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DISCIPLINA E CASTIGO NA HISTÓRIA DE VIDA DE DUAS

PROFESSORAS PRIMÁRIAS
Resumo:
A disciplina e o castigo na escola constituem a questão central que orienta a
investigação da ação pedagógica de duas professoras primárias. Tendo como foco de
reflexão a formação dos pilares da disciplina sob a forma de habitus no âmbito familiar
e a consolidação desses habitus disciplinares na formação escolar, buscou-se, através do
estudo das trajetórias de vida das professoras, analisar a influência, na prática
pedagógica, dos habitus disciplinares consolidados durante suas trajetórias. O estudo foi
realizado à luz dos aportes teóricos de Durkheim e Bourdieu. O diálogo dos dados com
a teoria de Durkheim, que aborda a disciplina a partir da noção de moral, permitiu o
desvendamento dos conceitos e das representações que orientam o processo de
disciplinamento das duas professoras. Percebe-se que as representações que elas têm da
educação familiar exprimem o sentido dado às suas experiências no mundo profissional
e traduzem a crença de que a família é a responsável pela indisciplina do aluno na
escola. Distingue-se nas representações das professoras a influência dos habitus
disciplinares fortemente marcados na infância e adolescência que funcionam como
esquemas de percepção e avaliação da forma como as crianças são educadas pelos pais.
Palavras chave: disciplina na escola – educação familiar - trajetória de vida de
professoras

DISCIPLINE AND PUNISHMENT IN THE HISTORY OF LIFE OF TWO


PRIMARY TEACHERS
Abstract:
The discipline and the punishment in the school constitute the central subject that guides
the investigation of two primary teachers' pedagogic action. Tends as reflection focus
the formation of the pillars of the discipline under the habitus form in the family extent
and the consolidation of those habitus disciplinary in the school formation, it was
looked for, through the study of the paths of the teachers' life, to analyze the influence,
in practice pedagogic, of the habitus disciplinary consolidated during their paths. The
study was accomplished the light of the theoretical contributions of Durkheim and
Bourdieu. The dialogue of the data with the theory of Durkheim, that approach the
discipline starting from the morals notion, it allowed the disclosal of the concepts and of
the representations that guide the process of the two teachers' discipline. It is noticed
that the representations that they have of the family education express the sense given to
their experiences in the professional world and they translate the faith that the family is
the responsible for the student's indiscipline in the school. In the teachers'
representations, stands out the influence of the habitus disciplinary strongly marked in
the childhood and adolescence that work as perception outlines and evaluation in the
way as the children are educated for the parents.
Key words: school's discipline -family education - path's life of teachers

Autora: Maria José de Morais Pereira


Doutora em Educação – UNICAMP
E-mail: mariajose_pereira@bol.com.br - mariajosemorais@ig.com.br
DISCIPLINA E CASTIGO NA HISTÓRIA DE VIDA DE
DUAS PROFESSORAS PRIMÁRIAS
Maria José de Morais Pereira

()

“Sou um pouco de tudo o que passou


em minha vida” (Ulisses, personagem
da Odisséia, de Homero)

A disciplina e o castigo na escola constituem a questão central que orienta os


estudos e a investigação da ação pedagógica de duas professoras primárias: Helena e
Maria das Graças∗∗. Tendo como foco de reflexão a formação dos pilares da disciplina
sob a forma de habitus no âmbito familiar e a consolidação desses habitus disciplinares
na formação escolar, buscou-se, através do estudo das trajetórias de vida das duas
professoras, analisar a influência, na prática pedagógica, dos habitus disciplinares
consolidados durante suas trajetórias. O estudo foi realizado à luz dos aportes teóricos
de Durkheim, Foucault e Bourdieu. O diálogo dos dados com a teoria de Durkheim e
Foucault, que abordam, respectivamente, a disciplina a partir da noção de moral e da
noção de normalização, permitiu o desvendamento dos conceitos e das representações
que orientam o processo de disciplinamento das duas professoras.
As duas professoras escolhidas, Helena e Maria da Graças, têm percursos
diferentes no modo de se relacionarem com os alunos. Uma tem fama de ser
extremamente exigente, brava, tradicional. A outra é alegre, gosta de realizar com os
alunos teatro, auditório, excursões. Ambas são consideradas boas professoras pela
comunidade e gozam da confiança dos pais. Elas iniciaram a carreira profissional no
mesmo período, a década de 60.
A análise detalhada das histórias de vida das duas professoras leva ao
desvendamento dos fios condutores de suas narrativas pessoais e possibilita perceber os
habitus disciplinares que tiveram raízes na cultura familiar e, consolidados na formação
escolar, se tornam presença ativa na vida profissional delas.
Helena é filha de um ferroviário e Maria das Graças é filha de um fazendeiro
que pertence a uma tradicional e poderosa família do coronel da região. Assim, embora
tenham nascido dentro de uma mesma conjuntura histórica, a década de 40, o capital
econômico e social das duas é completamente diferente.
A análise dos relatos leva à constatação de que a vivência das normas, regras e
castigos, no âmbito familiar foi diferente para as duas professoras. Para a professora
Helena, a autoridade era representada pela mãe; que impunha a disciplina, enquanto nos
relatos da professora Maria das Graças, a figura de autoridade na família era o pai. A
mãe não apareceu nenhuma vez nos seus relatos sobre disciplina e disciplinamento:


Mestre em Educação – PUC/MG, Doutora em Educação - UNICAMP – Professora da Universidade
de Itaúna. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre a Profissão Docente – GEPPDOC da PUC -
Minas

∗∗
Nomes Fictícios
Minha mãe mandava e a gente obedecia. Gostasse ou não gostasse...
Agora, papai era o extremo oposto, era a calma feito pessoa. Nem
um filho se lembra de ver o papai chateado com alguma coisa. Era
impressionante. Ele estava sempre de bem com a vida, sempre com fé
que as coisas iam melhorar e nos tratava assim: incentivando e
conversando.
Minha mãe batia, ela batia mesmo, não tinha escapatória, sabe?
Aprendi a tabuada com vara na perna. Ela tomava a tabuada e não
podia pensar. Ela falava 4+7. Eu não lembrava que era 11. “Então,
está pensando?” Uma varada. Tinha que aprender assim. (Helena)

Meu pai era muito bravo. A gente tinha de aceitar as normas da


casa. Tinha de aceitar. Na época de nossa criação era tudo imposto
mesmo, tinha de aceitar. (Maria das Graças)

Os relatos sobre a disciplina e o disciplinamento, nas instituições escolares


onde estudaram, deixam evidente que as regras escolares eram rígidas e estavam em
consonância com o modo de educação familiar. Assim, a consolidação dos habitus
disciplinares é evidente através dos esquemas de percepção e apreciação que as duas,
Helena e Maria das Graças, fazem de seus professores. É possível, ainda, através da
análise dos relatos, perceber o princípio desse habitus na formação de novos habitus
que estão presentes em suas próprias práticas escolares, reveladas na descrição da
trajetória profissional.
Desse modo, as duas professoras relatam a vivência escolar enquanto alunas,
como um período em que a disciplina era rígida e imposta, cabendo ao aluno
“obediência cega”.

Antigamente a disciplina era imposta pelo professor, professor era


autoridade dentro da sala de aula.(Helena)

A professora mais brava que eu tive foi a Irmã Regina. Ela era
militarismo mesmo. O negócio com ela era assim: não admitia nada
de errado. Ela entrava na sala de estudo, o mosquito voava e a gente
escutava o mosquito voar. Isso foi bom. Eu acho que tem que haver
limite.(Maria das Graças)

Tanto no relato de Helena quanto no de Maria das Graças, percebe-


se um mecanismo de controle rigoroso, sendo que o castigo aparece,
principalmente, aplicado através de argüições, provas e notas.

Um dia, eu não estava passando bem e a professora de Metodologia


me argüiu na sala. Eu tinha tirado cem. A minha nota era cem e ela
dividiu minha nota por 2. Ô gente? Eu tive paixão! Fiquei com a nota
vermelha na caderneta, coisa que o papai não aceitava de jeito
nenhum. (Maria das Graças)

O professor Osvaldo. Ele catava até pingos nos “is” em português,


dava centésimos de nota, dava zero em redação, ocupando uma
página inteira, mas a gente aprendia português com ele; eu era
apaixonada com ele. (Helena)

Os relatos das duas professoras evidenciam a presença do exame como


dispositivo disciplinar e, ao mesmo tempo, percebe-se a presença de esquemas
adquiridos, funcionando no nível prático, como categorias de percepção e apreciação e,
ainda, como princípios de classificação. Ao relatar as práticas vivenciadas na trajetória
escolar as duas professoras retratam o balanço positivo do disciplinamento.

Eu não sabia desenhar. Nem todo mundo tem o dom para o desenho.
Culpa minha. Eu não culpo o professor. Não. (Maria das Graças)

Agora, lembranças agradáveis? Nossa! Eu tenho demais! Lembrança


da minha primeira professora, dona Neide. Ela era muito brava,
muito exigente, mas carinhosíssima. As recordações que eu tenho
dela são as mais gostosas. (Helena)

Na ação, a força do vivido.

As pessoas sabem o que fazem; elas freqüentemente sabem porque


fazem o que fazem; mas o que elas não sabem é o que faz (causa)
aquilo que elas fazem. (FOUCAULT)

BOURDIEU (1994: 45) afirma que a prática poderia ser definida como
resultado incorporado de uma trajetória social.
Para ele (1990: 158/159), as representações dos agentes variam segundo sua
posição e segundo seu habitus, como sistema de esquemas de percepção e apreciação e,
ainda, como estruturas cognitivas e avaliatórias adquiridas através da experiência
duradoura de uma posição do mundo social. Assim, o habitus é ao mesmo tempo um
sistema de esquemas de produção de práticas e um sistema de percepção e apreciação
das práticas que ele engendra. Portanto, o habitus produz práticas e representações que
estão disponíveis para a classificação, que são objetivamente diferenciadas. O mundo
social pode ser dito e construído de maneiras diferentes e de acordo com princípios de
visão e divisão diferentes.
A abordagem sobre representações sociais a partir da noção da história cultural
permite, como afirma Chartier (1990:16/17), “identificar o modo como em diferentes
lugares e momentos uma realidade social é construída, pensada, dada a ler”. Para
Chartier as classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo
social como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real são
produzidas pelas disposições estáveis e partilhadas, próprias do grupo. Os esquemas
intelectuais incorporados criam figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido
ou pode tornar-se inteligível e o espaço pode ser decifrado.
Dessa forma, entende-se que as representações são estruturas estruturadas que
exprimem o sentido que o sujeito dá à sua experiência no mundo social, utilizando-se
dos sistemas de códigos e interpretações fornecidos pela sociedade e projetando valores
e aspirações sociais. As representações têm, deste modo, íntima relação com a
concepção que o agente tem do ser humano e da sociedade.
FERREIRA e EIZIRIK (1994) afirmam que “muitos dos problemas vividos na
escola advêm de formações e conceitos interiorizados, crenças cristalizadas na rotina do
cotidiano, que acabam por naturalizar práticas (...)”.
Ao utilizar o conceito de representações sociais, procuro elementos essenciais
para a análise dos mecanismos que interferem na ação educativa das duas professoras.
Para Helena, embora afirme sempre a sua repulsa pelas normas impostas, pela
mãe e pelos professores, a representação sobre a disciplina e o disciplinamento revela “a
produção de uma percepção retida na lembrança”. Esperar-se-ia que, pela ojeriza com
que relata as imposições da mãe, ela não fosse repetir o comportamento daquela.
Contudo, ela se vê repetindo algumas regras e limites impostos pela mãe e, hoje,
entende que eles são necessários. Isto se explica no fato de que, no princípio da
representação está o habitus, que tende a conformar e a orientar a ação, assegurando a
reprodução das relações objetivas que o produziram.

Na época em que eu era criança, isto tem mais de 50 anos - a gente


tinha essa disciplina rígida, até repressora mesmo, com limites até
em excesso. Eu sentia repulsa pelo excesso de regras que eram
impostas. Por outro lado, hoje acredito que nós caminhamos no
oposto. A criança não tem mais regras, não tem mais limites. Parece
que os pais perderam... Parece não. Eles perderam realmente a
noção de educadores. Eles chegam para a gente, aqui, e dizem: olhe,
faça o que quiser com esse menino, porque eu não dou conta dele. O
pai tem de dar conta do filho sim, porque a responsabilidade maior é
dele. Eu considero a escola como uma auxiliar da educação. O
educador é o pai, a educadora primeira é a mãe. Então, eles têm de
dar conta dos filhos. Então mudou muito. Eles estão perdidos.
(Helena)

Por sua vez, os relatos de Maria das Graças confirmam as idéias de Helena.
Também ela considera que “a educação vem mesmo de berço” e que a falta de limites é
o maior problema da escola.

Não adianta o pai educar o filho perto da gente. Ele tem de colocar
limite nele, dentro de casa. Eu acho que o limite está faltando é na
família. Menino toma conversa do pai. É um limite que o pai tem de
por: eu estou falando, você tem que ouvir. A educação vem mesmo do
berço. (Maria das Graças)

Acho que tudo deveria ter limite. Essa falta de limites é que está
gerando tanto conflito dentro da escola. E, ela vem de casa. Não
foram estabelecidos limites para a criança dentro de casa. Então, ela
chega aqui e quer transferir para a escola aquilo que ela é em casa.
Em casa ela faz o que quer, ela grita, ela xinga, ela suja as coisas,
ela não guarda nada. Você sente isso: ela é indisciplinada, na
convivência, ela é indisciplinada no seu material, ela é
indisciplinada interiormente, ela não coordena as obrigações dela.
Então, aquela dificuldade resume tudo em conflito com o professor.
(Maria das Graças)

Percebe-se que as representações que as duas professoras têm da educação


familiar exprimem o sentido dado à suas experiências no mundo profissional, quando
interpretam os comportamentos dos alunos como bons ou maus e traduzem “a crença
cristalizada” de que a família é a responsável pela indisciplina do aluno na escola. Ao
relatar o comportamento das crianças de hoje as duas professoras relembram a época em
que eram crianças, em que obedeciam e respeitavam os pais e os professores. Para elas
isto constitui um valor que se tornou importante na formação moral das duas.

BOURDIEU (1994: 65, 66) explica esse tipo de comportamento reportando a


DURKHEIM:

(...) Em cada um de nós, em proporções variáveis, há um homem de


ontem, é o mesmo homem de ontem que, pela força das coisas, está
predominantemente em nós, posto que o presente não é senão pouca
coisa comparado a esse longo passado e no curso do qual nos
formamos e de onde resultamos. Somente que, esse homem do
passado, nós não o sentimos, porque ele está arraigado em nós, ele
forma a parte inconsciente de nós mesmos. Em conseqüência, somos
levados a não tê-lo em conta, tampouco as suas exigências legítimas.
Ao contrário, as aquisições mais recentes da civilização, temos delas
um vivo sentimento porque, sendo recentes, não tiveram tempo de se
organizar no inconsciente.

Percebe-se, principalmente, nos relatos das professoras que a disciplina


familiar é essencial para a formação da criança.

O Estatuto da Criança e do Adolescente foi uma boa, foi,


independente de determinados aspectos. Agora, essa empolgação
alvoroçada que se faz desse estatuto, dizendo que a criança tem
direito a tudo, e o adolescente também, não se pode fazer isso, não se
pode fazer aquilo (com a criança e com o adolescente)... Não será
isso a causa de tanta violência nas escolas e de tanto desleixo pelos
estudos? Quer dizer: falta um limite e quem trabalha diretamente
com limite não é quem legisla. Não! É quem está dentro da sala de
aula. (Helena)

Não adianta o professor aqui estabelecer determinado limite para a


criança e depois, ela não tem limite em casa, ela vai vivenciar esta
falta de limite dentro da escola também, que é o problema que
estamos vivendo. (Maria das Graças)

Os pais estão jogando essa educação toda em cima da professora, da


escola. Agora, menino toma a palavra da gente dentro da sala de
aula. Respondem. Esse problema de aluno responder, me tira do
sério mesmo. Eu acho assim, atualmente, eles estão mais respondões.
Eles estão bem mais relapsos também. (Maria das Graças)

Distingue-se nas representações das professoras a influência dos habitus


disciplinares vividos na formação familiar. Os habitus disciplinares fortemente
marcados na infância fazem surgir representações que funcionam, como esquemas de
percepção e avaliação da forma como as crianças de hoje são educadas pelos pais. Esses
esquemas, por sua vez, remetem à apreciação dos comportamentos que as crianças
apresentam na escola e que são diferentes dos comportamentos das crianças com quem
trabalharam na primeira e na segunda década.

Eu acho que a educação de antigamente era completamente diferente


da de hoje. Antigamente o pai sentava com os filhos na mesa, tomava
refeição. Hoje o filho serve a sua comida e vai para a frente da
televisão. E o pai não faz nada.
Era bem mais fácil na primeira e na segunda década manter uma
disciplina dentro da sala. A escola estava mais envolvida e o pai não
vinha à escola. Hoje, por qualquer coisinha o pai vem na escola.
(Maria das Graças)

Nós fazemos reuniões: só vêm às reuniões os pais cuja criança não


têm problemas sérios de indisciplina. É a mais pura verdade. A
família não se envolve. Então, é uma luta para mostrar para os pais
que toda liberdade gera uma obrigação e toda obrigação gera um
direito e que a liberdade da criança vai até onde começa a liberdade
do outro. E eles, não vêem facilmente isso não. (Helena)

As representações sobre o papel da família na formação das duas professoras,


forjadas no passado, interferem na definição sobre o papel da família na formação das
“crianças de hoje”.
Ainda, interferem na maneira como elas observam e interpretam a ação dos
pais, as situações de indisciplina na família e as formas como a realidade familiar é
revivida na escola. Encontra-se, portanto, nos habitus disciplinares das duas professoras
o princípio ativo das práticas pedagógicas e das representações sobre a disciplina e o
disciplinamento, bem como do uso dos castigos como forma de controle e de ordenação
dos alunos. Também suas representações sobre o bom aluno e o bom professor, são
fundamentais na consolidação dos habitus disciplinares.
Ao conceituarem o que é “bom aluno” pode-se perceber, em termos de
comportamento e de ações, o que cada uma delas espera desse “bom aluno”.

Helena considera como bom aluno:

Aquele que é curioso, é aquele que é questionador, é aquele que não


só recebe, mas que dá – porque ele tem demais dentro dele -. Então,
se ele não se expressar, ele não solta o que está dentro dele. Eu
prefiro uma turma de pintões (eu coloco esta palavra entre aspas) do
que uma turma de tímidos. (Helena)

A representação de ‘bom aluno elaborada por ela é diferente daquela elaborada


por Maria das Graças:

O bom aluno, eu acho que é o aluno responsável, que traz suas


coisas em dia, que participa (hoje em dia, nesses cursos que a gente
vai, fala-se muito na participação do aluno). Eu acho que o aluno
que participa, ele é um bom aluno. O bom aluno, o modo dele tratar
o professor dentro da sala de aula, ele trata o professor, assim, com
carinho, tem confiança no professor, chega perto da gente,
conversa... (Maria das Graças)

Percebe-se, no conceito elaborado por Helena, a importância dada à


manifestação e participação da criança na sala de aula, o que nos reporta à sua
convivência com o pai, aos diálogos com ele entabulados e à resistência às imposições
da sua mãe e de seus professores.

Eu prefiro uma turma de pintões.


Por sua vez, no conceito elaborado por Maria das Graças, percebe-se a idéia de
obediência e de uma solicitude respeitosa que faz lembrar a sua convivência submissa
com o pai e as professoras do internato.

Ele trata o professor assim, com carinho.


( Maria das Graças, falando sobre o bom aluno).

Quando se trata de falar sobre o professor, o bom professor, (e


elas deixam bem clara a idéia de que bom professor é aquele
que sabe manter a disciplina) as duas professoras afirmam a
necessidade de gostar da profissão, de trabalhar com amor:

Olha, eu não acho que bom professor é aquele que tem um montão de
cursos por aí não, eu acho que o bom professor é aquele que
trabalha com amor, porque tudo que a gente faz com amor vai para
frente. (Maria das Graças)

Eu acredito que o bom professor é aquele que é apaixonado por ser


professor, apaixonado por aquilo que tem de fazer, apaixonado pelos
educandos. Eu não posso ser educador se eu não gosto dos
educandos. (Helena)

Diante disso, fica evidente que as professoras relacionam a questão do sucesso


profissional, da sua aceitação pelos pais e pela comunidade, à dedicação e ao amor pelo
magistério. Nas suas narrativas constata-se que viam os seus professores como modelos
de responsabilidade e de dedicação.

Lembranças agradáveis? Nossa! Eu tenho demais. Lembrança da


minha primeira professora que me dava aquele apoio! Eu chegava
da roça, ela me levava para a casa dela... (Helena)

A percepção e apreciação das práticas de seus ex-professores aparecem sob


uma forma positiva, o que faz refletir sobre as estruturas dos habitus produzidos não só
na família mas, também, na escola. É assim que as admoestações e castigos recebidos
na escola são considerados hoje como um bem, porque ajudaram a torná-las pessoas
disciplinadas e responsáveis. Sobre os castigos que “sofreram” na escola aparecem
comentários assim:

...mas a culpa foi minha. Eu não culpo o professor por isso não.
(Helena)

Aqueles professores que eram mais rigorosos, mais exigentes, que na


época a gente considerava que mais atrapalhavam a nossa
adolescência, foram aqueles que mais deixaram marcas porque a
gente aprendeu mesmo aquilo que eles se propunham em fazer a
gente aprender. (Helena)

A professora não admitia nada de errado. Eu acho que foi bom para
nós porque a gente aprendeu assim a ter uma disciplina com ela...
(Maria das Graças)
Os habitus, portanto, presentes nos esquemas de percepção e apreciação das
práticas pedagógicas de seus ex-professores se encontram presentes nos esquemas de
produção das práticas das duas professoras.

O bom professor, eu acredito que é ser apaixonado por ser professor,


ser apaixonado por aquilo que tem de fazer, ser apaixonada pelos
educandos. Eu não posso ser educador, se eu não gosto de ser
professor. (Helena)

Apenas ser bravo, ser rígido, não leva ninguém a nada. O aluno pode
ficar com medo do professor, tomar pavor dele, antipatia da cara
dele. Eu acho que o professor deve ser exigente, ele não pode
compactuar com a falta de responsabilidade, mas sobretudo tem de
ter paixão por aquilo que ele representa ali, como professor de
determinada matéria. Tem que ter paixão por aquela matéria, ele têm
de mostrar essa paixão para fazer a gente ficar apaixonada. (Maria
das Graças)

O professor tem que ser responsável, gostar do que faz, ser amigo do
aluno, eu acho isso muito importante, ser bom para ensinar, porque
tem professor que repete, repete e o menino não aprende. Se ele fizer
por amor ele sobe na vida. Os pais dão muito valor ao professor
dedicado. (Helena)

As representações que Helena e Maria das Graças têm do bom professor e sua
prática pedagógica remetem a DURKHEIM, que leva o leitor a refletir sobre a moral
como sendo essencialmente idealista.
Segundo ele, “o que é realmente um ideal, senão um corpo de idéias que
pairam acima do indivíduo, solicitando energicamente a sua ação? A moral ordena-nos
que nos entreguemos, que nos subordinemos a algo que não nós mesmos; e mercê dessa
subordinação que nos impõe, ela eleva-se acima de nós próprios.” Assim, DURKHEIM
afirma que, para podermos “tomar a peito” a obra educativa, “necessário se torna que
por ela nos interessemos e a amemos, e para a amarmos, há que sentirmos tudo que de
vivo nela existe.” (DURKHEIM, 1984: 226, 228)
Para DURKHEIM, a autoridade do professor surge do seu foro íntimo e, para
que isso aconteça, é necessário “que ele creia na sua missão e na grandeza da mesma”.
Essa necessidade é reafirmada pela professora Helena, para quem a disciplina dos
alunos e a autoridade do professor, decorrem da capacidade de saber conduzir as aulas e
está intimamente ligada à questão da criatividade e do gosto pela atividade docente:

A gente pensa que criança é boba, tudo que a gente quiser ela faz, e
não é desse jeito. Nesse tempo todo em que estou vendo a criança,
ela é muito mais ligada, muito mais viva do que já vimos. Ela
percebe, muito antes, as coisas. E é por aí que o professor vai manter
a disciplina: com trabalho e criatividade, porque se você se
apresenta na sala sempre do mesmo jeito, com o mesmo tom de voz,
mesmo modo de conversar, mesmo modo de chamar uma criança e
de apresentar as coisas, não vai atrair ninguém não. Porque nós
temos concorrentes fortíssimos aí fora, na mídia. Então, é trabalhar
mesmo a criatividade e a interação.

É muito necessário que o professor tenha realmente gosto por aquilo


que faz, saiba planejar atividades dentro de um horário limite,
porque a criança não tem capacidade para concentrar sua atenção
durante muito tempo. (Helena)

Diante disso, não é difícil constatar que as duas professoras consideram que
amor à profissão e aos alunos seja a principal virtude do professor. Assim, quando
relatam sobre os castigos aplicados em seus alunos expressam um sentimento, que
traduz o sofrimento que os mesmos provocam.

Nesses anos de carreira, eu, lamentavelmente, só não dei conta de


dois alunos. Eu tive de apelar para a direção, na época, para tomar
uma providência. Até hoje me sinto triste de pensar nisto: o que eu
deixei de fazer para chegar ao ponto de eu encaminhar esses dois
alunos para a direção? (Helena)

Entretanto, ambas consideram necessários os castigos (ficar sem o recreio,


sem a aula de artes “que os alunos adoram”, fazer dever extra, etc.) para que a criança se
torne um adulto responsável e capaz de respeitar a si mesmo e aos outros. Para ambas o
conceito de disciplina está ligado a dois valores: respeito e responsabilidade.

Maria das Graças fala sobre o que é disciplina:

Eu gosto de repetir: a base da disciplina no meu ponto de vista, está


em duas palavras: “respeito e responsabilidade.

Para Helena, disciplina consiste em respeito e responsabilidade:

Eu respeito meus alunos, eu respeito meu superior, eu respeito o


pessoal que trabalha comigo, eu respeito os nossos serventes, e da
minha parte eu procuro cumprir tudo que é inerente à minha
profissão.

Maria das Graças diz ainda:

A partir do momento em que é decidido o que se vai fazer, eu cumpro


a minha parte, e acredito, ainda, que o exemplo educa mais que as
palavras. E o respeito, a responsabilidade, são as bases de qualquer
ação, principalmente na área de educação.

Nesse sentido, as análises sobre as situações em que os castigos são


aplicados evidenciam o caráter formador e moralizador da disciplina.
Para as duas professoras há certas situações em que só um castigo dá à criança
a dimensão do que ela está fazendo e que não se reflete só contra ela, mas contra todo o
ambiente familiar, contra todo ambiente escolar. Contudo, ao afirmar o valor do castigo,
reflete-se sobre a necessidade de o mesmo ser dado após “um grande conhecimento de
causa”.

Agora, que o castigo seja dado depois de um conhecimento de causa


muito grande do que está levando a criança à indisciplina. (Helena,
referindo-se à necessidade do castigo)

DURKHEIM (1984: 307) leva à reflexão sobre esse “conhecimento” ao


afirmar que é conveniente deixar decorrer um tempo, ainda que curto, entre o instante
em que a falta é constatada e aquele em que a punição é infligida; um tempo de silêncio
reservado à reflexão. Esse momento de suspensão não é uma simples simulação,
destinado a dar à criança a ilusão de uma liberação; é sim um meio, para o mestre se
precaver contra as resoluções precipitadas, que seguidamente são tão difíceis de revogar
como de manter.”
É necessário que o mestre se precavenha de decisões precipitadas, uma vez
que constitui sempre um problema e bastante complicado, saber se é necessário punir e,
sobretudo, como se deve punir.

Eu sou totalmente contra espancar uma criança, machucar uma


criança. Agora castigo: eu acho muito produtivo quando você tira da
criança o que ela gosta, não em relação a alimentação, porque
alimentação é fundamental.
Os meus filhos são da era da televisão, os castigos deles eram tirar a
televisão, tirar o futebol, era tirar uma ida a casa de um colega.
Então, as coisas resultam quando você mantém. Agora, manter
mesmo. Se eu falei que hoje não tem televisão, não tem mesmo.
Ninguém vê para evitar o castigo relaxado.
Quando se dá um castigo tem de manter. (Helena)

DURKHEIM (1984: 309) menciona essa questão, afirmando:

Todavia, qualquer que seja a punição, e seja qual for a forma pela
qual a pronunciemos, necessário se torna que, uma vez decidida, seja
irrevogável.

Ao reafirmar ser contra espancamento, a professora enfatiza a necessidade dos


castigos, buscando justificativas para os mesmos na sua religiosidade.

Repito, eu sou contra espancamento. Mas há determinados momentos


em que sou favorável a que uma palmada bem dada resolva os
problemas. Mesmo porque na Bíblia você tem uma citação que diz lá
que os pais têm a responsabilidade de usar uma vara quando
necessário. Então eu não sou contra umas palmadas bem dadas, a
criança sabendo porque está recebendo aquela palmada. Eu dei
algumas palmadas, em casa, poucas vezes, mas dei e sempre assim.
Então não sou contra não quando o pai e a mãe não estão batendo
por raiva, para descarregar a raiva. O que é mais difícil de fazer,
porque geralmente quando se bate numa criança é descarregando a
raiva. (Helena)

Também sobre esta questão, DURKHEIM (1984: 307) afirma e faz refletir que
não se deve punir “ab irato”. Para ele, a criança deve sentir que o castigo foi resultado
de um ato deliberado e de uma decisão tomada a sangue-frio. “Um castigo aplicado num
impulso de cólera ou de impaciência nervosa tira-lhe todo o significado moral.”
Para Helena o castigo deve ser precedido, sempre, de avisos que de fato,
constituem forma de ameaça.
Melhor você dizer, insistir: “olhe, você vai apanhar por isso
qualquer dia”. Por aí, a criança não vai perceber que você não está
descarregando a raiva nela. Você avisou vários dias. Então, eu
sempre avisei e avisei.
Note-se a semelhança entre a fala da professora e a seguinte afirmação de
DURKHEIM (1984: 305) “a virtude do castigo só é total, quando ele se limita à
condição de ameaça”. É por isto que o professor experimentado hesita em castigar um
bom aluno, mesmo que ele o mereça. Para ele um castigo inadequado pode contribuir
para que aluno venha a reincidir no erro.

Continuando a fala do fragmento anterior a professora diz:

Você vai levar tantas palmadas pelas vezes que repetiu o erro. E eu
dava essas palmadas. Agora, eu dava não era palmadinha de engano
não. Ele tinha de sentir minha mão. (Helena)

As afirmações da professora remetem também à colocação de DURKHEIM


(1984: 308) sobre a forma de castigar: “Se é certo que não devemos castigar, levados
pela cólera, não é menos certo que não devemos castigar friamente. Um excesso de
sangue frio, de impassibilidade não resulta melhor que um excesso de arrebatamento.
Com efeito, punir, dissemos nós, é reprovar, e reprovar é protestar, é repelir o ato que
reprovamos, é darmos prova do distanciamento que ele inspira. Logo, se a punição for
aquilo que deve ser, ela não se processa sem uma certa indignação, ou, se a expressão
parecer demasiado forte, sem um descontentamento mais ou menos denunciado”.
Os relatos das duas professoras permitem a constatação de que, em sua
trajetória, novos habitus foram consolidados, possibilitando novas representações sobre
disciplina e disciplinamento, deixando, contudo, perceber o princípio dos habitus
primários e secundários na consolidação desses novos hábitos. Maria das Graças
procura conformar-se às mudanças, enquanto Helena procura entender e acompanhar as
mudanças. Assim, é possível perceber que a configuração dos novos habitus
consolidados na última década fazem surgir formas de disciplinamento que ganham
contornos mais sutis e mais suaves.

Contudo, percebe-se, ainda, que os castigos não resolvem agora, como não
resolveram no passado, o problema da indisciplina. A análise dos relatos das duas
professoras leva à reflexão de que estudar a disciplina sob o enfoque dos habitus
consolidados na família e na formação escolar dos professores pode dar uma
contribuição importante para a compreensão desse problema desafiante.

Isto, com certeza, aponta caminhos que levam a uma convivência mais
harmoniosa (ou menos tensa) entre professores e alunos.

Referências Bibliográficas

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