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DEMOCRACIA VIVA 24

OUT / DEZ 2004

Arte e educação
Reinaldo Reis
e Rogério Chaves
Entrevista
Nina Pacari
Gênero e questão
indígena
Begoña Fernández
e d i t o r i a l
Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase

O Ibase, por meio de sua revista Democracia Viva, procura sempre


pautar, para o debate público, os temas e as questões que, nas diferentes conjunturas, indicam as possibilidades
e os limites para a cidadania ativa avançar na radicalização da democracia.

Nesta edição, estamos trazendo, em primeiro lugar, um olhar atento sobre a insurgência indí-
gena na América do Sul e seu significado para nós, brasileiros e brasileiras. Ao nosso lado, vive um povo quase
desconhecido pela maioria de nós. A Bolívia tem um povo diverso e aguerrido, com mais de 60% da população
composta por indígenas. Vale ressaltar que capitais brasileiros invadem suas terras e se apropriam delas para
plantar soja e obter gás para suas indústrias. Os povos indígenas bolivianos estão no centro de uma cidadania que
praticamente impõe uma revolução permanente à democracia no país. Mas vale a pena comparar o que se passa
com o Equador, outro país de marcante presença indígena em sua composição, história e identidade. A emblemática
Nina Pacari, forjada nas lutas pela causa de seu povo, líder do Movimento Pachakuti, conta-nos sua história e
nos dá uma visão da atualidade política no seu país e em toda a região, tendo os povos indígenas no centro. Para
completar, há um artigo e uma entrevista sobre os(as) tapebas, povo indígena esquecido no interior do Ceará.

O processo das eleições municipais no Brasil, neste ano, acentuou um lado publicitário de venda
de candidatos(as) mais do que um confronto de idéias e propostas. Essa forma de construção do poder democrático
traz, em si mesmo, o germe de profunda crise política, com riscos para a própria democracia. É inadiável pautar o
tema da mídia e de seu uso nas campanhas políticas como parte de um amplo debate sobre partidos e institucionalidade
política da nossa democracia. Tal debate é fundamental para uma refundação democrática do Estado. Afinal, precisa-
mos sair da armadilha de uma Lei de Responsabilidade Fiscal que se sobrepõe a tudo, menos ao Banco Central e sua
irresponsável política macroeconômica, que só preserva os interesses de especuladores em relação à dívida pública.
Uma Lei de Responsabilidade Social parece o contrapeso fundamental para recolocar a “coisa pública” (república),
materializada no Estado, no seu devido lugar para a construção de uma democracia substantiva no Brasil. Mas como
desmercantilizar a política partidária e eleitoral para desmercantilizar o Estado?

A revista não pára aí. Mais uma vez, traz ao debate aquilo que, no Brasil, teimamos em dei-
xar escondido: o racismo cotidianamente impregnado em nossas relações. Uma ampla coalizão de movimentos
negros e organizações de cidadania ativa do Brasil, entre elas o Ibase, lançará uma campanha contra o racismo.
Aproveitamos a ocasião para apresentar a campanha e mostrar que não dá para continuar dando as costas ao
racismo, uma das mais perversas formas de exclusão social e desigualdade entre nós.

O Fórum Social Mundial (FSM) se aproxima. Novamente em Porto Alegre, de 26 a 31 de janeiro,


vai se reunir o multifacetado movimento da cidadania de dimensões planetárias. Mas quem somos exatamente?
O Ibase, em nome da Secretaria Internacional, realizou uma pesquisa sobre o público participante do FSM 2004,
realizado em janeiro, em Mumbai, Índia. São dados importantes para pensarmos sobre as possibilidades e os
limites que temos para construir um outro mundo.
s u m á r i o
Ibase – Instituto Brasileiro de Análises Sociais
3 Artigo
e Econômicas
Mídia e política, a metamorfose do poder Av. Rio Branco, 124 / 8º andar
Davys Sleman de Negreiros 20148-900 Rio de Janeiro/RJ
Tel.: (21) 2509-0660 Fax: (21) 3852-3517
12 Nacional <ibase@ibase.br> <www.ibase.br>
Para se contrapor ao Estado-facilitador
Rudá Ricci
Conselho Curador
Regina Novaes
22 Variedades João Guerra
Carlos Alberto Afonso
24 internacional Moacir Palmeira
Jane Souto de Oliveira
Bolívia – da recuperação democrática
à agonia dos partidos Direção Executiva
Entrevista Miguel Urioste F. de C. Cândido Grzybowski
Nina Pacari Dulce Pandolfi
34 Pelo Mundo Francisco Menezes
Jaime Patalano
36 entrevista
Coordenadores(as)
Nina Pacari Erica Rodrigues
Iracema Dantas
50 crônica
Itamar Silva
182 na cabeça João Roberto Lopes Pinto
Alcione Araújo João Sucupira
Leonardo Méllo
52 resenhas
Moema Miranda
Núbia Gonçalves
56 Opinião Ibase
Onde você guarda o seu racismo? DEMO C RA C IA VIVA
Maurício Santoro
ISSN: 1415149-9
62 indicadores Diretor Responsável
cultura Finda a asfixia, a cidadania tem nome Cândido Grzybowski
A arte na educação por e sobrenome
uma nova cultura
Conselho Editorial
Leonardo Méllo Alcione Araújo
Ari Roitman
70 cultura Eduardo Henrique Pereira de Oliveira
A arte na educação por uma nova cultura Jane Souto de Oliveira
Reinaldo Reis e Rogério Chaves Regina Novaes
Rosana Heringer
78 especial
Coordenação Editorial
Maria Celeste e Margarida, lideranças
Iracema Dantas
indígenas
Begoña Fernández Gallego Subedição
AnaCris Bittencourt
86 espaço aberto
Revisão
As tapebas: uma história de luta e resistência Marcelo Bessa
Begoña Fernández Gallego
Assistentes Editoriais
92 Última página Flávia Mattar
Marco Jamile Chequer

Produção
Geni Macedo

Distribuição
Maria Edileuza Matias

Projeto Gráfico
Mais Programação Visual

Diagramação
Imaginatto Design e Marketing

Capa
Mosaico “Terra é vida”, publicado no livro Alfabetização
cultural - A luta íntima por uma nova humanidade

Fotolitos
Rainer Rio

Impressão
O Ibase adota a linguagem de gênero em suas publicações por acreditar que essa é uma estraté- J. Sholna

gia para dar visibilidade à luta pela eqüidade entre mulheres e homens. Trata-se de uma política Tiragem
editorial, fruto de um aprendizado e de um acordo entre os(as) funcionários(as) do Ibase. No caso 5 mil exemplares
de artigos redigidos voluntariamente por convidados(as), sugerimos a adoção da mesma política. democraciaviva@cidadania.org.br
artigo
Davys Sleman de Negreiros*

Mídia e
política, a
metamorfose
Pode-se aceitar o argumento de que a propaganda/marketing, a mídia e as estatísticas

(as polêmicas pesquisas de opinião) impõem-se à medida que se retrai a cena tradicional

da política. Na cena brasileira, faltam principalmente os partidos, pelo menos quando

se pensa teoricamente.1 Os partidos, desde o fim da década de 1950, entraram em crise

de representatividade, acelerada pelo Movimento de 1964. A reabertura política reen-

controu, com o nome de partidos políticos, máquinas burocráticas que giram na órbita

de seus interesses ou, então, pequenas agremiações com palanques despolitizados,


1 O partido político é uma
francamente televisivas. Esse fato torna-se compreendido, no caso brasileiro, quando organização de pessoas que,
inspiradas por idéias ou mo-
vidas por interesses, buscam
realizamos uma retrospectiva de todo o movimento dos partidos políticos no Brasil, tomar o poder, normalmente
pelo emprego de meios legais,
a fim de nele se conservarem
demonstrando todas as dificuldades políticas e institucionais da nossa acidentada para a realização dos fins pro-
pugnados. Em relação a esse
tema, ver DUVERGER, Maurice.
trajetória republicana: originalmente oligárquica (1889–1930), oscilou historicamente Os partidos políticos. 2. ed.
Brasília: UnB, 1980; SARTORI,
Giovanni. Partidos e sistemas
entre a ditadura (1937–1945 e 1964–1985) e o populismo (1946–1964), até chegar partidários. Rio de Janeiro:
Zahar, 1982.

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artigo

Nesse processo histórico, foram experimen- da década de 1980.


tados seis sistemas partidários distintos sem
praticamente nenhuma continuidade formal Midiatização da política
ou política entre eles. Isso não só impediu a
existência de partidos fortes, como também Ao afirmarmos a centralidade da mídia, tanto
inibiu a formação de uma cultura cívica aberta no Brasil como em outras democracias latino-
e receptiva à ação dos partidos e favorável à -americanas da década de 1980, os estudos
constituição de identidades partidárias estáveis corroboram o fenômeno de videopolítica,5 termo
e consistentes ao longo do tempo. Só para se cunhado por Giovanni Sartori, definido pela
ter uma idéia da falta de tranqüilidade e de introdução da cultura audiovisual nas relações
continuidade do sistema republicano brasileiro, sociais e, particularmente, nas de poder. Do
do “período compreendido de 1930 a 1990, ponto de vista institucional, a importância da
tivemos 1 (um) golpe ou tentativa de golpe a videopolítica dependeria diretamente de seu
cada 3 (três) anos”.2 contrapeso, os partidos políticos: quanto menor
Assim, podemos afirmar que há um é o grau de institucionalização partidária, maior
vácuo de representatividade que, num deter- é o espaço aberto para a expansão e penetração
minado momento, foi preenchido pela mídia. da videopolítica. É possível concluir que, mesmo
Como conseqüência, diz Muniz Sodré que nas sociedades fortemente institucionalizadas,
a videopolítica, em grau mais ou menos acen-
[...] nesses espaços mediados, trava-se
tuado, é presença certa sem limite de fronteiras
uma novíssima disputa eleitoral: em vez
no cenário “espetacularizado” da contem-
de plataformas marcantes, vantagens
poraneidade ocidental.6 Landi aprofundou a
percentuais nas pesquisas, em vez de
discussão sobre a videopolítica na América
posições ideológicas, rostos fotogênicos
Latina introduzindo o debate sobre a presença
ou telegênicos, em vez de representa-
de diversos tipos e graus de intervenção sobre
ção, simulação.3
a cultura política, que vão além de uma cam-
De modo geral, persiste a preocupação panha eleitoral e incluem jornais, entrevistas,
de que, no espaço público configurado pela debate, publicidade, horário gratuito político
2 Frase proferida pelo professor mídia, a política tende a perder o seu conteúdo, eleitoral (HGPE) e os comentários.7 Ele critica as
doutor Francisco de Oliveira, da
e os partidos políticos, sua identidade como velhas e esquemáticas teorias da manipulação
Universidade de São Paulo (USP),
no “Projeto Fórum de Debates – mediadores de interesses entre a sociedade informativa, para as quais todo o poder e o
Periferia, Subdesenvolvimento e
Radicalização Antidemocrática”, e o Estado. Como destaca García Canclini,4 sentido da mensagem estão contidos no projeto
ocorrido em 2 de setembro
ao ocupar o lugar das mediações que seria do emissor. A sua perspectiva adota, em suma,
de 1998, no Teatro Florestan
Fernandes, da UFSCar (São próprio da política, a mídia estabeleceria uma o caminho inverso das análises maniqueístas,
Carlos-SP).
nova diagramação dos espaços e intercâmbios advertindo que “a tendência colonizadora da
3 Citação retirada do caderno
Idéias do Jornal do Brasil, de 3 urbanos. A contaminação da política pela co- TV na política encontra tensões e contrapesos
de janeiro de 1987.
municação não se esgota no deslocamento de que compõem um quadro mais complexo do
4 CANCLINI, Néstor García. poder ocasional pelo monopólio tendencial do que aquele das profecias apocalípticas”.8 Contra
Del espacio público a teleparti­
cipación. In: _____. Culturas hí- ato de publicizar ou na criação de temas/atores/ os males da “satanização” da mídia, afirma
bridas. México, Grijalbo, 1990.
cenários. A questão da adequação da política que “a presença da televisão mantém-se nas
5 SARTORI, Giovanni. Video­po­lí­
às regras e à gramática da mídia, de imediato, transformações profundas da cultura e em
tica. Rivista Italiana de Scienza
Política, v. XIX, n. 2, 1989. coloca-se no centro da análise. Ao aceitar a certas características do sistema político”.9 Além
6 DEBORD, G. A sociedade premissa de incorporação da comunicação disso, ele chama a atenção para a necessidade
do espetáculo. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1997. como componente e momento da política con- do estabelecimento de novas políticas voltadas
7 Ver LANDI, O. La televisión temporânea, uma vez que a mídia monopoliza para a inovação na utilização da técnica como
y el futuro de la política.
tendencialmente a enunciação pública, pode- desafio aos comunicadores:
Comunicação&Política, IX,
n. 12, jul./dez. 1990; LAN- -se considerar que a política, para incorporar [...] está también en nuestras propias
DI, O. Proposiciones sobre la
video­política. In: SCHMUCLER, a comunicação (midiática), deve resignar-se às manos subvertir y domesticar apara-
H.; MATA, M. C. Política y
comu­nicación. Córdoba: Uni­
regras e formatações derivadas da mídia, posto tos creados para la opresión, a fin de
ver­sidad Nacional de Cor­do­ba- que isso não só facilita sua realização, como até convertirlos en herramientas de libera-
Catálogos, 1992.
se torna inevitável. ción... Aunque ya sea un lugar común,
8 Landi, 1990, p. 46.
Longe de ser homogêneo quanto às ava- conviene recordar que estamos en un
9 Idem, ibidem, p. 38.
liações e prescrições, o resultado das pesquisas cambio de época y no sólo en una época
10 RONCAGLIOLO, R. Los espa­
cios culturales y su onomás­tica.
desenvolvidas converge, porém, para um aspec- de cambios.10
Comunicação&Política, nova sé- to: a centralidade da mídia e sua influência no
rie V, n. 1, jan./abr. 1998, p. 31. Em decorrência desses fatores, Landi
cenário da política que passaram a caracterizar
entende que a televisão garante sua presença
as novas democracias latino-americanas a partir

4 Democracia Viva Nº 24
Mídia e política, a metamorfose do poder

em virtude das transformações profundas na No parlamentarismo, segundo Manin,


cultura e no sistema político. A videopolítica a escolha do representante estava relacionada
gera um espaço aberto, em que o poder da à confiança e aos vínculos locais do candidato,
TV se espraia sem contrapoderes visíveis, co- sendo que os eleitos eram sempre os “notáveis”.
locando em jogo as estruturas e as formas de O representante eleito votava na Assembléia con-
ação da política. Nos países da América Latina, forme sua consciência. Não existia uma relação
atua de maneira diferente da observada nos direta entre a opinião pública e a expressão
Estados Unidos e de forma peculiar em cada eleitoral. As discussões entre os representantes
país. Mas algumas alterações comuns podem estavam restritas ao Parlamento. Esse modelo se
ser notadas nas campanhas eleitorais, como esgotou a partir da ampliação do corpo eleitoral
a introdução do marketing político e das pes- e de um vasto número de pessoas que passaram
quisas de opinião, a diminuição da militância a ter o direito do voto.
voluntária e a necessidade de volumoso capital. Por outro
A primazia do aparecer e a personalização da la­d o, a denomina-
imagem possibilitam trazer à cena políticos de da democracia dos
fora dos tradicionais centros urbanos. Outra partidos surgiu em
conseqüência da videopolítica é o desenvolvi- decorrência do au-
mento de partidos de baixo tono ideológico, mento do eleitorado,
de agregação pragmática de reivindicações gerado pela extensão
e interesses. Aqui, consideram-se os partidos do direito de voto,
políticos culturalmente despreparados para que impediu, assim,
absorver as mudanças trazidas com a introdu- o povo de manter re-
ção da mídia, particularmente da televisão na lações pessoais com
política. Rafael Roncagliolo, um analista das seus representantes.
relações entre os novos espaços culturais e a O eleitorado passou
democracia, considera que a votar não mais em
quem conhecia, mas
las crisis de representatividad y de los
em um candidato
partidos, un tema tan en boga, no se
que carregasse as
reduce a las llamadas crisis de los pa-
“cores” de um parti-
radigmas, sino que se enmarcan en la
do. Os par­tidos po-
modificación sustantiva de los espacios
líticos, juntamente
culturales. La política de antes estaba
com as suas buro-
tejida en mercados físicos de bienes
cracias e sua rede
culturales (local partidario, cédula, plaza
de militantes, sur-
pública). Hoy se ha ‘mediatizado’, y el
giram exatamente
ciudadano no necesita trasladarse al
pa­ra mobilizar esse
acto político para semblantear al can-
eleitorado mais nu-
didato. Quizás, la crisis de la politica
meroso. Esse tipo de
y de los políticos tenga que ver con
representação era o
sus limitaciones para actuar (y pensar)
governo do ativista
en estos nuevos escenarios o espacios
e líder partidário ou
culturales de la política.11
do “chefe político”.
Seguindo nessa mesma trilha, Bernard Nessa forma
Manin, no texto “As metamorfoses do governo de governo, também
representativo”, elabora uma arqueologia do há outra característica singular, o povo vota em
governo representativo, dividindo-o em três um partido, e não em uma pessoa. O fenômeno
momentos: parlamentarismo, democracia dos da estabilidade do comportamento eleitoral é
partidos e democracia do público. Por meio da uma prova disso.
análise de cada um desses momentos, contri- As pessoas não só se inclinam a votar
buiu não somente para a discussão das trans- constantemente no mesmo partido,
formações sofridas pela forma da representação como também as preferências partidá-
ao longo de sua constituição, mas também rias são transferidas de uma geração
com informações sobre o papel exercido pelos para a outra: os filhos votam como os
meios de comunicação para o (re)desenho da pais, e os habitantes de uma localida-
representação. de votam no mesmo partido durante 11 Idem, ibidem, p. 54.

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artigo

décadas.12 meios de comunicação de massa, dispensando a


mediação da rede de militantes do partido e es-
Por outro lado, essa estabilidade eleitoral
tabelecendo uma nova relação entre políticos e
deriva, em grande medida, da determinação
eleitorado por meio do uso intensivo de técnicas
das preferências políticas por fatores socioeco-
de comunicação que enfatizam a personalidade
nômicos. Nesse tipo de governo, as clivagens
da pessoa que está se candidatando.
eleitorais refletem as divisões de classe, até
A personalidade de quem se candi-
porque os setores sociais que se manifestam por
data parece ser um dos fatores essenciais na
meio das eleições estão em conflito entre si, em
explicação dessas variações: a existência de
conseqüência de uma realidade social existente
um eleitorado sem vínculos partidários e que
antes da política. Assim, a representação, fun-
tende a votar de acordo com os problemas e
damentalmente, passa a ser uma conseqüência
as questões postas em jogo em cada eleição, e
da estrutura social.
não em programas político-partidários, acabou
Outro aspecto que também influencia a
gerando o que se caracteriza como “volatili-
estabilidade do comportamento do eleitorado
dade do voto”, ou seja, as pessoas tendem a
é o fato de, nesse tipo de governo representa-
votar de modo diferente de uma eleição para
tivo, serem os partidos que organizam tanto a
outra, dependendo da personalidade de quem
disputa eleitoral como os modos de expressão
se candidata e dos temas importantes postos
da opinião pública (manifestações de rua, pe-
em debate. Cada vez mais, o eleitorado tende
tições, campanhas pelos jornais). Todas essas
a votar em uma pessoa, e não em um partido,
formas de expressão são estruturadas ao longo em decorrência da presença da mídia no campo
das clivagens partidárias. Os vários órgãos de político, o que tem aumentando, conseqüen-
imprensa mantêm laços com um dos partidos temente, a importância dos fatores pessoais
políticos, gerando, assim, uma imprensa po- no relacionamento entre representante e seu
liticamente orientada, o que faz com que as eleitorado. Podemos notar esse aspecto no
pessoas escolham a sua fonte de informação seguinte relato:
de acordo com as suas inclinações partidárias.
[...] através de várias pesquisas que se
Como conseqüência, os fatos ou assuntos são
vem realizando nos Estados Unidos,
percebidos pela ótica do partido em que votam.
ao contrário do que a maior parte
Concluindo, Manin sugere que aquilo
das pessoas pensa sobre os eleitores
que está em declínio “são as relações de iden-
americanos, diferentemente dos anos
tificação entre representantes e representados
40 e 60, nota-se claramente que a
e a determinação da política pública por parte
identificação partidária não apresenta
do eleitorado”.13 São essas modificações no
hoje muita importância como determi-
próprio campo político que geram uma nova
nante do voto. O número de pessoas
metamorfose do modelo de governo repre-
que se identifica com partidos políticos
sentativo, constituindo um novo “tipo-ideal”,
atualmente é menor e mesmo essas são
elaborado por Manin e denominado de demo-
muito mais propensas a mudar de lado
cracia do público.
em eleições presidenciais.15
Porém, nos últimos anos, a partir da
12 MANIN, Bernard. As me-
tamorfoses do governo repre-
década de 1970 principalmente, observa-se Nessas novas circunstâncias, de eleitora-
sentativo. Revista Brasileira de uma nítida modificação nas interpretações dos do volúvel orientado pelos assuntos, há maior
Ciências Sociais, n. 29, out.
1995, p. 34. resultados eleitorais. Antes, as preferências polí- necessidade de informação acurada sobre a
13 Idem, ibidem, p. 7. ticas podiam ser explicadas pelas características agenda programática dos representantes. A
14 Um outro autor que também sociais, econômicas e culturais de eleitoras e dependência do noticiário de TV tem sido acu-
defende a linha propagada por eleitores. Nesse momento, os resultados eleito- sada de ter ajudado a erodir o sistema eleitoral,
Manin é Patrick Champagne:
“O aparecimento, o desenvolvi- rais tendem a variar significativamente de uma pois quem se candidata estaria sendo forçado
mento e, sobretudo, a difusão
dos novos meios modernos de eleição para a outra, ainda que se mantenham às banalidades da política da imagem, pelo
comunicação [...] implicaram aspecto de corrida de cavalos (horse race) da
um deslocamento progressivo
inalteradas as condições socioeconômicas e
do centro de gravidade do culturais do eleitorado. Nessa etapa, diz ele, campanha, realçado pelo noticiário de televisão,
espaço político que passou das
assembléias parlamentares para a observa-se o declínio dos partidos e dos pro- ou seja, a mídia (em especial a TV) contaminou
mídia”. Ver CHAMPAGNE, Patri-
ck. Formar a opinião. Petrópolis:
gramas partidários, pois se transferiu a posição a política impondo sua organização e dinâmica.
Vozes, 1998. de principal fórum de debates do partido e do Outra característica da democracia do
15 GLASS, David P. Evaluating Parlamento para os meios de comunicação.14 público é que os canais (jornal, televisão, rádio
presidential candidates: who
focuses on their personal Nesse processo, os candidatos passaram a e institutos de sondagem) nos quais se forma
attributes?. Public Opinion cortejar quem vota diretamente por meio dos
Quarterly, v. 49, 1987, p. 525.
a opinião pública16 são relativamente neutros,

6 Democracia Viva Nº 24
Mídia e política, a metamorfose do poder

no sentido de não estarem diretamente ligados El partido de masas, que según los prog-
a partidos políticos em competição, embora nósticos emitidos hasta la posguerra se-
possam apresentar preferências políticas. A ría la forma dominante de organización
neutralidade relativa da mídia na democracia política en el mundo contemporáneo,
do público é um contraponto para a falta de está a punto de ser un recuerdo del
neutralidade na democracia dos partidos, em pasado más que un espejo del futuro.20
que os meios de informação estavam atrelados A singularidade dessa perspectiva é,
aos partidos. Manin argumenta que, atualmen- portanto, a ênfase na necessidade de aperfei-
te, isso não acontece, pois as informações são çoamento dos mecanismos políticos de media-
veiculadas pelos diferentes meios de forma ção e agregação de interesses nas sociedades
homogênea, não existindo uma diferença gri- complexas nas quais vivemos, em que pesem a
tante entre o que é noticiado em um ou outro centralidade da mídia e a fragilidade institucio-
veículo.17 O elemento novo é que, embora os nal dos partidos políticos, tanto no Brasil como
indivíduos formem opiniões divergentes sobre na América Latina.
os objetos políticos, essas opiniões são constru- A influência da mídia no campo políti-
ídas sobre elementos identicamente apresen- co, especificamente nas campanhas eleitorais
tados a todas as pessoas e são percebidas de – até porque elas são um dos objetos deste
forma relativamente homogênea. Isso permite texto –, tem sido item recente de estudos
que a identificação entre eleitor e candidato se comparativos internacionais: as campanhas
forme a partir de preferências sobre os objetos, eleitorais são descritas por parte da literatura
e não a partir de preferências partidárias. Uma mais informada ora como um processo de
conseqüência dessa relativa neutralidade na “americanização”, ora como um processo de
divulgação de informações é a volatilidade do “modernização”.
voto, a existência de um novo eleitor indeciso: De acordo com Paolo Mancini e David
o sujeito informado, interessado pela política Swanson, as campanhas eleitorais são assuntos
e relativamente instruído. Em função da am- difíceis de serem estudados, e o que acontece
plitude do número de eleitores e de temas, os com elas reflete oportunidades, tradição, perso-
representantes ou candidatos têm que debater nalidades, cultura política e outras coisas. Além 16 Quando Manin se refere à
no público, constituindo, desse modo, um disso, nenhuma campanha é exatamente como opinião pública, está falando
de manifestações, petições e
novo local para a apresentação dos políticos e outra, e, certamente, nenhuma campanha da nova forma de expressão
que é a sondagem de opinião.
para o debate: a mídia. Assim, as Assembléias eleitoral de uma nação é exatamente igual a
deixam de ser o local por excelência da discus- outras de outros países, assim como métodos 17 Essa discussão remete ao
que Bourdieu denomina de
são do político e passam a dividir esse espaço e práticas usados nas campanhas eleitorais vêm uniformidade da oferta. Se-
gundo o autor, a concorrência
com a mídia. Observe-se, no entanto, que, mudando constantemente. Porém, e a lógica de mercado, que
são características expressivas
para Manin, ao contrário de outros autores,18 [...] o resultado desta literatura recente do campo jornalístico, levam
esses dados indicam uma alteração na prática é o que poderia parecer um fenômeno à homogeneidade do campo,
pois trabalham com as mesmas
política, que não significa, porém, uma crise de curioso: ao redor do mundo, muitas fontes, as mesmas restrições, as
mesmas pesquisas de opinião,
representação, uma vez que: das mudanças recentes nas campanhas os mesmos anunciantes.
eleitorais dividem temas em comum
quando se reconhece a existência de 18 Entre vários, podemos
apesar das grandes diferenças de cul- citar: NOVARO, Marcos. O
uma diferença fundamental entre go- debate contemporâneo sobre
tura política, histórica e instituições dos a representação política. Novos
verno representativo e autogo­verno do Estudos Cebrap, 42, p. 77-
países nas quais elas ocorreram.21
povo, o fenômeno atual deixa de ser 97, jul. 1995; COSTA, S. Do
simulacro e do discurso: esfera
visto como sinalizador de uma crise de Os autores acreditavam, desse modo, pública, meios de comunicação
de massa e sociedade civil.
representação e passa a ser interpretado que as práticas de campanha mereciam ser Comunicação&Política, nova
como um deslocamento e um rearranjo examinadas, em parte, como ponto inicial para série IV, n. 2, p. 117-136,
maio/ago. 1997; DEBORD, G.
da mesma combinação de elementos considerar as mudanças fundamentais que A sociedade do espetáculo. Rio
de Janeiro: Contraponto, 1997.
que sempre esteve presente desde o poderiam estar ocorrendo nas democracias
19 Manin, 1995, p. 33.
final do século XVIII.19 ao redor do mundo. Nesse sentido, supunham
que a adoção de métodos de campanha 20 MOUCHON, Jean. Política
Em suma, observa-se o deslocamento y médio: los poderes bajo
americanizada poderia refletir em um amplo influencia. Barcelona: Gedisa,
dos partidos políticos como sujeitos da demo- 1999, p. 107.
e imparcial processo que estaria produzindo,
cracia. Apesar do registro da fragilização dos 21 MANCINI, Paolo; SWANSON,
em muitas sociedades, mudanças que seriam
partidos políticos, excepcionalmente, nesta David L. Politics, media and
difíceis de serem atribuídas a uma simples causa modern democracy: an inter-
abordagem vislumbra-se uma perspectiva favo- national study of innovations
e que iriam além da política e da comunicação. in electoral campaingning and
rável a seu desempenho, sob a condição de que their consequences. Londres:
eles consigam adaptar-se aos novos tempos. Dessa forma, dizem Man­cini e Swanson: Praeger, 1996, p. 12.

OUT / DEZ 2004 7


§§§artigo

[...] estamos interessados na america­ni­­ livros e manuais sobre o assunto também tem
zação, na ex­por­ta­ção e na adap­­­tação ajudado a espalhar os métodos das campanhas
local das técnicas particulares de cam­ americanas para outros países. Além disso, essa
panha, na modernização, no mais amplo profissionalização é apoiada pelo freqüente
e fundamental processo de mudanças envolvimento de consultores políticos ame-
que supomos conduzir pa­ra a adaptação ricanos em campanhas de outros países. Em
destas técnicas nos di­ferentes contextos decorrência, a disseminação desses elementos
nacionais.22 tem naturalmente sido descrita como campanha
política americanizada em outros países.
Desse modo, as inovações nas campa-
Já o conceito de modernização diz res-
nhas eleitorais dos últimos anos, que parecem
peito a um contexto de mudanças mais amplas
ser práticas que foram primeiramente desen-
e induzidas por variáveis que vão muito além da
volvidas nos Estados Unidos, resultam funda-
esfera política ou da esfera da comunicação e
mentalmente, como
que dizem respeito à transformação estrutural
já foi notado por
da sociedade e das formas da democracia. Desse
Manin, 23 em outra
modo, colocando os dois conceitos frente a
parte deste trabalho,
frente, a americanização das campanhas elei-
da transformação da torais deve ser entendida restritivamente como
estrutura social e da um conjunto de indicadores específicos de um
forma das demo- processo mais geral de modernização da so-
cracias nos países ciedade, cuja difusão vem sendo notavelmente
onde as inovações acelerada pelo fenômeno da globalização da
têm sido ado­tadas. mídia que, malgrado as diferenças nacionais de
Essas trans­formações cultura política, vem crescentemente unificando
fazem parte do pro- e estabelecendo agendas e comportamentos
cesso de moderniza- políticos, econômicos e culturais em escala
ção. Então, quanto mundial.
mais avançado esteja Entre as principais caracterís­ti­cas apon-
o processo de mo- tadas por Man­­cini e Swanson no pro­cesso de
dernização em um modernização das campanhas eleitorais e a sua
país, mais provável americanização, podemos citar cinco.
será encontrarmos 1. Personalização da política: expressa
inovações nas cam- pelo predomínio da relação entre o eleitorado
panhas eleitorais e quem se candidata em detrimento dos laços
sen­d o ado­t adas e tradicionais de confiança e de ideologia entre
adaptadas. Assim, os partidos, que, dessa forma, perdem subs-
é ne­c essário defi- tância como agregação simbólica e estrutura
nirmos os conceitos organizada.
de americanização Los paradestinatarios empezaron a
e modernização, de aumentar en las mediciones de las
acordo com Mancini campañas subsiguientes y el índice de
e Swanson. indecisos comprobó el fin de una era
O conceito de lealtades y compromisos partida-
de americanização é rios con el consiguiente nascimiento
usado para referir-se de un pragmatismo individualista. Del
descritivamente a elementos das campanhas mismo modo, la incorporación de las
eleitorais e à atividade profissional conectada herramientas de la ingeniería política:
a elas. Isso foi primeiramente desenvolvido nos encuestas de intención de voto, a
Estados Unidos e, agora, está sendo aplicado boca de urna, tendencias de imagem
e adaptado de várias formas em outros países. positiva, porcentajens de crerdibilidad,
22 Idem, ibidem, p. 16.
Esse fato tem ocorrido por duas razões: pri- personalización y dramatización de las
23 Manin também descreveu
as transformações da sociedade meiro, em virtude do grande interesse que as campañas, complejizaron los sistemas
(mo­der­nização), porém fazendo campanhas americanas recebem da cobertura de comunicación de los políticos con
a relação com as mudanças no
contexto da representação de jornalística de todo o mundo; segundo, pelo sus potenciales electores.24
governo, ao passo que Mancini
e Swanson as relacionaram
grande número de especialistas de campanhas
com a questão das campanhas que visitam os Estados Unidos para estudar e Os candidatos, nesse caso, parecem
eleitorais.
conhecer o processo eleitoral. A publicação de competir por conta própria ao mesmo tempo

8 Democracia Viva Nº 24
Mídia e política, a metamorfose do poder

em que sua imagem pessoal, construída pela firmando uma tradição de estudos de mídia e
mídia, toma o lugar das ligações simbólicas que política que passou a conferir centralidade à
antes eram asseguradas pelos partidos políticos, presença da mídia, especialmente da televisão
ou seja, não existe mais uma identificação do no cenário político da representação contem-
candidato com o partido. porânea.
2. Cientifização da política: o concei- De fevereiro de 84, quando se deflagrou
to elaborado por Habermas25 é usado nesse a campanha das ‘Di­retas já’, a abril de
contexto para exprimir a crescente prepon- 85, morte de Tan­credo, são 14 me-
derância nas campanhas modernas do time ses de imensa efervescência política,
da campanha formado por especialistas e durante os quais os meios de comu-
técnicos que cada vez mais controlam não nicação – em especial a TV Globo, pro­
só a produção de informações, como tam- tagonista principal – de­sempenha­ram
bém sua interpretação com vistas à tomada papel inédito
de decisões críticas no desenvolvimento da em sua his-
campanha. tória e se
A expansão da função dos técnicos destacaram
(experts) nas campanhas reflete, por um por sua ca-
lado, os métodos sofisticados e as habi- pacidade de
lidades que são dadas como necessárias intervir no
para a condução de uma campanha na quotidiano
política contemporânea dentro do am- extraordina-
riamente rico
biente da mídia (incluindo as habilidades
de uma cri-
associadas com as pesquisas de opinião
se de transi-
pública e outros métodos para monitorar
ção. Aparato
os desejos e as vontades dos eleitores,
criado pelo
criando fortes propagandas de televisão,
regime auto-
cobertura favorável, positiva e freqüente
ritário, e com
da mídia para o candidato e obtenção
ele comple-
de fundos financeiros) e, por outro lado,
mente iden-
o grande enfraquecimento do papel dos
tificado, a TV
partidos, que não são mais capazes, por
Globo exerce
exemplo, de suprir as necessidades de
o inesperado
fundos e de pessoal competente.26
papel de pro-
Assim, publicitários, marqueteiros, tagonista das
pesquisadores, cientistas políticos, relações- oposições,
públicas e jornalistas ganham crescente relevo com isso
no interior da campanha e tomam decisões que ampliando
antes eram processadas dentro do aparato dos um arco de
partidos pelas lideranças políticas e executadas alianças ines-
por entusiastas e militantes. Dessa forma, o ob- peradas. Na
jetivo da cientifização é simplesmente a vitória medida em
eleitoral, e não encontrar alternativas úteis à que legitima-
política pública. Esse objetivo parece resultar va o regime
do inevitável enfraquecimento das organizações emergente,
partidárias e das mudanças que podemos notar legitimava-se
nos sistemas políticos. também junto à opinião pública. Uma
3. Estrutura autônoma da comunicação: nova TV Globo surgia com uma Nova
um dos traços mais salientes da modernização República.27
é o desenvolvimento de uma poderosa e autô- 24 MURARO, Heriberto. Políti-
cos, periodistas y ciudadanos.
noma comunicação de massa, cuja influência A mídia, em conseqüência, tende a Buenos Aires: FCE, 1997, p. 23.

penetra em todas as dimensões da vida social, assumir funções políticas antes exclusivas
25 HABERMAS, J. A mudança
política, econômica e cultural. de organizações partidárias ou de órgãos estrutural da esfera pública.
Rio de Janeiro: Tempo Brasi-
No caso brasileiro, a concentração oli- de imprensa controlados por partidos ou leiro, 1984.

gopolista da Rede Globo tem sido enfatizada governos, tais como a socialização política 26 WATTENBERG, M. The decli-
com especial destaque pela sua influência na e a divulgação de informação para o públi- ne of american political parties.
Cambridge: Harvard University
política no período da transição democrática, co sobre política e ação governamental. A Press, 1984, p. 131.
autonomia da comunicação de massa torna

OUT / DEZ 2004 9


artigo

*Davys Sleman os políticos mais dependentes da mídia e la historia en la comunicación de los


de Negreiros provoca, em conseqüência, a profissionali- gobernantes con las masas en la Ar-
Professor universitário, zação da comunicação política dos partidos gentina, sería, dentro del gobierno del
mestre em Sociologia e líderes políticos, bem como do próprio mismo Alfonsín, dejado de lado por la
Política pela Universidade governo na tentativa de manipular a mídia utilización de los medios electrónicos.
Federal de São Carlos independente. Por otra parte, la ciudadania, hizo
(UFSCar), pesquisador do 4. Distanciamento dos partidos em rela- abandono de la Plaza de Mayo como
Núcleo de Estudos sobre
ção aos cidadãos: nas sociedades contemporâ- espacio de legitimación del poder y
Mídia e Política (Nemp/
neas, a fragmentação social e a diferenciação de lugar de las representaciones que
UFSCar)
dos interesses políticos impedem ou dificul- vin­culaban al dirigente de turno, através
davys.negreiros@bol. tam a relação direta entre líderes e partidos del uso de una enun­ciación pedagógica,
políticos e o seu eleitorado, assim como a con una masa todavía inmadura que
apreensão de suas preocupações e demandas esperaba de él todas las respuestas.29
correntes por meio do contato pessoal. Entre
Nada, portanto, é mais revelador do
os efeitos deletérios dessa nova situação,
fato de a mídia não ser apenas um poder
encontram-se o progressivo declínio da rede
auxiliar, conforme pensa quem a chama de
de militantes e ativistas e a perda do sistema
quarto poder. Pelo contrário, a mídia fornece
de comunicação in­terpessoal que articulava
os temas sobre os quais os públicos/eleitorado
eleitores e eleitoras às organizações partidárias.
devem pensar, colocando-os em categorias
A pasteurização que nivela a política
semânticas determinadas. Além disso, não age
pela descaracterização do discurso
apenas como mediadora entre os poderes, mas
tem sido apontada como um dos
sim como um dispositivo de produção do pró-
resultados reveladores da submersão
prio poder de nomeação e, no limite, também
das identidades partidárias no univer-
de funcionamento da própria esfera política.
so unificador da mídia, no qual é pró-
Assim, parece estar havendo um consenso de
prio que políticos não se destaquem
que a antiga fórmula da centralidade política
por sua experiência, pelo programa
das comunicações foi substituída por uma
de seu partido nem mesmo por sua
proposta de centralização das comunicações
capacidade de liderança no processo
na atividade política. Dessa forma, tanto no
po­lítico, mas pela simpatia que seus
âmbito do intercâmbio político como no do
mar­keteiros conseguem suscitar nos
simbólico, o funcionamento do sistema político
gran­des auditórios.28
nas democracias da sociedade moderna está
Por outro lado, com a ascendência sendo cada vez mais determinado pela mídia.
crescente dos especialistas de campanha, os
partidos programáticos foram compelidos a
abandonar suas bases ideológicas pelas bases
de opinião, que, obviamente, são aferidas por
meio de sondagens e pesquisas sob a res-
ponsabilidade de empresas especializadas. O
resultado final dessas mudanças é o crescente
distanciamento dos partidos da vida cotidiana
e do eleitorado.
5. Transformação do cidadão em es-
pectador: finalmente, com a centralidade da
televisão nas campanhas políticas modernas
– em países onde o acesso à TV é pago pelos
27 GUIMARÃES, I. C. A televi-
partidos (como nos Estados Unidos) ou onde é
são brasileira na transição (um regulado, gratuito e igualitário ou proporcional
caso de conversão rápida à
nova ordem). Comunicação & à força do partido na Câmara (Brasil, França e
Política, III, n. 6, 1986, p. 28.
Inglaterra) –, o evento político deslocou-se das
28 TREJO DELARBRE, R. Te-
lecracia no es democracia.
ruas e praças públicas para a sala de quem vota.
Comunicação&Política, nova Podemos ter um exemplo desse fato neste relato
série I, n. 3, abr./jul. 1995,
p. 117. sobre o caso da Argentina:
29 GONZÁLEZ REQUENA, Jesús. Sin embargo, el balcón, que tuvo
El espectáculo informativo.
Madri: Akal/Comunicación, preponderancia a lo largo de toda

10 Democracia Viva Nº 24
O Balanço Social das Cooperativas, uma iniciativa do Ibase em parceria com diversas ins-
tituições, oferece às cooperativas um meio para que suas ações internas e externas sejam
transparentes e conhecidas pela sociedade em geral. Ao tornar públicas suas ações e seus
investimentos – que devem estar de acordo com os princípios cooperativistas definidos pela
Associação Cooperativa Internacional e pela Recomendação 193 da OIT (Organização Inter-
nacional do Trabalho) –, as cooperativas estarão ajudando a coibir práticas do setor que não
estejam de acordo com os princípios democráticos e distributivos
que o caracterizam.

www.balancosocial.org.br
www.ibase.br

OUT / DEZ 2004 11


nacio
nacional
Rudá Ricci*

Para se contrapor
ao Estado-

A elaboração de uma Lei de Responsabilidade Social não é uma mera contraposição à

Lei de Responsabilidade Fiscal ou à sua adequação.1 Não se trata, portanto, da busca


1 A criação de uma Lei de
Responsabilidade Social vem
de equilíbrio político ou de uma disputa que busca a soma zero entre arranjos fiscais
despertando a atenção de
movimentos e redes sociais
envolvidos com a construção e desenvolvimento social. Trata-se de uma elaboração estratégica que procura esboçar
de um sistema de controle
social sobre a gestão estatal,
em especial, sobre a execução um projeto geral de controle social sobre o Estado brasileiro a partir da sociedade civil.
orçamentária em nosso país nos
últimos anos. Em 2003, passou
a fomentar uma articulação Pode, até mesmo, sustentar uma ação mais ambiciosa, filiada ao desenho institucional
mais organizada e foi tema
de oficina no Fórum Social
Brasileiro, realizado em Belo que movimentos sociais inscreveram na Constituição de 1988, denominada por alguns
Horizonte, em novembro, onde
uma primeira versão deste texto
foi apresentada. O Fórum Brasil de “participacionismo” ou, mais recentemente, de governança social.
do Orçamento (FBO), formado
por 34 entidades civis, está
organizando uma campanha Seria, assim, um passo adiante das conquistas do fim da década de 1980 e do
nacional pela criação da Lei de
Responsabilidade Social, que
será lançada no próximo Fórum início da década de 1990. Essa proposição, aos poucos, começa a ganhar contornos mais
Social Mundial, em janeiro de
2005. Mais informações em
<www.forumfbo.org.br>. nítidos. No fim de 2003, a partir de uma proposta de lei elaborada pelo deputado estadual

12 Democracia Viva Nº 24
onal
o município gaúcho de São Sepé instituiu a entre a agenda econômica e a agenda social
primeira Lei de Responsabilidade Social local era compreendida pelos gestores públicos como
do país. 2 base da legitimação da ação governamental.
Este texto procura apresentar as bases O momento atual parece ser outro. A agenda
desse arranjo institucional, começando pelo social passou a ser condicionada, desde a dé-
cenário político institucional que essa elabora- cada de 1990.
ção procura enfrentar. Em seguida, apresenta Essa mudança de paradigma na gestão
um esboço dos contornos do que seria essa pública é reflexo de uma crise de legitimidade
formulação. Portanto, é um texto-provocação das instituições públicas, fundada na diluição
e se apresenta como uma sugestão ao debate da representação social. Alain Touraine sugeriu
das redes sociais engajadas nessa construção. a crise de representação com a emergência da
globalização econômica num ensaio cujo título
revela suas preocupações e perplexidades: Po-
Limitações estruturais
deremos viver juntos?. No ensaio, o sociólogo
Um estatuto legal que procura normatizar o francês sustenta a instalação de uma profunda
direcionamento dos gastos públicos para a dissociação entre a dimensão cultural e a di-
área social parte, obviamente, da constatação mensão econômica globalizada, que colocaria
dos percalços crescentes para uma agenda em questão todo sistema de representação
de investimentos sociais em nosso país. Com construído na modernidade. Para o autor, o
efeito, o cenário político que se apresenta é mundo da economia globalizada caracteriza-se
de conformação dos investimentos sociais à pelo aumento da competitividade intersetorial,
lógica da estabilidade fiscal, subordinando-se à fluidez do tempo e do espaço, pela baixa valo-
capacidade de atração de poupança externa – rização da memória, do passado e, portanto,
mesmo que esses investimentos sejam voltados dos valores sociais. A dimensão cultural, por
apenas para especulações financeiras – e ao seu turno, caracteriza-se justamente pelas re-
rígido controle dos gastos públicos. ferências comunitárias, pelas tradições e pelos
A subordinação dos investimentos so- rituais morais, pela afetividade e identidade 2 Essa lei sugere uma série de
ciais ao equilíbrio fiscal e ao fluxo de capital locais, pelo lugar. Ambas as dimensões não iniciativas e etapas para sua
implementação: a) elaboração
rompe com qualquer propósito social ou com contribuem para a construção de regras uni- do mapa social da cidade
(diagnóstico anual da realidade
a histórica agenda nacional que estabelecia, versais, porque são intrinsecamente excludentes social local); b) montagem do
ainda que timidamente, um diálogo entre a e seletivas. O mundo globalizado possui uma Cadastro Social, registro indivi-
dualizado do público-alvo dos
dimensão econômica e a dimensão social do de- dinâmica particularista e altamente conflitiva. programas e projetos da área
social; c) montagem do Mapa
senvolvimento brasileiro. Em alguns momentos Em parte, os atentados de 11 de setembro de da Cidadania, um inventário de
da política nacional, esse diálogo, é verdade, 2001 são expressão desse embate entre um todas as organizações do tercei-
ro setor, da iniciativa privada
beirou o cinismo, quando se sugeriu que seria mundo marcado pelas tradições e identidades e órgãos públicos envolvidos
com ações sociais; d) definição
necessário crescer para depois investir na área comunitárias e um mundo da alta competitivi- de indicadores de pobreza do
social ou promover a distribuição de renda. dade racional, impessoal e excludente. município para definição de
metas anuais e plurianuais.
Mesmo assim, essa busca de relacionamento Com tal pano de fundo, qual sua conse-
qüência direta no que tange às práticas políticas

OUT / DEZ 2004 13


nacional

e estatais? Manuel Castells sugere uma hipótese abordagem da questão urbana, ante-
para essa resposta. Num ensaio recente, afirma riormente centrada na problemática
o autor: da produção e gestão do solo urbano,
[...] seu papel essencial consiste em e dos conflitos redistributivos entre os
receber e processar os sinais do siste- diferentes agentes produtores e usuá-
ma global interconectado e adequá-lo rios da cidade. Nesse paradigma, cabia
às possibilidades do país, deixando ao Estado não só a provisão de bens e
que sejam as empresas privadas que serviços urbanos, como também a ges-
assumam o risco [...]. A incapacidade tão dos instrumentos de planejamento
do Estado para decidir por si só, em urbano. [...] No novo modelo, o eixo de
um mundo em que as economias análise se desloca para a produtividade
nacionais são globalmente interde- urbana, e a identificação dos obstáculos,
pendentes, obriga a adaptação de para a inserção competitiva das cidades
regulações inaplicáveis [...]. Assim, nos circuitos globais. As funções do
surge um novo tipo de Estado, que poder público também se deslocam: as
não é o Estado-nação, mas que não da gestão e do planejamento da cidade,
o elimina e sim o redefine. O Estado para a garantia de um meio ambiente
que denomino Estado-rede se carac- favorável aos negócios e ao desenvol-
teriza por compartilhar a autoridade vimento econômico; as da provisão
(ou seja, a capacidade institucional de universal de bens e serviços urbanos,
impor uma decisão) através de uma para o desenvolvimento de práticas
série de instituições. (Castells, 1999, focalizadas que visem reduzir os níveis
p. 153, 156 e 164) crescentes de pobreza. (Santos Júnior,
2001, p. 34 e 35)
O que, em termos práticos, tal leitura
propõe é a emergência de um Estado-facilita- O autor prossegue e afirma que essa
dor, limitado à indução do desenvolvimento a orientação transfigurou-se, em 1997, em base
partir de instrumentos de informação e adequa- conceitual para desenvolvimento das parcerias
ção do ambiente econômico a partir do fluxo e políticas de descentralização fomentadas
de capital internacional. pelo Instituto de Desenvolvimento Econômico
O Estado-facilitador estaria determina- do Banco Mundial, pelo Programa das Nações
do, assim, por uma nova cultura política, extre- Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e pela
mamente pragmática, destituída de criticidade e Fundação Interamericana (IAF, na sigla em in-
utopia, desprovida de projetos estratégicos que glês). O Programa Parcerias para Redução da
seriam substituídos por ações táticas, pontuais. Pobreza destacava a necessária articulação do
Uma espécie de discurso único da ação política. setor público com o privado para ampliar os
Orlando Santos Júnior localiza com recursos para redução de pobreza, mas também
maior precisão os movimentos políticos que para ser uma alternativa de desenvolvimento,
deslocaram e acomodaram a ação estatal nas no contexto das transformações políticas e
últimas duas décadas (Santos Júnior, 2001). O institucionais em curso, assim como supera-
autor destaca um documento-referência dessa ção das ações estatais tutelares e altamente
inflexão no caso da ação municipal: trata-se centralizadas.
de Política urbana y desarrollo economico: un Nessa perspectiva, descentralização
paradigma para el decenio de 1990, publica- administrativa vincula-se à adoção de um
do pelo Banco Mundial. Nesse documento, novo modelo gerencial baseado nas parcerias
sugere-se que a pobreza estaria diretamente público-privado e, ainda, ao objetivo de au-
relacionada à produtividade da economia ur- mento de competitividade local. Tal propo-
bana. A partir de então, são propostos quatro sição aproxima-se em muito da adoção de
eixos de iniciativas: superação dos obstáculos um modelo empresarial da ação pública. São
de infra-estrutura urbana; incorporação das eliminados do planejamento local todos os
pessoas pobres aos circuitos econômicos; conflitos de interesse. As arenas de elaboração,
enfrentamento dos efeitos da degradação am- planejamento e ação pública são de tipo neo-
biental; e aumento da capacidade de pesquisa corporativo, no qual os interesses empresariais
sobre desenvolvimento urbano. Como sugere são alçados à condição de demandas públicas.3
Santos Júnior: Haveria, assim, uma apropriação privada dos
fundos públicos.
Há um deslocamento conceitual na
Assim, a construção da ação facilitadora

14 Democracia Viva Nº 24
Para se contrapor ao Estado-facilitador

domesticaria os partidos políticos a partir da O estado de Minas Gerais é ilustrativo do que


agenda estatal, que, por sua vez, teria como ocorre no país: dos 1.200 projetos em pauta
fundamento a facilitação do fluxo de capital na Assembléia Legislativa de Minas até início
globalizado. Tal deslocamento reconstruiria as de novembro de 2003, apenas 10% haviam
agendas e práticas partidárias, desvinculando-as sido enviados pelo Executivo. Contudo, são os
das relações diretas com a sociedade (reduzida projetos do Executivo que possuem prioridade
a relação, nesses termos, ao espetáculo e ao na agenda de votações, como é o caso das
discurso mobilizador, de natureza carismáti- parcerias público-privado (PPP).
ca). A ação racional estatal-partidária estaria O centralismo da política institucional
relacionada à construção de acordos institu- brasileira foi observado, ainda, em estudo de
cionalizados, constituindo anéis de alianças Marta Arretche (2000). A autora sugere que
(não necessariamente alianças estratégicas, todas políticas sociais descentralizadas surtiram
mas também nem tão fluidas como alianças efeito a partir da pressão ou premiação dos
táticas que são desprovidas de acordos mais órgãos centrais de governo, revelando a perma-
duradouros, pois se trata de efetivar um ob- nência da centralidade do Executivo federal na
servatório da dinâmica de mercado que define determinação e condução das políticas sociais,
as condutas estatais) que envolvem represen- mesmo quando descentralizadas. No livro Estado
tações parlamentares, agentes do Executivo e federativo e políticas sociais, Marta destaca a
representações empresariais. Mais ainda, os forte presença do poder central, até mesmo
códigos de relacionamento empregados em como elemento pedagógico no desenvolvimen-
tais anéis de alianças são prioritariamente os do to do participacionismo brasileiro. Seu estudo
mercado financeiro, porque aludem ao fluxo de sobre o novo desenho institucional que surge
capital internacional. Possuem, portanto, uma a partir da década de 1990 e sobre o possível
natureza normativa, societal. Instrumentos de impacto sobre o modelo centralizado até en-
medida dos ânimos do mercado, tal como risco- tão existente no Brasil revela a permanência
-país, largamente empregados para sinalizar do papel indutor do poder central, em todos
territórios com estabilidade de lucratividade os estados da Federação pesquisados (Bahia,
em investimentos privados, passam a orientar Ceará, Paraná, Per­nam­buco, Rio Grande do
as decisões técnicas de governos.4 Sul e São Paulo) e em todos os programas de 3 Boaventura Santos, em textos
Esse deslocamento da ação estatal exige descentralização investigados (municipalização recentes, sugere a dissemina-
ção de uma cultura política
uma profunda concentração de poderes e um dos serviços de saneamento básico, sistemas ultraconservadora que daria
fôlego ao movimento de pri-
processo decisório articulado e centralizado. estaduais de habitação, instâncias colegiadas de vatização dos espaços estatais,
Com efeito, os processos decisórios não podem distribuição dos recursos de Fundo de Garantia denominando-a de “fascismo
societal”. Ver Santos, 2003.
se espraiar pela sociedade civil. Ao contrário, do Tempo de Serviço/FGTS), municipalização
4 Há inúmeros ensaios recentes
são conformados nos anéis de alianças, que das redes de ensino fundamental, municipa- que sugerem tais articulações
entre segmentos do mercado
muitas vezes se cristalizam em conselhos con- lização da merenda escolar, municipalização e agências estatais, e algu-
sultivos – sem nenhuma ramificação direta ou da assistência social, Sistema Único de Saúde mas delas (por suas múltiplas
interseções, são denominadas
de consulta mais ampla em relação à socieda- e municipalização das consultas médicas). A neste texto de anéis de alian-
ças) avançam sobre estruturas
de civil – que orientam as práticas estatais. A adesão aos programas de descentralização partidárias e sindicais, a partir
tradição estatal brasileira é, assim, reeditada. estaria diretamente vinculada ao cálculo polí- de fundos de pensão, agências
reguladoras e câmaras de ne-
Estamos, aqui, nos referindo ao movi- tico sobre o processo de transferência, tendo gociação setorial. Francisco de
Oliveira sugere a emergência
mento de retorno à centralização orçamentária como variáveis de análise o legado das políticas de uma classe social, fonte da
por parte do Executivo federal. Nesse caso, é prévias, as regras constitucionais e a existência energia política dessas arti-
culações (ver Oliveira, 2003).
uma dupla perversidade, uma vez que debela de uma estratégia eficiente desenhada pelo A nthony G i dd en s a l u de à
necessidade de superação do
conquistas inscritas na Constituição de 1988 governo central. O fator mais decisivo para a conceito recente de “Estado
e é motivada pela subordinação dos gastos descentralização de políticas é contábil, e não asse­gu­rador” da Terceira Via,
que não passaria de uma
sociais ao equilíbrio fiscal. Pode-se aventar a necessariamente ideológico, ou até mesmo o agência facilitadora. Ver a en-
trevista “Conver­são à esquer-
hipótese de que o equilíbrio fiscal é pressuposto grau de participação e organização popular de da”, concedida por Giddens
de justiça social, porque diminui as pressões uma dada região. à revista Primeira Leitura, n.
23, de janeiro de 2004. Boa-
inflacionárias. Ocorre que a história recente do As bases sociais dessa herança cen- ventura Santos, citando Peter
Evans, aponta uma “tríplice
país não corrobora tal hipótese. Pelo contrário, tralizadora de nossa prática política foram aliança”, envolvendo um frágil
o controle fiscal não se vinculou, nos últimos denominadas por Boaventura Santos de ethos equilíbrio (que impediria avan-
ços no tratamento de políticas
12 anos, à justiça social, mas apenas à vita- barroco (Santos, 2003, p. 97 e seguintes). Esse redistributivas) entre burguesia
estatal, multinacionais e capital
lidade do aparelho de Estado e à sinalização traço de nossa cultura política, antiinstitucio- local (ver Santos, 2003).
de ingresso de capitais externos. Os exemplos nal e antilegalista, é plasmado em práticas
5 O sociólogo Francisco de
que corroboram essa observação são vários. “tolerantes ao caos”. Seu caráter aberto e Oliveira vem sugerindo a emer-

OUT / DEZ 2004 15


nacional

inacabado fundaria um processo permanente pela mudança da estrutura social brasileira,


de construção/desconstrução, fundando uma desde a emergência da nova ordem mundial,
paisagem social marcada pela surpresa. Assim, que se iniciou na década de 1980.
na perspectiva das práticas sociais cotidianas, Algumas determinações são amplamen-
nossa cultura política seria transgressora, sem te conhecidas e fartamente citadas ao longo
romper com a ordem política. Por isso, haveria de 2003 como o mais duro golpe nos gastos
uma permanente balcanização dos movimentos da área social: a exigência, por parte do Fundo
sociais e dos temas por eles reivindicados. O Monetário Internacional (FMI), de um superávit
que poderia ser uma contradição explícita em primário do orçamento público federal da or-
relação ao poder central é, paradoxalmente, a dem de 4,25% como garantia de pagamento
senha para o aumento da influência do poder dos empréstimos contraídos na gestão de
central institucionalizado sobre a vida social e, Fernando Henrique Cardoso. O impacto dessa
principalmente, as instituições e práticas polí- exigência foi surpreendentemente mais amplo
ticas. O ethos barroco não sustentaria, enfim, na gestão Lula que na anterior. O ajuste do
um projeto contra-hegemônico porque estimula poder público federal, de janeiro a setembro
a balcanização das práticas libertárias. Santos de 2003, foi de tal monta que economizou R$
sugere, ainda, o que denomina de “carnavali- 2,8 bilhões (5,08% de superávit primário) acima
zação das práticas sociais”, antiortodoxas por do que o necessário para cumprir a meta do
natureza. Haveria, assim, um constante divórcio FMI. A título de ilustração, o valor adicional é
entre a dimensão cultural das sociedades latino- 60% superior ao orçamento do programa social
-americanas e a sua dimensão econômica e mais festejado do governo federal, o Fome Zero.
política, reeditando a leitura de Touraine. A exigência tornou-se uma orientação
Portanto, somos herdeiros de uma governamental, quase uma política de geren-
gência de uma “nova classe
social”, vinculada ao setor estrutura política que, mesmo sofrendo con- ciamento das ações públicas. Não foi, portanto,
especulativo e com fortes la-
ços com as agências estatais, tínuos movimentos pendulares, retorna ao seu um simples cumprimento de um contrato. Para
que impulsionaria um ideário
ponto central que é o alto poder de comando se ter uma noção do esforço e do sacrifício
empresarial, conformando o
que aqui é denominado de das agências estatais federais. Essa estrutura social que a manutenção desse patamar de
Estado-facilitador. Trata-se dos
segmentos sociais compostos parece estar sendo apropriada nos últimos superávit primário desencadeia, basta anali-
por intelectuais universitários
anos por interesses privados que limitam o sarmos o percentual de recursos liberados para
que são alçados aos órgãos de
controle monetário e de política papel promotor das políticas sociais a mero investimento dos ministérios da área social até
macroeconômica do país e,
mais adiante, assumem postos exercício de proteção social, sendo que as meados de maio de 2003. O ministério que
de direção em instituições do
iniciativas têm seu orçamento submetido à mais gastou, do total autorizado pela lei orça-
sistema financeiro; são tam-
bém sindicalistas que passam lógica do fluxo de capital especulativo. As mentária, foi o Ministério da Educação: 2,5%.
a gerir fundos de pensão. Em
suas palavras “a estrutura de determinações estruturais para a redução A partir do segundo semestre, essa distorção
classes também foi truncada
(ou limitação) dos investimentos nas áreas foi se ajustando, mas demonstra a motivação
ou modificada: as capas mais
altas do antigo proletariado sociais (mesmo aquelas desfiguradas em para execução orçamentária do governo federal.
converteram-se, em parte, no Um empenho dessa envergadura exigi-
que Robert Reich chamou de seus princípios estratégicos de promoção da
“analistas simbólicos”: são
eqüidade social) são poderosas e fortemente ria uma nova diretriz para implementação das
administradores de fundos de
previdência complementar, enraizadas na cultura da gestão pública do políticas sociais federais. A nova diretriz surgiu
oriundos das antigas empresas
país, em parte a partir dessa meia lei que é a pelas mãos da Secretaria de Política Econômi-
estatais, dos quais o mais pode-
roso é o Previ, dos funcionários
Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Essa lei ca, do Ministério da Fazenda. Num documento
do Banco do Brasil, ainda esta-
intitulado Gasto social do governo central:
tal; fazem parte de conselhos carece de sua outra cara-metade sob pena de
de administração, como o do 2001 e 2002,6 afirma-se que a maior parte
BNDES, a título de represen- promover e acirrar o centralismo orçamentário,
tantes dos trabalhadores. [...] do gasto público social é oriundo do governo
É isso que explica recentes o clientelismo político, as ações emergenciais
federal. Mesmo assim, e a despeito da carga
convergências pragmáticas na área social, a desarticulação e sobreposição
entre o PT e o PSDB, o aparente tributária nacional ser equivalente à média dos
paradoxo de que o governo de ações, os casuísmos e o empresariamento
Lula realiza o programa de FHC, países da Organização para a Cooperação e o
radicalizando-o: não se trata dos organismos estatais.5
de equívoco, nem de tomada Desenvolvimento Econômico (OCDE), admite-se
de empréstimo de programa, que grande parte da população ainda não tem
mas de uma verdadeira nova
classe social, que se estrutura Limitações conjunturais acesso a recursos suficientes para satisfazer ne-
sobre, de um lado, técnicos e
cessidades básicas, num país onde a distribuição
economistas doublés de ban- Mas não são apenas as determinações estru-
queiros, núcleo duro do PSDB, de renda é uma das mais desiguais do mundo.
e trabalhadores transformados turais que limitam uma ação pública vigo-
em operadores de fundos de O gasto social do governo federal foi, em 2002,
previdência, núcleo duro do PT” rosa na área social. As limitações estruturais
de R$ 182 bilhões (13,8% do PIB), segundo
(Oliveira, 2003, p. 146 e 147). completam-se com o cenário político nacional,
o documento, o qual ainda demonstra que o
6 Datado de novembro de 2003 fortemente desprovido de utopia política ou
e divulgado pelo Ministério da Brasil apresenta-se como exceção internacional,
Fazenda, o documento está qualquer planejamento estratégico motivado
onde alta carga tributária está associada à baixa

16 Democracia Viva Nº 24
Para se contrapor ao Estado-facilitador

desigualdade de renda. gramas direciona a exclusão dos programas


Os gastos federais não alteram a realida- às instâncias burocráticas do Estado. A linha
de social da população mais pobre e indigente, de argumentação desconhece, portanto, as
ao longo de quase uma década. Vinod Thomas, injunções políticas na gestão dos programas
diretor do Banco Mundial no Brasil, sustenta sociais. Há, assim, uma evidente despolitiza-
que “de todo dinheiro aplicado pelo governo ção na leitura que sugerem. Tal despolitização
federal em políticas sociais apenas cerca de 20% poderia ser superada quando Barros e Carvalho
chegam aos mais pobres”. 7 Um documento analisam a ausência de um sistema de avaliação
mais recente do Ipea aprofunda e operaciona- de impacto dos programas e políticas sociais.
liza essa constatação. Ricardo Barros e Mirela Com efeito, na análise desse tema, citam, pela
de Carvalho, responsáveis pelo estudo (2003), primeira vez ao longo do documento, o concei-
argumentam que três fatores contribuem to de capital social. Contudo, não incorporam o
para a baixa efetividade das políticas sociais conceito na elaboração de um sistema gerencial
brasileiras: baixa focalização nas pessoas mais das políticas públicas, como é possível perceber
pobres; inexistência de avaliações de impacto nos seguintes trechos:
dos programas; e ausência de integração das Por vezes, famílias com igual grau de
diversas iniciativas. carência acabam tendo acesso comple-
O que parece significativo, para a pre- tamente diferenciado a determinados
sente discussão, é a apropriação peculiar que programas, dependendo de seu capital
Barros e Carvalho fazem do conceito de capital social, principalmente em função das
social ou participação das populações na dinâ- associações de que participam ou par-
mica dos programas sociais. Em relação à foca- ticiparam e de sua experiência anterior
lização dos programas, sustenta-se que existiria com o programa. Assim, enquanto exis-
uma baixa repartição dos recursos, proporcional te um grande número de trabalhadores
à carência de cada estado da Federação. Barros que já participou mais de cinco vezes
e Carvalho exemplificam esse argumento com do Planfor, muitos outros nunca tiveram
a distribuição dos recursos federais, entre as acesso ao programa ou sequer sabem
unidades da Federação, para manutenção de de sua existência. (Barros e Carvalho,
creches. A conclusão a que chegam é: 2003, p. 10)
Os resultados mostram que, dentre os es-
A busca por maior adequação enfrenta
tados do Nordeste, seis estão recebendo
dois grandes desafios: a) a capacidade
menos recursos do que sua participação
do desenho do programa de se adaptar
no total de carências do país. Piauí e Ce-
a determinadas condições (flexibilidade
ará estão recebendo, na realidade, uma
do desenho); e b) um bom conhecimen-
proporção de recursos muito próxima à
to da realidade e ne­ces­sida­des locais.
carência que têm; no entanto, Rio Gran-
Neste segundo desafio, a participação
de do Norte recebe bem mais recursos
da comunidade pode ser extremamen-
do que sua participação no total de
te útil, pois quem melhor do que a
carências. Por outro lado, vemos que
própria comunidade para conhecer as
todos os estados da região Sul estão
especificidades locais? Ao longo dos
recebendo muito mais recursos do que
últimos anos, a participação comunitá-
sua participação no total de carências.
ria no desenho da política social vem
O mesmo ocorre com dois estados da
sendo incentivada por dois caminhos.
região Centro-Oeste – Mato Grosso e
O primeiro deles consiste na criação de
Mato Grosso do Sul. No Sudeste, Minas
uma variedade de conselhos e comissões
Gerais e Espírito Santo também recebem
estaduais e municipais, os quais pas-
mais recursos do que sua participação no
sam a ser responsáveis por uma série
total de carências. [...] Contudo, nos últi-
de decisões importantes. O segundo
mos anos pôde-se observar significativas
caminho diz respeito a experiências
melhoras na direção de uma focalização
municipais com a utilização de modelos
geográfica atingida por uma nova gera-
de desenvolvimento local, seja a partir disponível no site <www.
ção de programas sociais. Este é o caso, fazenda.gov.br>.
do programa Comunidade Ativa, seja
por exemplo, do programa Bolsa-Escola. 7 Declaração à revista Carta
através de outros esforços. (Barros e Capital, n. 267, ano X, 19 nov.
(Barros e Carvalho, 2003, p. 7) 2003, p. 47.
Carvalho, 2003, p. 12)
O argumento meramente técnico da 8 Barros e Carvalho, contudo,
O fundamento para a participação destacam a importância das
ausência de focalização geográfica dos pro-

OUT / DEZ 2004 17


nacional

comunitária no desenho da política social é o empresariamento estatal e aumentam-se os


mesmo proposto por documentos do Banco gastos com publicidade, em de­trimento dos
Mundial: o respeito à diversidade cultural e gastos na área social.
social. Não existe uma clara sinalização para As conseqüências dessa opção política
a participação na gestão das políticas sociais, são nítidas e multiplicam-se nos últimos meses.
muito mais ampla e declaradamente politizada Citemos algumas:
que a mera participação na definição do seu de- a) cortes nos gastos de orçamento aprovado
senho. A participação comunitária fica restrita, para a área social, como já indicado ante-
assim, ao fluxo de informação social e cultural riormente;
para formulação e focalização adequada das b) criação de subterfúgios para diminuir gastos
políticas sociais gerenciadas pelo Estado.8 sociais e burlar exigências legais de vincu-
Esse é o argumento central que o lação de gastos públicos. Esse é o caso de
documento do Ministério da Fazenda adota várias iniciativas governamentais no segun-
para sugerir a mudança de rumos nas políticas do semestre de 2003, como a do governo
sociais. A opção, no caso, é do deslocamento federal e do governo estadual de São Paulo,
de políticas universais por políticas focalizadas. que procuraram vincular despesas com
Na página 23 do referido documento, são programas sociais (como Fome Zero, pro-
destacados os gastos federais com o ensino gramas de alimentação, assistência social,
superior. Afirma-se que o gasto médio por habitação) como gasto mínimo obrigatório
estratégias de desenvolvimen- aluno é superior à média de países ricos para, em ações e serviços de saúde e educação;
to local (DLIS) e o programa
integrado de políticas sociais finalmente, concluir: “o que, embora esteja c) lentidão ou corte nos repasses ou liberação
mexicanas (Estratégia Contigo).
Os dois programas, contudo, de acordo com a competência delegada pela dos recursos de fundos especiais gerenciados
mereceriam uma análise espe- Constituição Federal, acaba beneficiando por conselhos setoriais, como é o caso do
cífica que supera o objeto deste
texto. Vale destacar, no entanto, segmentos de maior renda e restringindo a Fundo da Infância e Adolescência (FIA).
que algumas formulações a
respeito do DLIS sugerem que
aplicação de recursos na educação básica, A elaboração de uma rígida Lei de Res-
a nova geração de políticas cujo impacto sobre o bem-estar social seria ponsabilidade Social redefiniria o desenho da
sociais – como seria o caso do
DLIS – conformaria uma nova mais expressivo”. 9 ação pública no país. Essa lei poderia, assim,
estrutura gerencial do Estado,
a privatização e publicização
Outro aspecto ressaltado ao longo do criar uma estratégia nacional de articulação de
de funções consideradas não documento é o necessário reordenamento do esforços para superação da desigualdade social,
exclusivas do Estado, a satis-
fação do beneficiário como gerenciamento dos programas, em especial o definindo padrões mínimos de investimento e de
cliente do serviço público,
a avaliação de resultados e
de transferência de renda para famílias pobres, resultado e, principalmente, estabelecendo um
controle social de programas além da avaliação sistemática da efetividade amplo sistema de monitoramento e avaliação
e ações governamentais. Essa
formulação aproxima-se, em das transferências. participativa dos gastos públicos.
muito, da concepção de Esta-
do gerencial, ou nova política
Embora esse documento esteja investido Pesquisa realizada pelo Ibase que cria
pública, elaborada no Reino da tarefa de realizar um inventário dos gastos o ranking de transparências orçamentárias
Unido e transposta para o Brasil
pelo ex-ministro Bresser Pereira. públicos federais na área social, transparece uma envolvendo dez países latino-americanos indica
Essa proposição se distancia do
conceito de governança social
forte intenção de redirecionamento político das a insuficiência de informações e mecanismos
porque prioriza os objetivos da iniciativas federais. disponíveis para se acompanhar a elaboração
reforma de Estado na eficácia e
eficiência das políticas públicas, Surpreendentemente, o mesmo fato não dos orçamentos públicos. O ranking foi monta-
e não no aumento de poder
social. Ver Franco, 2003.
ocorre em relação a outros gastos públicos, do a partir de alguns indicadores, criando uma
9 Essa passagem do documen-
como no caso dos gastos com publicidade. escala de 0 a 100. O Brasil figura em terceiro
to do Ministério da Fazenda Os governos federal, estaduais e municipais lugar, atrás do Chile e México, totalizando 50,4
gerou forte reação, tanto do
Partido dos Trabalhadores (PT) consumiram, em 2002, 7,13% de todo gasto pontos.10 Os coordenadores da pesquisa defini-
como da Associação Nacional
dos Dirigentes das Instituições
com propaganda do país, muito acima dos ram como índice razoável o valor 75. Os dados
Federais (Andifes). Dados da gastos públicos com publicidade ocorrido nos disponíveis foram considerados verídicos, confi-
associação contrariam os dados
do Ministério: enquanto 34% Estados Unidos (1,6% do total). Essa distorção áveis, mas incompletos e insuficientes. Também
dos estudantes de universidades
públicas fazem parte dos 10%
não aparece como relevante em nenhum do- foram criticados o acesso e a forma como são
mais ricos da população, nas cumento oficial, justamente porque é condicio- disponibilizadas as informações, limitando-se
universidades particulares esse
índice saltaria para 50%. Na nada pelo prag­matismo e pela necessidade de aos que possuem formação técnica.
universidade pública, segundo
o Exame Nacional do Ensino
construção de opinião pública. Essa seria mais Esse parece ser mais um indicador da
Médio (Enem), 12% dos alunos uma lacuna provocada pela meia lei, a LRF. Ao necessidade de se incorporarem à formulação
possuem renda mensal inferior
a R$ 482; esse índice cai para priorizar o controle fiscal e ao não definir os de uma lei de responsabilidade social meca-
5% no caso das universidades
particulares.
mínimos sociais a serem atingidos pela ação nismos de controle social, de monitoramento
pública, acaba por liberar os agentes governa- e avaliação dos gastos sociais.
10 Os países pesquisados
foram: Chile (61,7 pontos), Mé- mentais em relação aos cortes de gastos para
xico (50,4), Brasil (50,3), Costa
Rica (48,8), Nicarágua (46,3), ajuste orçamentário. Em suma, preservam-se
os gastos administrativos, potencializa-se o Vigilância necessária

18 Democracia Viva Nº 24
Para se contrapor ao Estado-facilitador

Para finalizar essa proposição, indicamos a se- qualitativo, que procurem captar as intenções
guir os contornos do que seria um sistema de subjetivas, o ideário e imaginário das comuni-
monitoramento e avaliação social, elemento dades, além das mudanças de comportamento
central do sistema de governança social a ser social e político, a partir do desenvolvimento
constituído pela Lei de Res­pon­sabilidade Social. de cada etapa de uma ação ou projeto de po­
O desenho aqui apre­sentado se inspira direta- lítica pública.
mente nas elaborações da ONG Visão Mundial Ainda segundo Oakley e Clayton, se o
(Sistema Regional de Monitoreo, Evaluación y objetivo de uma política pública é o empode-
Planeamento; World Vision Partnership Pro- ramento ou desenvolvimento organizacional da
gram Mo­nitoring and Evaluation Standards) e comunidade, os indicadores de cada etapa de
nos sistemas de monitoramento desenvolvidos um projeto são definidos e nítidos:
pela Oxfam/Inglaterra, cujos autores são Pratt • para o monitoramento de resultado, os
Oakley e Andrew Clayton. indicadores devem captar a formação da
Parte-se da necessidade do monito- organização, a construção da capacidade
ramento para medir mudanças qualitativas, de crescimento organizacional, a freqüência
usando metodologia e instrumentos que não e o tipo das atividades organizacionais e as
demandem tempo e possam ser apropriados ações planejadas e executadas;
pela população dos territórios. O próprio • para o monitoramento de efeitos, os in-
processo de monitoramento gera, portanto, dicadores devem captar a emergência e os
empoderamento e controle social. fortalecimentos das comunidades, além do
O monitoramento é contínuo porque é envolvimento crescente da organização em
flexível, adaptando-se às mudanças conjuntu- assuntos vinculados ao desenvolvimento
rais e às avaliações das populações a partir de territorial;
valores específicos e reformatando as ações a • para a avaliação de impactos, os indicadores
partir da experiência concreta de implementa- devem captar a consolidação de organiza-
ção de ações. ções autônomas envolvidas no desenvolvi-
A Tabela 1 auxilia a compreender o que mento territorial.
se mede quando se monitora ou avalia uma Assim, os indicadores devem expressar
política pública: mudanças culturais e de comportamento social
Oakley e Clayton (2003) propõem significativas. A título de ilustração, apresenta-
uma síntese das intenções de todo processo mos a Tabela 2, que foi construída para insti-
de monitoramento e avaliação. Para eles, as tucionalizar um sistema de monitoramento do
intenções devem: orçamento participativo da cidade de São Paulo
a) indicar se um projeto está sendo implemen- (OP-SP).12 A tabela apresenta os indicadores de
tado conforme o planejado; empoderamento, exemplificando mudanças
b) identificar problemas e dificuldades de desejáveis com a prática do OP que podem e
implementação; devem ser captadas pelos indicadores de mo-
c) tratar dos recursos utilizados (prestação de nitoramento e avaliação eleitos.
contas); É possível armazenar os dados a partir de
d) verificar se os pressupostos de cada etapa um gradiente (ou diagrama) que classifica o grau
do que foi planejado são realmente válidos de empoderamento observado. Um exemplo é a
ou relevantes à comunidade beneficiada; adoção de um gradiente a respeito do aumento
e) avaliar se uma ação continua relevante à de redes locais, que podem iniciar com “poucas
comunidade. lideranças locais”, passando por “aumento de
Um dos princípios de um sistema de mo- participação e baixa rotatividade em plenárias
nitoramento para aumento de empoderamento e reuniões temáticas”, chegando à “criação de
de comunidades é a articulação dos processos estruturas permanentes de organização por terri-
de planejamento-monitoramento-avaliação, tório” e finalizando com “formação de redes lo-
integrados num mesmo sistema que se alimen- cais de gestão territorial”. Tal expediente facilita
tam mutuamente. Por isso, a execução de um a análise com maior segurança na interpretação
planejamento deve incorporar elaboração de de dados coletados.
relatórios e amplas discussões e análises com A elaboração de uma Lei de Respon-
participação efetiva das comunidades. sabilidade Social merece uma formulação
Peru (44,5), Colômbia (44,2),
Argentina (44,0), El Salvador
Em projetos que visam ao empode- técnica muito mais sofisticada que a LRF, (40,3) e Equador (30,5).

ramento social, é fundamental a ampliação porque parte de pressupostos mais ousados 11 O autor sustenta que o
terceiro setor, por si só, pode
dos indicadores, priorizando os de caráter e abrangentes. Seu fundamento é a radicali- sucumbir ao autoritarismo de

OUT / DEZ 2004 19


nacional

Critérios para elaboração da Lei


de Responsabilidade Social empoderamento social que avança em relação
Os critérios para elaboração dessa lei devem dar aos instrumentos nacionais de democracia
sustentação para um novo tipo de contrato social. participativa existentes no país (orçamento
Assim, deve envolver e orientar as ações não apenas participativo e conselhos de gestão) porque
do Estado, mas de outras instituições de natureza possui a capacidade de controlar as diretrizes
pública e que desenvolvam projetos em parceria com governamentais, gerir e monitorar políticas,
o Estado, como ONGs, organizações da sociedade integrar demandas sociais num projeto estra-
civil de interesse público (Oscips) e sindicatos. tégico de desenvolvimento e, ainda, promover
A seguir, apresentam-se os quatro princípios a articulação gerencial de vários territórios
que se destacam para constituição da Lei de Res- (como seria o caso de articular instâncias de
ponsabilidade Social. governança social de vários municípios para
• Pagamento da dívida social constituírem um sistema de controle sobre a
Este princípio sugere um contraponto em relação execução da Lei de Responsabilidade Social de
à manutenção de superávits primários para paga- uma macrorregião).
mento de dívidas públicas. Sua efetivação pres- • Construção de sistema de governança social
supõe a construção de indicadores de mínimos O sistema de governança social, já indicado no item
sociais, que elegerão as prioridades sociais de anterior, é composto por comitês de monitoramento
cada território, de micro e macrorregiões e do e avaliação de resultados e conselhos de gestão ter-
país. Os indicadores de mínimos sociais poderão ritorial da Lei de Responsabilidade Social. Trata-se,
sustentar, assim, a definição de metas anuais portanto, de uma nova engenharia política, de
e plurianuais a serem inscritas nos planos plu- gestão das políticas públicas da área social, que se
rianuais e nas leis de diretrizes orçamentárias. orienta pela superação das estruturas especializa-
Para composição dos indicadores, é necessário das e fragmentadas do Estado brasileiro.
articular elementos quantitativos e qualitativos Tal proposição supera, ainda, a noção de par-
de qualidade de vida e capital social, sugerindo ceria entre sociedade civil e Estado no controle e
uma noção de democratização plena, tanto gerenciamento de políticas públicas. Não se pauta
social como política, dos territórios. por uma mera troca de responsabilidades, nem por
• Publicização do Estado substituições de instâncias. Trata-se da criação de
Uma Lei de Responsabilidade Social, pelo seu cará- uma nova estrutura que se instala no interior do
ter integrador e promotor sociopolítico da cidada- Estado. Boaventura Santos já havia proposto
nia brasileira, deve pautar-se pelo acesso direto das a refundação democrática da administração
populações sobre os dados, resultados e avaliação pública que fosse além da crença ingênua no
das metas atingidas em cada instância de governo papel transformador do terceiro setor (Santos,
do país. Deve-se, nesse caso, articular o controle 1999).11 O autor cria, como referência, o con-
técnico em relação à sua execução, com o controle ceito de “Estado-novíssimo-movimento-social”:
social e político. Assim, faz-se necessário construir
um sistema de monitoramento e avaliação social Na busca de uma relação virtuosa entre a
participativo, descentralizado e integrado que lógica da reciprocidade própria do princípio
promova instâncias territoriais participativas da comunidade e a lógica da cidadania pró-
de gerenciamento das políticas sociais. Esse pria do princípio do Estado desenham-se os
sistema deve ser compreendido como parte caminhos de uma política progressista neste
integrante da Lei de Responsabilidade Social. final de século. O Estado-novíssimo-movi-
• Empoderamento social mento-social é o fundamento da orientação
O item anterior sugere que o princípio fundante da de uma luta política que visa transformar a
Lei de Responsabilidade Social é o empoderamento cidadania abstrata, facilmente falsificável e
social. Adota-se, neste caso, a referência política inconseqüente, num exercício de reciproci-
emancipatória das políticas sociais, assim como dade concreta. Mas para que tal luta tenha
a promoção social, em detrimento do caráter alguma possibilidade de êxito é necessário
assistencial, clientelista e meramente protetivo que a tarefa da refundação democrática da
que caracteriza os contornos das políticas administração pública seja complementada
adotadas no país. O empoderamento social pela tarefa da refundação democrática do
assenta-se, por sua vez, na construção de terceiro setor. [...] Abundam experiências
um sistema de governança social, no qual as de promiscuidade antidemocrática entre o
populações beneficiadas participam de cada Estado e o terceiro setor, em que o autori-
etapa de implementação e execução da Lei de tarismo centralizado do Estado se apóia no
Responsabilidade Social: definição dos mínimos autoritarismo descentralizado do terceiro
sociais do seu território, elaboração de metas
setor e cada um deles usa o outro como
anuais e plurianuais, definição de indicadores de
álibi para se des­res­­­pon­sabilizar, perante os
avaliação de resultados e participação ativa no
respectivos constituintes, os cidadãos no
sistema de monitoramento da execução da lei.
caso do Estado, os membros ou as comu-
Na prática, o sistema de governança social
nidades no caso do terceiro setor. (Santos,
Estado ou de mercado, não se sustenta-se por conselhos de gestão territorial
constituindo necessariamente da lei, apoiados por comitês técnicos (que 1999, p. 269)
num agente de reforma demo-
crática do Estado. compõem o sistema de monitoramento de
avaliação social). Trata-se de um mecanismo de
12 As tabelas do OP-SP aqui
apresentadas foram produ-

20 Democracia Viva Nº 24
Para se contrapor ao Estado-facilitador

Tabela 1
Objetos de avaliação e monitoramento de políticas públicas
A variável de medida O que mede Qual indicador
Resultados Esforço Implementação de ações
Efeito Efetividade Uso de resultados e sustentabilidade
Impacto Mudança Diferenças entre situação inicial e final

zação da democracia participativa em nosso *Rudá Ricci


país, para além da justiça social e do equilí-
Sociólogo, doutor
brio dos gastos públicos. Conforma uma nova em Ciências Sociais,
engenharia política e sugere um novo arranjo professor da PUC-
estatal, mais poroso à sociedade civil. É uma Minas e diretor do
ousadia política, portanto, filiada às inovações Instituto Cultiva. É
políticas construídas pela sociedade brasileira consultor do Instituto
no processo de democratização do país dos de Desenvolvimento do
últimos 20 anos. Norte e Nordeste de
Minas Gerais (Idene),
da Emater-MG e da
Coordenadoria do
Orçamento Participativo
da cidade de São Paulo.
<ruda@inet.com.br>

Tabela 2
Exemplo de indicadores de empoderamento do OP-SP
Antes do ciclo de OP Depois do ciclo de OP
Poucas lideranças locais Formação de redes locais de gestão territorial
Dependência política Estruturas de tipo autogestionário territorial
Participação por interesse específico Aumento do capital social
Avaliação impressionista e críticas difusas às Monitoramento e acompanhamento das
ações públicas ações públicas
Apropriação de obras e serviços por parte das Apropriação de obras e serviços por parte
autoridades e lideranças instituídas da comunidade do território
Gestor público como agente estatal Gestor público coletivo
Isolamento político Instâncias e fóruns territoriais permanentes e
capacidade de relacionamento social

Referências bibliográficas OAKLEY, Peter; CLAYTON, Andrew. Monitoramento e avaliação


do empoderamento. São Paulo: Pólis, 2003.
ARRETCHE, Marta. Estado federativo e políticas sociais: OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco.
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AED, 2003. dilemas da reforma municipal no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

OUT / DEZ 2004 21


v a r i e
v
Flávia Mattar
a r i e

Quem avisa amigo(a) é Fundo cidadão Memória viva

A organização Justiça Global de- Partindo de uma idéia do Comitê A Biblioteca Jenny Klabin Segall, do
nunciou ao relator especial sobre Organizador do Fórum Social Mun- Museu Lasar Segall, em parceria com
moradia adequada do Centro de dial, o Ibase está estimulando que a Cinemateca Brasileira, está debru-
Direitos Humanos da ONU, o in- seus(suas) funcionários(as) contri- çada sobre um importante projeto:
diano Miloon Kothari, a operação buam com 0,5% de seus salários, a restauração e a digitalização das
“cata-tralha”, realizada pelas sub- mensalmente, para um fundo de coleções completas das primeiras
prefeituras do Rio. solidariedade. Não se trata de ação revistas brasileiras de cinema, A
Antes que fosse enviado o ofício filantrópica, mas de estímulo à par- Scena Muda (1921–1955) e Cine­
a Genebra, a organização Médi- ticipação ativa. A idéia é propiciar a arte (1926–1942). Com o trabalho,
cos sem Fronteiras (MSF) tentou ida de pessoas de baixa renda para o acervo de 1.820 fascículos, da
encontrar solução doméstica para o V FSM, em Porto Alegre, entre primeira, e de 884 números, da
o problema que afeta a população 26 e 31 de janeiro. segunda, poderão ser consultados
em situação de rua da Cidade Ma- As bases têm estado de fora dos na Web, bem como artigos sobre
ravilhosa: o recolhimento de seus debates nas edições do FSM reali- cinema nacional.
pertences pela Comlurb com a ajuda zadas no Brasil. O coordenador do Essas publicações são os exem-
da Guarda Municipal e acompa- Ibase, Itamar Silva, chama a atenção plos de maior longevidade na im-
nhamento, muitas vezes, da Polícia para a armadilha que a permanência prensa cinematográfica brasileira.
Militar. Mas, apesar do esforço, a de tal situação criaria: “O Fórum Além disso, são os títulos mais
operação ainda não foi suspensa. só tem sentido se conseguirmos representativos dos mecanismos
A iniciativa teria sido criada com integrar a base ao processo. Caso de produção e comercialização
o objetivo de impedir que pessoas contrário, esse outro mundo que de filmes no Brasil. Fontes para a
se fixem nas ruas. A MSF faz algu- o Fórum propõe fica capenga, um recuperação da memória do cinema
mas colocações que mostram que mundo que carrega a exclusão, nacional, da exibição e da crítica
o objetivo vem sendo perseguido reproduzindo o que já vivemos”. cinematográfica brasileira, esses
de maneira equivocada. Denuncia O Ibase também destinou uma documentos possuem valor histórico
que a “perda” de documentos, parte de sua receita para o fun- inegável.
laudos médicos, cobertores, roupas, do, que beneficiará lideranças de O projeto será executado du-
fotografias e demais pertences só comunidades da Grande Tijuca, rante 2005 com a participação de
prejudica a inclusão da população Zona Norte do Rio; da favela Santa diferentes profissionais: pesqui­sa­
de rua nas estruturas públicas. Além Marta, em Botafogo, Zona Sul; e do­­­­res(as), bibliotecários(as), es­pe­­­
disso, o recolhimento de remédios, da Cidade de Deus, na Zona Oeste. ci­­alistas em digitalização, web de­
com a interrupção de tratamentos, As pessoas físicas interessadas em signers, especialistas em infor­má­tica
acarreta problemas em termos de contribuir podem depositar qual- e em conservação de papel. O custo
saúde pública. E lembra que até mes- quer quantia, em nome do Ibase, total é de R$ 400 mil. A maior parte
mo objetos de trabalho estão sendo na conta 6950-7, agência 1629-2, foi aprovada pela Petrobras, mas a bi-
descartados como lixo na operação. Banco Bradesco. blioteca está buscando complemento
Acorda, prefeitura! à verba, o que permitiria a microfil-
Mais informações: rodrigues@
magem dos títulos e reen­cadernação
ibase.br
dos originais.

Tel.: 11 5574-7322
<http://www.museusegall.org.br>

22 Democracia Viva Nº 24
d
d a d e a d e s

Violência de gênero Cultura quebra Merenda turbinada


barreiras
Uma vida sem violência é um direito Estudo elaborado pela Secretaria
nosso! Esse é o slogan de 2004 da Coordenado pelo Grupo Cultural Municipal de Educação de Nova
Campanha Brasileira dos 16 dias AfroReggae e pelo Centro de Es- Hartz, município do interior do
de Ativismo pelo Fim da Violência tudos de Segurança e Cidadania da Rio Grande do Sul, comprovou a
contra a Mulher, que terá início em Universidade Candido Mendes, o redução de 7% da taxa de obesidade
25 de novembro (Dia Internacional Projeto Juventude e Polícia come- e de 5% na desnutrição entre 3.500
da Não-violência contra a Mulher) çou a ser desenvolvido em agosto, estudantes dos ensinos infantil e
e finalizará em 10 de dezembro em Belo Horizonte. Foi idealizado fundamental. O avanço foi possível
(Dia Internacional dos Direitos com o objetivo de melhorar a re- graças à substituição de alimen-
Humanos). lação, muitas vezes estereotipada, tos tradicionais por integrais, que
O objetivo da iniciativa é sen- entre jovens, principalmente das possuem propriedades que não só
sibilizar a opinião pública e con- favelas e periferias, e policiais. auxiliam no combate à desnutrição
tribuir, de forma educativa, para a O projeto aposta que apresen- e à anemia, mas melhoram o desem-
prevenção, punição e erradicação tações musicais e oficinas cultu- penho físico e psicológico.
do problema. Para isso, a campanha rais de percussão, vídeo, circo e A mudança no cardápio ocorreu
pretende inserir o assunto no marco teatro – ministradas por jovens gradativamente, a consolidação se
dos direitos humanos, mobilizar a moradores(as) da comunidade ca- deu apenas depois de um ano e meio.
mídia e cobrar das autoridades e rioca de Vigário Geral nos batalhões Para estimular a aceitação por parte
esferas políticas soluções para a – são importantes instrumentos dos(as) alunos(as), foram promovi-
violência de gênero. para quebrar as barreiras entre os das peças teatrais, gincanas e hortas
A campanha é realizada, em dois grupos. escolares. A merenda integral custa
âmbito internacional, pelo Centro Para difundir o resultado do 50% a mais do que a tradicional. O
Global para a Liderança da Mulher, trabalho – motivando a discussão Fundo Nacional de Desenvolvimento
desde 1991. Mais de 1.700 organi- nacional sobre o tema e o desen- da Educação (FNDE) repassa R$
zações, de aproximadamente 130 volvimento de novas experiências 0,15 por aluno(a)/dia e a prefeitura
países, apóiam a iniciativa. O comitê em outras regiões do Brasil –, complementa com R$ 0,15 por
gestor da campanha no Brasil fica será desenvolvido documentário, refeição para o ensino fundamental.
sob a responsabilidade da Agende exposição de fotos e cartilha. “A Na educação infantil, o município
– Ações em Gênero, Cidadania e expansão da iniciativa caberá ao arca com 80% dos custos, já que
Desenvolvimento. poder público. Nossa missão é fazer são servidas cinco refeições diárias.
o piloto e mostrar os resultados”, O projeto Merenda Escolar
Mais informações:
diz José Junior, coordenador execu­ Integral, de autoria da nutrici­onis­ta
Agende: (61) 273-3551
tivo do Grupo Cultural AfroReggae. Giceli Soares Siebra, iniciado em
agende@agende.org.br
Ainda não há previsão de quando 1999, foi um dos seis apresentados
esse material estará pronto. no 1º Encontro Nacional de Ex­pe­
riências Inovadoras em Alimenta-
<www.afroreggae.org.br> ção Escolar, promovido pelo FNDE,
em meados de setembro.

OUT / DEZ 2004 23


intern
internacional
Miguel Urioste F. de C.*

Bolívia –
da

Não é possível entender a profunda reconfiguração das hegemonias políticas e territo-

riais da Bolívia sem fazer referência ao processo democrático de 1982. A Bolívia vive,

desde aquela época, seu mais longo período de história democrática – 22 anos –, com

uma alternância de partidos sistêmicos no governo, a cada quatro anos. Esta é a etapa

de maior liberdade política de que se tem conhecimento na era republicana. De fato,

o período democrático iniciado em outubro de 1982 abriu um leque de possibilidades

para a construção da cidadania, no decorrer das duas décadas posteriores. A partir desse

momento, a sociedade civil organizada, sindicatos, grêmios, corporações e especialmente

[Tradução: Ana van Eersel]


os partidos políticos e os meios de comunicação tiveram um papel determinante.

24 Democracia Viva Nº 24
acional
Nos últimos anos, esses partidos políticos expro- Outro aspecto importante, no início do
priaram a representação cidadã, enlamearam- desenvolvimento democrático, que deve ser
-se na corrupção e na sinecura, como formas recordado, é o processo de responsabilidades
sistemáticas de assalto ao erário público, e iniciado contra o ditador e ex-presidente Luis
desonraram, até limites inacreditáveis, o exercício García Meza, por um pequeno grupo de advoga-
de servidores e servidoras públicos. Por sua vez, dos, dirigidos pelo deputado Juan Del Granado,
hoje, muitos meios de comunicação – e especial- que, atualmente, é prefeito da cidade de La Paz.
mente as emissoras de rádio e canais de televisão Esse processo finalizou com uma sentença his-
– abusam, de forma extrema, da liberdade de in- tórica – 30 anos de prisão para o ditador, sem
formação, manipulam e desorientam a opinião direito a indulto – e converteu-se em um caso
pública e perderam o sentido de responsabilidade inédito na história de toda a América Latina.
e ética jornalística. Transformaram-se em atores García Meza é o único presidente golpista, ex-
sociais e políticos protagônicos, sem qualquer -general da República, que está preso em uma
controle cidadão. Tudo é válido para aumentar prisão de segurança máxima, onde ficará até o
os índices de audiência. fim de seus dias.
Apesar do papel monopólico e exclu­ A hiperinflação de 8.000%, em 1985,
dente da maioria dos partidos, é necessário acabou com a UDP um ano antes da finalização
ressaltar que o processo de construção da de seu mandato, abrindo as portas para que
cidadania teve uma dinâmica ascendente e foi a cidadania em geral aceitasse o programa de
mar­cado por acontecimentos fundamentais. O ajuste estrutural e de estabilização monetária, que
primeiro deles foi o governo da Unidad Demo­ o governo de Victor Paz Estensoro implementou
crática Popular (UDP), do presidente Hernán em agosto de 1985. Nessa oportunidade, entrou
Siles Zuazo, que teve a lucidez de nunca utilizar em cena uma disposição legal emblemática – o
a força pública para reprimir os movimentos Decreto Supremo 21.060 –, que, sintetizando o
sociais emergentes daquela época. Paradoxal- declínio de uma economia que, até esse momen-
mente, o líder da Central Obrera Boliviana (COB), to, era quase totalmente estatal e baseada nas
Juan Lechín Oquendo, inimigo pessoal de Siles empresas públicas, promoveu o desenvolvimento
Zuazo, levou trabalhadores e trabalhadoras da de uma ortodoxia neoliberal. O principal efeito
poderosa central operária a um grau extremo dessa disposição, no plano monetário, foi imedia-
de polarização, lutando por reivindicações to: a inflação parou bruscamente e, a partir de
trabalhistas que não podiam ser atendidas. As então, a paridade cambial do peso boliviano em
ditaduras anteriores tinham deixado o erário relação ao dólar aumentou gradativamente até
nacional na mais completa falên­cia, e a inflação atingir, 19 anos depois, a relação de oito pesos
monetária foi incubada em gas­tos dispendiosos, bolivianos por um dólar. Paradoxalmente, o peso
especialmente durante o irascível governo do boliviano é uma das moedas mais sólidas e está-
ditador García Meza (1980–1981). Essa atuação veis da região, em um dos países mais pobres e
dos movimentos sociais radicalizados acabava atrasados do mundo.
concordando com os setores mais conservadores
da sociedade boliviana que eram representados,
O “milagre” do ajuste
naquele momento, por uma ampla maioria no
parlamento do Movimiento Nacionalista Revo- Quando, em 1982, o governo da UDP iniciou seu
lucionário (MNR), de Víctor Paz Estensoro, e da mandato, a proporção de ajuda externa à Bolívia
Acción Democrática Nacionalista (ADN), de era praticamente nula. No entanto, a partir da
Hugo Bánzer Suárez. estabilização monetária, em 1985, houve um

OUT / DEZ 2004 25


internacional

aumento notável de recursos financeiros, que dessa forma, um período de “africani­za­ção” no


chegaram a mais de 10% do Produto Interno estilo das relações de cooperação perante um Estado
Bruto de apenas US$ 8 bilhões. A cada ano, boliviano fraco, desmantelado, sem instituições
aproximadamente US$ 800 milhões são outorga- públicas próprias e cooptado, a cada quatro anos,
dos, à maneira de concessão em empréstimos, a pelos partidos políticos.
prazo muito longo ou sob a forma de doações,
cujo objetivo é manter vivo o “milagre boliviano”.
Empobrecimento da população
Enquanto isso, foram criados diversos fundos
rural-indígena
de investimento social, de geração de emprego
eventual, de investimento na in­fra-estrutura edu- A acelerada expulsão migratória do campo em
cativa, de saúde e também alguns serviços bási- direção às cidades, diretamente estimulada pela
cos que modificaram total abertura às importações, sobretudo à de
definitivamente as produtos agrícolas e de alimentos tradicional-
condições materiais mente produzidos pelas populações indígenas e
de muitos serviços camponesas do mundo rural, é a demonstração
públicos. Contudo, mais evidente de que a abertura comercial des-
os gastos habituais truiu qualquer possibilidade de desenvolvimento
de funcionamento no âmbito agropecuário-rural.
desses serviços nun- Por esse motivo, tanto os relatórios sobre
ca puderam atingir desenvolvimento humano, elaborados periodica-
os níveis requeridos mente pelo Programa das Nações Unidas para
para garantir novos o Desenvolvimento (Pnud), como os diferentes
recursos provenien- estudos e diagnósticos do Banco Mundial coin-
tes do Tesouro Geral cidem ao assinalar que a extrema pobreza tem
da nação. Fre­qüente­ se concentrado nas áreas rurais, especialmente
mente, encontram- naquelas mais afastadas das cidades interme-
-se belas escolas nos diárias e dos centros urbanos. Mais de 90%
lugares mais afastados da população rural indígena da Bolívia vive em
do país sem professo- condições de extrema pobreza e tem desenvol-
res ou professoras ou vido estratégias de sobrevivência que combinam
com pequena quanti- diversas iniciativas para criar emprego temporário
dade de estudantes, e complementar a renda familiar, por meio do co-
apesar da força da mércio, da produção artesanal e, especialmente,
inter­culturali­da­de da da venda de sua força de trabalho fora de seu
reforma edu­ca­ti­va i­ni­ lugar de origem. Oficialmente, calcula-se que só
ciada em 1994, que na Argentina vivem mais de 1 milhão de cidadãos
acompanha a modifi- e cidadãs bolivianos.
cação da Constituição Muitos camponeses e camponesas indí-
Política do Estado, de- genas das terras altas abandonam suas comu-
finindo a Bo­lívia co­mo nidades para trabalhar sem nenhuma garantia
um país multi­étnico trabalhista e com salários que oscilam entre US$
e pluricultural. 2 e US$ 3 por dia. A precariedade das economias
Como resul- camponesas do ocidente andino está provocando
tado do sucesso da fluxos migratórios contínuos em direção às terras
“estabilização mone- baixas das planícies e da Amazônia. Essas regiões
tária”, alcançada com enfrentam uma enorme pressão em relação ao
a aplicação do famoso acesso aos recursos naturais e ao controle deles,
Decreto 21.060, a Bolívia foi eleita pela comunidade especialmente no que se refere à terra e à floresta.
internacional como um modelo bem-sucedido que O conflito pelo acesso à terra é agora um dos
devia ser acompanhado, fortalecido e consolidado. principais elementos de confronto social entre
Os organismos multilaterais como o Banco Mundial movimentos indígenas e camponeses sem terra
e o Fundo Monetário Internacional e a cooperação e grandes proprietários de terras improdutivas
bilateral apostaram na Bolívia. Verdadeiros enxames das planícies.
de consultores, assessores, especialistas e coope- A reforma agrária de 1953 eliminou de-
rantes praticamente invadiram o país e, em certos finitivamente o regime de servidão e devolveu
casos, substituíram funções públicas. Começou, a terra às pessoas que legitimamente são as

26 Democracia Viva Nº 24
Bolívia – da recuperação democrática à agonia dos partidos

proprietárias: indígenas e cam­po­ne­ses(as) do Poder local = poder indígena


altiplano e dos vales. Entretanto, essa mesma
Os movimentos indígenas emergentes da Bolívia
reforma agrária construiu uma estrutura de
encontraram, na aprovação da Lei de Participação
propriedade e de produção de dois tipos: mi-
Popular (1994), um instrumento adicional que os
nifúndio no ocidente andino e latifúndio nas
fortalece em sua identidade étnica e territorial e
planícies orientais. A maior parte das planícies
também na reconstituição de suas formas de poder
da Bolívia fora outorgada em propriedade, por
local. Essa medida, a descentralização municipalista
meio de doações, a simpatizantes do regime
com pleno reconhecimento jurídico das autorida-
que estavam no poder no momento ou, tam-
des originárias e das circunscrições territoriais de
bém, como pagamento em troca do apoio aos
suas comunidades, tem despertado um renovado
regimes ditatoriais, especialmente durante a
sentimento de perten­cimento, auto­governo e
ditadura do general Hugo Bánzer, entre 1971
apropriação indígena
e 1978. Bánzer distribuiu cerca de 12 milhões
da instituci­ona­li­dade
de hectares nas planícies da Bolívia. Nas terras
pública local. Mais
baixas, El Chaco e na Amazônia boliviana, o
de mil prefeitos e
conflito pelo acesso às terras está atravessan-
vereadores afirmam
do grandes tensões resultantes de processos
ser indígenas.
contraditórios.
Dos 318 mu-
nicípios que existem
Santa Cruz: a nova hegemonia na Bolívia, 280 são
rurais, e muitos go-
A cidade e o departamento de Santa Cruz
vernantes são prefei-
converteram-se no centro hegemônico do
tos e vereadores de
poder econômico, sustentado basicamente
origem indígena e
pela expansão das plantações de soja, pelo
camponesa. O surgi-
crescimento da pecuária e, de forma menos
mento das lideranças
signi­fica­tiva, pelas plantações de algodão e de
de Evo Mo­­ra­les, liga-
ca­na-de-açúcar. Atualmente, essa localidade
do ao Movimento al
tem importantes campos de reservas de gás Socialismo (MAS), e
natural e é, sem dúvida alguma, a região de Felipe Quispe, li-
mais possante do país, razão pela qual atrai gado ao Movimento
mão-de-obra em virtude das possibilidades Indígena Pachacuti
de emprego. No entanto, justamente nessa (MIP), é o resultado
região, os povos indígenas originários dessas direto da conquis-
terras, sob o amparo da Lei das Terras (Lei ta do poder estatal
Inra), aprovada em 1996, avançam lentamente local por parte da
na conquista de títulos dos vastos territórios sociedade rural orga-
indígenas de propriedade coletiva. Ao mesmo nizada, por meio da
tempo, camponeses e camponesas indígenas aplicação da Lei de
provenientes das zonas altas do ocidente Participação Popular.
literalmente se despencam das montanhas Hoje, pela primeira
e estabelecem assentamentos em qualquer vez na história da
pedaço de terra disponível. Entretanto, essas república, pratica-
terras têm donos ou existem pessoas que se mente um terço dos
atribuem sua propriedade, com documentos representantes nacio-
outorgados pelo Estado de forma pouco clara. nais no Congresso Na-
Essas terras constituem a base do patrimônio cional é indígena. Sua
fundamental da fortalecida, e cada vez maior, presença é uma afronta aos partidos tradicionais
burguesia regional do oriente. De fato, existe, e às oligarquias mestiças que, até pouco tempo,
de forma oculta, nessa região, uma guerra controlavam hegemonicamente o poder político
subterrânea em relação ao acesso à terra e às e econômico. Esses personagens, enfraquecidos,
florestas que coloca em confronto – de maneira intolerantes e racistas, que chegam ao Parlamento
quase irreconciliável – grandes proprietários de em listas de partidos sistêmicos, estão agora
terras, com indígenas orientais e da Amazônia obrigados a compartilhar, discutir e conviver
de um lado e as migrações de colonizadores da com camponeses e camponesas indígenas, que,
região andina (collas) de outro. pela primeira vez, têm a­ces­so de forma direta à

OUT / DEZ 2004 27


internacional

função legislativa. cenário político, social e econômico boliviano. Os


Há cerca de cinco anos, simultaneamente novos poços de exploração estão, justamente, no
ao processo de participação popular municipal meio dos territórios indígenas reconhecidos pela
(1994) e à aplicação da nova Lei de Terras (Inra- nova Lei de Terras. Esses povos apelam para o
1996), tem surgido no mundo rural boliviano uma cumprimento das disposições do convênio 169
forte demanda de apropriação plena dos recursos da Organização Internacional do Trabalho (OIT),
naturais. Se, no século XIX, foi a prata de Potosí e, visando exercer plenamente seu direito de serem
no século XX, o estanho, fica claro que, no século consultados em relação ao apro­veitamento dos
XXI, a forma de aproveitamento dos hidrocarbo- recursos naturais. Não estão dispostos a deixar
netos, especialmente do gás, configurará todo o que aconteça o mesmo que ocorreu com a prata

A rebelião de outubro de 2003


Levando em conta todos os antecedentes men-
cionados, a deposição de Gonzalo Sánchez de
Lozada, em outubro de 2003, foi o resultado de das classes médias profissionais, que sofrem
um conjunto de fatores, entre os quais podemos como nunca uma diminuição absoluta em
sintetizar: seus níveis de renda e bem-estar econômico;
1. a enorme fragilidade e, sobretudo, a ilegi- 3. a percepção cidadã negativa, especificamen-
timidade das alianças parlamentares entre te da enorme cidade indígena-camponesa
o MNR, o Movimento de Izquierda Revo- El Alto, em relação a acordos não muito
lucionaria (MIR), de Jaime Paz, e a Nueva transparentes que foram realizados pelas
Fuerza Republicana (NFR), do ex-prefeito de administrações de Bánzer, Quiroga e Sánchez
Cochabamba, Manfred Reyes Villa, permiti- de Lozada para exportar o recém-descoberto
ram a constituição desse governo com uma gás natural nos “megacampos” da região
esmagadora maioria no Congresso, mas de El Chaco, através dos portos chilenos;
somente em termos aritméticos. Aqueles o lema da campanha antichilena inculcado
que, poucas horas antes, tinham se agredido nas escolas desde a Guerra do Pacífico em
sistematicamente, chegando muitas vezes ao 1879; os conflitos pelo aproveitamento de
extremo do insulto personalizado durante um manancial de água potável que nasce
a campanha eleitoral prévia, apareceram em território boliviano (o manancial Silala) e
governando conjuntamente numa obscena que, por meios artificiais, foi desviado e chega
repartição de cargos públicos e de sinecuras sem que seja pago qualquer tipo de tributo
na administração estatal; até a cidade de Arica; a persistência chilena
2. a persistência de uma profunda recessão eco- de manter em suas fronteiras com a Bolívia
nômica, como resultado das crises anteriores mais de meio milhão de minas antipessoas,
das economias do Brasil e Argentina. A des- transgredindo todos os tratados internacio-
valorização do real em 1998 gerou condições nais; especialmente o lema da campanha a
muito desfavoráveis às exportações bolivia- favor da industrialização do gás antes de sua
nas para o Brasil. O índice de desemprego exportação provocou uma forte coesão dos
aberto na Bolívia chega atualmente a 14% movimentos sociais populares. A utilização da
da População Economicamente Ativa (PEA), força pública, como resposta do governo ao
certamente uma das mais altas da história levantamento popular de outubro, teve como
boliviana. Não há trabalho. Essa situação resultado um cruel massacre de 59 pessoas.
atinge não somente camponeses e cam-
ponesas indígenas ou ex-operários(as) que
perambulam pelas ruas em busca de qualquer
fonte de renda, mas também amplos setores

e o estanho. tucional, tinha conseguido um frágil ambiente de


tolerância e de relativa paz social. Seu governo
não possui representantes no Parlamento, a
Os primeiros seis meses de
estrutura do Executivo não se sustenta em
Carlos Mesa
nenhum partido político, e o presidente não
Nos primeiros seis meses de governo, de outubro conseguiu modificar nenhuma das cotas de
de 2003 a abril de 2004, o presidente Carlos cargos dos partidos do regime anterior que
Mesa, que subiu ao poder por mandato consti- monopolizam a administração pública.
Em meio a todo esse complexo cenário,

28 Democracia Viva Nº 24
Bolívia – da recuperação democrática à agonia dos partidos

a persistente exigência da embaixada dos Esta- Em 1937, nacionalizou os campos da Standard


dos Unidos em relação à erradicação forçada Oil e, em 1969, os da Bo­livian Gulf Com­pa­ny,
das plantações da folha da coca tem um papel pa­gando as correspondentes indenizações pelas
preponderante. Esse é um aspecto altamente ex­pro­priações. Contudo, nas duas oportunidades,
delicado, especialmente para a população in- apesar de os oleodutos já terem sido construídos
dígena, que vive desse cultivo nas regiões de e os mercados estarem assegurados, os valores
Chapare, em Cochabamba, e dos Yungas, em La que deviam ser pagos pelas indenizações foram
Paz. Mesmo que a superfície das plantações de pequenos. Hoje, a situação é completamente
folha de coca tenha diminuído dramaticamente diferente. Se a Bolívia quisesse nacionalizar o gás,
nos últimos anos – estima-se que atualmente não utilizá-lo e aproveitá-lo para si própria, precisaria
existem mais do que 20 mil hectares cultivados pelo menos de US$ 5 bilhões para que a expro-
com coca, dos quais 12 mil são legais, de acordo priação rendesse frutos econômicos dentro de
com as disposições vigentes –, a pressão norte- quatro anos. Por um
-americana para utilizar a força pública e reprimir lado, as empresas
as pessoas que cultivam a folha de coca constitui estrangeiras teriam
uma das principais ameaças à estabilidade do que ser indenizadas
governo do presidente Mesa e à própria demo- por inversões que bei-
cracia boliviana. Tanto para os Estados Unidos ram os US$ 3 bilhões
como para as elites tradicionais da Bolívia, é – sem se levar em con-
simplesmente impossível admitir que um indí- ta suas expectativas de
gena, ex-dirigente cocalero e atualmente líder lucros futuros –; por
de amplos setores nacionais – Evo Morales – outro lado, teriam de
alcance uma importante ascensão eleitoral nos ser investidos outros
comícios municipais de dezembro deste ano e US$ 2 bilhões para a
se projete como possível vencedor das futuras instalação de dutos,
eleições presidenciais de 2007. usinas de bombe-
Por sua vez, as empresas petroleiras, amento e estações
que realizaram importantes investimentos na d e l i q u e f a ção do
exploração de hidrocarbonetos, com base nas gás para exportação.
normas legais de capitalização que o governo Nesses valores men-
de Sanchez de Lozada impulsionou no primeiro cionados, não estão
período de governo (1993–1997), exercem incluídos os grandes
enorme pressão para manter suas expectativas investimentos que
de lucros com a venda direta de gás natural deveriam ser realiza-
liquefeito (GNL) para mercados internacionais. dos para o aprovei-
A Bolívia tem atualmente mais de 55 quinti­ tamento industrial.
liões1 de pés cúbicos de gás de reservas dadas Esses US$ 5 bilhões
como certas, e é provável que esse valor possa equivalem a mais de
tornar-se facilmente o dobro se as explorações 60% do PIB. Em con-
continuarem. De fato, a Bolívia converteu-se, seqüência, técnica e
da noite para o dia, numa potência de gás no financeiramente, a
continente e é o centro de atenção dos países nacionalização do gás
vizinhos, empresas transnacionais e mercados – como foi realizada
de ultramar, especialmente a Califórnia e o em períodos anterio-
México, ávidos de energia pura e barata. res – atualmente é
inviável.
O governo do
Nacionalização do gás
presidente Mesa, no início do mês de maio, sub-
Em outubro de 2003, o lema da campanha meteu à consideração da cidadania um projeto
dos setores populares era “não à exportação de de lei de hidrocarbonetos, que volta a criar a em-
gás pelos portos chilenos”. Em seis meses, esse presa estatal de petróleo, Yaci­mi­en­tos Petrolíferos
lema mudou, e o elemento centralizador dos Fiscales Bolivianos (YPFB), e, sem consultar com
protestos sociais do mês de maio de 2004 foi a antecedência as empresas petroleiras, aumentou
“nacionalização do gás”. progressivamente os impostos em até 50%. As
A Bolívia nacionalizou os hidrocarbonetos empresas transna­cionais rejeitam esse aumento,
em dois momentos singulares do século XX. ameaçam paralisar suas operações e impugná-lo 1 55 seguido de 18 zeros.

OUT / DEZ 2004 29


internacional

perante tribunais internacionais. No entanto, os Assim, como ocorreu em 1985, os se-


movi­mentos sociais mais radicais exigem a na- tores da vanguarda social entraram no jogo da
cionalização imediata das empresas estrangeiras embaixada dos Estados Unidos, das empresas
sem nenhuma indenização, o que significaria o de petróleo e dos setores mais conservadores
isolamento da Bolívia no contexto internacional. dos terras-tenentes do oriente. Esses setores de
Alguns movimentos sociais radi­calizados poder já se manifestaram, afirmando que o gás
lançaram, no fim de abril, o le­ma da greve geral deve ser exportado, o mais rapidamente possível,
indefinida e o bloqueio dos caminhos em todo através de qualquer porto, e também rejeitaram
o país. Esse é um lema conhecido e utilizado a convocatória ao referendo vinculante, além
quando se quer depor um governo. Alguns de se oporem abertamente à realização da
setores muitos bem organizados e controla- futura Assembléia Constituinte. O governo do
dos por movimentos presidente Carlos Mesa rompeu o equilíbrio que
de ultra-esquerda, tinha conseguido manter durante meio ano,
como o magistério, até o mês de abril, e decidiu formar um novo
algumas universida- gabinete, que inclui destacados profissionais
des e setores mi- comprometidos com uma visão humanista, de
neiros, exigiam, e eqüidade social e econômica e de defesa de in-
continuam exigindo, dígenas. Pelo Decreto Su­premo, convocou para o
a nacionalização do referendo sobre o gás no dia 18 de julho, diante
gás ou a renúncia da negativa dos partidos políticos de aprovar a
do presidente. Esse lei respectiva. (Essa lei foi aprovada poucos dias
lema de setores antes da realização do referendo.) O governo
minori­tá­rios, porém do presidente Mesa pendeu sutilmente para
muito ativos, costu- a esquerda. O dirigente Evo Morales fez um
ma ser sustentado chamado à sensatez e à preservação do regime
por análises pouco democrático.
sérias, elaboradas Enquanto isso, tem surgido, de maneira
por instituições não- tímida, dispersa e sem liderança visível, uma
-especializadas no corrente cidadã que pretende mobilizar-se bus-
assunto, que desa- cando conservar cenários democráticos para o
creditam o projeto exercício pleno da cidadania em termos de res-
de lei do governo e o peito à lei, à democracia, à convivência cidadã
acusam de dar conti- e à justiça social. Não se pode saber ainda se
nuidade ao anterior. esse movimento conseguirá traduzir em apoio
político a simpatia de 70% da população que
ainda concentra o presidente Carlos Mesa.
Novo papel
protagônico
das Forças Greve geral indefinida
Armadas
As relações entre o Chile e a Bolívia chegaram
Em 7 de maio, o Tri- a um ponto de enorme deterioração, e a cam-
bunal Constitucional panha eleitoral chilena para presidência inclui,
ditou sentença a fa- pela primeira vez em sua história, o debate em
vor de familiares das relação à demanda marítima da Bolívia e seus
vítimas nas revoltas requerimentos energéticos para responder à
do motim po­licial de sua crescente atividade produtiva e industrial.
fevereiro de 2003 e Aparentemente, o presidente Lagos já tomou a
estabeleceu que os militares envolvidos nas mortes decisão de não depender do aprovisionamento
de civis devem ser julgados pela justiça ordinária, e de gás de nenhum dos países vizinhos, mesmo
não pelo Tribunal Militar. O alto comando militar da Argentina. O Chile estaria disposto a comprar
desacatou a sentença do Tribunal Constitucional gás de países asiáticos pagando um valor três
e, pela primeira vez em 22 anos de democracia, vezes superior ao que poderia negociar com a
publicou um pronunciamento de índole eminente- Bolívia ou a Argentina.
mente política. Após 22 anos de vida estritamente As reivindicações sociais são rigorosa-
institucional, as Forças Armadas converteram-se mente setoriais e pontuais, em um ambiente de
temporariamente em atores políticos centrais. generalizado desacato à autoridade e às normas

30 Democracia Viva Nº 24
Bolívia – da recuperação democrática à agonia dos partidos

vigentes. Não só os movimentos sociais estão O dirigente indígena Felipe Quispe, por
fragmentados, mas também o Estado, suas sua vez, não conseguiu generalizar o bloqueio
instituições e seus operadores. Há muitos anos, dos caminhos como tinha feito em 2002,
os movimentos sociais vêm sendo acostumados, mesmo quando um de seus seguidores, Rufo
pelas esferas governamentais, a pensar que a Calle, manteve a região do altiplano norte,
única forma de obter “conquistas sociais” é por especialmente a estrada de exportação dos
meio da pressão e do bloqueio dos caminhos. portos do Pacífico, completamente paralisada
Existem somente dois projetos políticos durante duas semanas.
com uma visão de Estado e de sociedade. Por Ao mesmo tempo, os setores mais con-
um lado, o autodenominado movimento Nación servadores da sociedade boliviana, relacionados
Camba (ou da meia-lua, porque inclui todos os a movimentos cívicos do oriente, proclamavam
departamentos e províncias andinas), que aglu- tentativas separatistas e a formação de go-
tina setores do oriente e do Chaco boliviano, e, vernos autônomos.
por outro, a proposta de reconstituição Aymara Provavelmente, essas
del Collasuyo no altiplano de La Paz. Essas duas iniciativas procura-
propostas nacionalistas, racistas e conservadoras vam não só a ruptura
baseiam-se na exclusão, na rejeição e na negação da ordem institu-
do “outro”, de quem é diferente. Nenhum dos cional democrática,
movimentos era favorável ao referendo sobre o gás como também da
nem à realização da Assembléia Constituinte no própria configuração
próximo ano. Essas posições têm radicalizado os esta­tal boliviana.
comportamentos da sociedade boliviana até graus No mês de
de intolerância extrema. junho, o presidente
Maio de 2004 foi um mês de definições Mesa enfrentava o
que marcaram um novo rumo da história bo- momento mais pre-
liviana. O governo do presidente Carlos Mesa cário de sua gestão
não foi deposto pela ação combinada das de governo. Os bo-
forças de extrema esquerda que coincidem atos sobre um gol-
com os interesses das empresas de petróleo, pe de Estado eram
da embaixada norte-americana e dos grupos permanentes, e as
tradicionais de poder. ocupações de terras
li­deradas por outro
diri­­g ente obscuro,
Conspiração contra o referendo do
Ángel Duran, multi-
gás
plicavam-se por to­
Obviamente, não existem provas das conspira- do o país. Muitos
ções. Analisando em detalhe, é possível chegar prefeitos, questiona-
à conclusão de que a declaratória de greve geral dos pelo eleitorado,
indefinida, em maio de 2004, foi o ponto cul- iniciaram protestos
minante de uma conspiração contra o governo exigindo o descon-
do presidente Carlos Mesa. Essa greve, decretada gelamento de suas
pela Central Obrera Boliviana, dirigida por Jaime contas. Em 15 de ju-
Solares – um líder obscuro, conhecido por sua nho, no mu­nicípio de
vinculação com a ditadura do general García Avo-Avo, o prefeito
Meza –, foi o centro de confluência das ações foi seqüestrado, tras-
desestabilizadoras dos setores mais duros do ladado pa­ra diversas
governo deposto em outubro de 2003. Gru- comunidades do al-
pos ultra-radicais, trotskistas e do magistério tiplano, tor­turado, assassinado e, finalmente,
conseguiram paralisar as atividades em toda a queimado e exposto aos meios de comunicação
educação fiscal boliviana durante três semanas. aos pés do monumento a Tupak Katari.
No entanto, cometeram o gravíssimo erro de As ameaças de queimar as urnas, boi-
seqüestrar um vice-ministro de Educação de cotar o referendo, exigir a nacionalização dos
origem indígena, vexá-lo e humilhá-lo através das hidrocarbonetos, entendida como confisco
emissoras de televisão do país inteiro, gerando sem indenização, a demanda da renúncia de
uma grande rejeição da cidadania em relação Carlos Me­sa, as inúmeras sugestões para que
a essa greve. as eleições fossem antecipadas e a sistemática

OUT / DEZ 2004 31


internacional

ação entorpecedora dos partidos sistêmicos Dos 4 milhões de pessoas regis­tra­das,


hegemô­nicos no Congresso faziam parte do participaram desse primeiro referendo mais de
dia-a-dia. 2,5 milhões, ou seja, mais de 60%, e a opção
Em 14 de julho, dois dias antes das fes- “SIM” ganhou nas cinco perguntas, em pra-
tas de efemérides da cidade de La Paz e quatro ticamente todo o país. As três primeiras, que
dias antes da realização do referendo, o Palácio se referiam à ab-rogação da lei de hidrocar-
de Governo recebeu três visitas de alto nível. bonetos do presidente Sanchez de Lozada,
Os três emissários do governo norte-americano à recuperação da propriedade dos hidrocar-
coincidiam numa mensagem: “Presidente Mesa, bonetos pelo Estado e à nova fundação de
tem de tomar cuidado e proteger sua vida porque Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos,
existe uma conspiração e pretendem assassiná-lo obtiveram uma resposta positiva de mais de
na noite do desfile 85%, ao passo que as perguntas 4 e 5, relativas
de tochas, no dia 16 à utilização do gás como recurso estratégico
de julho”. Com esse para a negociação da recuperação marítima da
a­núncio, colocava-se Bolívia e sua exportação depois de satisfazer o
em funcionamento consumo interno, obtiveram uma maioria de
a tentativa final para 55% dos votos.
impedir o referendo Às 21 horas de 18 de julho, o país já
e, dessa forma, depor sabia que a participação cidadã fora maciça, que
o presidente Mesa, a maioria da população votara por uma opção
colocando, em seu mais afastada dos extremos e, sobretudo, que
lugar, o presidente da respaldava ativamente a gestão do presidente
Câmara de Senado- Mesa. Nos fatos, o referendo constituiu um
res, Hormando Vaca plebiscito, que transformou a percepção das
Di­e z, do MIR, para pesquisas relacionadas com a aprovação da
que convocasse as gestão presidencial em um voto explícito e direto
eleições em dezem- da maioria de bolivianos e bolivianas que deram
bro do mesmo ano. apoio ao governo e sua política.
Somente a fir- Os grandes derrotados da fracassada
me convicção do presi- conspiração foram algumas empresas de pe-
dente, e especialmente tróleo e líderes mais conservadores do oriente
de seu ministro de boliviano. Os mais vencidos, porém, foram os
governo Alfonso Fer- setores mais radicais dos movimentos sociais.
rufino, impediu o su- Antes do decorrer de 24 horas da
cesso da conspiração. publicação dos resultados oficiais, proporcio-
O presidente e seus nados pelo Tribunal Nacional Eleitoral – que,
colaboradores mais durante todo esse tempo, desenvolveu um
achegados decidiram papel impecável, independente e autônomo
arriscar tudo e levar –, o governo tomou duas iniciativas impor-
adiante a realização tantes. Por um lado, transcreveu o texto das
do referendo. perguntas do referendo a um novo projeto de
lei de hidrocarbonetos, respeitando, assim, seu
caráter vinculante e enviou-o ao Congresso,
Participação
solicitando-lhe que antecipasse suas sessões
cidadã maciça
para tratar da lei; por outro lado, nomeou os
No dia 18 de julho, magistrados da Corte Suprema, do Conselho
pela manhã, milha- da Judicatura e do Tribunal Constitucional e
res de cidadãos e cidadãs compareceram para Fiscal, tarefa que, há dez anos, o Congresso
responder sobre o destino do gás. As pessoas Nacional não cumpria. O presidente também
iam até os locais de votação com enorme in- ratificou o convênio de exportação de gás para
certeza, receio e in­segurança. Na cidade El Alto a Argentina.
– epi­centro da rebelião popular de outubro de
2003 –, a presença cidadã foi maciça e alteños
Aprovação da nova lei de
e altenãs, habitantes da cidade, expulsaram,
hidrocarbonetos
com gritos e pedradas, dirigentes radicais, como
Roberto de la Cruz. A agenda que o governo tem pendente inclui:
aprovar uma nova lei de hidrocarbonetos, guiar

32 Democracia Viva Nº 24
Bolívia – da recuperação democrática à agonia dos partidos

as eleições municipais do mês de dezembro, Certamente, muitos desses 800 requerimentos * Miguel Urioste
promover a instalação de uma Assembléia não poderão cumprir com as exigências legais F. de C.
Constituinte para o ano 2005, reduzir o déficit em um prazo tão curto (6 de setembro), mas Diretor da Fundação
fiscal de 9%, criar novas fontes de emprego e também é provável que mais de uma centena Tierra, presidente da
reativar a economia nacional. dessas agrupações consiga ser reconhecida diretoria da Asociación
Até o momento, o cenário está sendo legalmente e postule seus próprios candidatos. para la Ciudadania

dominado pelo debate sobre o caráter da Lei A Lei de Convocatória à Assembléia Apostamos por Bolívia

de Hidrocarbonetos que o Parlamento deverá Constituinte do ano 2005, segundo o crono­


aprovar nas próximas semanas. O movimento grama proposto pelo Tribunal Nacional Eleitoral,
MAS, de Evo Morales, contesta o projeto de deverá ser promulgada em outubro de 2004.
lei do governo porque considera que não re- No entanto, tudo leva a pensar que os partidos
flete os resultados do referendo. Evo Morales políticos que controlam o Congresso esperarão
é favorável à nacionalização, na tentativa de até conhecer os resultados da eleição municipal
recuperar uma parte de sua base social de para, só então, aprovar a Lei de Convocatória
esquerda. Contudo, a atenção dos partidos à Constituinte nos termos que forem mais
está especialmente concentrada ao redor das convenientes.
iminentes eleições municipais do próximo dia Os povos indígenas, em especial, estão
5 de dezembro. Com a aplicação da nova demandando uma ampla participação como
Constituição Política do Estado, reformulada assembleístas em função de cotas étnicas. O
no início do ano, houve mais de 800 reque- censo demográfico e habitacional de 2002
rimentos de agrupações cidadãs e de povos determinou que 62% da população boliviana
indígenas solicitando a apresentação de can- se define como indígena. Várias instituições,
didatos independentemente dos partidos. A comissões parlamentares, movimentos sociais
Bolívia está viven­ciando uma “revolução da e centros de investigação ensaiam complicadas
cidadania”, que questiona novamente o sistema fórmulas para equilibrar demandas étnicas re-
político tradicional e interpela os partidos na gionais, corpo­rativas e cidadãs, objetivando sua
busca de uma representação cidadã mais direta. futura participação na Assembléia Constituinte.

Uma associação para a cidadania


Apostamos por Bolívia é um projeto conjunto da Asociación para la Ciudadania,
entidade formada pela Acción Cultural Loyola (Aclo), Centro de Promoción de la
Mujer Gregoria Apaza, Centro de Investigación y Promoción del Campe­sinado
(Cipca) e Fundación Tierra, quatro organizações não-governamentais de desenvol-
vimento (ONGDs) que têm o interesse expresso de apoiar o processo da Assembléia
Constituinte.
Os objetivos de Apostamos por Bolívia são: contribuir para que homens e
mulheres da população camponesa e indígena, rural e urbana do país possuam
informação suficiente para participar, dentro das melhores condições, no processo
da Assembléia Constituinte; que os temas centrais dos direitos camponeses e indí-
genas formem parte da agenda; que sua representação seja adequada e legítima e
que constituintes, camponeses e indígenas eleitos(as) contem com o apoio técnico
necessário que potencialize seu papel como porta-vozes de seus direitos.

Para saber mais:


<http://www.ftierra.org/>
<http://www.cipca.org.bo>

OUT / DEZ 2004 33


MUNDO P ELO MUNDO PE
Jamile Chequer
Colaboração: Maurício Santoro

Terra, preconceito Aproximação sul–sul Perspectivas urbanas


e política
O projeto Diálogos entre os Povos Até o ano 2030, 60% da população
A Organização International Crisis Africanos e Latino-americanos foi mundial estará vivendo nas cida-
Group (ICG) divulgou recentemente lançado oficialmente no início de des, diz o relatório The state of the
informações a respeito de tensões so- setembro em Johanesburgo, África world´s cities 2004–2005 divulgado
bre terra e raça no sudeste da África. do Sul. Contou com a presença pelo Habitat durante o segundo
“Tensões que já contribuíram para de 50 pessoas de 40 organizações Fórum Mundial Urbano, ocorrido
o colapso político e econômico de 14 países dos dois lados do entre os dias 13 e 17 de setembro.
no Zimbábue estão começando a Atlântico, como Brasil, Uruguai, Publicado a cada dois anos, o docu-
existir, também, na África do Sul”, Angola, Mawi, Moçambique, entre mento serve de ferramenta e manual
declarou a organização. outros. A coordenação foi do Ibase de como as cidades estão crescendo,
O documento Blood and soil é e do Alternative Information and tanto positiva como negativamente.
fruto de pesquisa de campo, que Development Centre (AIDC). O O documento explica que quase
abrange desde trabalhadores(as) objetivo é construir pontes sobre todo o crescimento populacional
em fazendas a pessoas do quadro o Atlântico, ligando os movimentos será absorvido pelas áreas urbanas
governamental, examina os desafios sociais e organizações da sociedade dos países menos desenvolvidos.
da política da terra e redistribuição civil das duas regiões. Mas os frutos da globalização –
em ambos os países e os apresenta Durante o seminário de lança- cidades multiculturais, crescimento
dentro de contextos político, social, mento, foram debatidas estratégias econômico, maior longevidade – estão
econômico e histórico. Aponta que de ação comum em questões traba- sendo rapidamente contrabalançados
os(as) perdedores(as) nesse “escânda- lhistas, de gênero, meio ambiente, pelos aspectos negativos da urbaniza-
lo internacional” são os(as) negros(as) comunidades rurais, comércio e ção rápida: aumento da pobreza, di-
do Zimbábue – em qualquer situação, indústria. Outro ponto discutido foi a minuição da rede de segurança social
seja trabalhando em fazendas, na necessidade de que América Latina e e expansão dos bolsões de pobreza,
oposição e aqueles(as) que não fazem África se conheçam melhor. que, de acordo com o relatório, serão
parte da elite. O Diálogos aproveita o fato de o lugar de moradia de 2 bilhões de
Algumas considerações são feitas que, em junho, estabeleceu-se a pessoas até 2020.
para ambos os países. Por exemplo, aliança Ibsa – Índia, Brasil e África Um aspecto discutido foi a imi-
para o Zimbábue, o documento si- do Sul, um bloco trilateral sul–sul gração – os países desenvolvidos
naliza a necessidade urgente de uma para o fortalecimento da capacidade foram os destinos da maioria das 77
Comissão da Terra com um mandato política nas negociações comerciais milhões de pessoas que imigraram
claro e tempo para ter resultados. “As com os países ricos do Norte. do Leste Europeu e das Repúblicas
partes interessadas não devem se Um novo encontro foi marcado. Soviéticas (33 milhões), Ásia e
iludir achando que um acordo com a Será no Fórum Social Mundial 2005, Pacífico (23 milhões) e África (21
elite apenas vai resolver o problema que ocorrerá em Porto Alegre de 26 milhões) – e planejamento urbano.
da terra”, diz o documento. E sobre a a 31 de janeiro. Também foi descutida a necessida-
África do Sul, o conselheiro especial de de produzir cidades inclusivas,
da ICG, John Prendergast declarou quando em alguns lugares os(as)
que “ainda há tempo para uma imigrantes estão condenados(as)
reforma agrária e para impedir no a viver em bairros separados. “O
futuro a violência e a insegurança planejamento urbano pode ser a base
relacionadas com a terra”. para uma cidade decente”, disse a
diretora-executiva do UN-Habitat,
O documento está disponível em
Anna Tibajuka, em entrevista à IPS.
<www.icg.org>

34 Democracia Viva Nº 24
LO MUNDO P ELO MUNDO P ELO MUNDO

Antena em Porto Alegre Contra-espetáculo De olho no Chile

Quem estiver fazendo as malas para O Fórum Social Chileno, que acon- Santiago do Chile é a Capital Ame-
o Fórum Social Mundial 2005, em tece entre 19 e 21 de novembro, ricana da Cultura este ano. A idéia,
Porto Alegre, pode aproveitar para vem como um contra-espetáculo que nasceu em 1997, está dirigida
chegar mais cedo. O Fórum Social à reunião do Conselho Econômico aos países das Américas e tem o
das Migrações que ocorrerá nos dias Ásia-Pacífico (Apec). “No encontro objetivo de ser um instrumento de
23 e 24 de janeiro, tem nessa edição estarão reunidos os países mais po- integração interamericana a partir do
o lema “Travessias na De$ordem derosos dessa parte do planeta, que, âmbito da cultura, contribuir para um
Mundial”. em conjunto, produzem mais de melhor conhecimento entre os povos
O assunto merece atenção cada 50% da riqueza mundial”, denuncia do continente americano, respeitando
vez mais delicada, afinal, em 1990, a organização do Fórum. sua diversidade nacional e regional.
o número de migrantes era de 90 O Fórum pretende ser um espaço Quer destacar, ao mesmo tempo, o
milhões de pessoas. Hoje, são mais aberto, participativo e democrático patrimônio cultural comum e promo-
de 175 milhões. “Se considerarmos para que se conheça, compartilhe e ver as cidades nomeadas como Capital
o volume de recursos financeiros se debata os problemas do país e se Americana da Cultura no continente
que enviam para seus países, nós possam elaborar e propor caminhos americano e no resto do mundo. A
nos daremos conta não somente da e alternativas que tragam a possibi- idéia também visa estabelecer novas
dimensão do fenômeno migratório, lidade de um Chile melhor, baseado pontes de cooperação com a Europa,
mas em especial da pertinência da em um modelo econômico e susten- o outro único continente que tem
realização de um Fórum Social tável que respeite a diversidade e estabelecida a iniciativa das capitais
sobre as migrações”, explica-se no inclua todo o povo chileno. culturais.
site do evento. Como o encontro da Apec terá O delegado no Brasil da orga-
Além disso, só de pessoas refu- a presença do presidente dos Es- nização da Capital Americana da
giadas o planeta contabiliza mais de tados Unidos, George W. Bush, o Cultura, Mario Vendrell, diz que
16 milhões, e cerca de 25 milhões de tom da organização do Fórum é de os benefícios da iniciativa para
pessoas que fugiram de desastres natu- indignação. Primeiro, porque não a cultura são muito importantes:
rais, e da violência e estão deslocadas poderão se manifestar pelas ruas “Permite que toda a cidade e o país
internamente em seus países e não em virtude do aparato de segurança possam se sentir partícipes de um
são consideradas refugiadas. que envolve essa visita. “Não é mesmo projeto comum que aumente
Algumas propostas de temas a possível que o Chile receba com a coesão social e a auto-estima da
serem debatidos pelo Fórum são: honras um homem que representa a população. Possibilita o resgate e a
ética e migrações no contexto mun­ dor de pessoas inocentes, devastadas valorização do patrimônio cultural
dial, migrações e a guerra na or­dem pela intervenção militar amparada em material e imaterial e o desenvol-
mundial e impactos da globalização premissas que não podem ser susten- vimento dos setores educacional,
na redistribuição espacial da popu- tadas com coerência”, argumentam. desportivo, artístico e urbano”.
lação. As inscrições já estão abertas A próxima cidade foi anunciada
As inscrições para o Fórum
e podem ser feitas pelo site <www. em 29 de outubro: Guadalaraja, no
Chileno estão abertas no <www.
migracoes.com.br>. O processo México. Podem ser candidatos os ter-
forosocialchileno.cl>
de cadastramento começa em 22 ritórios dos países da América. Para
de janeiro, à tarde, na Rua Barros isso, é preciso preencher o formulário
Cassal, 220 – Porto Alegre, RS. de candidatura, solicitado pelo e-mail
Quem colaborar com R$ 10 recebe <info@cac-acc.org>
uma bolsa com o material do Fórum.

OUT / DEZ 2004 35


ENTRE Entrevista
Por Iracema Dantas e AnaCris Bittencourt
Colaborou: Maurício Santoro

VISTA
Nina Pacari
A equatoriana Nina Pacari é líder do movimento indígena Pachakuti e
dirigente da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador
(Conaie). Dona de uma trajetória que começou ainda na juventude,
como militante e advogada popular, Nina integrou durante seis
meses o ministério de Lucio Gutierrez, presidente do Equador. “Não
nos aliamos a Gutierrez depois da vitória, participamos de comum
acordo no processo eleitoral, ganhamos e, por isso, formamos parte
do governo. Mas, quando o aliado não cumpre com o prometido,
nós somos definitivamente partidários da ruptura.”
Como ministra das Relações Exteriores, viveu experiências
que ajudam a aprofundar o debate sobre alianças da
sociedade civil organizada com governos. “É preciso estar
consciente do desgaste, dos custos políticos que existem
numa parceria. Grave seria pensar que poderíamos sair
imaculados. Se tivéssemos um aliado razoavelmente
disposto a cumprir com o combinado, com mais
visão, mais projeto político, haveria uma grande
mobilidade social, seria a opor­tunidade para gerar
as mudanças”, analisa.
Nina concedeu esta entrevista à Democracia Viva durante
o Fórum Social das Américas, que ocorreu em julho, em
Quito, no Equador. Sobre o processo Fórum Social Mundial
(FSM), propõe: “Creio, sim, como propõe o FSM, que um
outro mundo é possível. E oxalá seja possível, para
que o adotemos e para que ele permaneça nas
esferas do poder. E me pergunto: assim
como há uma globalização de um fun­da­
mentalismo econômico, por que não
globalizar a tarefa social?”.

36 Democracia Viva Nº 9
24
A senhora nasceu em Quito? Chimborazo, que fica no centro do Equador
Nina Pacari – Não. Nasci na província de e tem 73% de população indígena.
Imbabura, no norte do Equador. Toda minha Como foi essa experiência?
vida juvenil e estudantil foi passada nessa Nina Pacari – Quando fui trabalhar como
província. Vim para Quito no fim da década advogada, havia sempre a vinculação com
de 70 para estudar Direito na universidade. Na as organizações indígenas. Somos um povo
época já existia a Ecuarunari [Confederação de que trabalha unido, o que permitiu que con-
Povos da Nacionalidade Quíchua do Equador] tinuássemos com todas as reivindicações de
e também uma outra organização que acabaria povos, de nacionalidades, de recuperação de
por dar origem à Conaie. Logo me envolvi com territórios, olhando para além do horizonte dos
essas instituições e me integrei aos debates da povos indígenas, a fim de poder traçar uma
época. Depois que me diplomei, mudei-me para proposta de projeto político nacional.
a região mais central do país e passei a atuar, Foi um trabalho paulatino com a identi-
já como integrante da Conaie, na defesa das dade dos povos. Em nossa organização não
terras e dos direitos sociais; eu era uma advo- somos uma agremiação nem uma associação
gada que defendia o setor popular, mormente de camponeses lutando apenas pela terra,
o indígena. Mas por conta das nossas normas, tampouco artesanal. Não é uma agre­m iação
nossa legislação, o que eu fazia era também nem um sindicato; é uma organização que
lutar para que a resolução dos problemas não parte de sua identidade como povo que teve
dependesse apenas das esferas das cidades e uma continuidade histórica desde antes da
das autoridades. Então eu atuava para que os época da colônia. Agora procuramos fazer
problemas fossem resolvidos na própria comu- com que o princípio da diversidade cultural
nidade, ou seja, para fortalecer as comunidades, seja reconhecido e possa, ao mesmo tempo,
e não ser apenas uma advogada que gosta de ser exercido num ambiente de entro­s amento
angariar casos e seguir avante com outro pro- cultural. Esperamos que isso permita pelo
cesso. Além disso, ainda que fosse inevitável menos construir novas propostas para os
estar nos tribunais de justiça, também dava povos indígenas e para os setores populares.
treinamento nas comunidades sobre legislação Por que deixou de advogar?
e processo legal, para que as pessoas não se Nina Pacari – Em 1989, a Conaie pediu
deixassem enganar por advogados inescrupu- que eu regressasse a Quito para assumir o
losos em outras ocasiões. Assim, dedicava-me posto de assessora política. Em 1993, o movi-
também à ca­pacitação, e esse vínculo com a mento indígena em Chimborazo propôs minha
organização e a comunidade foi ficando cada candidatura para a direção da Conaie.
vez mais forte. E por que optou pela carreira
Não militava no movimento política?
indígena antes de entrar na Nina Pacari – Essa também foi uma
universidade? decisão da organização e é uma das ques-
Nina Pacari – Desde minha juventude tões características do movimento indígena.
eu militava. Uma vez que fazíamos parte de Não há uma candidatura individual de um
grupos indígenas, era totalmente necessário candidato, e sim em função do que decide
consolidar a nossa identidade, especialmente a organização, que pede a uma pessoa que
diante de uma sociedade que nos discriminava. assuma essa responsabilidade. Dessa maneira,
Quando tinha 15 anos, já fazia parte de uma em 1993, fui eleita dirigente de terras e terri-
organização juvenil; e nossas reivindicações tórios da Conaie. Depois, em 1997, participei
se referiam ao respeito e à voz da juventude da Constituinte do Equador pela província de
assim como dos povos indígenas. Era neces- Chimborazo e ganhei as eleições universais
sário que, no âmbito estudantil, por exemplo, gerais. Após ganhar nessa eleição, fui can­
nós pudéssemos influir com o pensamento didata a deputada federal em 1998. Também
dos povos indígenas. Também pertenci ao ganhei em âmbito nacional e, de 1998 a 2000,
conselho estudantil do meu colégio e era fui vice-presidente do Congresso do Equador.
dirigente dentro dessa organização juvenil. Ganhamos o processo eleitoral em 2002 e fui
Toda essa atividade estava vinculada à iden- membro do atual gabinete nos primeiros seis
tidade e à cultura indígenas e acredito ter meses, em função da aliança que havíamos
sido toda essa experiência na juventude que adotado com o governo de Lucio Gutierrez.
permitiu que, uma vez formada advogada, eu Exerci o cargo de ministra das Relações Exte-
pudesse exercer a profissão na província de riores do Equador.

OUT / DEZ 2004 37


entrevista

Qual foi a causa do rompimento situação ficou delicada. Embora o custo polí-
com o atual governo? tico fosse conhecido, avaliamos que romper
Nina Pacari – Em agosto de 2003, o a aliança nos primeiros 15 dias era como sair
presidente mandou um projeto de lei que correndo – era preciso esperar um pouco.
atentava contra os direitos dos trabalhadores e Outros ministérios estavam
que não era o projeto que havia sido decidido com o movimento?
por consenso pelos aliados. Logo em seguida, Nina Pacari – O movimento assumiu
comprometeu-se a retirar esse projeto e a subs- quatro ministérios importantes para o desen-
tituí-lo pelo consensual, mas em vez disso fez volvimento – Agricultura, Educação, Turismo
um pronunciamento público declarando que os e Relações Exteriores – e teve a oportunidade
deputados deveriam votar a favor do projeto de projetar um diálogo com novos atores.
enviado, pois, se não o fizessem, seriam puni- Mas constatamos que, com um aliado que
dos. Respondemos não é coerente para cumprir o compromisso
que não aceitávamos que motivou a aliança, é impossível lograr a
ser chantageados, viabilidade e a concretização de nossos pro-
que apro­­v ar e s s e jetos. No caso do Equador, o presidente da
projeto de lei aten- República é a cabeça, e, se essa cabeça não
tava contra os direi- funciona, nada funciona por mais que tenha-
tos dos trabalhado- mos ministérios-chave. Perceber isso foi muito
res, que vo­taríamos importante porque agora nosso objetivo é
contra o pro­jeto e, assumir a liderança a partir da cabeça. E, mais
se isso sig­n i­f icasse ainda, construir a sustentabilidade em âmbito
uma rup­­t ura, que geral, o que depende dos governos locais. Se
assim fosse. Deu-se não tivermos sustentabilidade perante a estru-
então a ruptura, e tura existente, os grupos de poder econômico
todos os membros exercem toda a pressão possível para impedir
do gabinete, com o funcionamento de um novo modelo. Isso foi
exceção de dois ou também o que pudemos constatar. São razões
três funcionários de que nos levam a perscrutar um horizonte mais
escalões inferiores, claro de possibilidades e limites e a constatar a
se afastaram com existência das malhas do poder que impedem
seis meses e 20 dias. o funcionamento dos projetos.
É importante Mas avalio que foi sumamente importante
relembrar que a chegar a conhecer, por dentro, esse esquema
aliança foi feita em de poder e saber por onde temos que agir e
função de pontos melhor nos preparar para os desafios a en-
programáticos liga- frentar. Por causa dessa experiência, estamos
dos ao modelo eco- debatendo nossa sustentabilidade. Para um
nômico e político e projeto como o nosso ser sustentável, é pre-
à luta contra a cor- ciso lutar com a adversidade das hegemonias
rupção e à necessi- políticas e econômicas de caráter estrutural e
dade de promover também consolidar as bases. E nesse sentido
o desenvolvimento caberá, por um lado, aos governos locais e,
dos excluídos e o por outro lado, às organizações que se empe-
investimento social. nhem na luta extra-institucional, funcionando
Se, uma vez no governo, o aliado não cumpre de forma organizada.
sua promessa e adota uma política econômica Apesar dos atritos, pudemos demonstrar
neoliberal, comprometida com os setores da que é possível mudar; é possível trabalhar
direita e com um discurso totalmente voltado com espírito nacionalista. E é possível também
para a direita, obviamente surgem atritos romper com certos estereótipos em relação
entre os membros dessa aliança. Os primeiros à política exterior. No momento em que
problemas surgiram bem antes da ruptura cheguei, não havia absolutamente a con-
final. Logo nos primeiros 15 dias, quando foi sistência de uma relação com o país que
assinado o primeiro memorando de intenções temos internamente para projetar para o
com o FMI [Fundo Monetário Internacional], mundo. Então, é preciso procurar as lacunas
um dos custos políticos para o movimento, a ainda existentes nessa estrutura, ver o que é

38 Democracia Viva Nº 9
24
Nina Pacari

possível mudar, o que é possível discutir no são conhecidos há muito tempo no Equador.
plano internacional, por exemplo, com a tese Houve muitos pronunciamentos dos setores
dos povos. Por mais que sejamos governo, é populares e dos setores de classe média na
possível inserir os temas dos povos porque há mídia, nos quais meu nome era indicado como
razões e coerência suficientes, e isso nos serviu uma possibilidade para representar o Equador
de lição. Por exemplo, nas reuniões do Grupo como chanceler; havia um sentimento nacional
do Rio ou nos debates com a União Européia nesse sentido. Gutierrez não queria assumir
ou nos debates da Comunidade Andina, meu essa indicação. Foi o peso da população – e
discurso era abrangente porque havia uma re- não só da população indígena – e da mídia
presentação governamental, mas havia também que terminou forçando minha designação.
um componente do setor popular e do setor Durante os seis meses em que estive no
excluído. Ainda que tenha fracassado toda a governo, acompanhei pesquisas mensais sobre
construção do que poderia ter sido feito como o desempenho dos
aliança, valeu a pena para detectar limites e ministros e, até mi-
potencialidades dessa experiência. nha saída, sempre
Existem critérios para as alianças fui a ministra que
do movimento Pachakuti? encabeçou a lista
Nina Pacari – Definimos a necessidade do melhor desem-
de alianças naturais, alianças estratégicas e penho, nunca com
alianças conjunturais. As alianças naturais, menos de 83% de
geralmente entre povos indígenas, têm que aceitação nacional e
estar ligadas a esse projeto macro de de­li­n e­ reconhecimento de
a­m ento de atividades políticas. Mas os pro- boa gestão. Isso me
blemas dos povos indígenas não se resolvem pro­p orciona u m a
apenas entre indígenas; aí entram as alianças satisfação porque
estratégicas. São questões que têm que ser representei não só
resolvidas em dimensão nacional e fazer parte os indígenas, mas
do projeto político do país que queremos. representei o país
Nesse sentido, temos que contar com outros em seu conjun-
atores: atores sociais urbanos, não-indígenas, to como mulher,
mulheres, juventude, novas formas de orga- como indígena,
nização que estão surgindo através da defesa como equatoriana;
dos direitos humanos, ecologistas, movimentos isso foi sumamente
antiglo­balização e outros. São aliados estraté- importante.
gicos na construção de um processo. Quanto Como foi sua
às conjunturais, avaliamos se essas alianças recepção
podem colaborar para o nosso projeto maior. no
Foi o que aconteceu, por exemplo, no caso da ministério?
aliança com Gutierrez. Mas há um risco gran- Nina Pacari –
de que é o aliado não cumprir o prometido. É claro que havia
É uma aliança mais arriscada, mas temos que um temor sobre o
correr o risco. O problema não é o tipo de que eu faria. Não
aliança; ela é uma ferramenta. O problema é a sou funcionária de
falta de cumprimento; por conseguinte, o que carreira e havia a
temos que acusar é a conduta de quem não a tradição de políticos
cumpriu. Neste sentido, a coisa tem que ficar que chegam e mudam tudo, o que dá razão
bem clara porque, do contrário, poderemos ter- ao surgimento de disputas entre blocos que
minar culpando a ferramenta e ignorar outras se formam internamente. Mas deixei logo
possibilidades que possam ocorrer em outros clara a minha mensagem: vou cumprir a lei
momentos conjunturais. e vamos trabalhar pelo país. Afirmei que não
Houve alguma resistência por parte tinha grupos dentro da chancelaria e o que
da população não-indígena? tínhamos a fazer era cumprir nossa obrigação
Nina Pacari – Nem eu nem o movimen- com a política exterior do país.
to havíamos pensado que assumiríamos o Era tudo muito dinâmico. Todos os fun-
Ministério de Relações Exteriores. Mas meu cionários de carreira tiveram que reconhecer
trabalho e meu desempenho internacional que foi uma das gestões onde mais se sabia

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entrevista

qual era o rumo do país, onde o Equador era reconhecimento e com abertura; e até minha
considerado em todo o seu conjunto. Não des- saída, com valorização.
cansamos um só momento. Havia mais de dois Diferenças políticas com o
anos e meio que os processos estavam acumu- presidente Gutierrez não limitaram
lados e tínhamos que trabalhar ao máximo. seu papel como chanceler?
Em tão pouco tempo, foi possível Nina Pacari – De acordo com a Constitui-
planejar uma ação de longo prazo? ção, a condução da política exterior pertence
Nina Pacari – Uma falha que encon- ao presidente da República, e sua execução,
trei no ministério foi, por exemplo, o peso ao chanceler. Mas, quando não coincidiam
dado à cooperação inter­nacional. Se havia nossos pontos de vista, havia atritos. Isso
alguma coopera­ç ão internacional, era em aconteceu, por exemplo, no tema da guerra
função de projetos que envolviam tráfico contra o Iraque. O movimento Pachakuti que-
de influência de um ria a paz; meu pronunciamento tinha que ser
de­terminado grupo. pela paz; o presidente tinha outro critério. A
Projetei uma estraté- população exigia um pronunciamento sobre
gia de trabalhar com a guerra, e eu fiz um pronunciamento com a
todas as províncias posição da chancelaria assinalando as linhas
equatori­a nas. Pre- da paz. O presidente, então, se adiantou para
paramos uma ação dizer que era ele que determinava a política
para quatro anos exterior, mas nada mais disse. E a mídia lhe
com sete províncias perguntava: “Mas, então, como é? É a favor
por ano para visitar, da guerra?”. E ele respondeu: “Sou eu quem
tomar conhecimen- dirige!”. E nisso ficou. Eu também não voltei
to das aspirações e atrás e reafirmei que é preciso estar com a
planejar. Em função paz.
dessas demandas, Outro ponto sensível na política externa
seria orientada a co- foi o Plano Colômbia. Foi necessária muita
operação internacio- sabedoria para entender que o mandato cons-
nal, e não em função titucional e a soberania envolvem questões de
de amigos, de in- interdependências, de solidariedade, sendo
fluência e do setor preciso diferenciar e ver muito claramente o
unicamente de elites. conteúdo a ser dito sobre determinados te-
Foi possível trabalhar mas. Nesse caso, fui muito enfática em meus
com cinco províncias pronunciamentos para não nos subordinar-
nos primeiros seis mos nem aos Estados Unidos, nem a Álvaro
meses, no âmbito Uribe, o presidente da Colômbia. Queriam
de cooperação in- que o Equador qualificasse os guerrilheiros de
ternacional. Como terroristas e estavam pressionando o governo
exemplo, posso citar para que fizesse isso. Mas decidimos que esse
que o máximo que é um assunto da Colômbia; não temos que
o Equador conse- qualificar qualquer setor que esteja em outro
guiu em cooperação país. Essa foi a posição da chancelaria, no
internacional, num sentido de não acatar a linha de ação desejada
ano inteiro, foram pelos governos da Colômbia e dos Estados
US$ 270 milhões, Unidos. Então, isso marcou. Como havia um
em 2002. Consegui subscrever, em 620 dias, apoio por parte dos cidadãos, não restou ao
em torno de US$ 350 milhões de cooperação presidente senão a atitude de não dizer nada...
internacional. Queríamos que não fossem E quanto à Área de Livre Comércio
projetos pontuais pequeninos, e sim pen- das Américas, a Alca?
sando na dimensão do país, assim como em Nina Pacari – Sobre a Alca, vivi uma situ-
suas demandas. Trabalhar com essa linha, é ação sui generis. Nossas organizações votavam
claro, causou assombro a muitos porque não “não”; os setores produtivos, “sim”. E como
havia espaço que não tivesse sido considera- governo, o que fazer? Apoiar apenas um lado?
do. Pensávamos no país e não havia grupos O que implicava esse desacordo? Que não
sobre os quais recaíssem privilégios. Foi uma havia uma proposta do país? Que não havia
experiência sumamente importante e, por isso, consenso? Em muitas ocasiões nem uns, nem
digo que desde a minha designação atuei com

40 Democracia Viva Nº 9
24
Nina Pacari

outros sabiam quais eram as implicações de


um projeto de livre comércio. Então, o que
fizemos foi dialogar com todos e não partir
nem de uma determinada posição contrária
nem favorável à Alca. Optamos por debater
políticas internas muito além de um simples
“sim ou não”. Tínhamos que zelar pelo desen-
volvimento do país para não sermos somente
um mundo de consumistas, tendência da Alca.
Para chegar a isso, porém, teríamos na realidade
que começar a dialogar. Então, havíamos pla-
nejado como estratégia dizer que no momento
a Alca não é viável, que o Equador não possui
as condições necessárias para ingressar no livre
comércio. Seria preferível que procurássemos
construir as alternativas adequadas para o país
e que nesse entretempo pudéssemos orientar
acordos com o Mercosul, acordos que se conso-
lidassem com a Comunidade Andina. Respeitan-
do os pronunciamentos que existiam, tentamos
construir uma terceira possibilidade que se
coadunasse com a realidade e as necessidades
do país. Estávamos encaminhando uma série de
diálogos com o Parlamento, os setores sociais
e os setores produtivos, quando tivemos que
abandonar o caso. Depois da nossa saída, o
governo decidiu partir para um tratado de livre E quanto aos desgastes
comércio bilateral, e não mais para o acordo dessa ruptura?
coletivo das Américas, o que na realidade era Nina Pacari – Se o fato de fazer parte do
nossa posição. governo debilitou as organizações sociais, o
Como evitar que uma aliança com motivo foi que a tese aplicada pelo governo
o governo interfira na autonomia era diferente da que constava do discurso. De-
de um movimento social? pois da ruptura, ficou claramente identificado
Nina Pacari – Defendemos que fazer parte quem era o incapaz, o inepto e que, por isso,
do governo por acordo posterior às eleições é ocorreu a ruptura. Mas, por outro lado, ficou-
vetado. No entanto, nosso projeto político – -nos como lição que, para assumir custos em
implementar um programa político econômico outra ocasião, não há de ser com aliados, e sim
que questione o modelo do Estado para que entre nós mesmos.
seja mais includente – requer que saibamos É preciso estar bastante consciente do
agir como seja possível. Não nos aliamos a desgaste e dos custos políticos que existem
Gutierrez depois da vitória, participamos de co- numa parceria. Grave seria pensar que po-
mum acordo no processo eleitoral, ganhamos deríamos sair imaculados. Se tivéssemos um
e, por isso, formamos parte do governo. Mas, aliado razoavelmente disposto a cumprir com
quando o aliado não cumpre com o prometido, o combinado, com mais visão, mais projeto
somos definitivamente partidários da ruptura. político, haveria uma grande mobilidade social,
Durante as negociações da Alca, por seria a oportunidade para gerar as mudanças.
exemplo, sempre insisti que não era o fato Nenhum governo anterior do Equador teve a
de o movimento estar no governo que de- base social daquele momento, era a primeira
veria influenciar a tomada de posição. Não vez que movimentos sociais chegavam ao
cabia dizer o que convinha ao movimento poder.
ou influenciar para que não fosse contrário Como está hoje a atuação
à Alca. Pelo contrário, insistia para que o do movimento?
movimento continuasse lutando com seu “Não Nina Pacari – Nosso movimento está
à Alca”, ou não teríamos o respaldo para organizado dentro da perspectiva dos po-
continuar avançando na construção de uma vos, não é uma agremiação artesanal, não
nova possibilidade. luta por salários, não é setorial. Essa é a

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entrevista

com o governo, pois há outros fatores na lida


política que o próprio sistema limita. Para po-
dermos avançar mais, estamos em uma etapa de
pré-avaliações, análises e estratégias a adotar.
É preciso avaliar com responsabilidade, com
serenidade. É preciso avaliar no âmbito da
década, porque os impactos não podem ser
medidos em dois ou três anos.
Atualmente, o movimento continua arti-
culado em âmbito nacional. Fizemos, como
já disse, uma certa pausa para poder refletir
e poder voltar e retomar as coisas que são
necessárias nas lutas com os movimentos so-
ciais. Esses foram os motivos que nos levaram
a organizar a Cúpula Indígena, realizada dias
antes do Fórum Social das Américas. Assim
como há 14 anos, no ano de 1990, traçamos
o primeiro encontro continental em Quito e
delineamos diretrizes para a década, agora
identidade dos povos. Portanto, aqueles também seria necessário fazer isso e pela
que fazem uma leitura de que o movimento mesma razão. Nessa reunião de cúpula,
indígena está acabado estão equivocados. O além de haver denunciado e socializado as
projeto político que levamos avante mantém problemáticas, identificamos não só os eixos
a perspectiva dos povos; vai além do que comuns que encontramos nas problemáti-
poderia ser qualquer agremiação ou qual- cas, mas também estratégias comuns para
quer sindicato. O movimento Pachakuti foi combater em cada um de nossos países e,
fundado para ser uma ferramenta, e não portanto, ter orientações continentais sobre
um objetivo. Sempre assumimos que, se como será a nossa ação. Conseqüentemen-
essa ferramenta não se revelasse positiva te, o movimento continua com vitalidade,
para o movimento indígena ou se trouxesse continua trabalhando, sobretudo em virtude
dispersão e desestruturação orga­n iza­c ional, dessa reconstituição interna, que é de grande
poderíamos voltar atrás. Simplesmente importância.
dissolveríamos o movimento político. Essa Em todo o continente, o movimento
é uma questão que precisa ser esclarecida. indígena, de maneira geral, está avançando
Em 1996, quando criamos o movimento com estratégias em sua luta – sejam elas
Pachakuti, delineamos a luta também dentro extra-institucionais, com greves, paralisações,
do terreno institucional, por meio da disputa mobilizações, levantes, ou institucionais, o
das eleições nos governos locais, e pudemos, que, no caso do Equador, com os go­vernos
em territórios pequenos, materializar a proposta locais, teve mais êxito.
política de Estado plurinacional. O caráter in- Qual a proporção de indígenas
cludente, participativo, a questão de orientação no Equador?
dos recursos e de novas formas de desenvolvi- Nina Pacari – Há uma população repre-
mento são as linhas gerais do que é um projeto sentativa da população indígena no Equador,
político como nós concebemos. Desde então, mas não há dados oficiais confiáveis. O mo-
há experiências sumamente importantes, que vimento indígena julga que seja em torno de
aprofundam uma verdadeira democracia. Desse 40% da população, mas o Estado reconhece
ponto de vista constatamos que, no nível dos 20%. Houve um último censo, mas foi mal-
governos locais, o trabalho, embora mais lento, -interpretado e não incluíram as zonas rurais.
é mais sólido. Na Bolívia, por exemplo, a população
Nesse processo, tivemos altos e baixos indígena, em termos oficiais, é de 62%.
e não nos assustamos, pois isso é parte Embora as organizações afirmem chegar
da dinâmica dos povos. Hoje o movimento a 80%, ter esse dado reconhecido pelo
continua trabalhando por uma reconstituição Estado é sumamente importante. Antes da
interna, e estamos fazendo uma avaliação de última eleição, há quase dois anos, havia
nossa participação política desde 1996. Não uma representação esporádica de indígenas.
podemos avaliar apenas a partir da aliança Agora os bolivianos têm em torno de 22

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Nina Pacari

representantes indígenas, num Congresso isso não bastou para impedir a eleição desse
de cerca de 200 membros. Se olharmos a indígena. Ele ganhou a eleição em Cota­cachi
composição do país e dos novos atores, e teve uma gestão maravilhosa, de 1996 a
esse Congresso obviamente teria que ter 2000. Em 2000, foi reeleito com 80% dos
outra representação. Assim como no caso votos e agora a população voltou a pedir que
do Equador, o Congresso tem que ter outra se candidate a um terceiro período contínuo.
representação, onde não estejam presentes Podemos dizer que coube a nós romper
apenas as elites nem que seja unicamente com a discriminação e com o racismo, de-
a população dominante que esteja no Par- monstrando com ação, com a prática, não
lamento. só a capacidade e a eficiência, mas a coe-
É possível comparar a rência com a origem. E essa coerência com
discriminação que a população a origem implica não o fato de ser indígena,
indígena sofre no Equador com mas sim o fato de
a que a população negra sofre pertencer aos se-
no Brasil? tores excluídos, aos
Nina Pacari – A c r e d i t o q u e s i m . A setores pobres e de
discriminação ocorre pelo fato de sermos poder reagir a uma
diferentes – indígenas ou população negra. orientação sobre
Somos discriminados pela cor, e o racismo é um a necessidade de
instrumento de dominação. E o mais grave mudanças.
é que, embora a discriminação racial tenha E quanto à
sua origem nas elites, ao ser assumida em população
uma linguagem mais popular, torna-se uma negra
prática cotidiana ainda mais injusta e mais equatoriana,
dura e, por vezes, inconsciente. No Equador, que
por exemplo, é comum a população em geral, representa
e não só as elites, revelar essa discriminação apenas 1%
contra os indígenas. Em alguns casos, a dis- da população
criminação assume feições modernas. A partir total?
de 1996, quando irrompemos no cenário polí- Nina Pacari –
tico, pudemos experimentar a nova forma de São bastante dis-
discriminação racial. Na época da colônia, criminados pela
discutia-se se os índios tinham alma ou não. cor. Quando co-
Porém, naquele ano, e até nos últimos pro- meçamos a traçar
cessos eleitorais, discutia-se se os indígenas a proposta do pro-
seriam ou não capazes de desempenhar jeto político e da
atividades políticas. Isso é discriminação! construção de um
É como dizer: “Para começar, como índio, Estado includente
você não é capaz”. e plurinacional, es-
Um de nossos primeiros esforços foi rom- távamos cientes de
per com esses estereótipos e demonstrar não que não se tratava
só capacidade, mas também que podemos ir apenas de indíge-
mais longe que os outros. Foi um enorme de- nas; tínhamos que
safio sermos aqueles que abriram o caminho. incluir também po-
Entre os casos concretos que ocorreram, hou- vos brancos, mes-
ve um indígena economista que se candidatou tiços e também a população negra. Ain­d a
a prefeito e que, claro, representava um peri- na década de 80 e, sobretudo, no início da
go para as elites brancas ou mestiças. Em seus década de 90, organizamos contatos com os
discursos nas comunidades rurais, o can­didato po­v os negros e verificamos que não havia
das elites dizia: “Vo­cês não po­dem votar nesse processo organizativo. Havia muita dispersão
indígena porque ele é um profissional, não é e nós lhes mos­t ramos as eta\ de seu espaço
igual a vocês. Ele já pertence às elites”. Mas esse ter­ritorial e definiram a necessidade de seu
mesmo candidato das elites ia à zona urbana território chamar-se co­mar­ca. No ano 2000,
discursar para seus pares bran­cos e mestiços e apresentaram no Congresso Nacional uma
dizia: “Não devem votar nele porque, mesmo proposta de reconhecimento dessas comar­
sendo um profissional, é índio”. Felizmente, cas. Chegar a isso, partindo do que eram há

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20 anos, é muito. E progrediram também na semelhante para os povos


formação de uma federação ou confederação indígenas e afrodescendentes?
do povo negro. Nina Pacari – No Equador, não. Mas sei
Mais recentemente, em 1998, na Assem- que existem experiências de cotas para povos
bléia Nacional Constituinte, queríamos que indígenas nos Parlamentos da Colômbia e da
houvesse também um capítulo específico Venezuela. No caso da Colômbia, são dois
para o povo negro, mais amplo e perma- senadores por instituições nacionais especiais
nente. Mas um membro da assembléia – que de povos indígenas e mais dois deputados
não pertencia aos povos negros, mas que provinciais por circunscrições especiais.
era negro e havia sido eleito por um parti- No caso da Venezuela, como há uma câ-
do político – acabou impedindo a criação mara única, está indicado que serão três
desse capítulo. Segundo ele, agregar a representantes. Ou seja, são as duas únicas
expressão “afro- Constituições em que há cotas étnicas para
-equatorianos” era a representação no Parlamento das posições
o suficiente. Com próprias do movimento indígena. A mesma
isso, os artigos 83 e coisa acontece no caso da Colômbia com
84 – que rezam que a população negra: também há uma cota
os povos indígenas étnica de dois representantes no Senado –
e afro-equatorianos parece-me que é a única Constituição que
são parte constitu- tem a cota étnica em relação ao povo negro.
tiva – indicam que No caso do Equador, chegamos à conclu-
os direitos compre- são de que não era o caminho mais viável.
endidos dentro dos Somos 12 nacionalidades indígenas, com
direitos dos povos idiomas diferentes. A quíchua é a maior, re­
indígenas também pre­s entando 80%. Além das considerações de
serão aplicados ao número, creio que no Parlamento deve estar
povo negro. Infe- representada pelo menos uma das 12 nacio­
lizmente, é mui- nalidades e do movimento dos quí­c huas,
to pouco. Mas, de levando em conta o número populacional e
qualquer maneira, o número da representação no Parlamento.
está na Constitui- Então, se tivermos um representante por
ção e creio que pro- nacionalidade, deveria haver 12. Como os
grediram bastante e quíchuas são muito mais numerosos, deveria
fizeram um grande haver, pelo menos, de 15 a 20. Estabelecer
trabalho para de- cotas étnicas de representação não é viável
nunciar a discrimi- porque conseguiríamos no máximo três ou
nação contra a cor e quatro representações. Por conta disso, a
recuperar sua auto- estratégia que adotamos foi de participar
-estima, baseados criando um movimento político. O movimen-
em sua identidade, to Pachakuti disputa nos mesmos espaços
o que é sumamente de eleições gerais e já conseguimos eleger
i mp orta n te; ma s , oito legisladores indígenas. Conseguimos
de fato, continua mais do que se houvesse a cota.
havendo discrimi- Porém, agora estamos trabalhando sobre
nação. Na lista de como apresentar a proposta de uma nova
candidaturas dos partidos políticos, rara- distribuição distrital eleitoral. Na província
mente há um negro, o que significa que os de Chimborazo, por exemplo, há 73% de po-
partidos políticos não têm em sua perspec- pulação indígena. Digamos que haja quatro
tiva a variabilidade cultural ou a diversidade. distritos eleitorais; dois poderiam ser de po-
Também continua havendo discriminação no vos indígenas. Então, estamos estudando no
mercado de trabalho, mas creio que já há momento para ver se, em distritos eleitorais
uma maior consciência pelo menos quanto que considerem a variável étnico-cultural,
ao princípio da diversidade. poderá ser permitida uma maior garantia
No Brasil há muita discussão sobre para que haja a representação mais ampla
a implantação de cotas étnicas. dos povos indígenas. Creio que nos próximos
Há no Equador alguma discussão anos estaremos apresentando essa proposta

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Nina Pacari

como parte de uma reforma política.


Como está a discussão sobre
soberania e segurança alimentares
no movimento indígena?
Nina Pacari – São pontos centrais do
movimento indígena. Em 1994 fizemos uma
mobilização para impedir a privatização das
terras – aqui no Equador, por pressão da
direita e pelas diretrizes do Banco Mundial
e do FMI, pretenderam privatizar as terras
comunitárias. Articulamos uma proposta
não só de defesa da terra, mas do ponto
de vista político do exercício do direito
territorial ligado à segurança alimentar dos
equato­r ianos. Argumentamos que não se trata
de como garantir a alimentação apenas para
os indígenas, e sim a segurança alimentar dos
equatorianos.
Outro elemento que temos insistido em
debater é a cultura da alimentação. A pretexto
de modernidade ou ajuda humanitária, promo-
vem uma alimentação que não é própria das
nossas culturas. Tentam substituir os cereais,
as gramíneas, o talharim, o feijão, a ervilha e
a lentilha por atum e enlatados, por exemplo.
A segurança alimentar implica não só comer
bem, não só ter uma alimentação nutritiva,
mas também respeito aos códigos culturais.
Toda vez que percebo um boom de comida
vegetariana, internacional, moderna e sadia,
logo penso: “e cara!”.
Temos que examinar com cuidado toda essa
dimensão da segurança alimentar. Não se trata deiros problemas não são debatidos porque
apenas de dar comida a todos, e sim de garantir escondem um grande negócio. A ilegalidade
políticas direcionadas à produção. E isso tem é uma bandeira, um escudo que protege os
a ver com políticas agrárias, com a qualidade que realmente estão envolvidos com esse
da alimentação e também com a cosmovisão grande negócio. No século passado, na dé-
das culturas. São elementos que se entrecru- cada de 30, o álcool era o foco do grande
zam e, por isso, em vez de falarmos apenas da debate da ilegalidade até que foi legalizado
segurança alimentar, também mencionamos a – aí pode estar o grande cerne do problema.
soberania alimentar. Creio que, pelo menos do ponto de vista da
O que pensa sobre os movimentos corrupção e dos povos indígenas, um de-
cocalero da Bolívia e piquetero bate sobre a legalização da coca diminuiria
da Argentina? enormemente o grande negócio.
Nina Pacari – No caso da Bolívia, o mo- A suposta luta contra o narcotráfico não
vimento cocalero está diretamente relaciona- deixa de ser um escudo para implementar a
do com povos primitivos e envolve conceitos militarização, a subordinação, que envolve
delicados. Se para o mundo ocidental, a coca estratégias geopolíticas, especialmente em
se constituiu no grande perigo, pelo processa- relação aos Estados Unidos, visando a uma
mento e pela industrialização, na cosmovisão hegemonia unipolar. É preciso dar outro
dos povos indígenas não há delito. O uso do sentido a esse debate e, por isso, apoiamos
que para alguns povos é a planta sagrada, a luta que levam avante os povos indígenas
empregada até em rituais cerimoniais, faz parte da Bolívia, sobretudo na área dos cocaleros.
consubstancial e inseparável ou indivisível da No caso dos piqueteros, a luta também tem
cosmovisão dos povos indígenas. a ver com a condição humana, com a luta pelo
Em relação a isso, na verdade, os verda- trabalho, pelo salário e é inerente ao ser huma-

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entrevista

ao governo Lula, é com o Partido dos Tra-


balhadores (PT) mesmo antes de ele estar
no governo federal. Temos muita simpatia
pelo PT, pela ação dos governos locais, toda
a discussão do orçamento participativo, que
são experiências locais extremamente im-
portantes e que nos deram força porque
sonhávamos em fazer o mesmo. Em muitos
momentos pudemos partilhar experiências
das realidades desses espaços no Brasil.
Admiramos o PT que vem empreendendo
uma luta há pelo menos 20 anos para chegar
aonde chegou.
Quanto ao presidente Lula, eu só o co-
nheci pessoalmente depois da eleição, em
um encontro oficial. Antes disso, porém,
eu já o admirava pela sua trajetória. Como
presidente, considero importante a forma
como vem tratando a política internacional.
Pelo menos externamente, Lula tem divulga-
do a necessidade de estender as fronteiras
do Brasil de maneira solidária numa direção
mais para o sul. Também os acordos firmados
com a Argentina, por exemplo, chamam a
atenção para esse protagonismo. Se Brasil e
Argentina formarem o eixo para esquematizar
no. Por isso, estou totalmente de acordo com a o sul e procurem outras rotas como a China,
luta que estão empreendendo e que constitui a poderão impedir o avanço de uma hegemo-
nova forma de emergência social. Têm que ser nia unipolar. Não sei como isso repercute
considerados como indivíduos, como atores, e internamente, mas para fora, nos setores
não de acordo com as circunstâncias que têm sociais, sobretudo em outros países como o
que atender. Creio que são dimensões políticas nosso, temos muita esperança que os espa-
que estão envolvidas e que alimentar esse outro ços oficiais possam produzir uma questão
conceito também traz grandes perspectivas à dessa natureza – que não signifique uma
luta. O movimento dos piqueteros é tão comba- subordinação aos Estados Unidos.
tido e ameaçado pelas estruturas e elites que a Quanto a questões de âmbito interno, não
solidariedade é o mínimo que se pode oferecer. tenho como entrar em detalhes, salvo quanto
E os movimentos sociais às denúncias que nos chegaram das organiza-
brasileiros? ções indígenas sobre suas terras estarem sendo
Nina Pacari – Temos relações com três afetadas da mesma maneira como se fosse qual-
atores brasileiros fundamentais: o Movi- quer outro governo de direita. Nesse sentido
mento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra nós também mandamos de nossa organização
(MST), o movimento indígena e o movimento uma nota dirigida ao próprio presidente Lula,
de mulheres. Acompanhamos o MST e sabe- indicando nossa preocupação e exortando-o ao
mos da realidade da luta dos camponeses. respeito às terras indígenas. E numa opor-
Sabemos da luta do movimento indígena tunidade que tivemos na reunião do Grupo
pela defesa de seu patrimônio ancestral e do Rio, pudemos conversar e reiterar nossa
da necessidade de obter títulos de suas ter- preocupação. Mas, como nessa ocasião ti-
ras; sabemos da luta para que se cumpra nha havido uma só comunicação, corríamos
a Constituição e se conclua a demarcação o risco de não ter certeza se era verdade
das terras indígenas. No movimento das ou não. Ele me disse “vou ver”, “isso não
mulheres, nossa ligação é especialmente com deve acontecer”, isso em termos gerais. Mas
organizações de mulheres discriminadas pela depois houve um número maior de denúncias
sua condição econômica. e, com o intuito de comunicar como era
E quanto ao governo Lula? importante nossa preocupação, reiteramos
Nina Pacari – Nossa relação é anterior nossa exortação quanto à necessidade de

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Nina Pacari

respeitar os direitos dos povos indígenas. mações que tivemos por meio dos povos
Como parte dessa política indígenas, em algumas reuniões realizadas
internacional, Lula viajou no âmbito internacional e das quais partici-
recentemente a países que param outros atores que não são necessa-
flagrantemente desrespeitam riamente indígenas, Chávez é reconhecido
os direitos humanos, como Cuba, pela população da classe média e do setor
Líbia, Índia e China. Isso não popular. É claro que as elites que concentra-
é preocupante? ram o poder não cederiam nem permitiriam
Nina Pacari – A política internacional é que lhes tirassem privilégios; isso tem que
muito complexa. Se formos impor um puris- ficar muito claro. Na realidade, o próprio
mo, não teremos relação com nenhum país; fato de os Estados Unidos estarem liderando
então é preciso vê-la como parte da estra- o apoio aos opositores de Chávez, no mínimo,
tégia política. O mundo das inter-relações me deixa com uma
é importante para que se produza um eixo suspeita. E, apenas
multilateral. É uma questão muito complexa vendo que os Esta-
para o país e para os governantes e diria que dos Unidos estão
há também a necessidade de abrir mercados com os opositores,
e vender produtos. É preciso ver sua com- sabemos de que
plexidade, mas também suas várias facetas. lado devemos ficar.
Creio que essas experiências nos ficam como Como avalia
lição. É preciso conhecer a proposta que está a postura do
sendo apresentada, o objetivo traçado e estar atual governo
preparado. Eu não me atreveria a julgar se estadunidense
um país fez bem ou mal, é preciso ver com em relação
clareza as estratégias adotadas, tendo sem- à América
pre em mente os cidadãos do próprio país. Latina?
E a cooperação entre outros países Nina Pacari – A
da América Latina? política de Estado
Nina Pacari – Acredito em possibilidades que os Estados Uni-
de consolidar as perspectivas sul-sul. Por dos sempre pratica-
vezes se pensa que o grande negócio está ram é: “A América
nos Estados Unidos, é assim que pensam as para os ame­ricanos”
elites do Equador. Quando ocorreu a grande e, por­tanto, todos os
crise de 1999, os estudos econômicos apon- demais são subordi-
taram que, ao contrário do que se imaginava, nados a eles. É ne­
nossos empresários encontraram seu nicho ocolonialismo pu­ro.
de mercado na América Central. Então, creio Ao longo de todas
que o que precisamos é procurar estratégias estas centenas de
para, por exemplo, fortalecer a Comunidade anos e especial-
Andina. Deveria haver essa solidariedade por mente nas últimas
parte de governos e uma convicção quan­ décadas, essa pos-
to ao desenvolvimento de seu próprio país, tura foi mo­tivo de
mas isso pouco acontece. Porém, malgrado luta permanente.
todas essas dificuldades, é preciso persistir e Essa mes­m a políti-
en­contrar outras possibilidades e alternativas, ca imperialista de
seja na Co­m uni­d a­d e Andina ou no Mer­c osul. hegemonia adquiriu novos matizes com o
É preciso abrir outros espaços, e não neces- discurso do terrorismo. São os fundamen-
sariamente pensar que o único salvador são talismos econômicos, os fundamentalismos
os Estados Unidos e, por acreditar nisso, que não deixam de ser essa supremacia
ficar em condição de subordinação. Isso racial hitleriana com a qual se aco­b ertam
é o que nós não admitimos. Como po­v o, os que manipulam a política dos Estados
acreditamos que no âmbito da so­b erania há Unidos, sobretudo sob a liderança de Bush.
lugar pa­ra abrir outros horizontes e outras E creio que na medida da soberania, do
pos­s ibilidades. respeito aos países, deveria existir outro
E quanto a Hugo Chávez? tipo de relação entre os Estados. Mas, se os
Nina Pacari – De acordo com as infor- governantes são timoratos, pelo menos que

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OUT / DEZ 2004 47
entrevista

possamos em cada um de nossos países ter da humanidade?


a voz dos setores sociais para batalhar a Parece estar tudo em função dos interesses
necessária mudança. vorazes, não somente dos Estados Unidos,
E o que pensa sobre o regime mas também das empresas transnacionais –
político em Cuba? militaristas privatizados que são as que lhe
Nina Pacari – Cada povo e cada país impõem inclusive esse modelo de Estado.
têm que decidir o sistema que os definem. Então, é parte de toda essa estratégia que
Não existe uma posição única a ser acata- concentra maiores hegemonias políticas,
da, não há uma forma perfeita mesmo na econômicas e, certamente, militaristas.
democracia. Quando nos encontramos com O Plano Colômbia é um
os povos indígenas dos Estados Unidos, eles exemplo disso?
disseram: “Não há democracia no meu país Nina Pacari – De fato, é parte de todo
porque os povos esse projeto. As estratégias apontam que
indígenas são dis- há a intenção de se regionalizar o conflito
criminados e não colombiano, mas sabemos que uma saída
têm seus direitos política negociada é viável. Porém, como
reconhecidos”. En- estão envolvidos outros interesses que se
tão de que tipo chocam com os das transnacionais, lançam
de democracia se mão de soluções militaristas. Por isso, a luta
está falando? Por dos povos é tão crucial.
isso, creio que é Mas quais seriam as alternativas?
preciso respeitar Nina Pacari – As alternativas existem e
o que definem os estão nos setores mobilizados. Precisamos
povos com o des- nos compreender também como setores
tino de sua gente. econômicos, e não apenas setores sociais.
Devemos respeitar Não somos apenas o agente social, somos
o que possa signifi- também atores econômicos e podemos in-
car para um povo o fluir nas mudanças que queremos. Algumas
seu sistema econô- experiências debatidas, como o orçamento
mico e político de participativo, são estratégias que já estão
convivência. funcionando.
Quais seriam Por exemplo, dizem que somos os mais
as principais pobres dos mais pobres; é verdade, mas tam-
conseqüências bém temos possibilidades em nossas mãos.
do uso do No caso do Equador, por exemplo, 64% da
militarismo produção agrícola é interna; isso cobre o
para resolver os mercado interno do país. Então, não se trata
conflitos sociais? de estarmos no zero. Não es­ta­mos no vácuo
Nina Pacari – O e depende das possibilidades de influência
caráter militarista dos setores sociais para que haja uma maior
presente na Amé- participação da cidadania atuando nos eixos
rica Latina é par- de pressão. Desde a parte mais baixa, preci-
te de um controle samos pressionar para que sejam adotadas
geopolítico, e não as mudanças que se fazem necessárias.
somente parte de Comparado com o que éramos há duas
uma repressão a possíveis explosões sociais. É décadas, diríamos que progredimos muito. É
uma estratégia de domínio do mundo. Nesse certo que permanece a situação de extrema
sentido, preocupa-me também a informação pobreza, mas, malgrado isso, há potencialida-
de que o sistema educacional dos Estados des. Há dez anos, seria difícil pensar que haveria
Unidos está ensinando que toda a Amazônia um Fórum Social Mundial (FSM) ou um Fórum
é americana. Isso pode implicar que daqui Social das Américas, que mobilizariam milhares
a 20 anos talvez ajam de acordo com essa de pessoas para dizer “não à guerra”. E não se
presunção. Por isso nos preocupam as de- trata apenas da ade­são de setores organizados,
clarações de que a Amazônia é patrimônio sabemos que há muitos indivíduos nesse pro-
da humanidade. Por que não dizem que cesso. Esse é um tipo de pressão que ainda
Manhattan e Paris também são patrimônio deixará muitos governantes com insônia. É

48 Democracia Viva Nº 9
24
Nina Pacari

uma grande tarefa, um grande trabalho para Transcrição de fitas e tradução:


Carlos Peixoto
os setores organizados latino-americanos.
Fotos: Arquivo Ibase
Como avalia o processo FSM?
Nina Pacari – O FSM está em permanente
construção; haverá momentos de mais dis-
sensões que em outros e talvez seja melhor
que nos acalmemos, pois de repente as coisas
funcionam bem e nos conformamos. Tudo
depende de como reagimos, mas tudo é um
processo. O FSM é também um espaço para
compartilhar problemáticas, para socializar,
mas também para construir horizontes e in-
tercâmbios de estratégias operacionais. Não
se trata de copiar simplesmente o que outras
organizações mundo afora estão fazendo,
mas de adaptar essas estratégias às nossas
necessidades. É um grande espaço para
compartilhar, para definir linhas de conte-
údo político e também de ação operacional.
Na realidade, não significa que a cada edição
do FSM vamos nos reunir para fazer uma
mobilização ou decidir como atuaremos em
cada país. Não. Creio que são sempre boas
oportunidades para tecermos diretrizes.
Tanto para aqueles do país-sede do evento
co­mo para os membros que vieram de outros
lugares, fica a experiência de debater contri-
buições de diferentes atores participantes que
só são oferecidas num espaço dessa natureza.
Creio que o FSM é também um instrumen-
to de pressão e de guerra psicológica que te-
mos que desencadear com mais freqüência.
Re­c or­do-me de que, quan­do o G-8 se reuniu,
em 2001, na Itália, houve uma mobi­lização tal
que tiveram que fazer a reunião em alto-mar.
Esse é um significado e uma estratégia do
FSM. Se houvesse uma mobilização social
em todos os níveis, po­d e­r íamos deixar sem
espaço aqueles que muito mal fizeram à
humanidade, limitando-os, consumindo-os
na pobreza, na exclusão e na desesperança.
Creio, sim, como propõe o FSM, que
um outro mundo é possível. E oxalá seja
possível, para que o adotemos e para que
ele permaneça nas esferas do poder. E me
pergunto: assim como há uma globalização
de um funda­m entalismo econômico, por que
não globalizar a tarefa social?

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OUT / DEZ 2004 49
c r ô n i c a

182 na cabeça
Brasil: 182 anos de independência, diz fronteiras. Mas o número de habitantes –
a história, e 182 milhões de brasileiras e verdade que números, quanto maiores, mais
brasileiros vivos, diz o IBGE. Na conta do abstratos são – não ganha concretude. Os
cronista doido, teríamos criado 1 milhão de atuais 182 milhões de brasileiros e brasileiras
nativos independentes por ano! Pena não ser são 18 vezes a população de Portugal, cinco
essa a conta. Independência política não é um vezes a da Argentina, quase o dobro da do
ato, mas um processo. Não se conta, mede Mé­xico! França, Itália e Inglaterra têm, cada
ou pesa. Só pode ser qualificada. Ou moni- um, um terço disso!
torada: a nossa avança. Mas é passível de Fruto de um pacto de elites, no grito
recuos súbitos... Toc, toc, toc! Já a população, “Independência ou morte” havia mais bravata
como ela cresce! Dobramo-nos em 34 anos! retórica do que risco de morte. Nesses quase
Em eterna crise de identidade, somos dois séculos desde aquela gritaria às pláci-
ciclotímicos. Nossa auto-estima ora rasteja das margens do riacho Ipiranga, raramente
como minhoca envergonhada, ora voa sober- exibimos ao mundo a altivez de nação, de
ba como águia. Sem saber o que realmente fato, independente. Um povo que não lutou
somos, não identificamos o que em nós é pela independência não sabe aquilatar o seu
vício ou virtude. Não realizamos sequer que valor – dizem uns. Não vale nada a indepen-
somos um grande país em população. A custo dência política para quem é economicamente
percebemos que temos extensão territorial dependente – dizem outros. É irrefutável: a
continental – os coloridos mapas da infância independência se desvanece se a soberania é
ajudam na comparação visual de áreas e minada por dívidas em moeda estrangeira. E

50 Democracia Viva Nº 24
vamos nós! o verde-amarelismo que, açulado por marque- Alcione Araújo
Com a salsicha tecnológica diante teiros, locutores e o sentimento de pátria fora alcionaraujo@uol.com.br
dos olhos, queremos aviões a jato, imagens do lugar, induz à arrogância, à xenofobia e à
digitalizadas, televisão de alta definição, truculência. Pena que, enrolados na bandeira,
computadores de última geração e internet somos apenas 182 milhões de fanáticos, não
de banda larga para pagar as contas sem sair 182 milhões de cidadãos conscientes, nem
de casa. Deslumbrados ao orgasmo diante 182 milhões de patriotas!
do caixa eletrônico, digitamos operações Se fomos sempre vulneráveis ante o
sofisticadas e, sem ganhar salário, fazemos mundo, tampouco conseguimos criar, em 115
as tarefas do bancário que perde o emprego anos de República, um Estado democrático,
– eis o monstruoso ornitorrinco. Cerca de 40 capaz de realizar o mínimo de justiça, de
milhões vivem como se fossem suecos. Cento equidade e de equanimidade. E também não
e quarenta milhões como se fossem africanos. somos livres ante o Estado, sequer temos
E vamos nós! assegurados os direitos de plena cidadania.
Na copa de 70, cantávamos: “Noventa A história mostra que avançamos com esta-
milhões em ação, pra frente, Brasil do meu bilidade de bêbado, fustigados pelas contra-
coração! De repente é aquela corrente pra dições entre o moderno e o arcaico, o público
frente, parece que todo o Brasil deu a mão! e o privado, o legal e o justo, com a maioria
Vamos juntos, vamos, pra frente, Brasil, salve destituída puxando a minoria, que segura as
a seleção!”. Ao militarizar o patriotismo, a rédeas. E lá vamos nós, um dos países mais
ditadura furtou-nos o sentimento de amor à ricos e mais belos do mundo, rumo aos 200
pátria que, sem outras formas de se expressar, anos de independência e aos 200 milhões
se deslocou para o futebol. Os militares não dos mais alegres e generosos habitantes do
vacilaram: patriotizaram o futebol! Até hoje, planeta! E vamos nós... Até quando?
a tal “corrente pra frente” se incendeia nas
disputas internacionais. O hino nacional infla

OUT / DEZ 2004 51


r e s e n h a

tem o objetivo de navegar pela sociabilidade


“dessa gente”, investigar o seu lugar na cidade
do Rio de Janeiro do início do século XXI e
vasculhar os dilemas de sua organização e
ação coletiva na luta por direitos e reconhe-
cimento. É resultado dos trabalhos da Agenda
Social Rio, grupo organizado para refletir e
atuar em favelas produzindo políticas públicas
locais, como se esclarece no artigo de Patrícia
Lânes. O livro, no entanto, realiza muito mais.
Em 88 páginas de linguagem clara, o público
leitor adquire uma visão lúcida e crítica do
que foi feito daquela argamassa novecentista.
Depois de um século de história, olhar a luta
“dessa gente” das favelas cariocas nos faz ver
que “é do Estado que se trata”, como afirma
Cândido Grzybowski, diretor do Ibase, na
apresentação da publicação.
Rio – A democracia No Brasil, o Estado foi ente ativo
na construção da nação. O mercado – e se
vista de baixo pode ver isso mais do que nunca em tempos
neoliberais – nunca realizou sozinho a tarefa
Diversos(as) autores(as)
da integração. As “camadas superiores do
Ibase
país” lutam para manter o Estado sob seu
88 págs.
controle, mas “essa gente” mostrou, desde
cedo, a “sociedade dos de baixo”, e o Estado
Da sociedade brasileira do início do século a incorporou de forma parcial e controlada,
XIX, dizia-se: “Vida social não existia, por- por meio dos direitos sociais da década de
que não havia sociedade; questões públicas 1930. Já no início do século XX, a realidade
tão pouco interessavam e mesmo não se co- do habitante do Rio de Janeiro, mão-de-obra
nheciam; quando muito sabiam se havia paz barata para a riqueza da cidade, se torna
ou guerra”. Esse relato do viajante inglês incomodamente visível para o “cidadão”
Lindley, citado por Capistrano de Abreu, pelas mãos de um cronista como João do Rio.
fez o jornalista e diplomata Gilberto Amado Durante décadas, a “cidade dominante” pla-
observar, em 1919, no ensaio Grão de areia: nejaria cinicamente o espaço urbano para re-
“É claro que não era para essa gente que se mover do alcance de sua visão o sustentáculo
ia iniciar o regime constitucional no Brasil. das indústrias locais e a fonte dos serviços
Era somente para as chamadas camadas su- prestados às “camadas superiores”. Como
periores do país...”. “Essa gente”, “camadas diz Luiz Antonio Machado, a favela venceu.
superiores” e um Estado constitucional: eis a Mas, se ainda é segregada pelo “asfalto”, hoje
matéria bruta da qual se fez o Brasil. também é fragmentada internamente. “O Rio
Rio – A democracia vista de baixo, não é mais a ‘cidade partida’”, diz em seu
livro publicado em julho de 2004 pelo Ibase, artigo o sociólogo Paulo Magalhães, usando

52 Democracia Viva Nº 24
a alcunha criada por Zuenir Ventura para falar incapazes de garantir a inclusão maciça da
da oposição “morro/asfalto”. É uma “cidade população brasileira no mercado e nas es-
fragmentada”, “guetificada”. “Há varias cida- feras de poder”. Assim, o acesso à “cidade
des, ou melhor, cidade nenhuma.” Resultado de di­reitos” fica restrito aos “superiores”,
da globalização? Do crime e da violência? que continuam a “canibalizar” o Estado em
Não se espere um tratamento ingênuo de proveito particular. Por outro lado, o privi-
autores e autoras para essas questões, como légio conferido a ações pontuais por meio
se pode antever desde a introdução do livro, de “parcerias” do Estado com a sociedade
escrita por Itamar Silva e Moema Miranda. civil organizada se faz em detrimento de
Em poucas páginas, Luiz Antonio “políticas públicas” de caráter universalista,
Machado reconstrói, com uma clareza ímpar, despolitizando as reivindicações e cooptando
o percurso das diferenças às políticas sociais, as lideranças locais.
passando pelas hierarquias e pela democracia. Em 1996, Herbet de Souza, Beti-
Diferenças não são por si sós nefastas, mas, nho, perguntava-se como poderia o Rio de
ao contrário, colorem as cidades. Associadas Janeiro acolher as Olimpíadas em 2004,
a relações de força, as diferenças são trans- se a cidade não incorporava à cidadania
formadas em hierarquias que constituem boa parte dos(as) habitantes, em particular
posições desiguais nas quais se distribuem as mo­r a­d o­r es(as) da favela. A indagação deu
pessoas. O autor não se furta em chamá-las origem à Agenda Social Rio. As Olimpí-
“superiores” e “inferiores”, optando por não adas não vieram, e estão aí os Jogos Pan-
amenizar a “iniqüidade que é tratar hierarqui- -americanos em 2007. A reflexão proposta
camente as diferenças”. Numa democracia, por Betinho há oito anos está na ordem do
pretende-se que a hierarquia seja posta em dia. Rio – A democracia vista de baixo é um
questão num conflito pacífico. A menos mergulho na “gente” do Rio de Janeiro que
que se trate de uma democracia de fachada, não sucumbe às armadilhas da complexidade
a negociação das hierarquias não pode ser e da exaustão, sem perder em densidade e
predeterminada pelas hierarquias vigentes, qualidade. De leitura acessível e agradável,
donde a intervenção do Estado sobre a vida destrincha as dificuldades da sociabilidade
privada sob a forma de política social se urbana, sem nos deixar esquecer que ver a
torne condição da negociação democrática democracia “de baixo” é ver a questão do
e da expansão da cidadania. Democratizar o Estado sob o ângulo da sociedade.
Estado é estabelecer o círculo virtuoso entre
alargamento da esfera pública e a legitimidade
que somente essa inclusão lhe pode conferir. Gisele Silva Araújo
Não bastasse a efetividade da democracia ser Professora de Sociologia da PUC-Rio
desafiada “de fora”, há a realidade interna da gsaraujo@iuperj.br
“violência urbana”.
A explicação dos impasses da cons-
trução da cidadania nas favelas cariocas
não se esgota na globalização nem na
sociabilidade violenta. Moema Miranda e
Paulo Magalhães reconhecem: “As políticas
em curso têm limitações intrínsecas: são

OUT / DEZ 2004 53


de sua morte, Fome: um tema proibido, já
na quarta edição, traz artigos publicados na
Europa durante os anos de exílio em Paris. A
idéia de sua filha Anna Maria de Castro, dou-
tora em Sociologia e professora da Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), de
reunir esses textos foi ensejada pelo momento
mundial, no qual as questões alimentares e,
principalmente, o fenômeno da fome estão
na pauta dos debates políticos, econômicos
e sociais. Mas do que trata esse livro, que
aborda um tema, à primeira vista, superado?
Aqui, refiro-me a sua característica de “tabu”
ou de ser tema proibido, haja vista tudo o
que vem sendo debatido na última década no
Brasil sobre fome e, mais recentemente, sobre
segurança alimentar e nutricional (SAN).
Esse livro trata, sobretudo, de des-
Fome: um tema naturalizar o modelo (que adotamos ou
que nos foi imposto) de desenvolvimento
proibido. Últimos mundial, que impede uma grande parcela da
escritos de Josué humanidade de alcançar condições dignas de
vida. Certamente, tal modelo – que dividiu
de Castro o mundo entre as pessoas que comem e as
Anna Maria de Castro (Org.) que não comem, em grupos desenvolvidos
Civilização Brasileira e “subdesenvolvidos” – tem como suas
240 págs. maiores expressões a fome, a miséria e a
desigualdade.
Na primeira parte do livro, estão
“Um dos maiores documentos humanos da reunidos artigos repletos de elementos dire-
história.” Desse modo é tratada a obra de cionados para a compreensão das causas da
Josué de Castro. Assim, parece que não há fome e suas conseqüências dramáticas para o
mais palavras para falar desse homem – que desenvolvimento de uma nação, revelando a
foi geógrafo, biólogo, sociólogo, médico e fome a partir de questões de raízes históricas
antropólogo – sem correr o risco de repetir e, portanto, estruturais. Josué de Castro acre-
elogios sobre sua humanidade e grandeza ditava que esse desvendamento da realidade
acrescidos de clareza e rigor científico de e seu conhecimento propiciavam a criação
seus escritos. Pode-se, ainda, concluir, de novas formas de pensar: “um pensamento
com algum pesar, que seus últimos escri- novo, uma nova consciência política à base de
tos, datados das décadas de 1960 e 1970, uma nova escala de valores surgidos de uma
sobre a fome, suas causas e conseqüências, nova experiência”. No fundo, os movimentos
continuam atuais. sociais, as organizações não-governamentais
Publicado por ocasião dos 30 anos e as entidades envolvidas com as lutas sociais

54 Democracia Viva Nº 24
r e s e n h a

lutam, sobretudo, para mudar valores. vez, abrange variadas questões relacionadas
Com essa abordagem, são construí- à alimentação e à nutrição. Contudo, sem o
dos os argumentos apresentados na segunda receio de restringir essa noção à fome, afirma-
parte do livro, dedicados ao desenvolvimento -se que insegurança alimentar e nutricional é,
mundial. Nessa parte, a edu­cação popular sobretudo, fome.
pautada no conhecimento e na compreensão Fome exprime falta, ausência, priva-
dos processos sociais é tida como a grande ção. Assim, chega-se à conclusão de que, se
saída para a transformação social. O autor eu não como, sinto fome. Se eu como – mas
acredita que isso deverá consistir em faci- pouco –, passo fome. Se como muito, mas
litar progressivamente sua reestruturação não do modo que quero ou quando quero,
econômica e social a partir de princípios tenho fome. Se como muito, quando eu que-
mais humanitários, que coloquem a huma- ro, mas sem qualidade, também passo fome.
nidade como centro do interesse social. Per- Se me é imposto algum tipo de alimento que
meado pelos debates sobre desenvolvimento não compreendo como comida, também sinto
no Terceiro Mundo, na última parte, estão fome. E, ainda, se o que eu como prejudica
artigos que sinalizam para a necessidade de a alimentação de alguém ou algum grupo
se apresentarem soluções conjuntas de ca- no presente ou em suas condições futuras
ráter local, global e sustentável que tenham de alimentação, também tenho fome. Com
como princípio a idéia de desenvolvimento alguma reflexão, é possível perceber que há
como sinônimo de ascensão humana. fome por toda parte, mas não visibilidade
Os artigos certamente ajudam nesse suficiente para que deixe de ser “oculta” e
exercício de desnaturalização dos cenários passe a se tornar um problema enfrentado
de fome, primeiro passo para de fato tornar em suas muitas expressões.
a alimentação um direito humano e alcan- Para além de resgatar alguns funda-
çar plenamente as tão almejadas segurança mentos essenciais das teorias sobre a fome,
e soberania em termos de alimentação e que estão na gênese da noção que se tem
nutrição. Aceitar esse exercício é reconhe- hoje de SAN, essa leitura fortalece valores
cer, mesmo com espanto, que ainda hoje a pautados na solidariedade, na humanidade,
fome é um tema proibido. Josué de Castro na cidadania e na democracia. Valores
alertou-nos para aquilo que ele classificou que precisam ser traduzidos em formas
genialmente de “fome oculta”, ou seja, de pensar e agir, essenciais no combate
caracterizada por carências nutricionais. a inúmeras desigualdades vivenciadas
Segundo o autor, “existem duas maneiras diariamente e que, segundo o consagrado
de morrer de fome, não comer nada e de- autor, de­v em guiar o modelo de desenvol-
finhar de ma­n eira vertiginosa até o fim, ou vimento que almejamos.
comer de maneira inadequada e entrar em
um regime de carências ou deficiências es- Vívian Braga
pecíficas capaz de provocar um estado que Pesquisadora do Ibase
pode também conduzir a morte”.
A maneira pela qual o autor com-
preendeu a fome possibilitou-nos refletir
sobre o tema e ampliá-lo. Hoje, a fome está
incorporada à noção de SAN, que, por sua

OUT / DEZ 2004 55


Ibase
opinião
Maurício Santoro*

Onde você
guarda o seu
racismo?
“Uma campanha contra o racismo? Mas você está no centro do debate público. O Ibase se junta
acha que esse é um problema sério no Brasil? A a esse movimento participando do grupo Diálogos
questão é a desigualdade econômica, não a cor contra o Racismo e preparando uma campanha
da pele.” Ouvi muita coisa desse tipo ao longo contra o racismo.
dos últimos meses, sempre que comentava com É uma história que remonta a 2001.
amigos e amigas que estava trabalhando com o Durante os debates que antecederam a Confe-
tema da discriminação racial. A maior parte das rência Mundial contra o Racismo, a Discrimina-
pessoas que me diziam isso era composta de ção Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de
cientistas sociais, jornalistas e economistas que Intolerância, formou-se no Brasil uma rede de
tinham preocupações com relação à sociedade organizações da cidadania ativa que pretendia
brasileira e impecáveis credenciais progressistas. discutir esses temas. O grupo foi batizado como
Por que a dificuldade em encarar o racismo? Diálogos contra o Racismo e realizou quatro
O movimento negro faz duras – e mereci- encontros desde então.
das – críticas à elite política do Brasil pela recusa Uma das principais preocupações desse
em encarar o racismo como um dos principais grupo é destacar que o combate ao racismo é
problemas nacionais. Durante muito tempo, essa importante para a população não-negra e não
questão foi encoberta pelo mito da democracia pode ficar restrito ao movimento negro. Dessa
racial e pela crença de que o desenvolvimento perspectiva, surgiu a idéia da criação de uma
econômico geraria emprego e oportunidades para campanha contra a discriminação racial que
todas as pessoas, independentemente da cor da tivesse como público-alvo essa população.
pele. Felizmente, esse quadro de auto-ilusão já O sociólogo Florestan Fernandes, pio-
começou a mudar. O governo Lula inovou ao criar neiro dos estudos sobre o tema, observou que,
uma secretaria para a promoção da igualdade no Brasil, as pessoas não se acham precon­
racial, e a discussão sobre cotas e ação afirmativa ceituosas. De fato, uma recente pesquisa da

56 Democracia Viva Nº 24
Fundação Perseu Abramo mostrou que 87% pais, mães ou avós e, agora, lutava para deixar
da população brasileira acredita que existe de lado esse legado familiar.
racismo no país, mas apenas 4% da população Às vezes, a discriminação se manifesta
admite que é racista.1  O problema é sempre em pequenos gestos e expressões que, à pri-
alheio ou, então, é atribuído à sociedade, de meira vista, podem até parecer carinhosos.
maneira abstrata. Por exemplo, foi comum a menção a um(a)
Seríamos um país de “racismo sem racis- ne­gro(a) que “foi criado(a) quase como al-
tas”? Como abordar um problema que ninguém guém da família”. Em geral, um eufemismo
sequer admite que tem? A opção foi criar uma que significa alguém que prestava serviços de
campanha provocadora, para incomodar e fazer faxina, arrumação e cozinha. Como observa a
pensar. O mote – “Onde você guarda o seu professora da Universidade Federal do Rio de
racismo?” – parte do pressuposto de que todas Janeiro (UFRJ) Liv Sovik, uma das organizadoras
as pessoas são um pouco racistas. Podemos não da cam­panha, “quando no Brasil alguém diz
ter atitudes que mostrem isso abertamente, mas, que uma pessoa é ‘quase da família’, podemos
por alguma razão, mantemos a bizarra crença ter certeza de que essa pessoa não é branca”.
de que a cor da pele torna as pessoas melhores O mote da campanha é tão provocador
ou piores do que outras. que estimulou um debate entre as pessoas
A equipe da campanha foi a diversos da equipe coordenadora. Nas reuniões de
locais do Rio de Janeiro – shoppings, praias, organização e nos bastidores das filmagens
Feira de São Cristóvão, Lagoa Rodrigo de Frei- dos comerciais, nós nos perguntávamos onde
tas – e perguntou a mais de 200 pessoas onde guardamos nosso racismo – afinal, não somos
guardavam seu racismo. As respostas foram melhores do que as pessoas que entrevistamos.
transformadas em comerciais de TV e também Dessas discussões surgiu a idéia de fechar os
serviram de base para a preparação de cartazes, anúncios e os cartazes com a frase “Jogue fora
folhetos e outdoors. seu racismo”, pois ninguém gosta de guardar 1 “Discriminação racial e pre-
conceito de cor no Brasil”.
As reações à pergunta seguiram quase uma coisa ruim. Pesquisa realizada em setembro
todas o mesmo roteiro. Começaram com olhos e outubro de 2003 e disponível
em <www.fpa.org.br/nop/racis-
arregalados e uma expressão de surpresa. Em mo/preconceito.htm>.
seguida, a pessoa entrevistada garantia que
não era racista, de jeito nenhum. Às vezes, até
mostrava sua indignação com o problema da Algumas respostas à pergunta “Onde você guarda
discriminação racial. Graças à habilidade da o seu racismo?”
jornalista Helena Rocha, que conduziu as en- • “Nas piadas.”
trevistas, essa fachada de frases politicamente • “Não sou racista, mas a sociedade me obriga a ser.”
corretas ruiu diante dos exemplos concretos. O • “No passado, isso é algo da escravidão, não existe mais.”
que você faria se estivesse numa rua escura e
• “Como é que vou ser racista se minha noiva é morena?”
aparecesse um negro? E se seu filho namorasse
• “No medo.”
uma negra? Ahn, bem...
• “Eles são muito piores. Quando conseguem um bom empre-
Após o constrangimento inicial, as pes- go, pisam na gente.”
soas começavam a se mostrar mais à vontade e • “No inconsciente.”
a falar abertamente do racismo que continuam • “Não sou racista. Talvez eu simplesmente não goste de gente
a guardar, mesmo que, em muitos casos, sou- que faz coisas erradas.”
bessem que é uma atitude errada. Houve quem
dissesse que herdou esse comportamento de

OUT / DEZ 2004 57


opinião

Contudo, há quem considere que, embo- oposto da escala educacional, 7,5% dos brancos
ra existam casos de discriminação racial aqui e e brancas são analfabetos, mas o número cresce
ali, o Brasil não é um país racista. Ou seja, para para cerca de 20% dos afrodescendentes.3
essas pessoas, é um problema ocasional, fruto de As estatísticas do Instituto Brasileiro de
atitudes equivocadas de alguns indivíduos, mas Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, mes-
que não tem impactos gerais na sociedade. Para mo quando têm a mesma quantidade de anos
elas, a questão é mesmo pobreza e desigualdade de estudos da população branca, negros e negras
social. Desse modo, o fato de que a maioria da ganham salários mais baixos. Com o ensino médio
população pobre é formada por afrodescen- completo, um(a) branco(a) tem rendimento de
dentes não passaria de mera conseqüência dos R$ 870 contra R$ 655 de ne­gros(as). Para quem
quatro séculos da escravidão no Brasil, apesar passou pelo funil do diploma universitário, esses
de já terem se passado mais de cem anos desde valores são de R$ 2.003 e R$ 1.278.4
a Abolição. No entanto, as estatísticas mostram As dificuldades para negros e negras
que a cor importa. ascenderem no sistema educacional está ligada
ao círculo vicioso da pobreza, mas também, de
modo fundamental, à violência do racismo nas
Em números
escolas: piadas, insultos, agressões, desvalorização
Um dos indicadores sociais mais respei- sistemática da cultura e da história da população
tados do mundo é o Índice de Desenvolvimento afrodescendente. Mas “normalmente é provável
Humano (IDH), elaborado pelo Programa das que ela [a discriminação] se concretize por meio
Nações Unidas para o Desenvolvimento. Criado de uma ‘profecia’ auto-realizável, que leva os
pelo Nobel de economia Amartya Sen, reúne da- professores a investirem mais nos estudantes
dos sobre educação, esperança de vida e renda. brancos”.5  É fácil compreender os efeitos desses
O sociólogo Marcelo Paixão, coordenador do comportamentos na auto-estima de negros
Observatório Afro-brasileiro e professor da UFRJ, e negras, acostumados a ouvir desde criança
calculou o IDH brasileiro separadamente, para que as grandes oportunidades na vida estão
a população branca e negra – todos os dados reservadas para pessoas de pele clara.
apresentados neste artigo incluem pre­tos(as) e Um padrão semelhante ocorre no mercado
par­dos(as) na categoria ne­gros(as), que são cerca de trabalho. Ninguém ignora que anúncios de
de 45% dos(das) habitantes do país. emprego que pedem “boa aparência” quase
O resultado é que, em 2001, o IDH da sempre significam a exclusão de afrodescendentes,
população branca foi de 0,820, ao passo que o da sobretudo quando se trata de ambientes freqüen-
negra alcançou somente 0,712. A disparidade se tados pela elite, como shoppings, hotéis luxuosos
mantém quando os dados são desagregados para ou lojas sofisticadas. A discriminação também se
as regiões brasileiras, tanto as mais ricas como as reflete em programas de TV e comerciais. Estrelas
mais pobres. No Sul, por exemplo, os números negras, como Taís Araújo e Camila Pitanga, são
são respectivamente 0,837 e 0,753. No Nordeste, uma bela novidade na televisão brasileira, mas
0,739 e 0,704. Para se ter uma idéia do que isso grande parte dos atores e atrizes afrodescenden-
representa em termos de desigualdade, é preci- tes ainda está relegada a papéis de serviçais, como
so imaginar a realidade de países diferentes: “O se sua cor fosse um pecado.
IDH da população negra é equivalente ao que O racismo também se manifesta no co-
fica entre El Salvador e China, na 107a posição tidiano das empresas. A exemplo do que acon-
(em 175 nações)... Já a branca apresentou IDH tece nas escolas, negros(as) sofrem com piadas e
2 PAIXÃO, Marcelo. A hipótese equivalente ao Kuwait, 46a posição”.2 agressões e são, com freqüência, pre­teridos(as) nas
do desespero: a questão racial
em tempos de frente popular. É comum o argumento de que a pobreza promoções, com base num código implícito de
Observatório da Cidadania
2003: população pobre versus
da população negra seria explicada pelo patamar que não é “apropriado” para uma grande empresa
mercado. Rio de Janeiro: Ibase, educacional. Se afrodescendentes tivessem boa ter executivos(as) afrodescendentes em posições
2003, p. 62.
instrução formal, em escolas e universidades, con- de comando. Segundo os dados do Balanço Social
3 TELLES, Edward. Racismo à
brasileira: uma nova perspectiva seguiriam melhorar de vida tanto quanto qualquer Ibase, negros(as) são apenas 13,7% do total de
sociológica. Rio de Janeiro: pessoa de pele clara. Isso se refletiria em salários pessoal efetivo das empresas e ocupam somente
Relume-Dumará, 2003, p.
202 e 203. mais altos e empregos de prestígio, incluindo 4,3% das posições de chefia. Co­mo afirma o co-
4 HERINGER, Rosana (Org.). posições de destaque nas Forças Armadas, na ordenador do projeto, João Su­cu­pira: “O simples
Sonhar o futuro, mudar o
presente: diálogos contra o
diplomacia, nas grandes empresas etc. ato de informar a quantidade de negros e negras
racismo, por uma estratégia Primeiro, os indicadores da desigualdade. existente na empresa virou um pesadelo... Um
de inclusão racial no Brasil. Rio
de Janeiro: Ibase, 2002, p. 13. Enquanto 11% da população branca completou um empresário chegou a dizer que, se fosse incluído
5 TELLES, op. cit., p. 238. curso universitário no Brasil, entre a parcela negra o item ‘número de trabalhadores negros’, ele
esse percentual é de apenas 2,6%. No extremo

58 Democracia Viva Nº 24
Onde você guarda o seu racismo?

não apoiaria a campanha pela divulgação do e juízas em aplicar penas rigorosas nesses casos.
balanço social”.6 A Constituição de 1988 trouxe inovações, como
Além do trabalho e da escola, há outro o reconhecimento das terras de quilombos e a
campo no qual as conseqüências do racismo defesa dos “direitos difusos” por instituições
podem ser, literalmente, fatais. Trata-se da ação como o Ministério Público, que se tornou um
da polícia. “Todo camburão tem um pouco importante agente nas campanhas contra a discri-
de navio negreiro”, diz uma canção da banda minação racial. Também se consolidou, entre as or-
Rappa. A cor da pele já é suficiente para indicar ganizações de cidadania ativa que atuam na área,
um “comportamento suspeito” e garantir revistas o recurso de recorrer aos tribunais internacionais
em batidas policiais, abordagens truculentas e até de direitos humanos, no âmbito da Organização
mesmo a morte. Flávio Sant’Ana, o dentista negro das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos
assassinado pela PM paulista em fevereiro de 2004, Estados Americanos (OEA).
teria sido confundido com um ladrão se fosse louro A ONU é um
e tivesse olhos azuis? O caso ganhou destaque fórum especialmen-
por se tratar de uma vítima de classe média, mas te relevante para o
qualquer adolescente negro(a), em especial se for combate ao racismo.
morador(a) de favela ou de periferia, sabe que essa Durante décadas, a
é apenas a ponta do iceberg, com a maioria dos posição do Itamaraty
casos submersos abaixo da linha da pobreza. foi a defesa da supos-
No Brasil, o número de homicídios por ano é ta “democracia racial”
comparável ao de um país em guerra. Só em 2000, brasileira como um
foram 40 mil assassinatos, a maioria de homens modelo de tolerân-
(90%) e concentrados na faixa etária de 15 a 24 cia a ser adotado por
anos (230 mortes por 100 mil habitantes, contra outros países. Com o
uma média nacional de 27). Desses assassinatos, co­lapso desse mito,
grande parte é de negros, a ponto de que, para a diplomacia come-
alguns especialistas, “o que está ocorrendo é um çou a mudar, embo-
genocídio de jovens, e negros em particular”. Na ra num ritmo lento.
faixa dos 14 aos 19 anos, os homicídios de negros O Brasil poderia ter
são 17,2% superiores aos dos brancos.7  sediado a Conferên-
As estatísticas provam uma realidade cia Mundial contra o
incômoda. A raça importa. Não é apenas a Racismo, que acabou
condição socioeconômica, ser afrodescenden- ocorrendo na África
te significa ser submetido(a) a discriminações do Sul, mas o gover-
brutais e sistemáticas, e não apenas ao racismo no FHC avaliou que
ocasional dessa ou daquela pessoa. seria alvo de ataques
Não é por acaso que governos autoritá- do movimento negro
rios, como foi a ditadura militar brasileira, têm durante o evento.
dificuldades em lidar com a questão racial. Os O medo de ver as
generais de 1964 tiraram as perguntas relativas mazelas nacionais
à cor da pele do Censo de 1970, porque sabiam expostas diante dos
que os resultados seriam contrários ao mito da países desenvolvidos,
democracia racial. Mesmo hoje, a maioria dos um dos grandes hor-
países latino-americanos deixa de fora dados sobre rores da elite brasilei-
raça em seus censos, o que torna mais complexa ra, falou mais alto do 6 SUCUPIRA, João. Balanço
social: diversidade, participação
a tarefa dos movimentos antidiscriminação. Sem que o compromisso com a justiça racial. e segurança do trabalho. De-
mocracia Viva, Rio de Janeiro,
informações precisas a respeito dos efeitos do Contudo, a estratégia oficial não adian- jun./jul. 2004, p. 59.
racismo, é mais árduo o esforço para combatê-lo. tou muito. O movimento negro se mostrou com- 7 LEMGRUBER, Julita; RAMOS,
petente e bem-articulado internacionalmente e Silvia. Urban violence, public
safety policies and responses
utilizou a conferência de Durban para denunciar from civil society. Social Watch
Políticas contra o racismo 2004: fear and want. Montevi-
as condições aviltantes da população negra déu: Instituto del Tercer Mundo,
Apesar de todos os problemas, a luta contra o no Brasil. Nesse processo, foi vital o trabalho 2004, p. 136. Ver também
LEMGRUBER, Julita. Violência,
racismo no Brasil avançou muito ao longo dos de uma série de cientistas sociais dedicados ao omissão e insegurança públi-
últimos anos. Embora a legislação anti-racismo estudo do racismo (as notas deste artigo citam ca: o pão nosso de cada dia.
Disponível em: <www.cesec.
remonte à década de 1950 (Lei Afonso Arinos), alguns desses homens e mulheres), cujas análises ucam.br/publicacoes/textos.
asp.> Acesso em: 3 set. 2004.
é notoriamente difícil condenar alguém com e pesquisas têm ajudado muito na compreensão
base nela, até mesmo pela resistência de juízes da seriedade e da profundidade do problema.

OUT / DEZ 2004 59


opinião

* Maurício Santoro O governo acabou recuando e esta- entrada para a universidade e prejudicam
Pesquisador do Ibase belecendo, pela primeira vez, programas de principalmente a população branca e pobre.
ação afirmativa, como o do Ministério das Há também quem afirme ser impossível dizer
Relações Exteriores, que concede bolsas para quem é negro(a) num país com a miscigenação
can­d i­d a­t os(as) afrodescendentes à carreira do Brasil.
diplomática. O Ministério da Justiça foi mais A primeira objeção cai por terra quando
longe e es­ta­beleceu cotas para negros(as) em se examina a tradição jurídica brasileira – as
seus pro­cessos de seleção de pessoal. cotas são aplicadas desde a era Vargas, utiliza-
Com a posse de Lula na Presidência da das na educação, serviço público, mercado de
República, a questão racial ganhou importância, trabalho e, mais recentemente, até em partidos
ocupando espaço iné­dito na agenda política políticos para diversas categorias que enfrentam
brasileira. Em 21 de março de 2003, Dia Interna- maiores dificuldades: deficientes, mulheres,
cional pela Elimina- filhos(as) de agricultores (que têm cotas em es-
ção da Discriminação colas de agronomia) e até para pessoas nascidas
Racial, foi criada a no Brasil, para se protegerem da concorrência
Secretaria Especial de de estrangeiros(as). Acordos diplomáticos como
Políticas de Promoção a Convenção 111 da Organização Internacional
da Igualdade Racial do Trabalho, de 1965, também determinam
(Seppir), que coor- que sejam implantadas políticas que corrijam
dena a ação go­ver­ situações de discriminação racial.8
na­mental nessa área. É evidente que cotas raciais são somente
No Congres- uma das medidas necessárias para diminuir a
so, circulam 25 pro- desigualdade e democratizar as universidades
jetos ligados à ação e é preciso pensar em políticas específicas
afirmativa, incluindo também para brancos(as) pobres. Mas é injus-
o Estatuto da Igual- to e cruel dizer à população negra que tenha
dade Racial. Essa paciência e espere mais algumas gerações até
proposta, de autoria que se resolva permitir seu acesso ao ensino
do senador Paulo superior. Também é lógico que se devem pla-
Paim (PT-RS), abarca nejar programas de acompanhamento para
áreas como saúde, afrodescendentes que ingressem no terceiro
educação, mercado grau por cotas, para que possam permanecer na
de trabalho e regu- universidade e recuperar eventuais deficiências
lamentação de terras de formação educacional.
quilombolas. Cria Também se afirma que não é fácil sa-
ouvidorias para rece- ber quem é negro(a) no Brasil. Isso é curioso,
ber queixas ligadas à pois, quando se trata de discriminar, agredir e
discriminação racial humilhar, sabe-se muitíssimo bem. O critério
e um fundo para mais usado, em todo mundo, é o da auto-
financiar políticas de -identificação. Considera-se afrodescendente
ação afirmativa. quem assim se declara. Claro que podem ocor-
A medida rer abusos e talvez, pela primeira vez na história
mais controversa brasileira, brancos(as) queiram se passar por
adotada nos últimos negros(as) para obter vantagens. Com a prática
anos é o estabeleci- e a experiência, serão formuladas maneiras de
mento de cotas para estudantes afrodescen- amenizar esses problemas.
dentes nas universidades públicas, como aque- O debate sobre o racismo no Brasil mal
las implantadas pela Universidade do Estado começou e, com certeza, ficará muito melhor. Por
do Rio de Janeiro (Uerj) e pela Universidade ora, paremos por aqui. Para um país racista, mas
8 Devo esses esclarecimentos de Brasília (UnB), às vezes por iniciativa das supostamente sem racistas, este artigo já está
a uma palestra de Hédio Silva, de bom tamanho.
doutor em Direito e diretor do
assembléias legislativas estaduais, como no Rio
Centro de Estudo das Relações de Janeiro. As críticas a esses projetos foram
de Trabalho e Desigualdade
(Ceert), no I Encontro Brasileiro variadas. Para algumas pessoas, as cotas são
de Bolsistas do Programa Inter-
nacional de Bolsas da Fundação
uma tentativa de aplicar no Brasil um modelo
Ford, ocorrido no Rio de Janei- pensado para a realidade dos Estados Unidos.
ro, em 16 de junho de 2004.
Para outras, ferem o princípio do mérito na

60 Democracia Viva Nº 24
O Jornal da Cidadania é distribuído
para pessoas que têm pouco ou ne-
nhum acesso à informação crítica e
comprometida com a democracia.
Nossos leitores e leitoras são, espe-
cialmente, estudantes e professoras
e professores de escolas públicas
de todo o país. Mas também traba-
lhadoras e trabalhadores urbanos e
rurais, líderes comunitários, mora-
doras e moradores de comunida-
des pobres. São 60 mil exemplares
distribuídos gratuitamente.

Participe de mais esta iniciativa do


Ibase. Você pode ajudar com contri-
buições financeiras ou organizando
um núcleo de distribuição.

OUT / DEZ 2004 61


Indicadores
Leonardo Méllo *

Finda a
asfixia, a
cidadania
tem nome e
O Fórum Social Mundial (FSM) se constitui hoje no maior encontro da sociedade civil

mundial organizada. Apenas no âmbito de uma perscrutação superficial, este artigo

se propõe a trazer informações sobre os(as) participantes desse grande evento de

promoção da cidadania, de resistência e contraposição à globalização. As informações

apresentadas a seguir são fruto de uma consulta feita a mais de 3.500 pessoas das 115

mil presentes ao FSM da Índia (2004), com algumas comparações em relação ao que

ocorreu em 2003 em Porto Alegre.

Nos dois eventos, foram realizados trabalhos que pretendiam captar a identidade

dos(as) participantes. Na Índia, quisemos criar elementos de comunicação daquele tra-

balho com o realizado anteriormente, mas, ao mesmo tempo, pretendemos avançar e

apreender os temas e questões considerados importantes para a construção desse outro

mundo que acreditamos ser possível.

62 Democracia Viva Nº 24
Nesse sentido, sugerimos uma consulta O Fórum Social Mundial, por sua vez,
ao questionário entregue ao público durante emerge na forma de um contraponto, catalisador
o evento. No questionário, pedia-se que fos- do dissenso, ou melhor, uma caixa de ressonância
sem indicadas questões temáticas que o(a) para a diversidade de vozes que não é convidada
entrevistado(a) considerava de maior ou menor a participar do Fórum de Davos, trazendo as pes-
importância para a construção de um outro soas de todo o mundo para que se encontrem e
mundo (pág. 68). dialoguem. Não foi – e não tem sido – um gran-
Dada a limitação que um artigo desta de Woodstock ou turismo social, como querem
natureza impõe, escolhemos não utilizar todo detratores(as). Ao contrário, tem sido o espaço de
o espaço apenas com nossa percepção e análi- expressão de opiniões que se contrapõem à idéia
se, mas outorgar ao público leitor a chance de de pensamento único, de fim da história, de que
elaborar suas próprias. Para tanto, serão repro- não há outra alternativa senão a de arcar com o
duzidas tabelas originais dos dados tabulados ônus de um modelo de sociedade que provoca a
e ponderados. Ao fim, esse trabalho poderá se deliberada exclusão de centenas de milhares de
constituir em um primeiro passo para que se pos- seres humanos por todo o mundo.
sa construir uma sociologia do(a) participante, De posse dos dados oficiais, esperamos
um perfil de quem são, quais suas convicções poder cumprir com a promessa que ficara implí-
e o que querem as pessoas que concretizam cita no último artigo escrito sobre esse evento1
aquilo que conhecemos como o maior encontro e trazer mais luzes sobre a quantidade e a
de lideranças sociais que já se viu. qualidade da participação no FSM.
Todo o mundo está atento ao que se
passa no Fórum, não apenas porque se consti-
Participação diferenciada
tui no mais importante contraponto ao Fórum
Econômico Mundial (Davos), mas porque, se há Estiveram presentes no FSM 2004 aproximada-
um espaço onde aparecerão propostas e pessoas mente 115 mil pessoas, das quais quase 100 mil
dispostas a discutir a construção de um outro indianos(as), representando mais de cem países,
mundo, de pensar uma alternativa àquilo que cobrindo todos os continentes do globo. O mapa
em Davos é apresentado como inevitável, esse a seguir oferece uma noção da participação
espaço é o FSM. dos(as) delegados(as). É interessante notar o
Para entendermos um pouco do FSM, déficit de globalidade do Fórum quando olhamos
é importante voltar nossa atenção ao processo a África ou os países do Leste Europeu. Por outro
que engendrou sua formação, em poucas pa- lado, países como França e Estados Unidos mais
lavras, saber o que o FSM é significa compre- uma vez aparecem entre os dez mais.
ender o contexto no qual ele foi formado e o A captação das informações sobre a pre-
significado do próprio Fórum de Davos. sença no Fórum não se deu apenas por meio da
Davos se propõe ser um espaço onde líde- nacionalidade das pessoas. Em se tratando de
res mundiais se encontram para discutir diferentes um evento cujo maior objetivo foi justamente o
visões da sociedade, as mudanças em curso ou de debater as alternativas à forma pela qual o
esperadas, cenários para o qual o desenvolvimento mundo caminha e propor a discussão de temas
econômico será levado, em que ocorre uma intensa e prioridades para a construção de um outro
troca de experiências e opiniões. mundo, é importante considerar que a natureza
Davos está para o mundo no seu po- da participação foi diferenciada. Nesse sentido,
tencial de influenciar governos e pessoas em existia a possibilidade de as pessoas participa-
1 Artigo de minha autoria em
uma medida que não há paralelo na órbita da rem como delegados(as), obser­va­dores(as) ou parceria com Silvana de Paula,
publicado na Democracia Viva
sociedade civil organizada. acampados(as). nº 20 (fev./mar. 2004).

OUT / DEZ 2004 63


indicadores

Delegados(as) – Presença no FSM 2004 por nacionalidade

Países presentes: 106 Ausente


Total de delegados(as): 71.506 1–9
10 – 99
100 – 854
Índia, Paquistão e Nepal

Essas três formas de inserção, assim que desempenham o papel mais importante.
como no Brasil, identificavam as pessoas entre Sendo assim, centraremos nossa atenção sobre
aquelas que teriam ido ao Fórum para debater esse grupo, para tentar vislumbrar qual é o perfil
propostas, preparadas e articuladas previamente do núcleo duro da militância contra a globalização
para contribuir no debate da construção de um na forma que conhecemos hoje.
outro mundo, outras pessoas que naturalmente Tabela 1
se sentiriam atraídas para conhecer o even-
to – o que atende a uma das preocupações Participação por categoria
de inserção (em%)
da organização do Fórum (tornar o evento
FSM 2003/2004
próximo da pessoa comum), além das pessoas
comprometidas principalmente com os eventos Porto Alegre Índia
e debates que ocorrem nas dependências do 2003 2004
Acampamento da Juventude. Delegados(as) 23 62
Entre delegados(as), observadores(as) e
Observadores(as) 50 36
acampados(as), a proporção da presença foi a
seguinte (Tabela 1): Acampados(as) 27 2
Nesse ponto, há uma significativa dife-
rença para o Fórum de Porto Alegre ocorrido Delegados(as) corresponderam a mais
em 2003, quando delegados(as) representavam de 70 mil pessoas, das quais quase 60 mil de
23% e acampados(as), 27%. Isso se explica na indianos(as). Das demais nacionalidades nesse
Índia pois os(as) responsáveis pela organização grupo, destacam-se entre os dez países mais
buscaram meios específicos para aumentar esse presentes, cinco da própria região: Paquistão,
tipo de participação. Nepal, Bangladesh, Tibet e Sri Lanka, além da
O Fórum se propõe a ser um espaço de Índia. Os demais quatro são Brasil, Estados Uni-
reflexão, troca de experiências e discussão de alter- dos, França e Alemanha. É interessante lembrar
nativas, mas, para tanto, são os(as) de­lega­dos(as) que França e Estados Unidos também foram

64 Democracia Viva Nº 24
Finda a asfixia, a cidadania tem nome e sobrenome

os países mais presentes no Brasil em 2003. A Em relação ao sexo, delegados(as) possu-


seguir, são apresentados os números relativos íam uma proporção maior de homens (55,2%),
à presença de delegados(as) dos 20 países mais inferior até do que asiáticos(as) (62,5%), e muito
presentes (Tabela 2). inferior aos dos demais países (45%). Essa maio-
Em relação às três principais formas ria feminina aparecia também no acampamento
de inserção, para todas as nacionalidades (52% de mulheres), mas não entre obser­vado­
houve muito mais delegados(as) inscritos(as) res(as) (48,3%), ou seja, quase um equilíbrio,
do que observadores(as) e acampados(as), o se considerada a diferença dos demais grupos.
que diferencia o Fórum da Índia do último No Fórum da Índia, houve o que já se
ocorrido no Brasil, em que os(as) brasileiros(as) esperava e que ocorria quando no Brasil se
eram em sua maioria acampados(as), e os(as) realizou o evento: uma maciça presença de
estrangeiros(as), delegados(as). pessoas do país-sede, indianos(as), seguido
Tabela 2
Total de delegados(as)
País de moradia Total % % sem Índia

Índia 59.817 83,7

Países asiáticos 5.298 7,4 45,3


Paquistão 1.249 1,7 10,7
Nepal 1.081 1,5 9,2
Bangladesh 785 1,1 6,7
Tibet 532 0,7 4,6
Sri Lanka 425 0,6 3,6
Demais países asiáticos 1.226 1,7 10,5

Restante do mundo 6.391 8,9 54,7


Brasil 854 1,2 7,3
Estados Unidos 772 1,1 6,6
França 661 0,9 5,7
Alemanha 471 0,7 4,0
Itália 411 0,6 3,5
Demais países 3.222 4,5 27,6

Total 71.506 100 100

pelos países da região, em especial o Paquistão no Fórum de 2003 (Tabela 4). Essa informação
e o Nepal. é coerente com a de escolaridade, em que há
Muitas outras questões foram feitas para mais pessoas com formação superior, mestra-
que pudéssemos identificar as características e do e doutorado. Por outro lado, a pequena
a inserção social dos(as) participantes. Não será
possível expor todas neste espaço; portanto, Delegados(as) – Presença por continentes – exceto Índia (em
privilegiaremos as relativas à idade, à formação %) – FSM 2004
educacional e à participação política.
Quanto à escolaridade, ao contrário do
que se previu e do que se falou durante o evento,
houve maior participação de pessoas com mais
anos de estudo na Índia. Isso se explica, em parte,
pelo peso pequeno que a participação de pessoas Ásia 46%
acampadas teve nesse evento e pelo peso muito Europa 27%

maior dos(as) delegados(as) (Tabela 3). América do Norte 10%


América do Sul 9%
A faixa etária aponta que um terço da
África 6%
participação foi de pessoas de 14 a 24 anos,
Oceania 2%
outro terço de 25 a 34, e o restante com 35
anos ou mais, um peso superior ao verificado

OUT / DEZ 2004 65


indicadores

participação de pessoas no Acampamento da um aumento significativo. O que “puxa” esse


Juventude em 2004 é retratada na menor par- engajamento “para baixo” é a participação de
ticipação das faixas etárias mais jovens (31% observadores(as) e acampados(as). Estima-se que
em 2004 contra 37,3% em 2003). do total de observadores(as), aproximadamente
Finalmente, é interessante verificar a 95% tenha sido de indianos(as). Só para dar
substantiva diferença da filiação a partidos um exemplo, sobre a questão da participação
políticos que esse Fórum aponta. A redução é em eventos prévios ao Fórum, se considerarmos
muito grande, mesmo se consideramos a cate- apenas os(as) delegados(as) não-asiáticos, verifi-
goria de participação em que há maior filiação, camos um valor superior a 44%, contra 33,6%
a dos delegados(as) não-asiáticos(as), que é de em 2003 (Tabelas 6, 7 e 8). Em geral, quando
25,9% (Tabela 5). olhamos como o grupo de delegados(as) se
Sobre o engajamento político do(a) desdobra, verificamos que há uma tendência
participante, outras perguntas foram feitas. Em a aumentar o engajamento quando passa-
primeiro lugar, a idéia foi medir o envolvimento mos de delegados(as) indianos(as) para não-
das pessoas em movimentos/organizações so- -asiáticos(as), sendo os(as) asiáticos(as), em
Tabela 3 geral, um valor intermediário.
Escolaridade do público (em %)
FSM 2003/2004 Ação e reação
Total 2003 Total 2004
Uma parte importante do questionário, e da qual
Até 8 anos 4,7 9,5 não poderíamos deixar de falar, são as perguntas
9 a 12 anos 21 10,4 abertas sobre os temas que deveriam ser tratados
Superior incompleto 36,2 13,6
para a construção desse novo mundo postulado
pelo processo do Fórum. Foram sugeridos 43
Superior completo 27,5 21
temas pré-definidos para que o(a) entrevistado(a)
Mestrado ou doutorado 9,7 42,2 apontasse o grau de importância do mesmo na
Outros – NS/NR* 0,9 3,3 construção de um outro mundo (página 68).
Total 100 100 Como resultado, elaboramos um “mapa” de
temas que os(as) participantes do Fórum vêem
*não sabe/não respondeu
como prioritários, o qual pode ser lido e agregado
ciais, em seguida, medir a participação desses pelo continente de origem do mesmo ou até
movimentos/organizações sociais em atividades seu maior ou menor engajamento político. Essas
prévias ao Fórum e seu envolvimento em redes. informações estão sendo processadas e em breve
Em termos gerais (na média), aferimos serão divulgadas. No entanto, imaginamos que,
uma pequena redução na intensidade com que mesmo havendo muitas opções, é sempre bom
as pessoas estariam se engajando, ou seja, me- dar espaço para a dúvida. Assim, foi pedido às
nos pessoas participando de organizações ou pessoas entrevistadas que sugerissem temas que
movimentos sociais, com menor participação em consideravam importantes, mas estavam ausentes
atividades prévias ao Fórum e menor inserção da lista apresentada.
em redes. Mas se olharmos com cuidado como Essa pergunta deu origem a 2.924 suges-
se desdobram esses dados, veremos que em tões, a bem da verdade, nem todas exatamente
relação aos(às) delegados(as), na verdade houve novas. Essa foi a primeira experiência em que se
Tabela 4 perguntou às pessoas participantes do Fórum
sua opinião sobre os temas discutidos, sobre as
Faixa etária do público (em %)
prioridades. As pessoas aproveitaram essa opor-
FSM 2003/2004
tunidade e reagiram das mais variadas formas.
Total 2003 Total 2004
A cada uma era permitido fazer su-
14 a 24 anos 37,3 31 gestões de até três novos temas. Algumas
25 a 34 anos 25 32,1 deram até cinco palpites, mesmo tendo sido
35 a 44 anos 19,9 18,1 orientadas em contrário. Naturalmente, não
foram todas sugestões novas, o que nos leva
45 a 54 anos 12,6 13,1
à questão seguinte.
55 anos e mais 4,9 5,4 Em um trabalho em que mais de 3.800
NS/NR* 0,3 0,3 pessoas são entrevistadas, quase a metade
Total 100 100 optou por fazer sugestões espontâneas, 1.400
*não sabe/não respondeu
pessoas, sendo o resultado um conjunto de

66 Democracia Viva Nº 24
Finda a asfixia, a cidadania tem nome e sobrenome

Tabela 5
Filiação a partido político (em %) – FSM 2003/2004
Categorias selecionadas FSM 2004

Total 2003 Total 2004 Delegado indiano Delegado asiático Delegado não-asiático
Sim 35 12,7 13,5 23,4 25,9
Não 63 84,5 83,9 75,2 73,3
NS/NR* 3 2,8 2,7 1,4 0,8
Total 101 100 100 100 100
*não sabe/não respondeu

Tabela 6
Participação em organização/movimento social (em %) – FSM 2003/2004
Categorias selecionadas FSM 2004

Total 2003 Total 2004 Delegado indiano Delegado asiático Delegado não-asiático
Sim 64,9
60,4 70,2 69,4 80,6
Não 35,1
39,6 29,8 30,6 19,4
Total 100 100 100 100 100

Tabela 7
Participação em atividade prévia (em %) – FSM 2003/2004
Categorias selecionadas FSM 2004

Total 2003 Total 2004 Delegado indiano Delegado asiático Delegado não-asiático
Sim 33,6
29,1 32,8 37,7 44,5
Não 66,4 66 62,3 60,1 52,6
NS/NR* - 4,9 4,9 2,2 2,9
Total 100 100 100 100 100
*não sabe/não respondeu

Tabela 8
Participação de movimento/organi­zação compromisso em relação a essa formulação de
social em redes (em %) alternativas e debate, o que se reflete também
FSM 2003/2004 na maior intensidade pela qual esse grupo fez
suas sugestões, 882 pessoas, mais do que a
Total 2003 Total 2004
soma dos demais grupos. Qual a natureza das
Sim 33,6 29,1 sugestões registradas, uma vez que em escala
Não 66,4 66 tão grande? Em primeiro lugar consideramos
NS/NR* - 4,9 prudente que o público leitor conheça as op-
ções disponíveis no questionário (pág. 68). Só
Total 100 100
assim obterá uma compreensão mais abran-
*não sabe/não respondeu
gente dos resultados que serão apresentados.
Há pelo menos duas perspectivas que
quase 3 mil sugestões. Essas idéias refletem podemos adotar para perscrutar as informações
exatamente o que é a proposta do Fórum, não geradas. A primeira é do conteúdo das suges-
só para fora, de promover a inclusão, bem como tões, e a segunda é das ações que as pessoas
em sua prática interna, de aproximação entre entrevistadas gostariam que fossem tomadas.
a organização e os(as) participantes, e dos(as) As idéias mais citadas, e que parecem
participantes entre si. refletir as preocupações dos(as) participantes,
Mas, como afirmamos anteriormente, encontram-se ao lado (Tabela 9). Devemos res-
delegados(as) seriam as pessoas com maior

OUT / DEZ 2004 67


indicadores

* Leonardo Méllo saltar que essa tabulação é apenas uma referên- Tabela 9
Coordenador do Ibase e cia das pessoas entrevistadas, e não a opinião Idéias/temas mais citados nas ques-
da pesquisa FSM 2004, de todas as pessoas presentes ao Fórum. tões abertas – FSM 2004
elaborada e aplicada O Fórum caminha a passos largos para
com Silvana de Paula a construção de mecanismos de consulta e de Direito 337

<lmello@ibase.br>
democracia interna que, cada vez mais, apro- Jovens 266
ximam o evento do caminho de construção de
Mulher e gênero 216
consensos e de potencialização da discussão
sobre as alternativas para a construção de um Paz e guerra 163
outro mundo. Esse trabalho que por ora apre-
Globalização 139
sentamos é apenas um arranhão na superfície
daquilo que as pessoas pensam, acreditam, Sexualidade 138
discutem. Esperamos ter a oportunidade de Educação 137
levar adiante esse trabalho e tornar pública
Emprego 136
toda a riqueza de dados que ajudará ou­tros(as)
pesquisadores(as) a entender e construir esse Meio ambiente 125
outro mundo mais radicalmente democrático.
Temas locais 113

Negação (contra/não/anti) 107

Violência 105

Questão 16 da consulta
Em resposta à globalização neoliberal, o Fórum Social Mundial afirma: “Um outro mundo é possível”.
Para a construção desse outro mundo, indique o grau de importância que você atribui ao debate
dos temas abaixo, de 1 a 5, sendo 1 o menos importante e 5 o mais importante.
1. Acesso à terra / Reforma agrária 21. Fundamentalismo / intolerância religiosa
2. Acesso, controle e democratização da informação 22. Gênero e eqüidade
3. Água 23. Hiv-Aids
4. Alternativas ao neoliberalismo 24. Juventude, trabalho e participação
5. Bens públicos globais 25. Monopolização dos meios de comunicação
6. Combate à pobreza 26. Multiculturalismo
7. Comércio e financiamento internacionais (FMI, 27. Multilateralismo e a questão da ONU
OMC, Banco Mundial) 28. Narcotráfico
8. Cooperação internacional / Relações sul-sul 29. Participação social e cultura cidadã
9. Corporações econômico-financeiras 30. Partidos políticos e outras formas de fazer polí-
10. Democracia representativa / Democracia parti- tica
cipativa 31. Paz / Militarização / Guerra
11. Desenvolvimento e sustentabilidade 32. Povos indígenas
12. Desigualdade / Exclusão social 33. Preservação ambiental / Biodiversidade
13. Dhesca – direitos humanos econômicos, sociais, 34. Privatização (bens coletivos e serviços públicos)
culturais e ambientais 35. Questão urbana
14. Direito ao trabalho / Desemprego 36. Racismo / Intolerância étnica
15. Dívida 37. Segurança alimentar e nutricional
16. Economia solidária 38. Taxas Internacionais
17. Educação / Escola / Acesso ao conhecimento 39. Terrorismo
18. Energia: crise e alternativas 40. Transgênicos / Biotecnologias / Bioética
19. Erradicação da fome 41. Tribunal Internacional de Justiça
20. Estados nacionais / Ordem internacional 42. Valorização da diversidade

68 Democracia Viva Nº 24
OUT / DEZ 2004 69
cul c u lt u r a
Reinaldo Reis* e Rogério Chaves**

Um ano antes de 11 de setembro de 2001, uma loja que não existe mais, ao lado das torres gêmeas
do World Trade Center. Essa instalação anuncia roupas americanas modernas (para trabalho) desde
1818. Inconscientemente ou não, está registrando sua contribuição para renovação do projeto liberal,
ao propor uma atualização dos uniformes que serão usados por tra­ba­lha­dores: em lugar
de cabeças, computadores

70 Democracia Viva Nº 24
ura
A arte
na educação
por uma nova
cultura
Qual o papel das artes nos tempos atuais? Qual o desafio da educação na evolução do

indivíduo, da sociedade local e global? Há interseção possível entre as artes e a educação

para a criação-transformação deste mundo em outro mais solidário?

Sim, esse cruzamento já é fato em vários lugares, mesmo no Brasil. Iniciaremos

esta reflexão usando um dos recursos da arte-educação, propondo um conjunto de

imagens-conceito. Para situar historicamente a arte-educação no tempo e no espaço,

destacamos alguns pontos importantes entre tantos que propiciaram o desenvolvimento

da educação em arte no Brasil.

OUT / DEZ 2004 71


c u lt u r a

Podemos citar os movimentos culturais do culturais, escolas de arte, con­ser­vatórios, escolas


século XIX, eventos culturais e artísticos, formais, movimentos, par­t idos políticos etc).
como a criação da Escola de Belas Artes no Acreditamos que são nesses espaços
Rio de Janeiro, a passagem da missão francesa educacionais que se colocam o maior de-
por estes trópicos, somada à participação de safio, já que neles ocorrem a formação ou a
artistas europeus importantes, a Semana de deformação das pessoas. A arte-educação tende
Arte Moderna de 1922, a criação de universi- a cumprir um papel importante nas relações
dades na década de 1930, o surgimento das sociais e educacionais. Tirada de seu foco
bienais de arte de São Paulo a partir de 1951, principal, visa a outros propósitos, como o
os movimentos universitários ligados à cultura desenvolvimento da cri­a­tividade de homens e
popular (décadas de 1950 e 1960), o movi- mulheres para o mercado, relegando ques­tões
mento da contracultura (década de 1970), a fun­damentais, entre as quais o diálogo, valores
constituição da pós-graduação em ensino de éticos e respeito às diferenças.
arte, a mobilização profissional e os debates Na década de 1970, durante a ditadura
sobre conceitos e me­todologias do ensino de militar – período conturbado da história brasi-
arte realizado tanto em caráter nacional como leira que durou até 1984 –, ocorreu, no Brasil,
internacional (década de 1980), a perseguição a implantação da disciplina educação artística
sofrida na década de 1990 para que o ensino nas escolas, de acordo com a LDB 5.692/71. O
da arte não constasse da Lei de Diretrizes e caos, a falta de foco, os conflitos, o tecnicismo
Bases (LDB) e só após muita luta foi possível e a dependência cultural delinearam o ensino
reverter o problema. de arte nessa época.
Podemos dizer que as práticas sociais Passados 30 anos do fim do regime
de movimentos sociais estão ligadas ao ensino autoritário, ainda sofremos do mal da depen-
de arte e à produção de arte, desde a sua dência cultural. Curiosamente, em relação ao
introdução e expansão por meio da educação ensino da arte, a história parece seguir um
formal e de outras experiências (museus, centros caminho um pouco diferente. Na década de
1980, retomaram-se os debates, mobilizações
e lutas de pro­f es­s o­r es(as), pes­q uisa­d o­r es(as),
estetas e artistas em prol da emancipação, ou
seja, agentes que procuram co­laborar para a
mudança da situação de penúria em que vive a
educação pública e popular, buscando encon-
trar formas de a arte contribuir decisivamente
para a autonomia e auto-estima. Isso é ir além

Jovens de Santa
Catarina de­
monstram o
seu futuro em
uma oficina
cultural

72 Democracia Viva Nº 24
A arte na educação por uma nova cultura

Um outdoor em
Florianópolis, mas poderia
estar em qualquer região
do país. Ele anula as
considerações regionais
culturais e retrata jovens
saudáveis de uma sociedade
de ficção

dos medíocres limites impostos pela vexatória vem à tona com maior freqüência e destaque,
condição de “decoradores” e “decora­doras” de porém consideramos a dependência ideológica
ambientes escolares para fins de comemorações a mais relevante, pois influencia e direciona as
cívicas e folclóricas. demais. A proposta não é hierarquizar essas
É importante lembrar que, em períodos dependências, pois elas se influenciam, mas
anteriores da história, o povo brasileiro teste- localizar a problemática da nossa discussão
munhou movimentos artísticos que gestaram o na questão cultural. “A sociedade brasileira
momento atual de luta pelo reconhecimento das se encontra sob a hegemonia cultural es-
artes como instrumento de evolução histórica trangeira, em especial da produção cultural
como já citado anteriormente. norte-americana, que decorre das estruturas de
mercado que se criaram ao longo do tempo,
devido à incompreensão, miopia e omissão
Dependência e cultura de
dos governos em relação à política cultural, de
autodeterminação
comunicação e educação”, observou Samuel
Como dependência cultural, consideramos o Guimarães.1
conjunto da dependência política, econômica, A educação traz, em si, possibilidades de
ideológica, tecnológica e militar vivida pelo lidar com a questão da dependência, pois atua
Brasil, em plena Guerra Fria, sob forte influên- diretamente no campo da cultura. Subestimar
1 GUIMARÃES, Samuel Pinheiro.
cia norte-americana. Estamos no século XXI e esse conhecimento é um erro cometido freqüen- Quinhentos anos de periferia.
Rio de Janeiro: Con­tra­ponto,
ainda sofremos de forma crônica tais vulnerabi- temente por profissionais de educação, dirigen- 2004.
lidades. A questão da dependência econômica

OUT / DEZ 2004 73


c u lt u r a

Uma bela imagem


contrapõe estereótipos
consagrados dos
povos indígenas:
uma mulher da
aldeia Barra Velha,
onde moradores(as)
reconstroem sua
língua pataxó.
Compromissos de
resgate da cultura
indígena

tes e governantes, sem falar dos agentes que A maior parte das imagens que indi-
atuam em movimentos sociais, ONGs, sindicatos, víduos formam sobre as experiências
igrejas, associações e até em empresas. Como humanas individuais e coletivas e que
estourar a bolha do iso­la­mento e experimentar constituem a base para as ações não
o diálogo ho­ri­zontal, sem medo? decorre de sua experiência direta, mas
Sabemos que a arte como conhecimento sim são o resultado de informações
e linguagem ainda requer apro­fun­damentos que se transmitem pela mídia escrita
teóricos e práticos. No Brasil, são poucos os e audiovisual e que utilizam recursos
departamentos acadêmicos criados a partir artísticos culturais. A maior parte dos
dos avanços e acúmulos alcançados, mas es- valores sociais é construído, elabora-
tamos no momento de considerar a arte nas do, transformado e destruído através
discussões por au­to­de­ter­minação, soberania da influência de um fluxo contínuo de
e diálogo. manifestações culturais transmitidas pe-
Vamos pinçar como exemplo a questão los meios de comunicação e difundidas
da visualidade. O que você sentiu interpretan- socialmente.2 
do as imagens-conceito que selecionamos?
Qual será, então, a forma pela qual
Hoje, sabemos que, de longe, o sentido da
podemos interferir propositivamente no uni-
visão é cada vez mais utilizado na sociedade
verso da visualidade? Será que temos técnicas
contemporânea. Há estudos que falam na
desenvolvidas para ler e interpretar as ima-
exploração da visão em 80% em detrimento
gens que compõem o nosso atual universo
dos demais sentidos que giram em torno de
visual? Estamos preparados para interpretar
20%. Basta dar uma olhadela nas formas de
as influências que as imagens projetam em
comunicação ao nosso redor: outdoors, vídeo,
nós e na sociedade? Como estão sendo lidas
cinema, televisão, Internet, sistema de telefonia
essas imagens pelos vários agentes sociais? Qual
celular, entre outras.
2 Idem, ibidem.

74 Democracia Viva Nº 24
A arte na educação por uma nova cultura

é a representação formada por esse universo


imagético?
A pedagogia da pergunta (pedindo
licença ao mestre-educador Paulo Freire) nos
orienta e demonstra a gama de possibilida-
des de análises e caminhos da arte. Essas
são questões encontradas em uma das suas
esferas, as artes visuais. São perguntas que
precisam ser respondidas. E são respostas
que nós, arte-educadores, arte-educadoras
e militantes culturais, estamos pre­p arados
para buscar.
A proposta de construção da iden-
tidade cultural de um povo, em princípio,
pode parecer que é nadar contra a maré da
mun­dialização (globalização é um conceito
que consideramos advindo das forças de
mercado). Porém, no processo de construção
de identidade, encontra-se o poder de auto-
determinação da sociedade. Desde a produção
de manifestações culturais às atividades da
imprensa (informação versus publicidade) até
a elaboração científica e artística, destacamos
em especial as manifestações visuais.
Não é nosso desejo lidar de maneira
“Apropriação cultural: a cultura
indígena amazônica é apropriada
num relance para insinuar
consciência, ética de preservação
e legitimidade por parte da
Coca-Cola, ‘refrigerante oficial da
Mostra do Redescobrimento’”,
Dan Baron

Diálogos íntimos
proporcionados
por uma oficina
de arte-educação,
na qual desafios
de raça e gênero
emergem no
palco, por meio
de processos de
sensibilização
para leitura e
construção de uma
nova cultura

OUT / DEZ 2004 75


c u lt u r a

contrária à diversidade cultural e ao diálogo cultural e atingir toda a sociedade, estimu-


entre culturas. Queremos, sim, trabalhar lando as manifestações culturais, a formação
com o conceito de mul­ti­c ulturalidade, 3 que do imaginário social e a auto-estima, quesitos
considera todas as contribuições sem privilé- indispensáveis a um projeto de desenvolvi-
gio. Infelizmente, vivemos sob o domínio dos mento. Propomos, pois, a arte para apreen-
códigos europeus e do código branco norte- der a realidade, desenvolver a percepção, a
-americano, frutos da dependência ideológica imaginação e a capacidade de análise, o que
que se desdobra na dependência cultural. Na permitirá ao indivíduo relacionar-se com a
arte-educação, encontramos as ferramentas realidade percebida e desenvolver a criati-
favoráveis para superar essa condição. A demo- vidade transformadora. Fica aqui o convite,
cratização da educação passa pela questão da forte abraço!
cultura, tendo como eixo a multiculturalidade,
considerada por movimentos da atualidade em
todos os cantos do mundo. Assim, nas palavras de
Ana Mae Barbosa, “somente uma educação que
fortaleça a diversidade cultural pode ser entendida
como democrática” .4
É nosso papel promover a diversidade

Relação horizontal: curtindo o processo


de construção de um mosaico coletivo,
a filha ensina à mãe; propostas de
novas relações humanas
3 BARBOSA, Ana Mae. Leitura
de mundo, letramento e alfa-
betização: diversidade cultural,
etnia, gênero e sexualidade.
São Paulo: Secretaria Municipal
de Educação, 2003. (Caderno
Temático de Formação I).

4 Idem, ibidem.

76 Democracia Viva Nº 24
A arte na educação por uma nova cultura

* Reinaldo Reis
Arte-educador,
graduando do Centro
Universitário de Belas
Detalhe do mosaico
Artes. Leciona artes no
“Terra é vida”, 20 mil
ensino fundamental da
peças, 6 m x 3,5 m. A rede pública na periferia
qualidade do trabalho de São Paulo.
foi possível graças ao
** Rogério Chaves
respeito do tempo
próprio da comunidade Sociólogo pela PUC-
SP, é editor do livro
envolvida
Alfabetização cultural
– A luta íntima por uma
nova humanidade, de
Dan Baron

Jovens de um
assentamento do MST
da Escola Agrícola 25 de
Maio (SC) construindo
uma nova cultura
dialógica, aprendendo
e ensinando por meio
de uma pedagogia de
libertação, que deseja
incluir todas as pessoas

As imagens-conceito presentes neste ar­tigo fazem parte do livro Alfabetização


cultural – A luta íntima por uma no­va humanidade (Alfarrábio, 2004), do arte-
-educador Dan Baron.
O livro traz as experiências de Baron no Brasil, com comunidades de sem-
-terras e de indígenas, organizações sindicais e universitárias. Documenta a
construção coletiva de oito monumentos culturais em Santa Catarina, Pará,
Bahia e São Paulo. Sua capa foi baseada na performance “Desenterrando o
Fu­turo” ocorrida em Santa Catarina, motivada pela arte-educação e construída
por jovens solidários(as) com a questão da terra como tema-chave para desco-
lonização e emancipação.

OUT / DEZ 2004 77


Entre especial
Por Begoña Fernández Gallego *

Maria Celeste
e
lideranças
indígenas

78 Democracia Viva Nº 24
e v i s ta

Margarida
maria celeste

Qual é o sentimento mais forte: ser indígena ou brasileiro(a)? As dificuldades


enfrentadas por uma aldeia indígena são semelhantes às de outras
comunidades pobres no Brasil? Como os povos indígenas vêem os não-
indígenas? Nesta entrevista, duas mulheres que fugiram aos padrões seculares
indígenas e resolveram estudar e trabalhar, analisam a situação desses povos
sob a ótica de suas próprias trajetórias e de sua comunidade. Maria Celeste
Pessoa Guimarães, 37 anos, agente de saúde, e Margarida Teixeira Gomes, 35
anos, professora de arte e cultura na escola diferenciada indígena, desde que
nasceram, moram na Lagoa dos Tapebas II, no município de Caucaia, Ceará.
Itapeba, em tupi-guarani, significa pedra chata, mas, por conta de um erro
gráfico histórico, o nome acabou virando tapeba. Elas falam sobre saúde,
educação, cultura, identidade, valores, trabalho, questão fundiária, violência e
preconceitos, entre outros assuntos.

OUT / DEZ 2004 79


especial

Qual é a importância da lagoa na índio é viver em contato com a natureza e fazer


sua vida? dela seu habitat. Mas sem deixar de se preparar
Maria Celeste – A lagoa é um ponto histó- para encarar a realidade lá fora, porque a socie-
rico, tem uma importância muito grande. Nossos dade é muito cruel com a gente. Sempre ima-
antepassados falavam muito da Lagoa dos Tape- gina que o índio tem que estar no mato, deve
bas. Naquela época, quando começamos a luta, ser analfabeto e não precisa conhecer as leis.
meu avô dizia: “Minha filha, nós somos índios, Nós temos que ser índios acima de tudo e estar
somos tapebas, os verdadeiros donos”. Mas, por preparados para encarar essa realidade. Temos
causa dos posseiros, começamos a abandoná-la. que entender – e fazer com que a sociedade
Hoje, dou a maior importância à lagoa porque é entenda – que o índio de hoje não é como
uma referência para toda a tribo. o índio de 500 anos atrás, que era inocente,
O que significa ser uma pessoa quando os não-índios chegaram, invadiram
indígena? nosso país e tomaram tudo. A sociedade tem
Maria Celeste – Ser índio é sempre conhe- que entender que 500 anos se passaram e que,
cer o meu valor, conhecer o meu povo e ser uma hoje, estamos nos preparando para receber o
“pessoa” acima de tudo, ser a natureza, porque que a sociedade tem de bom a nos oferecer e
índio é natureza. Meus avós sempre diziam: “Ser rechaçar o que ela nos trouxer de ruim.
índio é conhecer as nossas raízes, saber quem O que querem dizer com o lema
somos. Somos a natureza, somos um povo, um impresso em suas camisetas (“Eu
povo diferente acima de tudo”. posso ser quem você é sem deixar
Margarida – Ser índio, em primeiro lu- de ser quem sou”)?
gar, significa me identificar como índio, ser Margarida – Estou querendo dizer que, aci-
identificada como índio pelo meu povo, pela ma de tudo, sou índia. Que posso ser advogada,
minha aldeia e também ser reconhecida pela professora, tudo que você é, sem deixar de ser o
cidade em nosso entorno. Hoje, já melhorou que eu sou, no caso, índia. As pessoas sempre
por causa da nossa luta, mas, há uns dois vêem o índio como uma pessoa incapaz. Não
anos, as pessoas nos reconheciam como índios somos incapazes, pelo contrário. Fomos capazes
e, ao mesmo tempo, negavam. Muitas vezes, de conseguir chegar até hoje, brigando, lutan-
a sociedade dizia que não existia índio, mas do para defender nossa cultura, nossas terras,
se contradizia quando era levada a pensar a nossos interesses. Somos capazes até demais.
questão da terra. É preciso lembrar que 500 anos não são 500
Também é importante a gente saber que dias. Nós temos mais de 500 anos de invasão
descende de um povo pré-colombiano. E é pre- e estamos aqui mostrando que somos capazes
ciso estar em contato com a natureza, porque de defender o que é nosso. E vamos estar aqui
nós, índios, já vivemos da natureza, ela nos quantos anos forem necessários, lutando pela
oferece tudo. O índio olha para a natureza e demarcação dessas terras, para que os nossos
encontra seu remédio, ele se vê na natureza. Ser direitos sejam realmente cumpridos como está
na Constituição Federal.
Vocês se consideram brasileiras? Há
diferença entre ser brasileira e ser
lagoa dos Tapebas

índia?
Maria Celeste – Nós somos do Brasil, mo-
ramos no Brasil, não há grande diferença, não.
Sou do Brasil, sou uma índia brasileira.
Margarida – Acredito que somos povos
nativos. Não chegamos ao Brasil, foi o Brasil
que chegou a nós, somos os verdadeiros donos
da terra. Infelizmente, com a chegada do não-
-índio, a nossa terra virou Brasil, eles chegaram
aqui e invadiram. Se alguém chegar à sua
casa e tomar tudo que você tem, não estará
descobrindo nada, estará invadindo. O Brasil
não foi descoberto, foi invadido. E, no ca­so,
mudaram até o nome, que não era Brasil. Eu
me considero brasileira, mas faço parte de uma
nação que já existia antes do Brasil. A sociedade
não leva em conta os 10 mil anos, 20 mil anos

80 Democracia Viva Nº 24
Maria Celeste e Margarida, lideranças indígenas

que já estávamos aqui. Trata o índio como se estávamos aqui, então a nossa cultura é a real
ele existisse aqui apenas há 500 anos, e isso não cultura brasileira.
é verdade. Há 500 anos existe o Brasil, mas os Poderia destacar uma preocupação
índios já estavam aqui quando o Brasil chegou. principal dos povos indígenas
Vocês se sentem discriminadas pelo hoje?
povo brasileiro não-índigena? Margarida – Uma das maiores preocupações
Maria Celeste – Eu me sinto, sim, não por hoje de todo povo indígena, não apenas dos
todos os brasileiros, mas por muitos. Hoje, esta- tapebas, mas de todas as tribos do Ceará, é a
mos sendo reconhecidos por esse povo branco. questão da terra. É da terra que o índio sobrevive,
Antigamente, o povo branco não queria fazer tira o alimento, faz seu colar e seu cocar. Sem a
uma entrevista ou conversar com a gente. Os fauna e a flora – e tudo isso vem com a terra –,
índios estavam escondidos, com medo da ex- o índio não tem como
ploração que acontecia – e que ainda acontece. sobreviver. Índio sem
Mas hoje já está bem melhor. terra é como peixe
Margarida – A discriminação tem sido tão fora d’água.
grande que fez com que o índio fundasse sua A tribo
própria escola diferenciada, seu próprio magis- tapeba tem
tério. Mas nada neste mundo é totalmente bom ou já teve
nem totalmente ruim. Essa discriminação fez problema
com que o índio procurasse seu caminho, ou com
seja, essa história do magistério, da escola dife- fazendeiros?
renciada, para manter a cultura. Se não existisse Margarida – Te-
a discriminação, não seria preciso fundar escolas mos problemas com
diferenciadas. Se tivessem respeito por nós, não fazendeiros e com
seria preciso. Se o governo tivesse responsabilida- posseiros que, hoje,
de, não seria preciso lutar por algo que é direito vivem dentro da área
nosso. Sabemos que está na Constituição, mas indígena. É um pro-
isso também foi uma luta. E, ainda que nosso blema sério, não só
direito esteja lá, a lei não é cumprida. Por isso, com os fazendeiros,
há muita discriminação. mas também com
Qual é o principal problema que os políticos que es-
essa discriminação traz para as tão atrás deles. O
populações indígenas? antigo prefeito, que
Maria Celeste – A pior coisa que o branco atualmente é depu-
faz com o índio é não o aceitar do jeito que tado federal, José
ele é. Nós sofremos muita discriminação, mas Gerardo Arruda, é
a pior é essa aí. nosso inimigo núme-
Margarida – O não-índio é muito engraça- ro um. Eu falo isso,
do, não quis ver o índio nu, mas, agora, depois mesmo que ele me
que o índio se habituou a andar vestido, quer mate amanhã. Ele
ver. Ele também cobra muito a questão da lín- prega nas campa-
gua. Nós falávamos nossa língua nativa, mas nhas políticas e pega
chegaram aqui e nos empurram o português. mais terras da gente
E agora querem que a gente fale tupi. A gente em troca de voto.
está falando tupi não para agradar o branco, A sociedade nunca
mas para ter conhecimento da nossa língua. esclareceu a situação
Hoje, podemos falar qualquer outra língua e para nós, é lógico,
continuar sendo índio. porque também quer a terra do índio. Por isso,
Existem muitas culturas, não existe cul- aceita e faz desse homem um santinho. Ele é
tura inferior ou superior, existem culturas o vilão, mas vira o santinho da história. Ele se
diferentes. A real cultura brasileira é a cultura candidata a prefeito da cidade, pega as terras
indígena. Posso dizer isso como índia e não dos índios e doa.
tenho medo de que alguém me discrimine Vocês acham que as igrejas estão
por isso, meus antepassados sofreram tanto, tentando colonizar os povos
foram mortos por causa disso, mas eu digo. indígenas outra vez?
As outras culturas chegaram quando nós já Margarida – Com certeza, continuam fa-

OUT / DEZ 2004 81


especial

sabemos que está poluída. Há pouco tempo,

posto de saúde local


apareceram casos de hepatite relacionados
à água. Temos também problemas sérios
entre os idosos, principalmente hipertensão
e diabetes.
O que leva à grande incidência
de alcoolismo entre os povos
indígenas?
Margarida – É a falta de perspectiva de
vida, por não ter trabalho, não ter onde morar,
não ter terra. Mas o alcoolismo não acontece
só entre os índios, existe na maior parte do
mundo. A pessoa se sente vulnerável e acaba
indo para um caminho que muitas vezes não
tem retorno. No nosso caso, não temos a terra
em nossas mãos. Tudo isso é muito complicado
para a cabeça do índio, saber que ele foi o
verdadeiro dono da terra, dono de tudo, e hoje
se sente como se fosse nada. Isso enfraquece o
pensamento das pessoas que ficam sem pers-
pectiva, não estão nem aí para nada, tanto faz
zendo isso. Não conhecíamos o cristianismo, morrer ou não.
ele chegou sem pena e sem dó, dizendo o Por que escolheu ser professora de
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. E uma escola diferenciada?
nos trouxe fome, miséria, sarampo, todas as Margarida – Meu trabalho é voltado para
doenças que não conhecíamos e passamos a cultura indígena. Não digo que tento resgatar
a conhecer. E tentaram tirar nossa cultura, essa cultura – porque a gente não resgata o
empurraram o português goela abaixo. Tudo que não existe –, mas temos uma cultura que
isso em nome do Pai, do Filho e do Espírito precisa ser autovalorizada. Empenho todo meu
Santo, não é? Com certeza, não fazem como tempo para que as crianças possam ter acesso
antigamente, mas continuam tentando. Não só ao repasse da cultura e possam trabalhar essa
a Igreja Católica, mas todas as outras. Chegam autovalorização. E também para que possam
às aldeias, chamam os índios para entrar nas manter a identidade. Hoje, nós a mantemos,
igrejas e dizem que o ritual do índio é maldito, mas quem garante que daqui a 500 anos vamos
que o índio vai para o inferno se dançar o toré, conseguir, com toda essa globalização, toda
que o índio não pode usar o cocar porque isso essa sociedade que sempre tenta nos excluir?
é coisa do passado. Ainda hoje isso acontece, Temos que manter nossa identidade acima de
infelizmente, é o cúmulo! Temos que ser muito tudo e, para isso, temos que trabalhar com as
bravos para continuar lutando contra isso. criancinhas, elas são o nosso futuro. Se não
Por que você quis ser agente trabalharmos com elas hoje, amanhã, prova-
de saúde? velmente, não poderá ser melhor do que hoje.
Maria Celeste – Meu sonho é ajudar a Quantas pessoas são alfabetizadas
nossa comunidade. Mas as minhas condições na aldeia?
para fazer isso eram mínimas. Só em 1991 Margarida – Na comunidade, é fácil falar,
tive essa oportunidade, quando surgiu em mas, no geral, em todo o povo, é complicado,
Caucaia o curso de agente de saúde. Foi porque, mesmo estando no magistério, sabe-
quando vi que tinha oportunidade de ajudar mos que há uma deficiência muito grande,
meu povo. Desde pequena tenho vontade principalmente entre jovens e adultos. A
de ajudar na saúde. Sou agente indígena da criança é mais palpável, é mais fácil trazê-la
Fundação Nacional de Saúde (Funasa), há para a sala de aula, 90% estão em sala de
mais de seis anos. aula. Já o adulto, dependendo da religião, vem
Poderia citar as doenças mais com outra mentalidade, e fica difícil moldá-
freqüentes na tribo? -lo. Mas estamos tentando trazer as pessoas
Maria Celeste – As principais doenças analfabetas para as escolas para ver se diminui
aqui são diarréia, doenças respiratórias e ver- o analfabetismo.
minose. Isso tudo acontece porque não temos Qual é a principal fonte de renda
água encanada. Nossa água é da pedreira, e

82 Democracia Viva Nº 24
Maria Celeste e Margarida, lideranças indígenas

da tribo tapeba? acontece na aldeia de o homem ter três mu-


Maria Celeste – Nossa principal fonte de lheres. Isso também é um problema cultural,
renda é a agricultura, a plantação de mandioca, vem de muito tempo, não é de agora. Era
milho, feijão. A maioria dos índios trabalha como normal, antigamente, eles terem duas ou três
agricultor, outros empregos são mínimos. mulheres, principalmente o cacique tinha várias
Margarida – Com a história do magistério, mulheres, e isso ainda acontece. Não sei se para
das escolas diferenciadas, a profissão de profes- o não-índio é traição. Para o índio, é uma coisa
sor se fortaleceu. A comunidade tapeba, hoje, natural. Mas penso no fato de as mulheres
tem 90 professores em formação e cerca de 40 poderem também ter dois ou três homens, os
a 45 professores formados. Com a educação direitos vão ter que ser iguais, porque estamos
indígena, surgiram empregos de professores num país que se diz democrático e, fazendo
para os índios, o que não havia antes. Também parte das pessoas que habitam esse país, temos
surgiram os agentes de saúde indígenas, alguns que seguir a democracia.
trabalham. Fora isso, é como Celeste falou: Você é casada? Já tem filhos?
plantação e artesanato. Existe a pesca, mas Margarida – Sou solteira até hoje, graças
está escassa. E também há venda de frutas de a Deus! Tenho dois filhos, não precisei casar
época, alguns cultivam, levam para cidade e para ter filhos. Eu me considero casada com
vendem. A caça é só para alimento mesmo, não meu trabalho. Sou considerada uma guerreira
gera renda. E agora está proibida aqui, porque e, para conseguir um marido que queira viver
os pássaros estavam acabando, e tivemos que ao meu lado e me segure para que eu não saia
barrar a pesca e a caça por um tempo para e viva na corrida, como eu vivo, vai ser difícil.
que eles se reproduzam, senão vão entrar em Não era para eu estar aqui hoje, tive que viajar
extinção, e não queremos que isso aconteça. mais de 200 quilômetros para falar com você.
Como é a realidade das mulheres Minha vida é uma correria, já me acostumei com
na tribo tapeba? isso. E os homens, independente de raça ou
Maria Celeste – Eu tenho a minha realida- religião, têm medo de mulher assim. Eles têm
de, cada uma tem a sua. A maioria das mulheres medo porque, na verdade, as grandes idéias
vive em casa cuidando dos filhos e do marido. no mundo são das mulheres. Os homens às
Muitas vezes, a mulher não tem emprego, e vezes ocultam. Acredito que, no dia em que
o marido também está desempregado. É uma o nosso país for governado por uma mulher,
realidade muito difícil, e muitas vezes os dois talvez seja a solução.
pegam o dinheirinho que arranjam para beber. Todas as mulheres solteiras
Margarida – As mulheres, principalmente são respeitadas?
as tapebas, estão de parabéns em questão Margarida – Não, acho que sou privilegiada
de luta, porque nós estamos na frente. Ge- por conta da luta, por ser uma guerreira, por
ralmente, quando se chega a uma aldeia, em batalhar muito pela comunidade. O povo vê a
qualquer situação, sempre se esperam ho-
mens na frente. Na aldeia, temos lideranças
mulheres, lideranças homens, e trabalhamos
divididos. Em relação a isso, o maior proble-
ma é cultural, é a história da maternidade,
da mulher ter filho muito cedo. Mas, por ser
cultural, é um problema e, ao mesmo tempo,
uma solução. Em 1820, os tapebas eram uma
tribo enorme. Passados quase dois séculos,
contamos apenas com 5 mil índios. O que é
problema pode ser a solução, porque, se as
mulheres têm filhos muito cedo, significa que
vão ter muitos filhos e assim a tribo vai aumen-
tar. Por outro lado, é um problema, porque
ela vai ser mãe muito cedo, e isso mexe com
a estrutura física da mulher. A Funasa tentou
fazer um controle, mas não funcionou. Elas
realmente têm filho muito cedo.
Outro problema é a questão do homem.
Mesmo as mulheres estando à frente da luta,

OUT / DEZ 2004 83


especial

luta e me respeita por isso. Mas nem todas as aconteceu, ela achou melhor isolar o caso. Por
mulheres solteiras têm o respeito que eu tenho. isso, não dei parte, não levei para a delegacia.
Aliás, o respeito que tenho como solteira nesta Com o tempo, comecei a ver que não dava mais
comunidade só eu mesma tenho. Se as outras sol- para conviver com ele e acabei deixando-o.
teiras saírem com um homem, vão ficar falando. Na sua aldeia, em um casamento,
Até de mim, se eu sair, vão falar. Mas eu procuro quando o homem quer manter
sempre ter cuidado para evitar a falação porque, relações sexuais e a mulher não
com certeza, é uma discriminação. quer, e mesmo assim a relação
Como agente de saúde, você sabe acontece, isso seria considerado
se dão entrada no posto de saúde estupro?
mulheres com sinais de violência Maria Celeste – Nesse caso, concordo que
doméstica? é estupro. Eu sofri isso muitas vezes com meu
Maria Celeste – ex-marido, de ele querer e eu não, mas mesmo
Por conta de maus- assim acabava acontecendo.
-tratos dos maridos? Margarida – Acho que a mulher deve usar
Isso aqui não existe, do homem quando ela o ama. Se ela não o ama,
se eles estiverem bra- ele a procura e ela não quer, tem que fazer como
vos, são eles que a Celeste: tratar de sair. Não sei se era o caso,
apanham. Se bater mas ela casou com um homem de quem ela não
na mulher, apanham gostava porque a mãe quis. Eu fugi quando tinha
também porque, na 13 anos porque minha mãe também queria que
tribo, há uma dife- eu me juntasse com outro homem e não aceitei.
rença na nossa socie- Eu não gostava. Se a pessoa não gosta e não sente
dade: todos somos vontade de ficar com a outra que quer impor isso,
família. Se alguém com certeza é um estupro.
bate na mulher, vem Há casos de gravidez na
tio, primo, sobrinha, adolescência, com a não-
avó, todo mundo. responsabilização dos meninos?
Tem que ter muito Maria Celeste – Acontece, e não é apenas
cuidado com briga pela questão da gravidez. Muitas vezes, nem
na aldeia, porque, a menina nem o menino, com 12 ou 13 anos,
quando acontece, estão preparados. Nem nós, adultos, estamos
não morre um ou preparados para uma gravidez, quanto mais um
dois, morre muita adolescente. Em geral, o menino se sente coagi-
gente, uma briga do por conta da questão da responsabilidade e
na aldeia envolve a costuma sumir. Eu não acho que a mulher seja
aldeia toda. Há esse a coitadinha da história. Se ela vai, vai porque
cuidado. Se houver quer, os dois têm culpa. Com certeza, uma gra-
algum caso de es- videz indesejada é um ato de irresponsabilidade
pancamento, é algo das duas partes, do homem e da mulher.
muito isolado. Não Se você se casasse com um branco
tenho conhecimento ou namorasse um, o que o resto da
de nenhum. tribo acharia?
Mas você me Margarida – Qualquer outra índia poderia
disse que, fazer isso, mas, no meu caso, não seria igno-
quando um rado por causa da questão da luta. Não iriam
homem espanca aceitar uma guerreira casada com um branco,
uma mulher aqui, como aconteceu com uma colega minha. Ela
isso é falado com naturalidade. casou com um branco, e, no Brasil inteiro, em
Maria Celeste – Existem casos raros. No todas as tribos, falavam dela. Isso não é de ago-
meu caso, levei um tiro do meu ex-marido. E ra. Existe também a história de José de Alencar,
hoje, graças a Deus, não vivo mais com ele, da tal de Iracema com seu grande amor. Longe
até perdi um olho. Ele é meu primo, é de uma de mim ser uma Iracema, porque ela traiu o
família muito chegada à minha, e minha mãe, próprio povo para amar um branco. Eu jamais
uma mulher que eu amo tanto, fez meu casa- faria isso, nem que esse branco estivesse se
mento com esse primo. Quando o problema desmanchando em ouro.

84 Democracia Viva Nº 24
Maria Celeste e Margarida, lideranças indígenas

Apaixonar-se por um branco que hoje não são explorados, principalmen- * Begoña
significa trair o povo indígena? te, em relação à cultura. No artesanato, por Fernández Gallego
Margarida – No caso da Iracema, sim. Ela exemplo, por falta de contato com o povo Cooperante espanhola
traiu a ponto de se virar contra o próprio povo. lá fora, não há quem compre o que a gente no Ibase, é licenciada
Eu li a história. Mas, no meu caso, não sei. Não produz, e isso é muito desestimulante. Um dos em Filosofia pela
mando no meu coração, mas não me casaria meus sonhos é ver esse povo ter autonomia, Universidad Autónoma

trabalhando e vivendo da sua própria cultura. de Madrid, Espanha


com um não-índio.
Qual é seu principal sonho, como Quando a gente fala de trabalho hoje, o índio Fotos da autora.
mulher, batalhadora e indígena? sempre imagina sair e trabalhar lá fora. O meu Desenhos feitos por
Maria Celeste – Meu principal sonho é sonho é mantê-lo dentro da comunidade para estudantes indígenas
ter nossas terras demarcadas e o nosso povo que possa explorar sua própria cultura e viver para a cartilha Memória

todo com condições de trabalho. Também dela sem depender de trabalho externo. viva dos índios Tapeba

sonho em ter nossa Farmácia Viva, com plantas


nativas, nossos medicamentos. Sei que um
dia esse sonho vai ser realizado dentro das
comunidades indígenas.
Margarida – Como sempre trabalho com o
povo, meu sonho é coletivo. A questão da terra
é, sem dúvida, um sonho coletivo. E também
querer ver o povo independente, ter sua pró-
pria geração de renda, explorar, com respeito
e responsabilidade, toda essa cultura, todos
esses baús que temos dentro da comunidade

OUT / DEZ 2004 85


e s pa ç o a b e rt o
Begoña Fernández Gallego1*

As
tapebas:
uma história
de luta e
Na Grécia Antiga, mais precisamente na época dos pré-socráticos, o filósofo era (referindo-se

ao termo etimologicamente, no seu sentido mais primitivo) aquele que observava de longe,

mesmo estando presente. Era o emissário que tomava distância das coisas, ainda que delas

participasse ativamente, tendo como uma das suas atividades principais a tarefa de ser “um

tipo de embaixador”, convidado aos grandes eventos, como festas, rituais e celebrações.

Assim, o teorós (termo grego que significa o observador, a saber, primeira denominação do

ser filósofo) era uma espécie de antropólogo que visitava culturas alheias, participando delas,

compartilhando com elas e, ao mesmo tempo – em virtude da distância que se impunha pelo
1 Com especial agradecimento
a Diego e Ana Heredia e a fato de pertencer a uma cultura diferente –, tendo um olhar agudo e uma perspectiva mais
Marcos Arcanjo e a sua equi-
pe: porque, nos momentos
de escuridão, sempre a luz profunda das diversas situações que presenciava.
resplandece.

86 Democracia Viva Nº 24
aberto
O primeiro labor, para nós, filósofas e filósofos operandis do agente externo e estranho que
– constantes aprendizes da filosofia, sempre à se aproxima dessa realidade. Agente que, de
procura do conhecimento ou na busca daquele alguma forma, quer dar visibilidade a alguma
saber que nos faça completar nosso eu carente coisa ignorada que considera importante e
que quer se assemelhar ao sumum conheci- fundamental, de tal forma que aqui aparece o
mento, seja qual for seu nome: mente divina, primeiro erro em que incorrem não poucos(as)
arquétipos transcendentais, idéias platônicas, jornalistas, antropólogos(as), sociólogos(as),
paradigmas do pensamento cientista-ilustrado- filósofos(as) e demais hermeneutas do mundo:
-racional etc. –, é a de observador(a) que o grave pecado de projeção, a pressuposição
sempre fica surpreso(a) e chocado(a) com as das problemáticas que afetam o cotidiano de
diferenças caracterizadoras das plurais formas certa população. Sendo assim, a pergunta e a
de vida e, portanto, das diferentes cosmovisões predisposição são “malévolas”, pois possuem
com as quais se apreende o mundo. Sempre intenções subjacentes: a pergunta prevê a
lembrando que não estamos aptos(as) a julgar, resposta e dirige intencionalmente a conversa,
somos se não meros(as) espectadores(as) que de modo que a resposta já esteja dada de an-
temos como obrigação uma forma de agir, a temão. Então, vem a pergunta: para que mais
saber, a empatia, e uma máxima que guie nosso um artigo sobre a questão indígena, quais são
olhar que se resume na seguinte frase: “faz da a novidade e a relevância?
diferença uma igualdade”. Portanto, a tarefa ou Lembremos: na acepção original, a
atividade propriamente original do(a) filósofo(a) pessoa dedicada à filosofia era aquela com a
se manifesta com maior força e definição no mente limpa de preconceitos (ou, ao menos,
trabalho de aprendizagem e troca intercultural lutava contra eles), capaz de se surpreender,
do(a) antropólogo(a). aberta à aprendizagem, observadora, críti-
Mas você, que está lendo este texto, ca e disposta a trocar e compartir; ela não
deve estar, neste momento, se perguntando perguntava procurando uma resposta que
para que tanto rodeio (ainda que Hegel fale, verificasse ou confirmasse as argumentações
na obra Fenomenologia do espírito, que “o que sustentavam seu petrificado columba­
rodeio é o caminho do espírito”), já que aquilo rium de conceitos (com efeito, essa era a
que esperava era, quase com certeza, mais boa intenção dos pré-socráticos, ainda que
um texto sobre indígenas, sendo o objetivo depois, com Platão e sua arte da maiêutica,
da autora escrever um artigo mais ou menos esse inocente labor antropofilosófico tenha
decente sobre as reivindicações dos povos sido envenenado). Assim, a única, a verda-
indígenas – aqueles moradores anteriores (an- deira motivação de uma matéria com essas
teriores, sim, apesar de muitas pessoas terem características responde à necessidade de dar
problemas em reconhecer sua anterioridade e visibilidade àqueles grupos majoritariamente
preferirem ignorar sua sobrevivência, depois discriminados, isolados e esquecidos. Grupos
de um lento, frio e trágico etnocídio ou até que são afastados do processo de criação de
mesmo genocídio) daquela vasta extensão de um espaço democrático plausível, com os
terra, que depois se nomeou território brasileiro. respectivos valores de justiça, igualdade e
Explicar qual é o objetivo a perseguir, liberdade, ou, também, carentes do direito de
a finalidade ou teleologia e importância de representação real e factível como indivíduos
mais um texto sobre a situação atual das que são pertencentes a um Estado democráti-
comunidades indígenas, assim como quais co. Assim, as novidades, as relevâncias ou o
são as preocupações vitais dessas populações, interesse de mais um artigo sobre a questão
pres­supõe uma descrição anterior do modus indígena se resumiriam em algumas questões.

OUT / DEZ 2004 87


e s pa ç o a b e rt o

Uma delas diz respeito ao fato extra- visível. E o caso das índias tapebas é um bom
ordinário, em todos os seus sentidos, tanto exemplo disso: lutando contra muitos fatores
no sentido da especialidade como no sentido adversos, elas decidiram, de uma vez por to-
de ser uma coisa fora do comum e da norma, das, deixar a esfera imposta – a reprodutiva
regra ou generalidade que particulariza, di- – para sair em direção ao luminoso espaço
ferencia e caracteriza a vida, a cotidianidade produtivo. Com efeito, não se pode falar da
e a realidade das pessoas da tribo tapeba. O história da humanidade em masculino, do
que diferencia essa tribo é a feminização mesmo modo que da história do povo tapeba.
do setor político e do setor produtivo – em
outras palavras, a tomada do espaço público
Paulatina tomada do espaço público
por parte das mulheres indígenas no seu
labor de lideranças políticas e até espirituais Margarida Teixeira, professora de arte e cul-
(a figura do pajé, da liderança político- tura indígena, e Maria Celeste Pessoa, agente
-religiosa, sempre foi de saúde, são só uma mostra do que acontece
uma atividade vetada no aldeamento tapeba, já que praticamente
à maioria das mulheres quase todas as lideranças políticas nas di-
nas tribos indígenas). ferentes aldeias povoadas por tapebas são
Esse fato é alentador já mulheres. Seu testemunho como mulheres
que denota a saída da batalhadoras, guerreiras (como elas mes-
escuridão da domus, do mas se definem), que resistem a um legado
cuidado da casa e tudo que posiciona a mulher em um estado de
o que isso pressupõe: subjugação, discriminação e ocultação,
cuidado do lar, fogão e nos leva a refletir sobre a real e factível
atividade procriadora, possibilidade de uma transformação na fatal
com a posterior obriga- concentração do poder ainda residente na
ção própria da mulher, figura masculina.
reduzida, mediante uma As mulheres indígenas são objeto
artimanha naturalista e de dupla discriminação: primeiro como
essencialista, ao papel mulher e depois como indígena, ou, tam-
de mãe e educadora bém, primeiro como indígena e depois
dos(as) filhos(as). como mulher (dependendo do contexto de
Sem dúvida, atuação, há uma mudança no foco principal
até agora a mulher foi de discriminação). Por isso, a identidade
excluída do proces- feminina das tapebas é indissolúvel da
so de construção da formação e do reconhecimento da identi-
história. Sendo assim, dade étnica e racial. A partir da década de
o rumo dos avanços, 1980, começou-se a resgatar a questão do
das mudanças e das recadastramento (quem é indígena?), assim
transformações sociais, como a questão da identidade indígena (o
políticas, econômicas, que significa pertencer a tal etnia?), em vir-
científicas e artísticas tude de uma forte crise pela qual passava o
parecia pertencer ex- povo indígena, a ponto de alguns membros
clusiva e privilegia- renegarem seus traços e suas origens étni-
damente às mãos dos cas. Mas o processo de identidade feminina,
homens. Mas, mesmo assim como a tomada de consciência da
que o ser feminino te- perspectiva de gênero, se desenvolveu de
nha sido visto ao longo forma bem diferente.
da história como sujeito Apesar dos logros e das conquistas das
passivo, sempre foi motor fundamental das mulheres, a resistência masculina é forte. A
transformações históricas. Porém, em vir- luta das mulheres é diária, mas suas forças são
tude da imposição da cultura patriarcal ou inesgotáveis. É difícil ser indígena, principal-
andro­cêntrica, essa participação foi velada, mente no Ceará (estado onde se fala que não
apagada, submetida, subjugada, ignorada e até existem indígenas), mais ainda sendo mulher
literalmente aniquilada. Mas, pouco a pouco, e pior ainda sendo mulher com consciência
já que a cultura falocêntrica infelizmente ain- do seu ser feminino e da responsabilidade que
da não foi superada, a mulher está se tornando isso representa.

88 Democracia Viva Nº 24
As tapebas: uma história de luta e resistência

Escola diferenciada: resgate da cultura indígena


A iniciativa inovadora de criação do magistério indígena e de seu desdobramento nas escolas diferenciadas (co-

ordenadas obrigatoriamente por indígenas e dirigida a toda uma cultura que nunca deixou de existir,
seus povos) supõe a criação de um espaço privilegiado mas que se encontrava um pouco fechada,
de delimitação da identidade indígena. Esse espaço porque não era fácil ser índio no Ceará,
deve servir para revalorização e reafirmação da cultura, principalmente em Caucaia, onde a maior
do idioma (nesse caso, o tupi-guarani2, da religião e oposição aos índios tapebas era e continua
costumes do povo indígena – injustamente exterminado sendo os políticos, empresários, latifundiários
ao longo da história brasileira por diferentes grupos: e empreendedores. Começamos nossa luta
forças políticas, religiosas e pressões sociais que, na pela escola diferenciada em 1990, pois a
maioria dos casos, respondiam a interesses econômicos mesma existia embaixo de um pé de cajueiro,
e territoriais), que representam, mais uma vez, uma sendo construído um espaço físico em 1992.
perversa ação que remonta a um novo etnocídio, umas Começamos esta luta porque a discriminação
vezes velado, oculto, e outras, óbvio, explícito. contribuía para que o analfabetismo reinasse
É fundamental lembrar o processo de desapareci- em nosso meio. Acreditávamos que essa es-
mento do idioma materno dos povos indígenas, assim cola viesse a fortalecer a nossa luta”.
como questionar a relevância do resgate das línguas
Diante da visão exótica e romântica que se con-
indígenas em geral.
forma no imaginário popular – índios e índias pelados
A partir de 1757, por meio da legislação indígena
e não-civilizados, felizes na sua ignorância, ausentes e
implantada com o Diretório Pombalino, proíbe-se o
afastados do processo de “evolução” da nossa sociedade
uso de línguas indígenas, tornando obrigatório o uso
tecnocrática e, portanto, dos suportes técnicos e avanços
da língua portuguesa nas escolas e nos povoados. Tal
científicos da era pós-moderna –, encontramo-nos diante
ação tinha como objetivo não só fazer desaparecer as
de uma realidade bem diferente: a comunidade indígena,
línguas indígenas, mas também aniquilar uma deter-
e mais concretamente o aldeamento do povo tapeba,
minada forma de apreender e conceitualizar o mundo,
baseia-se e articula-se em torno de valores humanos
ou seja, fazer desaparecer as comunidades indígenas,
fortes e sólidos, misturados com riquezas naturais,
com suas visões peculiares do mundo. Atualmente,
culturais e artísticas que manifestam, mais uma vez, o
nos diferentes aldeamentos povoados por tapebas,
esquecimento do conjunto social e o esvaziamento de
pouquíssimas pessoas falam tupi-guarani, só as mais
valores da cultura contemporânea.
velhas lembram de algumas expressões ou palavras. Um
Se pararmos para pensar, a valorização da edu-
dos grandes desafios enfrentados por esses povos é o de
cação e a busca dos direitos da mulher são dois itens
encontrar professores e professoras que possam ensinar
fundamentais no reconhecimento da sociedade mo-
a língua tupi, impedindo que ela caia no esquecimento
derna de pontos de desenvolvimento e evolução de
e também que mais uma língua indígena esteja fadada
uma sociedade. Então, como é possível ainda olhar
ao desaparecimento.
os povos indígenas com superioridade, acusando-os
As palavras da professora indígena Margarida
de serem arcaicos, primitivos e recalcitrantes? Direta
Teixeira Gomes resumem, perfeitamente, a importân-
ou indiretamente, sejam realmente procuradas ou
cia da criação do magistério indígena e das escolas
simplesmente encontradas sem determinação prévia,
diferenciadas:
como talvez seja o caso, deixando espaço à ação, a
A história da nossa escola foi publicada em procura da igualdade de gênero e a reafirmação cultural
uma coletânea escrita pelo povo tapeba, Me- por meio da revalorização da educação são mostras do
mória viva dos tapeba: terra demarcada, vida estado evolutivo da tribo indígena tapeba.
garantida: “Foi assim que nós, indígenas, re-
solvemos fazer alguma coisa por nós mesmos,
vimos a necessidade de termos uma escola,
na qual o principal objetivo seria trabalhar a
autovalorização do índio, preparando-o para
enfrentar a sociedade lá fora, resgatando

Fortalecer a participação das mu- contribuir na configuração das políticas que


lheres na política é uma prioridade funda- afetam as suas vidas ainda é uma tarefa a

Aberto
mental nesta nova era em que se procura realizar: as mulheres continuam amplamente
(ou ao menos se diz que se procura) a sub-representadas nas esferas políticas na-
2 Embora o termo tupi-guarani
representatividade do total da população. cional, estaduais e municipais e, em âmbito refira-se a uma família lingüística

ESpaço
Assim, fomentar a liderança das mulhe- mundial, ocupam apenas 15% dos postos nos do tronco tupi e não a uma
língua propriamente, é assim
res para assegurar o status que dispõem parlamentos nacionais. A eqüidade de gênero que integrantes da tribo tapeba
denominam a língua falada por
de igualdade, para fazer ouvir a sua voz e só se construirá de forma certeira quando as essa comunidade.

OUT / DEZ 2004 89


e s pa ç o a b e rt o

*Begoña mulheres receberem apoio como candidatas de Itarema). O povo tapeba procurava terras
Fernández Gallego e votantes, quando forem viabilizadas pro- férteis e de difícil acesso. Depois de muito
Cooperante espanhola postas de políticas públicas que reconheçam tempo e de uma busca exaustiva, esse grupo
no Ibase, é licenciada a importância da igualdade de direitos e dos chegou a uma grande, paradisíaca e bela
em Filosofia pela direitos específicos de gênero – traduzin- lagoa, com águas límpidas e cristalinas. O
Universidad Autónoma do, o grande sonho do empoderamento da entorno era exuberante: carnaubais, árvores
de Madrid, Espanha mulher e da realização dos seus direitos e frutíferas, pássaros e animais que moravam
suas aspirações. em liberdade e, no meio de tudo isso, havia
uma grande lagoa com um peculiar elemento
da natureza que nomearia a tribo tapeba: uma
A pedra chata
pedra chata, símbolo real que, misteriosamen-
Depois de compartilhar te, um dia desapareceria.
uma maravilhosa expe- Como viram tanta beleza e riqueza,
riência com a aconche- esses índios resolveram morar às
gante, generosa e trans- margens dessa lagoa. Eles mesmos
parente tribo tapeba, o batizaram a lagoa e sua nova tribo
que fica cla­ro é que a de Tapeba (pedra chata), pois temiam
luta se desenvolveu e se que um tempo depois os brancos
desenvolve por meio de chegassem novamente e os extermi­
detalhes sutis, na maioria nassem. Assim, o no­me tapeba iria
das vezes sub­valo­rizados reinar eternamente naquele lugar.
ou que passam desperce- (Ricardo Weiba N. Costa, professor
bidos. Portanto, a luta é
tapeba)
diária, ou melhor, é uma
luta do cotidiano e pelo As índias e os índios tapebas acreditam
cotidiano. Porém, nessa na sua luta, porém o mais importante de tudo
troca de experiências, é que demonstram que agem com coerência –
idéias e saberes vitais, premissa fundamental que talvez tome como
também fica claro, a base a pedra chata que ficava emergente na
partir dos depoimentos lagoa e que, depois da colonização, desapa-
das índias e dos índios receu ou afundou enigmaticamente. Porém,
tapebas, que a luta se com vigor, coragem e energia, essa comu-
compõe de pessoas que, nidade quer se reconstruir e fazer emergir
unidas e movidas por um essa pedra que uma vez sumiu da lagoa indo
interesse comum e cole- quem sabe aonde, lugar que possivelmente
tivo, derramam toda a todos nós procuramos desesperadamente –
sua energia para mudar, significa essa carência originária, a saudade
trans­formar e inverter daquilo que sempre nos pertenceu e ao qual
um passado injusto e ainda pertencemos, mas que parece nunca
construir, mediante um encontramos, tornando essa busca trágica
paulatino processo de e dolorosa. Fico me perguntando se o povo
transformação, uma re- tapeba talvez não a encontrou, renascendo
alidade mais favorável, cada dia na alegria de viver nietzschiana,
sustentável e melhor, nesse reencontro com os valores centrais do
isto é, adequada às ne- ser humano, nessa confiança e reencontro com
cessidades reais e dando nossa Mãe Natureza e ante toda a sim­bo­logia
respostas às precarie- que se traduz naquela pedra chata que ficava
dades que ainda estão no meio da paradisíaca lagoa em torno da qual
por ser superadas (por exemplo, a questão esse povo fundou seu alde­amento, símbolo de
fundiária).
Segundo as pes­­soas mais velhas da
tribo tapeba, seu povo se originou principal-
Aberto
vida, símbolo das suas vidas, com essa força
característica, pois, sem dúvida, a história da
comunidade tapeba é uma história de amor
mente de três etnias: poti­guaras (que vivem vital, de luta e resistência.
na Paraíba), cariris (que moram com outra
parte do povo potiguara na região de Crate-
ús) e tremembés (que residem no município

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