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INSTITUTO POLITÉCNICO DE LEIRIA

ESCOLA SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DE LEIRIA

CURSO DE COMPLEMENTO DE FORMAÇÃO


EDUCADORES DE INFÂNCIA, 2º ANO.

Disciplina: Estratégias de Desenvolvimento Pessoal e social

Dirigido ao Prof.: Fernando Canastra

De: Andreia Sofia Fernandes


Catarina Santos Martins
Licínia Ferreira
Marina Pereira

LEIRIA
Junho de 2004

Introdução

A educação pré-escolar tem como objectivo principal proporcionar às crianças, de


ambos os sexos uma formação global, que contribua para a formação da sua própria
identidade e paralelamente para a construção de uma concepção da realidade, onde se
encontra integrado simultaneamente o conhecimento e a valorização ética e moral da
mesma. A educação permite combater gradualmente a discriminação e a desigualdade,
sejam estas por razões de nascimento, sexo, raça, religião ou opinião.
Toda a acção educativa deverá estar sob certas condições e normas que
contribuam para o desenvolvimento de atitudes, valores e hábitos sociais. As
aprendizagens afectivas e sociais deverão ser feitas simultaneamente com o trabalho
diário no jardim de infância.
Na nossa prática diária apercebemo-nos frequentemente de que as crianças já
trazem consigo hábitos, atitudes e valores estereotipados, alicerçados no seio das suas
famílias e da comunidade em que estão inseridas, que contribuem para a construção da
criança como sujeito social pertencente a um determinado grupo de indivíduos
diferentes mas com características comuns.
É partindo desta bagagem que cada criança traz de casa, que devemos trabalhar,
não com intenção de a moldar à nossa imagem, segundo os nossos valores, mas
proporcionando-lhe um ambiente facilitador à sua manifestação e construção dos seus
próprios valores e atitudes, ajudando na formação da sua identidade pessoal e social.
Assim, o presente trabalho, pretende abordar a problemática dos estereótipos de
género, associados às profissões e saber de que modo estão representados num grupo
heterogéneo, de 18 crianças de 4 e 5 anos, num jardim de infância do meio rural. Para o
desenvolvimento deste tema, construímos o cantinho do cabeleireiro.
O presente trabalho, divide-se em duas partes. Na primeira fazemos uma pequena
fundamentação teórica sobre os estereótipos de género, da forma com estes são
transmitidos à criança, através da família e da sociedade, onde se inserem as profissões.
Abordamos também o valor da cidadania e as atitudes auto-estima, respeito mutuo e a
tolerância, bem como a estratégia da narrativa, por nós utilizada, para compreendermos
até que ponto os comportamentos das crianças estão influenciados pelos estereótipos de
género, e de que modo são observados o valor e as atitudes referidos anteriormente.
Na segunda parte deste trabalho, apresentamos o projecto de actividade que
desenvolvemos. A partir de um grupo de crianças de um jardim de um meio rural,
planificamos uma série de actividades, para as quais definimos conteúdos, objectivos e
estratégias, em seguida descrevemos o seu desenrolar. Após a conclusão do cantinho do
cabeleireiro, iniciamos um período de cinco dias de observação, que nos permitiu fazer
uma análise e tirar algumas conclusões acerca da problemática em evidência.
1. Estereótipos de género

1.1. A sociedade

As diferenças físicas e psicológicas entre o homem e a mulher estão associadas


tanto a nível histórico, social como a nível cultural, a um conjunto de atitudes e
comportamentos diferenciados por sexos, onde se observa que existem comportamentos
considerados próprios para os homens ou para as mulheres. Existem hábitos socialmente
aceites e assumidos como típicos dos homens ou das mulheres.
A forma como se encontram estruturados os géneros tem vindo a sofrer poucas
alterações, no tempo e no espaço, na nossa sociedade. Os conceitos, atitudes e
concepções anteriores mantiveram-se quase constantes, apesar das mudanças que foram
ocorrendo na sociedade.
A identificação com o género, não se pode restringir apenas às características
biológicas sexuais de cada indivíduo, mas também com o seu auto-conceito, que se
define como a ideia que cada indivíduo faz de si próprio, como um ser físico, social e
moral. O auto-conceito é o pilar da personalidade que sofre influências a nível físico,
social, emocional e cultural.
Segundo Humm, «o sexismo define-se por preconceitos, estereótipos e
discriminações baseadas no sexo da pessoa». Na nossa sociedade, estabelecem-se
diferenças entre os sexos de acordo com a atribuição que é dada a cada um deles e a
partir de determinadas características próprias de cada sexo, às quais se relacionam
papéis ou funções sociais identificados como específicos de homens e de mulheres. Na
cultura portuguesa, a expressão “os homens não choram” é frequente, ilustrando uma
mentalidade sexista que nega aos homens a expressão de emoções, definidas como
atributos exclusivos das mulheres (Humm, cit. in, Carmo 2001:285).
Esta expressão ilustra os estereótipos de género enraizados na sociedade, uma vez
que estes podem ser definidos como «[...] expectativas e crenças partilhadas acerca de
comportamentos apropriados e características para homens e mulheres numa dada
sociedade» (Rodrigues; 2003: 24). Estes estereótipos influenciam os padrões de
comportamento relativos ao género, desta forma as atitudes e comportamentos,
percepções e preferencias dos indivíduos estão condicionados pelas expectativas sociais
de uma sociedade. Daí que socialmente, a forma como as pessoas pensam que os
homens e as mulheres diferem, tem mais influência do que a forma como elas realmente
diferem.

1.2. A criança
A criança à medida que vai crescendo, desenvolve-se como um todo, integrado
com uma intensa dinâmica aos níveis social, físico e cognitivo, acompanhada de uma
crescente diferenciação, tornando-se num ser cada vez mais único.
«À medida que cresce, a criança torna-se progressivamente mais ciente de que
as pessoas diferem umas das outras e dela própria. Ao mesmo tempo, adquire uma
concepção mais clara do seu próprio eu e da sua personalidade, o que ela realmente é,
aos seus próprios olhos e aos dos outros» (Gleitman; 2002: 746).
Após o nascimento, a criança é categorizada de “menino” ou “menina”, o que
determinará grande parte das características da interacção entre a criança e o meio a que
passa a pertencer. Desta forma, desencadeia-se um processo de socialização diferencial,
no qual a criança vai aprendendo e adquirindo as normas e valores definidos
previamente como adequados e desejáveis para a sua categoria sexual e, que vão de
encontro às expectativas culturais definidas e próprias de cada sociedade. A criança
apreende a realidade social de formas diferentes, de acordo com as interacções que
estabelece com os outros, a sua família, os seus pares e outros adultos.
É no seio familiar, que a criança forma os seus marcos de referência, valores, e
códigos que posteriormente a irão construir, como sujeito social, com consciência de
pertencer a um determinado grupo, relacionando-se com indivíduos diferentes, mas com
características comuns. Empenhando-se emocionalmente num género como
consequência de um processo de identificação parental.
O pai e a mãe apresentam-se à criança como os primeiros modelos,
influenciando a forma como se posicionará na sociedade e, também a forma como vai
construindo a imagem do outro sexo. «A primeira valoração do feminino e do
masculino ocorre na família, com a consequente subalterizaçao do sexo feminino.»
(Romão; 1990: 168).
«Durante a socialização primária os pais reforçam positivamente ou
negativamente, com comportamentos diferentes, a conduta do filho ou da filha. De uma
forma consciente ou inconsciente, estão-se assim a propor à criança modelos a imitar,
modelos com os quais vai aprender a ser rapaz ou rapariga». (Vieira; 1998: 108).
Através de ambientes extrafamiliares, nomeadamente no Jardim de Infância, a
criança tem oportunidades para contactar com os outros, seus iguais que, tal como ela,
procuram e constroem a sua identidade. É através desse contacto que a criança
experimenta relações e sentimentos diferentes, necessários para a superação dos vários
estádios de maturação.
Desta forma, a educação pré-escolar oferece à criança uma nova e cada vez mais
ampla gama de experiências de «[...] expansão sensorial e relacional, de abertura
intelectual genérica, de progressão flexível do subjectivo para o objectivo, configurando
as primeiras estruturas cognitivas que permitam à criança aproximar-se de uma
assunção lógica e relacional da realidade cultural.» (Zabalza; 1992: 71). A escola é assim
chamada a actuar sobre um sujeito possuidor de uma bagagem de experiências prévias
que estão marcadas pelo meio familiar e sócio-cultural de origem, sobre um sujeito com
um ritmo particular de aprendizagem que é resultado do seu próprio potencial de
desenvolvimento.
O jardim de infância permite à criança entrar no mundo dos adultos através do
desempenho de papeis, reproduzindo modelos sociais e acontecimentos do meio que a
rodeia. O seu significado e contexto confundem a criança ou escapam à sua
compreensão, no entanto ajudam a dar um sentido próprio às situações e aos
acontecimentos (Hohmann; 1992: ).
A sala do jardim de infância encontra-se espacialmente dividida em áreas
específicas, que proporcionam os jogos de faz de conta. A área da casa transforma-se
numa área de simulação e de desempenho de papéis, onde as crianças têm a
oportunidade de trabalhar em conjunto, de exprimir ideias e de comunicarem com os
outros, respondendo assim às suas necessidades.
Quando as crianças se distribuem pelas várias áreas, verifica-se que são
influenciadas pelos estereótipos de género ao preferirem os brinquedos e jogos tidos
como típicos e adequados ao seu género. «Inquestionavelmente a adopção dos
comportamentos esperados socialmente e o empenhamento preferencial nas actividades
apropriadas ao seu género, cujas características podem diferir substancialmente das
actividades apropriadas ao outro género, fazendo com que rapazes e raparigas tenham
experiências distintas, o que se poderá repercutir no seu desenvolvimento motor,
cognitivo, social e afectivo.» (Neto et al; 1999: 16)
O que se verifica é que, quando as meninas e os meninos se envolvem em
brincadeiras, o estereótipo do papel masculino é mais rígido, mais controlado que o do
feminino. Deste modo, o menino é mais pressionado socialmente a ter atitudes e
comportamentos enquadrados no seu género, paralelamente, nas meninas não existe um
controlo tão apertado.
Na legislação actual portuguesa é valorizada a promoção do desenvolvimento
pessoal e social da criança numa perspectiva de educação para a cidadania, fomentando
a sua inserção em grupos sociais diversos e contribuindo para a igualdade de
oportunidades. Apesar desta ser a posição oficial do estado, existem fortes oposições
sociais e culturais que a contrariam, nomeadamente os meios de comunicação social, em
especial destaque para a televisão; os manuais escolares; outros livros dirigidos às
crianças, e outros materiais pedagógicos, que oferecem modelos estereotipados, de
acordo com a realidade social, onde estão inseridos. Sendo por isso, veículos de
desigualdade e modelos distorcidos que “ensinam a discriminação” (Souta;1990:70).
Além destes aspectos há ainda a referir o papel do educador, marcado pela sua
própria história, que condiciona toda a sua actuação profissional.

1.3. As profissões

O facto dos profissionais de educação infantil serem predominantemente do sexo


feminino, reproduz o estereótipo que consiste em crer que a educação dos mais novos
deverá estar a cargo das mulheres. Tal como a educação, as outras profissões que são
destinadas às mulheres, « [...] correspondem a funções que são vistas como compatíveis
com a “natureza feminina” e que implicam na maior parte das vezes, o cuidar dos outros
[...] daí resultando o exercício de funções que podemos designar por “maternidade
social” (é o caso, entre outras, das profissões de educadora, de professora e de
enfermeira) (Carmo; 2001:287).
Por outro lado, existem profissões que são tidas como tipicamente masculinas,
como é o caso da profissão de mecânico, motorista, topógrafo entre outros. Verificando-
se que, quando estão ambos os sexos a ocupar os mesmos domínios profissionais, as
mulheres dificilmente atingem o topo da carreira, ou ocupam lugares de chefia,
concentrando-se em profissões de menor estatuto e remuneração.
Paralelamente quando os homens escolhem uma profissão tida como feminina,
sofrem um desprestígio social e preconceito por parte da sociedade onde estão inseridos.
2. Valor e Atitudes

A Formação Pessoal e Social é uma área transversal, que atravessa todas as áreas
da educação pré-escolar que se articulam entre si. Esse facto tem a ver com a forma
como a criança se relaciona consigo própria, com os outros e com o mundo, num
processo que envolve o desenvolvimento de atitudes e valores. Todas as componentes
curriculares deverão contribuir para o desenvolvimento nas crianças de atitudes e
valores, que lhes permitam tornarem-se cidadãos conscientes e solidárias, com
capacidade para resolver problemas, inserindo-se na comunidade como indivíduos
autónomos e livres.
A educação pré-escolar encontra-se marcada por finalidades educativas de
socialização, contribuindo para que a criança aprenda a tomar consciência do eu e dos
outros, e que desenvolva valores morais, comportamentais, afectivos, cívicos, estéticos
e espirituais.
Os valores não se ensinam, vivem-se no dia-a-dia, na relação com os outros. A
vivência do quotidiano, em grupo, implica o constante confronto de opiniões e a procura
de soluções para os conflitos. A consciência da existência das diferentes perspectivas e
valores, vai de alguma forma fomentar atitudes de tolerância, compreensão do outro e
respeito pela diferença, contribuindo desta forma, para a construção da identidade, da
auto-estima e do sentimento de pertença colectiva.
O Jardim de infância é a primeira etapa da educação, devendo proporcionar à
criança um clima aberto e tranquilo, bem como actividades e aprendizagens que a levem
a desenvolver-se num todo, onde a aceitação das diferenças sexuais e sociais são uma
forma de igualitar as oportunidades no processo educativo. É de forma lúdica que a
criança manifesta as suas vivências e os seus sentimentos, mas também é desta forma
que a criança poderá desenvolver o valor da Cidadania, através de atitudes de auto-
estima, respeito mútuo e tolerância.
Apesar de termos consciência de que muitos outros valores e atitudes estão
subjacentes na nossa actividade diária, incidiremos a nossa atenção sobre os referidos
anteriormente, a partir da actividade que nos propomos desenvolver – O cantinho do
Cabeleireiro.
De seguida, procuramos apresentar de forma sucinta, o valor e as atitudes em foco
no nosso trabalho:
Cidadania pode ser definida como um comportamento característico da vida em
sociedade, devendo todos os cidadãos estar conscientes dos seus direitos e deveres, e
predispostos a construir uma sociedade de direito e liberdade, de justiça e de
solidariedade.
A criança desde cedo deve de ser educada para adquirir um comportamento cívico.
Esta educação está associada ao desenvolvimento cognitivo, emocional e sócio – moral
de cada indivíduo, e «também às informações que nos ajudam a conhecer e reflectir
sobre factos e acontecimentos, mas igualmente a valores, atitudes e crenças que nos
ajudam a tomar sobre eles posições reactivas e pró-activas. Ou seja, a pessoa deve
conhecer o Mundo, mas também deve conhecer-se a si própria, conhecer os seus estados
de espírito, ter uma imagem consciente de si própria, equacionar reflexivamente a sua
relação consigo própria, com os outros e com o mundo.» (Serra, :02)
A auto-estima é um conjunto de «...percepções, pensamentos, avaliações,
sentimentos e tendências comportamentais dirigidos para nós mesmos, para a nossa
maneira de ser e de nos comportarmos, para as características do nosso corpo e do nosso
carácter...» (Bonet, 2002: 14) que determinam as nossas atitudes.
Este sentimento tem o seu início na infância e é neste período, que deve ser
cultivado positivamente. Desta forma, possui um papel muito importante, pois ele
baseia-se na forma como a criança se vê a si própria, se gosta ou não do que vê, tanto a
nível físico como intelectual e também como acha que os outros a vêm.
O respeito mútuo é um sentimento que se desenvolve na criança em função da
interacção que ela estabelece com o seu meio social. Desde que nasce, a criança é
confrontada com uma série de normas básicas de convivência e de conduta, que têm
como finalidade «o respeito de si próprio e do outro, na consideração dos desejos
próprios e alheios, na predisposição para cumprir as regras do jogo e para ceder em caso
de conflito» (Bonet; 2002: 87).
O respeito pelo outro passa em primeiro lugar pelo respeito que tem de si própria,
dado que «a incompreensão de si é uma fonte muito importante para a incompreensão
do próximo» (Morin;1999:103). Uma vez que ao esconderem as suas próprias carências e
fraquezas, se tornam impiedosos para com as carências e fraquezas dos outros.
A diversidade está presente em todas as manifestações do ser humano, todos
somos diferentes e é essa diferença que nos torna únicos e singulares. O respeito mútuo
permite que a diferença seja aceite e compreendida, sendo «um hábito que se adquire,
como todos os hábitos, pela repetição dos actos, pela insistência em comportamentos
destinados a acabar com qualquer forma de separação do diferente pelo simples facto de
ser diferente” (Camps;1994:54).
Ser tolerante é saber respeitar e aceitar a riqueza e a diversidade das culturas
existentes no nosso mundo e os diferentes modos de exprimir a nossa qualidade,
enquanto seres humanos. A tolerância é fundamentada pelo conhecimento, abertura de
espírito, comunicação, liberdade de pensamento e de consciência.
Deste modo e, tendo em conta que a intolerância surge apenas em ambientes de
ignorância cultural, a educação pode e deve ter um papel preponderante, pondo em
convivência e harmonia as diversas culturas. A educação terá obrigatoriamente que ser
multicultural, partindo das vidas das próprias crianças e procurando compreender as
atitudes e ideias de cada uma. A tolerância, funda-se essencialmente no respeito pelo
outro e no direito de cada um ser aceite, em comunidade, tal como é.
A escola será assim um exemplo de prática da tolerância, «a fim de manter a
paz, a justiça, o respeito dos direitos do homem e de favorecer o progresso social. A
tolerância não se pode manifestar sob a sua forma mais activa senão num
enquadramento onde são respeitadas a dignidade humana e as liberdades públicas.»
(documento da UNESCO 27C/25 (22)

3. Estratégia utilizada -a narrativa.

O nosso trabalho desenvolveu-se numa sala de actividades de um jardim-de-


infância, com crianças de quatro e cinco anos de idade em que o tema do projecto
pedagógico é “Quem somos?”. Dentro deste projecto as crianças têm vindo a trabalhar o
tema das profissões, na sequência do qual surgiu a ideia da construção do cantinho do
cabeleireiro, que foi o ponto de partida para o desenrolar da nossa estratégia de
desenvolvimento pessoal e social, a narrativa.
Propusemo-nos a observar, narrar, analisar e interpretar o modo como as crianças
percebem e vivenciam a profissão de cabeleireiro, e tudo o que lhe está inerente.
Criámos uma situação que nos possibilitou dar oportunidade às crianças de interagirem
livremente com os seus pares, e observar como se comportam, e que atitudes assumem
quando se envolvem nesta área de actividades.
As crianças tiveram a possibilidade de desempenharem o papel de cabeleireiro e
de cliente, podendo falar livremente de si mesmos, das suas vivências e da forma como
vêem o mundo.
Ao longo de cinco dias, procurámos fazer uma observação mais minuciosa de
atitudes e comportamentos que nos poderiam ter passado despercebidos. Para tal,
alternámos uma observação participante com uma observação não participante, de
forma a conseguirmos ter uma noção mais aproximada do modo como vêem o mundo.
As crianças desta faixa etária têm uma visão muito própria acerca da realidade, que vão
construindo com base nas suas vivências e que é de extrema importância para o
processo de construção da identidade pessoal.
Pretendemos com este trabalho observar se o valor – cidadania e as atitudes auto-
estima, respeito mútuo e tolerância, estão expressos nos jogos de faz-de-conta, na área
do cabeleireiro. Procurámos também compreender se há estereótipos inerentes às
atitudes / comportamentos das crianças, através daquilo que as crianças vão expressando
de uma forma verbal e não verbal.
Com a estratégia narrativa pretendemos dar voz às crianças levando-as a
reconhecerem o seu lugar e importância no mundo, através da atenção cuidada da
educadora, ao longo de todo o processo de observação. Sempre que se apresente
necessário, a educadora passará a uma intervenção intencionalizada de modo a garantir
que haja uma igualdade de oportunidades para todas as crianças do grupo.
1. Projecto: “ Vamos construir o cantinho do cabeleireiro.”

Identificação:

Jardim de Infância: Centro Paroquial de Assistência do Reguengo do Fétal.


Sala dos Golfinhos: 18 crianças, dos quais 10 são rapazes e 8 raparigas.
Idade: 4 e 5 anos de idade.
Calendarização: O Projecto decorrerá ao longo do mês de Abril.

2. Planificação

Conteúdos Objectivos
Área de Formação - Identificar as características necessárias para o desempenho da profissão de
Pessoal e Social cabeleireiro/a;
- Privilegiar o diálogo, sentido crítico e a reflexão sobre vários assuntos
inerentes ao tema;
- Desenvolver a iniciativa e a tomada de decisões nas actividades;
- Aceitar as pequenas frustrações e manifestar uma atitude positiva perante
situações adversas;
- Desenvolver as próprias vivências afectivas e manifestá-las de forma
socialmente aceitável;
- Promover a valorização e respeito pelas normas que regulam a convivência
nos grupos sociais a que a criança pertence e a participação na elaboração de
algumas dessas normas;
- Desenvolver atitudes de ajuda, colaboração, responsabilidade e cooperação,
coordenando os seus interesses com os dos outros;
- Compreender e valorizar as consequências dos próprios actos em si e nos
outros;
- Adequar o comportamento às necessidades, solicitações e exigências de
outras crianças ou adultos;
- Potenciar o desenvolvimento de condutas, hábitos e atitudes sociais;
- Reconhecer-se como pertencente a grupos (família, escola e grupo social)
Área de - Estimular a capacidade de representação de diferentes papéis;
Expressão e - Promover a expressão de sentimentos, emoções e vivências através de
Comunicação várias linguagens;
- Promover a participação activa das crianças na planificação e reflexão das
várias actividades;
- Desenvolver actividades criativas a partir da própria realidade;
- Desenvolver o interesse e esforço em melhorar e enriquecer as suas
próprias produções linguísticas;
- Desenvolver atitudes de precisão e rigor na descrição de situações.
Área do - Conhecer a organização do trabalho num cabeleireiro;
Conhecimento do - Valorizar a importância do trabalho do cabeleireiro/a para a comunidade;
Mundo - Conhecer os instrumentos e as suas funções, na profissão de cabeleireiro/a.

3. Estratégias /Actividades

Exploração da história: “ As profissões do meu Bairro”.


Conversa sobre a construção do cabeleireiro (O que precisamos fazer, e
como o fazer).
Diálogos acerca da profissão cabeleireira/o:
Quem trabalha no local?
Quem costuma ir ao cabeleireiro/a?
Como fazem e que utensílios utilizam?
Registo escrito em grupo;
Elaboração do material e mobiliário necessário para a construção do
cantinho do cabeleireiro:
Pintura de um móvel;
Construção e pintura de bancos;
Construção de um lavatório;
Recolha de utensílios (escovas, rolos, frascos, revistas...)
Visita ao cabeleireiro;
Registo individual;
Elaboração de desenhos e cartazes para o cantinho;
Diálogo em grande grupo para a organização das regras do cantinho;
Jogos simbólicos.

Nota: Este projecto está inserido no Plano Anual de Actividades do Jardim-


de-Infância e é o desenvolvimento de outras actividades ao longo do ano, onde estão
sempre presentes experiências vividas pelas crianças, quer dentro do jardim com
fora dele. Este projecto não está isolado, pois é um resultado de uma construção
gradual do tema principal – As Profissões.

4. Actividades Desenvolvidas

Actividade: Exploração da história “ Que é que tu fazes? Profissões no teu


bairro”
Material: Livro de histórias
Intervenientes: Grupo de crianças e educadora
Duração: 20 minutos

Na história “Que é que tu fazes? Profissões no teu bairro” levada pela


educadora, estavam referidas várias profissões. Aquando da exploração desta, através
das imagens, as crianças foram identificando as profissões que estas ilustravam, os
objectos que cada profissional tem de usar para executar os seus serviços, e qual o
objectivo de cada profissão. É de salientar que, esta história tem muitas profissões, que
habitualmente são identificadas como de um só género, e aqui aparecem como do
género oposto. Este facto suscitou vários comentários por parte das crianças,
principalmente em relação ao nome dos profissionais: “Uma senhora a pilotar um avião
é uma pilota”; “A Rosinha é uma mecânica”; “Olha é uma motorista!”

Actividade: Conversa sobre a construção do cabeleireiro


Intervenientes: Grupo de crianças e educadora
Duração: 15 minutos
Em grande grupo, depois de explorada a história, e no seguimento da sugestão
de uma criança, acerca de existência de um cabeleireiro na sala, foi proposto pela
educadora a construção desta área. Aquando da pergunta “então do que é que
precisamos para que possa funcionar o cabeleireiro?”, as crianças mostraram-se bastante
receptivas e espontaneamente foram sugerindo os seguintes materiais: secador de mão,
espelho, escovas, champô, cadeira, mesa, tintas, pincel, tesoura, gel, bata, lavatório para
as cabeças, toalhas, copo para pôr as tintas, cadeiras para as pessoas esperarem, revistas
com cortes de cabelo para as pessoas escolherem, molas para o cabelo e cartazes para
escolherem o cor de cabelo.
É de realçar que todos estes materiais foram sugeridos pelas crianças,
demonstrando assim o conhecimento que têm desta profissão.
Depois de elaborada a lista de material necessário para o funcionamento do
cabeleireiro, foi seleccionado o material que já existia na instituição e qual é que seria
necessário trazer de casa. Todas as crianças sugeriram algo que poderiam trazer de casa
para a constituição da referida área.

Actividade: Conversa acerca da profissão de cabeleireiro/a


Intervenientes: Grupo de crianças e educadora
Duração: 30 minutos

Em grande grupo, depois de se falar dos materiais que se usam no cabeleireiro, a


educadora perguntou às crianças “sabem quem é que trabalha no cabeleireiro?” e todas
responderam “as cabeleireiras”. A educadora voltou a perguntar “só as cabeleireiras?” e
houve um menino que referiu que também podem ser cabeleireiros, pois já ouviu falar
de homens cabeleireiros, inclusive há um menino na sala que costuma ir cortar o cabelo
a um amigo do pai, que é cabeleireiro.
Depois a educadora voltou a perguntar “acham que existem mais cabeleireiras
ou mais cabeleireiros?”. Para esta resposta as opiniões divergiram, mas apenas as
crianças mais velhas (cinco/seis anos) se manifestaram espontaneamente. Assim uma
das crianças acha que existem mais cabeleireiras que cabeleireiros, pois reportou-se à
realidade que conhece: conhece duas cabeleireiras e apenas ouviu falar de um
cabeleireiro (o tal amigo do pai do Francisco). Outra das razões apontada por esta
criança, para esta opinião deve-se ao facto de considerar que os homens têm outras
profissões “...não há muitos homens que trabalhem no cabeleireiro, não conheço, os
homens trabalham noutras coisas, são assim electricistas, mecânicos, bombeiros,
pedreiros”.
No entanto, duas crianças acham que nesta profissão existe o mesmo número de
homens e mulheres, pois já lhes foi dito pelos pais. As restantes crianças não omitiram
nenhuma opinião acerca deste assunto, limitaram-se a escutar os opinantes.
De seguida a educadora perguntou “o que fazem os/as cabeleireiros/as?”, para
esta resposta todo o grupo foi sugerindo várias serviços: cortar, pintar, pentear, lavar o
cabelo; pôr gel, laca e espuma no cabelo; limpar o pescoço; e houve quem referisse que
o cabelo tanto podia ser cortado com uma tesoura como com uma máquina.
Todo o grupo também se mostrou bastante receptivo à pergunta “então como é
que se faz quando vamos ao cabeleireiro?”. As crianças conseguiram ordenar as tarefas
da seguinte forma:
1. Espera-se pela vez;
2. Senta-se numa cadeira e lava-se o cabelo;
3. Escolhe-se o corte de cabelo numa revista;
4. Corta-se o cabelo;
5. Seca-se e penteia-se;
6. Tira-se a toalha e limpam-se os cabelos que estão no pescoço e na roupa.

À pergunta “Quem vai ao cabeleireiro?”, todas as crianças referiam vários


membros da família, desde crianças a adultos. Contudo também falaram do facto das
crianças terem de ir ao cabeleireiro acompanhadas pelos adultos, tanto masculinos como
femininos.

Actividade: Registo escrito da conversa sobre a profissão de cabeleireiro/a


Material: Folhas de papel, marcadores
Intervenientes: Grupo de crianças e educadora
Duração: 15 minutos

As crianças, em grande grupo, observaram a educadora a fazer o registo escrito e


ilustrado da conversa sobre a profissão de cabeleireiro/a e foram consolidando o que
tinham dito. Este registo foi afixado perto da área do cabeleireiro.
Actividade: Pintura de um móvel para arrumação do material
Material: Pequeno móvel de arrumar garrafas, tinta cor de laranja e verde,
pincéis e esponja
Intervenientes: Grupo de crianças e educadora
Duração: 20 minutos

Esta actividade foi realizada por quatro crianças, em grupos rotativos de duas.

Actividade: Pintura / construção de dois bancos


Material: Rolos de cartão, placas de madeira, esponja, tecidos, lã, agulha, tinta
vermelha, pincéis e cola quente.
Intervenientes: Grupo de crianças e educadora
Duração: 1 hora e 30 minutos

A pintura dos rolos de cartão foi realizada por oito crianças, em grupos rotativos
de duas. A construção dos bancos foi executada pela educadora, uma vez que implicava
cortar tábua, recortar esponja, coser tecido e colar com cola quente. As crianças foram
assistindo às várias fases desta actividade.

Actividade: Pintura de uma cadeira


Material: Cadeira de madeira, tinta vermelha, pincel
Intervenientes: Grupo de crianças e educadora
Duração: 20 minutos

Esta actividade foi realizada por quatro crianças, uma de cada vez.

Actividade: Pintura do papel para forrar o lavatório


Material: Papel cenário, tintas cor de laranja e verde, frascos de vidro, pincel,
pratos, esponjas
Intervenientes: Grupo de crianças e educadora
Duração: 20 minutos

O papel para forrar o lavatório foi pintado por quatro crianças em simultâneo.
Depois de seco, outras duas crianças esponjaram o papel de outra cor.

Actividade: Construção do lavatório


Material: Caixa de cartão, papel cenário pintado, tesoura, fita-cola, cola
quente, bacia de plástico
Intervenientes: Grupo de crianças e educadora
Duração: 30 minutos

Inicialmente foi arranjada uma caixa de cartão, onde foi feito um buraco num
dos topos. Depois, esta foi forrada com o papel de cenário pintado e no sítio do buraco
foi colada, com cola quente, uma bacia. Esta tarefa foi totalmente realizada pela
educadora sobe o olhar atento das crianças.

Actividade: Decoração de uma taça


Material: Taça de plástico, papel autocolante, tesouras
Intervenientes: Duas crianças e educadora
Duração: 15 minutos

Duas crianças colaram, aleatoriamente, tiras de papel autocolante numa taça de


plástico, que serviria para colocar tinta para pintar o cabelo.

Actividade: Conversa sobre o número de crianças na área do cabeleireiro


Material: Papel de máquina e marcadores
Intervenientes: Grupo de crianças e educadora
Duração: 30 minutos

Depois da confusão vivida e sentida por todas as crianças aquando do primeiro


contacto com esta área, a educadora reuniu-as, em grande grupo, na manta para
conversar sobre o sucedido. E questionou as crianças “o que é que aconteceu no
cabeleireiro? pareceu-me que alguns meninos estavam a discutir!”, ao que estas foram
respondendo “estavam lá muitos meninos”, “táva uma grande confusão, era uma
gritaria”, “mas eu tinha entrado primeiro e a Rita não me dava o champô”, “eu queria
pentear o António e a Carolina não me deixava”. Depois de ouvidas as “queixas” a
educadora voltou a perguntar “então o que é que vocês acham que está mal? O que é
que nós precisamos para resolver este problema?” e a maioria das crianças respondeu
que eram necessários símbolos para o cantinho do cabeleireiro. A educadora perguntou
“então quantos símbolos é que precisamos?”, sobre este ponto as opiniões divergiram,
umas diziam que deviam de ser três, outras quatro e uma sugeriu cinco. As razões
apontadas para estas escolhas foram esclarecidas, assim o António (seis anos) achava
que deviam de ser três porque “um é o cabeleireiro, outro é a lavar o cabelo e outro fica
à espera”; o David (cinco anos) achava que deviam de ser quatro pois “um é o
cabeleireiro, outro lava o cabelo e dois ficam à espera”; por sua vez o Tomé (seis anos)
queria que fossem cinco porque “um é o cabeleireiro, e outro está a cortar o cabelo, um
lava o cabelo, e outro está a lavar, e outro está à espera”.
Estas respostas não indicavam quantas crianças poderiam estar na referida área,
então a educadora voltou a perguntar “então como é que vamos fazer para saberemos
quantos símbolos precisamos? Quem é que tem razão?”, e aqui as crianças foram
unânimes, recorrer à votação (este sistema é habitualmente usado com estas crianças
quando existe algo para decidir, afim de chegar a um consenso). Antes das crianças
votarem, a educadora voltou a explicar os números pretendidos e as razões apontadas,
de seguida foi perguntando a cada criança qual considerava mais correcto e ao mesmo
tempo registando numa folha a sua decisão, onde cada opção aparecia numa coluna.
Depois deste registo, três crianças fizeram a contagem de quantos nomes havia em cada
coluna, e “ganhou” a opção de quatro crianças. Deste modo ficou decidido que seriam
necessários quatro símbolos, todas as crianças aceitaram o resultado sem contestação. É
de salientar que nesta votação a maioria das crianças mais velhas centraram a sua
escolha na opção três demonstrando, não influência por quem escolhia mas consciência
de que seria o número ideal, enquanto que com as mais novas pareceu mais contar o
factor influência.

Actividade: Visita a um cabeleireiro


Intervenientes: Grupo de crianças, educadora e auxiliar da acção educativa
Duração: 30 minutos

5. Observações na área do cabeleireiro

Antes desta área estar concluída, apenas tinha a mesa, a cadeira, os bancos, o
pequeno móvel de arrumação do material e alguns utensílios, as crianças quiseram
experimentá-la. Foram nove crianças (três rapazes e seis raparigas) para o canto, no
entanto havia outras que também queriam ir, mas por acharem que havia muita confusão
ficaram apenas a observar, e logo começaram a sugerir que deveria haver símbolos
nesta nova área (nesta sala de actividades, o número de crianças por área está estipulado
desde a criação de cada uma, existindo tantos símbolos identificativos de cada área
como o número de crianças que a pode frequentar), e uma das crianças mais novas dizia
mesmo para consigo “então o que é isto? isto não tem símbolos! Eu também quero ir!”
As crianças penteavam-se, sentavam-se nos bancos à espera e experimentavam os
utensílios que existiam. Todas as crianças estavam ansiosas por experimentar a nova
área.

1º Dia de observação

Depois de existir mais material e de estarem estabelecidas as regras quanto ao


número de crianças que poderiam frequentar o canto do cabeleireiro, as crianças
começaram a ir para esta nova área, mantendo-se, durante todo o dia, sempre com
quatro elementos. É de salientar, que mesmos antes dos símbolos estarem feitos, as
crianças conseguiram respeitar o número que tinha sido estipulado na votação, pois
ficaram algumas “de fora” à espera da sua vez.
Contudo, como este foi o primeiro dia desta área, todas as crianças estavam
muito ansiosas por experimentá-la, toda a sua atenção estava aqui centrada. Nesta
situação, a educadora teve que intervir, esporadicamente, para que todo o grupo fosse
rodando a fim de satisfazer as suas expectativas em relação ao novo espaço. A
educadora deixou que cada grupo de quatro crianças permanecesse neste espaço, um
certo tempo e depois explicava-lhes que teriam de sair para que outras entrassem, pois
todas queriam experimentar o cabeleireiro e teriam outros dias para lá estar. Todas as
crianças aceitaram este argumento, no entanto uma menina de cinco anos mostrou-se
muito renitente em sair, a educadora voltou a explicar-lhe a razão desta atitude, mas ela
continuava a dizer: “mas eu quero estar aqui!”;”mas não quero sair!” A educadora não
forçou a sua saída e esta continuou no cabeleireiro durante mais tempo do que as
crianças que tinham entrado com ela, mas passado um bocadito veio ter com a
educadora e disse “eu dou o meu símbolo à Juliana, já não me importo, vou para lá
outro dia”.
Todas as crianças se mostraram muito interessadas e motivadas com o
cabeleireiro, mas as atitudes eram diferentes consoante fossem mais rapazes ou mais
raparigas. Estas conseguiam manter a calma, mais organização tanto a nível dos
materiais como a nível da coordenação de tarefas. As suas atitudes eram mais
aproximadas da realidade, e executavam as tarefas respeitando os passos que tinham
sido registados (no registo que estava próximo do cabeleireiro), havendo mesmo uma
menina que se preocupou em perguntar à educadora “o que é que está aqui escrito, a
seguir ao dois” (referindo-se ao registo).
Quando neste espaço estavam mais rapazes instalava-se a confusão, estes não
conseguiam, nem tentavam manter a organização, apenas criavam situações que lhe
provocassem o riso, punham molas e elásticos nos rapazes e divertiam-se imenso com a
figura que faziam e comentavam: “pareces uma menina”; “olha o Jorge é uma menina!”
Também tinham necessidade de chamar a atenção de todo o grupo e evidenciavam esta
situação perante a educadora. Outro facto observado é que quem criava as situações
eram os meninos mais velhos para que fossem os mais novos o alvo da atenção, os
primeiros nem sequer deixavam pôr nada no cabelo.
2º Dia de observação

Neste segundo dia em que o cantinho do cabeleireiro esteve a funcionar, as


crianças demonstraram menos ansiedade, mas continuaram a frequentá-lo, estando este
sempre com os quatro elementos. A educadora não teve necessidade de intervir, pois
apesar de ainda estarem algumas crianças, principalmente raparigas mais novas, à
espera para entrar, conseguiam gerir esta situação sozinhas.
A formação do grupo do cabeleireiro era aleatória, tanto estavam rapazes com
raparigas como todos de um só género. Neste dia as atitudes dos rapazes tenderam a ser
mais calmas e mais ajustadas à realidade, já não demonstravam tanto o intuito de gozar
e notou-se uma maior preocupação em tentar cumprir as tarefas executando-as com
mais perfeição e procurando cumprir as diversas etapas. Também se esforçavam por
“enfeitar” o cabelo, mas tinham muita dificuldade em pôr molas e elásticos, tarefas que
as raparigas ultrapassavam com facilidade. No entanto, é de referir que os rapazes que
no dia anterior destabilizavam mais o cantinho, não se mostraram muito interessados em
frequentá-lo. Nos rapazes nota-se uma grande necessidade em mostrar, à educadora, os
resultados finais do seu desempenho como cabeleireiros.
Durante a tarde um dos rapazes de seis anos, com o símbolo do cabeleireiro saiu
da área destinada ao cabeleireiro e veio “arranjar” o cabelo da educadora que estava
sentada na mesa de trabalho, penteava, punha molas, tentava fazer rabichos (acabando
por ter de chamar uma menina, pois ele não conseguia). Como este não era o local para
esta actividade, a educadora deslocou-se ao referido cantinho, esta situação gerou
alguma confusão, pois todos queriam fazer-lhe algo. Inicialmente, uma penteava, outra
cortava o cabelo e outra punha cremes. O menino que executava a segunda tarefa ia
explicando: “sabes..., põe-se assim o pente, o cabelo tem de ficar em pé e depois corta-
se”. Depois vieram mais dois rapazes, e enquanto um penteava, o outro cortava,
colaborando entre si.
Também a auxiliar de acção educativa foi convidada, por três meninas mais
novas, para frequentar o cabeleireiro. Estas conseguiam cumprir as etapas: lavavam,
cortavam e penteavam o cabelo deste adulto; todas estas tarefas eram executadas com
calma e sem “atropelos”.
Neste dia as raparigas, continuaram a mostrar mais preocupação em seguir
correctamente as diferentes etapas do desempenho da profissão de cabeleireiro, mas os
rapazes solicitaram mais a atenção dos adultos.

3º Dia de observação

Neste terceiro dia, tanto os rapazes como as raparigas frequentaram a área do


cabeleireiro com mais calma. No entanto, enquanto todas as raparigas passaram por este
espaço, apenas metade dos rapazes aqui estiveram. Este facto esteve relacionado com a
vinda de um pintainho à sala que captou muita atenção das crianças, sobretudo dos
rapazes.
Houve momentos do dia em que esta área esteve vazia, contudo quando esteve
ocupada nunca foi com apenas uma criança, pois quando uma pretendia ir conseguia
levar consigo mais alguém. No entanto, esta escolha incidia, tanto nos rapazes como nas
raparigas, em colegas do mesmo sexo. Esta atitude está relacionada com as próprias
amizades que existem no dia a dia, noutras actividades.
Uma das raparigas de seis anos, logo de manhã, teve a preocupação de organizar
esta área: “ó Marina, queres que eu arrume o cabeleireiro, está tudo mal arrumado”.
Apesar de não estar desarrumado, os objectos não se encontravam no sítio certo,
separando todo o material que arrumou correctamente. Esta atitude manteve-se durante
todo o dia por parte das raparigas, principalmente das mais velhas, que procuravam
manter o espaço devidamente organizado e demonstrando mais facilidade na
distribuição das tarefas. Quando de juntavam com os rapazes incentivavam-nos a
colocar os objectos no sítio certo: “as molas não são aqui!”; “os perfumes são no
móvel!” Tentavam afastá-los do canto dizendo: “não sabes fazer nada”; “pára de fazer
isso!”, ou então afastavam-se elas. Também em relação aos comportamentos para o
desenvolvimento das tarefas de cabeleireiro/a, se observou uma maior adequação a
estes, por parte das raparigas. Estas conseguiam fazer os rabichos, colocavam
correctamente as molas, punham a bata quando eram as cabeleireiras, punham os
penteadores aos clientes, demonstravam mais sentido estético ao arranjar o cabelo e
principalmente não tinham tanta necessidade de chamar a atenção da educadora como
os rapazes.
4º Dia de observação

No início do dia, as crianças que estavam na área da casinha tentavam ir ao


cabeleireiro, e as da área do cabeleireiro faziam “queixas” que não podia ser, pois cada
qual tinha de estar no seu espaço. Então, a educadora interveio junto das crianças
dizendo-lhes que poderia haver um “intercâmbio” entre as crianças que estavam na
casinha e no cabeleireiro, desde que o número que estipulado não fosse ultrapassado. As
crianças aceitaram esta nova regra, e conseguiram cumprir o acordado, apenas um rapaz
de seis anos, que estava a frequentar a casinha, tentou ir ao cabeleireiro quando este
espaço já tinha quatro crianças. Os colegas reclamaram, chamando-o à atenção, como
ele não reagiu bem, a educadora voltou a intervir, recordando o que tinha sido
combinado. A criança aceitou as regras e não voltou a frequentar o cabeleireiro, sem
que houvesse um lugar vago.
As crianças, que frequentaram o cabeleireiro, na sua maioria, não entravam
directamente para lá, iam para a casinha e daí passavam para o cabeleireiro. Este
intercâmbio era feito, principalmente por rapazes. Inicialmente, estes iam para o
cabeleireiro causar distúrbios, mandavam os objectos ao ar, caíam dos bancos na
brincadeira, punham os penteadores na cabeça, gerando confusão e levando a mais uma
intervenção da educadora. Os rapazes acalmaram-se, ajustando as suas atitudes às regras
do cabeleireiro.
Quando entrou um rapaz de seis anos, directamente para o cabeleireiro os outros
que estavam na casinha, continuaram a frequentá-lo. Esta criança conseguiu organizar
as outras e o espaço, tanto no cumprimento das tarefas como na sua disposição,
utilizando adequadamente os objectos. Este rapaz arranjou o cabelo de uma rapariga,
pôs-lhe molas e fez-lhe “um caracol”, ficando muito contente quando foi mostrar à
educadora e esta o elogiou. Os rapazes habitualmente vêm mostrar as suas “habilidades”
à educadora.
Ao longo deste dia, poucas raparigas frequentaram o espaço, sendo a sua
permanência curta, havendo momentos do dia em que esta área permanecia vazia.
Verificou-se que as crianças quando saíam do cabeleireiro, tinham o cuidado de
o deixar devidamente arrumado.

5º Dia de observação
Este dia decorreu com normalidade no cabeleireiro, mantendo-se o ambiente
calmo e sem complicações. Não esteve sempre ocupado, no entanto, foi usado por
rapazes e por raparigas, sendo os seus comportamentos adequados, organizando-se sem
que fosse necessária a intervenção da educadora. No entanto, quando a educadora estava
presente, as crianças mostravam-se mais motivadas e criativas.
As crianças mostraram dominar o vocabulário próprio da actividade, mantendo
diálogos adequados ao cabeleireiro: “não prefere a cor vermelha, parece que fica melhor
com a sua cara”; “já acabei o meu cliente, pode vir outro”.

6. Análise das observações

O nosso propósito inicial era analisar se existem ou não estereótipos


associados à profissão de cabeleireiro e de que forma se manifestam nos
comportamentos das crianças. O que pudemos verificar através das observações que
realizámos na sala de actividades, na área do cabeleireiro, é que os comportamentos
estereotipados eram mais evidentes no início da criação da referida área. Todas as
crianças, independentemente do sexo e da idade, queriam explorar o novo espaço,
essencialmente por ser novidade.
No entanto, alguns dos meninos mais velhos mostravam-se pouco à vontade,
criando situações onde os mais novos eram alvo de chacota e de gozo, recusando-se
eles próprios a usar qualquer tipo de adereços no cabelo, mostrando necessidade de
chamar a atenção de todo o grupo e da educadora, como está descrito no primeiro
dia de observação. Este tipo de atitude foi-se dissipando ao longo dos restantes dias.
Outro aspecto relativo à actuação dos rapazes, que se foi alterando ao longo
dos dias, foi o cumprimento das tarefas e regras próprias do cabeleireiro, que
progressivamente foram sendo mais respeitadas, por sugestão das raparigas, mais
familiarizadas com este tipo de brincadeiras.
Como foi referido na descrição do terceiro dia de observação, as raparigas
sentiam-se mais à vontade na exploração deste espaço, mostrando uma maior
destreza e sentido estético que os rapazes, na elaboração dos penteados, pois estes
gestos são para elas usuais. Devido a este facto, os rapazes sentiam a necessidade de
chamar atenção da educadora sempre que conseguiam executar uma tarefa, que
consideravam mais difícil.
Observou-se também que a escolha dos companheiros de brincadeira nesta
área, recaía preferencialmente em crianças do mesmo sexo, comportamento que já
se verificava nas restantes áreas e actividades diárias.
Todos estes comportamentos observados nos dois sexos, no nosso entender,
não correspondem tanto a comportamentos estereotipados, por parte das crianças,
mas sim à educação que têm vindo a receber através da família e de toda a
sociedade, como reflexo de uma cultura estereotipada.
Em relação ao valor – cidadania, e às atitudes – auto-estima, respeito mútuo
e tolerância, que pretendíamos observar e fomentar através da criação do cantinho
do cabeleireiro, podemos dizer que este valor se encontra interiorizado pelas
crianças. As suas atitudes e comportamentos demonstram solidariedade, justiça e um
sentimento de pertença ao grupo.
As crianças conseguiam respeitar-se umas às outras, salvo raras excepções,
em que foi necessária a intervenção da educadora. (ver 1º observ.) O número de
crianças que podem frequentar este espaço, foi eleito democraticamente, por votação
(ver actividade11) e todas, desde as mais novas às mais velhas, conseguiram manter
o número previsto sem entrarem em conflito, esperando pacientemente pela sua vez.
Os conflitos apenas surgiram na distribuição das tarefas entre os elementos,
situações essas, ultrapassadas pelas próprias crianças.
Inicialmente foi notória a preocupação por parte das raparigas em manter o
cantinho arrumado e organizado, incentivando os rapazes a terem atitudes
semelhantes. Na nossa opinião, estes comportamentos reflectem também atitudes de
tolerância.
Na relação com os seus pares, a criança vai criando uma imagem de si
própria, construída e consolidada a partir das interacções que vai estabelecendo com
os outros. Este tipo de atitudes manifestou-se nas crianças, sobretudo nos rapazes,
que se mostravam satisfeitos sempre que conseguiam ultrapassar alguma tarefa mais
difícil ( 4º observ.) para eles.
Concluímos desta forma que o valor e atitudes por nós definidos no inicio
deste trabalho, estavam já interiorizados por este grupo, sendo esta mais uma
oportunidade de os consolidarem.
Conclusão

A educação de cada indivíduo vai-se construindo ao longo de toda a vida,


formando um significado de género, que depende da sua história de aprendizagem
social, que é modelado pelo desenvolvimento de capacidades que usa para se
abstrair das regras gerais sobre o que é ser masculino e feminino, com o reforço
directo e modelação social. A criança deverá tomar consciência de si própria e do
meio que a envolve e do seu papel na sociedade onde está inserida.
Como educadoras consideramos que a família possui o papel preponderante
para a educação em valores e atitudes, promovendo a criação de marcos de
referência, valores e códigos que posteriormente irão servir de modelo para as suas
atitudes. Deste modo a família contribui para a construção de um sujeito social,
consciente da sua pertença a um grupo.
Paralelamente, o educador tem também um papel importante na formação e
construção da criança enquanto individuo, apresentando-se como modelo nas
interacções diárias que estabelece com o seu grupo, através da sua maneira de ser,
de estar, de comunicar e agir.
A nossa actuação encontra-se condicionada por dois factores. Por um lado
nem sempre os valores incutidos no seio da família vão de encontro àqueles que
consideramos pedagogicamente correctos, e nem sempre é legitimo interferirmos na
educação que cada família pretende incutir nas suas crianças. Por outro lado nem
sempre nos conseguimos abstrair dos nossos estereótipos que estão implícitos na
nossa actuação diária.
Apesar destes condicionalismos tentamos proporcionar um ambiente
propício e relacional, de respeito pela diferença, de tolerância e de cooperação
baseado no diálogo para resolver conflitos e esclarecer situações resultantes da
interacção entre as crianças. Através da estratégia narrativa é possível levar as
crianças a reflectirem sobre os seus actos e ao mesmo tempo levá-las a construir os
seus próprios valores conscientes das diferentes perspectivas que cada um possui.
Podemos constatar através das observações realizadas no cantinho do
cabeleireiro que a nossa ideia inicial não correspondeu às nossas expectativas. Os
estereótipos de género não condicionam tanto os comportamentos das crianças desta
faixa etária, como suponhamos. Apercebemo-nos que a formação de estereótipos de
género ocorre numa fase mais tardia do desenvolvimento da criança, escapando
assim à nossa intervenção.
No entanto, as bases de cidadania que criamos ao nível do respeito-mútuo,
da tolerância e da auto-estima são os alicerces para uma sociedade de indivíduos
educados em valores.
Bibliografia

(documento da UNESCO 27C/25, Proclamação do Ano das Nações Unidas para


a tolerância e Declaração sobre a tolerância in ). (22)

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