular, Nina integrou durante seis
meses o ministério de Lucio Gutierrez, presidente do Equador. “Não
nos aliamos a Gutierrez depois da vitória, participamos de comum
acordo no processo eleitoral, ganhamos e, por isso, formamos parte
do governo. Mas, quando o aliado não cumpre com o prometido,
nós somos definitivamente partidários da ruptura.”
Como ministra das Relações Exteriores, viveu experiências
que ajudam a aprofundar o debate sobre alianças da
sociedade civil organizada com governos. “É preciso estar
consciente do desgaste, dos custos políticos que existem
numa parceria. Grave seria pensar que poderíamos sair
imaculados. Se tivéssemos um aliado razoavelmente
disposto a cumprir com o combinado, com mais
visão, mais projeto político, haveria uma grande
mobilidade social, seria a oportunidade para gerar
as mudanças”, analisa.
Nina concedeu esta entrevista à Democracia Viva durante
o Fórum Social das Américas, que ocorreu em julho, em
Quito, no Equador. Sobre o processo Fórum Social Mundial
(FSM), propõe: “Creio, sim, como propõe o FSM, que um
outro mundo é possível. E oxalá seja possível, para
que o adotemos e para que ele permaneça nas
esferas do poder. E me pergunto: assim
como há uma globalização de um funda
mentalismo econômico, por que não
globalizar a tarefa social?”.
36 Democracia Viva Nº 9
24
A senhora nasceu em Quito? Chimborazo, que fica no centro do Equador
Nina Pacari – Não. Nasci na província de e tem 73% de população indígena.
Imbabura, no norte do Equador. Toda minha Como foi essa experiência?
vida juvenil e estudantil foi passada nessa Nina Pacari – Quando fui trabalhar como
província. Vim para Quito no fim da década advogada, havia sempre a vinculação com
de 70 para estudar Direito na universidade. Na as organizações indígenas. Somos um povo
época já existia a Ecuarunari [Confederação de que trabalha unido, o que permitiu que con-
Povos da Nacionalidade Quíchua do Equador] tinuássemos com todas as reivindicações de
e também uma outra organização que acabaria povos, de nacionalidades, de recuperação de
por dar origem à Conaie. Logo me envolvi com territórios, olhando para além do horizonte dos
essas instituições e me integrei aos debates da povos indígenas, a fim de poder traçar uma
época. Depois que me diplomei, mudei-me para proposta de projeto político nacional.
a região mais central do país e passei a atuar, Foi um trabalho paulatino com a identi-
já como integrante da Conaie, na defesa das dade dos povos. Em nossa organização não
terras e dos direitos sociais; eu era uma advo- somos uma agremiação nem uma associação
gada que defendia o setor popular, mormente de camponeses lutando apenas pela terra,
o indígena. Mas por conta das nossas normas, tampouco artesanal. Não é uma agrem iação
nossa legislação, o que eu fazia era também nem um sindicato; é uma organização que
lutar para que a resolução dos problemas não parte de sua identidade como povo que teve
dependesse apenas das esferas das cidades e uma continuidade histórica desde antes da
das autoridades. Então eu atuava para que os época da colônia. Agora procuramos fazer
problemas fossem resolvidos na própria comu- com que o princípio da diversidade cultural
nidade, ou seja, para fortalecer as comunidades, seja reconhecido e possa, ao mesmo tempo,
e não ser apenas uma advogada que gosta de ser exercido num ambiente de entros amento
angariar casos e seguir avante com outro pro- cultural. Esperamos que isso permita pelo
cesso. Além disso, ainda que fosse inevitável menos construir novas propostas para os
estar nos tribunais de justiça, também dava povos indígenas e para os setores populares.
treinamento nas comunidades sobre legislação Por que deixou de advogar?
e processo legal, para que as pessoas não se Nina Pacari – Em 1989, a Conaie pediu
deixassem enganar por advogados inescrupu- que eu regressasse a Quito para assumir o
losos em outras ocasiões. Assim, dedicava-me posto de assessora política. Em 1993, o movi-
também à capacitação, e esse vínculo com a mento indígena em Chimborazo propôs minha
organização e a comunidade foi ficando cada candidatura para a direção da Conaie.
vez mais forte. E por que optou pela carreira
Não militava no movimento política?
indígena antes de entrar na Nina Pacari – Essa também foi uma
universidade? decisão da organização e é uma das ques-
Nina Pacari – Desde minha juventude tões características do movimento indígena.
eu militava. Uma vez que fazíamos parte de Não há uma candidatura individual de um
grupos indígenas, era totalmente necessário candidato, e sim em função do que decide
consolidar a nossa identidade, especialmente a organização, que pede a uma pessoa que
diante de uma sociedade que nos discriminava. assuma essa responsabilidade. Dessa maneira,
Quando tinha 15 anos, já fazia parte de uma em 1993, fui eleita dirigente de terras e terri-
organização juvenil; e nossas reivindicações tórios da Conaie. Depois, em 1997, participei
se referiam ao respeito e à voz da juventude da Constituinte do Equador pela província de
assim como dos povos indígenas. Era neces- Chimborazo e ganhei as eleições universais
sário que, no âmbito estudantil, por exemplo, gerais. Após ganhar nessa eleição, fui can
nós pudéssemos influir com o pensamento didata a deputada federal em 1998. Também
dos povos indígenas. Também pertenci ao ganhei em âmbito nacional e, de 1998 a 2000,
conselho estudantil do meu colégio e era fui vice-presidente do Congresso do Equador.
dirigente dentro dessa organização juvenil. Ganhamos o processo eleitoral em 2002 e fui
Toda essa atividade estava vinculada à iden- membro do atual gabinete nos primeiros seis
tidade e à cultura indígenas e acredito ter meses, em função da aliança que havíamos
sido toda essa experiência na juventude que adotado com o governo de Lucio Gutierrez.
permitiu que, uma vez formada advogada, eu Exerci o cargo de ministra das Relações Exte-
pudesse exercer a profissão na província de riores do Equador.
Qual foi a causa do rompimento situação ficou delicada. Embora o custo polí-
com o atual governo? tico fosse conhecido, avaliamos que romper
Nina Pacari – Em agosto de 2003, o a aliança nos primeiros 15 dias era como sair
presidente mandou um projeto de lei que correndo – era preciso esperar um pouco.
atentava contra os direitos dos trabalhadores e Outros ministérios estavam
que não era o projeto que havia sido decidido com o movimento?
por consenso pelos aliados. Logo em seguida, Nina Pacari – O movimento assumiu
comprometeu-se a retirar esse projeto e a subs- quatro ministérios importantes para o desen-
tituí-lo pelo consensual, mas em vez disso fez volvimento – Agricultura, Educação, Turismo
um pronunciamento público declarando que os e Relações Exteriores – e teve a oportunidade
deputados deveriam votar a favor do projeto de projetar um diálogo com novos atores.
enviado, pois, se não o fizessem, seriam puni- Mas constatamos que, com um aliado que
dos. Respondemos não é coerente para cumprir o compromisso
que não aceitávamos que motivou a aliança, é impossível lograr a
ser chantageados, viabilidade e a concretização de nossos pro-
que aprov ar e s s e jetos. No caso do Equador, o presidente da
projeto de lei aten- República é a cabeça, e, se essa cabeça não
tava contra os direi- funciona, nada funciona por mais que tenha-
tos dos trabalhado- mos ministérios-chave. Perceber isso foi muito
res, que votaríamos importante porque agora nosso objetivo é
contra o projeto e, assumir a liderança a partir da cabeça. E, mais
se isso sign if icasse ainda, construir a sustentabilidade em âmbito
uma rupt ura, que geral, o que depende dos governos locais. Se
assim fosse. Deu-se não tivermos sustentabilidade perante a estru-
então a ruptura, e tura existente, os grupos de poder econômico
todos os membros exercem toda a pressão possível para impedir
do gabinete, com o funcionamento de um novo modelo. Isso foi
exceção de dois ou também o que pudemos constatar. São razões
três funcionários de que nos levam a perscrutar um horizonte mais
escalões inferiores, claro de possibilidades e limites e a constatar a
se afastaram com existência das malhas do poder que impedem
seis meses e 20 dias. o funcionamento dos projetos.
É importante Mas avalio que foi sumamente importante
relembrar que a chegar a conhecer, por dentro, esse esquema
aliança foi feita em de poder e saber por onde temos que agir e
função de pontos melhor nos preparar para os desafios a en-
programáticos liga- frentar. Por causa dessa experiência, estamos
dos ao modelo eco- debatendo nossa sustentabilidade. Para um
nômico e político e projeto como o nosso ser sustentável, é pre-
à luta contra a cor- ciso lutar com a adversidade das hegemonias
rupção e à necessi- políticas e econômicas de caráter estrutural e
dade de promover também consolidar as bases. E nesse sentido
o desenvolvimento caberá, por um lado, aos governos locais e,
dos excluídos e o por outro lado, às organizações que se empe-
investimento social. nhem na luta extra-institucional, funcionando
Se, uma vez no governo, o aliado não cumpre de forma organizada.
sua promessa e adota uma política econômica Apesar dos atritos, pudemos demonstrar
neoliberal, comprometida com os setores da que é possível mudar; é possível trabalhar
direita e com um discurso totalmente voltado com espírito nacionalista. E é possível também
para a direita, obviamente surgem atritos romper com certos estereótipos em relação
entre os membros dessa aliança. Os primeiros à política exterior. No momento em que
problemas surgiram bem antes da ruptura cheguei, não havia absolutamente a con-
final. Logo nos primeiros 15 dias, quando foi sistência de uma relação com o país que
assinado o primeiro memorando de intenções temos internamente para projetar para o
com o FMI [Fundo Monetário Internacional], mundo. Então, é preciso procurar as lacunas
um dos custos políticos para o movimento, a ainda existentes nessa estrutura, ver o que é
38 Democracia Viva Nº 9
24
Nina Pacari
possível mudar, o que é possível discutir no são conhecidos há muito tempo no Equador.
plano internacional, por exemplo, com a tese Houve muitos pronunciamentos dos setores
dos povos. Por mais que sejamos governo, é populares e dos setores de classe média na
possível inserir os temas dos povos porque há mídia, nos quais meu nome era indicado como
razões e coerência suficientes, e isso nos serviu uma possibilidade para representar o Equador
de lição. Por exemplo, nas reuniões do Grupo como chanceler; havia um sentimento nacional
do Rio ou nos debates com a União Européia nesse sentido. Gutierrez não queria assumir
ou nos debates da Comunidade Andina, meu essa indicação. Foi o peso da população – e
discurso era abrangente porque havia uma re- não só da população indígena – e da mídia
presentação governamental, mas havia também que terminou forçando minha designação.
um componente do setor popular e do setor Durante os seis meses em que estive no
excluído. Ainda que tenha fracassado toda a governo, acompanhei pesquisas mensais sobre
construção do que poderia ter sido feito como o desempenho dos
aliança, valeu a pena para detectar limites e ministros e, até mi-
potencialidades dessa experiência. nha saída, sempre
Existem critérios para as alianças fui a ministra que
do movimento Pachakuti? encabeçou a lista
Nina Pacari – Definimos a necessidade do melhor desem-
de alianças naturais, alianças estratégicas e penho, nunca com
alianças conjunturais. As alianças naturais, menos de 83% de
geralmente entre povos indígenas, têm que aceitação nacional e
estar ligadas a esse projeto macro de delin e reconhecimento de
am ento de atividades políticas. Mas os pro- boa gestão. Isso me
blemas dos povos indígenas não se resolvem prop orciona u m a
apenas entre indígenas; aí entram as alianças satisfação porque
estratégicas. São questões que têm que ser representei não só
resolvidas em dimensão nacional e fazer parte os indígenas, mas
do projeto político do país que queremos. representei o país
Nesse sentido, temos que contar com outros em seu conjun-
atores: atores sociais urbanos, não-indígenas, to como mulher,
mulheres, juventude, novas formas de orga- como indígena,
nização que estão surgindo através da defesa como equatoriana;
dos direitos humanos, ecologistas, movimentos isso foi sumamente
antiglobalização e outros. São aliados estraté- importante.
gicos na construção de um processo. Quanto Como foi sua
às conjunturais, avaliamos se essas alianças recepção
podem colaborar para o nosso projeto maior. no
Foi o que aconteceu, por exemplo, no caso da ministério?
aliança com Gutierrez. Mas há um risco gran- Nina Pacari –
de que é o aliado não cumprir o prometido. É claro que havia
É uma aliança mais arriscada, mas temos que um temor sobre o
correr o risco. O problema não é o tipo de que eu faria. Não
aliança; ela é uma ferramenta. O problema é a sou funcionária de
falta de cumprimento; por conseguinte, o que carreira e havia a
temos que acusar é a conduta de quem não a tradição de políticos
cumpriu. Neste sentido, a coisa tem que ficar que chegam e mudam tudo, o que dá razão
bem clara porque, do contrário, poderemos ter- ao surgimento de disputas entre blocos que
minar culpando a ferramenta e ignorar outras se formam internamente. Mas deixei logo
possibilidades que possam ocorrer em outros clara a minha mensagem: vou cumprir a lei
momentos conjunturais. e vamos trabalhar pelo país. Afirmei que não
Houve alguma resistência por parte tinha grupos dentro da chancelaria e o que
da população não-indígena? tínhamos a fazer era cumprir nossa obrigação
Nina Pacari – Nem eu nem o movimen- com a política exterior do país.
to havíamos pensado que assumiríamos o Era tudo muito dinâmico. Todos os fun-
Ministério de Relações Exteriores. Mas meu cionários de carreira tiveram que reconhecer
trabalho e meu desempenho internacional que foi uma das gestões onde mais se sabia
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qual era o rumo do país, onde o Equador era reconhecimento e com abertura; e até minha
considerado em todo o seu conjunto. Não des- saída, com valorização.
cansamos um só momento. Havia mais de dois Diferenças políticas com o
anos e meio que os processos estavam acumu- presidente Gutierrez não limitaram
lados e tínhamos que trabalhar ao máximo. seu papel como chanceler?
Em tão pouco tempo, foi possível Nina Pacari – De acordo com a Constitui-
planejar uma ação de longo prazo? ção, a condução da política exterior pertence
Nina Pacari – Uma falha que encon- ao presidente da República, e sua execução,
trei no ministério foi, por exemplo, o peso ao chanceler. Mas, quando não coincidiam
dado à cooperação internacional. Se havia nossos pontos de vista, havia atritos. Isso
alguma cooperaç ão internacional, era em aconteceu, por exemplo, no tema da guerra
função de projetos que envolviam tráfico contra o Iraque. O movimento Pachakuti que-
de influência de um ria a paz; meu pronunciamento tinha que ser
determinado grupo. pela paz; o presidente tinha outro critério. A
Projetei uma estraté- população exigia um pronunciamento sobre
gia de trabalhar com a guerra, e eu fiz um pronunciamento com a
todas as províncias posição da chancelaria assinalando as linhas
equatoria nas. Pre- da paz. O presidente, então, se adiantou para
paramos uma ação dizer que era ele que determinava a política
para quatro anos exterior, mas nada mais disse. E a mídia lhe
com sete províncias perguntava: “Mas, então, como é? É a favor
por ano para visitar, da guerra?”. E ele respondeu: “Sou eu quem
tomar conhecimen- dirige!”. E nisso ficou. Eu também não voltei
to das aspirações e atrás e reafirmei que é preciso estar com a
planejar. Em função paz.
dessas demandas, Outro ponto sensível na política externa
seria orientada a co- foi o Plano Colômbia. Foi necessária muita
operação internacio- sabedoria para entender que o mandato cons-
nal, e não em função titucional e a soberania envolvem questões de
de amigos, de in- interdependências, de solidariedade, sendo
fluência e do setor preciso diferenciar e ver muito claramente o
unicamente de elites. conteúdo a ser dito sobre determinados te-
Foi possível trabalhar mas. Nesse caso, fui muito enfática em meus
com cinco províncias pronunciamentos para não nos subordinar-
nos primeiros seis mos nem aos Estados Unidos, nem a Álvaro
meses, no âmbito Uribe, o presidente da Colômbia. Queriam
de cooperação in- que o Equador qualificasse os guerrilheiros de
ternacional. Como terroristas e estavam pressionando o governo
exemplo, posso citar para que fizesse isso. Mas decidimos que esse
que o máximo que é um assunto da Colômbia; não temos que
o Equador conse- qualificar qualquer setor que esteja em outro
guiu em cooperação país. Essa foi a posição da chancelaria, no
internacional, num sentido de não acatar a linha de ação desejada
ano inteiro, foram pelos governos da Colômbia e dos Estados
US$ 270 milhões, Unidos. Então, isso marcou. Como havia um
em 2002. Consegui subscrever, em 620 dias, apoio por parte dos cidadãos, não restou ao
em torno de US$ 350 milhões de cooperação presidente senão a atitude de não dizer nada...
internacional. Queríamos que não fossem E quanto à Área de Livre Comércio
projetos pontuais pequeninos, e sim pen- das Américas, a Alca?
sando na dimensão do país, assim como em Nina Pacari – Sobre a Alca, vivi uma situ-
suas demandas. Trabalhar com essa linha, é ação sui generis. Nossas organizações votavam
claro, causou assombro a muitos porque não “não”; os setores produtivos, “sim”. E como
havia espaço que não tivesse sido considera- governo, o que fazer? Apoiar apenas um lado?
do. Pensávamos no país e não havia grupos O que implicava esse desacordo? Que não
sobre os quais recaíssem privilégios. Foi uma havia uma proposta do país? Que não havia
experiência sumamente importante e, por isso, consenso? Em muitas ocasiões nem uns, nem
digo que desde a minha designação atuei com
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representantes indígenas, num Congresso isso não bastou para impedir a eleição desse
de cerca de 200 membros. Se olharmos a indígena. Ele ganhou a eleição em Cotacachi
composição do país e dos novos atores, e teve uma gestão maravilhosa, de 1996 a
esse Congresso obviamente teria que ter 2000. Em 2000, foi reeleito com 80% dos
outra representação. Assim como no caso votos e agora a população voltou a pedir que
do Equador, o Congresso tem que ter outra se candidate a um terceiro período contínuo.
representação, onde não estejam presentes Podemos dizer que coube a nós romper
apenas as elites nem que seja unicamente com a discriminação e com o racismo, de-
a população dominante que esteja no Par- monstrando com ação, com a prática, não
lamento. só a capacidade e a eficiência, mas a coe-
É possível comparar a rência com a origem. E essa coerência com
discriminação que a população a origem implica não o fato de ser indígena,
indígena sofre no Equador com mas sim o fato de
a que a população negra sofre pertencer aos se-
no Brasil? tores excluídos, aos
Nina Pacari – A c r e d i t o q u e s i m . A setores pobres e de
discriminação ocorre pelo fato de sermos poder reagir a uma
diferentes – indígenas ou população negra. orientação sobre
Somos discriminados pela cor, e o racismo é um a necessidade de
instrumento de dominação. E o mais grave mudanças.
é que, embora a discriminação racial tenha E quanto à
sua origem nas elites, ao ser assumida em população
uma linguagem mais popular, torna-se uma negra
prática cotidiana ainda mais injusta e mais equatoriana,
dura e, por vezes, inconsciente. No Equador, que
por exemplo, é comum a população em geral, representa
e não só as elites, revelar essa discriminação apenas 1%
contra os indígenas. Em alguns casos, a dis- da população
criminação assume feições modernas. A partir total?
de 1996, quando irrompemos no cenário polí- Nina Pacari –
tico, pudemos experimentar a nova forma de São bastante dis-
discriminação racial. Na época da colônia, criminados pela
discutia-se se os índios tinham alma ou não. cor. Quando co-
Porém, naquele ano, e até nos últimos pro- meçamos a traçar
cessos eleitorais, discutia-se se os indígenas a proposta do pro-
seriam ou não capazes de desempenhar jeto político e da
atividades políticas. Isso é discriminação! construção de um
É como dizer: “Para começar, como índio, Estado includente
você não é capaz”. e plurinacional, es-
Um de nossos primeiros esforços foi rom- távamos cientes de
per com esses estereótipos e demonstrar não que não se tratava
só capacidade, mas também que podemos ir apenas de indíge-
mais longe que os outros. Foi um enorme de- nas; tínhamos que
safio sermos aqueles que abriram o caminho. incluir também po-
Entre os casos concretos que ocorreram, hou- vos brancos, mes-
ve um indígena economista que se candidatou tiços e também a população negra. Aind a
a prefeito e que, claro, representava um peri- na década de 80 e, sobretudo, no início da
go para as elites brancas ou mestiças. Em seus década de 90, organizamos contatos com os
discursos nas comunidades rurais, o candidato pov os negros e verificamos que não havia
das elites dizia: “Vocês não podem votar nesse processo organizativo. Havia muita dispersão
indígena porque ele é um profissional, não é e nós lhes most ramos as eta\ de seu espaço
igual a vocês. Ele já pertence às elites”. Mas esse territorial e definiram a necessidade de seu
mesmo candidato das elites ia à zona urbana território chamar-se comarca. No ano 2000,
discursar para seus pares brancos e mestiços e apresentaram no Congresso Nacional uma
dizia: “Não devem votar nele porque, mesmo proposta de reconhecimento dessas comar
sendo um profissional, é índio”. Felizmente, cas. Chegar a isso, partindo do que eram há
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respeitar os direitos dos povos indígenas. mações que tivemos por meio dos povos
Como parte dessa política indígenas, em algumas reuniões realizadas
internacional, Lula viajou no âmbito internacional e das quais partici-
recentemente a países que param outros atores que não são necessa-
flagrantemente desrespeitam riamente indígenas, Chávez é reconhecido
os direitos humanos, como Cuba, pela população da classe média e do setor
Líbia, Índia e China. Isso não popular. É claro que as elites que concentra-
é preocupante? ram o poder não cederiam nem permitiriam
Nina Pacari – A política internacional é que lhes tirassem privilégios; isso tem que
muito complexa. Se formos impor um puris- ficar muito claro. Na realidade, o próprio
mo, não teremos relação com nenhum país; fato de os Estados Unidos estarem liderando
então é preciso vê-la como parte da estra- o apoio aos opositores de Chávez, no mínimo,
tégia política. O mundo das inter-relações me deixa com uma
é importante para que se produza um eixo suspeita. E, apenas
multilateral. É uma questão muito complexa vendo que os Esta-
para o país e para os governantes e diria que dos Unidos estão
há também a necessidade de abrir mercados com os opositores,
e vender produtos. É preciso ver sua com- sabemos de que
plexidade, mas também suas várias facetas. lado devemos ficar.
Creio que essas experiências nos ficam como Como avalia
lição. É preciso conhecer a proposta que está a postura do
sendo apresentada, o objetivo traçado e estar atual governo
preparado. Eu não me atreveria a julgar se estadunidense
um país fez bem ou mal, é preciso ver com em relação
clareza as estratégias adotadas, tendo sem- à América
pre em mente os cidadãos do próprio país. Latina?
E a cooperação entre outros países Nina Pacari – A
da América Latina? política de Estado
Nina Pacari – Acredito em possibilidades que os Estados Uni-
de consolidar as perspectivas sul-sul. Por dos sempre pratica-
vezes se pensa que o grande negócio está ram é: “A América
nos Estados Unidos, é assim que pensam as para os americanos”
elites do Equador. Quando ocorreu a grande e, portanto, todos os
crise de 1999, os estudos econômicos apon- demais são subordi-
taram que, ao contrário do que se imaginava, nados a eles. É ne
nossos empresários encontraram seu nicho ocolonialismo puro.
de mercado na América Central. Então, creio Ao longo de todas
que o que precisamos é procurar estratégias estas centenas de
para, por exemplo, fortalecer a Comunidade anos e especial-
Andina. Deveria haver essa solidariedade por mente nas últimas
parte de governos e uma convicção quan décadas, essa pos-
to ao desenvolvimento de seu próprio país, tura foi motivo de
mas isso pouco acontece. Porém, malgrado luta permanente.
todas essas dificuldades, é preciso persistir e Essa mesm a políti-
encontrar outras possibilidades e alternativas, ca imperialista de
seja na Com unid ad e Andina ou no Merc osul. hegemonia adquiriu novos matizes com o
É preciso abrir outros espaços, e não neces- discurso do terrorismo. São os fundamen-
sariamente pensar que o único salvador são talismos econômicos, os fundamentalismos
os Estados Unidos e, por acreditar nisso, que não deixam de ser essa supremacia
ficar em condição de subordinação. Isso racial hitleriana com a qual se acob ertam
é o que nós não admitimos. Como pov o, os que manipulam a política dos Estados
acreditamos que no âmbito da sob erania há Unidos, sobretudo sob a liderança de Bush.
lugar para abrir outros horizontes e outras E creio que na medida da soberania, do
poss ibilidades. respeito aos países, deveria existir outro
E quanto a Hugo Chávez? tipo de relação entre os Estados. Mas, se os
Nina Pacari – De acordo com as infor- governantes são timoratos, pelo menos que
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c r ô n i c a
182 na cabeça
Brasil: 182 anos de independência, diz fronteiras. Mas o número de habitantes –
a história, e 182 milhões de brasileiras e verdade que números, quanto maiores, mais
brasileiros vivos, diz o IBGE. Na conta do abstratos são – não ganha concretude. Os
cronista doido, teríamos criado 1 milhão de atuais 182 milhões de brasileiros e brasileiras
nativos independentes por ano! Pena não ser são 18 vezes a população de Portugal, cinco
essa a conta. Independência política não é um vezes a da Argentina, quase o dobro da do
ato, mas um processo. Não se conta, mede México! França, Itália e Inglaterra têm, cada
ou pesa. Só pode ser qualificada. Ou moni- um, um terço disso!
torada: a nossa avança. Mas é passível de Fruto de um pacto de elites, no grito
recuos súbitos... Toc, toc, toc! Já a população, “Independência ou morte” havia mais bravata
como ela cresce! Dobramo-nos em 34 anos! retórica do que risco de morte. Nesses quase
Em eterna crise de identidade, somos dois séculos desde aquela gritaria às pláci-
ciclotímicos. Nossa auto-estima ora rasteja das margens do riacho Ipiranga, raramente
como minhoca envergonhada, ora voa sober- exibimos ao mundo a altivez de nação, de
ba como águia. Sem saber o que realmente fato, independente. Um povo que não lutou
somos, não identificamos o que em nós é pela independência não sabe aquilatar o seu
vício ou virtude. Não realizamos sequer que valor – dizem uns. Não vale nada a indepen-
somos um grande país em população. A custo dência política para quem é economicamente
percebemos que temos extensão territorial dependente – dizem outros. É irrefutável: a
continental – os coloridos mapas da infância independência se desvanece se a soberania é
ajudam na comparação visual de áreas e minada por dívidas em moeda estrangeira. E
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vamos nós! o verde-amarelismo que, açulado por marque- Alcione Araújo
Com a salsicha tecnológica diante teiros, locutores e o sentimento de pátria fora alcionaraujo@uol.com.br
dos olhos, queremos aviões a jato, imagens do lugar, induz à arrogância, à xenofobia e à
digitalizadas, televisão de alta definição, truculência. Pena que, enrolados na bandeira,
computadores de última geração e internet somos apenas 182 milhões de fanáticos, não
de banda larga para pagar as contas sem sair 182 milhões de cidadãos conscientes, nem
de casa. Deslumbrados ao orgasmo diante 182 milhões de patriotas!
do caixa eletrônico, digitamos operações Se fomos sempre vulneráveis ante o
sofisticadas e, sem ganhar salário, fazemos mundo, tampouco conseguimos criar, em 115
as tarefas do bancário que perde o emprego anos de República, um Estado democrático,
– eis o monstruoso ornitorrinco. Cerca de 40 capaz de realizar o mínimo de justiça, de
milhões vivem como se fossem suecos. Cento equidade e de equanimidade. E também não
e quarenta milhões como se fossem africanos. somos livres ante o Estado, sequer temos
E vamos nós! assegurados os direitos de plena cidadania.
Na copa de 70, cantávamos: “Noventa A história mostra que avançamos com esta-
milhões em ação, pra frente, Brasil do meu bilidade de bêbado, fustigados pelas contra-
coração! De repente é aquela corrente pra dições entre o moderno e o arcaico, o público
frente, parece que todo o Brasil deu a mão! e o privado, o legal e o justo, com a maioria
Vamos juntos, vamos, pra frente, Brasil, salve destituída puxando a minoria, que segura as
a seleção!”. Ao militarizar o patriotismo, a rédeas. E lá vamos nós, um dos países mais
ditadura furtou-nos o sentimento de amor à ricos e mais belos do mundo, rumo aos 200
pátria que, sem outras formas de se expressar, anos de independência e aos 200 milhões
se deslocou para o futebol. Os militares não dos mais alegres e generosos habitantes do
vacilaram: patriotizaram o futebol! Até hoje, planeta! E vamos nós... Até quando?
a tal “corrente pra frente” se incendeia nas
disputas internacionais. O hino nacional infla
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a alcunha criada por Zuenir Ventura para falar incapazes de garantir a inclusão maciça da
da oposição “morro/asfalto”. É uma “cidade população brasileira no mercado e nas es-
fragmentada”, “guetificada”. “Há varias cida- feras de poder”. Assim, o acesso à “cidade
des, ou melhor, cidade nenhuma.” Resultado de direitos” fica restrito aos “superiores”,
da globalização? Do crime e da violência? que continuam a “canibalizar” o Estado em
Não se espere um tratamento ingênuo de proveito particular. Por outro lado, o privi-
autores e autoras para essas questões, como légio conferido a ações pontuais por meio
se pode antever desde a introdução do livro, de “parcerias” do Estado com a sociedade
escrita por Itamar Silva e Moema Miranda. civil organizada se faz em detrimento de
Em poucas páginas, Luiz Antonio “políticas públicas” de caráter universalista,
Machado reconstrói, com uma clareza ímpar, despolitizando as reivindicações e cooptando
o percurso das diferenças às políticas sociais, as lideranças locais.
passando pelas hierarquias e pela democracia. Em 1996, Herbet de Souza, Beti-
Diferenças não são por si sós nefastas, mas, nho, perguntava-se como poderia o Rio de
ao contrário, colorem as cidades. Associadas Janeiro acolher as Olimpíadas em 2004,
a relações de força, as diferenças são trans- se a cidade não incorporava à cidadania
formadas em hierarquias que constituem boa parte dos(as) habitantes, em particular
posições desiguais nas quais se distribuem as mor ad or es(as) da favela. A indagação deu
pessoas. O autor não se furta em chamá-las origem à Agenda Social Rio. As Olimpí-
“superiores” e “inferiores”, optando por não adas não vieram, e estão aí os Jogos Pan-
amenizar a “iniqüidade que é tratar hierarqui- -americanos em 2007. A reflexão proposta
camente as diferenças”. Numa democracia, por Betinho há oito anos está na ordem do
pretende-se que a hierarquia seja posta em dia. Rio – A democracia vista de baixo é um
questão num conflito pacífico. A menos mergulho na “gente” do Rio de Janeiro que
que se trate de uma democracia de fachada, não sucumbe às armadilhas da complexidade
a negociação das hierarquias não pode ser e da exaustão, sem perder em densidade e
predeterminada pelas hierarquias vigentes, qualidade. De leitura acessível e agradável,
donde a intervenção do Estado sobre a vida destrincha as dificuldades da sociabilidade
privada sob a forma de política social se urbana, sem nos deixar esquecer que ver a
torne condição da negociação democrática democracia “de baixo” é ver a questão do
e da expansão da cidadania. Democratizar o Estado sob o ângulo da sociedade.
Estado é estabelecer o círculo virtuoso entre
alargamento da esfera pública e a legitimidade
que somente essa inclusão lhe pode conferir. Gisele Silva Araújo
Não bastasse a efetividade da democracia ser Professora de Sociologia da PUC-Rio
desafiada “de fora”, há a realidade interna da gsaraujo@iuperj.br
“violência urbana”.
A explicação dos impasses da cons-
trução da cidadania nas favelas cariocas
não se esgota na globalização nem na
sociabilidade violenta. Moema Miranda e
Paulo Magalhães reconhecem: “As políticas
em curso têm limitações intrínsecas: são
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r e s e n h a
lutam, sobretudo, para mudar valores. vez, abrange variadas questões relacionadas
Com essa abordagem, são construí- à alimentação e à nutrição. Contudo, sem o
dos os argumentos apresentados na segunda receio de restringir essa noção à fome, afirma-
parte do livro, dedicados ao desenvolvimento -se que insegurança alimentar e nutricional é,
mundial. Nessa parte, a educação popular sobretudo, fome.
pautada no conhecimento e na compreensão Fome exprime falta, ausência, priva-
dos processos sociais é tida como a grande ção. Assim, chega-se à conclusão de que, se
saída para a transformação social. O autor eu não como, sinto fome. Se eu como – mas
acredita que isso deverá consistir em faci- pouco –, passo fome. Se como muito, mas
litar progressivamente sua reestruturação não do modo que quero ou quando quero,
econômica e social a partir de princípios tenho fome. Se como muito, quando eu que-
mais humanitários, que coloquem a huma- ro, mas sem qualidade, também passo fome.
nidade como centro do interesse social. Per- Se me é imposto algum tipo de alimento que
meado pelos debates sobre desenvolvimento não compreendo como comida, também sinto
no Terceiro Mundo, na última parte, estão fome. E, ainda, se o que eu como prejudica
artigos que sinalizam para a necessidade de a alimentação de alguém ou algum grupo
se apresentarem soluções conjuntas de ca- no presente ou em suas condições futuras
ráter local, global e sustentável que tenham de alimentação, também tenho fome. Com
como princípio a idéia de desenvolvimento alguma reflexão, é possível perceber que há
como sinônimo de ascensão humana. fome por toda parte, mas não visibilidade
Os artigos certamente ajudam nesse suficiente para que deixe de ser “oculta” e
exercício de desnaturalização dos cenários passe a se tornar um problema enfrentado
de fome, primeiro passo para de fato tornar em suas muitas expressões.
a alimentação um direito humano e alcan- Para além de resgatar alguns funda-
çar plenamente as tão almejadas segurança mentos essenciais das teorias sobre a fome,
e soberania em termos de alimentação e que estão na gênese da noção que se tem
nutrição. Aceitar esse exercício é reconhe- hoje de SAN, essa leitura fortalece valores
cer, mesmo com espanto, que ainda hoje a pautados na solidariedade, na humanidade,
fome é um tema proibido. Josué de Castro na cidadania e na democracia. Valores
alertou-nos para aquilo que ele classificou que precisam ser traduzidos em formas
genialmente de “fome oculta”, ou seja, de pensar e agir, essenciais no combate
caracterizada por carências nutricionais. a inúmeras desigualdades vivenciadas
Segundo o autor, “existem duas maneiras diariamente e que, segundo o consagrado
de morrer de fome, não comer nada e de- autor, dev em guiar o modelo de desenvol-
finhar de man eira vertiginosa até o fim, ou vimento que almejamos.
comer de maneira inadequada e entrar em
um regime de carências ou deficiências es- Vívian Braga
pecíficas capaz de provocar um estado que Pesquisadora do Ibase
pode também conduzir a morte”.
A maneira pela qual o autor com-
preendeu a fome possibilitou-nos refletir
sobre o tema e ampliá-lo. Hoje, a fome está
incorporada à noção de SAN, que, por sua
Onde você
guarda o seu
racismo?
“Uma campanha contra o racismo? Mas você está no centro do debate público. O Ibase se junta
acha que esse é um problema sério no Brasil? A a esse movimento participando do grupo Diálogos
questão é a desigualdade econômica, não a cor contra o Racismo e preparando uma campanha
da pele.” Ouvi muita coisa desse tipo ao longo contra o racismo.
dos últimos meses, sempre que comentava com É uma história que remonta a 2001.
amigos e amigas que estava trabalhando com o Durante os debates que antecederam a Confe-
tema da discriminação racial. A maior parte das rência Mundial contra o Racismo, a Discrimina-
pessoas que me diziam isso era composta de ção Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de
cientistas sociais, jornalistas e economistas que Intolerância, formou-se no Brasil uma rede de
tinham preocupações com relação à sociedade organizações da cidadania ativa que pretendia
brasileira e impecáveis credenciais progressistas. discutir esses temas. O grupo foi batizado como
Por que a dificuldade em encarar o racismo? Diálogos contra o Racismo e realizou quatro
O movimento negro faz duras – e mereci- encontros desde então.
das – críticas à elite política do Brasil pela recusa Uma das principais preocupações desse
em encarar o racismo como um dos principais grupo é destacar que o combate ao racismo é
problemas nacionais. Durante muito tempo, essa importante para a população não-negra e não
questão foi encoberta pelo mito da democracia pode ficar restrito ao movimento negro. Dessa
racial e pela crença de que o desenvolvimento perspectiva, surgiu a idéia da criação de uma
econômico geraria emprego e oportunidades para campanha contra a discriminação racial que
todas as pessoas, independentemente da cor da tivesse como público-alvo essa população.
pele. Felizmente, esse quadro de auto-ilusão já O sociólogo Florestan Fernandes, pio-
começou a mudar. O governo Lula inovou ao criar neiro dos estudos sobre o tema, observou que,
uma secretaria para a promoção da igualdade no Brasil, as pessoas não se acham precon
racial, e a discussão sobre cotas e ação afirmativa ceituosas. De fato, uma recente pesquisa da
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Fundação Perseu Abramo mostrou que 87% pais, mães ou avós e, agora, lutava para deixar
da população brasileira acredita que existe de lado esse legado familiar.
racismo no país, mas apenas 4% da população Às vezes, a discriminação se manifesta
admite que é racista.1 O problema é sempre em pequenos gestos e expressões que, à pri-
alheio ou, então, é atribuído à sociedade, de meira vista, podem até parecer carinhosos.
maneira abstrata. Por exemplo, foi comum a menção a um(a)
Seríamos um país de “racismo sem racis- negro(a) que “foi criado(a) quase como al-
tas”? Como abordar um problema que ninguém guém da família”. Em geral, um eufemismo
sequer admite que tem? A opção foi criar uma que significa alguém que prestava serviços de
campanha provocadora, para incomodar e fazer faxina, arrumação e cozinha. Como observa a
pensar. O mote – “Onde você guarda o seu professora da Universidade Federal do Rio de
racismo?” – parte do pressuposto de que todas Janeiro (UFRJ) Liv Sovik, uma das organizadoras
as pessoas são um pouco racistas. Podemos não da campanha, “quando no Brasil alguém diz
ter atitudes que mostrem isso abertamente, mas, que uma pessoa é ‘quase da família’, podemos
por alguma razão, mantemos a bizarra crença ter certeza de que essa pessoa não é branca”.
de que a cor da pele torna as pessoas melhores O mote da campanha é tão provocador
ou piores do que outras. que estimulou um debate entre as pessoas
A equipe da campanha foi a diversos da equipe coordenadora. Nas reuniões de
locais do Rio de Janeiro – shoppings, praias, organização e nos bastidores das filmagens
Feira de São Cristóvão, Lagoa Rodrigo de Frei- dos comerciais, nós nos perguntávamos onde
tas – e perguntou a mais de 200 pessoas onde guardamos nosso racismo – afinal, não somos
guardavam seu racismo. As respostas foram melhores do que as pessoas que entrevistamos.
transformadas em comerciais de TV e também Dessas discussões surgiu a idéia de fechar os
serviram de base para a preparação de cartazes, anúncios e os cartazes com a frase “Jogue fora
folhetos e outdoors. seu racismo”, pois ninguém gosta de guardar 1 “Discriminação racial e pre-
conceito de cor no Brasil”.
As reações à pergunta seguiram quase uma coisa ruim. Pesquisa realizada em setembro
todas o mesmo roteiro. Começaram com olhos e outubro de 2003 e disponível
em <www.fpa.org.br/nop/racis-
arregalados e uma expressão de surpresa. Em mo/preconceito.htm>.
seguida, a pessoa entrevistada garantia que
não era racista, de jeito nenhum. Às vezes, até
mostrava sua indignação com o problema da Algumas respostas à pergunta “Onde você guarda
discriminação racial. Graças à habilidade da o seu racismo?”
jornalista Helena Rocha, que conduziu as en- • “Nas piadas.”
trevistas, essa fachada de frases politicamente • “Não sou racista, mas a sociedade me obriga a ser.”
corretas ruiu diante dos exemplos concretos. O • “No passado, isso é algo da escravidão, não existe mais.”
que você faria se estivesse numa rua escura e
• “Como é que vou ser racista se minha noiva é morena?”
aparecesse um negro? E se seu filho namorasse
• “No medo.”
uma negra? Ahn, bem...
• “Eles são muito piores. Quando conseguem um bom empre-
Após o constrangimento inicial, as pes- go, pisam na gente.”
soas começavam a se mostrar mais à vontade e • “No inconsciente.”
a falar abertamente do racismo que continuam • “Não sou racista. Talvez eu simplesmente não goste de gente
a guardar, mesmo que, em muitos casos, sou- que faz coisas erradas.”
bessem que é uma atitude errada. Houve quem
dissesse que herdou esse comportamento de
Contudo, há quem considere que, embo- oposto da escala educacional, 7,5% dos brancos
ra existam casos de discriminação racial aqui e e brancas são analfabetos, mas o número cresce
ali, o Brasil não é um país racista. Ou seja, para para cerca de 20% dos afrodescendentes.3
essas pessoas, é um problema ocasional, fruto de As estatísticas do Instituto Brasileiro de
atitudes equivocadas de alguns indivíduos, mas Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, mes-
que não tem impactos gerais na sociedade. Para mo quando têm a mesma quantidade de anos
elas, a questão é mesmo pobreza e desigualdade de estudos da população branca, negros e negras
social. Desse modo, o fato de que a maioria da ganham salários mais baixos. Com o ensino médio
população pobre é formada por afrodescen- completo, um(a) branco(a) tem rendimento de
dentes não passaria de mera conseqüência dos R$ 870 contra R$ 655 de negros(as). Para quem
quatro séculos da escravidão no Brasil, apesar passou pelo funil do diploma universitário, esses
de já terem se passado mais de cem anos desde valores são de R$ 2.003 e R$ 1.278.4
a Abolição. No entanto, as estatísticas mostram As dificuldades para negros e negras
que a cor importa. ascenderem no sistema educacional está ligada
ao círculo vicioso da pobreza, mas também, de
modo fundamental, à violência do racismo nas
Em números
escolas: piadas, insultos, agressões, desvalorização
Um dos indicadores sociais mais respei- sistemática da cultura e da história da população
tados do mundo é o Índice de Desenvolvimento afrodescendente. Mas “normalmente é provável
Humano (IDH), elaborado pelo Programa das que ela [a discriminação] se concretize por meio
Nações Unidas para o Desenvolvimento. Criado de uma ‘profecia’ auto-realizável, que leva os
pelo Nobel de economia Amartya Sen, reúne da- professores a investirem mais nos estudantes
dos sobre educação, esperança de vida e renda. brancos”.5 É fácil compreender os efeitos desses
O sociólogo Marcelo Paixão, coordenador do comportamentos na auto-estima de negros
Observatório Afro-brasileiro e professor da UFRJ, e negras, acostumados a ouvir desde criança
calculou o IDH brasileiro separadamente, para que as grandes oportunidades na vida estão
a população branca e negra – todos os dados reservadas para pessoas de pele clara.
apresentados neste artigo incluem pretos(as) e Um padrão semelhante ocorre no mercado
pardos(as) na categoria negros(as), que são cerca de trabalho. Ninguém ignora que anúncios de
de 45% dos(das) habitantes do país. emprego que pedem “boa aparência” quase
O resultado é que, em 2001, o IDH da sempre significam a exclusão de afrodescendentes,
população branca foi de 0,820, ao passo que o da sobretudo quando se trata de ambientes freqüen-
negra alcançou somente 0,712. A disparidade se tados pela elite, como shoppings, hotéis luxuosos
mantém quando os dados são desagregados para ou lojas sofisticadas. A discriminação também se
as regiões brasileiras, tanto as mais ricas como as reflete em programas de TV e comerciais. Estrelas
mais pobres. No Sul, por exemplo, os números negras, como Taís Araújo e Camila Pitanga, são
são respectivamente 0,837 e 0,753. No Nordeste, uma bela novidade na televisão brasileira, mas
0,739 e 0,704. Para se ter uma idéia do que isso grande parte dos atores e atrizes afrodescenden-
representa em termos de desigualdade, é preci- tes ainda está relegada a papéis de serviçais, como
so imaginar a realidade de países diferentes: “O se sua cor fosse um pecado.
IDH da população negra é equivalente ao que O racismo também se manifesta no co-
fica entre El Salvador e China, na 107a posição tidiano das empresas. A exemplo do que acon-
(em 175 nações)... Já a branca apresentou IDH tece nas escolas, negros(as) sofrem com piadas e
2 PAIXÃO, Marcelo. A hipótese equivalente ao Kuwait, 46a posição”.2 agressões e são, com freqüência, preteridos(as) nas
do desespero: a questão racial
em tempos de frente popular. É comum o argumento de que a pobreza promoções, com base num código implícito de
Observatório da Cidadania
2003: população pobre versus
da população negra seria explicada pelo patamar que não é “apropriado” para uma grande empresa
mercado. Rio de Janeiro: Ibase, educacional. Se afrodescendentes tivessem boa ter executivos(as) afrodescendentes em posições
2003, p. 62.
instrução formal, em escolas e universidades, con- de comando. Segundo os dados do Balanço Social
3 TELLES, Edward. Racismo à
brasileira: uma nova perspectiva seguiriam melhorar de vida tanto quanto qualquer Ibase, negros(as) são apenas 13,7% do total de
sociológica. Rio de Janeiro: pessoa de pele clara. Isso se refletiria em salários pessoal efetivo das empresas e ocupam somente
Relume-Dumará, 2003, p.
202 e 203. mais altos e empregos de prestígio, incluindo 4,3% das posições de chefia. Como afirma o co-
4 HERINGER, Rosana (Org.). posições de destaque nas Forças Armadas, na ordenador do projeto, João Sucupira: “O simples
Sonhar o futuro, mudar o
presente: diálogos contra o
diplomacia, nas grandes empresas etc. ato de informar a quantidade de negros e negras
racismo, por uma estratégia Primeiro, os indicadores da desigualdade. existente na empresa virou um pesadelo... Um
de inclusão racial no Brasil. Rio
de Janeiro: Ibase, 2002, p. 13. Enquanto 11% da população branca completou um empresário chegou a dizer que, se fosse incluído
5 TELLES, op. cit., p. 238. curso universitário no Brasil, entre a parcela negra o item ‘número de trabalhadores negros’, ele
esse percentual é de apenas 2,6%. No extremo
58 Democracia Viva Nº 24
Onde você guarda o seu racismo?
não apoiaria a campanha pela divulgação do e juízas em aplicar penas rigorosas nesses casos.
balanço social”.6 A Constituição de 1988 trouxe inovações, como
Além do trabalho e da escola, há outro o reconhecimento das terras de quilombos e a
campo no qual as conseqüências do racismo defesa dos “direitos difusos” por instituições
podem ser, literalmente, fatais. Trata-se da ação como o Ministério Público, que se tornou um
da polícia. “Todo camburão tem um pouco importante agente nas campanhas contra a discri-
de navio negreiro”, diz uma canção da banda minação racial. Também se consolidou, entre as or-
Rappa. A cor da pele já é suficiente para indicar ganizações de cidadania ativa que atuam na área,
um “comportamento suspeito” e garantir revistas o recurso de recorrer aos tribunais internacionais
em batidas policiais, abordagens truculentas e até de direitos humanos, no âmbito da Organização
mesmo a morte. Flávio Sant’Ana, o dentista negro das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos
assassinado pela PM paulista em fevereiro de 2004, Estados Americanos (OEA).
teria sido confundido com um ladrão se fosse louro A ONU é um
e tivesse olhos azuis? O caso ganhou destaque fórum especialmen-
por se tratar de uma vítima de classe média, mas te relevante para o
qualquer adolescente negro(a), em especial se for combate ao racismo.
morador(a) de favela ou de periferia, sabe que essa Durante décadas, a
é apenas a ponta do iceberg, com a maioria dos posição do Itamaraty
casos submersos abaixo da linha da pobreza. foi a defesa da supos-
No Brasil, o número de homicídios por ano é ta “democracia racial”
comparável ao de um país em guerra. Só em 2000, brasileira como um
foram 40 mil assassinatos, a maioria de homens modelo de tolerân-
(90%) e concentrados na faixa etária de 15 a 24 cia a ser adotado por
anos (230 mortes por 100 mil habitantes, contra outros países. Com o
uma média nacional de 27). Desses assassinatos, colapso desse mito,
grande parte é de negros, a ponto de que, para a diplomacia come-
alguns especialistas, “o que está ocorrendo é um çou a mudar, embo-
genocídio de jovens, e negros em particular”. Na ra num ritmo lento.
faixa dos 14 aos 19 anos, os homicídios de negros O Brasil poderia ter
são 17,2% superiores aos dos brancos.7 sediado a Conferên-
As estatísticas provam uma realidade cia Mundial contra o
incômoda. A raça importa. Não é apenas a Racismo, que acabou
condição socioeconômica, ser afrodescenden- ocorrendo na África
te significa ser submetido(a) a discriminações do Sul, mas o gover-
brutais e sistemáticas, e não apenas ao racismo no FHC avaliou que
ocasional dessa ou daquela pessoa. seria alvo de ataques
Não é por acaso que governos autoritá- do movimento negro
rios, como foi a ditadura militar brasileira, têm durante o evento.
dificuldades em lidar com a questão racial. Os O medo de ver as
generais de 1964 tiraram as perguntas relativas mazelas nacionais
à cor da pele do Censo de 1970, porque sabiam expostas diante dos
que os resultados seriam contrários ao mito da países desenvolvidos,
democracia racial. Mesmo hoje, a maioria dos um dos grandes hor-
países latino-americanos deixa de fora dados sobre rores da elite brasilei-
raça em seus censos, o que torna mais complexa ra, falou mais alto do 6 SUCUPIRA, João. Balanço
social: diversidade, participação
a tarefa dos movimentos antidiscriminação. Sem que o compromisso com a justiça racial. e segurança do trabalho. De-
mocracia Viva, Rio de Janeiro,
informações precisas a respeito dos efeitos do Contudo, a estratégia oficial não adian- jun./jul. 2004, p. 59.
racismo, é mais árduo o esforço para combatê-lo. tou muito. O movimento negro se mostrou com- 7 LEMGRUBER, Julita; RAMOS,
petente e bem-articulado internacionalmente e Silvia. Urban violence, public
safety policies and responses
utilizou a conferência de Durban para denunciar from civil society. Social Watch
Políticas contra o racismo 2004: fear and want. Montevi-
as condições aviltantes da população negra déu: Instituto del Tercer Mundo,
Apesar de todos os problemas, a luta contra o no Brasil. Nesse processo, foi vital o trabalho 2004, p. 136. Ver também
LEMGRUBER, Julita. Violência,
racismo no Brasil avançou muito ao longo dos de uma série de cientistas sociais dedicados ao omissão e insegurança públi-
últimos anos. Embora a legislação anti-racismo estudo do racismo (as notas deste artigo citam ca: o pão nosso de cada dia.
Disponível em: <www.cesec.
remonte à década de 1950 (Lei Afonso Arinos), alguns desses homens e mulheres), cujas análises ucam.br/publicacoes/textos.
asp.> Acesso em: 3 set. 2004.
é notoriamente difícil condenar alguém com e pesquisas têm ajudado muito na compreensão
base nela, até mesmo pela resistência de juízes da seriedade e da profundidade do problema.
* Maurício Santoro O governo acabou recuando e esta- entrada para a universidade e prejudicam
Pesquisador do Ibase belecendo, pela primeira vez, programas de principalmente a população branca e pobre.
ação afirmativa, como o do Ministério das Há também quem afirme ser impossível dizer
Relações Exteriores, que concede bolsas para quem é negro(a) num país com a miscigenação
cand id at os(as) afrodescendentes à carreira do Brasil.
diplomática. O Ministério da Justiça foi mais A primeira objeção cai por terra quando
longe e estabeleceu cotas para negros(as) em se examina a tradição jurídica brasileira – as
seus processos de seleção de pessoal. cotas são aplicadas desde a era Vargas, utiliza-
Com a posse de Lula na Presidência da das na educação, serviço público, mercado de
República, a questão racial ganhou importância, trabalho e, mais recentemente, até em partidos
ocupando espaço inédito na agenda política políticos para diversas categorias que enfrentam
brasileira. Em 21 de março de 2003, Dia Interna- maiores dificuldades: deficientes, mulheres,
cional pela Elimina- filhos(as) de agricultores (que têm cotas em es-
ção da Discriminação colas de agronomia) e até para pessoas nascidas
Racial, foi criada a no Brasil, para se protegerem da concorrência
Secretaria Especial de de estrangeiros(as). Acordos diplomáticos como
Políticas de Promoção a Convenção 111 da Organização Internacional
da Igualdade Racial do Trabalho, de 1965, também determinam
(Seppir), que coor- que sejam implantadas políticas que corrijam
dena a ação gover situações de discriminação racial.8
namental nessa área. É evidente que cotas raciais são somente
No Congres- uma das medidas necessárias para diminuir a
so, circulam 25 pro- desigualdade e democratizar as universidades
jetos ligados à ação e é preciso pensar em políticas específicas
afirmativa, incluindo também para brancos(as) pobres. Mas é injus-
o Estatuto da Igual- to e cruel dizer à população negra que tenha
dade Racial. Essa paciência e espere mais algumas gerações até
proposta, de autoria que se resolva permitir seu acesso ao ensino
do senador Paulo superior. Também é lógico que se devem pla-
Paim (PT-RS), abarca nejar programas de acompanhamento para
áreas como saúde, afrodescendentes que ingressem no terceiro
educação, mercado grau por cotas, para que possam permanecer na
de trabalho e regu- universidade e recuperar eventuais deficiências
lamentação de terras de formação educacional.
quilombolas. Cria Também se afirma que não é fácil sa-
ouvidorias para rece- ber quem é negro(a) no Brasil. Isso é curioso,
ber queixas ligadas à pois, quando se trata de discriminar, agredir e
discriminação racial humilhar, sabe-se muitíssimo bem. O critério
e um fundo para mais usado, em todo mundo, é o da auto-
financiar políticas de -identificação. Considera-se afrodescendente
ação afirmativa. quem assim se declara. Claro que podem ocor-
A medida rer abusos e talvez, pela primeira vez na história
mais controversa brasileira, brancos(as) queiram se passar por
adotada nos últimos negros(as) para obter vantagens. Com a prática
anos é o estabeleci- e a experiência, serão formuladas maneiras de
mento de cotas para estudantes afrodescen- amenizar esses problemas.
dentes nas universidades públicas, como aque- O debate sobre o racismo no Brasil mal
las implantadas pela Universidade do Estado começou e, com certeza, ficará muito melhor. Por
do Rio de Janeiro (Uerj) e pela Universidade ora, paremos por aqui. Para um país racista, mas
8 Devo esses esclarecimentos de Brasília (UnB), às vezes por iniciativa das supostamente sem racistas, este artigo já está
a uma palestra de Hédio Silva, de bom tamanho.
doutor em Direito e diretor do
assembléias legislativas estaduais, como no Rio
Centro de Estudo das Relações de Janeiro. As críticas a esses projetos foram
de Trabalho e Desigualdade
(Ceert), no I Encontro Brasileiro variadas. Para algumas pessoas, as cotas são
de Bolsistas do Programa Inter-
nacional de Bolsas da Fundação
uma tentativa de aplicar no Brasil um modelo
Ford, ocorrido no Rio de Janei- pensado para a realidade dos Estados Unidos.
ro, em 16 de junho de 2004.
Para outras, ferem o princípio do mérito na
60 Democracia Viva Nº 24
O Jornal da Cidadania é distribuído
para pessoas que têm pouco ou ne-
nhum acesso à informação crítica e
comprometida com a democracia.
Nossos leitores e leitoras são, espe-
cialmente, estudantes e professoras
e professores de escolas públicas
de todo o país. Mas também traba-
lhadoras e trabalhadores urbanos e
rurais, líderes comunitários, mora-
doras e moradores de comunida-
des pobres. São 60 mil exemplares
distribuídos gratuitamente.
Finda a
asfixia, a
cidadania
tem nome e
O Fórum Social Mundial (FSM) se constitui hoje no maior encontro da sociedade civil
apresentadas a seguir são fruto de uma consulta feita a mais de 3.500 pessoas das 115
mil presentes ao FSM da Índia (2004), com algumas comparações em relação ao que
Nos dois eventos, foram realizados trabalhos que pretendiam captar a identidade
62 Democracia Viva Nº 24
Nesse sentido, sugerimos uma consulta O Fórum Social Mundial, por sua vez,
ao questionário entregue ao público durante emerge na forma de um contraponto, catalisador
o evento. No questionário, pedia-se que fos- do dissenso, ou melhor, uma caixa de ressonância
sem indicadas questões temáticas que o(a) para a diversidade de vozes que não é convidada
entrevistado(a) considerava de maior ou menor a participar do Fórum de Davos, trazendo as pes-
importância para a construção de um outro soas de todo o mundo para que se encontrem e
mundo (pág. 68). dialoguem. Não foi – e não tem sido – um gran-
Dada a limitação que um artigo desta de Woodstock ou turismo social, como querem
natureza impõe, escolhemos não utilizar todo detratores(as). Ao contrário, tem sido o espaço de
o espaço apenas com nossa percepção e análi- expressão de opiniões que se contrapõem à idéia
se, mas outorgar ao público leitor a chance de de pensamento único, de fim da história, de que
elaborar suas próprias. Para tanto, serão repro- não há outra alternativa senão a de arcar com o
duzidas tabelas originais dos dados tabulados ônus de um modelo de sociedade que provoca a
e ponderados. Ao fim, esse trabalho poderá se deliberada exclusão de centenas de milhares de
constituir em um primeiro passo para que se pos- seres humanos por todo o mundo.
sa construir uma sociologia do(a) participante, De posse dos dados oficiais, esperamos
um perfil de quem são, quais suas convicções poder cumprir com a promessa que ficara implí-
e o que querem as pessoas que concretizam cita no último artigo escrito sobre esse evento1
aquilo que conhecemos como o maior encontro e trazer mais luzes sobre a quantidade e a
de lideranças sociais que já se viu. qualidade da participação no FSM.
Todo o mundo está atento ao que se
passa no Fórum, não apenas porque se consti-
Participação diferenciada
tui no mais importante contraponto ao Fórum
Econômico Mundial (Davos), mas porque, se há Estiveram presentes no FSM 2004 aproximada-
um espaço onde aparecerão propostas e pessoas mente 115 mil pessoas, das quais quase 100 mil
dispostas a discutir a construção de um outro indianos(as), representando mais de cem países,
mundo, de pensar uma alternativa àquilo que cobrindo todos os continentes do globo. O mapa
em Davos é apresentado como inevitável, esse a seguir oferece uma noção da participação
espaço é o FSM. dos(as) delegados(as). É interessante notar o
Para entendermos um pouco do FSM, déficit de globalidade do Fórum quando olhamos
é importante voltar nossa atenção ao processo a África ou os países do Leste Europeu. Por outro
que engendrou sua formação, em poucas pa- lado, países como França e Estados Unidos mais
lavras, saber o que o FSM é significa compre- uma vez aparecem entre os dez mais.
ender o contexto no qual ele foi formado e o A captação das informações sobre a pre-
significado do próprio Fórum de Davos. sença no Fórum não se deu apenas por meio da
Davos se propõe ser um espaço onde líde- nacionalidade das pessoas. Em se tratando de
res mundiais se encontram para discutir diferentes um evento cujo maior objetivo foi justamente o
visões da sociedade, as mudanças em curso ou de debater as alternativas à forma pela qual o
esperadas, cenários para o qual o desenvolvimento mundo caminha e propor a discussão de temas
econômico será levado, em que ocorre uma intensa e prioridades para a construção de um outro
troca de experiências e opiniões. mundo, é importante considerar que a natureza
Davos está para o mundo no seu po- da participação foi diferenciada. Nesse sentido,
tencial de influenciar governos e pessoas em existia a possibilidade de as pessoas participa-
1 Artigo de minha autoria em
uma medida que não há paralelo na órbita da rem como delegados(as), observadores(as) ou parceria com Silvana de Paula,
publicado na Democracia Viva
sociedade civil organizada. acampados(as). nº 20 (fev./mar. 2004).
Essas três formas de inserção, assim que desempenham o papel mais importante.
como no Brasil, identificavam as pessoas entre Sendo assim, centraremos nossa atenção sobre
aquelas que teriam ido ao Fórum para debater esse grupo, para tentar vislumbrar qual é o perfil
propostas, preparadas e articuladas previamente do núcleo duro da militância contra a globalização
para contribuir no debate da construção de um na forma que conhecemos hoje.
outro mundo, outras pessoas que naturalmente Tabela 1
se sentiriam atraídas para conhecer o even-
to – o que atende a uma das preocupações Participação por categoria
de inserção (em%)
da organização do Fórum (tornar o evento
FSM 2003/2004
próximo da pessoa comum), além das pessoas
comprometidas principalmente com os eventos Porto Alegre Índia
e debates que ocorrem nas dependências do 2003 2004
Acampamento da Juventude. Delegados(as) 23 62
Entre delegados(as), observadores(as) e
Observadores(as) 50 36
acampados(as), a proporção da presença foi a
seguinte (Tabela 1): Acampados(as) 27 2
Nesse ponto, há uma significativa dife-
rença para o Fórum de Porto Alegre ocorrido Delegados(as) corresponderam a mais
em 2003, quando delegados(as) representavam de 70 mil pessoas, das quais quase 60 mil de
23% e acampados(as), 27%. Isso se explica na indianos(as). Das demais nacionalidades nesse
Índia pois os(as) responsáveis pela organização grupo, destacam-se entre os dez países mais
buscaram meios específicos para aumentar esse presentes, cinco da própria região: Paquistão,
tipo de participação. Nepal, Bangladesh, Tibet e Sri Lanka, além da
O Fórum se propõe a ser um espaço de Índia. Os demais quatro são Brasil, Estados Uni-
reflexão, troca de experiências e discussão de alter- dos, França e Alemanha. É interessante lembrar
nativas, mas, para tanto, são os(as) delegados(as) que França e Estados Unidos também foram
64 Democracia Viva Nº 24
Finda a asfixia, a cidadania tem nome e sobrenome
pelos países da região, em especial o Paquistão no Fórum de 2003 (Tabela 4). Essa informação
e o Nepal. é coerente com a de escolaridade, em que há
Muitas outras questões foram feitas para mais pessoas com formação superior, mestra-
que pudéssemos identificar as características e do e doutorado. Por outro lado, a pequena
a inserção social dos(as) participantes. Não será
possível expor todas neste espaço; portanto, Delegados(as) – Presença por continentes – exceto Índia (em
privilegiaremos as relativas à idade, à formação %) – FSM 2004
educacional e à participação política.
Quanto à escolaridade, ao contrário do
que se previu e do que se falou durante o evento,
houve maior participação de pessoas com mais
anos de estudo na Índia. Isso se explica, em parte,
pelo peso pequeno que a participação de pessoas Ásia 46%
acampadas teve nesse evento e pelo peso muito Europa 27%
66 Democracia Viva Nº 24
Finda a asfixia, a cidadania tem nome e sobrenome
Tabela 5
Filiação a partido político (em %) – FSM 2003/2004
Categorias selecionadas FSM 2004
Total 2003 Total 2004 Delegado indiano Delegado asiático Delegado não-asiático
Sim 35 12,7 13,5 23,4 25,9
Não 63 84,5 83,9 75,2 73,3
NS/NR* 3 2,8 2,7 1,4 0,8
Total 101 100 100 100 100
*não sabe/não respondeu
Tabela 6
Participação em organização/movimento social (em %) – FSM 2003/2004
Categorias selecionadas FSM 2004
Total 2003 Total 2004 Delegado indiano Delegado asiático Delegado não-asiático
Sim 64,9
60,4 70,2 69,4 80,6
Não 35,1
39,6 29,8 30,6 19,4
Total 100 100 100 100 100
Tabela 7
Participação em atividade prévia (em %) – FSM 2003/2004
Categorias selecionadas FSM 2004
Total 2003 Total 2004 Delegado indiano Delegado asiático Delegado não-asiático
Sim 33,6
29,1 32,8 37,7 44,5
Não 66,4 66 62,3 60,1 52,6
NS/NR* - 4,9 4,9 2,2 2,9
Total 100 100 100 100 100
*não sabe/não respondeu
Tabela 8
Participação de movimento/organização compromisso em relação a essa formulação de
social em redes (em %) alternativas e debate, o que se reflete também
FSM 2003/2004 na maior intensidade pela qual esse grupo fez
suas sugestões, 882 pessoas, mais do que a
Total 2003 Total 2004
soma dos demais grupos. Qual a natureza das
Sim 33,6 29,1 sugestões registradas, uma vez que em escala
Não 66,4 66 tão grande? Em primeiro lugar consideramos
NS/NR* - 4,9 prudente que o público leitor conheça as op-
ções disponíveis no questionário (pág. 68). Só
Total 100 100
assim obterá uma compreensão mais abran-
*não sabe/não respondeu
gente dos resultados que serão apresentados.
Há pelo menos duas perspectivas que
quase 3 mil sugestões. Essas idéias refletem podemos adotar para perscrutar as informações
exatamente o que é a proposta do Fórum, não geradas. A primeira é do conteúdo das suges-
só para fora, de promover a inclusão, bem como tões, e a segunda é das ações que as pessoas
em sua prática interna, de aproximação entre entrevistadas gostariam que fossem tomadas.
a organização e os(as) participantes, e dos(as) As idéias mais citadas, e que parecem
participantes entre si. refletir as preocupações dos(as) participantes,
Mas, como afirmamos anteriormente, encontram-se ao lado (Tabela 9). Devemos res-
delegados(as) seriam as pessoas com maior
* Leonardo Méllo saltar que essa tabulação é apenas uma referên- Tabela 9
Coordenador do Ibase e cia das pessoas entrevistadas, e não a opinião Idéias/temas mais citados nas ques-
da pesquisa FSM 2004, de todas as pessoas presentes ao Fórum. tões abertas – FSM 2004
elaborada e aplicada O Fórum caminha a passos largos para
com Silvana de Paula a construção de mecanismos de consulta e de Direito 337
<lmello@ibase.br>
democracia interna que, cada vez mais, apro- Jovens 266
ximam o evento do caminho de construção de
Mulher e gênero 216
consensos e de potencialização da discussão
sobre as alternativas para a construção de um Paz e guerra 163
outro mundo. Esse trabalho que por ora apre-
Globalização 139
sentamos é apenas um arranhão na superfície
daquilo que as pessoas pensam, acreditam, Sexualidade 138
discutem. Esperamos ter a oportunidade de Educação 137
levar adiante esse trabalho e tornar pública
Emprego 136
toda a riqueza de dados que ajudará outros(as)
pesquisadores(as) a entender e construir esse Meio ambiente 125
outro mundo mais radicalmente democrático.
Temas locais 113
Violência 105
Questão 16 da consulta
Em resposta à globalização neoliberal, o Fórum Social Mundial afirma: “Um outro mundo é possível”.
Para a construção desse outro mundo, indique o grau de importância que você atribui ao debate
dos temas abaixo, de 1 a 5, sendo 1 o menos importante e 5 o mais importante.
1. Acesso à terra / Reforma agrária 21. Fundamentalismo / intolerância religiosa
2. Acesso, controle e democratização da informação 22. Gênero e eqüidade
3. Água 23. Hiv-Aids
4. Alternativas ao neoliberalismo 24. Juventude, trabalho e participação
5. Bens públicos globais 25. Monopolização dos meios de comunicação
6. Combate à pobreza 26. Multiculturalismo
7. Comércio e financiamento internacionais (FMI, 27. Multilateralismo e a questão da ONU
OMC, Banco Mundial) 28. Narcotráfico
8. Cooperação internacional / Relações sul-sul 29. Participação social e cultura cidadã
9. Corporações econômico-financeiras 30. Partidos políticos e outras formas de fazer polí-
10. Democracia representativa / Democracia parti- tica
cipativa 31. Paz / Militarização / Guerra
11. Desenvolvimento e sustentabilidade 32. Povos indígenas
12. Desigualdade / Exclusão social 33. Preservação ambiental / Biodiversidade
13. Dhesca – direitos humanos econômicos, sociais, 34. Privatização (bens coletivos e serviços públicos)
culturais e ambientais 35. Questão urbana
14. Direito ao trabalho / Desemprego 36. Racismo / Intolerância étnica
15. Dívida 37. Segurança alimentar e nutricional
16. Economia solidária 38. Taxas Internacionais
17. Educação / Escola / Acesso ao conhecimento 39. Terrorismo
18. Energia: crise e alternativas 40. Transgênicos / Biotecnologias / Bioética
19. Erradicação da fome 41. Tribunal Internacional de Justiça
20. Estados nacionais / Ordem internacional 42. Valorização da diversidade
68 Democracia Viva Nº 24
OUT / DEZ 2004 69
cul c u lt u r a
Reinaldo Reis* e Rogério Chaves**
Um ano antes de 11 de setembro de 2001, uma loja que não existe mais, ao lado das torres gêmeas
do World Trade Center. Essa instalação anuncia roupas americanas modernas (para trabalho) desde
1818. Inconscientemente ou não, está registrando sua contribuição para renovação do projeto liberal,
ao propor uma atualização dos uniformes que serão usados por trabalhadores: em lugar
de cabeças, computadores
70 Democracia Viva Nº 24
ura
A arte
na educação
por uma nova
cultura
Qual o papel das artes nos tempos atuais? Qual o desafio da educação na evolução do
Jovens de Santa
Catarina de
monstram o
seu futuro em
uma oficina
cultural
72 Democracia Viva Nº 24
A arte na educação por uma nova cultura
Um outdoor em
Florianópolis, mas poderia
estar em qualquer região
do país. Ele anula as
considerações regionais
culturais e retrata jovens
saudáveis de uma sociedade
de ficção
dos medíocres limites impostos pela vexatória vem à tona com maior freqüência e destaque,
condição de “decoradores” e “decoradoras” de porém consideramos a dependência ideológica
ambientes escolares para fins de comemorações a mais relevante, pois influencia e direciona as
cívicas e folclóricas. demais. A proposta não é hierarquizar essas
É importante lembrar que, em períodos dependências, pois elas se influenciam, mas
anteriores da história, o povo brasileiro teste- localizar a problemática da nossa discussão
munhou movimentos artísticos que gestaram o na questão cultural. “A sociedade brasileira
momento atual de luta pelo reconhecimento das se encontra sob a hegemonia cultural es-
artes como instrumento de evolução histórica trangeira, em especial da produção cultural
como já citado anteriormente. norte-americana, que decorre das estruturas de
mercado que se criaram ao longo do tempo,
devido à incompreensão, miopia e omissão
Dependência e cultura de
dos governos em relação à política cultural, de
autodeterminação
comunicação e educação”, observou Samuel
Como dependência cultural, consideramos o Guimarães.1
conjunto da dependência política, econômica, A educação traz, em si, possibilidades de
ideológica, tecnológica e militar vivida pelo lidar com a questão da dependência, pois atua
Brasil, em plena Guerra Fria, sob forte influên- diretamente no campo da cultura. Subestimar
1 GUIMARÃES, Samuel Pinheiro.
cia norte-americana. Estamos no século XXI e esse conhecimento é um erro cometido freqüen- Quinhentos anos de periferia.
Rio de Janeiro: Contraponto,
ainda sofremos de forma crônica tais vulnerabi- temente por profissionais de educação, dirigen- 2004.
lidades. A questão da dependência econômica
tes e governantes, sem falar dos agentes que A maior parte das imagens que indi-
atuam em movimentos sociais, ONGs, sindicatos, víduos formam sobre as experiências
igrejas, associações e até em empresas. Como humanas individuais e coletivas e que
estourar a bolha do isolamento e experimentar constituem a base para as ações não
o diálogo horizontal, sem medo? decorre de sua experiência direta, mas
Sabemos que a arte como conhecimento sim são o resultado de informações
e linguagem ainda requer aprofundamentos que se transmitem pela mídia escrita
teóricos e práticos. No Brasil, são poucos os e audiovisual e que utilizam recursos
departamentos acadêmicos criados a partir artísticos culturais. A maior parte dos
dos avanços e acúmulos alcançados, mas es- valores sociais é construído, elabora-
tamos no momento de considerar a arte nas do, transformado e destruído através
discussões por autodeterminação, soberania da influência de um fluxo contínuo de
e diálogo. manifestações culturais transmitidas pe-
Vamos pinçar como exemplo a questão los meios de comunicação e difundidas
da visualidade. O que você sentiu interpretan- socialmente.2
do as imagens-conceito que selecionamos?
Qual será, então, a forma pela qual
Hoje, sabemos que, de longe, o sentido da
podemos interferir propositivamente no uni-
visão é cada vez mais utilizado na sociedade
verso da visualidade? Será que temos técnicas
contemporânea. Há estudos que falam na
desenvolvidas para ler e interpretar as ima-
exploração da visão em 80% em detrimento
gens que compõem o nosso atual universo
dos demais sentidos que giram em torno de
visual? Estamos preparados para interpretar
20%. Basta dar uma olhadela nas formas de
as influências que as imagens projetam em
comunicação ao nosso redor: outdoors, vídeo,
nós e na sociedade? Como estão sendo lidas
cinema, televisão, Internet, sistema de telefonia
essas imagens pelos vários agentes sociais? Qual
celular, entre outras.
2 Idem, ibidem.
74 Democracia Viva Nº 24
A arte na educação por uma nova cultura
Diálogos íntimos
proporcionados
por uma oficina
de arte-educação,
na qual desafios
de raça e gênero
emergem no
palco, por meio
de processos de
sensibilização
para leitura e
construção de uma
nova cultura
4 Idem, ibidem.
76 Democracia Viva Nº 24
A arte na educação por uma nova cultura
* Reinaldo Reis
Arte-educador,
graduando do Centro
Universitário de Belas
Detalhe do mosaico
Artes. Leciona artes no
“Terra é vida”, 20 mil
ensino fundamental da
peças, 6 m x 3,5 m. A rede pública na periferia
qualidade do trabalho de São Paulo.
foi possível graças ao
** Rogério Chaves
respeito do tempo
próprio da comunidade Sociólogo pela PUC-
SP, é editor do livro
envolvida
Alfabetização cultural
– A luta íntima por uma
nova humanidade, de
Dan Baron
Jovens de um
assentamento do MST
da Escola Agrícola 25 de
Maio (SC) construindo
uma nova cultura
dialógica, aprendendo
e ensinando por meio
de uma pedagogia de
libertação, que deseja
incluir todas as pessoas
Maria Celeste
e
lideranças
indígenas
78 Democracia Viva Nº 24
e v i s ta
Margarida
maria celeste
índia?
Maria Celeste – Nós somos do Brasil, mo-
ramos no Brasil, não há grande diferença, não.
Sou do Brasil, sou uma índia brasileira.
Margarida – Acredito que somos povos
nativos. Não chegamos ao Brasil, foi o Brasil
que chegou a nós, somos os verdadeiros donos
da terra. Infelizmente, com a chegada do não-
-índio, a nossa terra virou Brasil, eles chegaram
aqui e invadiram. Se alguém chegar à sua
casa e tomar tudo que você tem, não estará
descobrindo nada, estará invadindo. O Brasil
não foi descoberto, foi invadido. E, no caso,
mudaram até o nome, que não era Brasil. Eu
me considero brasileira, mas faço parte de uma
nação que já existia antes do Brasil. A sociedade
não leva em conta os 10 mil anos, 20 mil anos
80 Democracia Viva Nº 24
Maria Celeste e Margarida, lideranças indígenas
que já estávamos aqui. Trata o índio como se estávamos aqui, então a nossa cultura é a real
ele existisse aqui apenas há 500 anos, e isso não cultura brasileira.
é verdade. Há 500 anos existe o Brasil, mas os Poderia destacar uma preocupação
índios já estavam aqui quando o Brasil chegou. principal dos povos indígenas
Vocês se sentem discriminadas pelo hoje?
povo brasileiro não-índigena? Margarida – Uma das maiores preocupações
Maria Celeste – Eu me sinto, sim, não por hoje de todo povo indígena, não apenas dos
todos os brasileiros, mas por muitos. Hoje, esta- tapebas, mas de todas as tribos do Ceará, é a
mos sendo reconhecidos por esse povo branco. questão da terra. É da terra que o índio sobrevive,
Antigamente, o povo branco não queria fazer tira o alimento, faz seu colar e seu cocar. Sem a
uma entrevista ou conversar com a gente. Os fauna e a flora – e tudo isso vem com a terra –,
índios estavam escondidos, com medo da ex- o índio não tem como
ploração que acontecia – e que ainda acontece. sobreviver. Índio sem
Mas hoje já está bem melhor. terra é como peixe
Margarida – A discriminação tem sido tão fora d’água.
grande que fez com que o índio fundasse sua A tribo
própria escola diferenciada, seu próprio magis- tapeba tem
tério. Mas nada neste mundo é totalmente bom ou já teve
nem totalmente ruim. Essa discriminação fez problema
com que o índio procurasse seu caminho, ou com
seja, essa história do magistério, da escola dife- fazendeiros?
renciada, para manter a cultura. Se não existisse Margarida – Te-
a discriminação, não seria preciso fundar escolas mos problemas com
diferenciadas. Se tivessem respeito por nós, não fazendeiros e com
seria preciso. Se o governo tivesse responsabilida- posseiros que, hoje,
de, não seria preciso lutar por algo que é direito vivem dentro da área
nosso. Sabemos que está na Constituição, mas indígena. É um pro-
isso também foi uma luta. E, ainda que nosso blema sério, não só
direito esteja lá, a lei não é cumprida. Por isso, com os fazendeiros,
há muita discriminação. mas também com
Qual é o principal problema que os políticos que es-
essa discriminação traz para as tão atrás deles. O
populações indígenas? antigo prefeito, que
Maria Celeste – A pior coisa que o branco atualmente é depu-
faz com o índio é não o aceitar do jeito que tado federal, José
ele é. Nós sofremos muita discriminação, mas Gerardo Arruda, é
a pior é essa aí. nosso inimigo núme-
Margarida – O não-índio é muito engraça- ro um. Eu falo isso,
do, não quis ver o índio nu, mas, agora, depois mesmo que ele me
que o índio se habituou a andar vestido, quer mate amanhã. Ele
ver. Ele também cobra muito a questão da lín- prega nas campa-
gua. Nós falávamos nossa língua nativa, mas nhas políticas e pega
chegaram aqui e nos empurram o português. mais terras da gente
E agora querem que a gente fale tupi. A gente em troca de voto.
está falando tupi não para agradar o branco, A sociedade nunca
mas para ter conhecimento da nossa língua. esclareceu a situação
Hoje, podemos falar qualquer outra língua e para nós, é lógico,
continuar sendo índio. porque também quer a terra do índio. Por isso,
Existem muitas culturas, não existe cul- aceita e faz desse homem um santinho. Ele é
tura inferior ou superior, existem culturas o vilão, mas vira o santinho da história. Ele se
diferentes. A real cultura brasileira é a cultura candidata a prefeito da cidade, pega as terras
indígena. Posso dizer isso como índia e não dos índios e doa.
tenho medo de que alguém me discrimine Vocês acham que as igrejas estão
por isso, meus antepassados sofreram tanto, tentando colonizar os povos
foram mortos por causa disso, mas eu digo. indígenas outra vez?
As outras culturas chegaram quando nós já Margarida – Com certeza, continuam fa-
82 Democracia Viva Nº 24
Maria Celeste e Margarida, lideranças indígenas
luta e me respeita por isso. Mas nem todas as aconteceu, ela achou melhor isolar o caso. Por
mulheres solteiras têm o respeito que eu tenho. isso, não dei parte, não levei para a delegacia.
Aliás, o respeito que tenho como solteira nesta Com o tempo, comecei a ver que não dava mais
comunidade só eu mesma tenho. Se as outras sol- para conviver com ele e acabei deixando-o.
teiras saírem com um homem, vão ficar falando. Na sua aldeia, em um casamento,
Até de mim, se eu sair, vão falar. Mas eu procuro quando o homem quer manter
sempre ter cuidado para evitar a falação porque, relações sexuais e a mulher não
com certeza, é uma discriminação. quer, e mesmo assim a relação
Como agente de saúde, você sabe acontece, isso seria considerado
se dão entrada no posto de saúde estupro?
mulheres com sinais de violência Maria Celeste – Nesse caso, concordo que
doméstica? é estupro. Eu sofri isso muitas vezes com meu
Maria Celeste – ex-marido, de ele querer e eu não, mas mesmo
Por conta de maus- assim acabava acontecendo.
-tratos dos maridos? Margarida – Acho que a mulher deve usar
Isso aqui não existe, do homem quando ela o ama. Se ela não o ama,
se eles estiverem bra- ele a procura e ela não quer, tem que fazer como
vos, são eles que a Celeste: tratar de sair. Não sei se era o caso,
apanham. Se bater mas ela casou com um homem de quem ela não
na mulher, apanham gostava porque a mãe quis. Eu fugi quando tinha
também porque, na 13 anos porque minha mãe também queria que
tribo, há uma dife- eu me juntasse com outro homem e não aceitei.
rença na nossa socie- Eu não gostava. Se a pessoa não gosta e não sente
dade: todos somos vontade de ficar com a outra que quer impor isso,
família. Se alguém com certeza é um estupro.
bate na mulher, vem Há casos de gravidez na
tio, primo, sobrinha, adolescência, com a não-
avó, todo mundo. responsabilização dos meninos?
Tem que ter muito Maria Celeste – Acontece, e não é apenas
cuidado com briga pela questão da gravidez. Muitas vezes, nem
na aldeia, porque, a menina nem o menino, com 12 ou 13 anos,
quando acontece, estão preparados. Nem nós, adultos, estamos
não morre um ou preparados para uma gravidez, quanto mais um
dois, morre muita adolescente. Em geral, o menino se sente coagi-
gente, uma briga do por conta da questão da responsabilidade e
na aldeia envolve a costuma sumir. Eu não acho que a mulher seja
aldeia toda. Há esse a coitadinha da história. Se ela vai, vai porque
cuidado. Se houver quer, os dois têm culpa. Com certeza, uma gra-
algum caso de es- videz indesejada é um ato de irresponsabilidade
pancamento, é algo das duas partes, do homem e da mulher.
muito isolado. Não Se você se casasse com um branco
tenho conhecimento ou namorasse um, o que o resto da
de nenhum. tribo acharia?
Mas você me Margarida – Qualquer outra índia poderia
disse que, fazer isso, mas, no meu caso, não seria igno-
quando um rado por causa da questão da luta. Não iriam
homem espanca aceitar uma guerreira casada com um branco,
uma mulher aqui, como aconteceu com uma colega minha. Ela
isso é falado com naturalidade. casou com um branco, e, no Brasil inteiro, em
Maria Celeste – Existem casos raros. No todas as tribos, falavam dela. Isso não é de ago-
meu caso, levei um tiro do meu ex-marido. E ra. Existe também a história de José de Alencar,
hoje, graças a Deus, não vivo mais com ele, da tal de Iracema com seu grande amor. Longe
até perdi um olho. Ele é meu primo, é de uma de mim ser uma Iracema, porque ela traiu o
família muito chegada à minha, e minha mãe, próprio povo para amar um branco. Eu jamais
uma mulher que eu amo tanto, fez meu casa- faria isso, nem que esse branco estivesse se
mento com esse primo. Quando o problema desmanchando em ouro.
84 Democracia Viva Nº 24
Maria Celeste e Margarida, lideranças indígenas
Apaixonar-se por um branco que hoje não são explorados, principalmen- * Begoña
significa trair o povo indígena? te, em relação à cultura. No artesanato, por Fernández Gallego
Margarida – No caso da Iracema, sim. Ela exemplo, por falta de contato com o povo Cooperante espanhola
traiu a ponto de se virar contra o próprio povo. lá fora, não há quem compre o que a gente no Ibase, é licenciada
Eu li a história. Mas, no meu caso, não sei. Não produz, e isso é muito desestimulante. Um dos em Filosofia pela
mando no meu coração, mas não me casaria meus sonhos é ver esse povo ter autonomia, Universidad Autónoma
todo com condições de trabalho. Também dela sem depender de trabalho externo. viva dos índios Tapeba
As
tapebas:
uma história
de luta e
Na Grécia Antiga, mais precisamente na época dos pré-socráticos, o filósofo era (referindo-se
ao termo etimologicamente, no seu sentido mais primitivo) aquele que observava de longe,
mesmo estando presente. Era o emissário que tomava distância das coisas, ainda que delas
participasse ativamente, tendo como uma das suas atividades principais a tarefa de ser “um
tipo de embaixador”, convidado aos grandes eventos, como festas, rituais e celebrações.
Assim, o teorós (termo grego que significa o observador, a saber, primeira denominação do
ser filósofo) era uma espécie de antropólogo que visitava culturas alheias, participando delas,
compartilhando com elas e, ao mesmo tempo – em virtude da distância que se impunha pelo
1 Com especial agradecimento
a Diego e Ana Heredia e a fato de pertencer a uma cultura diferente –, tendo um olhar agudo e uma perspectiva mais
Marcos Arcanjo e a sua equi-
pe: porque, nos momentos
de escuridão, sempre a luz profunda das diversas situações que presenciava.
resplandece.
86 Democracia Viva Nº 24
aberto
O primeiro labor, para nós, filósofas e filósofos operandis do agente externo e estranho que
– constantes aprendizes da filosofia, sempre à se aproxima dessa realidade. Agente que, de
procura do conhecimento ou na busca daquele alguma forma, quer dar visibilidade a alguma
saber que nos faça completar nosso eu carente coisa ignorada que considera importante e
que quer se assemelhar ao sumum conheci- fundamental, de tal forma que aqui aparece o
mento, seja qual for seu nome: mente divina, primeiro erro em que incorrem não poucos(as)
arquétipos transcendentais, idéias platônicas, jornalistas, antropólogos(as), sociólogos(as),
paradigmas do pensamento cientista-ilustrado- filósofos(as) e demais hermeneutas do mundo:
-racional etc. –, é a de observador(a) que o grave pecado de projeção, a pressuposição
sempre fica surpreso(a) e chocado(a) com as das problemáticas que afetam o cotidiano de
diferenças caracterizadoras das plurais formas certa população. Sendo assim, a pergunta e a
de vida e, portanto, das diferentes cosmovisões predisposição são “malévolas”, pois possuem
com as quais se apreende o mundo. Sempre intenções subjacentes: a pergunta prevê a
lembrando que não estamos aptos(as) a julgar, resposta e dirige intencionalmente a conversa,
somos se não meros(as) espectadores(as) que de modo que a resposta já esteja dada de an-
temos como obrigação uma forma de agir, a temão. Então, vem a pergunta: para que mais
saber, a empatia, e uma máxima que guie nosso um artigo sobre a questão indígena, quais são
olhar que se resume na seguinte frase: “faz da a novidade e a relevância?
diferença uma igualdade”. Portanto, a tarefa ou Lembremos: na acepção original, a
atividade propriamente original do(a) filósofo(a) pessoa dedicada à filosofia era aquela com a
se manifesta com maior força e definição no mente limpa de preconceitos (ou, ao menos,
trabalho de aprendizagem e troca intercultural lutava contra eles), capaz de se surpreender,
do(a) antropólogo(a). aberta à aprendizagem, observadora, críti-
Mas você, que está lendo este texto, ca e disposta a trocar e compartir; ela não
deve estar, neste momento, se perguntando perguntava procurando uma resposta que
para que tanto rodeio (ainda que Hegel fale, verificasse ou confirmasse as argumentações
na obra Fenomenologia do espírito, que “o que sustentavam seu petrificado columba
rodeio é o caminho do espírito”), já que aquilo rium de conceitos (com efeito, essa era a
que esperava era, quase com certeza, mais boa intenção dos pré-socráticos, ainda que
um texto sobre indígenas, sendo o objetivo depois, com Platão e sua arte da maiêutica,
da autora escrever um artigo mais ou menos esse inocente labor antropofilosófico tenha
decente sobre as reivindicações dos povos sido envenenado). Assim, a única, a verda-
indígenas – aqueles moradores anteriores (an- deira motivação de uma matéria com essas
teriores, sim, apesar de muitas pessoas terem características responde à necessidade de dar
problemas em reconhecer sua anterioridade e visibilidade àqueles grupos majoritariamente
preferirem ignorar sua sobrevivência, depois discriminados, isolados e esquecidos. Grupos
de um lento, frio e trágico etnocídio ou até que são afastados do processo de criação de
mesmo genocídio) daquela vasta extensão de um espaço democrático plausível, com os
terra, que depois se nomeou território brasileiro. respectivos valores de justiça, igualdade e
Explicar qual é o objetivo a perseguir, liberdade, ou, também, carentes do direito de
a finalidade ou teleologia e importância de representação real e factível como indivíduos
mais um texto sobre a situação atual das que são pertencentes a um Estado democráti-
comunidades indígenas, assim como quais co. Assim, as novidades, as relevâncias ou o
são as preocupações vitais dessas populações, interesse de mais um artigo sobre a questão
pressupõe uma descrição anterior do modus indígena se resumiriam em algumas questões.
Uma delas diz respeito ao fato extra- visível. E o caso das índias tapebas é um bom
ordinário, em todos os seus sentidos, tanto exemplo disso: lutando contra muitos fatores
no sentido da especialidade como no sentido adversos, elas decidiram, de uma vez por to-
de ser uma coisa fora do comum e da norma, das, deixar a esfera imposta – a reprodutiva
regra ou generalidade que particulariza, di- – para sair em direção ao luminoso espaço
ferencia e caracteriza a vida, a cotidianidade produtivo. Com efeito, não se pode falar da
e a realidade das pessoas da tribo tapeba. O história da humanidade em masculino, do
que diferencia essa tribo é a feminização mesmo modo que da história do povo tapeba.
do setor político e do setor produtivo – em
outras palavras, a tomada do espaço público
Paulatina tomada do espaço público
por parte das mulheres indígenas no seu
labor de lideranças políticas e até espirituais Margarida Teixeira, professora de arte e cul-
(a figura do pajé, da liderança político- tura indígena, e Maria Celeste Pessoa, agente
-religiosa, sempre foi de saúde, são só uma mostra do que acontece
uma atividade vetada no aldeamento tapeba, já que praticamente
à maioria das mulheres quase todas as lideranças políticas nas di-
nas tribos indígenas). ferentes aldeias povoadas por tapebas são
Esse fato é alentador já mulheres. Seu testemunho como mulheres
que denota a saída da batalhadoras, guerreiras (como elas mes-
escuridão da domus, do mas se definem), que resistem a um legado
cuidado da casa e tudo que posiciona a mulher em um estado de
o que isso pressupõe: subjugação, discriminação e ocultação,
cuidado do lar, fogão e nos leva a refletir sobre a real e factível
atividade procriadora, possibilidade de uma transformação na fatal
com a posterior obriga- concentração do poder ainda residente na
ção própria da mulher, figura masculina.
reduzida, mediante uma As mulheres indígenas são objeto
artimanha naturalista e de dupla discriminação: primeiro como
essencialista, ao papel mulher e depois como indígena, ou, tam-
de mãe e educadora bém, primeiro como indígena e depois
dos(as) filhos(as). como mulher (dependendo do contexto de
Sem dúvida, atuação, há uma mudança no foco principal
até agora a mulher foi de discriminação). Por isso, a identidade
excluída do proces- feminina das tapebas é indissolúvel da
so de construção da formação e do reconhecimento da identi-
história. Sendo assim, dade étnica e racial. A partir da década de
o rumo dos avanços, 1980, começou-se a resgatar a questão do
das mudanças e das recadastramento (quem é indígena?), assim
transformações sociais, como a questão da identidade indígena (o
políticas, econômicas, que significa pertencer a tal etnia?), em vir-
científicas e artísticas tude de uma forte crise pela qual passava o
parecia pertencer ex- povo indígena, a ponto de alguns membros
clusiva e privilegia- renegarem seus traços e suas origens étni-
damente às mãos dos cas. Mas o processo de identidade feminina,
homens. Mas, mesmo assim como a tomada de consciência da
que o ser feminino te- perspectiva de gênero, se desenvolveu de
nha sido visto ao longo forma bem diferente.
da história como sujeito Apesar dos logros e das conquistas das
passivo, sempre foi motor fundamental das mulheres, a resistência masculina é forte. A
transformações históricas. Porém, em vir- luta das mulheres é diária, mas suas forças são
tude da imposição da cultura patriarcal ou inesgotáveis. É difícil ser indígena, principal-
androcêntrica, essa participação foi velada, mente no Ceará (estado onde se fala que não
apagada, submetida, subjugada, ignorada e até existem indígenas), mais ainda sendo mulher
literalmente aniquilada. Mas, pouco a pouco, e pior ainda sendo mulher com consciência
já que a cultura falocêntrica infelizmente ain- do seu ser feminino e da responsabilidade que
da não foi superada, a mulher está se tornando isso representa.
88 Democracia Viva Nº 24
As tapebas: uma história de luta e resistência
ordenadas obrigatoriamente por indígenas e dirigida a toda uma cultura que nunca deixou de existir,
seus povos) supõe a criação de um espaço privilegiado mas que se encontrava um pouco fechada,
de delimitação da identidade indígena. Esse espaço porque não era fácil ser índio no Ceará,
deve servir para revalorização e reafirmação da cultura, principalmente em Caucaia, onde a maior
do idioma (nesse caso, o tupi-guarani2, da religião e oposição aos índios tapebas era e continua
costumes do povo indígena – injustamente exterminado sendo os políticos, empresários, latifundiários
ao longo da história brasileira por diferentes grupos: e empreendedores. Começamos nossa luta
forças políticas, religiosas e pressões sociais que, na pela escola diferenciada em 1990, pois a
maioria dos casos, respondiam a interesses econômicos mesma existia embaixo de um pé de cajueiro,
e territoriais), que representam, mais uma vez, uma sendo construído um espaço físico em 1992.
perversa ação que remonta a um novo etnocídio, umas Começamos esta luta porque a discriminação
vezes velado, oculto, e outras, óbvio, explícito. contribuía para que o analfabetismo reinasse
É fundamental lembrar o processo de desapareci- em nosso meio. Acreditávamos que essa es-
mento do idioma materno dos povos indígenas, assim cola viesse a fortalecer a nossa luta”.
como questionar a relevância do resgate das línguas
Diante da visão exótica e romântica que se con-
indígenas em geral.
forma no imaginário popular – índios e índias pelados
A partir de 1757, por meio da legislação indígena
e não-civilizados, felizes na sua ignorância, ausentes e
implantada com o Diretório Pombalino, proíbe-se o
afastados do processo de “evolução” da nossa sociedade
uso de línguas indígenas, tornando obrigatório o uso
tecnocrática e, portanto, dos suportes técnicos e avanços
da língua portuguesa nas escolas e nos povoados. Tal
científicos da era pós-moderna –, encontramo-nos diante
ação tinha como objetivo não só fazer desaparecer as
de uma realidade bem diferente: a comunidade indígena,
línguas indígenas, mas também aniquilar uma deter-
e mais concretamente o aldeamento do povo tapeba,
minada forma de apreender e conceitualizar o mundo,
baseia-se e articula-se em torno de valores humanos
ou seja, fazer desaparecer as comunidades indígenas,
fortes e sólidos, misturados com riquezas naturais,
com suas visões peculiares do mundo. Atualmente,
culturais e artísticas que manifestam, mais uma vez, o
nos diferentes aldeamentos povoados por tapebas,
esquecimento do conjunto social e o esvaziamento de
pouquíssimas pessoas falam tupi-guarani, só as mais
valores da cultura contemporânea.
velhas lembram de algumas expressões ou palavras. Um
Se pararmos para pensar, a valorização da edu-
dos grandes desafios enfrentados por esses povos é o de
cação e a busca dos direitos da mulher são dois itens
encontrar professores e professoras que possam ensinar
fundamentais no reconhecimento da sociedade mo-
a língua tupi, impedindo que ela caia no esquecimento
derna de pontos de desenvolvimento e evolução de
e também que mais uma língua indígena esteja fadada
uma sociedade. Então, como é possível ainda olhar
ao desaparecimento.
os povos indígenas com superioridade, acusando-os
As palavras da professora indígena Margarida
de serem arcaicos, primitivos e recalcitrantes? Direta
Teixeira Gomes resumem, perfeitamente, a importân-
ou indiretamente, sejam realmente procuradas ou
cia da criação do magistério indígena e das escolas
simplesmente encontradas sem determinação prévia,
diferenciadas:
como talvez seja o caso, deixando espaço à ação, a
A história da nossa escola foi publicada em procura da igualdade de gênero e a reafirmação cultural
uma coletânea escrita pelo povo tapeba, Me- por meio da revalorização da educação são mostras do
mória viva dos tapeba: terra demarcada, vida estado evolutivo da tribo indígena tapeba.
garantida: “Foi assim que nós, indígenas, re-
solvemos fazer alguma coisa por nós mesmos,
vimos a necessidade de termos uma escola,
na qual o principal objetivo seria trabalhar a
autovalorização do índio, preparando-o para
enfrentar a sociedade lá fora, resgatando
Aberto
mental nesta nova era em que se procura realizar: as mulheres continuam amplamente
(ou ao menos se diz que se procura) a sub-representadas nas esferas políticas na-
2 Embora o termo tupi-guarani
representatividade do total da população. cional, estaduais e municipais e, em âmbito refira-se a uma família lingüística
ESpaço
Assim, fomentar a liderança das mulhe- mundial, ocupam apenas 15% dos postos nos do tronco tupi e não a uma
língua propriamente, é assim
res para assegurar o status que dispõem parlamentos nacionais. A eqüidade de gênero que integrantes da tribo tapeba
denominam a língua falada por
de igualdade, para fazer ouvir a sua voz e só se construirá de forma certeira quando as essa comunidade.
*Begoña mulheres receberem apoio como candidatas de Itarema). O povo tapeba procurava terras
Fernández Gallego e votantes, quando forem viabilizadas pro- férteis e de difícil acesso. Depois de muito
Cooperante espanhola postas de políticas públicas que reconheçam tempo e de uma busca exaustiva, esse grupo
no Ibase, é licenciada a importância da igualdade de direitos e dos chegou a uma grande, paradisíaca e bela
em Filosofia pela direitos específicos de gênero – traduzin- lagoa, com águas límpidas e cristalinas. O
Universidad Autónoma do, o grande sonho do empoderamento da entorno era exuberante: carnaubais, árvores
de Madrid, Espanha mulher e da realização dos seus direitos e frutíferas, pássaros e animais que moravam
suas aspirações. em liberdade e, no meio de tudo isso, havia
uma grande lagoa com um peculiar elemento
da natureza que nomearia a tribo tapeba: uma
A pedra chata
pedra chata, símbolo real que, misteriosamen-
Depois de compartilhar te, um dia desapareceria.
uma maravilhosa expe- Como viram tanta beleza e riqueza,
riência com a aconche- esses índios resolveram morar às
gante, generosa e trans- margens dessa lagoa. Eles mesmos
parente tribo tapeba, o batizaram a lagoa e sua nova tribo
que fica claro é que a de Tapeba (pedra chata), pois temiam
luta se desenvolveu e se que um tempo depois os brancos
desenvolve por meio de chegassem novamente e os extermi
detalhes sutis, na maioria nassem. Assim, o nome tapeba iria
das vezes subvalorizados reinar eternamente naquele lugar.
ou que passam desperce- (Ricardo Weiba N. Costa, professor
bidos. Portanto, a luta é
tapeba)
diária, ou melhor, é uma
luta do cotidiano e pelo As índias e os índios tapebas acreditam
cotidiano. Porém, nessa na sua luta, porém o mais importante de tudo
troca de experiências, é que demonstram que agem com coerência –
idéias e saberes vitais, premissa fundamental que talvez tome como
também fica claro, a base a pedra chata que ficava emergente na
partir dos depoimentos lagoa e que, depois da colonização, desapa-
das índias e dos índios receu ou afundou enigmaticamente. Porém,
tapebas, que a luta se com vigor, coragem e energia, essa comu-
compõe de pessoas que, nidade quer se reconstruir e fazer emergir
unidas e movidas por um essa pedra que uma vez sumiu da lagoa indo
interesse comum e cole- quem sabe aonde, lugar que possivelmente
tivo, derramam toda a todos nós procuramos desesperadamente –
sua energia para mudar, significa essa carência originária, a saudade
transformar e inverter daquilo que sempre nos pertenceu e ao qual
um passado injusto e ainda pertencemos, mas que parece nunca
construir, mediante um encontramos, tornando essa busca trágica
paulatino processo de e dolorosa. Fico me perguntando se o povo
transformação, uma re- tapeba talvez não a encontrou, renascendo
alidade mais favorável, cada dia na alegria de viver nietzschiana,
sustentável e melhor, nesse reencontro com os valores centrais do
isto é, adequada às ne- ser humano, nessa confiança e reencontro com
cessidades reais e dando nossa Mãe Natureza e ante toda a simbologia
respostas às precarie- que se traduz naquela pedra chata que ficava
dades que ainda estão no meio da paradisíaca lagoa em torno da qual
por ser superadas (por exemplo, a questão esse povo fundou seu aldeamento, símbolo de
fundiária).
Segundo as pessoas mais velhas da
tribo tapeba, seu povo se originou principal-
Aberto
vida, símbolo das suas vidas, com essa força
característica, pois, sem dúvida, a história da
comunidade tapeba é uma história de amor
mente de três etnias: potiguaras (que vivem vital, de luta e resistência.
na Paraíba), cariris (que moram com outra
parte do povo potiguara na região de Crate-
ús) e tremembés (que residem no município
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