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AS MÁQUINAS ENLOUQUECEM

Autor
WILLIAM VOLTZ

Tradução
RICHARD PAUL NETO

Digitalização e Revisão
SKIRO
Seis terranos num mundo primitivo...

Estamos no ano 2.114 do calendário terrano. Para o homem,


menos de século e meio se passou desde o dia em que, pela
primeira vez, um foguete de propulsão química conseguiu pousar
na Lua, fato que marcou o início da verdadeira navegação
espacial.
É um espaço de tempo incrivelmente curto, se medido pelos
padrões cósmicos. Apesar disso, o Império Solar, criado e
governado por Perry Rhodan, já conseguiu transformar-se numa
das vigas mestras do poder galáctico.
A maior parte dos povos da Via Láctea já compreendeu que é
preferível ser amigo que inimigo dos terranos. Os robôs
positrônico-biológicos, chamados de pos-bis, que ainda há pouco
atacavam com uma raiva cega todas as formas de vida da Via
Láctea, mantêm atitude pacífica. Provavelmente isso teve sua
causa no fato de que, depois da eliminação da programação do
ódio, o centro de plasma, favorável aos terranos, conseguiu
assumir o poder no Mundo dos Duzentos Sóis.
Mesmo assim, os membros da Frota Solar se mantêm
vigilantes. Desconfiam de que a calma não vai durar e prosseguem
em seus vôos de exploração pelo intercosmo, a fim de estudar
minuciosamente a situação dos pos-bis.
No curso desses vôos de exploração, uma nave faz uma
descoberta apavorante: As Máquinas Enlouquecem...

======= Personagens Principais: = = = = = = =


Ellis Kedrick — Especialista em missões suicidas.
John Marshall, Ras Tschubai, Tama Yokida, Van Moders,
Dr. Bryant e Dr. Riesenhaft — Três mutantes e três
cientistas que naufragam.
Gucky — O rato-castor, que fica aborrecido por ter perdido
uma grande aventura.
Emiondi — Um conde que se interessa por máquinas a vapor.
Sakori — Construtor e apreciador das flores.
Perry Rhodan — O administrador que está sendo ansiosamente
esperado.
1

Quando o Major Semajin deu ordem de desembarcar, Kedrick viu o rosto de seu
superior no painel bem polido como se estivesse sendo refletido por um espelho. O
ligeiro abaulamento fez com que a testa de Semajin parecesse mais larga, o que lhe deu
um aspecto de camponês bonachão. Kedrick viu perfeitamente quando, ao dar a ordem, o
major moveu os lábios.
— Sir — disse Kedrick, esticando a palavra.
Seus olhos azuis estavam fitos em Semajin. Sob o efeito da iluminação indireta da
sala de comando, brilhavam que nem um par de botões de madrepérola.
Ao ver que Kedrick o fitava com uma expressão tão estranha, Alexander Semajin
ergueu-se instintivamente. Os dois homens fitaram-se por alguns segundos. Até parecia
que cada um queria avaliar os pensamentos do outro.
— Sir — repetiu Kedrick, empurrando-se com um movimento ágil para longe do
painel de controle. — Um inferno atômico irrompeu neste planeta.
Semajin sorriu, pondo à vista uma fileira de dentes artificiais de formato irregular,
do tipo preferido no sistema de Teman. Kedrick não sabia se Semajin era natural do
sistema de Teman, ou se aqueles dentes representavam apenas um capricho do
comandante.
No momento, isso não o interessava nem um pouco.
— Ellis, o senhor é o único homem a bordo que tem experiência na área da
Cibernética — disse Semajin, dirigindo-se a Kedrick. — É por isso que devemos
desembarcar.
Ellis Kedrick limitou-se a acenar com a cabeça e deu as costas a Semajin. A tela
para a qual dirigiu os olhos continuou escura. Mas Kedrick sabia que o olho humano é
muito fácil de ser enganado. Aqui, no espaço intercósmico, prevaleciam leis diferentes.
Era quase inconcebível que, a apenas algumas centenas de milhas, existisse um
planeta no qual, naquele exato momento, se desenrolavam acontecimentos
incompreensíveis.
Mas os instrumentos de controle e localização da Upsala eram infalíveis, e
provavam que o olho humano se torna totalmente ineficaz quando se trata de reconhecer
um objeto que não irradia qualquer luz própria, nem reflete a luz de outro corpo.
E os instrumentos da Upsala mostravam que o cruzador da classe Cidade se
aproximava do planeta escuro denominado Frago.
De repente um lampejo fulgurante atravessou a tela. Kedrick estremeceu.
— Foi uma bomba energética de potência média — disse Semajin, em tom seco. —
Acabo de pensar no que teria acontecido se me encontrasse no local — disse com a voz
apagada. — Sem dúvida a energia seria suficiente para dissolver-me, mesmo que usasse o
melhor traje protetor que temos a bordo.
— Até parece que os robôs querem destruir seu próprio planeta — observou
Pyhahn, o imediato da Upsala. Levantou-se e colocou-se ao lado de Semajin.
— Ellis terá um osso duro de roer — disse em tom cauteloso.
Kedrick levantou os braços, num gesto de repulsa.
— Nada de falsa compaixão, tenente — pediu em tom amável. — Afinal, estou aí
para resolver esse tipo de problema.
Uma expressão melancólica surgiu em seu rosto.
— Quando era jovem — prosseguiu em tom pensativo — costumávamos liquidar
esses problemas sem perder tempo. Praticamente não se passava um dia sem que um dos
nossos grupos especiais executasse uma tarefa mais difícil que esta.
A voz de Semajin reboou em meio à risadinha de Pyhahn.
— Pare com isso, Ellis. Todo mundo sabe o que o senhor já fez, mas o trabalho que
se tem de executar no momento sempre é o mais difícil.
— Sim senhor — concordou Kedrick.
Pyhahn observou o especialista de lado, como se quisesse avaliar quanto realmente
valia o mesmo. Assim que Ellis Kedrick subira a bordo, a tripulação começara a soltar
boatos sobre o mesmo. Dizia-se que era um dos membros do célebre grupo especial 58,
que só agia em casos especialíssimos. Mas isso era pouco provável, pois a “postura” de
Kedrick era tão modesta que até mesmo um simples cadete poderia arriscar-se a passar
por ele sem fazer continência. Kedrick não contribuíra nem um pouco para solucionar o
enigma de seu passado. E Semajin, o comandante, que devia estar a par disso, recusava-
se a dar informações mais precisas. Só se referia a Kedrick como sendo “o especialista
que subira a bordo da Upsala para executar uma tarefa específica”.
Semajin pigarreou fortemente e prosseguiu com a voz arranhenta.
— Temos todo motivo para supor que em Frago eclodiu uma guerra. E, por
espantoso que possa parecer, essa guerra vem sendo travada entre os próprios pos-bis —
outro lampejo na tela parecia sublinhar suas palavras. — Ainda não temos certeza
absoluta. Para podermos tirar fotografias infravermelhas teremos de nos aproximar do
planeta. Ellis, o senhor desembarcará para realizar observações diretas de uma posição
bem próxima.
Kedrick formulou uma pergunta precisa:
— Quais são as instruções, sir?
O tenente parecia dominado por uma decepção infinita. Uma pessoa que tivesse de
consultar um major sobre os fatos mais simples não poderia ser um elemento muito
especial. Pyhahn lançou um olhar cauteloso para Kedrick. Viu à sua frente um homem
robusto, de estatura mediana, nariz chato e queixo proeminente. A pele moreno-escura
formava um contraste com os olhos azuis. Por mais que se esforçasse para descobrir algo
de fora do comum no especialista, Pyhahn não conseguia nada. Kedrick nem sequer
parecia ser um homem muito resoluto ou inteligente. Era medíocre em tudo. E Pyhahn
não gostava de pessoas medíocres.
“Será”, pensou Pyhahn, confuso, “este o homem que sairá da nave para arriscar a
vida em Frago?...”
Enquanto Semajin dava outras ordens ao especialista, Pyhahn ouvia
impacientemente. Para o tenente isso era mais ou menos uma rotina.
O cruzador continuava a aproximar-se do planeta escuro dos pos-bis. A Upsala fora
equipada especialmente para vôos a grande distância. O comandante, Major Semajin,
recebera de Atlan a ordem de entrar em ação. Gonozal VIII exercia as funções de
comandante supremo da frota de defesa. Enquanto Perry Rhodan esclarecia os
acontecimentos do planeta Tafor, o almirante arcônida mandara reiniciar os vôos de
reconhecimento no espaço vazio, situado entre as galáxias.
Quando Pyhahn voltou a prestar atenção às palavras de Semajin, o comandante da
Upsala estava dizendo:
— Seria preferível que alguém o acompanhasse, Ellis.
Pela expressão do rosto de Kedrick, podia-se ser levado a supor que, na opinião do
tenente não havia mais ninguém a bordo que tivesse coragem de desembarcar em Frago.
Pyhahn começou a sentir raiva da evidente arrogância do especialista.
— É uma boa idéia, sir — disse, enquanto Kedrick dirigia os olhos azuis para ele.
— Acompanharei Kedrick, caso o senhor não tenha nenhuma objeção.
Percebia-se que Semajin não gostara da proposta, mas não manifestou sua opinião.
— O que acha, Ellis? — perguntou, dirigindo-se a Kedrick.
— Está bem — disse Kedrick, sem muito entusiasmo. — Eu o levarei.
Pelo seu tom de voz até se era levado a acreditar que Pyhahn representava uma
carga para o especialista. A Upsala já se encontrava tão próxima do planeta escuro que as
terríveis explosões apareciam nitidamente na tela. Da sala de comando do cruzador, os
observadores tinham a impressão de que os cogumelos chamejantes surgiam no nada
infinito, pois Frago não aparecia na tela.
Em certo lugar surgira um ponto luminosos, que se espalhava lentamente. Tratava-
se de um incêndio nuclear. Os pos-bis estavam destruindo um dos seus principais
planetas.
Nenhum dos homens que se encontravam a bordo da Upsala estava informado sobre
os acontecimentos que se desenrolavam no planeta Tafor. Por isso o fato de os robôs
guerrearem entre si devia deixar os terranos apavorados. Depois de Perry Rhodan e Atlan
terem colocado fora de ação a programação de ódio dirigida contra tudo quanto era
orgânico, a cólera dos pos-bis passou a voltar-se contra os seres mecânicos. Ao que tudo
indicava, o plasma e o cérebro robotizado estavam empenhados num violento conflito.
Cada um só podia dirigir parte dos robôs, e por isso os pos-bis se haviam dividido em
dois grupos, que travavam uma guerra implacável entre si. Os pos-bis que continuavam a
ser dominados pelo plasma estavam do lado dos terranos. Semajin apontou para a tela.
— Não sei se devemos ficar felizes com isso — disse em tom pensativo. — Os que
são nossos amigos estão vencendo, porém tenho um pressentimento nada agradável...
— Dê-se por feliz por não conhecer os meus pressentimentos — comentou Kedrick.
Semajin soltou uma risada triste.
— Prepare tudo para as fotografias infravermelhas, Kontner — disse, dirigindo-se a
um dos técnicos. — Daqui a pouco nos aproximaremos o suficiente de Frago.
Os minutos que se seguiram foram consumidos numa atividade febril, da qual
Kedrick não participou. O especialista mantinha-se imóvel à frente da tela e observava o
planeta dos robôs.
Os pensamentos de Kedrick giravam em torno da operação que teria de realizar. A
Upsala era um dos cruzadores ligeiros mais modernos da Frota Solar. Em um de seus
hangares estava guardado um jato espacial. Geralmente estes veículos precisavam de três
ou quatro tripulantes, mas o barco espacial que se encontrava no hangar da Upsala podia
ser pilotado por um único homem. Kedrick fora submetido a um treinamento intensivo na
pilotagem da pequenina nave espacial. O jato, no qual pousaria em Frago, era bem menor
que os outros veículos dessa espécie.
Mais uma vez a atenção de Kedrick foi absorvida pelos acontecimentos retratados
na tela. Pyhahn colocou-se a seu lado.
— O senhor acredita que encontraremos um lugar para pousar? — perguntou em
tom cético. — Pela impressão que se colhe daqui, lá embaixo não existe um único lugar
em que não esteja sendo travada uma luta.
— A imagem é enganadora — disse Kedrick com um gesto na direção da tela. —
Na verdade, o quadro que vemos, se estende por um setor de centenas de quilômetros.
Dentro desse setor haveremos de encontrar uma ilha que continua intacta.
— Uma ilha! — admirou-se Pyhahn. — O que quer dizer com isso?
— Um lugar em que ainda não estão lutando — explicou Kedrick.
— Já pode ir ao hangar com o tenente — gritou o Major Semajin, que se encontrava
no assento do piloto. — Boa sorte, Ellis! Quando tiver pousado, não se arrisque!
— Não me arriscarei; sou muito medroso — confessou Kedrick.
O Tenente Herold Pyhahn espreguiçou-se. Uma expressão dura surgiu em torno de
seus lábios. Talvez fosse conveniente que acompanhasse o especialista. Um homem do
tipo de Kedrick evidentemente precisava de alguém que lhe desse cobertura.
— Venha, tenente — disse Kedrick. — Vamos ao hangar.
Semajin voltou a fazer um gesto de despedida. Quando estavam saindo da sala de
comando, Kedrick disse como que ao acaso:
— Antes de desembarcar, colocaremos os trajes especiais.
E Pyhahn resmungou:
— Será que pensa poder me ensinar? Dali a três minutos, Pyhahn teve de
convencer-se de que ainda não estava bem informado sobre todos os tipos de trajes
usados na Frota. Quando chegaram ao hangar, Kedrick mostrou-lhe dois aparelhos
desajeitados, que deviam pesar pelo menos cinqüenta quilos cada. Um homem que se
colocasse no interior de um dos trajes teria um aspecto bem semelhante ao de um tanque.
— A construção deste tipo de traje resultou principalmente das minhas sugestões —
disse Kedrick com a arrogância que lhe era peculiar. — O senhor logo terá oportunidade
de constatar que fizeram excelente uso das minhas idéias. Se não fosse este equipamento
não poderíamos arriscar-nos a descer, nesse momento em Frago.
— Como conseguiu saber o que estava acontecendo em Frago? — perguntou
Pyhahn, em tom contrariado.
— O preparo que recebi faz com que esteja atento para tudo que possa acontecer —
disse Kedrick, em tom professoral.
— O senhor sempre costuma dizer o que pensa, não é mesmo? — perguntou
Pyhahn, aborrecido.
Kedrick acenou com a cabeça. Estava muito sério.
— Entre logo no jato, tenente — ordenou.
Pyhahn não ficou satisfeito ao notar que o especialista assumira o comando, mas
não formulou nenhuma objeção. Teve de fazer um grande esforço para entrar na pequena
eclusa. Ouviu que Kedrick o seguia. Os membros da guarnição do hangar entregaram-
lhes os trajes especiais quando já se encontravam na sala de controle do pequeno barco
espacial. Quase não havia mais lugar para os dois homens.
Kedrick ligou o rádio comum. Anunciou a Semajin que o jato estava pronto para
decolar. Pyhahn olhou para os controles. Era claro que Kedrick queria usar a pilotagem
manual durante o pouso do pequeno veículo.
O especialista fechou a eclusa e aguardou a confirmação do major. Pyhahn sentiu-se
arrancado abruptamente do ambiente de segurança que reinava a bordo da Upsala. Dentro
de mais alguns minutos estaria no espaço, juntamente com Kedrick, e não demoraria a
pôr os pés no terrível planeta. Kedrick manipulou os controles com a maior tranqüilidade.
Os técnicos retiraram-se do hangar. Dali a pouco a eclusa abriu-se.
— Pronto? — disse a voz de Semajin, saída do alto-falante.
Kedrick pôs à mostra os dentes.
— Sim, senhor! — gritou.
O jato espacial precipitou-se para fora da nave-mãe. Kedrick acelerou
imediatamente, a fim de afastar-se rapidamente da Upsala. Suas mãos moreno-escuras
seguravam firmemente o manche.
— Foi uma boa decolagem — disse Pyhahn em tom de elogio, porque o silêncio
começava a incomodá-lo.
Pensou que Kedrick voltasse a aludir ao seu preparo, mas o especialista manteve-se
em silêncio.
— Não quer ligar a tela? — perguntou Pyhahn.
— Por quê?
O tenente ficou vermelho. Sem dizer mais uma palavra, calcou o botão que
acionava o aparelho. O quadro era semelhante ao que haviam visto a bordo da Upsala. A
única diferença era que se encontravam mais próximos ao mundo escuro, motivo por que
as descargas energéticas tinham o aspecto de um fino modelo em filigrana que cobria
todo o planeta.
Enquanto o jato espacial corria velozmente em direção a Frago, Semajin mandaria
que as primeiras fotografias infravermelhas fossem tiradas de bordo do cruzador. Durante
essa operação, a Upsala contornaria todo o planeta, a fim de obter um quadro exato.
Pyhahn perguntou a si mesmo por que as fotografias tiradas pelas câmaras especiais
não eram suficientes. Para que arriscar vidas humanas? Kedrick também não parecia
sentir-se muito feliz com a tarefa que lhe fora confiada. Contudo, quando Semajin deu
ordem para desembarcar, não formulou nenhuma objeção.
Kedrick sempre oferecia novas faces a Pyhahn. O especialista nem parecia sentir
que voavam por um vazio inconcebível, no qual o planeta Frago e a nave Upsala eram os
únicos objetos sólidos num raio de algumas centenas de anos-luz.
— Então? — perguntou Kedrick. — Como estão as coisas, tenente?
Pyhahn lançou um olhar inseguro para a tela. Se não soubesse o que estava
acontecendo em Frago, talvez até chegasse a achar o quadro bonito. Kedrick esticou-se
em sua poltrona, para enxergar alguma coisa.
O especialista dirigia a minúscula nave espacial em espirais cada vez mais
apertadas, em direção à superfície de Frago. O quadro projetado na tela mudava
constantemente. Alguns insignificantes pontinhos luminosos transformaram-se em mares
de lava, que as terríveis armas dos pos-bis haviam queimado na superfície de Frago.
A idéia de que, dentro de alguns minutos, pousariam no planeta causou calafrios ao
Tenente Pyhahn. De repente sentiu saudades da voz de Semajin. Fazia votos de que esta
logo soasse no alto-falante, para dar ordem de regressar à nave.
Mas a Upsala manteve-se em silêncio.
De repente Kedrick virou a cabeça e sorriu.
— Daqui a pouco estaremos lá — anunciou.
A tela escurecera por completo, com exceção de uma débil luminosidade que
parecia vir não se sabia de onde. Pyhahn sentiu que os músculos de seu estômago se
contraíam. Não era provável que os pos-bis abrissem fogo contra eles?
O tenente esperava que os robôs estivessem tão ocupados que nem tivessem tempo
de incomodar-se com o pequeno veículo espacial. Kedrick manipulou os controles com
uma admirável segurança. Pyhahn teve de confessar que afinal o especialista era um bom
piloto.
Quando o jato espacial tocou a superfície do planeta, houve um ligeiro solavanco.
Kedrick levantou-se da poltrona. Seus movimentos eram rápidos e seguros.
— Coloque imediatamente o traje protetor, tenente — disse. — Sempre é possível
que abram fogo contra nós.
Pyhahn perguntou a si mesmo se nesse caso o traje serviria para alguma coisa.
Começou a colocar o monstrengo sobre o corpo, seguindo sempre as instruções de
Kedrick. Este contemplava-o com um sorriso irônico.
— Escute aí, Ellis — resmungou Pyhahn, indignado. — Isto não é nenhum desfile
de modas.
O rosto de Kedrick logo voltou a ficar sério. Também se pôs a vestir seu traje
especial, mas ficou pronto mais depressa que o tenente.
Olhando pela lâmina do visor, o tenente teve a impressão de que Kedrick se parecia
com um monstro antediluviano. O especialista inclinou-se pesadamente em direção à
eclusa.
— Manteremos contato pelo rádio de capacete — disse a voz de Kedrick, que
ressoou nos ouvidos de Pyhahn. — Assim que sairmos da eclusa, não se esqueça de ligar
o farol.
O tenente engoliu em seco. Suas mãos executavam movimentos convulsivos.
Dentro de alguns segundos Kedrick abriria a eclusa. Depois disso não haveria mais nada
que os separasse do mundo exterior.
— Fique bem perto de mim — recomendou Kedrick. — Não devemos afastar-nos
muito.
— Acho que os homens que o prepararam pensaram em tudo, não é mesmo? —
perguntou Pyhahn, em tom sarcástico.
— Só não pensaram nos oficiais da Frota Solar que acham que sabem tudo —
respondeu Kedrick com certa tristeza na voz.
Antes que o tenente tivesse tempo de dar uma resposta mordaz, Kedrick abriu a
eclusa. A luz de seu farol penetrou na escuridão. Abandonaram o jato espacial.
A luz dos faróis iluminou uma superfície metálica, que emitia um brilho fosco.
Viam-se reentrâncias irregulares a pequenos intervalos.
Kedrick, que caminhava à frente, estacou.
— Viemos parar na cobertura de um edifício — disse.
Pyhahn acompanhou a luz do farol, que Kedrick dirigia para a borda do telhado.
Este terminava numa estranha protuberância. As dimensões do edifício sobre o qual
estavam caminhando deviam ser gigantescas. Um relâmpago iluminou a noite. Houvera
uma explosão violenta a alguns quilômetros dali.
— Vamos tentar entrar no edifício — disse Kedrick com a voz abafada. — Aqui em
cima não teremos oportunidade para investigar coisa alguma.
Pyhahn voltou a iluminar o jato espacial, como se quisesse certificar-se de que este
continuava no mesmo lugar. A idéia de que deveriam afastar-se de seu veículo espacial
dava-lhe dores de cabeça. Será que o especialista se lembrava de que também aqui
poderia irromper o inferno?
Kedrick já saíra à procura de uma entrada. A luz de seu farol corria pelo telhado.
— Olhe, tenente! — gritou depois de algum tempo.
Pyhahn viu uma elevação abobadada mergulhada numa luz intensa que se erguia a
uns vinte metros do lugar em que se encontravam. Kedrick caminhou às apalpadelas em
direção à mesma.
Quando haviam percorrido metade do caminho, a elevação de repente deslizou para
o lado. Desapareceu de maneira apavorante no interior da cobertura. Pyhahn estacou.
— Ellis! — gritou com a voz rouca.
Um corpo trapezóide surgiu na abertura que se formara com o desaparecimento da
abóbada. Era uma das coisas mais feias que Pyhahn já havia visto. Quando o corpo saiu
totalmente da abertura, compreendeu que o corpo que se encontrava à sua frente era um
robô.
Pyhahn recuou instintivamente. Atrás do primeiro robô, outro surgiu na abertura. O
tenente imaginou que não seria o último.
— Cuidado — disse Kedrick.
O pos-bi que aparecera em primeiro lugar abriu fogo contra Kedrick. O campo de
absorção do traje protetor iluminou-se na incandescência produzida pelo disparo. Pyhahn
pegou sua arma térmica. Viu Kedrick cambalear para trás e sentiu-se dominado por uma
raiva fria.
O especialista deixou-se cair ao chão. Com um único olhar Pyhahn certificou-se de
que já havia quatro robôs na cobertura. Aproximaram-se lentamente. Se abrissem fogo
concentrado contra os dois homens, os trajes especiais dos mesmos se tornariam inúteis.
Pyhahn procurou esquivar-se aos tiros, mas os pos-bis trabalhavam com a precisão
que lhes era peculiar.
— Vamos voltar ao jato! — gritou Kedrick, que continuava deitado no chão.
Pyhahn soltou uma gargalhada desesperada. A abertura da abóbada ficava
exatamente entre eles e o pequeno veículo espacial. Como fariam para passar pelos
robôs?
Outros pos-bis continuavam a subir à cobertura. Pyhahn quase chegou a ter a
impressão de que ouvia o crepitar de seu campo defensivo sobrecarregado. Kedrick
rastejava que nem um gigantesco sapo. Deitado, continuava a atirar contra os pos-bis.
Não demoraria, e a resistência de seus campos defensivos seria vencida. Numa
atitude quase indiferente Pyhahn observava os robôs que penetravam constantemente no
feixe de luz dos faróis. Uma bomba térmica explodiu nas imediações. Por alguns
segundos o fulgor da detonação fez que a noite clareasse como se fosse dia. O instante de
claridade total bastou para que o tenente abrangesse toda a cobertura com a vista. E
enxergou uma coisa que lhe roubou as últimas esperanças!
Outra abóbada se abrira junto ao jato espacial, e dela saíam grupos de pos-bis, que
cercaram o pequeno veículo.
Antes mesmo que tivesse começado, sua missão em Frago chegara ao fim.
***
Semajin inclinou-se sobre a mesa. As fotografias que Kontner estendera à sua frente
tinham certa semelhança com radiografias. Mas os objetos na chapa pareciam obras de
um artista maluco.
— Aqui está a prova — disse Semajin, em voz baixa. — Acho que praticamente
nem há necessidade de que Kedrick nos confirme os fatos. As fotografias infravermelhas
mostram claramente que há pos-bis lutando contra pos-bis.
— Será que alguma potência estranha não poderia estar envolvida nisso, sir? —
perguntou Kontner. — Talvez Kedrick venha a constatar que os robôs foram instigados a
investirem uns contra os outros.
Semajin sacudiu a cabeça, num gesto decidido.
— Não — objetou. — A causa destes acontecimentos é outra. Não acredito que
possamos descobri-la. Os dois homens que se encontram em Frago devem ser avisados
imediatamente. Atlan, comandante supremo da frota de defesa, deve ser informado dos
acontecimentos.
O comandante dirigiu-se à pequena cabina de rádio ao lado da sala de comando.
Iffland, o radioperador, fitou-o com uma expressão indagadora.
— Envie imediatamente uma mensagem a Kedrick. Diga-lhe que deve sair de Frago
— ordenou Semajin.
Esperou que Iffland movesse os controles necessários. O radioperador batia
nervosamente com os dedos na borda estreita dos aparelhos.
— Será que vai demorar muito? — perguntou Semajin, em tom impaciente.
Iffland parecia perplexo. — É possível que Kedrick e Pyhahn não estejam a bordo,
sir — ponderou.
— No traje especial de Kedrick existe um aparelho de impulsos acoplado ao rádio
existente no interior do jato — lembrou Semajin. Quando quisermos falar com ele, o
especialista será avisado imediatamente.
Iffland fitou o superior com uma expressão séria.
— É possível que se tenha afastado do jato espacial mais do que se previa — disse.
Vários minutos se passaram, sem que chegasse qualquer resposta à mensagem
expedida pela Upsala. Semajin teve uma sensação desagradável.
— Kedrick já deveria ter voltado ao jato — disse em tom violento. Até parecia que
Iffland era responsável por sua ausência.
— Talvez os dois homens não estejam em condições de voltar ao barco espacial —
opinou Iffland, preocupado.
Semajin sabia que não poderiam esperar indefinidamente. Chegaria o momento em
que teriam de abandonar a órbita que a nave descrevia em torno do planeta escuro. Não
poderiam assumir o risco de pousar com a Upsala em Frago, a fim de procurar Kedrick e
seu companheiro.
— Continue a tentar — ordenou o major e retirou-se.
Kontner ainda estava ocupado com as fotografias. Separara as menos interessantes.
Quatro fotos se encontravam sobre a mesa de mapas.
— Não poderíamos desejar documentos mais impressionantes — disse, dirigindo-se
a Semajin. — Especialmente esta aqui, sir — apontou com o dedo para uma das
fotografias — deixa perfeitamente claro que os robôs se dividiram em dois grupos.
Parecia que o comandante não o ouvira. A inteligência de Semajin era superior à
média, mas pensava em termos um tanto complicados. Sua consciência ainda estava
ocupada com a indagação sobre se deveriam ajudar Kedrick ou se convinha avisar Atlan
antes disso, muito embora o subconsciente já tivesse tomado sua decisão. Semajin nem
aceitava a idéia de abandonar dois de seus tripulantes, mas ele o faria. Havia um dever
coletivo que superava a responsabilidade pelos dois homens que se encontravam em
Frago. Atlan devia ser informado o quanto antes a respeito dos acontecimentos que se
desenrolavam no planeta escuro.
Semajin sabia que essa decisão não comportava qualquer meio-termo.
— Esperaremos mais trinta minutos — disse, dirigindo-se a Kontner. — Se até
então o jato espacial não tiver entrado em contato conosco, abandonaremos este setor do
Universo em vôo linear e regressaremos à Via Láctea.
Kontner teve bastante inteligência para não formular nenhuma pergunta. Sem dizer
uma palavra, empilhou as fotografias e colocou-as numa gaveta.
O tempo parecia arrastar-se com uma lentidão infinita, mas os trinta minutos
passariam logo.
Semajin manteve-se em silêncio à frente da tela. A única coisa que se ouvia na sala
de comando era o zumbido de vários instrumentos. A Upsala continuava na sua órbita em
torno de Frago.
Enquanto Kontner permanecia mergulhado em reflexões, Semajin virou-se
lentamente e lançou um olhar para o relógio de bordo iluminado.
Dentro de menos de treze minutos a Upsala abandonaria sua órbita e, acelerando
sempre, seguiria com destino à Via Láctea.
***
Quando levantou a cabeça a fim de passar os olhos pela cobertura do edifício,
Kedrick espantou-se de ainda estar vivo. Os robôs enxameavam em torno deles. Mas
pareciam ter perdido de um instante para outro qualquer interesse pelos dois terranos.
Os pos-bis que haviam subido à cobertura, junto ao jato espacial, atacaram os robôs
que apareceram em primeiro lugar. E agora rugia uma batalha violenta pela posse da
cobertura. Segundo acreditava Kedrick, tal batalha era também pela posse do barco
espacial.
Os faróis de Kedrick estavam intactos. Virou a cabeça e viu Pyhahn deitado no
chão, a poucos metros do lugar em que se encontrava. O tenente se encolhera para não se
oferecer como alvo fácil, mas face às dimensões do traje especial o esforço era vão.
Kedrick sentiu que seu espírito empreendedor estava voltando a tomar as rédeas.
— Levante-se, tenente — cochichou pelo microfone do capacete.
Pyhahn moveu-se pesadamente. De início Kedrick pensou que seu companheiro
estivesse ferido, mas Pyhahn se pôs de pé. Mantinha-se de pé, cambaleando levemente,
como se não compreendesse o que acontecia em torno dele.
Pela primeira vez Kedrick teve a percepção consciente do sinal emitido pelo
aparelho de rádio.
— Temos de voltar ao jato espacial — disse. — A Upsala está chamando.
Pyhahn girou lentamente em torno do próprio eixo, como se receasse perder o
equilíbrio.
— E... os robôs? — conseguiu perguntar depois de algum tempo.
— Parece que recebemos reforços inesperados — disse Kedrick. — Vamos
aproveitar a chance.
Verificou-se que a batalha que os pos-bis estavam travando na cobertura do edifício
também era perigosa para os dois terranos. Constantemente os campos de absorção
tinham de suportar cargas enormes, apenas porque Kedrick e Pyhahn eram atingidos por
tiros que erravam o alvo. Os robôs se combatiam com uma implacabilidade apavorante.
Kedrick notou que não aproveitavam os abrigos que se lhes ofereciam. Os pos-bis
investiam uns contra os outros como se apenas estivessem sendo guiados por um ódio
cego. Em certas partes, a batalha se transformara numa confusão inextricável, mas as
máquinas pareciam saber, a cada momento, quem era amigo e inimigo.
— Vamos para o extremo da cobertura — ordenou Kedrick. — Lá não são tantos.
A massa de pos-bis era tão compacta que raramente conseguiam disparar suas
armas. Prosseguiam na luta, utilizando os braços em espiral, as tenazes e os tentáculos
metálicos.
— Nunca conseguiremos passar por lá — disse Pyhahn.
Kedrick não pôde deixar de reconhecer que o tenente estava com a razão. Os pos-
bis barravam o caminho que conduzia ao jato espacial. Para chegar ao aparelho teriam de
passar por cima deles. Se tentassem isso, seriam mortos no início.
— A Upsala continua a chamar — observou Kedrick. — Suporão que alguma coisa
nos aconteceu, já que não respondemos.
Até mesmo na beira da cobertura o número de pos-bis aumentara. Kedrick viu
algumas das máquinas perderem o apoio e se despencarem.
— Seu número aumenta cada vez mais — gritou Pyhahn, desesperado. — Daqui a
pouco ocuparão toda a cobertura.
Já se via perfeitamente que haveria de chegar o momento em que a cobertura
desmoronaria, soterrando o pequeno veículo espacial sob os destroços.
— Ellis — voltou a falar Pyhahn. — Precisamos fazer alguma coisa.
Por um instante Kedrick pensou em penetrar no edifício pela entrada abobadada, a
fim de sair em outro lugar, mais próximo do jato. Mas o plano se tornou impraticável,
pois os pos-bis continuavam a sair das aberturas.
— Acho que estamos em apuros, tenente — disse Kedrick em tom de desânimo.
— É claro que estamos — chiou Pyhahn. — Agora sua formação especializada não
serve de nada.
Se Pyhahn tivesse oportunidade de ver o rosto de seu companheiro, teria constatado,
para seu espanto, que Kedrick sorria. Mas o oficial só ouviu um zumbido confuso no
alto-falante de capacete.
Kedrick foi se deslocando lentamente em direção à parte de trás da cobertura.
Quando parou junto à beirada, Pyhahn seguiu-o a contragosto.
— Estamos nos afastando cada vez mais do jato — disse o tenente. — O que
pretende fazer aqui?
Kedrick caminhou cautelosamente até a beira da cobertura. Iluminou com cuidado a
área com o farol e foi até junto do “abismo”.
— A que distância ficará a superfície propriamente dita de Frago? — perguntou.
— Não sou o arquiteto que construiu este estranho edifício — disse Pyhahn, em tom
sarcástico. — Mas como a luz de seu farol não ilumina quase nada, sinto-me inclinado a
dizer que estamos a uma altitude perigosa para podermos saltar.
Kedrick virou a cabeça, e logo Pyhahn ouviu a sua voz, que parecia alterada, soar
no alto-falante:
— Se não saltarmos seremos obrigados, tenente.
Mesmo antes de virar-se, Pyhahn compreendeu que a situação havia piorado.
Quando voltou a olhar para a cobertura, prendeu a respiração.
O quadro que viu à sua frente teria abalado os nervos até mesmo de um homem sem
nervos.
Os robôs não estavam lutando mais. Mas parte deles ainda se encontrava na
cobertura.
Moviam-se em fileira cerrada em direção aos dois homens. Os olhos de Pyhahn
procuraram desesperadamente uma brecha na corrente da desgraça. A inteligência lhe
dizia que essa brecha não existia, mas apesar disso agarrou-se a essa esperança com toda
a irracionalidade inerente ao sentimento humano.
Se recuassem um passo, Kedrick e Pyhahn bateriam de encontro à superfície dura
de Frago. Se não dessem esse passo, seu destino também seria a morte.
Era bem verdade que esse destino só se cumpriria dentro de trinta segundos...
***
Os dedos de Semajin, que agarravam fortemente a parte superior da poltrona em
que estava sentado Iffland, estavam brancos. O comandante inclinou-se sobre o
radioperador.
— Verificou todas as fontes possíveis de defeitos? — perguntou.
— Verifiquei duas vezes, sir — respondeu Iffland.
Uma leve recriminação soara em sua voz. Pretendia deixar bem claro que o rádio
estava em boas condições. O fato de não se conseguir estabelecer contato com os dois
homens que se encontravam em Frago resultava da impossibilidade de Kedrick e Pyhahn
voltarem ao jato.
— Examine outra vez o aparelho — ordenou Semajin.
Iffland obedeceu com a boa vontade que um subordinado costuma demonstrar ao
receber uma ordem que lhe parece absurda. De qualquer maneira executou fielmente a
tarefa. Seus dedos treinados passaram por todos os controles.
Finalmente reclinou-se na poltrona.
— Tudo em ordem, sir — disse.
Sem dizer uma palavra, Semajin deu-lhe as costas e voltou à sala de comando.
Ainda faltavam seis minutos até o fim do prazo que Semajin concedera aos dois
homens. Mas, enquanto esse pensamento surgia na mente do major, outras ações iam se
passando...
***
Ellis Kedrick levantou a arma e disse em tom frio:
— Vamos tentar abrir uma brecha a tiro.
— São muitos — disse Pyhahn, com um gemido. — Atrás da primeira fileira há
outros robôs, que poderão fechar prontamente qualquer brecha.
Apesar disso seguiu o exemplo de Kedrick. Mas os pos-bis pararam antes que
tivesse sido disparado o primeiro tiro. Abriram alas num movimento rápido, Kedrick
bateu no braço do tenente e fez o mesmo baixar a arma.
— Espere! — gritou. — Não atire.
A luz do farol de Pyhahn iluminava os corpos metálicos. Os dois homens viram o
jato espacial no fim da fileira dupla de robôs.
— O que é isso, Ellis? — perguntou Pyhahn.
— Parece que o resultado da luta foi favorável ao nosso partido — observou
Kedrick em tom seco.
— Pode ser uma armadilha — advertiu Pyhahn.
— Isso aí uma armadilha? — ironizou Kedrick, enquanto começava a caminhar. —
Pense um pouco, tenente. Isso não teria nenhuma lógica. Afinal, os robôs nos tinham nas
mãos.
O oficial experimentou uma sensação de insegurança, enquanto seguia Kedrick.
Passaram pelos pos-bis sem que estes os molestassem ou detivessem. Pyhahn teve de
esforçar-se para reprimir o desejo de sair correndo, a fim de chegar logo ao jato espacial.
Mas Kedrick não fez menção de andar mais depressa. Foram deixando para trás as
máquinas que se mantinham imóveis. Só então o tenente notou que seu corpo estava
coberto de suor.
Sem demonstrar a menor pressa, Kedrick entrou na eclusa do barco espacial.
Pyhahn seguiu-o, olhando para trás, assustado.
Só quando Kedrick já havia fechado a eclusa, Pyhahn respirou aliviado. Abriu o
capacete com as mãos nervosas. Kedrick já estava mexendo no rádio.
— Jato especial chamando Upsala! — disse a voz do especialista, que ressoava pela
pequena cabina de comando.
O recebimento do chamado foi confirmado imediatamente. Pyhahn teve muito
trabalho para livrar-se do resto de seu traje especial. Quando concluiu a tarefa, Kedrick já
estava preparando a decolagem.
— Acho que já dispomos de provas suficientes. Os pos-bis atacam-se uns aos
outros. Ao que parece estão divididos em dois grupos. Um desses grupos nos é favorável,
ou ao menos se mantém indiferente diante de nós. O outro grupo gostaria de destruir-nos.
Pyhahn soltou um suspiro e deixou-se cair na poltrona.
— Fico satisfeito em notar que o senhor acha que a operação foi um sucesso —
disse Kedrick, em tom amável.
Pyhahn fitou os olhos de seu interlocutor para ver se descobria um traço de ironia
nos mesmos. Porém Kedrick olhava-o com uma expressão ingênua. O imediato da
Upsala pigarreou.
— Acho que seu preparo realmente representa uma grande vantagem — disse.
Kedrick cruzou os braços sobre o peito. Seu rosto assumiu a expressão presunçosa
que costumava deixar Pyhahn furioso.
— É verdade — disse o especialista em tom modesto. — Meu preparo é o melhor
que alguém pode obter no Universo conhecido.
2

Perry Rhodan dobrou cuidadosamente as duas folhas. O relatório que acabara de lhe
ser apresentado fizera com que a situação parecesse ainda mais confusa. Rhodan
encontrava-se a bordo da Teodorico, que continuava, juntamente com um poderoso grupo
de naves, no sistema do sol verde, em torno do qual gravitava o planeta Tafor, que era
seu segundo mundo.
Há vários dias Rhodan procurava descobrir se podia assumir o risco de subir a
bordo de uma nave fragmentária que também entrara numa órbita em torno do planeta
Tafor. O convite do plasma fora inequívoco. Ele queria que os terranos comparecessem
ao Mundo dos Duzentos Sóis. A hesitação de Rhodan tinha sua origem no sentimento
seguro do perigo que os ameaçava. Pretendia aguardar a evolução dos acontecimentos,
antes de tomar uma decisão.
A nave fragmentária atacara o planeta Tafor, depois que o plasma descobrira que os
acônidas o estavam enganando. Na oportunidade as bases dos saltadores foram
destruídas.
Rhodan, que sentia repugnância por qualquer ato de destruição desnecessária, levou
muito tempo para superar o choque provocado pelo ataque furioso que a nave cúbica
desfechara contra o mundo desértico. Perguntou a si mesmo se, face à atitude implacável
do plasma, seria razoável subir a bordo da nave fragmentária. Depois da destruição da
programação do ódio, introduzida na aparelhagem hiperimpotrônica do Mundo dos
Duzentos Sóis, a situação tornara-se cada vez mais confusa.
Na opinião de Rhodan, o relatório que este acabara de ler era alarmante. Quem
enviara as novidades apavorantes fora Atlan, comandante supremo da frota de defesa.
Segundo as informações dos arcônidas, uma luta violenta rugia entre os pos-bis.
Constantemente chegavam mensagens através do satélite de observação Maso VI, e
o teor de todas essas mensagens era mais ou menos idêntico. As bases dos pos-bis, uma
após a outra, explodiam no espaço intercósmico. Outras estavam tão avariadas que
praticamente se reduziam a destroços. Além disso se havia constatado que as naves
fragmentárias travavam terríveis batalhas entre si. Até parecia que os robôs estavam
empenhados num processo de extermínio mútuo.
Atlan chamou a atenção para a notícia vinda do comandante da Upsala. Segundo tal
informe, Semajin apresentara várias fotos infravermelhas do planeta Frago, habitado
pelos pos-bis. Dessas fotos se depreendia com absoluta certeza que os robôs se haviam
dividido em dois partidos, que se combatiam com todos os meios ao seu alcance. Dois
tripulantes da Upsala haviam pousado em Frago com um jato espacial. Pelo que diziam,
um dos grupos de robôs parecia abster-se de quaisquer hostilidades contra os terranos.
Rhodan empurrou o relatório por cima da mesa e levantou os olhos. Van Moders,
que o observara em silêncio, tamborilou com os dedos em cima das folhas.
— É o início do caos — disse. — Mais dia menos dia, todos os pos-bis serão
tomados por essa fúria destruidora. Ao que tudo indica, esta reação foi provocada pela
eliminação da programação do ódio.
— Percebo um tom de recriminação em sua voz — disse Rhodan com a maior
tranqüilidade. — Mas esta vem fora de hora, meu caro. Ninguém, nem mesmo o senhor,
poderia prever as conseqüências da ação desenvolvida no Mundo dos Duzentos Sóis.
— Quanto a isso não há dúvida — reconheceu Van Moders. — Ao que parece, a
divergência entre os pos-bis, que observamos desde o início, passou a manifestar-se
francamente. Parte dos robôs é governada pelo cérebro de plasma e outra parte pelo
grande centro de computação. Os dois centros de comando exercem uma influência igual
sobre o exército de milhões de robôs. Os acontecimentos que se vêm desenrolando
constituem o início de um conflito de proporções gigantescas.
Rhodan levantou-se. Não tinha o direito de censurar Atlan por ter agido com
independência. Pelo contrário, devia dar-se por satisfeito por ter sido informado em
tempo sobre a nova situação. A essa hora, já era mais fácil compreender a insistência do
plasma. Evidentemente no Mundo dos Duzentos Sóis estavam acontecendo coisas que
ninguém havia previsto.
A nave fragmentária aparecia na tela de controle do sistema de observação espacial
sob a forma de mancha luminosa. Mantinha-se em posição de espera, num convite
permanente de subir a bordo, dirigido aos terranos.
Se o comandante da gigantesca nave fosse um humano, ele já se teria impacientado.
Mas o plasma continuava imóvel no sistema a que pertencia o planeta Tafor. A nave
fragmentária permanecia nas proximidades, que nem um cão que se recusa a sair de perto
do dono. Não se tornava inoportuna, mas se mantinha tão perto do grupo de naves
terranas, que sua presença não poderia ser esquecida.
John Marshall, chefe dos mutantes, colocou-se ao lado de Rhodan e olhou na
mesma direção que este. Marshall era um homem tranqüilo, conhecido por suas decisões
objetivas. Quem se encontrasse em sua presença sempre tinha a impressão de que era um
homem solitário; às vezes seu gênio calmo levava a crer que era um homem triste.
— Quantas vezes já olhou para essa nave? — piou Gucky, que se encontrava em
ponto mais afastado.
O rato-castor escolhera o lugar mais confortável que conseguira arranjar na sala de
comando: a poltrona de piloto destinada a Claudrin. No momento, esse homem nascido
em Epsal se encontrava em sua pequena cabina.
A pergunta de Gucky fora dirigida a Marshall, mas os que a haviam ouvido sabiam
perfeitamente que seu destinatário era Rhodan. O rato-castor sofria mais que qualquer
outra pessoa que se encontrava a bordo com a inatividade a que a tripulação da Teodorico
se vira condenada nos últimos dias. Não perdia nenhuma oportunidade para dar uma
demonstração do tédio que sentia.
— Você tem razão, pequeno — disse Rhodan. — Já esperamos bastante.
Gucky ergueu-se numa expressão de expectativa. Suas perninhas curtas esforçaram-
se em vão para encontrar um apoio no chão, muito embora o próprio Claudrin não fosse
um homem muito alto.
— Até que enfim! A coisa vai começar! — exclamou Gucky, com sua voz aguda.
— Já começava a criar raízes.
— O senhor realmente pretende arriscar o vôo ao Mundo dos Duzentos Sóis, chefe?
— perguntou Marshall. — Acho que nas condições atuais isso poderia ser perigoso.
Rhodan abanou a cabeça.
— Não irei pessoalmente, John — disse.
— Minha presença a bordo da nave fragmentária poderia ser usada facilmente para
fins de chantagem.
— É verdade! — exclamou Van Moders. — Formaremos um comando especial,
composto de homens competentes. Desde já me apresento como voluntário...
Enrubesceu, pois percebeu tarde demais que acabara de incluir-se sem ser
convidado.
— Quero dizer que seria conveniente que um ou dois especialistas participassem do
grupo — acrescentou apressadamente.
Com uma rapidez de que dificilmente alguém o teria julgado capaz, Gucky saltou
de cima da poltrona de Claudrin e caminhou em direção a Rhodan, arrastando os pés e
balançando o corpo. Provavelmente só não usara seus dons paranormais para vencer o
pequeno trajeto porque Rhodan já o advertira muitas vezes de que não devia fazê-lo.
— É claro que do comando também deve participar um mutante altamente
capacitado — anunciou.
Não deixou que pairasse a menor dúvida de que estava aludindo a si mesmo. Ao
contrário de Van Moders, Gucky não enrubesceu, mas afinal a modéstia nunca fora seu
forte.
— Um momento! — disse Rhodan. — Assim não é possível.
Voltou ao seu lugar, pegou o relatório de Atlan e disse:
— Neste meio tempo aconteceram coisas que podem trazer conseqüências
imprevisíveis. Se os pos-bis não pararem logo de se destruírem uns aos outros, nossa
tentativa de transformá-los em aliados, se tornará, dentro em breve, inútil. Afinal, o que
poderemos fazer com algumas centenas de robôs?
— O chefe tem razão — confirmou Marshall. — A esta altura não nos podemos
permitir qualquer erro. É verdade que precisamos descobrir o que está acontecendo no
Mundo dos Duzentos Sóis. E, antes de mais nada, precisamos saber se podemos ajudar o
plasma — um sorriso esboçou-se em seu rosto. — Ofereço-me como voluntário para uma
ação especial a ser desenvolvida a bordo da nave fragmentária.
— Mas é claro! Ele pode oferecer-se, enquanto nós temos de esperar! — exclamou
Gucky, em tom indignado.
— Nós? — perguntou Rhodan, enquanto fitava o rato-castor de relance. — Nós não
participaremos da operação.
— O quê? — indagou Gucky, espantado. — Quer dizer que você não me aceita
como voluntário?
— Será que não me exprimi com suficiente clareza?
O sorriso de Rhodan não se dirigia somente a Gucky, mas também às outras pessoas
que se encontravam na sala de comando.
O rato-castor bateu com o pé no chão, como se quisesse fazer estremecer a nave.
— Tenho vontade de velejar embaixo do teto — disse em tom queixoso. — Isso é
um desfa...
— Chega! — interrompeu Rhodan, indignado.
Gucky retirou-se. Fervia de raiva. Resolveu que durante pelo menos três minutos
bancaria o ofendido e não daria um pio.
Rhodan dirigiu-se ao painel de controle. Pegou o microfone que o colocava em
contato com toda a nave. Sua voz poderia ser ouvida em todos os compartimentos. In-
formou os tripulantes sobre a situação. Não ocultou o perigo que representava a ação a
ser desenvolvida no Mundo dos Duzentos Sóis. Apesar disso demorou apenas alguns
minutos até que praticamente todos os tripulantes se tivessem apresentado como
voluntários.
— Gostaria que você assumisse o comando, John — disse Rhodan, dirigindo-se a
Marshall, depois de ter examinado a lista de voluntários.
— De acordo, sir — disse Marshall. — Quantos homens me acompanharão na
longa viagem?
Rhodan sabia que a pergunta do telepata tinha toda razão de ser. Não poderia
destacar um exército de especialistas para essa missão. Deveria formar um grupo
pequeno, mas bastante combativo, que estivesse preparado para todas as eventualidades.
Não havia dúvida de que Marshall era o homem indicado para chefiar um comando desse
tipo. O telepata já dera prova disso em várias missões anteriores. A maior dificuldade
resultava do fato de não saberem o que os esperava no Mundo dos Duzentos Sóis. O
plasma não tomara conhecimento das perguntas a este respeito. Se Rhodan quisesse
aceitar os repetidos convites da nave fragmentária, teria de fazê-lo sem estar de posse de
certos dados muito importantes. O relatório de Atlan tirava um pouco do mistério da
situação, mas também não oferecia uma base segura para os preparativos.
Isso convenceu Perry Rhodan de que os homens a serem enviados à nave
fragmentária deveriam ser capazes de adaptar-se rapidamente a situações imprevistas.
Além disso deveriam dispor de grande experiência e de visão ampla.
— Acho que bastarão cinco homens para acompanhá-lo — disse Rhodan, dirigindo-
se a Marshall.
— De acordo. Tem alguma sugestão? Rhodan sorriu para Ras Tschubai, o
teleportador de pele escura.
— Ras irá com o senhor — anunciou. — Tama Yokida será outro mutante que
participará da ação.
Yokida era telecineta. Já dera prova de sua capacidade numa missão anterior
executada no planeta escuro dos pos-bis.
— Entre os cientistas, sugiro Van Moders, o doutor Bryant e o doutor Riesenhaft.
Marshall não teve nenhuma objeção. Sabia que seus companheiros não poderiam
ser melhores. Tinha certeza de que os homens se completariam mutuamente, já que os
mutantes dispunham de conhecimentos científicos básicos, enquanto os cientistas
também eram conhecedores dos assuntos militares. Principalmente Van Moders e o Dr.
Bryant já haviam lutado várias vezes pela vida.
As horas que se seguiram foram consumidas com preparativos intensos a bordo da
Teodorico. Gucky saiu do canto ao qual se recolhera para distribuir bons conselhos, que
na maior parte não passavam de manifestações de ironia misturada com inveja.
Rhodan estabeleceu pessoalmente contato com a nave fragmentária. Explicou ao
plasma que alguns terranos estavam dispostos a atender ao convite transmitido através do
veículo espacial. A resposta foi imediata. Ao que parecia, o plasma não queria perder
mais tempo. Todas as condições formuladas por Rhodan foram aceitas sem discussão.
— O senhor já está sendo esperado, John — disse Perry, depois de ter interrompido
a ligação com a nave fragmentária. — O senhor sabe do que se trata. Seria inútil tentar
diminuir a importância da tarefa. Aconteça o que acontecer, a Frota Solar não terá a
menor possibilidade de ajudar seu grupo. Não conhecemos a posição cósmica do Mundo
dos Duzentos Sóis. Só temos certeza de que fica nas profundezas do nada, isto é, entre as
galáxias. É supérfluo ressaltar que não podemos arriscar-nos a transpor esta distância
com nossas naves. A partir do momento em que entrarem na nave fragmentária, o senhor
e seus companheiros estarão à mercê do plasma.
Os dois homens apertaram-se as mãos.
— Tenho certeza de revê-lo em breve — disse Rhodan. — Quando isso acontecer,
sem dúvida nossos conhecimentos sobre o problema dos pos-bis terão aumentado
consideravelmente. Boa sorte, John.
Os seis membros do comando dirigiram-se ao hangar, onde um barco espacial já
estava à sua espera. Quando o último deles tinha saído da sala de comando, a voz
retumbante de Claudrin cortou o silêncio:
— Sinto uma antipatia profunda contra todas as naves que não sejam comandadas
por mim.
— Especialmente quando essas naves sejam tripuladas por robôs — acrescentou
Gucky, que não deixava passar nenhuma oportunidade de manifestar sua desconfiança
contra os pos-bis.
Como o rato-castor não podia participar da expedição, esta, em sua opinião, desde
já estava condenada ao fracasso, embora nem tivesse começado.
— Devemos ser um pouco mais otimistas — disse Rhodan.
Menos de uma hora depois disso, teve de reconhecer que a desconfiança de
Claudrin era plenamente justificada. A guerra que os pos-bis travavam entre si tinha suas
leis próprias e terríveis. Atingia tudo que por qualquer motivo se encontrasse nas
proximidades dos robôs. A nave fragmentária que o plasma enviara para servir de
embaixador também participou da guerra.
E quem trava a guerra pode atacar... Ou ser atacado!
3

O barco espacial saiu para o espaço livre e aparentemente caiu por baixo da
Teodorico. Este efeito ótico foi produzido pelas rotas divergentes dos veículos desiguais.
A trajetória do veículo menor fora calculada pelo computador positrônico da nave
capitânia e introduzida na memória do piloto automático. Uma vez que a trajetória que a
nave fragmentária descrevia em torno do planeta Tafor era totalmente diferente daquela
da Teodorico, a rota do barco espacial foi apurada com base nos dados relativos às duas
naves. Por mais simples que parecesse a fita de plástico que Ras Tschubai introduziu na
fenda da programação preliminar, o processo de cálculo destinado a determinar a rota de
aproximação a outro objeto voador era extremamente complicado.
Assim que o barco espacial foi catapultado para fora da nave, as eclusas do hangar
foram fechadas por um impulso automático. Logo depois Ras Tschubai estabeleceu
contato de rádio com a nave capitânia.
O africano sorriu, satisfeito, quando a voz retumbante de Jefe Claudrin soou na
pequena sala de comando do barco espacial. A pele negra de Tschubai formava um
contraste marcante com o verde-suave do uniforme simples.
— Vocês estão em nosso sistema de rastreamento — disse Claudrin. — A nave
fragmentária continua na mesma rota. Parece que tudo está em ordem.
— Obrigado, comodoro — respondeu o teleportador. — Se acontecer alguma coisa
que nos obrigue a suspender a operação, avise imediatamente.
Os minutos que se seguiram correram sem o menor incidente. Parecia que
chegariam à nave cúbica sem que ninguém os incomodasse. Van Moders e o Dr.
Riesenhaft estavam empenhados em violentas discussões, durante as quais cada um
manifestava dúvidas quanto à competência do outro em questões de Cibernética.
Especialmente Riesenhaft não regateava as observações mordazes sobre o trabalho até
então desenvolvido pelo jovem colega.
— Na Robotologia o mais importante sempre é a experiência — disse. — É bem
verdade que o acaso ou a sorte o colocaram à frente dos demais cibernéticos. Mas nós,
que somos homens de experiência, nunca perdemos de vista as pesquisas básicas. Por
isso estou em condições de encarar toda a problemática dos pos-bis de um ponto de vista
totalmente diverso.
— Quanto a isso não existe a menor dúvida — respondeu Van Moders, em tom
furioso. — Infelizmente conheço muito bem os pontos de vista dos colegas. Nenhum
deles consegue libertar-se das visões conservadoras. Basta ver o caso da programação do
ódio introduzida na hiperimpotrônica. É mais que evidente que o engaste é extremamente
complicado e teve de ser instalado com o maior cuidado, pois, do contrário, não
funcionaria. Uma certa dependência de ambos...
Riesenhaft agitava furiosamente os braços.
— Já sei aonde quer chegar — gritou com a voz estridente, enquanto a prótese que
substituía um dos braços batia furiosamente nos controles. — Se o senhor se tivesse
dedicado mais intensamente aos “Princípios Básicos da Cibernética”, a esta hora já
saberia que todo cérebro positrônico é indivisível, e que não pode funcionar no estado de
cisão esquizofrênica, que o senhor sempre nos quis apresentar como a coisa mais natural
deste mundo.
Dali em diante a discussão penetrou em regiões nas quais os outros membros do
comando não podiam acompanhá-la. Enquanto o Dr. Riesenhaft tirava fórmulas e
conhecimentos básicos dos recantos da memória, Van Moders apresentava uma série de
teorias novas. Por várias vezes Marshall teve a impressão de que os dois interlocutores já
não se entendiam, muito embora o nervosismo crescente de Riesenhaft indicasse que Van
Moders estava mexendo nos alicerces da Cibernética tradicional.
Só em sua última fase, a discussão voltou a ser compreensível para todos. Esta fase
foi iniciada com uma exclamação do Dr. Riesenhaft:
— Isso é uma blasfêmia.
— Pouco me importa que o senhor ache que é uma blasfêmia — gritou Van
Moders. — Continuo a afirmar que todo processo biológico pode ser superado por outro
processo igual, executado por meios positrônicos, isso porque na parte positrônica de
uma instalação não existe a possibilidade de erros, que é inerente a qualquer processo
biológico.
O Dr. Riesenhaft coçou o cavanhaque.
— Quer dizer que em sua opinião uma instalação puramente positrônica não
apresenta nenhuma fonte de erros?
— É claro que numa instalação positrônica também ocorrem erros — respondeu
Van Moders. — Acontece que estes não provêm do arbítrio e por isso mesmo podem ser
previstos com base na totalidade dos dados introduzidos na programação.
— Para realizar um controle desse tipo, você precisaria de outro computador
positrônico, que por sua vez teria de ser controlado, Van Moders — Riesenhaft estava um
pouco mais calmo. — Ainda não percebeu para onde levaria isso? Pois, para vigiar o
controle haveria necessidade de outro controle, e assim por diante, uma vez que nunca
podemos saber se o controle utilizado não encerra nenhum erro.
— O raciocínio é correto, mas parte de um pressuposto errado — disse Van
Moders, em tom calmo. — Para controlar o primeiro computador, o senhor teria de usar
outros três ao mesmo tempo. Se todos chegarem ao mesmo resultado, a possibilidade de
um erro estará excluída. O senhor sabe que é extremamente improvável que quatro
instalações diferentes repitam o mesmo erro.
Riesenhaft respirou profundamente, mas a voz tranqüila de Marshall impediu-o de
formular uma explicação prolixa.
— O prosseguimento do debate poderá ficar para depois — disse o telepata. —
Estamos próximos à nave fragmentária. Em conformidade com as instruções,
colocaremos os trajes de combate. Quando estivermos a bordo da nave dos pos-bis,
manteremos de início uma atitude de expectativa.
— Provavelmente pousaremos numa superfície angulosa — disse Tschubai. — Não
podemos prever o que acontecerá depois disso. É possível que fiquemos ancorados na
superfície externa. Se for assim, teremos que desembarcar e procurar uma entrada na
nave fragmentária. É claro que não podemos excluir a possibilidade de a nave
fragmentária dispor de um hangar para nosso barco, se bem que até hoje nunca vimos um
veículo espacial de pequenas dimensões pertencente aos pos-bis.
— Entre as numerosas saliências na superfície externa das naves cúbicas deve haver
uma eclusa de grandes dimensões — observou o Dr. Bryant.
O rádio emitiu um estalido. Desta vez era Rhodan em pessoa.
— O senhor já está bem perto, John — disse. — Mande Ras fazer a pilotagem
manual.
Marshall fez um sinal para o teleportador. O mutante desligou o piloto automático.
Dali em diante, só o processo de adaptação da velocidade continuou automatizado.
— Muito bem, Ras — disse Rhodan, depois de algum tempo. — Daqui pra frente
não poderá haver mais problemas.
Tschubai olhou para a tela do barco espacial. Embaixo deles, a nave fragmentária
deslocava-se pelo espaço em queda livre. Na situação em que se encontravam, o
vocábulo “embaixo” perdia todo sentido, mas o olho humano costumava distinguir à
maneira convencional os objetos que entravam em seu campo de visão.
Tschubai olhou para os controles e viu que sua velocidade continuava a diminuir.
Manipulou o dispositivo de direção e efetuou uma correção de rota. Antes que pudessem
pousar, teve de fazer mais três compensações. Finalmente os dois veículos espaciais
deslocavam-se à mesma velocidade. O barco voava uns trinta metros acima de uma
superfície que media quase quatro quilômetros quadrados. Tschubai sabia que
praticamente não precisava fazer mais nada. Os pos-bis se encarregariam de fazer a
ancoragem do barco terrano.
Não demorou, e a distância que os separava da nave fragmentária diminuiu.
Tschubai pegou o microfone e falou com a voz tranqüila.
— Estão nos levando para baixo, sir — disse. Lançou um ligeiro olhar para a tela e
viu que os robôs haviam iluminado o campo de pouso. — Tudo bem, sir — anunciou.
O barco pousou macio.
— A recepção continua a ser excelente — anunciou Rhodan, satisfeito. — Parece
que seus campos relativistas estão desligados.
Marshall inclinou-se sobre o microfone.
— Quer que desembarquemos logo, sir?
— Esperem mais um pouco — ordenou Rhodan.
Sua voz saiu dos alto-falantes com tamanha nitidez que até parecia que se
encontrava a bordo.
— Consegue ver alguma coisa fora de seu barco, Marshall?
— O campo de pouso está iluminado — informou Tschubai. — Não vejo nenhum
pos-bi. Talvez esperem que saiamos do barco.
Enquanto Tschubai estava falando, um poço abriu-se nas imediações do campo de
pouso. Depois disso o barco movimentou-se. Tschubai disse de si para si que a impressão
devia ser enganosa, pois não era possível que o barco escorregasse pelo campo sobre as
colunas de apoio. Dali se concluía que haviam pousado numa espécie de fita rolante.
Informou Rhodan a este respeito.
— Está bem, Ras — disse o administrador. — Não se oponha. Acho que os pos-bis
querem levar o barco para o interior da nave fragmentária.
O pequeno veículo espacial parou junto à entrada do poço. No interior da abertura
apareceu uma chapa que o fechava quase completamente. Dois pontilhões saíram da
chapa, e suas dimensões logo se adaptaram às medidas das colunas de apoio. Os
pontilhões estavam equipados com fitas rolantes, que levaram a nave para a chapa.
— Neste momento estamos abandonando a superfície externa da nave, sir —
informou Marshall.
Tschubai reduziu a potência dos propulsores. A chapa foi descendo lentamente. De
repente a imagem projetada na tela foi reduzida à metade, isso quando só uma parte da
nave saía da abertura. Finalmente a tela escureceu de vez. Tschubai desligou o sistema de
transmissão de imagem externa, que se tornara inútil.
A voz de Rhodan voltou a soar. Desta vez parecia alarmada.
— Volte, Ras! — ordenou. — Volte imediatamente.
Tschubai levou apenas alguns segundos para esboçar sua reação. Devia ter havido
um imprevisto e... um imprevisto que encerrava algum perigo!
A mão do mutante voou por cima dos controles, mas seus movimentos cessaram.
Como poderia decolar de dentro do poço? A chapa continuava a descer. Provavelmente a
abertura do poço já fora fechada. Estavam à mercê dos pos-bis, para o que desse e viesse.
Acontecesse o que acontecesse, só lhes restava fazer votos de que tudo continuasse a
correr bem.
Quando Marshall se dirigiu ao microfone, seus lábios estavam reduzidos a um traço
fino. O telepata, que era muito inteligente, compreendera imediatamente que no momento
o caminho de volta estava fechado para eles.
Não tiveram outra alternativa senão informar Rhodan sobre isso.
***
As quatro naves fragmentárias saíram do hiperespaço de um instante para outro. As
instalações de alerta da Teodorico uivaram. Os sistemas de localização e controle
informaram prontamente o que havia acontecido. Mais uma vez se notou que os pos-bis
já não se deslocavam sob a proteção de seus campos relativistas, pois, do contrário,
dificilmente teriam sido localizados desde logo. Rhodan imaginou que essas naves
representavam um perigo. A forma de aproximação parecia exprimir certa hostilidade.
Correram velozmente em direção ao planeta Tafor.
Os seis homens a bordo da nave fragmentária tinham de retornar.
— Volte, Ras! — disse Rhodan, em tom insistente. — Volte imediatamente.
Rhodan não perdeu tempo com explicações. A única coisa que importava era que
Tschubai, que pilotava o barco espacial, agisse com a necessária rapidez, se ainda
houvesse oportunidade para isso...
Enquanto Rhodan esperava a resposta, Jefe Claudrin entrou em contato com o grupo
de naves comandado pela Teodorico. Mandou que os comandantes das diversas unidades
se preparassem para a batalha. A pequena concentração de naves terranas espalhou-se, a
fim de formar uma base mais ampla, que proporcionasse melhores possibilidades de
defender Tafor.
John Marshall respondeu.
— Já estamos dentro da nave, sir — disse. — Ras não pode arriscar a decolagem.
No momento não podemos voltar.
Se Marshall dizia uma coisa dessas, Rhodan podia ter certeza de que, naquele
momento, os seis homens não tinham a menor possibilidade de fugir. Rhodan refletiu um
instante. Os quatro intrusos levariam apenas alguns minutos para aproximar-se o
suficiente para lançar o ataque. Rhodan não teve a menor dúvida de que esse ataque seria
dirigido contra a nave fragmentária a bordo da qual estava o grupo de Marshall.
Claudrin parecia recear a mesma coisa. Os gigantescos propulsores da Teodorico
foram regulados para a potência máxima. A nave saiu em disparada de sua trajetória em
torno de Tafor.
Se a bordo da Teodorico ainda havia alguém que tinha dúvidas sobre as intenções
das quatro naves, essas dúvidas tornaram-se certezas. Os quatros gigantes espaciais
abriram fogo contra o veículo espacial, que se mantinha há uma semana no interior do
sistema ao qual pertencia o planeta Tafor.
Por enquanto Rhodan apenas pôde assistir ao desenrolar dos acontecimentos, pois
não tinha a menor possibilidade de intervir. A nave fragmentária que acabara de ser
atacada acelerou. Os controles mostravam que a aceleração era tremenda.
Rhodan chegou até a prender a respiração. Teria o corpo humano capacidade de
resistir a essa carga adicional?
No mesmo instante a nave abriu um fogo intenso com todos os canhões de raios
conversores. Um dos atacantes explodiu, transformando-se numa tocha feita de energias
em expansão. As naves terranas continuavam em sua marcha veloz, até que ficaram numa
posição em que podiam abrir fogo com suas armas pesadas.
— A nave de Marshall foi atingida, sir — informou Claudrin, rangendo os dentes.
— A nave do centro de plasma sofreu um impacto, mas parece que ainda não foi
colocada fora de ação.
— Avise todos os centros de tiro de que têm permissão de abrir fogo.
Os disparos das armas pesadas obrigaram as naves dos pos-bis a bater em retirada.
O grupo de naves terranas conseguiu avariar duas naves inimigas a tal ponto que ficaram
impossibilitadas de prosseguir viagem. A terceira escapou para o hiperespaço. Sem os
campos relativistas, os pos-bis podiam perfeitamente ser derrotados.
— Suspender o fogo! — ordenou Rhodan aos comandantes das diversas unidades.
Mandou que todas as naves ficassem em regime de rigorosa prontidão, pois era
possível que outras naves cúbicas vindas do hiperespaço penetrassem no sistema solar em
que se encontravam.
O ataque fora rechaçado. Mas a nave em cujo interior se encontravam os homens
pertencentes ao grupo de Marshall que, segundo tudo indicava, parecia ter sido
gravemente atingida, tinha desaparecido!
— É altamente provável que tenha fugido para o hiperespaço — disse Claudrin. —
Talvez consiga chegar ao Mundo dos Duzentos Sóis, apesar das avarias sofridas.
— É um trecho impossível de ser percorrido por uma nave danificada — disse
Rhodan. — Bem que gostaria de descobrir a posição atual da nave. Talvez precise de
ajuda. Estou preocupado com os seis homens que se encontram a bordo. Talvez tenhamos
cometido um erro ao formar o comando.
Claudrin sabia que não podia tirar o peso da responsabilidade de cima de Rhodan.
Apesar disso falou:
— Ninguém poderia ter previsto que isso iria acontecer. Se não fosse o ataque das
quatro naves fragmentárias, tudo teria dado certo.
Era verdade, e não havia palavras que pudessem trazer de volta os seis homens. Mas
Rhodan não aceitava a idéia de que Marshall e seus homens talvez estivessem perdidos.
E, o que era pior, a Frota Solar não poderia dar início a uma operação de socorro.
4

O movimento descendente da chapa cessou. Tschubai levantou-se da poltrona do


piloto. O silêncio que de repente passou a reinar no interior do pequeno veículo espacial
só foi interrompido quando Rhodan os informou sobre o aparecimento das quatro naves
fragmentárias.
— A única coisa que podemos fazer é aguardar os acontecimentos — disse
Marshall. — Por enquanto nem sabemos quais são as intenções das naves recém-
chegadas.
Mas, dali a três minutos, ficaram sabendo.
Rhodan informou-os de que as quatro naves estavam penetrando no sistema em
posição de ataque.
— Talvez seja recomendável abando...
A súbita aceleração não permitiu que Marshall completasse a frase. Sua boca
contorceu-se, como se estivesse sofrendo dores violentas. Um peso insuportável
comprimiu-o contra o chão. Lembrou-se de que poderia acionar o dispositivo de
compensação de pressão de seu traje de combate, e ainda de que se ficasse deitado o risco
seria menor. Dobrou os joelhos, mas não sentiu nenhum alívio. Provavelmente a nave dos
pos-bis estava acelerando tremendamente. A cabeça de Marshall zumbia e o sangue
começou a sair-lhe pelo nariz e pelos ouvidos. Não conseguiu mover o braço para ativar
o dispositivo de compensação de pressão de seu traje de combate, dispositivo este que
sem dúvida representaria um alívio.
Fez um esforço tremendo e conseguiu colocar a cabeça numa posição em que podia
olhar pelo chão da pequena sala de comando. Bem ao seu lado estava deitado um homem.
Era provável que a essa hora todos estivessem imobilizados ou desmaiados.
Marshall sentiu um mal-estar mais intenso. Lutou contra a fraqueza cada vez maior que
se espalhava pelo seu corpo. Um quadro confuso formou-se diante de seus olhos.
Por um instante estendeu seus sentidos paranormais em direção aos outros homens,
mas a dor que inundava todo seu ser fê-lo recuar bem depressa.
Uma sombra caiu sobre seu rosto. No primeiro instante pensou que fosse o sangue
que estava cobrindo totalmente a lâmina do visor, mas logo reconheceu o vulto de um
homem que se inclinava sobre ele. Enquanto ainda se admirava de que uma coisa dessas
fosse possível, sentiu que a pressão diminuía. Dali a pouco ouviu a voz de Tama Yokida:
— Liguei seu neutralizador de pressão, sir.
Marshall fez um gesto de agradecimento. Ao que parecia, o telecineta conseguira
mover os controles de seu traje de combate por meios paranormais. O telepata levantou-
se com as pernas trêmulas. Yokida já se ocupava com os outros homens.
Marshall deu alguns passos cambaleantes. Já não estava sangrando, mas sua cabeça
continuava a chiar e estalar. O Dr. Riesenhaft continuou inconsciente, mesmo depois de
Yokida ter ligado o neutralizador de pressão. Marshall deslocou-se pesadamente em
direção ao rádio. Rhodan devia ser avisado.
Soltou um suspiro e deixou-se cair na poltrona simples. Suas mãos passaram pelos
controles. Calcou a chave mestra. Naquele momento a nave sofreu um solavanco que
atirou Marshall para fora da poltrona. Suas mãos, que faziam esforços desesperados para
encontrar um apoio, apenas atingiram o vazio. Caiu para trás. Alguém soltou um grito.
Marshall bateu em alguma coisa e seu corpo rolou de lado.
“A nave foi atingida em cheio”, pensou numa reação automática.
Teve de fazer um grande esforço para rastejar até o rádio. Estava trêmulo de tensão.
A qualquer instante, um segundo impacto poderia provocar a explosão da nave. Segurou-
se com ambas as mãos na borda do painel de controle e puxou-se para cima. Fez outra
tentativa para estabelecer contato de rádio.
— Vou ajudar — disse a voz de Tschubai.
O africano colocou-se a seu lado. Mas, antes que tivessem tempo para fazer
qualquer coisa, a nave desmaterializou-se no hiperespaço. A dor provocada foi tão
violenta que Marshall imediatamente perdeu os sentidos. A última coisa que pensou foi
que, dali em diante, estavam isolados das naves terranas.
***
Marshall despertou num oceano de ruídos incompreensíveis. Seu corpo contorcido
estava deitado em cima de outro homem. Levou alguns segundos para recuperar a
memória. Levantou os olhos e viu que continuavam no interior do barco espacial. Já
haviam saído do hiperespaço e retornado ao Universo normal.
Ergueu-se, apoiado no corpo do homem que estava deitado embaixo dele.
Respirando pesadamente, conseguiu pôr-se de pé. O homem sobre o qual caíra fez um
movimento ligeiro. Reconheceu o rosto escuro de Tschubai. O africano esforçou-se para
sorrir.
Aos poucos, Marshall foi recuperando a capacidade de raciocinar. Ordenou os
acontecimentos, a fim de obter o quadro da situação. A nave fragmentária acabara de
realizar um salto pelo hiperespaço. Haviam saído num lugar qualquer do Universo
normal. Marshall não acreditava que a nave fosse capaz de vencer a distância enorme que
os separava do Mundo dos Duzentos Sóis num único salto. Portanto, havia novas
transições pela frente. Só lhes restava esperar que estas não fossem acompanhadas dos
mesmos efeitos colaterais desagradáveis da primeira.
A nave constituía um fator totalmente desconhecido. Sem dúvida sofrera um pesado
impacto. Tornava-se necessário descobrir se as avarias eram muito graves.
Tschubai levantou-se com um gemido.
— Foi muita coisa de uma só vez -disse. — Tomara que todos tenham resistido à
tortura.
O pequeno barco espacial resistira a tudo sem sofrer o menor dano. Isso
representava uma esperança muito débil, pois não haveria qualquer oportunidade de usar
o veículo espacial. Marshall não sabia se deviam ficar no interior do barco, ou se seria
preferível abandoná-lo para entrar em contato com o plasma. Afinal, o pequeno veículo
oferecia alguma segurança, pois, fora de suas paredes de aço, estariam num ambiente
estranho. O telepata contava com a ocorrência de outras transições, e queria evitar que
perdessem os sentidos, enquanto estivessem explorando o interior da nave fragmentária.
Van Moders foi o próximo a pôr-se de pé. Tropeçou no Dr. Bryant, que estava à sua
frente. Praguejando, agarrou-se a Tschubai.
— O que aconteceu? — perguntou.
Fazendo um grande esforço para concentrar-se, Marshall relatou os acontecimentos
em poucas palavras.
— Naturalmente — confirmou o robólogo — atribuam minha pergunta ao estado
formidável em que se encontra minha cabeça — pôs as mãos no capacete. — Dêem-me
alguns minutos, para que possa voltar a raciocinar claramente.
— Vamos cuidar dos outros — ordenou Marshall.
Constataram que o Dr. Riesenhaft já havia recuperado os sentidos. Lançou olhares
furiosos para os homens inclinados sobre ele. Seu cavanhaque estava entranhado de
sangue.
— Isto foi uma prova excelente de que uma instalação biopositrônica pode ser
muito eficiente — disse, falando com dificuldade.
Van Moders não respondeu. Ajudou Marshall e Tschubai a levantar Riesenhaft.
— Parece que o comando de que estou participando não vem sendo favorecido pela
sorte — disse em tom contrariado.
Tama Yokida, o telecineta, levantou-se do chão. Falando no tom calmo que lhe era
peculiar, disse:
— Agora só falta a nave explodir. Nesse meio tempo Tschubai já cuidara do Dr.
Bryant. Quando notou o olhar sério do africano, Marshall compreendeu que havia algo de
errado com o cientista.
— Parece ter sofrido ferimentos graves — disse Tschubai. — Seu rosto está muito
pálido.
Com poucos passos, Marshall colocou-se ao lado de Tschubai. Inclinou-se sobre o
Dr. Bryant. O rosto do homem inconsciente parecia desfigurado. O Dr. Bryant era um
homem de altura superior à média e tinha um peso respeitável. Em termos gerais não era
considerado uma pessoa muito sensível. No seu íntimo Marshall praguejou contra o azar
que os perseguia desde o momento em que haviam saído da Teodorico. Se a esta altura
ainda tinham de cuidar de um homem gravemente ferido, isso representaria uma carga
adicional.
Marshall segurou os ombros do Dr. Bryant e sacudiu-o cuidadosamente. As
pálpebras do ferido tremeram e seu rosto contorceu-se de dor. O Dr. Bryant abriu os
olhos, que estavam injetados de sangue. Seu aspecto deixou o telepata apavorado.
— É nas costas — cochichou Bryant, com a voz quase imperceptível. — Bati com
as costas contra alguma coisa.
Marshall deitou o ferido cautelosamente no chão. Era evidente que qualquer
movimento representava um martírio para o Dr. Bryant. Marshall não era pessimista, mas
tinham de contar com a possibilidade de o cientista ter sido ferido na espinha. Se fosse
assim, precisaria de repouso total.
A voz cochichada de Bryant sobressaltou-o em meio às reflexões sombrias.
— A nave já pousou? — perguntou. Marshall preferiu não fitar os olhos do Dr.
Bryant, enquanto respondia à indagação.
— Não. Apenas passamos por uma transição.
O rosto do ferido retratou o medo de outros saltos pelo hiperespaço. Marshall sabia
que não poderia fazer nada para combater esse medo, pois o Dr. Bryant era um homem
experimentado, que calcularia perfeitamente quantos saltos seriam necessários para
vencer a distância enorme que os separava do destino.
— Sinto-me bem fraco — disse o Dr. Bryant. — Se voltar a perder os sentidos, não
se preocupe com meu estado por ocasião do pouso.
Marshall deu uma palmadinha em seu ombro.
— Evite todo esforço, doutor. Encontraremos um caminho e venceremos todas as
dificuldades.
Eram apenas palavras que Marshall proferira sem muita convicção. O mutante
acreditava que o Dr. Bryant soubesse disso. Na verdade, no momento havia pouca
esperança de que pudessem levar a operação a bom termo. Antes de chegarem ao Mundo
dos Duzentos Sóis já havia um ferido entre eles. E o estado dos outros membros do
comando era afetado pelas canseiras físicas das últimas horas.
— Se na próxima hora não houver outra transição, sairemos do barco espacial para
examinar o interior da nave — anunciou Marshall. — Se, em virtude dos impactos
sofridos, a nave fragmentária não estiver em condições de realizar outros saltos, talvez
possamos conseguir alguma coisa por iniciativa própria...
Interrompeu-se e levantou a cabeça como quem presta atenção a um ruído. De
repente um leve zumbido, vindo de algum lugar situado além das paredes de aço de
Árcon, encheu a pequena sala de comando.
— O que é isso? — perguntou Tschubai em voz baixa, mas até mesmo sua voz
abafada conseguiu superar o ruído.
Marshall fez-lhe um sinal. Em meio ao silêncio todos ouviam perfeitamente o
zumbido. Era um ruído estranho. Parecia que alguém estava tirando um tom de um
instrumento.
— Vem da nave — falou Van Moders, com a voz insegura.
Riesenhaft disse o que todos estavam pensando.
— Isso não soa muito bem — disse com a voz nervosa. — Até se poderia ser levado
a acreditar que alguma coisa está sendo submetida a uma sobrecarga.
— O que será? — perguntou Yokida.
— O senhor quer sair para verificar? — retrucou Riesenhaft.
Marshall engoliu em seco. Estaria enganado? Ou será que o zumbido realmente se
tornava cada vez mais forte? Teve a impressão de que estava sentado sobre uma bomba e
ouvia o tiquetaquear do relógio detonador, sem saber quando ocorreria a explosão.
— Está ficando mais forte! — exclamou Tschubai.
— Tolice — objetou Van Moders. — Isso é apenas uma impressão.
Não era apenas uma impressão. A intensidade do ruído aumentava constantemente.
Marshall estava preocupado com o Dr. Bryant. Se o ruído indicava os preparativos de
outra transição, as chances para o ferido não seriam nada boas. Mas Marshall não
acreditava que fosse um hipersalto. A nave fragmentária sofrerá um impacto grave. Havia
algo de errado com o gigantesco barco!
O zumbido transformou-se num assobio agudo, que parecia produzir uma vibração.
— Temos de fazer alguma coisa! — exclamou Van Moders. — Não vamos ficar
parados, à espera de que a nave se arrebente.
— Não — respondeu Marshall. — Se é que ainda existe um lugar seguro, este lugar
fica no interior deste barco espacial.
Embora já tivessem esperado a desgraça há algum tempo, o impacto da nave
fragmentária pegou-os de surpresa. De um instante para outro, Marshall assistiu a uma
terrível modificação do ambiente em que se encontrava. Perdeu o apoio dos pés e foi
atirado contra Tschubai. O equipamento de controle quebrou-se, produzindo um ruído
desagradável.
— A nave explodiu! — gritou alguém.
Marshall procurou livrar-se da confusão de homens e aparelhos. O assobio cessara.
Em sua consciência surgiu a idéia do que realmente acontecera.
A nave fragmentária não explodira nem se quebrara em pleno espaço. Batera em
alta velocidade na superfície de outro objeto. Ao que parecia, os propulsores danificados
da nave dos pos-bis não permitiram uma boa frenagem.
Marshall acreditava que haviam feito um pouso de emergência em algum planeta.
Conseguiu sair da confusão. No interior da sala de comando, reinava a escuridão. O
mutante teve uma sensação de abandono total.
Onde teriam pousado? Que mundo era este em que descera a nave? Seria o Mundo
dos Duzentos Sóis? Não poderia ser, pois, para chegar lá, teriam de passar por mais de
uma transição.
Enquanto Rhodan esperava que desvendassem o mistério da guerra que os pos-bis
travavam no Mundo dos Duzentos Sóis, os homens do comando haviam naufragado num
lugar qualquer, situado nas profundezas da Via Láctea. Com isso seu trabalho de pesquisa
chegara ao fim. Caso conseguissem salvar a vida, teriam que dar-se por satisfeitos.
Marshall começou a tatear cautelosamente pela escuridão.
5

Os quatro sempolis descansaram a liteira e o Conde Emiondi afastou a cortina com


um movimento relaxado de duas garras. Naturalmente Emiondi não era nenhum conde no
sentido que nós atribuímos à palavra. Mas, em comparação com as condições terranas, o
título de conde era o que melhor correspondia à sua dignidade.
Emiondi viu a casa de Sakori, que ficava do lado oposto da rua. Pigarreou, deixou
cair a cortina e gritou uma ordem para os sempolis. A liteira foi erguida e carregada na
direção da casa de Sakori.
Emiondi suportava os balanços com a dignidade de um nobre. Vez por outra
passava a pequena raspadeira pela nuca peluda. Finalmente a liteira voltou a ser colocada
no chão. Ouviu a voz retumbante de Sakori, que mandou que os sempolis se escondessem
num canto do quintal.
Antes que Emiondi tivesse tempo de levantar a cortina, essa se abaulou e a cabeça
de Sakori apareceu no interior da liteira. Ao ser tocado pelo cheiro desagradável do hálito
do construtor, o conde recuou instintivamente.
— Olá, conde — grunhiu Sakori. — Hoje o senhor resolveu levantar cedo.
Emiondi levantou-se, contrariado. Os modos insolentes de Sakori irritaram-no.
— Afaste-se para o lado — ordenou, dirigindo-se ao construtor. — Quero descer e
dar uma olhada.
Sakori recuou com uma cortesia irônica, dando lugar para que Emiondi descesse. O
conde saiu com movimentos pesados. Sua manta ficou presa a um dos lados da liteira,
mas Sakori soltou-a.
Emiondi ajeitou a manta e lançou um olhar severo para o construtor.
— Vamos logo — disse em tom decidido.
Sakori grunhiu em tom indiferente. Emiondi ficou apavorado ao notar que mais uma
vez seu interlocutor não se lavara.
Ainda havia “sinais” do leito noturno em seu pêlo; nas costas viam-se algumas
folhas. Provavelmente Sakori acabara de se levantar.
Emiondi e Sakori caminhavam eretos. Moviam-se sobre um par de pernas curtas,
mas muito robustas. As mãos e os pés terminavam em garras. O corpo de Sakori estava
coberto de uma espessa camada de pêlos, mas o conde já sofria de queda de cabelo em
vários lugares, motivo por que tinha de usar manta. O tamanho dos dois seres era pouco
superior a um metro e cinqüenta. As cabeças alongadas tinham uma remota semelhança
com as de um homem, embora fossem menos desenvolvidas.
— O que conseguiu fazer ontem? — perguntou o conde, enquanto caminhavam em
direção ao pavilhão que Sakori construíra ao lado de sua residência.
Sakori soltou um grunhido que nada significava. Emiondi amaldiçoou a hora em
que se envolvera com essa criatura indigna. Como nenhum dos seus tivesse capacidade
de construir uma máquina a vapor, viu-se obrigado a pedir auxílio a Sakori. Era muito
importante que dispusesse de sua própria máquina a vapor, e que fosse uma das que
funcionavam durante algumas décadas sem explodir. Sakori era considerado um dos
construtores mais competentes, mas também um dos mais caprichosos...
— Um momento, conde — resmungou Sakori, quando chegaram à entrada do
pavilhão. — Vou abrir o portão.
Emiondi lançou um olhar contrariado para o chão lamacento. Antes tivesse
mandado que os sempolis o tivessem carregado até aqui. Sakori tirou a tranca. Firmou
ambos os pés, a fim de poder forçar o portão com o corpo. Emiondi perguntou a si
mesmo quem estaria gemendo mais forte, Sakori ou o portão.
Sakori resfolegou e deu um empurrão, mas o portão não cedeu um centímetro.
— O que houve? — perguntou o conde, contrariado. — Será que o portão está
empenado?
Sakori pisou na lama, que se levantou em esguichos. Emiondi contemplou-o com as
sobrancelhas erguidas. Sakori remexeu num montão de coisas velhas. Depois de algum
tempo tirou uma barra de metal e ergueu-a com uma expressão de triunfo. Enfiou-a
embaixo do portão e procurou levantá-lo. Emiondi afastou-se, cauteloso. O portão
começou a balançar. Parecia que ia quebrar, mas não cedeu.
Os músculos de Sakori mostravam-se tensos, enquanto empurrava o portão com
toda força. De repente, o chão pouco seguro cedeu e Sakori caiu na lama. O conde deu-
lhe as costas, enojado. Então era essa a recompensa por ter-se envolvido com um tipo
como este. Sakori levantou-se, fungando e praguejando.
— Dê-me a mão — gritou para Emiondi.
O conde lançou um olhar indignado para suas garras.
— Trabalhar? — perguntou.
Sakori estava furioso. Atirou a barra para longe.
— Ou o senhor me ajuda, ou então poderá mandar construir essa máquina por outra
pessoa.
Depois disso, o Conde Emiondi provou que era um nobre de linhagem antiga.
— Não admito chantagens — disse com uma dignidade incomparável.
No mesmo instante, tirou a manta e foi até o portão.
Ao ver o conde cuspir nas mãos e forçar o portão com o corpo, Sakori arregalou os
olhos. Antes que Sakori pudesse fazer qualquer coisa, o portão deslizou com um forte
rangido.
O conde voltou com a maior calma a fim de pegar sua manta. Sakori fitou-o com
uma expressão de desconfiança.
— Provavelmente já estava solto — disse em tom pensativo.
— Provavelmente — disse Emiondi, com um sorriso. — Vamos para dentro?
Sakori acendeu alguns pavios e o pavilhão foi-se iluminando.
— Vejo que já terminou o suporte — disse o conde, satisfeito. — Fez um bom
trabalho ontem.
Sakori saltitava com as pernas curtas atrás do conde. Falou com um orgulho bem
perceptível.
— Acho que hoje podemos aquecer a caldeira pela primeira vez, conde.
Emiondi parou.
— Isso não seria perigoso? Contemplou a máquina a vapor. Não pôde deixar de
confessar que o “indigno” fizera um ótimo trabalho.
— Que perigoso que nada — rosnou Sakori. — O senhor sabe perfeitamente que até
hoje nenhuma das minhas máquinas explodiu. Já construí a galeria destinada a captar a
fumaça, para que o senhor não se sinta mal.
Emiondi examinou a máquina com um interesse cada vez maior. O recipiente de
água tinha um vazamento, mas apesar disso o conde não conseguiu descobrir nenhum
defeito visível. Os grandes volantes pareciam bem firmes. Sakori havia instalado o
cilindro acima da caldeira. O líquido transformado em vapor fluiria para esse cilindro,
onde se expandiria e faria trabalhar o embolo. Não havia dúvida de que o cilindro e o
êmbolo eram as obras-primas de Sakori. Via de regra, estas peças eram o ponto fraco das
máquinas a vapor. Quase sempre, o cilindro não resistia à pressão, ou então o embolo não
se movia conforme devia para fazer funcionar os volantes.
— Abaixo da câmara de água está a fornalha, conde — disse Sakori. — Atrás dela
fica a recipiente de vapor propriamente dito, que daí flui para o cilindro.
O Conde Emiondi virou-se e apontou para uma pilha de árvores de eprit.
— Vejo que já providenciou o combustível — disse.
— Naturalmente. Como sabe, os pés de eprit armazenam gás combustível em seu
interior. O gás não explode, mas flui de maneira uniforme. Quando um pé de eprit fica
vazio, é substituído por outro.
Emiondi acenou com a cabeça. Parecia satisfeito.
— Pode começar, Sakori. Quero ver como isso funciona.
Sakori levantou o primeiro tronco.
— Tenho outro plano, conde — disse enquanto estava trabalhando. — Há algum
tempo penso em instalar dois ou três cilindros em vez de um. Tenho certeza de que isso
aumentará a eficiência da máquina. Nettori e Sansing, que colaboram comigo no projeto,
são de opinião que poderá perfeitamente dar certo.
Pegou um espinho no chão e enfiou-o na parte dianteira do tronco.
— Com isso minha máquina se tornaria logo obsoleta — disse o conde. — Espero
ser a primeira pessoa à qual o senhor vai fornecer uma máquina desse tipo... Sakori
pareceu penalizado.
— A produção e o desenvolvimento do projeto de uma máquina desse tipo são
muito caros. Não sei se um conde estaria em condições...
— Que insolência! — interrompeu Emiondi, em tom furioso. — Cuide das
máquinas e deixe o resto por minha conta.
O chiado do gás que escapava do tronco abafou a resposta murmurada por Sakori.
Este tirou um pavio que estava enfiado na parede e acendeu o tronco de eprit. Uma
chama forte saiu da abertura, produzindo um chiado. Com um movimento hábil Sakori
enfiou o tronco na fornalha.
— Há lugar para doze troncos ao mesmo tempo — informou.
Emiondi entendeu a indireta... Também se pôs a abrir troncos e enfiá-los na
fornalha. Logo começou a transpirar. Sakori nem parecia incomodar-se com o trabalho.
— Está ficando quente — queixou-se Emiondi.
— Não é de admirar — resmungou Sakori, enquanto enfiava o último tronco na
caldeira. — A condensação do líquido está começando.
— Quanto tempo demorará até que o êmbolo comece a trabalhar?
— Temos de esperar — respondeu Sakori. — A quantidade de gás contida nos
diversos troncos não é igual. Mais tarde teremos de introduzir outros troncos na fornalha.
O conde passou a mão pelo rosto. Respirava pesadamente.
— Vamos esperar lá fora — sugeriu. Quando saíram, viram que os sempolis se
haviam aproximado às escondidas do pavilhão. Pareciam curiosos. O conde espantou-os
com um gesto.
— O senhor acha certo essas criaturas trabalharem para o senhor? — perguntou
Sakori, em tom de repugnância.
— Nasceram para isso — respondeu Emiondi. — A única coisa de que são capazes
é de realizar trabalhos primitivos. Podem dar-se por satisfeitos por estarem comigo, pois
outros proprietários costumam açoitá-los.
— Tenho uma sensação nada agradável quando vejo um desses indivíduos —
confessou Sakori. — Um dia cairão sobre nós para vingar-se das infâmias que sofreram.
Num gesto pensativo, o conde passou a raspadeira pela nuca.
— É possível — admitiu. — Mas, quando isso acontecer, o senhor e eu não
estaremos mais vivos.
Foram caminhando lentamente em direção à residência de Sakori. Um terço da
mesma ficava acima do solo. Havia uma escada que levava às peças principais da casa.
— Quer tomar alguma coisa, conde? — perguntou Sakori.
Emiondi lembrou-se da falta de limpeza de Sakori e recusou.
— Vamos ao seu jardim — sugeriu.
Mudaram de rumo e contornaram a residência de Sakori. Atrás dela, o construtor
instalara um jardim. A entrada estava cercada de chintis florescentes. O conde aspirou
profundamente o perfume das flores.
— Cuidado com os espinhos — recomendou Sakori. — Essas feras não gostam que
uma pessoa estranha apareça perto delas.
Emiondi soltou uma risada de desprezo.
— Como é que um simples espinho poderia perceber a diferença entre sua pessoa e
a minha?
— O fato é que pode — disse Sakori, sem deixar que as palavras do conde o
perturbassem.
O conde ficou contrariado consigo mesmo, mas teve o cuidado de seguir
exatamente pelo centro da entrada. Logo atrás da mesma Sakori construíra uma espécie
de caramanchão. Dois queissassanes sacudiam furiosamente as correntes que os
prendiam, quando o conde se aproximou. Sakori soltou uma estrondosa gargalhada.
— Não gostam do senhor.
Ao notar que Sakori se aproximava dos monstros e os acariciava, Emiondi ficou
apavorado. Um dos dois queissassanes lambeu o construtor com sua língua vermelha e
áspera.
— Poderia perfeitamente deixá-los andar livremente por aí — disse Sakori. — O
problema é que atacariam qualquer outra pessoa.
Quando prosseguiram na caminhada, Emiondi soltou um suspiro de alívio. Sakori
mostrou-lhe uma flor de hianda, que era a única em toda a província.
— Como se explica que a flor ainda não tenha despetalado? — perguntou o conde.
Um sorriso misterioso surgiu no rosto de Sakori.
— Esta planta precisa de certo alimento — disse. — Basta dá-lo regularmente, e ela
floresce por décadas a fio.
— Que alimento é este? — perguntou o conde.
— Acho que já está na hora de darmos uma olhada na máquina — respondeu o
construtor, esquivando-se à pergunta.
Emiondi pensou que ainda não sabia tudo a respeito desse homem, que construía as
melhores máquinas a vapor da província. Nettori e Sansing já haviam contado coisas
estranhas sobre seu chefe, mas muita gente acreditava que eram simples tolices. Emiondi
perguntou a si mesmo se talvez não haveria algo de verdadeiro nesses boatos. Sakori, o
construtor e jardineiro, era um homem que criava monstros e cultivava flores fantásticas.
O conde sacudiu a cabeça. O perfume das flores embotava-lhe os pensamentos. Não
devia permitir que isso o deixasse louco. Sakori era apenas um inventor muito hábil...
— Vamos voltar — disse Sakori em tom amável.
Mais tarde Emiondi lembrou-se de que pretendia dizer alguma coisa a respeito da
flor de hianda, mas não teve tempo. De repente, o silêncio foi cortado por um ruído
estridente, que gelou o sangue do conde. Este parou, trêmulo.
— O que é isso? — gaguejou Emiondi. Sakori não estava mais a seu lado. O conde
viu-o correr pelo caminho. Passou junto aos queissassanes que se debatiam furiosamente.
“É a máquina”, pensou Emiondi.
— Um momento! — gritou o conde para o construtor. — Espere um instante!
Também saiu correndo, esquecendo os monstros enfurecidos e os espinhos de
chinti. Quando estava passando pela entrada do jardim, ouviu a explosão.
A onda de pressão atirou o conde ao chão. O solo tremia e vibrava. A casa de Sakori
balançou. A poucos metros de distância, Sakori rastejava com a velocidade de uma cobra
em direção ao pavilhão.
A idéia de que a máquina a vapor poderia ter explodido deixou o conde
desesperado. Com isso, sua construção sofreria um atraso de três décadas.
O solo voltou a imobilizar-se. Emiondi viu Sakori pôr-se de pé e correr em direção
ao pavilhão. Uma nuvenzinha surgiu no telhado do edifício.
O conde compreendeu que a máquina não explodira. Acontecera outra coisa, muito
mais terrível que a destruição de sua máquina a vapor.
Sakori abriu apressadamente o portão. A máquina a vapor continuava intacta, no
mesmo lugar. Chiava e a intervalos regulares soltava uma nuvem clara de vapor.
O conde levantou-se a ajeitou a manta. Esforçou-se para dissimular o tremor do
corpo e aproximou-se do construtor, que já se encontrava no interior do pavilhão.
— Que explosão horrível foi esta? — perguntou Emiondi, com a voz trêmula. —
Será que foi a fábrica de Fattoli que explodiu?
— Não — respondeu Sakori, calmo. — O abalo foi produzido por outra coisa.
Segurou Emiondi pelo braço e puxou-o para fora do pavilhão. Seu braço musculoso
apontou para a cadeia de montanhas situada atrás da província.
— Deve ter acontecido lá — disse.
O conde percebeu que começava a ser dominado pelo medo. Engoliu fortemente
antes de responder.
— O que poderá ter sido? Sakori fez um gesto vago.
— Quem sabe? Acho que foi alguma coisa que caiu do céu.
O conde fechou os olhos. Sakori sempre tivera idéias estranhas, mas desta vez
estava indo longe demais. A afirmativa que acabara de fazer chegava às raias da
blasfêmia. Contudo Emiondi perguntou a si mesmo se não era possível que Sakori tivesse
razão.
— Talvez nunca venhamos a saber o que foi — o conde fitou Sakori com uma
expressão de insegurança. — Provavelmente isso permanecerá em segredo para todo o
sempre.
Sakori não respondeu, mas a expressão de seu rosto falava por si.
— Talvez deveríamos tomar alguma coisa — disse o conde.
Um sorriso furioso apareceu no rosto de Sakori.
— Por que não? Devemos fazer uma porção de coisas de que gostamos, enquanto
temos oportunidade.
Um trovejar surdo vindo das montanhas fez Emiondi estremecer e conferir um
sentido sombrio às palavras de Sakori.
6

Quando a voz de Tschubai rompeu a escuridão, seu tom familiar fez com que
Marshall recuperasse a calma habitual.
— Parece que chegamos — disse o africano, em tom irônico. — Tomara que depois
deste abalo as luzes de emergência ainda estejam funcionando.
Marshall ouviu sua própria respiração profunda. O avanço às apalpadelas, feito sem
plano, chegara ao fim. Concentrou-se na busca da chave das luzes de emergência.
Esbarrou em alguém.
— É o senhor, Ras? — disse a voz de Yokida.
— Tama! — exclamou Marshall, em tom de alívio. — Procure destravar a chave
das luzes de emergência por meio da telecinese.
Por alguns segundos reinou um silêncio completo. Finalmente o telecineta disse:
— Nada feito, sir. Por aqui tudo está quebrado.
Marshall refletiu por um instante. Não poderiam continuar no interior do barco
espacial. Se a nave fragmentária realmente tinha caído, ainda havia a possibilidade de que
explodisse ou pegasse fogo. Quando isso acontecesse, seria tarde para fugirem. Ninguém
sabia em que mundo haviam pousado. Se fora da nave fragmentária encontrassem uma
atmosfera venenosa, os trajes de combate arcônidas evitariam que morressem sufocados.
Mas o sistema de suprimento de energia e de ar desses trajes não duraria para sempre.
Marshall pensou nos outros perigos que talvez os esperassem, além da possível existência
de atmosfera sem oxigênio. Era possível que lá fora o solo fosse exclusivamente
vulcânico, ou então poderiam ter caído num oceano.
Marshall preferiu não pensar mais nisso. A única coisa que podia fazer era cuidar
dos problemas imediatos.
— Encontrei uma eclusa — disse Yokida. — Naturalmente está empenada.
— O doutor Bryant voltou a perder os sentidos — disse Van Moders, de repente. —
Acho que teremos de carregá-lo.
Esperaram alguns segundos, até que Yokida conseguiu abrir a eclusa. Marshall
aproximou-se cuidadosamente do homem ferido. Van Moders estava de pé ao lado do Dr.
Bryant, que continuava deitado no chão sem fazer o menor movimento.
— Vamos ligar um campo antigravitacional — disse Marshall. Apalpou o corpo do
cientista em meio à escuridão. Encontrou o cinto e, logo depois a respectiva chave.
— Isso! — disse, satisfeito. — Agora poderemos transportá-lo sem maiores
problemas.
Todos juntos levantaram o Dr. Bryant. Não pesava praticamente nada, e por isso foi
fácil levá-lo à eclusa.
— Vou arriscar um pequeno salto de teleportação — sugeriu Tschubai. — Talvez
consiga descobrir como estão os pos-bis.
— Certo — concordou Marshall. — Tome cuidado para não se envolver em
dificuldades. Você nos é indispensável. Não se arrisque.
Tschubai desmaterializou-se. Yokida, que havia examinado o hipertransmissor do
barco espacial, constatara que o abalo o danificara a ponto de ficar totalmente inutilizado.
Isso significava que não poderiam entrar em contato com qualquer nave da Frota Solar, a
não ser que conseguissem arranjar um transmissor dos pos-bis que estivesse em
condições de ser usado. Marshall sabia que com isso sua situação se tornara ainda mais
grave. A missão fora planejada sob o pressuposto de, a qualquer momento, poderem
entrar em contato com Rhodan. E agora essa possibilidade não existia mais. Estavam
completamente isolados e só eles podiam ajudar a si próprios.
Mas, apesar de tudo, não deveriam desistir antes da hora. Deviam tentar tirar todas
as vantagens possíveis da situação. Marshall estava decidido a encontrar, juntamente com
seus amigos, um caminho que os levasse para fora do triste beco sem saída em que se
encontravam.
Tschubai voltou dali a alguns minutos. Marshall já recuperara a calma e a
capacidade de decisão.
— Grande parte da nave foi destruída — informou o teleportador. — Em vários
lugares, a iluminação parece intacta. É possível que as luzes que encontrei sejam apenas
lâmpadas de controle. Seja como for, tive oportunidade de dar uma olhada. — respirou
profundamente. — Os pos-bis que resistiram à queda agem como se tivessem
enlouquecido. Não me atacaram, mas minhas tentativas de estabelecer contato não
tiveram êxito.
— Notou alguma coisa que pareça ser muito importante? — perguntou Marshall,
em tom curioso.
— Os robôs estão abandonando a nave — respondeu Tschubai. — Vi
perfeitamente. Ao que parece, têm muita pressa de sair daqui.
— Como estão as coisas lá fora? — perguntou Marshall.
— Como? — repetiu Tschubai, em tom solene.
— Não vamos brincar de esconder — pediu Marshall, amável. — Não preciso
espionar seus pensamentos para saber que o senhor não deixou de dar uma olhada no
planeta em que pousamos.
Tschubai deu uma risada. Parecia embaraçado.
— Não chegamos ao Mundo dos Duzentos Sóis, sir — disse. — O planeta em que
nos encontramos gira em torno de um sol vermelho que nasceu há alguns minutos. A
nave fragmentária encontra-se ao pé de uma cordilheira. Está gravemente avariada.
Provavelmente não poderá decolar mais.
— Quais são as condições atmosféricas?
— Provavelmente estamos num mundo seco de oxigênio — informou o
teleportador.
— O que é que os pos-bis estão fazendo do lado de fora? — perguntou Van Moders,
em tom ansioso.
Antes de responder, Tschubai esperou alguns segundos, como se refletisse bastante.
— Acho que estão marchando em direção à cidade — disse finalmente.
Van Moders soltou um assobio. Marshall voltou a falar:
— Uma cidade! O que vem a ser isso, Ras?
— Tudo parece bastante convidativo — respondeu Tschubai. — A cidade tem
edifícios baixos, que, segundo parece, penetram profundamente no solo. Não posso
fornecer informações mais precisas, pois a cidade fica muito longe.
— Viu algum nativo?
— Por enquanto não — Tschubai fez uma pequena pausa. — Estou preocupado
com os pos-bis — disse finalmente. — Parece que têm um objetivo definido. Devemos
andar depressa, pois, do contrário, poderão criar problemas com os nativos.
Marshall não sabia como evitar que os robôs fizessem isso. Provavelmente os
nativos representavam a única chance de os terranos sobreviverem nesse mundo.
Tschubai tivera a mesma idéia. Por isso deviam chegar à cidade antes dos pos-bis.
E depois?
Marshall abanou a cabeça. Como fariam para levar os pos-bis a cessarem sua
marcha? Haveria alguma possibilidade de evitar a execução de um plano já definido
pelos robôs?
Talvez fosse um erro pensar que os pos-bis lhes causariam problemas. Afinal, era
perfeitamente possível que as intenções dos robôs que se dirigiam à cidade fossem
pacíficas. Entretanto, quanto mais Marshall refletiu, mais se convenceu de que os pos-bis
não se haviam posto a caminho para oferecer a paz a alguém. Depois dos confusos
acontecimentos que se haviam desenrolado nas bases dos pos-bis, não se podia desprezar
nenhuma possibilidade.
— Suas preocupações têm sua razão de ser — disse, dirigindo-se ao teleportador. —
Sugiro que não percamos mais um segundo. Vamos abandonar a nave fragmentária.
Ninguém teve qualquer objeção. Tschubai seguiu à frente dos outros.
— Não será muito fácil sair daqui — disse. — Os corredores e as galerias
desmoronaram em toda parte.
Avançaram com grande esforço quase durante uma hora, passando por sobre uma
série de obstáculos. Finalmente chegaram a um recinto iluminado por algumas luzes
trêmulas.
A luz mortiça sublinhava as formas abstratas que os pos-bis haviam usado na
construção. Nem um único robô estava no lugar. Marshall viu nisso uma confirmação das
informações de Tschubai.
Prosseguiram. Yokida e Van Moders encarregaram-se do transporte do Dr. Bryant.
Tschubai e Marshall foram na ponta, enquanto o Dr. Riesenhaft formava a retaguarda do
pequeno grupo.
Saíram do recinto, passando por uma abertura triangular, e entraram num corredor
que não estava iluminado.
— Acho que estamos no caminho certo — anunciou Tschubai. — No fim do
corredor encontraremos um poço que leva para cima. Ali há uma plataforma pela qual
podemos atingir a face externa da nave.
O africano tinha razão. Usaram o sistema de propulsão de seus trajes de combate
para subir pelo poço, até atingirem a plataforma. Em certo lugar, a nave apresentava um
rombo de quase trinta metros. A luz do dia penetrava pela abertura. Voaram por esse
rombo e foram parar na face externa da nave fragmentária. A superfície do planeta ficava
a quase um quilômetro abaixo deles. Notaram que a nave “encolhera”. O lugar em que se
encontravam permitia uma visão ampla para o vale alongado que se estendia à sua frente.
Via-se perfeitamente a cidade a que Tschubai aludira. Um sol avermelhado brilhava
acima das montanhas. Sob o efeito de sua luz, os corpos dos homens projetaram sombras
compridas sobre o metal claro da nave. A cidade dos nativos estava disposta em círculo.
As diversas construções agrupavam-se em torno de um ponto central assinalado por uma
coluna muito alta. De ambos os lados, as fileiras de casas penetravam no vale. Até
mesmo nas encostas mais afastadas, Marshall viu algumas construções. Atrás da cidade
começava a floresta. O arvoredo era tão denso que só se percebia vagamente os
contornos.
A meio caminho entre a nave caída e a cidade, a luz do sol refletia-se num lago, que
provavelmente fora criado artificialmente.
Marshall observou atento o mundo desconhecido. Então era este o ambiente em que
teriam de permanecer por um tempo indeterminado, talvez pelo resto da vida. Podia-se
dizer que, em meio aos acontecimentos que se sucederam, os terranos tiveram sorte, e, no
mundo em que se encontravam, tinham boas chances de sobrevivência. De cada cem
mundos só dois se prestavam à vida humana. O que poderiam ter feito se a nave tivesse
caído num lago de metano ou em cima de um vulcão?
Marshall contemplou a estranha paisagem, que em muitos pontos apresentava
semelhanças com a Terra.
De repente viu os pos-bis!
Deviam ter estado nas proximidades do lago, onde não os divisara em virtude do
brilho da água. Nesse momento já tinham avançado mais um pouco em direção à cidade.
Seguiam em fileira desordenada. Locomoviam-se mais depressa do que qualquer
homem conseguiria fazer a pé.
Marshall não fez nenhuma tentativa de contar os robôs. Eram centenas. Tschubai
tinha razão: o destino dos pos-bis era exclusivamente a cidade.
— Temos de ir atrás deles, antes que façam uma desgraça — disse o telepata. —
Não podemos permitir que caiam sobre os nativos.
— Um momento! — Van Moders segurou o braço de Marshall. — Tenho uma
idéia. Enquanto o senhor vai perseguir os pos-bis, o doutor Riesenhaft e eu tentaremos
chegar aos controles da nave. Se o plasma dos cérebros de comando ainda continua vivo,
deve haver uma possibilidade de entrar em contato com ele.
Marshall disse a si mesmo que na cidade não poderia dispensar um único homem.
Apesar disso não pôde deixar de concordar com a sugestão de Van Moders. Talvez o
cientista conseguisse levar o plasma a provocar a retirada dos seus robôs.
— Está bem — disse. — O senhor e Riesenhaft ficarão aqui. Mas tenham cuidado.
E procurem descobrir também se poderemos usar o hipertransmissor dos pos-bis.
Van Moders abanou a cabeça, num gesto de ceticismo.
— Antes de examinar o transmissor, teremos de localizá-lo no meio dos destroços
— ponderou.
— Não desista — pediu o mutante. — O transmissor do barco espacial foi
destruído, e por isso nossa única possibilidade de entrar em contato com a Frota Solar é
esta — lançou os olhos para o vale, onde os robôs chegavam cada vez mais perto da
cidade. — Não temos tempo para discutir — disse. — Vamos sair voando.
Deitaram o Dr. Bryant num lugar seguro. Van Moders prometeu cuidar do doente a
intervalos regulares.
— Teleporte-se para a cidade, Ras. Yokida e eu iremos atrás — ordenou Marshall.
Van Moders e o Dr. Riesenhaft desapareceram pelo rombo da nave. Pouco depois o
teleportador desmaterializou-se.
— Seis homens representam uma força bastante modesta, ainda mais quando se é
obrigado a dividi-la — disse Yokida.
Marshall deu um salto para a frente, sem responder à observação do japonês. O
telecineta tinha razão. Mas já houvera oportunidades em que um número muito mais
reduzido de homens havia resolvido situações bem mais difíceis. Voaram bem perto um
do outro. Só quando já estavam sobrevoando o lago, voltaram a falar.
— Os robôs estão quase chegando à cidade — disse Yokida. — Quando eles
aparecerem, os nativos terão um choque. Faço votos de que sejam bastante inteligentes
para reconhecer a inutilidade de qualquer resistência.
De repente uma nuvem de fumaça surgiu sobre a cidade. O vento tangeu-a
rapidamente por cima das casas.
— Houve uma explosão — disse Marshall.
— Quando chegarmos lá, o inferno estará às soltas — disse o telecineta, em tom
zangado. — Gostaria de saber o que Ras está fazendo.
— Não pode fazer muita coisa — falou Marshall.
Quando se encontravam a quinhentos metros das primeiras casas, houve outra
explosão. Uma fumaça escura subia entre as casas.
— Alguma coisa foi pelos ares! — exclamou Yokida. — Estamos chegando tarde,
sir.
Marshall contemplou as nuvens de fumaça com uma expressão zangada. Quando os
pos-bis resolviam fazer algo, eles o realizavam bem-feito. Ao que parecia, pretendiam
reduzir a cidade a escombros. O mutante pegou o desintegrador. Só havia uma
possibilidade. Teriam de lutar com os pos-bis pela posse da cidade.
Mas só se Van Moders conseguisse chegar em tempo aos controles, teriam uma
chance de sair vitoriosos.
Dali a duas horas, Marshall descobriu que mesmo assim não havia a menor
possibilidade de modificar o curso dos acontecimentos. Contudo naquele momento, ainda
não tinha a menor idéia das coisas que Van Moders descobriria...
Ainda bem!...
7

O uivo dos queissassanes tornou-se mais intenso, transformando-se num som agudo
e ensurdecedor. Parecia que os monstros que se encontravam no jardim do construtor não
conseguiam acalmar-se mais.
— Nunca ficaram tão nervosos — disse Sakori.
O conde levantou-se. Não conseguiu disfarçar mais o nervosismo. Quando se
dirigiu à fresta de luz, tropeçou na perna de Sakori. Os sempolis se comprimiam num
canto do pátio. Até parecia que temiam algum perigo desconhecido.
— Meus carregadores estão nervosos — disse Emiondi. — A explosão causou uma
tremenda confusão.
Sakori olhou para o chão com uma expressão triste. Quando se apoiou para dirigir-
se ao lugar em que estava o conde, os músculos de seus robustos braços sobressaíram.
Emiondi deu um passo para trás, para que o construtor também pudesse ver o que estava
acontecendo lá fora.
Sakori olhou para os carregadores, sem dizer uma palavra. O barulho dos
queissassanes tornava-se cada vez mais apavorante. O conde não se lembrava de já ter
ouvido uma coisa semelhante.
— Por que não solta esses monstros? — perguntou, dirigindo-se a Sakori.
— Talvez fosse o mais acertado — disse Sakori, pensativo. — Se continuarem
assim, espantarão toda a caça das redondezas.
“Alguma coisa mudou depois da medonha explosão”, pensou o conde.
Não seria capaz de dizer o que era, mas uma sensação deprimente fazia com que se
lembrasse constantemente do que havia acontecido há pouco tempo. De repente teve a
impressão de que a sala de Sakori era pequena e imunda. Sacudiu o corpo. Voltou
rapidamente para o centro do recinto. Sakori fitou-o pacientemente.
— Vou voltar para casa — disse o conde. — Tomara que os sempolis não balancem
muito a liteira.
Saíram juntos da casa de Sakori. Emiondi quase chegou a hesitar ao atravessar o
quintal. A gritaria dos queissassanes não parecia tão forte, muito embora fosse
perceptível em toda sua intensidade. Sakori acompanhou o conde até a liteira. Emiondi
abriu a cortina e, com um gemido, deixou-se cair no assento. Dali a pouco, o construtor
enfiou sua cabeça feia pela cortina.
— Os sempolis, conde — disse em tom preocupado.
Emiondi sobressaltou-se.
— O que houve com eles? — perguntou em tom furioso.
— Fugiram — informou Sakori. Emiondi levantou-se abruptamente e bateu com a
cabeça na parte superior da entrada da liteira. Sakori recuou para que o conde pudesse
descer.
— É o agradecimento desses indivíduos pelo tratamento decente que lhes tenho
dado! — gritou o conde, indignado, enquanto fitava com os olhos selvagens o construtor,
que estava parado, perplexo. — A gritaria desses monstros assustou-os!
Sakori resolveu limitar seu comentário a um resmungo quase inaudível. O conde
lançou os olhos pelo quintal, mas foi em vão. Os sempolis haviam desaparecido.
— Quem sabe se o senhor não quer tomar mais um gole? — perguntou Sakori com
a voz tímida. — Os carregadores logo se acalmarão e voltarão.
Emiondi repuxava sua manta, num gesto de indignação. Mas logo se lembrou da
dignidade que teria de corporificar na qualidade de nobre.
— Esperarei por eles aqui mesmo — disse em tom frio.
O Conde Emiondi passou a raspadeira na nuca. Era o melhor meio de acalmar os
nervos excitados.
Mas parou em meio ao movimento. Deixou cair a raspadeira. Parecia petrificado no
centro do quintal.
— O que houve, conde? — perguntou Sakori, amedrontado.
Como Emiondi não respondesse, Sakori olhou na mesma direção do dignitário. E
foi então que viu!
Uma fileira de seres mecânicos saiu de trás do pavilhão. Sakori emitiu um som
gutural. Estava vendo uma coisa que não existia. Fechou os olhos por alguns segundos,
mas quando voltou a abri-los o quadro continuava inalterado. As “coisas” caminhavam
diretamente em direção ao pavimento no qual se encontravam as afamadas máquinas a
vapor de Sakori.
O construtor ficou perplexo diante dos acontecimentos inconcebíveis.
Três seres reuniram-se à frente da porta do pavilhão. Sakori assistiu ao espetáculo
como se estivesse enfeitiçado. De repente um raio chamejante atravessou o quintal,
produzindo um chiado. Sakori e o conde recuaram cambaleando.
Quando Sakori levantou os olhos ofuscados, havia um grande buraco chamuscado
no lugar em que antes estivera a porta. Os desconhecidos foram entrando no pavilhão.
Seu número aumentava cada vez mais. Alguns distribuíram-se pelo quintal e outros
dirigiram-se ao pavilhão. Não tomaram conhecimento da presença de Emiondi e Sakori.
De repente houve um lampejo no interior do pavilhão.
“A máquina a vapor”, pensou Sakori num instante. “Estão destruindo a máquina a
vapor.”
Sakori nunca sentira tanta raiva como naquele momento. A cólera empolgou-o
como se fosse uma embriaguez. O pensamento racional foi completamente eliminado. Só
se lembrava de uma coisa. Os desconhecidos estavam no interior do pavilhão para
destruir a máquina a vapor. A máquina em cuja construção trabalhava há várias décadas.
Antes que Emiondi tivesse tempo de fazer qualquer movimento para deter o
construtor, Sakori saiu correndo pelo quintal, em direção ao pavilhão em chamas...
E a máquina a vapor explodiu no momento exato em que Sakori passava pelo
primeiro desconhecido. A pressão provo cada pela explosão levantou-o. Foi atirado a
alguns metros e bateu fortemente no chão.
O pavilhão foi pelos ares. Houve uma chuva de madeira e pedras. O ar parecia
trovejar. Sakori choramingou baixinho. Seu cérebro quase não conseguia compreender os
acontecimentos. Um pedaço de sarrafo atingiu-o no ombro. Saiu arrastando-se
apressadamente, enquanto as dores percorriam seu corpo.
Seus pensamentos e sentimentos estavam impregnados de uma decepção e tristeza
profunda. O fato de que seu pavilhão de montagem não existia mais, estando reduzido a
um montão de entulho, não lhe entrava na cabeça.
Duas sombras gigantescas passaram por Sakori, emitindo sons queixosos.
Os queissassanes estavam soltos. Loucos de medo, haviam arrebentado as correntes
e saíram correndo. Sakori não teve forças para chamá-los. Ouviu o som da madeira
quebrada e o crepitar das chamas que consumiram o que restava do pavilhão.
O vento tangeu o cheiro desagradável da madeira em chamas e fez turbilhonar as
cinzas e folhas chamuscadas por cima de Sakori. Um dos sempolis correu pelo quintal,
fustigado por um pavor cego, e saltou por cima da cerca do jardim de Sakori.
Sakori continuou deitado. Só quando o conde o sacudiu, voltou a mexer-se.
Emiondi fazia uma triste figura. Estava coberto de sujeira e parte de sua manta fora
chamuscada pelas chamas.
Sakori piscou os olhos que ardiam.
— Já foram embora — disse Emiondi, com a voz trêmula.
Sakori pôs-se de pé. Olhou para o outro lado do quintal. Seu pavilhão de montagem
estava reduzido a um montão de destroços fumegantes.
Sakori cambaleava ligeiramente. Ergueu a mão-garra direita e sacudiu-a em direção
aos restos do pavilhão.
— Eles se esqueceram de matar-me — disse entre soluços. — Esqueceram-se de
matar-me.
***
Tschubai materializou-se na periferia da cidade. Num movimento automático olhou
em torno, à procura de um lugar em que pudesse abrigar-se. Descobriu uma espécie de
poço. Um tronco de árvore escavado, de formato alongado, cheio de água, servia de
recipiente aos nativos. O teleportador felicitou-se porque não havia ninguém por perto.
Deu alguns passos e alcançou o tronco. Abaixou-se atrás do mesmo. O tronco tinha
alguns vazamentos, por onde desciam filetes estreitos. A água abrira trilhas pela terra, até
atingir um lugar em que se infiltrava.
Tschubai ergueu-se um pouco e olhou por cima do poço. À sua frente, estendia-se a
grande planície, que chegava até a nave fragmentária. Mas a atenção de Tschubai
prendeu-se menos aos encantos da paisagem, que aos pos-bis, os, quais estavam
alcançando as primeiras casas.
Viu os primeiros nativos em fuga. Eram um pouco mais baixos que os humanos,
mas bem mais robustos. Tschubai viu que, sob as escassas vestes, havia pêlos cinzentos e
marrons. Os crânios dos nativos pareciam bastante disformes.
Os fugitivos desapareceram entre as casas. Tschubai sentiu-se aliviado ao notar que
os pos-bis não abriam fogo contra esses seres que, segundo tudo indicava, eram dotados
de inteligência. Os robôs não pareciam interessar-se pelos nativos.
Tschubai perguntou a si mesmo o que os teria levado a se dirigirem à cidade.
Esperou que um grupo de pos-bis passasse por ele. Levantou-se e escolheu um telhado
sobre o qual pudesse pousar depois de uma teleportação.
Teve de esforçar-se para esperar até que o último robô saísse do alcance de sua
vista. Um nativo correu em torno da casa e tomou a direção do poço. Quando viu
Tschubai, estacou. O teleportador resmungou, contrariado. Não podia modificar o
acontecido. Apesar disso não poderia desistir da execução de seu plano. Tornava-se
necessário observar os pos-bis. Tschubai cumprimentou o desconhecido com um gesto e
teleportou-se para o telhado que lhe pareceu mais apropriado aos seus objetivos.
Quando pousou sobre o telhado, teve uma surpresa desagradável. O telhado não
tinha a menor estabilidade. Antes que pudesse fazer qualquer coisa, a armação cedeu sob
o peso de seu corpo. Atravessou a camada fina de folhas e caiu. Não houve nenhum
impacto violento. Caíra numa sala atulhada de nativos. Tschubai caíra sobre um leito de
folhas. Os habitantes da casa não se espantaram menos que o mutante.
— Desculpem o incômodo — disse Tschubai em tom amável e teleportou-se, ao
acaso, para fora da casa.
Quando se materializou no quintal, não pôde deixar de sorrir. O que estariam
pensando os nativos naquele momento?
O teleportador não teve tempo para refletir sobre isso. Dois nativos estavam parados
bem à sua frente. Não o viram, pois estavam olhando para um grupo de pos-bis que
entrava no quintal. Tschubai abrigou-se num canto para observar tudo. Os robôs
dirigiram-se à maior das duas casas que, segundo parecia, pertenciam à mesma
propriedade. Suas armas térmicas abriram um buraco na grande porta. O mutante não
tinha explicação para o comportamento dos pos-bis. Os robôs nem tomavam
conhecimento dos nativos.
Tschubai viu uma máquina primitiva no interior do pavilhão. Notou também uma
caldeira e imaginou que seria uma máquina a vapor. Os nativos do planeta encontravam-
se no melhor caminho para desenvolver uma civilização tecnológica.
A compreensão das intenções, que animavam os pos-bis no interior da cidade,
atingiu o africano com a força de um golpe. E, no momento em que os pos-bis abriram
fogo com todas as armas contra a máquina a vapor, Ras já poderia afirmar que os robôs
obedeciam às ordens do plasma e que este estava envolvido num conflito com os centros
de computação. O plasma naquele momento não estava capacitado para distinguir as
diversas máquinas. Acreditava que as máquinas a vapor fossem robôs que deviam ser
destruídos.
Os pos-bis atravessariam toda a cidade, deixando para trás apenas a destruição. Não
estariam interessados em saber se sua ação seria prejudicial aos nativos. O plasma não
tinha capacidade de desenvolver esse tipo de reflexão. Provavelmente houvera certas
avarias nos controles da nave fragmentária, o que impedia o plasma de exercer um
controle eficaz sobre seus robôs.
A única coisa que Tschubai podia fazer era observar as ocorrências. Imaginava o
que poderia acontecer... Quando de repente houve a explosão, estava deitado, com o
corpo comprimido contra o chão. Quase não foi atingido pela onda de pressão.
Assim que se arriscou a levantar a cabeça, viu o grande edifício já reduzido a um
montão de destroços fumegantes. Para os pos-bis, o trabalho estava concluído. Retiraram-
se do quintal. Um dos nativos estava estendido no chão.
Dois animais, com bocas enormes e horríveis, atravessaram o terreno. Tschubai
ficou apavorado. Os monstros desapareceram atrás das outras casas. Não precisou de
explicações. O simples aspecto dos animais deixava claro que representavam um perigo.
O nativo que estava estendido no chão levantou-se, auxiliado por seu companheiro.
Tschubai viu ambos caminharem em direção a uma estranha caixa, em cujas
extremidades havia varas compridas.
“Por todos os planetas do Universo”, pensou o mutante. “É uma liteira.”
O nativo que usava manta ampla empurrou-se contra a liteira e derrubou-a.
Tschubai assistiu a tudo, perplexo. Não compreendia o comportamento daquela criatura.
— Alô, Ras! — disse uma voz saída de seu alto-falante de capacete. — Onde está
neste momento?
— Aqui embaixo — respondeu Tschubai. Sem que o quisesse, apenas sussurrou,
embora os nativos não pudessem ouvi-lo.
Logo se lembrou de que a informação que acabara de dar não seria muito útil a
Marshall e completou:
— Siga em direção a uma coluna de fumaça, sir.
— Existem várias — disse Marshall. Tschubai mordeu os lábios. Concluiu que os
pos-bis estavam prosseguindo em sua campanha. Provavelmente havia mais gente na
cidade. O africano explicou em palavras ligeiras o que havia acontecido.
— Estou perto do edifício que explodiu em primeiro lugar — informou ao concluir.
— Há dois nativos por aqui. Um deles acaba de derrubar uma liteira.
— Acaba de derrubar o quê? — perguntou Marshall.
— Uma liteira — repetiu Tschubai, enfatizando a palavra. — Tentarei estabelecer
contato com essa gente.
— Tenha cuidado, Ras — ordenou Marshall. — Devem ter perdido a cabeça e não
sabem que não estamos unidos aos robôs.
Tschubai levantou-se.
— Está bem — disse — Compreendi. Sir, por aqui existem monstros dos quais
temos de cuidar-nos.
O alto-falante começou a estalar. Parecia que Marshall só estava emitindo ruídos
ininteligíveis. Tschubai esperou pacientemente.
— Monstros? — perguntou o telepata depois de algum tempo. — Explique melhor.
— Vi dois bichos enormes — informou Tschubai. — Têm certa semelhança com
enormes ratos, com a diferença de que não possuem cauda. Em compensação a boca é
enorme.
— Está bem. Teremos cuidado — disse Marshall, encerrando a palestra. — Entre
em contato com Yokida e comigo, assim que conseguir alguma coisa.
Tschubai saiu de seu abrigo e esperou que os nativos o vissem. O maior deles, que
usava manta, estava sentado na liteira derrubada. Ao que parecia, o outro falava
nervosamente com ele.
Finalmente o homem que estava sentado olhou para Tschubai. O mutante levantou o
braço e fez um gesto tranqüilizador.
Dali em diante, tudo dependeria das reações dos dois nativos. Tschubai caminhou
lentamente em sua direção e fez votos de que os dois percebessem a diferença que havia
entre ele e os pos-bis. Tanta coisa dependia disso!
***
Van Moders deu um pontapé no aparelho que caíra ao chão, cuja finalidade nem
sequer se poderia adivinhar, fazendo com que escorregasse pelo recinto e tilintasse ao
bater na parede. O Dr. Riesenhaft fez um gesto de contrariedade e passou pelo jovem
cientista.
— Assim não é possível — disse, aborrecido. — Não pode dar pontapés em tudo
que se atravesse no seu caminho.
— O senhor é um ranzinza — respondeu Van Moders. — Aliás, é a primeira vez
que dou um pontapé em alguma coisa. Já estamos revirando estes destroços há uma
eternidade e ainda não encontramos os controles.
Passaram por um elevador antigravitacional, que não estava funcionando mais. Ao
contrário do recinto em que se encontravam, o poço do elevador estava iluminado.
Aproximaram-se e viram que a luz descia do corredor do pavimento superior.
Van Moders fez um gesto convidativo.
— Subamos mais um andar, doutor — sugeriu.
Riesenhaft não formulou nenhuma objeção. Subiram pelo poço do elevador. Por
mais de uma vez o Dr. Riesenhaft teve problemas para pôr seu traje de combate no rumo
certo.
— O senhor deve girar o corpo de acordo com a direção do vôo — lembrou Van
Moders, quando o cibernético escorregou pela parede do poço. — Tenha cuidado para
que o propulsor seja regulado corretamente.
Depois de algumas manobras pouco hábeis, Riesenhaft conseguiu voltar para o
centro do poço. Van Moders segurou-o pelo braço, e continuaram a subir juntos.
Finalmente chegaram ao corredor iluminado. Van Moders pôs os pés no chão e puxou
Riesenhaft para o lugar em que se encontrava.
— Desligue logo seu propulsor — falou, quando Riesenhaft começou a contorcer-se
que nem um peixe preso ao anzol.
Depois de algum tempo, o cibernético conseguiu “dominar” as peculiaridades de
seu traje. Prosseguiram juntos. Van Moders já conhecia o interior de uma nave
fragmentária, pois já havia entrado nesse tipo de veículo espacial em missões anteriores,
mas o Dr. Riesenhaft queria parar constantemente para admirar aparelhos de formato
muito abstracionista. Por várias vezes Van Moders teve de arrastá-lo.
Não havia dúvida de que o corredor em que acabavam de entrar, penetrava
profundamente na nave. Por ali quase não se via o menor sinal dos estragos causados
pelo impacto. Em alguns lugares, estranhos aparelhos haviam caído do teto e
continuavam jogados no chão. Passaram por mais dois elevadores antigravitacionais, mas
Van Moders preferiu não usá-los.
Finalmente o corredor descreveu uma curva ascendente e terminou num recinto
amplo.
— Que construção estranha! — disse Riesenhaft em tom queixoso, enquanto
rastejavam por cima da curvatura cuja finalidade não conseguiam compreender. — O que
terá levado os robôs a construírem naves deste tipo?
Van Moders sentiu-se confuso. Como é que o Dr. Riesenhaft, que sempre achava
que sabia tudo melhor que os outros, resolvera fazer-lhe uma pergunta? Enquanto Van
Moders ainda refletia sobre a resposta que deveria dar, Riesenhaft já havia vencido o
trecho difícil e se pusera de pé.
Fez um sinal para Van Moders.
— Chegamos — disse em tom petulante.
Van Moders apressou-se para chegar ao lugar em que estava seu companheiro. Não
havia dúvida de que o recinto que se encontrava à sua frente era o centro da nave. Os
controles estavam divididos em três sistemas principais. As figuras com aspecto de
abrigo antitanque erguiam-se dois metros acima do chão e tomavam todo o comprimento
da sala. Em todos os lugares viam-se cabos que ligavam essas figuras às paredes. Por
esses cabos corriam os sistemas nervosos. Van Moders sabia que o plasma estava
guardado nos sistemas centrais.
Quando entraram na gigantesca sala, Van Moders desconfiou de que alguma coisa
não estivesse em ordem. Parte dos controles dos sistemas centrais fora posto fora de ação,
e as ligações entre eles e os sistemas secundários estavam mortas. Moders passou os
olhos pelos sistemas secundários, e viu que mais de dois terços deles não funcionavam.
Era impossível que o plasma pusesse os controles de propósito a trabalharem com a
capacidade reduzida, pois para manter sob controle os pos-bis que haviam saído da nave
precisaria de muito mais sistemas secundários que os que estavam funcionando.
Dali só se podia concluir que o interior dos sistemas centrais também fora
danificado. A queda da nave colocara em perigo o próprio plasma.
Van Moders pôs-se a refletir intensamente. O que aconteceria se o plasma contido
nos sistemas centrais morresse de vez? Poderia haver uma oscilação no interior do
engaste hipertóictico. O cientista mordeu o lábio. Tinha certeza de que isso aconteceria.
No momento em que o plasma morresse, a parte hiperimpotrônica dos sistemas centrais
passaria a comandar os robôs.
De repente Van Moders estacou. Acabara de ter uma idéia inesperada. Começou a
imaginar a causa que desencadeara a guerra que os pos-bis estavam travando entre si. Um
exame da sala de controle só poderia confirmar suas suspeitas.
O Dr. Riesenhaft aproximou-se de um dos sistemas centrais. Parecia desconfiado.
— E agora? — perguntou.
— Teremos trabalho — disse Van Moders. — Precisamos descobrir o que
aconteceu no Mundo dos Duzentos Sóis, depois que Atlan e Rhodan destruíram a
programação ou o circuito do ódio.
— Será que vamos conseguir?
Van Moders acenou vigorosamente com a cabeça.
— Naturalmente. Mas temos que apressar-nos, pois precisamos ser mais rápidos
que a morte que ameaça o plasma.
Riesenhaft sentiu um calafrio.
— Será que o plasma vai morrer? — perguntou em voz baixa.
— Espero que não — respondeu Van Moders. — As conseqüências não seriam
nada agradáveis para nós.
Riesenhaft não formulou outras perguntas. Ao que parecia, não fazia questão de
saber quais eram essas conseqüências. Van Moders guardou suas suposições.
— Precisamos encontrar um meio de estabelecer contato com este plasma — disse,
dirigindo-se a Riesenhaft. — Faço votos de que ainda tenha forças para isso.
Van Moders sabia estar na pista da solução do mistério que envolvia a guerra dos
pos-bis. Mas também sabia que, mesmo que conseguisse encontrar a solução, não poderia
pôr fim a essa guerra.
Já era tarde demais para isso...
8

Quando viu o estranho atravessar o quintal e aproximar-se do lugar em que se


encontrava, Sakori parecia olhar através de um véu. No momento em que Emiondi
levantou os olhos, o construtor virou-se abruptamente.
O ser desconhecido levantou o braço e acenou para eles. Era diferente daqueles que
haviam destruído o pavilhão, mas devia haver uma ligação entre as duas espécies. Sakori
esforçou-se para reprimir sua raiva indomável.
O ser estranho parou.
— O que vamos fazer? — perguntou o conde com a voz entrecortada. — O que
significa tudo isso, Sakori?
Naquele momento um plano louco foi gerado no cérebro de Sakori. Resolveu matar
o desconhecido. No seu íntimo sabia que estava em condições de inferioridade face a esse
ser, mas a vontade de vingar-se pela destruição do pavilhão superava todas as reflexões
racionais.
— Vamos matá-lo — disse, dirigindo-se a Emiondi.
O conde fitou Sakori com uma expressão indefinível. O medo profundo que se lia
em seus olhos quase deixou Sakori louco, pois tinha certeza de que seus próprios olhos
revelavam o mesmo pavor.
O desconhecido voltou a acenar com o braço, mas não chegou mais perto.
— Ele nos destruirá — disse Emiondi, titubeante. — Seremos queimados que nem o
pavilhão.
— Tolice — objetou Sakori. — Essa criatura está só. Os outros seguiram adiante —
mais uma explosão ocorreu na cidade e parecia confirmar as palavras que acabavam de
ser pronunciadas. — Temos de armar-lhe uma cilada.
Quando o conde se levantou, a liteira balançou levemente. O desconhecido fitou-os
tranqüilamente. Seu rosto estava protegido por uma máscara que envolvia toda a cabeça.
“Talvez queira proteger-se contra as chamas”, pensou Sakori, amargurado. “Das
chamas que destruíram meu engenho...”
— Tem algum plano? — perguntou o conde.
Antes que Sakori pudesse levar avante seu intento, um queissassane apareceu à sua
frente. A fera estava parada em cima do muro baixo que cercava o quintal. Sakori
reprimiu um grito. O queissassane estava um pouco mais calmo, mas suas ilhargas
tremiam como se tivesse corrido um bom trecho. A língua vermelha pendia da boca que
nem uma bandeira.
O muro sobre o qual se encontrava o monstro ficava atrás do desconhecido.
— Pretende simplesmente avançar para ele? — perguntou Emiondi, em tom
queixoso. — Ele não esperará que nós o matemos a pauladas...
Sakori mal ouviu essas palavras. Ficou de olhos no queissassane. Viu os músculos
do animal vibrarem. Quando o monstro caminhou sobre o muro, quase chegou a ter a
impressão de que ouvia as garras afiadíssimas arranharem o reboco.
Sakori lamentou-se da má sorte, que não lhe permitia chamar a atenção do
queissassane. Tinha de encontrar um meio de atrair o animal para dentro do quintal e
fazer com que a fera atacasse o desconhecido.
Sakori soltou um assobio estridente. O desconhecido parecia acreditar que fora para
chamá-lo, pois fez um gesto amável. Apesar disso continuou pacientemente no mesmo
lugar, como se esperasse que Sakori fizesse alguma coisa.
O assobio fizera com que o queissassane estacasse. Virou abruptamente o
gigantesco crânio, dirigindo os olhos chamejantes sobre Emiondi e Sakori.
— Olhe... olhe o monstro — balbuciou Emiondi, apavorado.
— Fique quieto! — sussurrou Sakori, apressadamente.
O queissassane deu um salto enorme para o chão. Sakori observou a bela
coordenação dos músculos. Os olhos do animal tremiam de excitação.
— Está se aproximando — cochichou o conde, que, recuando um passo, esbarrou
na liteira e teve de apoiar-se em Sakori para não cair.
O queissassane parou e levantou a cabeça para farejar o ar. Desconfiava de alguma
coisa. Mas sua agressividade selvagem acabaria por superar todas as cautelas. Tudo
dependia de que o desconhecido não virasse a cabeça. Não deveria ver o queissassane
antes que este tivesse investido contra ele. Ainda não houvera ninguém que tivesse
escapado às garras e aos dentes desses monstros.
Sakori sobressaltou-se com uma súbita explosão na cidade. Era a melhor prova de
que os forasteiros prosseguiam na sua fúria destrutiva. A detonação aumentara ainda mais
a desconfiança do queissassane, que se esticou com o corpo rente ao chão. Mantinha-se
imóvel, observando... Seus olhos pareciam irradiar um efeito hipnótico. A prisão no
jardim de Sakori não diminuíra a ferocidade do animal.
Naquele momento, o segundo queissassane apareceu em cima do muro.
Parecia ter surgido do nada e ficou agachado. Sakori achava-se tenso. Quando em
liberdade, os queissassanes costumavam sair à caça em grupos. O desconhecido nem
desconfiava do perigo que o espreitava. Observava Emiondi e Sakori com uma atenção
visível.
Sakori começou a suspeitar de que o desconhecido talvez quisesse chegar a um
entendimento. Era possível que nem concordasse com aquilo que seus companheiros
estavam fazendo. Ou será que apenas queria verificar a reação dos proprietários das
construções e das máquinas destruídas? Seu rosto desfigurou-se num riso horrível. Não
havia possibilidade de entrar em acordo com esses forasteiros.
O segundo queissassane desceu do muro. Arrastou-se pelo quintal, em direção ao
companheiro. As orelhas dos dois animais tremiam, dando a impressão de que estavam
em condições de captar qualquer ruído, por menor que fosse.
Sakori não pensou nem de leve na possibilidade de que ele e Emiondi pudessem ser
atacados pelos queissassanes. Conheciam seu cheiro, e por isso ele passara a ser parte de
seu meio ambiente. Quando vinha ao jardim para alimentá-los, nunca haviam tentado
saltar sobre ele. Com Emiondi as coisas eram diferentes. Mas Sakori esperava que as
feras atacassem o forasteiro antes do conde. Até lá o nobre teria oportunidade de pôr-se
em segurança no interior da casa.
O forasteiro voltou a movimentar-se. Deu mais um passo em direção ao conde e a
Sakori. O construtor viu-se obrigado a segurar Emiondi, pois este fez menção de sair em
desabalada carreira. O forasteiro fez um gesto tranqüilizador e ficou parado de novo.
Sakori sentiu o sangue agitar-se em suas veias, e a cabeça começou a zumbir.
Os queissassanes estavam deitados lado a lado atrás do forasteiro. Ainda não se
haviam aproximado o suficiente para arriscar o salto. Sakori desconfiou de que o
forasteiro já estivesse perdendo a paciência. Dali a alguns segundos chegaria ainda mais
perto. Se isso acontecesse, haveria o risco de os animais também derrubarem Sakori e o
conde no salto.
Quando os dois monstros voltaram a rastejar, Sakori sentiu-se aliviado. Suas garras
abriram sulcos escuros no chão. Sakori acompanhou com a respiração entrecortada a
redução progressiva da distância entre os animais e o forasteiro.
Emiondi soltou um som abafado. Parecia que não agüentaria a tensão. Os
queissassanes já haviam chegado bastante perto para dar o salto. Comprimiram seus
corpos ao solo e entesaram os músculos.
Nervoso, Sakori cravou a mão-garra na manta de Emiondi. O forasteiro ainda não
havia notado a presença dos animais.
Os queissassanes saltaram quase ao mesmo tempo. Seus corpos gigantescos
cortaram o ar com a velocidade de uma sombra. Seu impacto sobre o forasteiro coincidiu
com o grito estridente de Emiondi. O forasteiro caiu ao chão. Sakori soltou um berro de
triunfo e saltou sobre a liteira para acompanhar a luta.
Mas não houve nenhuma luta.
Aconteceu uma coisa inacreditável. Quando as bocas horríveis dos animais se
precipitaram sobre o desconhecido, que continuava deitado no chão, este desapareceu.
Pareceu que seu corpo se dissolvera. Rijo de pavor, Sakori olhava para o lugar em que,
segundos antes, estivera deitada a figura aparentemente indefesa. Até se poderia ser
levado a acreditar que o ser nunca existira!
Quando viram que a vítima, que acreditavam ter firmemente nas garras, conseguira
escapar, os queissassanes não pareciam menos espantados. Mas seu instinto de caça fora
despertado. Emiondi foi o primeiro que percebeu.
— Não — gritou, recuando aos tropeços. — Detenha os animais, Sakori!
Mas Sakori era incapaz de fazer algo. Acontecera muita coisa ao mesmo tempo.
Permaneceu imóvel sobre a liteira, à espera do ataque das feras.
***
Ras Tschubai estava tão concentrado na tarefa de provar suas intenções pacíficas
aos dois nativos, que o ataque dos dois animais o pegou de surpresa. Mas a experiência
do teleportador permitia-lhe compreender num relance qualquer situação que surgisse.
Durante a queda viu quem estava investindo contra ele. As bocas escancaradas
apareceram diante da viseira de seu capacete. Por estranho que pudesse parecer, não teve
medo. Pensou que os nativos talvez criassem os monstros como animais domésticos.
Bateu no chão, mas antes que as feras estivessem em cima dele, teleportou-se para o
telhado da casa, que desta vez não desabou. Não pôde deixar de sorrir quando olhou para
o quintal e viu quatro pares de olhos fixarem-se no lugar em que há pouco estivera
deitado.
Os animais logo se refizeram da surpresa e fizeram menção de atacar os dois
nativos. Tschubai pegou o desintegrador que trazia no cinto. O primeiro tiro, disparado
quase ao acaso, fez recuar as feras.
Antes que os queissassanes pudessem voltar ao ataque, Tschubai os enxotou com
outros tiros. Os nativos caíram ao chão, exaustos. A tensão constante fora uma carga
pesada demais.
“Provavelmente passarei à História dessa civilização como uma figura lendária”,
pensou Tschubai.
Os dois nativos levantaram os olhos para o lugar em que se encontrava. Tschubai
ativou o propulsor de seu traje de combate e desceu suavemente ao quintal.
— Bem, amigos — disse. — Talvez agora consigamos descobrir um meio de chegar
a um entendimento.
***
John Marshall e Yokida planaram em direção ao monte de destroços que ainda há
pouco fora um pavilhão alongado. Depois do ataque dos pos-bis não restara nada que
pudesse ser aproveitado. Os nativos que habitavam esta propriedade também haviam
fugido em pânico. Por um instante contemplaram em silêncio o quadro da destruição.
— Não se pode fazer nada — disse o telecineta, com a voz sombria. — Os robôs
destroem qualquer lugar em que tenha havido uma máquina a vapor.
— Ainda bem que não atacam os nativos — disse Marshall.
— Vamos chamá-los de foles — sugeriu Yokida. — Eles merecem o nome pelo
grande número de máquinas a vapor que possuíam. Parece que por aqui todos trabalham
um pouco na construção desses engenhos.
— É por isso que o senhor simpatiza com essa gente, Tama? — perguntou
Marshall, com um sorriso.
Yokida acenou com a cabeça. Estava muito sério.
— Imagine o que teria acontecido se a Humanidade tivesse sofrido uma invasão
como esta, quando nossa civilização ainda se encontrava neste estágio... O que
poderíamos ter feito no nosso desespero?
Com um pontapé Marshall atirou um pedaço de madeira carbonizada sobre o
montão de destroços. A guerra mortífera que os pos-bis travavam entre si já se estendia
aos planetas habitados por raças inocentes. O erro surgido no engaste hipertóictico fazia
com que a ação dos robôs não obedecesse a qualquer diretriz. Já não sabiam distinguir
entre amigos e inimigos. O plasma e o dispositivo hiperimpotrônico travavam um duelo
constante. Esse duelo era invisível, mas seus terríveis efeitos se revelavam nos ataques
que os exércitos dos pos-bis travavam uns contra os outros. No interior da nave
fragmentária caída, o governo continuava a ser exercido pelo plasma, mas este já não
sabia identificar as características fundamentais do inimigo. Provavelmente fazia com
que os robôs atacassem tudo que tivesse algo de mecânico.
Rhodan enviara Marshall e seus cinco companheiros para que desvendassem o
mistério da guerra dos pos-bis. Mas estes nunca chegaram no Mundo dos Duzentos Sóis,
pois haviam naufragado num planeta desconhecido.
Marshall deu-se conta de que a própria Via Láctea ainda era em grande parte
inexplorada. Grandes setores da mesma ainda não haviam sido descobertos. Nenhuma
nave terrana jamais havia penetrado nos mesmos. Teoricamente era possível que por ali
houvesse impérios estelares maiores que o Império de Árcon. Os terranos não tinham
muito tempo para esses vôos de exploração, pois naves estranhas penetravam na Via
Láctea, vindas das profundezas do espaço vazio que separa nossa Galáxia da nebulosa de
Andrômeda. Tais naves traziam ameaças e o Império Solar via-se obrigado a dedicar sua
atenção exclusivamente a esses barcos.
Havia os laurins, que sem dúvida vinham da nebulosa de Andrômeda. Os pos-bis
também haviam instalado bases nas profundezas do nada que separa as galáxias. Marshall
lembrou-se dos barcônidas, cujo mundo esfriado também estava realizando a longa
viagem através do infinito.
Um dia os terranos teriam que decidir-se a explorar intensamente a Galáxia, pois, do
contrário, poderiam ter surpresas desagradáveis.
O mundo no qual caíra a nave fragmentária pertencia à Via Láctea, mas não
constava dos catálogos da Frota Solar.
Um explosão violenta fez com que os pensamentos de Marshall retornassem ao
presente.
— Foi perto daqui — disse Yokida. — Somos obrigados a ficar inativos, enquanto
os robôs destroem uma máquina após a outra.
Atrás dos telhados, uma nuvem de fumaça subiu ao ar. Marshall receava que toda a
cidade pudesse ser consumida pelas chamas. Por outro lado, o fato de os pos-bis
pouparem os nativos o tranqüilizava. Por certo esta cidade não era a única que existia no
planeta. Os foles, nome que Yokida dera aos nativos, logo se recuperariam do golpe.
Cinco foles atravessaram correndo o quintal. Quando avistaram os dois terranos,
mudaram de rumo e fugiram por cima do muro. Yokida fez-lhes um sinal para que se
aproximassem.
— Isso não adiantará — disse Marshall. — Imagine o estado de ânimo em que se
encontram estes seres. Fogem de qualquer desconhecido que apareça diante deles. Não
acredito que consigamos explicar-lhes que não pertencemos ao grupo que está destruindo
suas máquinas.
Como se quisessem refutar suas palavras, os foles voltaram a aparecer em cima do
muro. Os dois mutantes fitaram os fugitivos com uma expressão de perplexidade. Estes
pareciam estar indecisos em cima do muro.
Subitamente viu-se um lampejo, e um dos nativos caiu no quintal. Marshall
estremeceu. O fole acabara de ser atingido pelo raio energético de uma arma dos pos-bis.
Os quatro foles que tiveram de assistir à morte do companheiro saltaram do muro.
Estavam desesperados.
— Os robôs agora também estão atirando contra os nativos — gritou Yokida.
Viram os crânios angulosos dos pos-bis que apareceram por cima do muro de pedra.
Todo um grupo participava da perseguição.
Marshall já não compreendia mais nada. A morte do nativo provocara uma raiva
fria em sua mente. Não havia nenhum motivo para disparar esse tiro. Os pos-bis
destruíram o muro com suas armas térmicas e penetraram no quintal.
Os foles fugiram apavorados por cima dos destroços.
Os pos-bis abriram fogo contra os dois mutantes. Se não fossem os campos de
absorção gerados por seus trajes de combate, os terranos teriam sido mortos
imediatamente. Marshall tirou um desintegrador e respondeu ao fogo. Yokida ligou o
defletor, para tornar-se invisível. Para os robôs, isso não adiantava muito.
— Vamos embora daqui. Já! — gritou Marshall pelo rádio de capacete.
Usando seu traje de combate, elevou-se, enquanto atirava ininterruptamente com
seu desintegrador, a fim de criar confusão entre os pos-bis. Parecia que o campo
defensivo mal conseguia suportar a carga a que estava sendo submetido. Yokida voltou a
tornar-se visível. Voava um pouco abaixo de Marshall. Quando passaram por cima da
casa, o fogo tornou-se menos intenso. Os pos-bis não tiveram outra alternativa senão
deixar que os homens que já acreditavam serem suas vítimas fossem embora.
— O que aconteceu agora? — perguntou Yokida, que ainda respirava com certa
dificuldade.
Marshall lançou os olhos para a cidade. Não tinha a menor dúvida de que todos os
robôs estavam fazendo caça aos foles. Houvera uma transformação no interior da nave
fragmentária.
Ao que parecia, o plasma perdera por completo o controle sobre o centro de
comando.
Face a isso, a vida dos nativos estava em perigo, e a dos seis terranos também.
Marshall lembrou-se de Van Moders, do Dr. Riesenhaft e do Dr. Bryant, que se
encontravam a bordo da nave avariada. Tornava-se necessário prestar-lhe socorro o mais
rápido possível. Desse momento em diante, todos os pos-bis que ainda se encontrassem
na nave passariam a caçar os homens!
O conflito que lavrava entre os pos-bis estava produzindo conseqüências
inesperadas nesse mundo. O plasma que era amigo dos homens acabara de sucumbir. O
dispositivo hiperimpotrônico passaria a travar uma luta sem compaixão contra tudo que
fosse orgânico...
***
Van Moders inclinou o corpo para a frente, como se prestasse atenção a um som
quase imperceptível. Suas mãos, protegidas pelas luvas espessas do traje de combate,
estavam pousadas sobre a chapa de revestimento do sistema central.
— Morreu — disse, e sua voz refletiu certo cansaço.
Riesenhaft teve a impressão de ver à sua frente um homem que perdera uma
batalha.
— Morreu? — interrogou o homenzinho.
— A última centelha de vida existente no plasma que se encontra nesta sala de
comando acaba de extinguir-se — informou Van Moders. — O plasma não tinha
condições de resistir ao esforço. Daqui por diante, o poder de comando será exercido
exclusivamente pelo dispositivo hiperimpotrônico dos cérebros desta nave.
Riesenhaft procurou imaginar como seria o plasma morto que se encontrava no
interior dos sistemas centrais. Não conseguiu estabelecer contato com esse estranho
organismo. Mas Van Moders conseguira estabelecer contato antes que o plasma
morresse...
— De qualquer maneira descobrimos muita coisa — disse Riesenhaft. — Já
sabemos o que aconteceu no Mundo dos Duzentos Sóis.
Durante sua palestra com o plasma, Van Moders realmente conseguira descobrir
alguns fatos importantes. A suspeita de alguns cientistas terranos, segundo os quais o
plasma não sabia praticamente nada sobre a programação do ódio, encontrara sua
confirmação. Quando solicitou a desativação do circuito do ódio, o organismo não sabia
o que estava fazendo. Van Moders e o Dr. Riesenhaft ficaram cientes de que, embora a
programação do ódio não tivesse influência direta sobre as funções técnicas do regente
hiperimpotrônico, a mesma era indispensável ao perfeito funcionamento do engaste
hipertóictico.
Depois que Perry Rhodan e Atlan haviam conseguido desativar o circuito do ódio,
uma fonte de erros surgiu na conexão mecânico-biológica.
Isso produziu certa oscilação no engaste, e a mesma impediu que o plasma
assumisse o comando pleno do cérebro hiperimpotrônico. O poder era exercido
alternadamente pelo plasma e pelo sistema de computação.
— Pois é — disse Van Moders, pensativo. — Já sabemos por que os pos-bis
investiram uns contra os outros. A segurança interna dos dois elementos de comando deu
origem a tamanha confusão na expedição das ordens dirigidas às numerosas estações
secundárias, que os respectivos cérebros de comando não poderiam deixar de
enlouquecer.
— Concordo com o senhor — disse Riesenhaft num tom pacato que não lhe era
habitual. — Em alguns planetas extinguiu-se o ódio ao orgânico, e em compensação
surgiu o ódio contra tudo que é mecânico. Foi esta a autodestruição dos pos-bis que se
verificou em muitos mundos.
Van Moders empurrou-se com ambas as mãos para afastar-se do sistema central.
Não era muito mais alto que o Dr. Riesenhaft, mas mesmo no traje de combate parecia
muito mais robusto que o cientista franzino.
— É bem verdade que em muitas bases as condições continuaram inalteradas, já
que os respectivos centros de comando reagiram como deviam. Apenas, nessas bases não
pôde ser evitada certa estagnação, já que nem o computador nem o plasma puderam
desenvolver suas atividades — Van Moders cruzou os braços. — É por isso que vários
mundos dos pos-bis não participam da guerra.
— Quer dizer que, em sua opinião, o plano original do plasma só fracassou em
virtude da oscilação do engaste? — perguntou Riesenhaft.
— Tenho certeza absoluta — disse Moders. — Temos de preparar-nos para
acompanhar a guerra dos pos-bis até o fim amargo, pois não há nesta Galáxia nenhum
poder capaz de evitar essa desgraça.
— Quer dizer que nunca teremos os pos-bis como aliados? — perguntou Riesenhaft
em tom triste.
— É possível que os poucos que sobrarem venham a ser nossos aliados —
respondeu Van Moders resignado.
— Quais serão as conseqüências da morte do plasma que se encontra nesta nave? —
indagou o Dr. Riesenhaft, com desânimo. — Será que o centro de computação
positrônica, sé é que o mesmo ainda funciona, poderá causar-nos dificuldades?
— Isso é bem possível. É de se esperar que os pos-bis que tripulavam esta nave
reiniciem a guerra contra tudo que é orgânico.
Riesenhaft não teve necessidade de outras explicações. Vira a coluna de robôs
entrar na cidade. Naquele momento, todos — especialmente os nativos — defrontavam-
se com um perigo iminente.
— Será que não valeria a pena tentar desligar o dispositivo hiperimpotrônico desta
nave? — perguntou Riesenhaft.
Van Moders sacudiu a cabeça.
— Isso levaria algumas horas — disse. — E até lá, os pos-bis já estariam de volta
para proteger seu computador.
Num movimento resoluto, Riesenhaft tirou o desintegrador do cinto.
— Nesse caso não nos resta outra alternativa senão destruir o dispositivo
hiperimpotrônico — exclamou em tom zangado. Levantou a arma e fez pontaria.
— Espere aí! — gritou Van Moders, dando uma pancada na mão do cibernético e
derrubando o desintegrador, que caiu ruidosamente ao chão.
Por um momento pareceu que Riesenhaft pretendia precipitar-se sobre o
companheiro, que era muito mais forte que ele. Mas logo recuperou o autocontrole.
— Se usarmos a violência para destruir as coisas por aqui — disse Van Moders, em
tom tranqüilo — teremos de contar com a possibilidade de interromper o suprimento
energético do hipertransmissor dos pos-bis. Isso nos privaria da única chance de pedir
socorro às naves terranas.
Riesenhaft deixou cair os braços, exausto.
— Tem razão — disse com a voz débil. — Deveria ter pensado nisso.
Van Moders virou-se e apontou para a entrada da sala de controle.
— Vamos começar uma espécie de corrida contra o tempo — disse.
Riesenhaft fitou-o com uma expressão indagadora.
— Tudo depende de quem seja mais rápido — disse Van Moders. — Talvez
sejamos nós, na procura do hipertransmissor, talvez sejam os pos-bis, no regresso à nave.
Riesenhaft seguiu Van Moders, que se dirigiu à saída. Este tinha razão quando
aludia a uma corrida. No entanto, não estavam lutando apenas contra o tempo, mas
também contra a morte!
9

Sakori levou alguns segundos para compreender que não iria morrer. O
desconhecido que se encontrava sobre o telhado havia atirado contra os queissassanes,
pondo-os em fuga. Para o construtor, o meio ambiente em que se achava havia
desaparecido. A única coisa que via era esse forasteiro inconcebível, que saiu planando
do telhado como se não estivesse sujeito à lei da gravidade.
O Conde Emiondi emitiu sons que não faziam o menor sentido. Deixou pender a
cabeça. Sakori pensou que talvez o conde pudesse enlouquecer, mas não conseguiu
concentrar-se nessa idéia, pois a aproximação do desconhecido prendia toda sua atenção.
Quando o intruso se aproximou o suficiente para que Sakori pudesse ver o rosto
embaixo do capacete, ele teve certeza de que não era um dos seres metálicos que
destruíram seu pavilhão. Sakori não sabia por que, mas o desconhecido parecia ter mais
vida, e dele irradiava alguma coisa que lhe permitiu controlar o medo. Deveria tê-lo visto
desde o início, mas o ódio deixara-o cego. Olhara tanto para os queissassanes que nem
tivera tempo de “estudar” o desconhecido.
Este pousou no chão a poucos metros do lugar em que estava o construtor e
levantou o braço.
Naquele momento, os últimos vestígios de desconfiança abandonaram o construtor
de máquinas a vapor. Sakori fez o gesto decisivo. Também levantou o braço.
O desconhecido riu. Seu rosto não tinha pêlos, mas era muito escuro. Quando o riso
do ser que se encontrava à frente de Sakori se tornou mais intenso, uma fileira de dentes
brancos brilhou em seu rosto. Sakori também sorriu.
Naquele momento, o Conde Emiondi deu um salto selvagem em direção ao
desconhecido, como se quisesse matá-lo a pauladas. Mas não encontrou nenhum alvo em
que pudesse desferir seus golpes. O desconhecido dissolveu-se no ar ou foi engolido pelo
solo. Emiondi recuou cambaleante, como se tivesse levado uma terrível pancada.
— Pare com isso — fungou Sakori, que receou que a atitude do conde pudesse levar
o desconhecido a modificar seu comportamento.
No mesmo instante o homem de rosto negro voltou a aparecer no mesmo lugar. O
sorriso continuava em seu rosto. Emiondi, que tropeçara sobre a liteira, teve de fazer um
grande esforço para levantar-se. Não proferia mais os sons confusos que haviam saído de
sua boca.
Sakori ficou esperançoso de que o conde tivesse recuperado o autocontrole, mas
bastou um olhar de lado para que visse os olhos vidrados do nobre e a expressão apática
de seu rosto, que o convenceram do contrário. O espírito de Emiondi não resistira à
carga.
De repente Sakori sentiu o desejo de contar ao desconhecido o que lhe acontecera.
Tinha certeza de que ele compreenderia seus receios e preocupações.
— Vamos juntar-nos na luta contra os seres metálicos — disse com a voz áspera. —
Havemos de derrotá-los.
O homem não o compreendeu, pois abanou a cabeça como quem se lamenta. De
repente, dobrou para trás o estranho capacete que trazia sobre a cabeça e comprimiu as
palmas das mãos contra o rosto. Por alguns segundos ficou parado nessa posição. Sakori
observava-o em silêncio. O capacete continuava aberto. O desconhecido trazia um
estranho pelego sobre a cabeça, cortado segundo um modelo bem definido.
O estranho disse alguma coisa para Sakori, mas o construtor não conseguiu
descobrir nenhum sentido nos sons guturais.
Antes que pudessem prosseguir nos esforços de comunicação, um grupo de pos-bis,
vindo do outro lado do quintal, aproximou-se. Assustado, Sakori encostou-se ao homem
mais alto que ele.
— Só estão interessados em suas máquinas — disse Tschubai, embora soubesse que
o nativo não o compreendia.
Trêmulo, Sakori encostou-se mais fortemente ao teleportador.
Os pos-bis pararam, indecisos, mas logo prosseguiram em direção ao pequeno
grupo.
— Vêm em nossa direção — disse Tschubai de si para si. — Por que será?
Apressou-se em fechar o capacete e ativar o campo defensivo. A atmosfera do
planeta era respirável, mas diante dos robôs todo cuidado era pouco..
Levou apenas dois segundos para descobrir que sua idéia fora acertada. Os pos-bis
submeteram-no a um fogo implacável. Com um movimento violento Tschubai arrastou o
nativo, colocando-o atrás de si. Os primeiros tiros foram absorvidos pelo campo
defensivo. O Conde Emiondi foi atingido e caiu de costas sobre a liteira, que se quebrou
ruidosamente.
Tschubai respondeu ao fogo, mas o número dos pos-bis que se encontravam no
quintal era muito grande. Lançou um olhar para o nativo que fora atingido e concluiu que
já não havia como ajudá-lo. Segurou o fole que se encontrava atrás dele e concentrou-se
no salto de teleportação. Imediatamente após isso, materializaram-se junto à floresta que
se estendia atrás da cidade. Pasmo, o nativo fitou Tschubai com os olhos arregalados.
As casas mais próximas ficavam a quase cem metros dali Algumas estavam em
chamas. Multidões de nativos vinham pelas ruas. Ao que tudo indicava, procuravam a
proteção da floresta. Tschubai notou que o nativo a seu lado se afastou. Porém logo
voltou com um tronco de árvore embaixo do braço. Tschubai viu que ele o tirara de uma
grande pilha que ficava junto ao bosque. Naquele momento, centenas de foles já corriam
pela área livre que se estendia entre a cidade e a floresta...
E Tschubai viu os primeiros pos-bis...
Seus corpos metálicos brilhavam à luz das chamas. Atiravam sem compaixão contra
qualquer nativo que estivesse nas proximidades. Exasperado, Tschubai contemplava a
cena que se desenrolava diante de seus olhos. Os primeiros nativos chegaram à floresta.
Exaustos, deixavam-se cair atrás das árvores. Tschubai sabia que nem ali estariam
protegidos contra os robôs.
O nativo a seu lado berrou alguma coisa para os foles que se aproximavam. Dali a
pouco, Tschubai viu que muitos dos “homens” de estatura baixa também se muniram dos
estranhos troncos.
“Será que vão atacar os robôs com isso?”, pensou Tschubai, apavorado.
Uma das casas que ficavam na periferia da cidade desmoronou com grande
estrondo. As fagulhas subiram ao céu e a cinza foi tangida pelo vento. Tschubai teve a
impressão de sentir o cheiro de queimado, embora seu capacete estivesse fechado e o ar
que respirava fosse fornecido pelo equipamento embutido no traje de combate. O número
dos nativos que abandonavam a cidade em estado de pânico crescia cada vez mais.
Os companheiros de Tschubai, que carregavam os troncos, formaram fileira dupla
junto às primeiras árvores. O africano pegou o desintegrador. Não poderia permitir que os
nativos fossem trucidados que nem animais, pelo simples motivo de não saberem que os
pos-bis eram tão perigosos.
Tschubai refletiu intensamente sobre como poderia levar os habitantes da cidade a
fugir mato a dentro.
Mas, antes que pudesse agir, viu o que os nativos pretendiam fazer com os troncos.
Enfiaram cunhas compridas nos mesmos. Encostaram mechas acesas às aberturas assim
criadas. Os troncos pegaram fogo. Línguas de fogo de dez metros saíram dos mesmos.
“Os troncos estão cheios de gás combustível”, pensou Tschubai. “O elevado teor de
oxigênio da atmosfera faz com que queimem desse jeito.”
Alguns dos troncos explodiram. Os homens que os carregavam foram atirados para
longe.
Uma trêmula parede de fogo parecia ter surgido junto à floresta. Os primeiros pos-
bis já se haviam aproximado bastante. Logo se veria qual seria sua atitude. No interior da
parede de fogo, a temperatura devia ser extremamente elevada. Tschubai fazia votos de
que os aparelhos de localização dos robôs, por serem muito sensíveis, recuassem diante
disso.
Os robôs pararam. Atiraram para dentro das chamas, mas não acertaram em nada.
As brechas que surgiam eram preenchidas imediatamente pelos nativos. De repente estes
soltaram gritos de triunfo e avançaram em direção aos pos-bis, carregando os troncos.
Ras Tschubai sentiu que o coração quase lhe arrebentava o peito.
Também saiu correndo na direção dos robôs. Quando os pos-bis bateram em
retirada, soltou um grito de triunfo. Era um quadro fantástico. Os nativos travavam uma
luta selvagem e desesperada pela conservação de sua civilização.
Mas os pos-bis acabariam por encontrar um meio de atingir seu objetivo. Era o
aspecto trágico da batalha. Tschubai experimentou uma sensação de amargura. Não
haveria um meio de preservar a cidade e seus habitantes?
Tropeçou no cadáver de um nativo. Pegou um tronco, que continuava a arder, e saiu
correndo. Devia ajudar, enquanto houvesse uma possibilidade...
***
O Dr. Bryant não sabia por quanto tempo ficara inconsciente. Teve uma vaga
lembrança de que o Dr. Riesenhaft se aproximara dele e dissera alguma coisa sobre um
hipertransmissor que ele e Van Moders pretendiam procurar. O Dr. Bryant sentiu uma
dor cruciante na espinha, que praticamente o impediu de fazer qualquer movimento.
Moveu cuidadosamente os lábios para abrir a pequena trava que ficava embaixo do
visor do capacete e tirou uma porção de alimento concentrado. Sentiu o comprimido
dissolver-se entre os dentes. Não sabia onde o haviam deixado, mas tinha certeza de que
não se encontrava no interior da nave. Muito acima de sua cabeça estendia-se um céu
límpido. Provavelmente estava deitado em algum lugar, na superfície externa da nave
fragmentária.
A ânsia de ver os arredores tornava-se cada vez mais forte.
O traje de combate causava-lhe um constrangimento que quase chegava a ser
aflitivo.
“Seria bom abrir o capacete”, pensou. “O que acontecerá se a atmosfera for
venenosa?”
Devagar, muito devagar, levou a mão à cabeça. Pouco lhe importava que o ar a ser
respirado estivesse impregnado de substâncias venenosas. Apenas queria que o vento lhe
afagasse o rosto, enquanto ia observando o ambiente em que se encontrava. Qualquer
movimento rápido fazia com que a dor o fustigasse como uma agulha de fogo. O suor
começou a porejar em sua testa. De repente a região da nuca pareceu paralisada. Teve de
fazer um grande esforço para abrir o fecho do capacete. As dores percorriam seu corpo a
intervalos regulares, mas continuou a lutar valentemente contra o estado de inconsciência
que ameaçava apoderar-se dele.
Depois de algum tempo procurou abrir o capacete. Puxou-o para trás num
movimento repentino, e tudo ficou preto diante de seus olhos. Fechou os olhos, enquanto
seu corpo tremia de dores.
O vento chegou. Afagou seu rosto, da maneira que imaginara. O ar era limpo e
agradável. O Dr. Bryant apoiou-se nos cotovelos e olhou em torno. A dor latejava em
suas costas, mas de repente tornou-se suportável.
Conforme imaginara, estava deitado na face externa da nave dos pos-bis, quase
totalmente destruída. Haviam-no colocado entre duas esferas de metal, onde estaria em
relativa segurança. Por entre essas esferas podia olhar para o resto da nave.
E, por ali mesmo, viu os dois pos-bis que se aproximavam.
A maneira de se deslocarem em direção ao lugar que fora escolhido para protegê-lo
fez com que o Dr. Bryant percebesse imediatamente que suas intenções não eram
amistosas. Não sabia o que teria feito se estivesse em perfeita forma.
Provavelmente sairia correndo. Mas, no estado em que se encontrava, isso não era
possível. Nem sequer poderia arriscar-se a ligar o propulsor de seu traje de combate e sair
voando.
Conseguiu tirar o desintegrador do cinto. Apontou a arma e esperou. Os pos-bis
passaram por uma depressão e saíram de seu campo de visão. Mas logo voltou a ver suas
cabeças.
O Dr. Bryant não sentiu nem um pouco de medo e não pensou na possibilidade de
que poderia morrer. Van Moders e Riesenhaft encontravam-se no interior da nave, onde
estavam à procura do transmissor. Se conseguisse desviar a atenção dos pos-bis, os dois
cibernéticos teriam muito mais tempo. O Dr. Bryant não sabia qual era o motivo que
levou os robôs, de repente, a investirem contra os terranos. No momento isso não tinha
muita importância.
O Dr. Bryant fez pontaria e atirou. Um dos robôs caiu para o lado, girou sobre o
próprio eixo e escorregou para dentro da depressão. Um sorriso feroz surgiu no rosto de
Bryant.
O segundo pos-bi disparou sua arma contra o ferido. O campo defensivo absorveu
quase totalmente o efeito do impacto, mas Bryant perdeu o apoio dos cotovelos e caiu
pesadamente sobre as costas. Por pouco a dor não o fez perder os sentidos. Ouviu sua
própria voz gritar alguma coisa que não fazia sentido. Mas, no mesmo instante, voltou a
apoiar-se sobre os cotovelos e atirou. Porém sua mão tremia tanto que não conseguia
acertar. O pos-bi foi se aproximando. Passou exatamente entre as esferas de metal, como
se possuísse um dispositivo automático de controle de trajetória. Bryant atirou mais duas
vezes e voltou a ser atingido. Desta vez não se ergueu mais. Não tinha forças para isso.
Ficou deitado calmamente de costas e lançou os olhos para o céu límpido.
O pos-bi logo estaria a seu lado para destruí-lo de vez. O Dr. Bryant fechou os
olhos. Não queria ver a morte acima de sua cabeça.
De repente ouviu um ruído de metal batendo contra metal. Abriu os olhos. O pos-bi
não estava por perto. Cobrou a coragem e levantou a cabeça. O robô havia desaparecido.
Em compensação dois vultos aproximavam-se do lugar em que se encontrava.
— Olá, doutor! — disse Marshall, enquanto voltava a guardar o desintegrador no
cinto. — Vejo que resolveu respirar um pouco de ar puro.
O sorriso de Bryant transformou-se numa careta de dor.
— O senhor voltou no momento exato — disse num cochicho. — Conseguiu dar
cabo do “sujeito” que avançou contra mim?
— Está caído lá embaixo — disse Yokida, tirando a resposta da boca do telepata.
— Atirei-o para dentro da depressão.
A calma com que foram pronunciadas estas palavras produziu uma agradável
sensação de alívio.
— Infelizmente isso não resolve o problema dos pos-bis — acrescentou Marshall.
— A tropa está voltando da cidade e dirigi-se para cá.
O Dr. Bryant soltou um suspiro e deixou-se cair para trás.
— O que vamos fazer? — perguntou. — Os dois estão na nave. Procuram localizar
o hipertransmissor.
Marshall olhou para o vale. Seu rosto assumiu uma expressão séria.
— Se não andarem depressa, teremos de encontrar um meio de deter os robôs.
— Onde está Tschubai? — perguntou o Dr. Bryant, falando com dificuldade.
— Continua na cidade. Está ajudando os nativos — respondeu Marshall e fez um
sinal para Yokida. — Fique com o doutor Bryant, Tama. Tentarei ajudar Van Moders e
Riesenhaft a localizar o transmissor. Se os pos-bis se aproximarem mais, avise
imediatamente pelo rádio de capacete.
— Está bem, sir — confirmou o telecineta. — É possível que, neste meio tempo,
Ras apareça por aqui.
Marshall afastou-se apressadamente.
— Como se sente, doutor? — perguntou Yokida, em tom amável.
Bryant notou uma expressão de confiança nos olhos escuros do japonês.
— Estou melhor — disse com a voz áspera.
Yokida encostou-se a uma das esferas de metal e olhou para o vale. Estava à espera
dos pos-bis.
***
Van Moders tinha uma idéia bem definida de como era um hipertransmissor dos
pos-bis, mas foi por puro acaso que a confirmou. Quando estavam atravessando um dos
inúmeros corredores, o Dr. Riesenhaft descobriu um buraco na parede.
— Olhe — gritou para Van Moders. — O impacto produziu uma fenda neste lugar
— aproximou-se e olhou pela mesma. — Vejo um recinto muito grande.
Van Moders colocou-se a seu lado e enfiou a cabeça na abertura criada pela força
do impacto.
— A sala ao lado está iluminada — constatou.
Passou os olhos pelo lugar e descobriu o transmissor na extremidade oposta do
recinto.
— Temos de encontrar um meio de entrar ali. Acho que o transmissor está lá dentro.
— A abertura é muito estreita — disse Riesenhaft, em tom de ceticismo. —
Precisamos encontrar a entrada propriamente dita.
— Deve ficar no andar de cima — resmungou Van Moders. — Recue um pouco,
doutor. Aumentarei a abertura.
Retiraram-se pelo corredor. Van Moders puxou a arma térmica e apontou para o
lugar em que a parede fora danificada. A incandescência do raio atingiu o metal, que
começou a derreter em poucos segundos. O metal fundido pingava no chão.
— Abrirei uma entrada com o calor — disse Van Moders. — Dessa forma não
teremos necessidade de procurar a porta.
Esperaram que as bordas recortadas esfriassem um pouco e entraram na sala de
rádio.
— Está vazia — disse Van Moders alegre, no momento em que estava passando
pela abertura. — Resta saber se o equipamento continua a receber a necessária energia.
Riesenhaft vivia olhando para trás. Até parecia que tinha medo de que os pos-bis o
perseguissem.
— O senhor acredita que conseguiremos manipular o transmissor? — perguntou.
— Eu consigo — disse Van Moders, em tom de autoconfiança. — Afinal, não é a
primeira vez que me encontro numa nave fragmentária. O sistema não é mais complicado
que o nosso.
Chegaram ao transmissor. Van Moders imediatamente se pôs a examiná-lo.
— O suprimento energético está em ordem — constatou, satisfeito. — Deverá dar
certo. Regularemos o transmissor para o pedido de socorro que combinamos. Alguma
nave de patrulhamento há de captar o impulso e realizará a determinação goniométrica do
local em que foi expedido. Depois disso, só nos restará aguardar a chegada de Rhodan.
— Isso parece muito simples — disse Riesenhaft, em tom irônico.
Van Moders não lhe deu atenção. Pôs-se a desenvolver uma atividade febril. Suas
mãos treinadas mexeram nos controles. Por várias vezes teve de parar para refletir, mas
Riesenhaft preferiu não incomodá-lo.
Depois de algum tempo, Van Moders endireitou o corpo. Havia uma expressão
pensativa em seu rosto.
— Há algum problema? — perguntou Riesenhaft.
— Há, sim — respondeu Van Moders. — Não sei se o dispositivo hiperimpotrônico
deixa passar nossa mensagem. Não se pode excluir a possibilidade de que suspenda o
fornecimento de energia para o transmissor.
— Se fizer isso, perderá o contato com os robôs — ponderou Riesenhaft.
— Não estou certo — disse Van Moders, com um olhar para o transmissor. —
Talvez o hipertransmissor possua um suprimento autônomo de energia. Se for assim,
estaremos numa enrascada.
Os receios de Van Moders quase chegavam às raias da superstição. Na sua opinião
tudo correra bem demais. Estava plenamente convencido de que ainda haveria algum
imprevisto.
Ao que parecia, Riesenhaft ignorava o motivo das preocupações de Van Moders.
— Tenho certeza de que seremos favorecidos pela sorte — disse, dirigindo-se a Van
Moders.
O cientista não teve tempo de responder, pois, naquele momento, a voz de Marshall
soou nos alto-falantes de capacete.
— Já estou na nave — disse o telepata. — Vou ajudá-los a procurar o transmissor.
Van Moders esperou um instante e disse em voz alta:
— Isso não é necessário. Já ligamos o hipertransmissor. Se não ocorreu nada de
anormal, o primeiro impulso já está a caminho.
Ouviram o suspiro de alívio do telepata.
— Nesse caso devemos abandonar a nave o mais rápido possível — decidiu. — Os
pos-bis estão voltando da cidade. Já se esqueceram da raiva que sentiam pelas máquinas a
vapor e voltaram a combater a vida orgânica.
— Era o que eu imaginava — afirmou Van Moders. — Depois da morte do plasma,
o dispositivo positrônico assumiu o controle da nave. Posso perfeitamente imaginar que
nós somos o motivo do regresso dos pos-bis. O cérebro quer afastar-nos da nave — fez
um sinal para o Dr. Riesenhaft. — Venha, doutor. Vamos retirar-nos.
A nave fragmentária era de formato cúbico e o comprimento de suas arestas quase
chegava a dois quilômetros. Em seu interior havia numerosos corredores e recintos de
aspectos confusos. Desde que se agisse logicamente, a saída poderia ser encontrada em
pouco tempo.
Apesar disso, até mesmo um homem inteligente como Van Moders gastou algum
tempo nas constantes paradas para orientar-se. Riesenhaft, que nunca estivera a bordo de
uma nave fragmentária, perguntou a si mesmo se Van Moders não demoraria demais em
encontrar o caminho que levava para fora da nave.
Seria terrível azar se os pos-bis já os estivessem esperando na saída, com as armas
apontadas.
***
Os contornos da cidade destacaram-se que nem um esqueleto sombrio contra o céu
noturno. Em vários lugares os destroços ainda fumegavam e vez por outra se ouvia o
estrondo de uma casa que desmoronava.
Sakori caminhou lentamente pela rua comprida que levava à coluna das décadas.
Até parecia milagre, pois continuava intacta.
O pêlo de Sakori estava chamuscado e sua coxa direita apresentava uma grande
queimadura.
A cidade parecia tranqüila. Os nativos reuniam-se em grupos e fitavam tristemente
os destroços, que eram a única coisa que restara de suas casas.
Sakori não parou. Os seres metálicos haviam abandonado a cidade, mas talvez
voltassem. Sakori sabia perfeitamente que não poderiam enfrentar o poderoso inimigo
por muito tempo com os troncos de eprit.
Lembrou-se do desconhecido de pele negra que lhes prestara ajuda. O mesmo
abandonara Sakori há alguns segundos, mas “deixara claro” que voltaria e ajudaria na
reconstrução da cidade.
Bem mais tarde, quando o sol já estava desaparecendo, Sakori chegou à sua
propriedade. Constatou que sua residência também fora consumida pelas chamas. O
aspecto do jardim era desolador. Sakori passou por cima dos destroços do portão e sentou
no muro. Deixou que o silêncio penetrasse em sua mente e pôs-se a refletir. Depois de
algum tempo levantou-se e revolveu os destroços do pavilhão, à procura de sua
ferramenta.
Quando encontrou a pá, dirigiu-se à liteira de Emiondi. O conde estava deitado
obliquamente em cima da mesma e seus olhos muito abertos espelhavam a morte.
Sakori pôs-se a trabalhar em silêncio. Cavou bem ao lado da liteira e não fez
nenhuma pausa. Quando a borda da cova chegou aos quadris de Sakori, ele saiu e largou
a pá.
Arrastou o cadáver do conde para fora da liteira e deixou que escorregasse para
dentro da cova. Espantou-se por ser Emiondi tão leve. Antes de fechar a cova, Sakori
voltou para junto da liteira e procurou a raspadeira de nuca de Emiondi. Encontrou-a e
jogou-a dentro da cova.
Fitou a sepultura por algum tempo, mergulhado em reflexões, e começou a enchê-la
de terra. O corpo do conde logo ficou coberto. Quando Sakori concluiu seu trabalho já
era noite fechada.
A cidade, que de noite costumava fervilhar de vida, estendia-se num silêncio total.
“Quem tem de cavar sepulturas não tem motivo para festejar”, pensou Sakori.
Não conseguiu sentir mais nenhuma amargura ou ódio. Era quase como se a cidade
tivesse sido atingida por um fenômeno natural, do qual não se podia modificar mais nada.
Sakori pisou a terra sobre a sepultura de Emiondi. Naquela noite dormiria ao
relento. E, mesmo na noite seguinte e em muitas outras, teria que dispensar seu ninho de
folhas.
Mas o tempo passaria. A cidade voltaria a alegrar-se de noite, e Sakori possuiria um
pavilhão e uma residência. Quando isso acontecesse, construiria máquinas a vapor com
dois cilindros.
***
Ras Tschubai enfiou na boca uma porção de alimento concentrado e deixou que se
desmanchasse lentamente sobre a língua. Os pos-bis haviam abandonado a cidade.
Tschubai sabia que isso não representava um êxito dos nativos. Alguma coisa levara os
robôs a se dirigirem à nave destroçada.
No momento não poderia fazer nada pelos nativos. Dentro de uma hora, o sol
desceria abaixo da linha do horizonte. Passariam a primeira noite num planeta
desconhecido.
Seria preferível que antes disso se reunisse aos companheiros.
Tschubai concentrou-se numa teleportação que o levasse aos destroços da nave e...
pousou tranqüilamente na face externa da mesma.
— Tschubai falando — disse pelo rádio de capacete. — Os robôs estão a caminho.
— Olá, Ras! — exclamou Marshall. — Onde está?
— Na metade inferior da face externa — informou Tschubai.
Olhou em torno, à procura de um ponto que pudesse servir de marco, e descobriu
uma excrescência de cem metros de altura, cuja espessura não era superior à de um braço
humano. Mas era bastante duvidoso que Marshall estivesse bastante próximo para
enxergar a agulha metálica.
— Vou orientá-lo pelo rádio de capacete — sugeriu o chefe dos mutantes.
Marshall conduziu-o habilmente na direção em que ele mesmo se encontrava.
Tschubai percorreu o último trecho em mais uma teleportação. Marshall, Yokida e o Dr.
Bryant estavam reunidos.
— Onde estão Van Moders e Riesenhaft? — perguntou Tschubai.
— Estão na nave. Ligaram o hipertransmissor dos pos-bis — informou Marshall.
O teleportador olhou fixamente para o vale, onde os robôs se aproximavam
rapidamente.
— Talvez seja melhor tirá-los de lá — disse. — Procure estabelecer contato
telepático com Van Moders, para que eu tenha como orientar-me.
Marshall concentrou-se. Depois de algum tempo, um sorriso surgiu em seu rosto.
— Consegui! — exclamou. — Tudo bem, Ras. Van Moders abriu um buraco na
parede bem atrás do senhor. Esta indicação basta?
— Vou tentar — prometeu o africano e desapareceu quase no mesmo instante.
Não demorou em voltar com o Dr. Riesenhaft, que parecia um tanto perplexo.
— Ainda falta Van Moders — disse Tschubai.
— O transmissor está funcionando — informou o Dr. Riesenhaft, depois que o
teleportador voltou a desmaterializar-se. — Van Moders não teve nenhum problema em
usá-lo para os fins que temos em vista.
Pela primeira vez Marshall soltou um suspiro de alívio. Já havia uma esperança de
que pudessem concluir a operação com um êxito limitado. Van Moders descobrira o que
tinha acontecido no Mundo dos Duzentos Sóis. Dessa forma haviam alcançado, embora
de forma indireta, o objetivo da expedição.
Tschubai apareceu com Van Moders, cujo rosto se abria num sorriso largo,
interrompendo as reflexões de Marshall.
— Obrigado, Ras — disse Van Moders. — O senhor me livrou do trabalho
demorado de procurar a saída.
— Acho que vocês não estavam no caminho certo — disse Tschubai. —
Provavelmente se teriam perdido.
— Isso é impossível — objetou o cientista. — Sempre costumo agir assim. Estava
em plenas condições de encontrar um atalho.
Tschubai soltou uma risadinha sarcástica, mas seu rosto logo voltou a ficar sério.
— Talvez seja conveniente levar o doutor Bryant a um lugar seguro — sugeriu. —
Depois disso poderemos esconder-nos nas proximidades da nave.
Marshall olhou para o céu.
— Já é quase noite — disse. — Acho que devemos procurar um lugar seguro. Daqui
a pouco, o ambiente por aqui se tornará bastante desagradável. Está certo, Ras, o senhor
poderá cuidar do doutor Bryant. Nós nos arranjaremos com os propulsores dos trajes de
combate.
Assim que Tschubai desapareceu, levando o Dr. Bryant, os quatro homens
desprenderam-se da face externa da nave fragmentária e voaram lentamente em direção
ao vale. Lá embaixo, os pos-bis marchavam em direção à nave destroçada. Ao olhar para
eles, Marshall de repente sentiu uma profunda antipatia pelos antigos habitantes do
planeta Mecânica, que eram os verdadeiros causadores dessa guerra cósmica, já que
haviam construído os primeiros exemplares desses inigualáveis robôs.
“Ninguém deve criar qualquer coisa que seja mais poderosa que seu criador”,
pensou Marshall.
Olhando para os pos-bis, lembrou-se de que eles carregavam consigo as almas
mortas de seus inventores, que não encontravam a paz.
Talvez fosse bom que os pos-bis se destruíssem a si mesmos. Não se enquadravam
na imagem que Marshall formara das raças astronautas. Os laurins lhes haviam concedido
uma pseudovida, ao inocular-lhes o plasma. Mas, na opinião de Marshall, aqueles robôs
constituíam um anacronismo!
10

As naves da Frota Solar apareceram na manhã do dia seguinte.


Antes mesmo de vê-las, Marshall captou uma mensagem telepática de Gucky, que
perguntou se tudo estava bem. O rato-castor parecia mal-humorado. Provavelmente
sentia-se triste por não ter participado dessa aventura inesperada. Marshall relatou em
palavras lacônicas os acontecimentos mais importantes.
O grupo de naves terranas entrou em órbita. Gucky avisou que a Teodorico
colocaria no espaço um grande barco. Entre os ocupantes da nave, estariam Rhodan e ele
mesmo.
O seis homens haviam passado a noite na borda da floresta. Todos haviam dormido,
com exceção do Dr. Bryant, que sentia dores cada vez mais intensas. Marshall acordou
Yokida e Van Moders.
— Rhodan está para chegar — disse em tom tranqüilizador, quando Yokida fez
menção de se pôr de pé de um salto. — A Teodorico já enviou um barco espacial. Não
demorarão a chegar.
Van Moders deu um salto de alegria.
— Em homenagem à nossa salvação, tomo a liberdade de batizar este mundo com o
nome de planeta Van Moders — disse. — Não faço isto por presunção, mas apenas para
adiantar-me a Gucky, que tem tanta vontade de dar seu nome a um planeta.
Os homens riram. Até mesmo o Dr. Bryant, cujo rosto estava menos pálido, tentou
um sorriso.
— Os tripulantes de uma das naves poderão cuidar da cidade dos nativos que foi
destruída — disse Tschubai. — Acho que devemos isso a esse povo.
— Acho que Rhodan não concordará. Não devemos forçar desnecessariamente o
desenvolvimento de uma civilização jovem, pois isso só poderá prejudicá-la — Marshall
levantou o braço. — Deixemos que os foles lidem com seus problemas. Acabam de
sofrer um revés, mas logo se recuperarão. Acho que redobrarão seus esforços para
construir uma civilização.
Não havia nada a acrescentar a essas palavras do telepata. Tschubai resolveu não
dizer nada a respeito da batalha com os “troncos de gás”. Marshall tinha razão. Não
deveriam imiscuir-se nos assuntos internos dos nativos.
Antes que vissem o barco espacial, Gucky materializou-se no meio do grupo. Ao
que parecia, gostava de mostrar-se no papel de “grande salvador”.
Van Moders levantou-se.
— Seja bem-vindo ao planeta Van Moders — disse em tom compenetrado.
Gucky escancarou o focinho, de tão perplexo que ficou. Por trás do visor do
capacete, brilhava o mal-afamado dente-roedor.
— Planeta Van Moders? — repetiu com a voz estridente.
— Fico satisfeito por ser você o primeiro membro da Frota Solar a tomar
conhecimento disso — disse Van Moders, com um sorriso amável.
— Quer dizer que você acaba de batizar o planeta? — perguntou Gucky, trêmulo de
raiva.
— Foi neste momento — confirmou Van Moders. — A idéia me veio de repente.
Gucky perdeu o autocontrole que tanto se esforçava para conservar. Levantou os
bracinhos, como se quisesse travar uma luta com o cientista.
— Nem mesmo este planetazinho quiseram deixar para mim! — gritou fora de si.
— Qualquer sujeitinho insignificante insulta os mundos mais bonitos, dando-lhes seu
nome. Todos sabem que há muito tenho direito de conferir meu nome a um planeta —
empertigou-se. — Planeta Gucky... Vejam como isso soa bem! Mas paciência. Ninguém
tem o verdadeiro senso estético da beleza.
— Se tivéssemos o senso da beleza, você já teria sido excluído dos quadros da Frota
Solar — disse Van Moders, com a voz fria.
— Seu bobalhão! — disse a voz estridente de Gucky. — Se um dia houver uma
eleição para Mister Universo, sairei vencedor com grande vantagem. A faixa dourada
enfeitaria meu peito.
— O barco espacial está pousando! — gritou Marshall, em meio à discussão.
Viram o disco baixar. Duas dezenas de homens fortemente armados saíram da
eclusa. Marshall foi ao seu encontro.
— Fico satisfeito em ver que escaparam tão bem, John — disse Rhodan a título de
cumprimento, dirigindo-se ao chefe dos mutantes. — Afinal, há um trecho considerável
de espaço entre este lugar e o ponto de partida de sua viagem.
— Onde fica mesmo este sistema? — perguntou Marshall.
— A mais de vinte mil anos-luz do grupo estelar M-13 — informou Rhodan. —
Como vê, assim que o cruzador de patrulhamento Heidelberg nos informou sobre seu
pedido de socorro, nós nos apressamos.
Marshall deu as necessárias explicações a Rhodan. Contou o naufrágio e relatou as
descobertas que Van Moders havia feito na nave destroçada. Rhodan ouviu-o
atentamente.
— Os pos-bis representam um perigo constante para os nativos — concluiu
Marshall. — Teremos de destruí-los. Não nos resta outra alternativa.
— O senhor tem razão — disse Rhodan. — Uma vez que o plasma, que se encontra
no interior da nave, não tem mais possibilidade de viver, os pos-bis não desistirão de seu
intento de destruir tudo quanto é orgânico. Vamos atraí-los para fora da nave e destruí-
los.
Chegaram à floresta, e Rhodan cumprimentou os outros homens. O Dr. Bryant foi
levado imediatamente ao barco espacial, para que os socorros médicos lhe pudessem ser
proporcionados o quanto antes.
— Quer dizer que em sua opinião as oscilações na intensidade do engaste foram
provocadas pela destruição do circuito do ódio? — perguntou Rhodan, dirigindo-se a Van
Moders.
— Sem dúvida, sir. Foi esse fato que deu origem ao caos que reina nos mundos dos
pos-bis. Ao que parece, a maior parte dos robôs é a favor da vida biológica. Os pos-bis
que estão nestas condições não atacarão os seres orgânicos.
Rhodan fez um sinal para um dos homens que o acompanhavam. Dentro de alguns
segundos seria expedida uma hipermensagem destinada à Terra e a Árcon. Os centros de
processamento, instalados nesses mundos, não demorariam em descobrir até que ponto a
afirmativa que Van Moders acabara de fazer correspondia à verdade. Mas Rhodan não
duvidava das descobertas do cientista. Refletiu sobre as conseqüências das mesmas.
— Será que os robôs favoráveis à vida biológica aceitarão toda e qualquer raça? —
perguntou, dirigindo-se a Van Moders.
— Sem dúvida, sir. Nenhum organismo terá motivo para temer esses robôs.
Rhodan ficou pensativo.
Isso não indicava que um perigo terrível se esboçava nas profundezas do espaço
cósmico? Qual seria a atitude dos robôs favoráveis à vida biológica diante dos laurins?
Não havia a menor dúvida de que essa atitude não seria hostil. Isso significava que um
grande inimigo dos invisíveis seria posto fora de ação. Nada impediria os laurins de
penetrarem na Galáxia.
Rhodan imaginava que os meses seguintes trariam novos problemas e dificuldades.
Quem dera que encontrasse um meio de ir Mundo dos Duzentos Sóis! Talvez fosse
possível evitar o pior.
Van Moders pigarreou discretamente.
— O senhor está refletindo sobre um assunto bem definido, sir — constatou.
— Mais dia menos dia, você acabará tendo as mesmas reflexões.
Gucky aproximou-se no seu andar balouçante. Não deu a menor atenção a Van
Moders.
— Cheguei tarde, Perry — disse, queixando-se. — Este mundo recebeu o nome de
Van Moders. O que devo fazer?
Rhodan deu uma risada.
— Sempre se descobrirão novos mundos que ainda não têm nome, pequeno — disse
tranqüilo.
— Será mesmo? — perguntou Gucky, em tom de dúvida.
— É claro que sim — disse Rhodan como se estivesse falando a si mesmo. — O
Universo está cheio desses mundos. Muitos planetas só esperam nossa visita.
Rhodan olhou para o sol que se erguia sobre a cidade dos foles. O Universo estava
cheio de estrelas que arrastavam planetas, de mundos que esperavam pela Humanidade.
A única coisa que teriam que fazer era procurar...

***
**
*

Na leitura deste romance, notou-se que os


acontecimentos convergem para um novo ponto
culminante: a solução definitiva do problema dos
pos-bis!
O novo volume da série relata uma das missões
mais arriscadas dos astronautas terranos: O Salto
Para o Intercosmo.

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