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SEMINÁRIO NO ATO ANALÍTICO DE MARINGÁ – 24/09/2020

Aula 3 ‒ Os gozos
Marcus do Rio Teixeira
1 O conceito de gozo ‒ problemas, diferença entre gozo e prazer

1.1 Introdução

Por que estudar o conceito de gozo na teoria de Lacan? Poderíamos dar várias respostas
destacando a importância desse conceito para a psicanálise. Porém, no que concerne ao nosso
tema, diremos que o conceito de gozo é importante para falar da Feminilidade, no mínimo,
devido à célebre conceituação de Lacan sobre o gozo Outro, também chamado de gozo
feminino. Segundo Lacan, esse seria um gozo não organizado pelo falo. Ele chega a dizer no
Seminário 20, em tom de brincadeira – mas uma brincadeira séria – que esse é um gozo “além
do falo”1. Para podermos extrair da teoria lacaniana dos gozos o que ela nos traz de inovador,
de radical no que diz respeito à feminilidade, é necessário retomarmos a via de elaboração do
conceito de gozo.

1.2 Problemas: críticas ao conceito devido ao seu uso indiscriminado; falsa identidade entre
pulsão e gozo

Temos presenciado, nos últimos tempos, críticas feitas em tom de deboche, de


zombaria, de chacota acerca do uso indiscriminado do termo gozo no meio lacaniano, numa
clara tentativa de ridicularizar o conceito a partir do uso que dele é feito. É um fato que
muitos psicanalistas lacanianos fizeram um uso excessivo desse termo para se referir tanto a
experiências de sofrimento quanto a experiências prazerosas; tanto no que diz respeito ao
sintoma, quanto a situações do que Freud chamava a psicopatologia da vida cotidiana. Essa
imprecisão provoca uma diluição do conceito. Porém é preciso salientar que o mau uso de um
conceito não é suficiente para invalidá-lo.
Infelizmente, essa tentativa de desqualificar o conceito de gozo não é exclusiva dos
detratores de Lacan. Há alguns autores lacanianos que, surpreendentemente, também
procuram desqualificar esse conceito, embora, é preciso dizer, sem o mesmo tom de zombaria
1
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: mais, ainda [1972-1973]. 3.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p.
80.

1
dos que querem ridicularizar Lacan ‒ pelo menos não tão explícita. Esses autores vão desde
os que defendem a eliminação desse conceito da teoria de Lacan, alegando uma suposta
recorrência da energética presente na teoria freudiana, até os que querem limitar o seu
emprego. Quanto aos primeiros, é estranho que alguém suponha ser possível simplesmente
limar um conceito de uma teoria sem que outros conceitos a ele associados caiam, num efeito
dominó.
Outros apresentam uma falsa definição do gozo como um suposto substituto do conceito
freudiano de pulsão na teoria lacaniana. Notem que Lacan continua falando de pulsão ao
longo do seu ensino muitos anos depois de ter elaborado o conceito de gozo. Na verdade, ele
fala de pulsão em praticamente todos os seus seminários, com exceção dos Seminários 2, 8,
15, 18, 21, 24 e 26. Por mais que Lacan não mantenha um percurso linear na sua elaboração
teórica, não faz o menor sentido supor que ele substituiria o conceito de pulsão pelo conceito
de gozo e, ao mesmo tempo, manteria o primeiro conceito ao longo de todo o seu ensino, até o
penúltimo seminário. Porém, como não se trata de elucubrar sobre o que se passava na cabeça
de Lacan a partir de um dado estatístico, a melhor forma de solucionar essa questão é verificar
o que o próprio Lacan diz sobre a pulsão e o gozo.
Não vamos retomar aqui toda a teoria das pulsões desde Freud, que a elabora em dois
momentos, porque esse não é o tema deste seminário. Vamos apenas lembrar resumidamente
que, para Freud, a pulsão possui quatro componentes: a Fonte [Quelle], o Impulso ou Pressão
[Drang], o Alvo ou Meta [Ziel] e o Objeto [Objekt]. No Seminário 11: Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise, Lacan elabora de forma mais precisa aquela que ficou conhecida
como a sua teoria das pulsões. Por que a sua teoria das pulsões? Porque se trata de uma
releitura da teoria freudiana das pulsões, que, ainda que se baseie nesta, diverge em pontos
fundamentais e funda uma nova teoria.
De forma resumida, resumidíssima, lembremos que Lacan, ao comentar a primeira
teoria freudiana das pulsões, conforme o artigo “As pulsões e seus destinos” [1915], recusa o
dualismo proposto por Freud: pulsões do eu/pulsões de autopreservação versus pulsões
sexuais. “Sugeri diferenciar dois grupos de tais pulsões primordiais: as pulsões do Eu, ou de
autopreservação, e as pulsões sexuais”2. Acerca da fome e da sede, que são os exemplos
dados por Freud das pulsões de autopreservação, Lacan diz: “[...] não se trata, no Trieb, da

2
FREUD, Sigmund. As pulsões e seus destinos. In: _____. Obras incompletas. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
v.2, p. 29. Grifos do autor.
2
pressão de uma necessidade, como Hunger, a fome, ou o Durst, a sede”3. E ele acrescenta: “A
constância do impulso proíbe qualquer assimilação da pulsão a uma função biológica, a qual
tem sempre um ritmo. A primeira coisa que diz Freud da pulsão é [...], que ela não tem dia
nem noite, não tem primavera nem outono, que ela não tem subida nem descida. É uma força
constante”4. Quanto às pulsões do eu, amor e ódio, Lacan é categórico: “O nível do Ich é não
pulsional, e é aí ‒ eu lhes rogo que leiam atentamente o texto ‒ que Freud funda o amor”5.
Portanto, para Lacan, nada de pulsões do eu ou de pulsões de autopreservação ‒
somente as pulsões sexuais, ditas parciais, as quais são em número de quatro, como vocês
sabem: oral, anal, escópica e invocante.
Em Televisão, entrevista concedida à rede estatal de TV francesa em 1974, ou seja, dez
anos após o Seminário 11, Lacan cita esse seminário e indica a sua leitura como referência
para entender a sua leitura da teoria das pulsões. Falando sobre a referência energética em
Freud, ele diz:

Ao me seguir nisso, quem não sentirá a diferença que há entre a energia,


constante sempre identificável do Um com que se constitui o experimental
da ciência, e o Drang, ou ímpeto da pulsão, que, sendo gozo, decerto retira
tão-somente das bordas corporais − cheguei a dar a forma matemática disso
− sua permanência.6

Nesse trecho da entrevista, Lacan se preocupa em eliminar qualquer resquício de uma


leitura energética da pulsão. Isso já desmente a acusação meio vaga de alguns autores, de que
Lacan, ao falar de gozo e pulsão, estaria trazendo para a sua teoria a energética freudiana. Em
seguida, ele define o Drang como gozo. Ora, no Seminário 11, ele já fazia questão de deixar
bem clara a distinção entre a pulsão e o impulso: “A pulsão não é o impulso. O Trieb não é o
Drang [...]” 7. Portanto, Lacan distingue a pulsão [Trieb] e um de seus componentes, o Drang
[pressão ou impulso] e, ao mesmo tempo, afirma que é o Drang que ele considera como o
gozo, não a pulsão. Ora, este é um ótimo exemplo – se ainda fosse necessário dar um exemplo
– para mostrar que Lacan não substitui o conceito de pulsão pelo conceito de gozo, como
alguns autores querem nos fazer crer. Ao contrário, Lacan não apenas mantém o conceito de

3
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise [1963-1964]. 2. ed.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 162.
4
Id., ibid., p. 163.
5
Id., ibid., p.187.
6
LACAN, Jacques. Televisão. In: _______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 508-543. p.
527.
7
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, op. cit., p.160.
3
pulsão, que ele havia reelaborado em 1964, mas, em 1974, reafirma o que havia dito dez anos
antes. E indica o que ele entende por gozo na pulsão. Mais claro do que isso, impossível.
Soler comenta o texto de Televisão:

O que Lacan desenvolve nesse texto?


Primeiramente, que o impulso da pulsão não é o de uma energia. De
passagem, ele desenvolve sua concepção: não há nenhuma energia natural,
mesmo nas ciências físicas da natureza, a energia não é jamais natural. Ele
define a energia como a cifra de uma constância. Dito de outro modo,
energia em física é uma constante representável do Um, portanto uma
energia nada natural.
No entanto, o impulso da pulsão, Drang, não é energia. Ele diz: ele é gozo, e
gozo não é energia; o que quer dizer que ele não se inscreve. Ele o diz
textualmente nessas páginas.8

É com base nessas referências de Lacan que Soler vai dizer: “[...] a pulsão assinala a
articulação entre o inconsciente e o vivente [vivant], entre o inconsciente-linguagem e o corpo
vivente [...]”9. E que “[...] o conceito de pulsão, que Lacan construiu desde 1964 na linha de
sua leitura freudiana, não chega a subsumir todos os fenômenos que nós colocamos, e que ele
próprio colocou na conta do gozo” 10
. Ela acrescenta: “A pulsão, ninguém duvida que isso
veicula o gozo”11.
Temos aqui vários pontos importantes da teoria. Em primeiro lugar, Soler destaca a
noção de vivente [vivant], que se refere ao corpo vivo. Ela observa que Lacan, na parte final
do seu ensino, dá destaque a esse aspecto. Quanto ao que diz respeito à relação entre pulsão e
gozo, ela resssalta que o gozo recobre um campo teórico que a pulsão não dá conta – logo,
não pode ser o mesmo conceito. Finalmente, a autora resume essa relação afirmando que a
pulsão veicula o gozo, sendo este o Drang, o que é bastante diferente de supor que para Lacan
ela é o gozo, como se escuta dizer por aí.
Portanto, o que está em jogo no emprego do termo gozo por Lacan quando comparado à
sua leitura da teoria freudiana das pulsões, não é de forma alguma a mera substituição de um
conceito por outro com o mesmo sentido. Resumindo o que acabamos de expor: para Lacan,
nem pulsão nem gozo são energia. Pulsão não é gozo. Finalmente, o impulso [Drang] da
pulsão é gozo, o que leva Soler a dizer que a pulsão veicula o gozo.

8
SOLER, Colette. O em-corpo do sujeito: Seminário 2001-2002. Salvador: Ágalma, 2019. p. 134.
9
Id., ibid., p. 156.
10
Id., loc. cit.
11
Id., ibid., p. 200.
4
1.3 Diferença entre gozo e prazer

Uma questão recorrente nas discussões sobre o gozo na teoria e na clínica psicanalíticas
diz respeito à relação entre gozo e prazer na teoria de Freud e na teoria de Lacan. Na verdade,
o termo gozo, enquanto conceito, é definido por Lacan e não por Freud. Este último utiliza os
termos Lust, Befriedigung e Genuss com sentidos próximos, porém diferentes do gozo, tal
como é definido por Lacan. O primeiro termo, Lust, pode ser traduzido, segundo Luiz Hanns,
como prazer, vontade ou desejo, a depender do contexto.

Na acepção de sensação prazerosa, a palavra enfatiza a sensação extraída da


atividade, visa a atividade e não o objeto. Designa aquilo que há de mais
imediato e irredutível na sensação, quando esta brota no corpo, antes ainda
da fruição plena do prazer e do gozo.
Freud emprega a palavra em conjunto com o antônimo Unlust (desprazer) e
em composição com inúmeros outros termos geralmente relacionados com a
pulsão (Trieb) e com a pressão/ímpeto (Drang).12

Soler compara o conceito lacaniano de gozo com o conceito freudiano de Lust.

Gozo não é somente a volúpia. [...] Não é o Lust freudiano, é mais o Unlust.
Esse Lust, que nós traduzimos como prazer, Freud o correlacionou à ideia de
excitação mínima, da menor tensão ‒ no que, por outro lado, o prazer sexual
lhe coloca um problema.13

O termo Befriedigung, por sua vez, é traduzido entre nós como satisfação. Freud o
emprega no seu artigo metapsicológico sobre as pulsões: “A meta de uma pulsão é sempre a
satisfação [Befriedigung], que só pode ser alcançada pela suspensão do estado de estimulação
junto à fonte pulsional [Triebquelle]” 14. Os tradutores brasileiros ressaltam que o sentido de
satisfação, em nosso idioma, não recobre o sentido do termo Befriedigung em alemão. Por sua
etimologia, ela remete a paz, o que possibilita entendê-la como um apaziguamento. “O termo
contém o mesmo radical de Frieden, paz, e em geral, conotativamente, equivale a ‘apaziguar’
ou ‘aplacar’”15.
Já o termo Genuss tem o sentido de “prazer, curtição, gozo sem ápice”16 e é utilizado
por Freud de forma coloquial, não como um conceito. O gozo, conceito lacaniano, não se

12
HANNS, Luiz. Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 147.
13
SOLER, Colette. O em-corpo do sujeito, op. cit., p. 319.
14
FREUD, Sigmund. As pulsões e seus destinos, op. cit., p. 25
15
HANNS, Luiz. Dicionário comentado do alemão de Freud, op. cit., p. 405.
16
Id., ibid., p. 149.
5
enquadra em nenhum desses termos empregados por Freud. O gozo não pode ser a
Befriedigung [satisfação] freudiana, porque está longe de ser uma satisfação, um
apaziguamento ‒ antes o seu oposto. Tampouco pode ser o Lust [prazer]. Como indica Soler,
por suas características, ele está mais para o lado do Unlust [desprazer]. Quanto ao Genuss
[prazer sensual], que é o gozar da descarga que põe fim à tensão, o gozo está justamente do
lado da tensão que antecede essa descarga.
No Seminário 17: o avesso da psicanálise, Lacan aborda a relação entre o gozo e o
princípio do prazer.

Basta partir do princípio do prazer, que nada mais é do que o princípio da


menor tensão, da tensão mínima a manter para que subsista a vida. Isso
demonstra que, em si mesmo, o gozo o transborda, e o que o princípio do
prazer mantém é o limite em relação ao gozo.17

De fato, ele já havia dito, muitos anos antes, em “Subversão do sujeito e dialética do
desejo”: “Pois é o prazer que traz ao gozo seus limites”18. Melman, comentando esse trecho
do artigo de Lacan, diz: “O prazer, isto é, a preocupação em manter um nível de tensão
compatível com a manutenção da vida, não se deve ir longe demais senão poderia se
desagregar, tudo isso. É, portanto, o prazer que traz ao gozo seus limites”19.
Em uma mesa-redonda em 1966, promovida pelo Colégio de Medicina dos Hospitais de
Paris sobre “O lugar da psicanálise na medicina”, Lacan fala sobre o gozo e o prazer:

Que diríamos nós do prazer? Que é a menor excitação, isso que faz
desaparecer a tensão, a controla mais, portanto isso que nos detém
necessariamente em um ponto de distanciamento, de distância muito
respeitosa do gozo. Pois isso a que eu chamo gozo, no sentido de que o
corpo se experimenta, é sempre da ordem da tensão, do acosso, do gasto,
mesmo da proeza [exploit].
Há incontestavelmente gozo no nível em que começa a aparecer a dor, e nós
sabemos que é somente nesse nível da dor que se pode experimentar uma
dimensão do organismo que, de outra forma, resta velada.20

17
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 17: o avesso da psicanálise [1969-1970]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1992. p. 44.
18
LACAN, Jacques. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano [1960]. In: ____.
Escritos. Rio de Janeiro: Imago, 1998. p. 807-842. p. 836.
19
MELMAN, Charles. A neurose obsessiva no divã de Lacan: um estudo psicanalítico. Rio de Janeiro: Imago:
Tempo Freudiano, 2011. p. 90.
20
LACAN, Jacques. La place de la psychanalyse dans la médecine [1966]. Bulletin de l’Association freudienne
international, Paris, Éditions de l’A.F.I., n. 80, p. 3-16, nov. 1998. p.10. Tradução minha para os trechos citados.
6
Já em 1971, no Seminário 19,...ou pior, Lacan define o gozo da seguinte forma: “Gozar
é usufruir de um corpo. Gozar é abraçá-lo, é estreitá-lo, é picá-lo em pedaços”21. Na sua
definição de gozo, Lacan faz referência ao corpo, evidenciando o que ele dirá mais adiante,
que para gozar é preciso um corpo. No Seminário 20: mais, ainda, ele diz: “Um sujeito, como
tal, não tem grande coisa a fazer com o gozo”22. Soler comenta essa passagem, dizendo:

Ao contrário, um corpo sim, e nós sabemos que o sujeito tem um corpo.


Então, quando ele diz ‘para gozar, é preciso um corpo’, não se trata do corpo
da imagem, trata-se do corpo substancial, que está, finalmente, colocado
como condição do gozo, mesmo se essa condição não seja suficiente.23

Lacan inclui ainda uma menção indireta a Sade, um dos seus escritores favoritos,
mostrando que o gozo não é um uso tranquilo do corpo, mas que, deixado por conta própria,
sem limites, ele pode levar à destruição do próprio corpo. Finalmente, cabe frisar que apesar
dessa distinção importante entre prazer e gozo, isso não impede que o próprio Lacan utilize,
por vezes, o termo gozo com a conotação de experiência prazerosa. Esse é um dos paradoxos
desse conceito, como veremos adiante.

1.4 Multiplicidade de conotações, gozo no singular e no plural

Vimos como alguns críticos desse conceito ridicularizam a forma como os lacanianos o
empregam para falar sobre os mais diversos temas da clínica. Mas este seria somente um
problema do mau uso do conceito? Roland Chemama chama a atenção para o fato de que o
gozo aparece na teoria e na clínica psicanalíticas a partir da teorização de Lacan, porém sob
formas muito diversas, o que torna problemático definir uma unidade conceitual.

A extensão do termo gozo não deixa, contudo, de trazer certos paradoxos.


Podemos mesmo falar de um gozo, no singular, se seus efeitos clínicos
podem ser tão diversos quanto dissemos? Se o gozo pode tomar a forma de
uma busca desenfreada do objeto tanto quanto aquela do recuo depressivo?
Veremos, entretanto, que as tentativas mais elaboradas para distinguir entre
os gozos diferentes, como aquela de Lacan, desde que ele separa o gozo
outro do gozo fálico, não suprimem esse paradoxo. Lacan, precisamente,
mesmo depois de ter operado essas distinções, não renunciará jamais a falar
de gozo no singular. Porque o conceito de gozo não é verdadeiramente
esclarecedor senão por reunir o mais diverso, talvez mesmo o mais

21
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 19: ...ou pior [1971-1972]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012. p. 31.
22
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: mais, ainda..., op. cit., p. 56.
23
SOLER, Colette. O em-corpo do sujeito, op. cit., p. 181.
7
contraditório. O gozo, em si mesmo, comporta contradições fundamentais,
cujos efeitos se fazem sentir no conjunto da clínica.24

Acerca dessa dificuldade de se chegar a uma definição do conceito de gozo, Soler faz as
seguintes considerações:

Ressalto, pois, uma confusão de registros em nossa abordagem desses


problemas. Eu creio que este amálgama que fazemos hoje em dia é em parte
suscitado pela promoção do termo gozo no ensino de Lacan e em nossa
leitura, porque o termo gozo é um termo – não é um conceito, gozo é um
termo, é uma noção, bastante difícil de circunscrever no âmbito do conceito
– que pode cobrir não só todo o campo do possível com a dor, mas também
todas as gradações e as variações do registro do prazer quando elas põem em
jogo o corpo. Dessa forma, reencontramo-nos com formulações em que o
gozo está por toda parte, a relação em nenhuma parte, mas o gozo em toda
parte!
Esse termo teve por consequência desgastar um pouco as distinções clínicas
extremamente precisas e úteis que havia nos anos 65 do ensino de Lacan. É
de tal maneira verdade que Lacan foi obrigado, impulsionado por seu
trabalho analítico, após ter promovido esse termo de gozo, o campo do gozo,
nosso campo lacaniano, foi levado a retornar às distinções e a recolocar o
gozo no plural, a fazer distinções nas formas de gozo.25

Temos aqui a leitura de Lacan feita por dois autores de escolas diferentes, que
eventualmente discordam sobre vários pontos da teoria, mas que, quando discutem o conceito
de gozo, concordam que há um problema: esse conceito é empregado em uma grande
variedade de situações clínicas, seja pelo próprio Lacan, seja por seus seguidores, o que
provocou a diluição do rigor das próprias referências clínicas. Isso pode levar a um
questionamento: afinal, um conceito que pode ser aplicado para se referir a múltiplas
situações tem o risco de se tornar inútil – um conceito que pode servir para tudo é um
conceito que não serve para coisa alguma.
Ambos, porém, consideram que esses problemas não justificariam o abandono do
conceito. Ao contrário, continuam considerando o gozo um conceito de grande importância e
utilidade na clínica e na teoria psicanalíticas.

24
CHEMAMA, Roland. La jouissance, enjeux et paradoxes. Paris: Érès, 2007. p. 8-9. Tradução minha para os
trechos aqui citados.
25
SOLER, Colette. O em-corpo do sujeito, op. cit., p. 142-143.
8
2 Gozo fálico x Gozo do Outro

2.1 O gozo fálico

Provavelmente foram esses problemas que levaram Lacan a aprofundar a definição do


seu conceito, estabelecendo, no final do seu ensino, três tipos de gozo: o gozo fálico, o gozo
do Outro e o gozo-sentido [jouïs-sens]. Para o nosso propósito aqui, vamos nos centrar nos
dois primeiros tipos ou classificações do gozo.
No Seminário, 20: mais, ainda, Lacan se empenha, desde a primeira aula, em proceder a
uma elaboração teórica do conceito de gozo, que ele já empregava de alguma forma desde o
início do seu ensino. Nesse Seminário, ele se dedica a depurar, a burilar o conceito. Na
segunda aula, indagando-se acerca da causa do gozo – lembremos que ele já havia definido a
causa do desejo –, ele chega à seguinte definição:

O significante é a causa do gozo. Sem o significante, como mesmo abordar


aquela parte do corpo? Como, sem o significante, centrar esse algo que, do
gozo, é a causa material? Por mais desmanchado, por mais confuso que isto
seja, é uma parte que, do corpo, é significada nesse depósito.26

Lacan faz essa afirmação de que o significante é a causa do gozo em uma aula em que
ele faz uma releitura da teoria da causalidade em Aristóteles, que ele interpreta de uma forma
muito peculiar. Certamente, a leitura lacaniana da causalidade em Aristóteles deixaria
arrepiado qualquer filósofo ou estudioso de filosofia que tomasse conhecimento dela.
Ora, na definição de Lacan, o significante é a causa material do gozo. Lembremos
rapidamente que, para Aristóteles, a causa material é a própria matéria daquilo que está sendo
investigado. No caso de uma estátua, por exemplo, a causa material é a matéria de que ela é
feita: bronze, mármore, etc. Lacan afirma, portanto, que o significante é a própria matéria do
gozo. Ainda na sequência, ele diz: “Sem o significante, como mesmo abordar aquela parte do
corpo?”27. A nossa condição de seres falantes nos impede um acesso direto ao gozo sem
passar pela linguagem. Não podemos simplesmente gozar do corpo do Outro como um animal
gozaria, sem o significante. Assim como ele é um elemento isolável na cadeia da fala, no que
concerne ao gozo, o significante recorta o corpo, tomando-o não em sua totalidade, mas por
partes, elementos isoláveis.

26
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: mais, ainda, op. cit., p. 30.
27
Id., loc. cit.
9
Trago um comentário de Soler sobre essa passagem do Seminário 20:

[...] o significante, causa material do gozo, como comentar isso?


Resumamos, [...] dizendo: sem significante, não há meio de isolar a parte do
outro corpo a ser gozada. Com efeito, é uma maneira de dizer: o significante
recorta a zona erógena, mas não somente a zona erógena, recorta sobre o
corpo do outro o objeto, a parte erógena.28

Temos aqui uma distinção entre o conceito freudiano de zona erógena e a noção de
parte erógena. Eu entendo que ao empregar essa noção mais genérica, a autora quer destacar
o aspecto físico, material, da parte que o gozo recorta no corpo da parceira ou do parceiro.
Lembremos que essas partes não são as mesmas para o sujeito situado numa posição
masculina e para o sujeito numa posição feminina, como vimos na aula anterior. Ou seja,
diferentes posições de gozo do sujeito implicam diferentes objetos de gozo.
Ainda na mesma página desse Seminário, um pouco antes desse trecho, Lacan afirma:

Como o sublinha admiravelmente essa espécie de kantiano que era Sade, só


se pode gozar de uma parte do corpo do Outro, pela simples razão de que
jamais se viu um corpo enrolar-se completamente, até incluí-lo e fagocitá-lo,
em torno do corpo do Outro.
Gozar tem esta propriedade fundamental de ser em suma o corpo de um que
goza de uma parte do corpo do Outro. 29

A referência a Sade não deve ser tomada como alusão ao gozo perverso, mas ao que
poderíamos chamar de o fetichismo mais comum, aquele que é típico da sexualidade
masculina. Isso porque se trata do que ele chama de um gozo do órgão, não do corpo na sua
totalidade. “Vou um pouco mais longe – o gozo fálico é o obstáculo pelo qual o homem não
chega, eu diria, a gozar do corpo da mulher precisamente porque o de que ele goza é do gozo
do órgão”30.
Chemama assim comenta: “Trata-se, antes, disso que um homem pode comumente
aproximar do gozo, que sempre tem relação com o parcial31; não é indispensável que ele
chegue a recortar realmente sua parceira”32. Observem que ainda que o autor se refira ao

28
SOLER, Colette. Lecture commentée du Séminaire Encore. Paris: Hôpital Sainte-Anne, oct. 1999/juin 2000. p.
44. Tradução minha para os trechos aqui citados.
29
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: mais, ainda..., op. cit., p. 30.
30
Id., ibid., p.14.
31
O autor cita os dois termos em francês: partiel (que constitui uma parte de um todo) e partial (que toma
partido em relação às partes em disputa). Em português, temos uma única palavra com os dois sentidos (N. do
A.)
32
CHEMAMA, Roland. La jouissance, enjeux et paradoxes, op. cit., p. 118.
10
homem no seu comentário, essa característica do gozo, que é causado pelo significante fálico
e, ao mesmo tempo, limitado por ele, não é exclusiva do gozo do sujeito na posição
masculina. Para uma mulher, enquanto experimenta o gozo fálico, ela experimentará a mesma
limitação. Diz Lacan: “O gozo, enquanto sexual, é fálico, quer dizer, não se relaciona ao
Outro como tal”33. Soler comenta: “Falamos aqui do gozo extraído da relação [relation]
sexual. Há muitas formas de gozo, aqui, falamos do gozo no limite do coito [...]. Portanto, o
gozo não faz relação [rapport] [...]”34.
Portanto, no que diz respeito ao sexo, à relação sexual no sentido de coito, de cópula –
que semanticamente, em francês, pertence ao campo do termo relation –, nem os homens nem
as mulheres têm acesso ao Outro, mas apenas aos objetos que o gozo toma no corpo da
parceira ou do parceiro. O gozo é solitário, mesmo se ele é extraído do encontro sexual com
outra pessoa – como diz Lacan, é o corpo de um que goza de uma parte do corpo do Outro.
Por isso não há relação [rapport] sexual, no sentido de razão ou proporção entre os sexos.
Chamo a atenção de vocês para a metodologia adotada por Lacan para definir os gozos
no Seminário 20. Lacan começa falando do gozo no singular, sem adjetivá-lo, para aos poucos
dar a sua definição do gozo fálico. Ficamos assim sabendo que se trata de um gozo
determinado pelas leis da linguagem – o que pressupõe a passagem pela castração. Trata-se do
gozo mais comum: não somente gozo sexual, mas também gozo do trabalho, do sintoma, do
sofrimento, da criação artística... Em suma, aquele que o sujeito sempre encontra. Por isso
Soler vai dizer: “Portanto, tudo que passa nas palavras é gozo fálico”35. É um gozo que se
escreve, que está inscrito na linguagem. Novamente Soler: “O gozo fálico não cessa de se
escrever, não há senão ele que se escreve”36.
Notem a diferença entre essa formulação teórica e aquela de Freud, que situava o
homem como fálico e a mulher como não fálica ou castrada. “Freud amarra homem e mulher
ao mesmo e único piquete, o do gozo fálico, para explicar a forma e o limite de suas
agitações. [...] Lacan pôde distinguir, além do gozo fálico, um gozo suplementar, Outro,
próprio àquela ou àquele que optou pela posição feminina”37. Para Lacan, ambos participam
do falicismo, no sentido do gozo fálico, que concerne à castração simbólica e às leis da

33
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: mais, ainda..., op. cit., p. 16.
34
SOLER, Colette. Lecture commentée du Séminaire Encore, op. cit., p. 70.
35
Id., ibid., p. 105.
36
Id., ibid., p. 91.
37
MELMAN, Charles. O gozo Outro. In:______. Alcoolismo, delinquência, toxicomania: uma outra forma de
gozar. Organização e revisão técnica de Contardo Calligaris. São Paulo: Escuta, 1992. p. 149-153. p.149.
11
linguagem. Porém, além desse gozo, a mulher tem acesso a um gozo que ele qualifica como
“suplementar”38. Que gozo é esse e quais as suas características?

2.2 O gozo Outro

Uma vez definido o gozo fálico, o que poderíamos dizer acerca desse Outro gozo? Eis
como Lacan fala dele: “Há um gozo, já que nos atemos ao gozo, gozo do corpo, que é, se
posso me exprimir assim [...], para além do falo”39. Chemama40 assim se refere a esse gozo:

A partir daí, se opusermos a esse primeiro gozo [o gozo fálico], um segundo,


que tomamos por dessemelhante, podemos ser tentados a concebê-lo como
experimentando o corpo de maneira mais direta que o primeiro. E, de uma
certa forma, são então todas as satisfações primordialmente corporais, todas
aquelas que colocam entre parênteses a linguagem, que nós remetemos a
esse gozo outro.

Lacan denomina esse gozo, distinto do gozo fálico: gozo do Outro. Logo no início do
Seminário 20: mais, ainda, ele faz uma observação muito importante a esse respeito,
esclarecendo que a expressão gozo do corpo tem dois sentidos: objetivo e subjetivo.

[...] gozar do corpo comporta um genitivo que tem essa nota sadiana à qual
acrescentei uma pincelada, ou, ao contrário, uma nota extática, subjetiva, que
diz que em suma é o Outro que goza.41

É preciso ficarmos atentos para um ponto muito importante: quando lemos no texto de
Lacan a expressão gozo do Outro, precisamos identificar se ela é empregada no sentido
objetivo (tomar o Outro como objeto do seu gozo) ou no sentido subjetivo (é o Outro que
goza, o sujeito experimenta a sensação de ser gozado pelo Outro). Lacan passa de um ao outro
sem avisar, como sempre faz. Pesquisando42 o Seminário 20, pude notar que, nas primeiras
aulas desse Seminário, predomina o primeiro caso, ou seja, Lacan ainda não está falando de
um gozo distinto do gozo fálico. Nesse caso, trata-se do gozo do Outro, no sentido objetivo,
gozo do corpo que simboliza o Outro, que corresponde à tentativa do sujeito de gozar do
corpo do Outro na sua totalidade, tentativa fracassada já que não somos capazes de envolver

38
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: mais, ainda..., op. cit., p.79.
39
Id., ibid., p.80. Grifos do autor.
40
CHEMAMA, Roland. La jouissance, enjeux et paradoxes, op. cit., p. 119.
41
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: mais, ainda..., op. cit., p. 30.
42
TEIXEIRA, Marcus do Rio. Os gozos: sobre duas dicotomias presentes no Seminário 20: mais, ainda.
In:______. Vestígios do gozo. Salvador: Ágalma: Campo Psicanalítico, 2014. p. 99-117.
12
totalmente o corpo do qual gozamos, não somos amebas, como lembra Lacan. É impossível
gozar do corpo que simboliza o Outro a não ser por partes, elementos isoláveis pelo
significante, como vimos. Lembrem-se de que Lacan se refere ao gozo fálico como o
obstáculo que impede o homem de gozar do corpo da mulher.
Por isso Lacan afirma que o gozo do Outro não existe, afirmação que deixa muitos dos
seus leitores desconcertados. Soler comenta essa afirmação: “Eis porque Lacan insistirá em
seguida, em 1974 e 1975, em dizer: não há gozo do Outro, no sentido objetivo do de: não se
goza do Outro”43. Ou seja, não é que só exista o gozo fálico, que o gozo do Outro não exista,
como alguns entenderam equivocadamente. O que Lacan ressalta é que só podemos gozar do
corpo do Outro por partes.
É isso que Lacan chama de “nota sadiana” – mais uma referência a Sade –, ou seja, a
tendência do homem a recortar as formas imaginárias do objeto a no corpo da sua parceira, o
que leva Lacan a dizer que “O ato de amor é a perversão polimorfa do macho, isso entre os
seres falantes”44. Mas essa busca das partes do corpo para gozar não se restringe ao homem,
pois, no âmbito do gozo fálico (que vale para homens e mulheres), uma mulher buscará no
corpo do seu parceiro o órgão que encarna o falo. “Quanto a uma mulher, ela tem um acesso
mais direto ao objeto real, quer dizer, ao pênis, mesmo que só esteja ali a título representativo,
se posso dizer, desse falo que funciona no inconsciente”45.
Até aqui, nós falamos do gozo do Outro no sentido objetivo, mas quanto ao sentido
subjetivo, no qual é o Outro que goza? Lacan se refere a ele, como vimos, como um gozo
“além do falo” 46
. Escapando à linguagem, esse gozo é colocado na categoria do indizível.
Lacan dá um estranho exemplo: o êxtase dos santos, sempre inacessível à linguagem. Essa é a
“nota extática” a que ele se refere. Isso não significa, contudo, que essa seja a única forma
desse gozo, tampouco a mais comum, ao contrário. “Com efeito, não se pode imaginar que o
gozo suplementar seja ilustrado unicamente pelos místicos, com os quais, aliás, a psicanálise
tem pouquíssimo a ver”47. Lacan provoca, então, as analistas mulheres para que elas digam
algo a respeito desse gozo:

O que dá alguma chance ao que avanço, isto é, que, desse gozo, a mulher
nada sabe, é que há tempos que lhes suplicamos, que lhes suplicamos de

43
SOLER, Colette. O em-corpo do sujeito, op. cit., p. 158.
44
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: mais, ainda..., op. cit., p. 78.
45
MELMAN, Charles. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro: Companhia de Freud,
2003. p. 52.
46
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: mais, ainda..., op. cit., p. 80.
47
SOLER, Colette. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 37.
13
joelhos – eu falava da última vez das psicanalistas mulheres – que tentem
nos dizer, pois bem, nem uma palavra!48

Essa famosa provocação de Lacan joga com a propriedade do gozo do Outro: por não
ser um gozo do significante, ele não pode ser dito. Marc Darmon assim comenta:

Mas e quanto ao gozo do Outro, no sentido subjetivo, o gozo próprio ao


Outro, que nos habituamos a chamar também de “gozo Outro”? [...] Pois
bem, vocês sabem que Lacan falou dele no Seminário Mais, ainda como o
gozo místico, por exemplo, é por isso que alguns homens não são
indiferentes a esse gozo Outro, há místicos homens. Trata-se, portanto, de
um gozo que não se limita a esse fechamento fálico, que vai além e sobre o
qual, diz ele, as mulheres não dizem nada, não podem dizer nada sobre ele.
Mas por que é que elas não podem dizer nada sobre ele? Poderíamos assim
mesmo avançar o seguinte: elas não podem dizer nada sobre ele por uma
razão de estrutura, porque se o gozo fálico é aquele organizado pela
linguagem, pelo significante, o gozo do Outro não é menos organizado pelo
simbólico, mas visa um para além da linguagem. De algum modo escapa ao
discurso e se experimenta no corpo. [...] É a outra vertente da relação
impossível entre significante e Real, pois a vertente fálica é essa
impossibilidade que é vivida como um fracasso, na vertente do gozo do
Outro é essa impossibilidade que é vivida como um para além, que é
experimentada como um para além.49

Mas em que consistiria exatamente esse gozo? Na maior parte dos trabalhos de autores
lacanianos sobre o tema parece haver uma indicação relativa ao orgasmo feminino, seja de
forma analógica, seja diretamente, como sinônimo. Se buscarmos um esclarecimento no texto
de Lacan, isso não nos ajudará muito. No Seminário 20, ele faz algumas referências ambíguas
ao orgasmo feminino, quando diz:

Então a gente o chama como pode, esse gozo, vaginal, fala-se do polo
posterior do bico do útero e outras babaquices. Se simplesmente ela o
experimentava, ela não sabia nada dele, o que permitiria lançar muitas
dúvidas para o lado da famosa frigidez.50

Digo que esses comentários são ambíguos porque, afora o fato de que são feitos no
contexto da reflexão acerca do caráter indizível do gozo Outro, este parece indicar que se trata
de um gozo sexual, embora em outros lugares não se refira a esse gozo como um gozo sexual.

48
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: mais, ainda..., op. cit., p. 80-81.
49
DARMON, Marc. O gozo fálico e o gozo do Outro: a inacessibilidade do dois, um sintoma de Badiou. 27 nov.
2007. Tradução Sérgio Rezende. Disponível em: www.tempofreudiano.com.br. Acesso em: 12 maio 2013.
50
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: mais, ainda..., op. cit., p. 81.
14
Na sua conferência italiana “A Terceira”51 (realizada 16 meses após o Seminário 20: mais,
ainda), Lacan utiliza o termo parassexuado para se referir ao gozo do Outro. Esse termo é
curioso, pois etimologicamente o prefixo grego para, presente em vários compostos das
línguas neolatinas, remete à ideia de “ao lado de”, “da parte de”. Lacan parece dizer com isso
que se trata de um gozo que, apesar de não ser o gozo sexual, não deixa de ter relação com
ele.
Soler considera que esse gozo Outro teria algo a ver com o orgasmo feminino, sim,
porém não por ser um sinônimo do orgasmo, mas porque, na mulher, ele interfere no gozo
fálico, enquanto gozo sexual. Isso faz com que a experiência do orgasmo feminino,
diferentemente do orgasmo masculino, marque um desvanecimento do sujeito. Soler chega a
empregar o termo devastação.

É esse o núcleo da devastação: é o gozo outro que devasta o sujeito, no


sentido forte de aniquilá-lo pelo espaço de um instante. Os efeitos subjetivos
desse eclipse nunca faltam. Vão da mais leve desorientação até a angústia
profunda, passando por todos os graus de extravio e evitação. O sentido de
algumas formas de frigidez se esclarece com isso. Aprendemos, além disso,
o que impôs a Lacan a referência aos místicos, pois que outra coisa é a
experiência mística, exatamente – todos os textos o clamam –, senão o
abolir-se no Outro, o abolir-se como sujeito de qualquer projeto de criatura?
52

A autora lembra que nada semelhante se passa do lado do homem, para quem, ao
contrário, a experiência do orgasmo tem a conotação de prazer e de alívio, daí porque é
buscada como meio de relaxamento em momentos de tensão. Outra diferença importante é a
certeza. O homem não duvida jamais se teve um orgasmo ou não – salvo em certos casos de
psicose.
A respeito dessa diferença, trago uma vinheta clínica extraída do artigo de Piera
Aulagnier sobre a Feminilidade, que eu citei na aula anterior – artigo muito importante,
porque é de 1968, anterior, portanto, à época do Seminário 20, quando Lacan apresenta sua
teoria da sexuação e fala da alteridade feminina. Piera relata o caso de uma analisante,
mulher. Esta tem um amante, e é muito apaixonada por ele. Eles se encontram secretamente,
encontros que ela descreve para sua analista como sexualmente muito intensos e prazerosos.
Um dia, ela chega à sessão arrasada. Conta que, na véspera, havia assistido a uma palestra

51
LACAN, Jacques. A Terceira. Cadernos Lacan, Porto Alegre, Associação Psicanalítica de Porto Alegre, v.2,
p.39-71, 2002. Publicação não comercial para circulação interna da APPOA.
52
SOLER, Colette. O que Lacan dizia das mulheres, op. cit., p.185.
15
sobre o orgasmo feminino intitulada “O gozo: direito feminino”. Ela mostra à sua analista o
panfleto da palestra. Segundo Piera:

A conferencista – pois se trata de uma mulher – armada de um número


impressionante de pranchas anatômicas, de esquemas neurofisiológicos, de
estatísticas variadas, vinha (eu cito [diz Piera]) “desmistificar o mito da
superioridade masculina”, revelando às suas auditoras como o gozo estava
ao alcance de todas, bastando que elas adquirissem o domínio do sistema
neuromuscular que o rege.53

O efeito dessa palestra sobre a analisante é avassalador, porque esta não reconhece na
descrição do orgasmo feminino apresentada pela palestrante nada que se assemelhe ao que ela
experimenta. Ao contrário, essa descrição parece desqualificar o que ela sentia como prazer
sexual, o que a faz questionar se o que sentia até então e que sempre considerou como
orgasmo deveria realmente ser qualificado como tal.

Eu me pergunto, conclui ela, se o meu gozo é um simulacro, um fingimento; mas o


prazer que eu experimento é, contudo, real. É como se viessem me dizer que o que
há de mais autêntico em mim é uma mentira, apesar de essa mentira ser o que
sempre me pareceu o verdadeiro por excelência.54

O que podemos extrair dessa vinheta clínica? Em primeiro lugar, a comprovação de


quanto um saber pretensamente científico, que não leva em consideração o sujeito, pode ter
efeitos devastadores sobre este – ainda que esse saber seja veiculado por alguém que se
apresenta numa missão libertadora (ou justamente por isso). Ao pretender generalizar algo
que varia para cada mulher, o saber desqualifica a experiência subjetiva. Porém, o mais
importante é a diferença entre o que o homem experimenta como certeza e uma mulher vive
como algo incerto.
O gozo Outro é teorizado por Lacan como gozo do corpo, ou seja, trata-se de um gozo
do corpo na sua totalidade, diferente radicalmente do gozo fálico, que isola no corpo
elementos distintos, recortados pelo significante. Essa relação com o corpo enquanto
totalidade não pode ser descrita. Há um hiato entre o que se passa no corpo e o que pode ser
colocado em palavras. Outra forma de colocar a questão seria dizer que, além de uma
limitação da linguagem, o gozo que se experimenta no corpo é algo que não foi gerado pela

53
AULAGNIER-SPAIRANI, Piera. Remarques sur la feminité et ses avatars. In: AULAGNIER-SPAIRANI,
Piera; CLAVREUL, Jean; PERRIER, François; ROSOLATO, Guy; VALABREGA, Jean-Paul. Le désir et la
perversion. Paris: Seuil, 1967. p. 55-89. p. 59. Tradução minha para os trechos aqui citados.
54
Id., loc. cit.
16
linguagem, não é um efeito dela. “[...] há um gozo do corpo que não é fabricado pelo discurso,
o discurso se limita a lhe dar forma. Ele lhe dá forma de Um e também lhe dá sentido”55.

55
SOLER, Colette. Adventos do real: da angústia ao sintoma. São Paulo: Aller, 2018. p. 223.
17

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