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Aula 3 ‒ Os gozos
Marcus do Rio Teixeira
1 O conceito de gozo ‒ problemas, diferença entre gozo e prazer
1.1 Introdução
Por que estudar o conceito de gozo na teoria de Lacan? Poderíamos dar várias respostas
destacando a importância desse conceito para a psicanálise. Porém, no que concerne ao nosso
tema, diremos que o conceito de gozo é importante para falar da Feminilidade, no mínimo,
devido à célebre conceituação de Lacan sobre o gozo Outro, também chamado de gozo
feminino. Segundo Lacan, esse seria um gozo não organizado pelo falo. Ele chega a dizer no
Seminário 20, em tom de brincadeira – mas uma brincadeira séria – que esse é um gozo “além
do falo”1. Para podermos extrair da teoria lacaniana dos gozos o que ela nos traz de inovador,
de radical no que diz respeito à feminilidade, é necessário retomarmos a via de elaboração do
conceito de gozo.
1.2 Problemas: críticas ao conceito devido ao seu uso indiscriminado; falsa identidade entre
pulsão e gozo
1
dos que querem ridicularizar Lacan ‒ pelo menos não tão explícita. Esses autores vão desde
os que defendem a eliminação desse conceito da teoria de Lacan, alegando uma suposta
recorrência da energética presente na teoria freudiana, até os que querem limitar o seu
emprego. Quanto aos primeiros, é estranho que alguém suponha ser possível simplesmente
limar um conceito de uma teoria sem que outros conceitos a ele associados caiam, num efeito
dominó.
Outros apresentam uma falsa definição do gozo como um suposto substituto do conceito
freudiano de pulsão na teoria lacaniana. Notem que Lacan continua falando de pulsão ao
longo do seu ensino muitos anos depois de ter elaborado o conceito de gozo. Na verdade, ele
fala de pulsão em praticamente todos os seus seminários, com exceção dos Seminários 2, 8,
15, 18, 21, 24 e 26. Por mais que Lacan não mantenha um percurso linear na sua elaboração
teórica, não faz o menor sentido supor que ele substituiria o conceito de pulsão pelo conceito
de gozo e, ao mesmo tempo, manteria o primeiro conceito ao longo de todo o seu ensino, até o
penúltimo seminário. Porém, como não se trata de elucubrar sobre o que se passava na cabeça
de Lacan a partir de um dado estatístico, a melhor forma de solucionar essa questão é verificar
o que o próprio Lacan diz sobre a pulsão e o gozo.
Não vamos retomar aqui toda a teoria das pulsões desde Freud, que a elabora em dois
momentos, porque esse não é o tema deste seminário. Vamos apenas lembrar resumidamente
que, para Freud, a pulsão possui quatro componentes: a Fonte [Quelle], o Impulso ou Pressão
[Drang], o Alvo ou Meta [Ziel] e o Objeto [Objekt]. No Seminário 11: Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise, Lacan elabora de forma mais precisa aquela que ficou conhecida
como a sua teoria das pulsões. Por que a sua teoria das pulsões? Porque se trata de uma
releitura da teoria freudiana das pulsões, que, ainda que se baseie nesta, diverge em pontos
fundamentais e funda uma nova teoria.
De forma resumida, resumidíssima, lembremos que Lacan, ao comentar a primeira
teoria freudiana das pulsões, conforme o artigo “As pulsões e seus destinos” [1915], recusa o
dualismo proposto por Freud: pulsões do eu/pulsões de autopreservação versus pulsões
sexuais. “Sugeri diferenciar dois grupos de tais pulsões primordiais: as pulsões do Eu, ou de
autopreservação, e as pulsões sexuais”2. Acerca da fome e da sede, que são os exemplos
dados por Freud das pulsões de autopreservação, Lacan diz: “[...] não se trata, no Trieb, da
2
FREUD, Sigmund. As pulsões e seus destinos. In: _____. Obras incompletas. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
v.2, p. 29. Grifos do autor.
2
pressão de uma necessidade, como Hunger, a fome, ou o Durst, a sede”3. E ele acrescenta: “A
constância do impulso proíbe qualquer assimilação da pulsão a uma função biológica, a qual
tem sempre um ritmo. A primeira coisa que diz Freud da pulsão é [...], que ela não tem dia
nem noite, não tem primavera nem outono, que ela não tem subida nem descida. É uma força
constante”4. Quanto às pulsões do eu, amor e ódio, Lacan é categórico: “O nível do Ich é não
pulsional, e é aí ‒ eu lhes rogo que leiam atentamente o texto ‒ que Freud funda o amor”5.
Portanto, para Lacan, nada de pulsões do eu ou de pulsões de autopreservação ‒
somente as pulsões sexuais, ditas parciais, as quais são em número de quatro, como vocês
sabem: oral, anal, escópica e invocante.
Em Televisão, entrevista concedida à rede estatal de TV francesa em 1974, ou seja, dez
anos após o Seminário 11, Lacan cita esse seminário e indica a sua leitura como referência
para entender a sua leitura da teoria das pulsões. Falando sobre a referência energética em
Freud, ele diz:
3
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise [1963-1964]. 2. ed.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 162.
4
Id., ibid., p. 163.
5
Id., ibid., p.187.
6
LACAN, Jacques. Televisão. In: _______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 508-543. p.
527.
7
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, op. cit., p.160.
3
pulsão, que ele havia reelaborado em 1964, mas, em 1974, reafirma o que havia dito dez anos
antes. E indica o que ele entende por gozo na pulsão. Mais claro do que isso, impossível.
Soler comenta o texto de Televisão:
É com base nessas referências de Lacan que Soler vai dizer: “[...] a pulsão assinala a
articulação entre o inconsciente e o vivente [vivant], entre o inconsciente-linguagem e o corpo
vivente [...]”9. E que “[...] o conceito de pulsão, que Lacan construiu desde 1964 na linha de
sua leitura freudiana, não chega a subsumir todos os fenômenos que nós colocamos, e que ele
próprio colocou na conta do gozo” 10
. Ela acrescenta: “A pulsão, ninguém duvida que isso
veicula o gozo”11.
Temos aqui vários pontos importantes da teoria. Em primeiro lugar, Soler destaca a
noção de vivente [vivant], que se refere ao corpo vivo. Ela observa que Lacan, na parte final
do seu ensino, dá destaque a esse aspecto. Quanto ao que diz respeito à relação entre pulsão e
gozo, ela resssalta que o gozo recobre um campo teórico que a pulsão não dá conta – logo,
não pode ser o mesmo conceito. Finalmente, a autora resume essa relação afirmando que a
pulsão veicula o gozo, sendo este o Drang, o que é bastante diferente de supor que para Lacan
ela é o gozo, como se escuta dizer por aí.
Portanto, o que está em jogo no emprego do termo gozo por Lacan quando comparado à
sua leitura da teoria freudiana das pulsões, não é de forma alguma a mera substituição de um
conceito por outro com o mesmo sentido. Resumindo o que acabamos de expor: para Lacan,
nem pulsão nem gozo são energia. Pulsão não é gozo. Finalmente, o impulso [Drang] da
pulsão é gozo, o que leva Soler a dizer que a pulsão veicula o gozo.
8
SOLER, Colette. O em-corpo do sujeito: Seminário 2001-2002. Salvador: Ágalma, 2019. p. 134.
9
Id., ibid., p. 156.
10
Id., loc. cit.
11
Id., ibid., p. 200.
4
1.3 Diferença entre gozo e prazer
Uma questão recorrente nas discussões sobre o gozo na teoria e na clínica psicanalíticas
diz respeito à relação entre gozo e prazer na teoria de Freud e na teoria de Lacan. Na verdade,
o termo gozo, enquanto conceito, é definido por Lacan e não por Freud. Este último utiliza os
termos Lust, Befriedigung e Genuss com sentidos próximos, porém diferentes do gozo, tal
como é definido por Lacan. O primeiro termo, Lust, pode ser traduzido, segundo Luiz Hanns,
como prazer, vontade ou desejo, a depender do contexto.
Gozo não é somente a volúpia. [...] Não é o Lust freudiano, é mais o Unlust.
Esse Lust, que nós traduzimos como prazer, Freud o correlacionou à ideia de
excitação mínima, da menor tensão ‒ no que, por outro lado, o prazer sexual
lhe coloca um problema.13
O termo Befriedigung, por sua vez, é traduzido entre nós como satisfação. Freud o
emprega no seu artigo metapsicológico sobre as pulsões: “A meta de uma pulsão é sempre a
satisfação [Befriedigung], que só pode ser alcançada pela suspensão do estado de estimulação
junto à fonte pulsional [Triebquelle]” 14. Os tradutores brasileiros ressaltam que o sentido de
satisfação, em nosso idioma, não recobre o sentido do termo Befriedigung em alemão. Por sua
etimologia, ela remete a paz, o que possibilita entendê-la como um apaziguamento. “O termo
contém o mesmo radical de Frieden, paz, e em geral, conotativamente, equivale a ‘apaziguar’
ou ‘aplacar’”15.
Já o termo Genuss tem o sentido de “prazer, curtição, gozo sem ápice”16 e é utilizado
por Freud de forma coloquial, não como um conceito. O gozo, conceito lacaniano, não se
12
HANNS, Luiz. Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 147.
13
SOLER, Colette. O em-corpo do sujeito, op. cit., p. 319.
14
FREUD, Sigmund. As pulsões e seus destinos, op. cit., p. 25
15
HANNS, Luiz. Dicionário comentado do alemão de Freud, op. cit., p. 405.
16
Id., ibid., p. 149.
5
enquadra em nenhum desses termos empregados por Freud. O gozo não pode ser a
Befriedigung [satisfação] freudiana, porque está longe de ser uma satisfação, um
apaziguamento ‒ antes o seu oposto. Tampouco pode ser o Lust [prazer]. Como indica Soler,
por suas características, ele está mais para o lado do Unlust [desprazer]. Quanto ao Genuss
[prazer sensual], que é o gozar da descarga que põe fim à tensão, o gozo está justamente do
lado da tensão que antecede essa descarga.
No Seminário 17: o avesso da psicanálise, Lacan aborda a relação entre o gozo e o
princípio do prazer.
De fato, ele já havia dito, muitos anos antes, em “Subversão do sujeito e dialética do
desejo”: “Pois é o prazer que traz ao gozo seus limites”18. Melman, comentando esse trecho
do artigo de Lacan, diz: “O prazer, isto é, a preocupação em manter um nível de tensão
compatível com a manutenção da vida, não se deve ir longe demais senão poderia se
desagregar, tudo isso. É, portanto, o prazer que traz ao gozo seus limites”19.
Em uma mesa-redonda em 1966, promovida pelo Colégio de Medicina dos Hospitais de
Paris sobre “O lugar da psicanálise na medicina”, Lacan fala sobre o gozo e o prazer:
Que diríamos nós do prazer? Que é a menor excitação, isso que faz
desaparecer a tensão, a controla mais, portanto isso que nos detém
necessariamente em um ponto de distanciamento, de distância muito
respeitosa do gozo. Pois isso a que eu chamo gozo, no sentido de que o
corpo se experimenta, é sempre da ordem da tensão, do acosso, do gasto,
mesmo da proeza [exploit].
Há incontestavelmente gozo no nível em que começa a aparecer a dor, e nós
sabemos que é somente nesse nível da dor que se pode experimentar uma
dimensão do organismo que, de outra forma, resta velada.20
17
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 17: o avesso da psicanálise [1969-1970]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1992. p. 44.
18
LACAN, Jacques. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano [1960]. In: ____.
Escritos. Rio de Janeiro: Imago, 1998. p. 807-842. p. 836.
19
MELMAN, Charles. A neurose obsessiva no divã de Lacan: um estudo psicanalítico. Rio de Janeiro: Imago:
Tempo Freudiano, 2011. p. 90.
20
LACAN, Jacques. La place de la psychanalyse dans la médecine [1966]. Bulletin de l’Association freudienne
international, Paris, Éditions de l’A.F.I., n. 80, p. 3-16, nov. 1998. p.10. Tradução minha para os trechos citados.
6
Já em 1971, no Seminário 19,...ou pior, Lacan define o gozo da seguinte forma: “Gozar
é usufruir de um corpo. Gozar é abraçá-lo, é estreitá-lo, é picá-lo em pedaços”21. Na sua
definição de gozo, Lacan faz referência ao corpo, evidenciando o que ele dirá mais adiante,
que para gozar é preciso um corpo. No Seminário 20: mais, ainda, ele diz: “Um sujeito, como
tal, não tem grande coisa a fazer com o gozo”22. Soler comenta essa passagem, dizendo:
Lacan inclui ainda uma menção indireta a Sade, um dos seus escritores favoritos,
mostrando que o gozo não é um uso tranquilo do corpo, mas que, deixado por conta própria,
sem limites, ele pode levar à destruição do próprio corpo. Finalmente, cabe frisar que apesar
dessa distinção importante entre prazer e gozo, isso não impede que o próprio Lacan utilize,
por vezes, o termo gozo com a conotação de experiência prazerosa. Esse é um dos paradoxos
desse conceito, como veremos adiante.
Vimos como alguns críticos desse conceito ridicularizam a forma como os lacanianos o
empregam para falar sobre os mais diversos temas da clínica. Mas este seria somente um
problema do mau uso do conceito? Roland Chemama chama a atenção para o fato de que o
gozo aparece na teoria e na clínica psicanalíticas a partir da teorização de Lacan, porém sob
formas muito diversas, o que torna problemático definir uma unidade conceitual.
21
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 19: ...ou pior [1971-1972]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012. p. 31.
22
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: mais, ainda..., op. cit., p. 56.
23
SOLER, Colette. O em-corpo do sujeito, op. cit., p. 181.
7
contraditório. O gozo, em si mesmo, comporta contradições fundamentais,
cujos efeitos se fazem sentir no conjunto da clínica.24
Acerca dessa dificuldade de se chegar a uma definição do conceito de gozo, Soler faz as
seguintes considerações:
Temos aqui a leitura de Lacan feita por dois autores de escolas diferentes, que
eventualmente discordam sobre vários pontos da teoria, mas que, quando discutem o conceito
de gozo, concordam que há um problema: esse conceito é empregado em uma grande
variedade de situações clínicas, seja pelo próprio Lacan, seja por seus seguidores, o que
provocou a diluição do rigor das próprias referências clínicas. Isso pode levar a um
questionamento: afinal, um conceito que pode ser aplicado para se referir a múltiplas
situações tem o risco de se tornar inútil – um conceito que pode servir para tudo é um
conceito que não serve para coisa alguma.
Ambos, porém, consideram que esses problemas não justificariam o abandono do
conceito. Ao contrário, continuam considerando o gozo um conceito de grande importância e
utilidade na clínica e na teoria psicanalíticas.
24
CHEMAMA, Roland. La jouissance, enjeux et paradoxes. Paris: Érès, 2007. p. 8-9. Tradução minha para os
trechos aqui citados.
25
SOLER, Colette. O em-corpo do sujeito, op. cit., p. 142-143.
8
2 Gozo fálico x Gozo do Outro
Lacan faz essa afirmação de que o significante é a causa do gozo em uma aula em que
ele faz uma releitura da teoria da causalidade em Aristóteles, que ele interpreta de uma forma
muito peculiar. Certamente, a leitura lacaniana da causalidade em Aristóteles deixaria
arrepiado qualquer filósofo ou estudioso de filosofia que tomasse conhecimento dela.
Ora, na definição de Lacan, o significante é a causa material do gozo. Lembremos
rapidamente que, para Aristóteles, a causa material é a própria matéria daquilo que está sendo
investigado. No caso de uma estátua, por exemplo, a causa material é a matéria de que ela é
feita: bronze, mármore, etc. Lacan afirma, portanto, que o significante é a própria matéria do
gozo. Ainda na sequência, ele diz: “Sem o significante, como mesmo abordar aquela parte do
corpo?”27. A nossa condição de seres falantes nos impede um acesso direto ao gozo sem
passar pela linguagem. Não podemos simplesmente gozar do corpo do Outro como um animal
gozaria, sem o significante. Assim como ele é um elemento isolável na cadeia da fala, no que
concerne ao gozo, o significante recorta o corpo, tomando-o não em sua totalidade, mas por
partes, elementos isoláveis.
26
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: mais, ainda, op. cit., p. 30.
27
Id., loc. cit.
9
Trago um comentário de Soler sobre essa passagem do Seminário 20:
Temos aqui uma distinção entre o conceito freudiano de zona erógena e a noção de
parte erógena. Eu entendo que ao empregar essa noção mais genérica, a autora quer destacar
o aspecto físico, material, da parte que o gozo recorta no corpo da parceira ou do parceiro.
Lembremos que essas partes não são as mesmas para o sujeito situado numa posição
masculina e para o sujeito numa posição feminina, como vimos na aula anterior. Ou seja,
diferentes posições de gozo do sujeito implicam diferentes objetos de gozo.
Ainda na mesma página desse Seminário, um pouco antes desse trecho, Lacan afirma:
A referência a Sade não deve ser tomada como alusão ao gozo perverso, mas ao que
poderíamos chamar de o fetichismo mais comum, aquele que é típico da sexualidade
masculina. Isso porque se trata do que ele chama de um gozo do órgão, não do corpo na sua
totalidade. “Vou um pouco mais longe – o gozo fálico é o obstáculo pelo qual o homem não
chega, eu diria, a gozar do corpo da mulher precisamente porque o de que ele goza é do gozo
do órgão”30.
Chemama assim comenta: “Trata-se, antes, disso que um homem pode comumente
aproximar do gozo, que sempre tem relação com o parcial31; não é indispensável que ele
chegue a recortar realmente sua parceira”32. Observem que ainda que o autor se refira ao
28
SOLER, Colette. Lecture commentée du Séminaire Encore. Paris: Hôpital Sainte-Anne, oct. 1999/juin 2000. p.
44. Tradução minha para os trechos aqui citados.
29
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: mais, ainda..., op. cit., p. 30.
30
Id., ibid., p.14.
31
O autor cita os dois termos em francês: partiel (que constitui uma parte de um todo) e partial (que toma
partido em relação às partes em disputa). Em português, temos uma única palavra com os dois sentidos (N. do
A.)
32
CHEMAMA, Roland. La jouissance, enjeux et paradoxes, op. cit., p. 118.
10
homem no seu comentário, essa característica do gozo, que é causado pelo significante fálico
e, ao mesmo tempo, limitado por ele, não é exclusiva do gozo do sujeito na posição
masculina. Para uma mulher, enquanto experimenta o gozo fálico, ela experimentará a mesma
limitação. Diz Lacan: “O gozo, enquanto sexual, é fálico, quer dizer, não se relaciona ao
Outro como tal”33. Soler comenta: “Falamos aqui do gozo extraído da relação [relation]
sexual. Há muitas formas de gozo, aqui, falamos do gozo no limite do coito [...]. Portanto, o
gozo não faz relação [rapport] [...]”34.
Portanto, no que diz respeito ao sexo, à relação sexual no sentido de coito, de cópula –
que semanticamente, em francês, pertence ao campo do termo relation –, nem os homens nem
as mulheres têm acesso ao Outro, mas apenas aos objetos que o gozo toma no corpo da
parceira ou do parceiro. O gozo é solitário, mesmo se ele é extraído do encontro sexual com
outra pessoa – como diz Lacan, é o corpo de um que goza de uma parte do corpo do Outro.
Por isso não há relação [rapport] sexual, no sentido de razão ou proporção entre os sexos.
Chamo a atenção de vocês para a metodologia adotada por Lacan para definir os gozos
no Seminário 20. Lacan começa falando do gozo no singular, sem adjetivá-lo, para aos poucos
dar a sua definição do gozo fálico. Ficamos assim sabendo que se trata de um gozo
determinado pelas leis da linguagem – o que pressupõe a passagem pela castração. Trata-se do
gozo mais comum: não somente gozo sexual, mas também gozo do trabalho, do sintoma, do
sofrimento, da criação artística... Em suma, aquele que o sujeito sempre encontra. Por isso
Soler vai dizer: “Portanto, tudo que passa nas palavras é gozo fálico”35. É um gozo que se
escreve, que está inscrito na linguagem. Novamente Soler: “O gozo fálico não cessa de se
escrever, não há senão ele que se escreve”36.
Notem a diferença entre essa formulação teórica e aquela de Freud, que situava o
homem como fálico e a mulher como não fálica ou castrada. “Freud amarra homem e mulher
ao mesmo e único piquete, o do gozo fálico, para explicar a forma e o limite de suas
agitações. [...] Lacan pôde distinguir, além do gozo fálico, um gozo suplementar, Outro,
próprio àquela ou àquele que optou pela posição feminina”37. Para Lacan, ambos participam
do falicismo, no sentido do gozo fálico, que concerne à castração simbólica e às leis da
33
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: mais, ainda..., op. cit., p. 16.
34
SOLER, Colette. Lecture commentée du Séminaire Encore, op. cit., p. 70.
35
Id., ibid., p. 105.
36
Id., ibid., p. 91.
37
MELMAN, Charles. O gozo Outro. In:______. Alcoolismo, delinquência, toxicomania: uma outra forma de
gozar. Organização e revisão técnica de Contardo Calligaris. São Paulo: Escuta, 1992. p. 149-153. p.149.
11
linguagem. Porém, além desse gozo, a mulher tem acesso a um gozo que ele qualifica como
“suplementar”38. Que gozo é esse e quais as suas características?
Uma vez definido o gozo fálico, o que poderíamos dizer acerca desse Outro gozo? Eis
como Lacan fala dele: “Há um gozo, já que nos atemos ao gozo, gozo do corpo, que é, se
posso me exprimir assim [...], para além do falo”39. Chemama40 assim se refere a esse gozo:
Lacan denomina esse gozo, distinto do gozo fálico: gozo do Outro. Logo no início do
Seminário 20: mais, ainda, ele faz uma observação muito importante a esse respeito,
esclarecendo que a expressão gozo do corpo tem dois sentidos: objetivo e subjetivo.
[...] gozar do corpo comporta um genitivo que tem essa nota sadiana à qual
acrescentei uma pincelada, ou, ao contrário, uma nota extática, subjetiva, que
diz que em suma é o Outro que goza.41
É preciso ficarmos atentos para um ponto muito importante: quando lemos no texto de
Lacan a expressão gozo do Outro, precisamos identificar se ela é empregada no sentido
objetivo (tomar o Outro como objeto do seu gozo) ou no sentido subjetivo (é o Outro que
goza, o sujeito experimenta a sensação de ser gozado pelo Outro). Lacan passa de um ao outro
sem avisar, como sempre faz. Pesquisando42 o Seminário 20, pude notar que, nas primeiras
aulas desse Seminário, predomina o primeiro caso, ou seja, Lacan ainda não está falando de
um gozo distinto do gozo fálico. Nesse caso, trata-se do gozo do Outro, no sentido objetivo,
gozo do corpo que simboliza o Outro, que corresponde à tentativa do sujeito de gozar do
corpo do Outro na sua totalidade, tentativa fracassada já que não somos capazes de envolver
38
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: mais, ainda..., op. cit., p.79.
39
Id., ibid., p.80. Grifos do autor.
40
CHEMAMA, Roland. La jouissance, enjeux et paradoxes, op. cit., p. 119.
41
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: mais, ainda..., op. cit., p. 30.
42
TEIXEIRA, Marcus do Rio. Os gozos: sobre duas dicotomias presentes no Seminário 20: mais, ainda.
In:______. Vestígios do gozo. Salvador: Ágalma: Campo Psicanalítico, 2014. p. 99-117.
12
totalmente o corpo do qual gozamos, não somos amebas, como lembra Lacan. É impossível
gozar do corpo que simboliza o Outro a não ser por partes, elementos isoláveis pelo
significante, como vimos. Lembrem-se de que Lacan se refere ao gozo fálico como o
obstáculo que impede o homem de gozar do corpo da mulher.
Por isso Lacan afirma que o gozo do Outro não existe, afirmação que deixa muitos dos
seus leitores desconcertados. Soler comenta essa afirmação: “Eis porque Lacan insistirá em
seguida, em 1974 e 1975, em dizer: não há gozo do Outro, no sentido objetivo do de: não se
goza do Outro”43. Ou seja, não é que só exista o gozo fálico, que o gozo do Outro não exista,
como alguns entenderam equivocadamente. O que Lacan ressalta é que só podemos gozar do
corpo do Outro por partes.
É isso que Lacan chama de “nota sadiana” – mais uma referência a Sade –, ou seja, a
tendência do homem a recortar as formas imaginárias do objeto a no corpo da sua parceira, o
que leva Lacan a dizer que “O ato de amor é a perversão polimorfa do macho, isso entre os
seres falantes”44. Mas essa busca das partes do corpo para gozar não se restringe ao homem,
pois, no âmbito do gozo fálico (que vale para homens e mulheres), uma mulher buscará no
corpo do seu parceiro o órgão que encarna o falo. “Quanto a uma mulher, ela tem um acesso
mais direto ao objeto real, quer dizer, ao pênis, mesmo que só esteja ali a título representativo,
se posso dizer, desse falo que funciona no inconsciente”45.
Até aqui, nós falamos do gozo do Outro no sentido objetivo, mas quanto ao sentido
subjetivo, no qual é o Outro que goza? Lacan se refere a ele, como vimos, como um gozo
“além do falo” 46
. Escapando à linguagem, esse gozo é colocado na categoria do indizível.
Lacan dá um estranho exemplo: o êxtase dos santos, sempre inacessível à linguagem. Essa é a
“nota extática” a que ele se refere. Isso não significa, contudo, que essa seja a única forma
desse gozo, tampouco a mais comum, ao contrário. “Com efeito, não se pode imaginar que o
gozo suplementar seja ilustrado unicamente pelos místicos, com os quais, aliás, a psicanálise
tem pouquíssimo a ver”47. Lacan provoca, então, as analistas mulheres para que elas digam
algo a respeito desse gozo:
O que dá alguma chance ao que avanço, isto é, que, desse gozo, a mulher
nada sabe, é que há tempos que lhes suplicamos, que lhes suplicamos de
43
SOLER, Colette. O em-corpo do sujeito, op. cit., p. 158.
44
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: mais, ainda..., op. cit., p. 78.
45
MELMAN, Charles. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro: Companhia de Freud,
2003. p. 52.
46
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: mais, ainda..., op. cit., p. 80.
47
SOLER, Colette. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 37.
13
joelhos – eu falava da última vez das psicanalistas mulheres – que tentem
nos dizer, pois bem, nem uma palavra!48
Essa famosa provocação de Lacan joga com a propriedade do gozo do Outro: por não
ser um gozo do significante, ele não pode ser dito. Marc Darmon assim comenta:
Mas em que consistiria exatamente esse gozo? Na maior parte dos trabalhos de autores
lacanianos sobre o tema parece haver uma indicação relativa ao orgasmo feminino, seja de
forma analógica, seja diretamente, como sinônimo. Se buscarmos um esclarecimento no texto
de Lacan, isso não nos ajudará muito. No Seminário 20, ele faz algumas referências ambíguas
ao orgasmo feminino, quando diz:
Então a gente o chama como pode, esse gozo, vaginal, fala-se do polo
posterior do bico do útero e outras babaquices. Se simplesmente ela o
experimentava, ela não sabia nada dele, o que permitiria lançar muitas
dúvidas para o lado da famosa frigidez.50
Digo que esses comentários são ambíguos porque, afora o fato de que são feitos no
contexto da reflexão acerca do caráter indizível do gozo Outro, este parece indicar que se trata
de um gozo sexual, embora em outros lugares não se refira a esse gozo como um gozo sexual.
48
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: mais, ainda..., op. cit., p. 80-81.
49
DARMON, Marc. O gozo fálico e o gozo do Outro: a inacessibilidade do dois, um sintoma de Badiou. 27 nov.
2007. Tradução Sérgio Rezende. Disponível em: www.tempofreudiano.com.br. Acesso em: 12 maio 2013.
50
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: mais, ainda..., op. cit., p. 81.
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Na sua conferência italiana “A Terceira”51 (realizada 16 meses após o Seminário 20: mais,
ainda), Lacan utiliza o termo parassexuado para se referir ao gozo do Outro. Esse termo é
curioso, pois etimologicamente o prefixo grego para, presente em vários compostos das
línguas neolatinas, remete à ideia de “ao lado de”, “da parte de”. Lacan parece dizer com isso
que se trata de um gozo que, apesar de não ser o gozo sexual, não deixa de ter relação com
ele.
Soler considera que esse gozo Outro teria algo a ver com o orgasmo feminino, sim,
porém não por ser um sinônimo do orgasmo, mas porque, na mulher, ele interfere no gozo
fálico, enquanto gozo sexual. Isso faz com que a experiência do orgasmo feminino,
diferentemente do orgasmo masculino, marque um desvanecimento do sujeito. Soler chega a
empregar o termo devastação.
A autora lembra que nada semelhante se passa do lado do homem, para quem, ao
contrário, a experiência do orgasmo tem a conotação de prazer e de alívio, daí porque é
buscada como meio de relaxamento em momentos de tensão. Outra diferença importante é a
certeza. O homem não duvida jamais se teve um orgasmo ou não – salvo em certos casos de
psicose.
A respeito dessa diferença, trago uma vinheta clínica extraída do artigo de Piera
Aulagnier sobre a Feminilidade, que eu citei na aula anterior – artigo muito importante,
porque é de 1968, anterior, portanto, à época do Seminário 20, quando Lacan apresenta sua
teoria da sexuação e fala da alteridade feminina. Piera relata o caso de uma analisante,
mulher. Esta tem um amante, e é muito apaixonada por ele. Eles se encontram secretamente,
encontros que ela descreve para sua analista como sexualmente muito intensos e prazerosos.
Um dia, ela chega à sessão arrasada. Conta que, na véspera, havia assistido a uma palestra
51
LACAN, Jacques. A Terceira. Cadernos Lacan, Porto Alegre, Associação Psicanalítica de Porto Alegre, v.2,
p.39-71, 2002. Publicação não comercial para circulação interna da APPOA.
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SOLER, Colette. O que Lacan dizia das mulheres, op. cit., p.185.
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sobre o orgasmo feminino intitulada “O gozo: direito feminino”. Ela mostra à sua analista o
panfleto da palestra. Segundo Piera:
O efeito dessa palestra sobre a analisante é avassalador, porque esta não reconhece na
descrição do orgasmo feminino apresentada pela palestrante nada que se assemelhe ao que ela
experimenta. Ao contrário, essa descrição parece desqualificar o que ela sentia como prazer
sexual, o que a faz questionar se o que sentia até então e que sempre considerou como
orgasmo deveria realmente ser qualificado como tal.
53
AULAGNIER-SPAIRANI, Piera. Remarques sur la feminité et ses avatars. In: AULAGNIER-SPAIRANI,
Piera; CLAVREUL, Jean; PERRIER, François; ROSOLATO, Guy; VALABREGA, Jean-Paul. Le désir et la
perversion. Paris: Seuil, 1967. p. 55-89. p. 59. Tradução minha para os trechos aqui citados.
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Id., loc. cit.
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linguagem, não é um efeito dela. “[...] há um gozo do corpo que não é fabricado pelo discurso,
o discurso se limita a lhe dar forma. Ele lhe dá forma de Um e também lhe dá sentido”55.
55
SOLER, Colette. Adventos do real: da angústia ao sintoma. São Paulo: Aller, 2018. p. 223.
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