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PROFESSORAS PRIMÁRIAS
Resumo:
A disciplina e o castigo na escola constituem a questão central que orienta a
investigação da ação pedagógica de duas professoras primárias. Tendo como foco de
reflexão a formação dos pilares da disciplina sob a forma de habitus no âmbito familiar
e a consolidação desses habitus disciplinares na formação escolar, buscou-se, através do
estudo das trajetórias de vida das professoras, analisar a influência, na prática
pedagógica, dos habitus disciplinares consolidados durante suas trajetórias. O estudo foi
realizado à luz dos aportes teóricos de Durkheim e Bourdieu. O diálogo dos dados com
a teoria de Durkheim, que aborda a disciplina a partir da noção de moral, permitiu o
desvendamento dos conceitos e das representações que orientam o processo de
disciplinamento das duas professoras. Percebe-se que as representações que elas têm da
educação familiar exprimem o sentido dado às suas experiências no mundo profissional
e traduzem a crença de que a família é a responsável pela indisciplina do aluno na
escola. Distingue-se nas representações das professoras a influência dos habitus
disciplinares fortemente marcados na infância e adolescência que funcionam como
esquemas de percepção e avaliação da forma como as crianças são educadas pelos pais.
Palavras chave: disciplina na escola – educação familiar - trajetória de vida de
professoras
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Mestre em Educação – PUC/MG, Doutora em Educação - UNICAMP – Professora da Universidade
de Itaúna. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre a Profissão Docente – GEPPDOC da PUC -
Minas
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Nomes Fictícios
Minha mãe mandava e a gente obedecia. Gostasse ou não gostasse...
Agora, papai era o extremo oposto, era a calma feito pessoa. Nem
um filho se lembra de ver o papai chateado com alguma coisa. Era
impressionante. Ele estava sempre de bem com a vida, sempre com fé
que as coisas iam melhorar e nos tratava assim: incentivando e
conversando.
Minha mãe batia, ela batia mesmo, não tinha escapatória, sabe?
Aprendi a tabuada com vara na perna. Ela tomava a tabuada e não
podia pensar. Ela falava 4+7. Eu não lembrava que era 11. “Então,
está pensando?” Uma varada. Tinha que aprender assim. (Helena)
A professora mais brava que eu tive foi a Irmã Regina. Ela era
militarismo mesmo. O negócio com ela era assim: não admitia nada
de errado. Ela entrava na sala de estudo, o mosquito voava e a gente
escutava o mosquito voar. Isso foi bom. Eu acho que tem que haver
limite.(Maria das Graças)
Eu não sabia desenhar. Nem todo mundo tem o dom para o desenho.
Culpa minha. Eu não culpo o professor. Não. (Maria das Graças)
BOURDIEU (1994: 45) afirma que a prática poderia ser definida como
resultado incorporado de uma trajetória social.
Para ele (1990: 158/159), as representações dos agentes variam segundo sua
posição e segundo seu habitus, como sistema de esquemas de percepção e apreciação e,
ainda, como estruturas cognitivas e avaliatórias adquiridas através da experiência
duradoura de uma posição do mundo social. Assim, o habitus é ao mesmo tempo um
sistema de esquemas de produção de práticas e um sistema de percepção e apreciação
das práticas que ele engendra. Portanto, o habitus produz práticas e representações que
estão disponíveis para a classificação, que são objetivamente diferenciadas. O mundo
social pode ser dito e construído de maneiras diferentes e de acordo com princípios de
visão e divisão diferentes.
A abordagem sobre representações sociais a partir da noção da história cultural
permite, como afirma Chartier (1990:16/17), “identificar o modo como em diferentes
lugares e momentos uma realidade social é construída, pensada, dada a ler”. Para
Chartier as classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo
social como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real são
produzidas pelas disposições estáveis e partilhadas, próprias do grupo. Os esquemas
intelectuais incorporados criam figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido
ou pode tornar-se inteligível e o espaço pode ser decifrado.
Dessa forma, entende-se que as representações são estruturas estruturadas que
exprimem o sentido que o sujeito dá à sua experiência no mundo social, utilizando-se
dos sistemas de códigos e interpretações fornecidos pela sociedade e projetando valores
e aspirações sociais. As representações têm, deste modo, íntima relação com a
concepção que o agente tem do ser humano e da sociedade.
FERREIRA e EIZIRIK (1994) afirmam que “muitos dos problemas vividos na
escola advêm de formações e conceitos interiorizados, crenças cristalizadas na rotina do
cotidiano, que acabam por naturalizar práticas (...)”.
Ao utilizar o conceito de representações sociais, procuro elementos essenciais
para a análise dos mecanismos que interferem na ação educativa das duas professoras.
Para Helena, embora afirme sempre a sua repulsa pelas normas impostas, pela
mãe e pelos professores, a representação sobre a disciplina e o disciplinamento revela “a
produção de uma percepção retida na lembrança”. Esperar-se-ia que, pela ojeriza com
que relata as imposições da mãe, ela não fosse repetir o comportamento daquela.
Contudo, ela se vê repetindo algumas regras e limites impostos pela mãe e, hoje,
entende que eles são necessários. Isto se explica no fato de que, no princípio da
representação está o habitus, que tende a conformar e a orientar a ação, assegurando a
reprodução das relações objetivas que o produziram.
Por sua vez, os relatos de Maria das Graças confirmam as idéias de Helena.
Também ela considera que “a educação vem mesmo de berço” e que a falta de limites é
o maior problema da escola.
Não adianta o pai educar o filho perto da gente. Ele tem de colocar
limite nele, dentro de casa. Eu acho que o limite está faltando é na
família. Menino toma conversa do pai. É um limite que o pai tem de
por: eu estou falando, você tem que ouvir. A educação vem mesmo do
berço. (Maria das Graças)
Acho que tudo deveria ter limite. Essa falta de limites é que está
gerando tanto conflito dentro da escola. E, ela vem de casa. Não
foram estabelecidos limites para a criança dentro de casa. Então, ela
chega aqui e quer transferir para a escola aquilo que ela é em casa.
Em casa ela faz o que quer, ela grita, ela xinga, ela suja as coisas,
ela não guarda nada. Você sente isso: ela é indisciplinada, na
convivência, ela é indisciplinada no seu material, ela é
indisciplinada interiormente, ela não coordena as obrigações dela.
Então, aquela dificuldade resume tudo em conflito com o professor.
(Maria das Graças)
Olha, eu não acho que bom professor é aquele que tem um montão de
cursos por aí não, eu acho que o bom professor é aquele que
trabalha com amor, porque tudo que a gente faz com amor vai para
frente. (Maria das Graças)
...mas a culpa foi minha. Eu não culpo o professor por isso não.
(Helena)
A professora não admitia nada de errado. Eu acho que foi bom para
nós porque a gente aprendeu assim a ter uma disciplina com ela...
(Maria das Graças)
Os habitus, portanto, presentes nos esquemas de percepção e apreciação das
práticas pedagógicas de seus ex-professores se encontram presentes nos esquemas de
produção das práticas das duas professoras.
Apenas ser bravo, ser rígido, não leva ninguém a nada. O aluno pode
ficar com medo do professor, tomar pavor dele, antipatia da cara
dele. Eu acho que o professor deve ser exigente, ele não pode
compactuar com a falta de responsabilidade, mas sobretudo tem de
ter paixão por aquilo que ele representa ali, como professor de
determinada matéria. Tem que ter paixão por aquela matéria, ele têm
de mostrar essa paixão para fazer a gente ficar apaixonada. (Maria
das Graças)
O professor tem que ser responsável, gostar do que faz, ser amigo do
aluno, eu acho isso muito importante, ser bom para ensinar, porque
tem professor que repete, repete e o menino não aprende. Se ele fizer
por amor ele sobe na vida. Os pais dão muito valor ao professor
dedicado. (Helena)
As representações que Helena e Maria das Graças têm do bom professor e sua
prática pedagógica remetem a DURKHEIM, que leva o leitor a refletir sobre a moral
como sendo essencialmente idealista.
Segundo ele, “o que é realmente um ideal, senão um corpo de idéias que
pairam acima do indivíduo, solicitando energicamente a sua ação? A moral ordena-nos
que nos entreguemos, que nos subordinemos a algo que não nós mesmos; e mercê dessa
subordinação que nos impõe, ela eleva-se acima de nós próprios.” Assim, DURKHEIM
afirma que, para podermos “tomar a peito” a obra educativa, “necessário se torna que
por ela nos interessemos e a amemos, e para a amarmos, há que sentirmos tudo que de
vivo nela existe.” (DURKHEIM, 1984: 226, 228)
Para DURKHEIM, a autoridade do professor surge do seu foro íntimo e, para
que isso aconteça, é necessário “que ele creia na sua missão e na grandeza da mesma”.
Essa necessidade é reafirmada pela professora Helena, para quem a disciplina dos
alunos e a autoridade do professor, decorrem da capacidade de saber conduzir as aulas e
está intimamente ligada à questão da criatividade e do gosto pela atividade docente:
A gente pensa que criança é boba, tudo que a gente quiser ela faz, e
não é desse jeito. Nesse tempo todo em que estou vendo a criança,
ela é muito mais ligada, muito mais viva do que já vimos. Ela
percebe, muito antes, as coisas. E é por aí que o professor vai manter
a disciplina: com trabalho e criatividade, porque se você se
apresenta na sala sempre do mesmo jeito, com o mesmo tom de voz,
mesmo modo de conversar, mesmo modo de chamar uma criança e
de apresentar as coisas, não vai atrair ninguém não. Porque nós
temos concorrentes fortíssimos aí fora, na mídia. Então, é trabalhar
mesmo a criatividade e a interação.
Diante disso, não é difícil constatar que as duas professoras consideram que
amor à profissão e aos alunos seja a principal virtude do professor. Assim, quando
relatam sobre os castigos aplicados em seus alunos expressam um sentimento, que
traduz o sofrimento que os mesmos provocam.
Todavia, qualquer que seja a punição, e seja qual for a forma pela
qual a pronunciemos, necessário se torna que, uma vez decidida, seja
irrevogável.
Também sobre esta questão, DURKHEIM (1984: 307) afirma e faz refletir que
não se deve punir “ab irato”. Para ele, a criança deve sentir que o castigo foi resultado
de um ato deliberado e de uma decisão tomada a sangue-frio. “Um castigo aplicado num
impulso de cólera ou de impaciência nervosa tira-lhe todo o significado moral.”
Para Helena o castigo deve ser precedido, sempre, de avisos que de fato,
constituem forma de ameaça.
Melhor você dizer, insistir: “olhe, você vai apanhar por isso
qualquer dia”. Por aí, a criança não vai perceber que você não está
descarregando a raiva nela. Você avisou vários dias. Então, eu
sempre avisei e avisei.
Note-se a semelhança entre a fala da professora e a seguinte afirmação de
DURKHEIM (1984: 305) “a virtude do castigo só é total, quando ele se limita à
condição de ameaça”. É por isto que o professor experimentado hesita em castigar um
bom aluno, mesmo que ele o mereça. Para ele um castigo inadequado pode contribuir
para que aluno venha a reincidir no erro.
Você vai levar tantas palmadas pelas vezes que repetiu o erro. E eu
dava essas palmadas. Agora, eu dava não era palmadinha de engano
não. Ele tinha de sentir minha mão. (Helena)
Contudo, percebe-se, ainda, que os castigos não resolvem agora, como não
resolveram no passado, o problema da indisciplina. A análise dos relatos das duas
professoras leva à reflexão de que estudar a disciplina sob o enfoque dos habitus
consolidados na família e na formação escolar dos professores pode dar uma
contribuição importante para a compreensão desse problema desafiante.
Isto, com certeza, aponta caminhos que levam a uma convivência mais
harmoniosa (ou menos tensa) entre professores e alunos.
Referências Bibliográficas
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas. São Paulo,
Papirus Editora, 1996.
BOURDIEU, Pierre. Sociologia. Org. Renato Ortiz. São Paulo: Ática, 1994.
DURKHEIM, Émile. Educação e Sociologia. 11º ed. Trad. Lourenço Filho. São Paulo:
Melhoramentos, 1978.
DURKHEIM, Émile. A Educação Moral. Livro Segundo Porto, Portugal: Res Editora,
1984.
FERREIRA e EIZIRIK, Nilda Teles e Maria Fabmam. Em Aberto, Brasília, ano 14, nº
61, janeiro março 1994.