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Geografia cultural

Carla Holanda da Silva


Clevisson J. Pereira
Tanize Tomasi Alves
© 2015 por Editora e Distribuidora Educacional S.A

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Silva, Carla Holanda da


S586g Geografia cultural / Carla Holanda da Silva, Clevisson
Junior Pereira, Tanize Tomasi Alves. – Londrina: Editora
e Distribuidora Educacional S. A., 2015.
120 p. : il.

ISBN 978-85-8482-204-1

1. Geografia cultural. 2. Geografia humana. I. Pereira,


Clevisson Junior. II. Alves, Tanize Tomazi. III. Título

CDD 304.2

2015
Editora e Distribuidora Educacional S. A.
Avenida Paris, 675 – Parque Residencial João Piza
CEP: 86041 ‑100 — Londrina — PR
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Homepage: http://www.kroton.com.br/
Sumário

Unidade 1 | Conceito e história da geografia cultural 7

Seção 1 - O conceito de cultura na Geografia Cultural 11


1.1 | O conceito de cultura na Geografia Cultural 11

Seção 2 - A Geografia cultural de Ratzel a Sauer 17


2.1 | Iniciando as discussões 17

Seção 3 - A Geografia cultural: da estagnação à renovação 23

Seção 4 - Geografia Cultural no Brasil 31


4.1 | Geografia Cultural no Brasil 31

Unidade 2 | Paisagem, cultura e simbolismo 47

Seção 1 - A trajetória conceitual do termo paisagem na Geografia 51


1.1 | Olhar inicial sobre o termo 51
1.2 | O termo paisagem e o olhar científico 52
1.3 | Geografia e Paisagem 52
1.4 | O trajeto conceitual do termo paisagem na Geografia 54
1.5 | Diferentes olhares ou evolução conceitual? 56
1.6 | Algumas possibilidades 58

Seção 2 - A paisagem cultural e o movimento de interiorização


da paisagem 61
2.1 | Morfologia da paisagem 62
2.2 | A percepção da paisagem 65

Unidade 3 | Globalização e identidade cultural 81

Seção 1 - A globalização vista da única narrativa às outras


trajetórias históricas 85
1.1 | A globalização 85

Seção 2 - Pluralização de identidades: o sujeito global


contemporâneo 93
2.1 | Identidades transitórias 93
2.2 | Identidade e Nação 100
Seção 3 - Comunidades transnacionais: os fluxos globais e
a simultaneidade de indivíduos 105
3.1 | Transnacionalismo 105
Unidade 1

CONCEITO E HISTÓRIA DA
GEOGRAFIA CULTURAL

Carla Holanda da Silva

Objetivos de aprendizagem:

Nesta unidade você será levado a compreender a história, a evolução e


as possibilidades de aplicabilidades da Geografia Cultural diante da ciência
geográfica. Isto é, você fará um caminho que te levará a compreender:

• o que estuda a Geografia Cultural;

• a sua relação com o conceito de cultura;

• a sua evolução e fortalecimento no pensamento geográfico de modo geral


e na Geografia brasileira;

• as suas atuais abordagens;

• as possibilidades de aplicação no ensino de Geografia.

Seção 1 | O conceito de cultura na Geografia Cultural


A presente seção tem como objetivo apresentar diferentes concepções
de cultura que contribuíram para o processo evolutivo da Geografia Cultural.
Para tanto, buscamos utilizar interlocutores como Eagleton, (2005), Lévi-Strauss
(2003), Diegues (2004), Geertz (2008), Barth (1998), Claval (1999), Claval (2001)
e Corrêa (1999, 2007).

Seção 2 | A Geografia cultural de Ratzel a Sauer


Esta seção, por sua vez, tem o objetivo de iniciar de fato o debate acerca da
Geografia Cultural no que diz respeito ao seu processo evolutivo. Para tanto,
U1

destacaremos definições, autores, correntes de pensamento desde as suas


origens, no século XIX, até momentos relevantes para a consolidação dessa área
do conhecimento, na metade do século XX, e as consequentes contribuições
para a Geografia Cultural praticada na contemporaneidade. Os interlocutores
deste debate serão Claval (2001), Corrêa e Rosendahl (2008; 2011), Corrêa
(2007) e Almeida (2009).

Seção 3 | A Geografia cultural: da estagnação à renovação


Nesta seção o objetivo é dar continuidade à reflexões acerca da
evolução da Geografia Cultural, agora no século XX, momento marcado por
estagnação sucedida de acontecimentos que levaram à sua renovação. Para
aritular este momento utilizaremos teóricos como: Claval (2001), Corrêa e
Rosendahl (2008, 2011), Corrêa (2007) e Almeida (2009).

Seção 4 | Geografia Cultural no Brasil


Neste momento, veremos uma discussão acerca da Geografia Cultural
no Brasil, para compreender como ela se desenvolve e solidifica no cenário
nacional. Para tanto os autores utilizados são: Almeida (2009), Corrêa e
Rosendahl (2008 e 2011), Claval (2001).

8 Conceito e história da geografia cultural


U1

Introdução à unidade

A ciência geográfica tem como principal objeto de estudo o espaço geográfico,


correto? Este é fruto das relações entre homem e meio, certo? Se a resposta foi
positiva para ambos os questionamentos, você acertou!

Contudo, embora pareça simples, em função da maneira que colocamos tais


questionamentos, o fato é que esta relação é complexa, pois o homem possui
diferentes dimensões que, em contato com o meio, atribuem ao espaço geográfico
produções, ocupações, materializações muito distintas. Neste sentido, a cultura,
assim como a economia e a política, também é uma destas dimensões. E, a fim
de tentar compreender este contato do homem em sua dimensão cultural com o
meio, é que a ciência geográfica apresenta um campo de pesquisa e ensino que tem
como objetivo discutir estas manifestações culturais que se materializam no espaço.

Deste modo, temos como objetivo nesta unidade apresentar a Geografia Cultural
a você. Este campo rico da Geografia, que embora no Brasil tenha começado a
ser discutido com maior profundidade a pouco tempo, é uma abordagem que
acompanha a Geografia desde os tempos de Ratzel e La Blache.

Mas você deve estar se perguntando por que esta afirmativa trata-se de um campo
rico para a ciência geográfica. É rico porque busca estudar o homem e seus grupos,
e como eles expressam sua cultura, seja ela material ou imaterial. Isto é, palpável
ou presente nas relações, como, a fé, a religiosidade, a relação que estabelecem
com o que é a natural e tantas outras formas de manifestarmos a cultura em nosso
cotidiano.

Diante deste contexto de riqueza geográfica, é preciso compreender o processo


que envolve este campo da Geografia, desde seus primeiros aparecimentos até os
dias de hoje. Para tanto, fazemos a você algumas perguntas que vão nos ajudar a
conduzir melhor este diálogo, logo, a sua compreensão:

• O que é ou o que estuda a Geografia Cultural?

• Qual a relação do conceito de cultura e a Geografia Cultural?

• Qual a relação da Geografia Cultural com os autores que atuam nos primórdios
da Geografia, como Ratzel e La Blache?

• Como a Geografia Cultural se desenvolve diante da evolução do pensamento


geográfico?

Conceito e história da geografia cultural 9


U1

• E a Geografia Cultural Brasileira, quando surge e o que estuda?

• E, por fim, como a Geografia Cultural pode auxiliar nas práticas do professor de
Geografia?

Bom, é a partir destes questionamentos que a unidade será apresentada,


pois, primeiramente, serão abordadas as diferentes concepções de cultura que
contribuíram para este processo evolutivo. Na sequência, chegaremos ao início da
Geografia Cultural, neste momento buscaremos compreender parte deste processo
evolutivo da Geografia Cultural, desde suas origens no século XIX até sua consolidação
com Sauer e a Escola de Berkeley. De posse destes conhecimentos, avançaremos
na Geografia Cultural após Sauer, retratando seu desenvolvimento no mundo até os
dias atuais. Neste momento, também veremos abordagens e temáticas atuais para
estudos na Geografia Cultural, até que chegaremos à Geografia Cultural no Brasil,
para compreender como ela se desenvolve e solidifica no cenário nacional e, por
fim, como este campo pode ser utilizado para ensinar Geografia na escola básica.

Vale destacar que tal unidade será construída a partir de alguns interlocutores,
isto é, autores nacionais e internacionais que nos ajudaram a pensar a cultura e
sua evolução, como Eagleton, (2005), Lévi-Strauss (2003), Diegues (2004), Geertz
(2008), Barth (1998), Claval (1999), Claval (2001), Corrêa (1999, 2007); a definição
e a evolução da Geografia Cultural, com Claval (2001), Corrêa e Rosendahl (2008;
2011), Corrêa (2007), Almeida (2009); a Geografia Cultural brasileira via Almeida
(2009), Corrêa e Rosendahl (2008 e 2011), Claval (2001), e, por fim, a abordagem
cultural no ensino de Geografia com Castro (2008).

10 Conceito e história da geografia cultural


U1

Seção 1

O conceito de cultura na Geografia Cultural


A presente seção tem como objetivo apresentar diferentes concepções de
cultura que contribuíram para o processo evolutivo da Geografia Cultural. Para tanto,
buscamos utilizar interlocutores como Eagleton, (2005), Lévi-Strauss (2003), Diegues
(2004), Geertz (2008), Barth (1998), Claval (1999), Claval (2001) e Corrêa (1999; 2007).

1.1 O conceito de cultura na Geografia Cultural

A fim de iniciar esta discussão e buscar respostas para as questões colocadas


acima, pautados em autores como Claval (2001), Almeida (2009) e Corrêa, (2007),
apontamos que o termo Geografia Cultural aparece no fim do século XIX na Europa,
em meio à discussão sobre a identidade da ciência geográfica.

Nesta época, a Geografia era vista, principalmente, de um ângulo econômico e


histórico, como demonstra Ratzel (apud CLAVAL, 2001, p. 20) em sua obra “A Geografia
Cultural dos Estados Unidos da América do Norte com ênfase especialmente voltada
para as suas condições econômicas”. Entretanto, Ratzel (apud CLAVAL, 2001, p. 20)
já discutia nesta obra os encontros culturais na sociedade, referindo-se às migrações
globais e às consequentes transformações e dominações no espaço. Assim, Ratzel
(apud CLAVAL, 2001, p. 20) chamou atenção específica à questão dos imigrantes
chineses nos Estados Unidos, sendo este um primeiro marco para a Geografia
Cultural.

Geografia Cultural da época, porém, girava em torno de uma cultura material,


portanto, se referia apenas às transformações que os moradores (residentes e
migrantes) causavam no espaço. No entanto, com a evolução da própria ciência
geográfica que acompanhou as novas relações sociais no espaço na fase da
industrialização e das migrações internacionais, numa sociedade moderna, a
Geografia Cultural também passou por transformações.

Tais transformações acompanharam as mudanças ocorridas na sociedade do


século XX e, consequentemente, a vinda da concepção de cultura. Posto que, uma
vez que a sociedade mudava, a forma como os estudiosos entendiam o que era
cultura também ia sendo alterado.

Conceito e história da geografia cultural 11


U1

Deste modo, percebemos que a cultura é o grande ponto de partida para a


compreensão deste campo de estudo e sua evolução na ciência geográfica, pois é
junto da evolução da sociedade e do conceito de cultura que a Geografia Cultural
e seus grupos de estudos vão estabelecendo suas pesquisas, isto é, as influências
apresentadas até o dia de hoje.

Assim, antes de compreendermos a evolução da Geografia Cultural na ciência


geográfica e sua definição ao longo destes momentos, é preciso observarmos as
diferentes concepções de cultura que contribuíram para este processo evolutivo.

Você sabe qual é a origem da palavra cultura? A origem latina de cultura é colere,
essa palavra possui uma variedade de significados, dentre eles: cultivar, habitar,
adorar e proteger. Isto é, a palavra cultura reúne diferentes universos, o natural, o
material, espiritual ou imaterial (EAGLETON, 2005).

Neste sentido, tem-se ao longo do pensamento científico diferentes concepções


de cultura que influenciaram diretamente a Geografia Cultural.

Dentre estas concepções, estão:

• A concepção de cultura como cultura material: isto é, trata da cultura que diz
respeito ou se manifesta via utensílios e instrumentos que têm origem nas vivências
dos grupos. É a cultura que podemos tocar, visualizar com maior clareza. Assim,
podemos definir a cultura de um grupo pelas danças, costumes, utensílios, músicas,
hábitos próprios do seu viver cotidiano. Contudo, apenas os hábitos materiais, pois
neste caso as vivências, as experiências e seus significados não são considerados.

• A concepção de cultura articulada à natureza: é possível percebermos esta


visão nas sociedades tradicionais, como quilombolas, indígenas, ribeirinhos, entre
outros. Estes grupos, normalmente, têm suas regras sociais, ou seja, a sua interação
entre o grupo e o meio, definida pela relação que estabelecem com a natureza, isto
é, a natureza define elementos da cultura do grupo. Assim, não é possível identificar
“[...] onde acaba a natureza, onde começa a cultura?” (LÈVI-STRAUSS, 2003, p. 42).
Estes modelos, diferentes de outros considerados modernos, estão preparados para
observar, perceber e relatar as relações com o meio, em função de uma dinâmica
que aproxima cultura de natureza, na dependência, uso e respeito. Deste modo, as
relações sociais estabelecidas por estes grupos são marcadas pela solidariedade, pelo
parentesco, pelos elos de afetividades que ligam estes indivíduos, diferentemente das
sociedades ditas civilizadas. Dentre os autores que colaboram com esta concepção
estão Lévi-Strauss (2003), Diegues (2004) e Eagleton (2005).

• A concepção de cultura que se articula também com os significados das ações,


das relações com o meio e objetos: trata-se da cultura presente no todo que o grupo
vivencia, o seu comportamento e os seus significados, e não apenas nos objetos, na
materialidade ou nas relações com a natureza. Esta visão é importante, pois amplia a

12 Conceito e história da geografia cultural


U1

visão de cultura, em função de abranger um contexto, e não apenas artefatos materiais


ou outras questões mais específicas do grupo, mas o todo, incluindo questões
imateriais – não palpáveis – e materiais. Esta concepção de cultura se realiza quando
discutimos os significados políticos, culturais e sociais que os grupos revelam e que
se alteram ao longo do tempo. Assim, nesta perspectiva, podemos compreender a
cultura como mutável, pois é produzida a partir da interação entre as pessoas, os
grupos, o meio. Um exemplo para esta concepção é que nós dificilmente nascemos
e morremos com a mesma vivência cultural, pois os costumes se alteram ao longo da
vida, de acordo com a interação com o outro. Dentre os autores que colaboram com
esta concepção estão Geertz (2008) e Barth (1998).

Assim, na Geografia Cultural podemos observar que todas estas concepções de


cultura influenciaram a sua construção. Contudo, esta influência foi ocorrendo em
momentos diferenciados, pois quando a Geografia Cultural aparece pelas primeiras
vezes, a abordagem que se faz da cultura é material, logo em seguida, já no início
do século XX, a cultura que se discute é a material e também a cultura originada a
partir da relação com a natureza. E, por fim, na renovação da Geografia Cultural, a
cultura que buscamos estudar para ser a compreendida como o todo, isto é, como
material e também imaterial, a que não podemos visualizar num primeiro momento,
pois está presente nas relações estabelecidas.

Neste sentido, um geógrafo cultural de grande importância, Paul Claval (2001),


destaca que a concepção de cultura na Geografia pode ser vista como:

• Relações e artefatos que são oriundos da relação com a natureza: isto é,


relações religiosas e sociais construídas a partir da relação com a natureza e também
instrumentos que advêm deste mesmo processo. Um exemplo claro é a relação
que as comunidades tradicionais, ribeirinhos, indígenas, quilombolas, estabelecem
com a natureza. Todavia, vale destacar que as relações podem ser de culto ou de
apropriação da natureza. Assim, as populações urbanas e agrárias da atualidade
também podem ser inseridas neste grupo (CLAVAL, 2001). A figura a seguir destaca
esta realidade, pois trata de uma das 36 comunidades quilombolas do Paraná que
tem na sua construção cultural a relação com a natureza, de apropriação e culto ou
respeito, como ponto fundamental.

• É herança, mas também é produto da comunicação: isto é, tanto é possível


que os sujeitos e/ou grupos herdem sua cultura, mas também se altere em função
das relações com o outro. Como exemplo, é possível citarmos grupos culturais que
migram, pois estes quando chegam ao novo local de moradia, se deparam com o
outro, o diferente são praticamente obrigados a conviver com outro, conhecer o
outro e esta relação acaba por alterar algumas de suas vivências trazidas da terra de
origem. Logo, de sua cultura (CLAVAL, 2001).

Conceito e história da geografia cultural 13


U1

Figura 1.1 | Estrutura que abriga um monjolo utilizado pela Comunidade Quilombola de
São João – Adrianópolis – Paraná

Fonte: Silva (2013)

• É construção e permite a projeção futura: ao mesmo tempo em que a cultura de


um sujeito ou grupo está em construção em função dos encontros que este vivencia,
é possível também visualizar/projetar como esta cultura poderá estar no futuro, uma
vez que a cultura, como já dito, é mutável. Ela muda em função dos atores, das
intenções, das articulações que estes estabelecem. Um exemplo são as identidades
culturais que se estabelecem no território nacional, muitas traçam estratégias para que
não se percam frente aos tempos de globalização, as quais, muitas vezes, direcionadas
aos mais jovens com descendência no grupo e também aos que não possuem a
descendência, mas de algum modo se aproximam da realidade cultural. Um caso
concreto são os japoneses que se instalaram no Brasil, e que hoje se concentram
em colônias ou grupos, como unidades culturais e territoriais, como no município de
Assaí, no Paraná, e no Bairro da Liberdade, em São Paulo. Nestes grupos são comuns
estratégias, como: festas, eventos, cursos voltados para os mais jovens, para que
possam (re)conhecer sua cultura e fortalecer seus laços (CLAVAL, 2001).

• É um fator fundamental de diferenciação entre os povos, isto é, reunião de gestos,


costumes, artefatos materiais, relações sociais que se diferenciam entre os grupos e/ou
indivíduos e sua carga cultural. Este conjunto atribui características X a uma cultura, que
difere da Y (CLAVAL, 2001). Por exemplo, um grupo ou um indivíduo que é oriundo de
uma comunidade quilombola certamente terá gestos, costumes, discursos diferenciados
de um sujeito e/ou indivíduo que advém um de um grupo migratório asiático. O conjunto
de significados presente em sua vivência por logo, em sua cultura, os diferenciam. Todavia,
tal diferenciação não impede que estes desenvolvam uma convivência e possam alterar

14 Conceito e história da geografia cultural


U1

algo em sua cultura em função desta convivência (CLAVAL, 2001).

Assim como base em todos estes elementos, podemos nos perguntar: qual destas
definições seria a utilizada pela Geografia Cultural na atualidade? É o conjunto de todas
elas, pois, para Claval (2001), a cultura que orienta a Geografia Cultural na atualidade
reúne aspectos materiais e imateriais dos grupos, isto é, reúne os objetos, as técnicas
que eles possuem em seu cotidiano, mas também os significados presentes em seus
discursos ou ainda na realização destas atividades. Este todo é a cultura, que em função
destes grupos estarem em contato com o outro, é mutável. Assim, é este conjunto
de fatores que vai se encontrando e fazendo das culturas diferentes umas das outras.

Neste sentido, para Claval (2001, p. 53), “[...] compreender os sentidos dos lugares,
o espaço vivido, o peso das representações religiosas se torna imprescindível para o
estudo das culturas”, isto é, fundamental na compreensão das culturas entender sua
relação com o espaço, com os lugares (CLAVAL, 1999; 2001; CORRÊA, 1999; 2007).
Isto é Geografia Cultural!

Ainda nesta linha de raciocínio, Claval (2001) destaca que na Geografia Cultural este
processo de compreender as manifestações da cultura no espaço passou por dois
momentos que viam a cultura de modos diferentes. Um deles pertinente à primeira
metade do século XX, na qual os fatos da cultural eram tratados em sua expressão
material, que para o autor é “apaixonante”, mas limitado (CLAVAL, 2001, p. 36). Tal
análise não permitia “[...] esclarecer a dinâmica dos comportamentos humanos”
(CLAVAL, 2001, p. 36). E o outro, após 1970, que buscava compreender a cultura
como um todo, material e imaterial.

Na próxima sessão, discutiremos este caminho que a Geografia Cultural faz na


própria ciência geográfica, apoiada nestas alterações na visão que são propostas para
a concepção de cultura.

O conceito de cultura é um conceito muito amplo, rico de definições


e fundamental para muitas áreas do conhecimento, por isso,
recomendamos as obras a seguir. Estas são obras de autores da
antropologia que discutem o termo com mais detalhes. Boa leitura!!!
Lembre-se de que na Geografia Cultural é fundamental a parceria com
outras áreas do conhecimento.
EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. Tradução: Sandra Castello Branco.
São Paulo: Editora UNESP, 2005.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, LTC
LARAlA, R. B. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1986.

Conceito e história da geografia cultural 15


U1

O que você entende por cultura?


O que você entende por cultura material e imaterial?
Por que o conceito ou concepção de cultura foi sendo
alterado ao longo da evolução do pensamento científico?
O que estuda a Geografia Cultural, a partir do que vimos
desta exposição sobre cultura?

1. De acordo com o que foi exposto até o momento,


percebemos que a concepção de cultura passou por diferentes
significações no conhecimento científico de modo geral.
Todavia, atualmente, entende-se que este é um conceito
central na Geografia Cultural, inclusive Paul Claval dedica
parte do Livro “Geografia Cultural” a este tema. Neste sentido,
explique:
a) As diferentes possibilidades de compreender a cultura e dê
exemplos diferenciados dos que estão presentes na sessão.

2. Ainda diante do contexto discutido até o momento, disserte


acerca da concepção de cultura utilizada pela Geografia
Cultural na atualidade.

16 Conceito e história da geografia cultural


U1

Seção 2

A Geografia cultural de Ratzel a Sauer


Esta seção, por sua vez, tem o objetivo de iniciar de fato o debate acerca da Geografia
Cultural no que diz respeito ao seu processo evolutivo. Para tanto, destacaremos
definições, autores, correntes de pensamento desde as suas origens, no século XIX, até
momentos relevantes para a consolidação dessa área do conhecimento, na metade
do século XX, e as consequentes contribuições para a Geografia Cultural praticada
na contemporaneidade. Os interlocutores deste debate serão Claval (2001), Corrêa e
Rosendahl (2008; 2011), Corrêa (2007) e Almeida (2009).

2.1 Iniciando as discussões

De acordo com o que foi mencionado na sessão anterior, já conseguimos


visualizar que a Geografia Cultural tem em sua história algumas fases que variam de
acordo com o momento em que a sociedade vive e também com a visão de cultura
que possui.

Deste modo, neste momento, vamos buscar compreender parte deste processo
evolutivo da Geografia Cultural, desde suas origens no século XIX até sua consolidação
com Sauer (1925) e a Escola de Berkeley (apud CLAVAL, 2001).

Para tanto, faço a você algumas perguntas: onde e com quem a Geografia Cultural
tem sua origem? Será que também é na Europa, assim como a ciência geográfica
de modo geral? Quem criou este termo? Quais são os primeiros estudiosos da
Geografia Cultural? O que procuram estudar neste início?

Bom, vamos, então, buscar solucionar estes questionamentos!

As origens da Geografia Cultural datam do fim do século XIX, na Europa, em meio


à discussão da identidade da ciência geográfica. Neste momento, os geógrafos
se interessavam pela cultura que era tida como um “[...] conjunto de utensílios e
equipamentos elaborados pelos homens para explorar o ambiente e organizar seu
habitat” (CLAVAL, 2001, p. 48), isto é, eles buscavam analisar a cultura material que
definia as paisagens. Logo, a transformação do meio natural pelos grupos humanos
via cultura.

Conceito e história da geografia cultural 17


U1

Neste período, quem se destacou nestes estudos foram os europeus, mais


precisamente os franceses e os alemães. Vale relembrar que é também onde a
Geografia tem suas primeiras teorias.

Assim, a Geografia Cultural, ou ainda uma abordagem cultural na Geografia,


se inicia na Alemanha, no século XIX, com Ratzel (apud CLAVAL, 2001). O autor
menciona o termo pela primeira vez em sua obra de 1880, “A Geografia cultural dos
Estados Unidos da América do Boret com a ênfase espacialmente voltada para as suas
condições econômicas” (CLAVAL, 2001, p. 20). O autor, em suas pesquisas, buscou
compreender os “fundamentos culturais da diferenciação regional da terra” (CLAVAL,
2001, p. 22), buscava compreender como os grupos humanos aproveitavam os
lugares que habitavam, a diferença entre um grupo e outro.

Assim, a concepção de cultura utilizada por Ratzel (1914 apud CLAVAL, 2001) era
a cultura material, a cultura que era possível ser visualizada na relação do homem
com o meio e, na sua apropriação, tratava-se de uma dimensão mais política que
cultural propriamente dita.

Neste momento, não havia menção à cultura expressa de outro modo que se
não o material, pois era esta cultura que permitia a compreensão das diferenças
entre os espaços, das relações entre o homem e meio.

Outros geógrafos alemães, como Otto Schluter, August Meitzen e Eduard Hahn,
também discutiram a cultura material no contexto da paisagem (CLAVAL, 2001).
Todavia, também tratavam de uma cultura material baseada em utensílios e técnicas
e seus usos na ocupação e/ou dominação do meio (CLAVAL, 2001).

Para Claval (2001), este olhar que valorizava apenas a materialidade da cultura não
abarcava os valores e as crenças embutidos nesta materialidade, o que torna a análise
incompleta. Contudo, vale ressaltar que, neste período, século XIX, a visão que se
tinha da cultura era esta, material, até mesmo natural, palpável. Deste modo, é neste
contexto que os primeiros estudos acerca da Geografia Cultural se apresentam.

A Geografia francesa também apresenta contribuições para este início de Geografia


Cultural. Como sabemos, a francesa parte de ideias postas pela Geografia Alemã, isto
é, “o estudo das influências do meio sobre as sociedades humanas” (CLAVAL, 2001,
p. 33). Estas contribuições pautam-se na análise dos instrumentos, artefatos materiais
que os grupos utilizavam, e como isto definia os lugares (CLAVAL, 2001, p. 33). Assim,
embora o objetivo de La Blache fosse a compreensão dos lugares do ponto de vista
material e o que diferenciava uns lugares dos outros, percebemos que, mesmo tendo
como foco o que era material, as relações produtoras destas diferenciações entre os
lugares, relações que permeavam os instrumentos e técnicas, também começam a
aparecer (CLAVAL, 2001). Fato que, para Claval (2001), contribui para os estudos da
Geografia Cultural. Isto ocorre em função da amplitude que o conceito de Gênero
de Vida oferece, pois mesmo tendo uma visão ecológica – do cultivar –, ele também

18 Conceito e história da geografia cultural


U1

permite uma dimensão social e ideologia, como afirma Claval (2001).

La Blache, porém, não foi único francês que deu contribuições para a Geografia
Cultual, Jean Brunhes, seguidor de La Blache, também contribuiu (CLAVAL, 2001).
Tais autores valorizam as realidades étnicas, isto é, a realidade vivenciada pelos
grupos que se unem em função dos traços culturais e sociais comuns (CLAVAL,
2001). Pierre Deffontaines é outro francês que contribui diretamente com este olhar
para a cultura que a Geografia apresenta (CLAVAL, 2001). Ele se aproxima ainda mais
da etnografia, dos estudos dos grupos e das relações que se estabelecem entre eles
e o meio em que vivem.

Neste sentido, vemos que os franceses contribuem diretamente para uma


ampliação na compreensão e análise da cultura dos grupos, pois também interagem
com outros estudos, como os etnográficos e folclóricos. Fato que revela também
as relações que estão entre o homem e o meio, a cultura imaterial de que falamos
acima. Logo, a cultura se amplia nos estudos que partem do gênero de vida. Todavia,
vale destacar que os artefatos materiais e as técnicas ainda são muito fortes na visão
que se tem de cultura neste momento.

Portanto, os franceses dão um passo à frente no que tange à abordagem da


cultura dada pela Geografia alemã. Todavia, muitos teóricos da Geografia Cultural
atual apontam como início, de fato, da Geografia Cultural, a proposta realizada
pelos americanos, mais precisamente por Carl Sauer (1925) e a Escola de Berkeley
(CLAVAL, 2001).

Embora Ratzel e La Blache estão diretamente relacionados à sistematização da


ciência geográfica e do próprio histórico da Geografia Humana, alguns teóricos
não indicam que nestes estudos esteja de fato um início concreto para Geografia
Cultural (CLAVAL, 2001). Entretanto, outros teóricos, por sua vez, reconhecem que
o estudo da cultura na Geografia parte destes geógrafos, pois aparecem com certa
ênfase em suas obras.

Assim, para compreendermos este segundo momento da Geografia Cultural, no


qual ela se consolida, vamos para os Estados Unidos, do início do século XX, mais
precisamente na Califórnia. É lá com Sauer que a Geografia Cultural tem um marco
importante neste período (CLAVAL, 2001).

É bom lembrarmos que, neste momento, na Geografia de modo geral,


predominava uma escola “[...] muito preocupada com o rigor, dedicava muita
atenção à coleta de dados e às representações cartográficas” (CLAVAL, 2001, p. 29).
Neste sentido, a abordagem cultural na Geografia não tinha espaço. Todavia, sempre
existem exceções, e foi com Carl Sauer (1925) que ela se destaca como temática de
estudos norte-americanos na Geografia deste período (CLAVAL, 2001).

As teorias de Sauer (1925) são influenciadas diretamente por suas vivências, seja do

Conceito e história da geografia cultural 19


U1

tempo que passou na Alemanha ou da sua vivência nos EUA (CLAVAL, 2001). A obra
deste geógrafo é construída, especialmente, no início do século XX e se aproxima
muito da ecologia, tendo fortes influências em suas produções. Além destes fatores de
influência, Sauer (1925) também tem um amigo antropólogo, relação que o aproxima
dos estudos de comunidades específicas que viviam à margem do progresso (CLAVAL,
2001), sendo que sob estas dedica boa parte dos seus estudos.

Segundo Claval (2001), no que diz respeito à forma que Sauer (1925) entendia a
cultura, ele a destacava em suas obras sob os aspectos materiais e também sob o
olhar da relação do homem com a natureza e a influência desta na conformação
dos grupos sob os espaços. Logo, tanto a ligação com a ecologia como com a
antropologia ficam muito nítidas.

Assim, a obra de Sauer (1925) apresenta uma ampliação na concepção de cultura


até então trabalhada na Geografia Cultural, pois não a vê apenas construída por
objetos materiais oriundos das vivências dos grupos, mas também nos objetos vivos
e na relação que os grupos estabelecem com estes (CLAVAL, 2001). Assim, Sauer
(1925) também se estabelece como um crítico da condução deste processo sem
prudência, por isso também é um crítico da sociedade norte-americana (CLAVAL,
2001). Sauer (1925) não se estabelece sozinho, o faz conjuntamente à Escola de
Berkeley, que também caminha a partir de suas teorias (CLAVAL, 2001).

Nos estudos desenvolvidos por Sauer (1925) predominavam as pesquisas acerca


das migrações, língua, religião, tipos de cultivos agrícolas, impactos ambientais das
sociedades no espaço (CLAVAL, 2001). Enfim, as características que tornam particular
e tradicional um dado grupo e a região que ocupavam, que os diferenciava dos
demais. Seus estudos acabam sendo desenvolvidos apenas nos EUA.

Contudo, não apena de glórias vive a obra de Sauer (1925), pois algumas são
as críticas que recebe, tanto de geógrafos ligados à Geografia quantitativa quanto
referente ao materialismo histórico (CORRÊA; ROSENDAHL, 2011). Tais críticas
diziam respeito à ausência de características na Geografia Cultural de Sauer (1925),
próprias destas correntes do pensamento geográfico, como pragmatismo e a crítica
social (CORRÊA; ROSENDAHL, 2011).

Mas estas não são as únicas críticas, também existiram as internas, que falavam da
problemática da concepção de cultura supraorgânica trabalhada na escola americana,
pois esta concepção via a cultura como uma entidade maior que os sujeitos dos
grupos. Logo, é como se os sujeitos fossem condicionados a viverem neste regime
de modo harmonioso e os conflitos não ocorressem por movimentações internas,
mas externas. Trata-se da cultura como um elemento maior, além dos indivíduos,
como algo que rege a vida das pessoas, e estas não possuem poder de ação sobre
a cultura, mas ao contrário.

Independente de críticas, que sempre existem sob qualquer pesquisa, o fato

20 Conceito e história da geografia cultural


U1

é que a Geografia Cultural proposta pela escola de Berkeley (CLAVAL, 2001) deu
contribuições para este campo de estudos na Geografia, que são visualizadas na
atualidade, nos estudos desenvolvidos pela Geografia Cultural renovada.

Diante destas contribuições para a Geografia Cultural, perguntamos: Qual a


diferença entre as contribuições da escola alemã, francesa e norte-americana à de
Berkeley? Observamos que existe certa diferença no surgimento da abordagem
cultural na escola alemã, francesa e na de Berkeley, pois na alemã e francesa tem-
se uma Geografia Cultural, ou ainda, uma abordagem cultural da Geografia que ia
sendo sistematizada e consolidada junto à própria Geografia Humana do período.
Outra similaridade entre as duas é a forma em que a cultura era abordada, de
modo reducionista para muitos, pois valorizavam o aspecto material da cultura,
não observando as relações que a cercam. Enquanto que a escola de Berkeley se
destaca e se diferencia, pois dedica-se com muito mais especificidade aos estudos
de comunidades, grupos tradicionais e sua vivência cultural. Ainda que a valorização
também fosse da materialidade da cultura, neste momento ampliam tal visão,
pois inserem os elementos vivos, vegetais e animais, e a relação que os grupos
desenvolvem com este.

Deste modo, para muitos, a Escola de Berkeley, junto à de Sauer, são tidos como
uma primeira versão da Geografia Cultural, sob um olhar tradicional, em função da
perspectiva de cultura utilizada (CORRÊA; ROSENDAHL, 2011).

É bom lembrar que estas perspectivas da cultura em que os alemães, franceses


e norte-americanos trabalham remetem às discutidas anteriormente, na sessão “O
conceito de cultura na Geografia Cultural”. Logo, acompanham também a evolução
do pensamento científico de modo geral e não apenas o geográfico.

Neste sentido, o que se percebe é que o encaminhamento dado da Geografia


Cultural até o momento era dado também à concepção de cultura. Assim, a
partir da alteração da concepção de cultura que advém de um processo maior de
transformação, que é o processo vivenciado pela sociedade de modo geral, tem-se
também as fases da Geografia Cultural, que serão destacadas na sequência.

Tanto a escola alemã quanto a de Berkeley se aproximaram muito da


ecologia. Tal aproximação refletiu diretamente em suas obras e, até
hoje, é uma área na qual a ciência geográfica transita. Para conhecer
mais sobre estes autores fundamentais para a Ciência Geográfica e a
evolução deste campo da Geografia, leia os artigos a seguir.
E lembre-se de que as leituras complementares são fundamentais para

Conceito e história da geografia cultural 21


U1

compreender melhor os processos e sua evolução ao longo do tempo.


CORRÊA, Roberto L.; ROSENDHAL, Zeny (Orgs.). Introdução à geografia
cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
CLAVAL, Paul. A geografia cultural o estado da arte. In: ROSENDAHL,
Zeny; CORRÊA, Roberto Lobato (Orgs.) Manifestações da cultura no
espaço. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1999. p. 59-98.
CLAVAL, Paul. A geografia cultural. Tradução: Luiz Fagazzola Pimenta;
Margareth de Castro Afeche Pimenta. 2. ed. Florianópolis: Ed. Da UFSC, 2001.

Onde e com quem a Geografia Cultural tem sua origem?


Será que também é na Europa, assim como a ciência
geográfica de modo geral?
Quem criou este termo?
Quais são os primeiros estudiosos da Geografia Cultural?
O que procura estudar neste início?

1. Claval (2001) destaca que o início de uma abordagem cultural


na Geografia se confunde com o próprio desenvolvimento
inicial da ciência geográfica. Neste sentido, explique por que
esta afirmativa é correta.

2. Argumente sobre como a concepção de gênero de vida,


proposta por La Blache e destacada na obra de Claval (2001),
pode ter contribuído para a Geografia Cultural ou para uma
abordagem cultural.

22 Conceito e história da geografia cultural


U1

Seção 3

A Geografia cultural da estagnação à renovação


Nesta seção o objetivo é dar continuidade as reflexões acerca da evolução da
Geografia Cultural, agora no século XX, momento marcado por estagnação sucedida
de acontecimentos que levaram a sua renovação. Para aritular este momento
utilizaremos teóricos como: Claval (2001), Corrêa e Rosendahl (2008, 2011), Corrêa
(2007), Almeida (2009).

Após as contribuições de Sauer no início do século XX, a Geografia Cultural


passa por fases que de certo modo acompanham as vivenciadas pela sociedade e,
também, como não poderia deixar de ser, pela própria ciência geográfica (CORRÊA;
ROSENDAHL, 2011).

Então, vale perguntarmos: como a Geografia Cultural é trabalhada no período


da Segunda Guerra Mundial, ou ainda da Guerra Fria? Como fica a sua abordagem
diante da Geografia quantitativa e, mais tarde, da Geografia Crítica? Onde ela tem seus
maiores núcleos de pesquisas atualmente? Quais são as suas principais temáticas de
pesquisa? Estes são alguns dos questionamentos que irão passear por esta sessão.

Esta sessão tem como objetivo apresentar a Geografia Cultural no período em


que vive certa estagnação, seguido de situações que permitem a renovação da
Geografia Cultural.

Autores como Claval (2001), Corrêa e Rosendahl (2011) destacam que, após o
auge da Geografia Cultural, no início do século XX, que pode ser considerada como
tradicional, este campo da Geografia passou por uma fase de declínio ou ainda de
estagnação.

Esta fase é iniciada a partir do momento que pequena parte de geógrafos dedicava
seus estudos à Geografia Cultural, principalmente em comunidades tradicionais,
isoladas, como em comunidades africanas. Eles buscavam discutir esta cultura
materializada que se apresentava, de certo modo, intocada nestas comunidades.

Conceito e história da geografia cultural 23


U1

Este tipo de estudo, um tanto etnográfico, também era desenvolvido pelos


antropólogos, fato que desviava a atenção dos trabalhos dos geógrafos, especialmente
dos franceses. Somava-se a isto o pouco interesse dos geógrafos, de modo geral,
pela abordagem cultural, neste período, após 1940 (CLAVAL, 2001).

Além deste quadro, na Geografia tinha também um processo político, social,


cultural e econômico, por qual o mundo passava a partir da década de 1950, em
função da Guerra Fria, da disputa capitalista e socialista e, especialmente, da expansão
do capitalismo, mais tarde da Tal processo de expansão levava a uma uniformização
de costumes, modos, religiões, línguas, que não era interessante para este segmento
da Geografia, o que, de certo modo, prejudicava a Geografia Cultural herdada de
Ratzel, La Blache e Sauer, pois esta valorizava o estudo de comunidades particulares
e os elementos que as diferenciavam, que as tornavam únicas (CLAVAL, 2001). Logo,
o foco era em comunidades agrícolas, enquanto no cenário mundial, é a sociedade
urbano-industrial que passa a ter destaque.

Assim, ocorria que estes estudos se encontravam numa situação de menor


destaque, em função deste processo de padronização das culturas via expansão do
capitalismo.

Todavia, neste período, ainda havia teóricos que se dedicavam e buscam estudar
este processo de encerramento das práticas dos grupos devido à padronização ou
ainda à globalização, como Jean Brunhes (CLAVAL, 2001).

Para que possamos compreender melhor este momento de declínio que a


Geografia Cultural vivenciava, a fala de Claval (2001, p. 48) é muito interessante:

O interesse dos geógrafos pelos fatos de cultura era centrado no


conjunto de utensílios e equipamentos elaborados pelos homens
para explorar o ambiente e organizar seu habitat. A mecanização
e a modernização introduzem um arsenal de maquinas e de
tipos de construções tão padronizadas que o objeto de estudo
é esvaziado de interesse. A Geografia Cultural entra em declínio,
porque desaparece a pertinência dos fatos da cultura para explicar
a diversidade das distribuições humanas.

Nesse sentido, o conceito de gênero de vida, por exemplo, passa a não ser mais
suficiente para análise da realidade em questão. Assim, com a padronização dos
utensílios, dos costumes, enfim, dos objetos de estudos desses geógrafos, o mesmo
perde-se no contexto, pois não há mais diferenças para se estudar.

Contudo, você já ouviu falar que crise costuma funcionar como uma mola
propulsora? Pois é exatamente isto o que ocorre. É esta crise que serve de impulso

24 Conceito e história da geografia cultural


U1

para a renovação da Geografia Cultural.

Como isto ocorre? Após 1970, soma-se ao processo de padronização ou


globalização uma emergência de movimentos sociais, que tem como objetivo causar
elementos que os diferenciam dos demais, que coloca os sujeitos em grupos, em
nichos, ainda que sejam relativos a causas pertinentes à sociedade como um todo. Ex.:
movimentos ecológicos e movimentos feministas próprios da década de 1970.

Além dos movimentos sociais, temos também um processo contraditório à


padronização das culturas e economias no mundo ocidental, temos os processos
de conflitos identitários, nacionalistas, que se espalhavam especialmente no fim da
década de 1980. Estes grupos buscavam viver suas diferenças étnicas em territórios
próprios (CLAVAL, 2001).

O que tais acontecimentos têm em comum? Ambos buscavam causas que


fortaleciam diferentes identidades, diante de um processo que buscava igualar a todos.

Neste sentido, a própria questão religiosa passa por intensa fragmentação, em


função dos sujeitos desejarem encontrar a si próprios diante do que igualava a todos
(CLAVAL, 2001).

Assim, é interessante percebermos que, embora estejamos ressaltando as


características culturais de processo contraditório de (re)fortalecimento das diferenças,
o mesmo ocorre em função de aspectos econômicos e políticos. Fato que destaca
que a cultura reflete a economia, e vice-versa (CORRÊA; ROSENDAHL, 2011).

Diante deste contexto, a Geografia Cultural passou por um processo de renovação


em função das muitas alterações nas diferentes esferas do globo, econômica, política
e cultural, assim, percebemos que o objeto de estudo mudou, logo, era necessário
mudar também.

Vale lembrar que esta mudança busca se apoiar em outras áreas do conhecimento,
como a antropologia e nas alterações na concepção de cultura. Esta, por sua vez, passa
a ser discutida também a partir do contexto que a cerca, dos significados latentes nas
relações entre os indivíduos. Trata-se da perspectiva vista como todo e explorada na
primeira seção desta unidade.

Assim, a Geografia Cultural, sob uma perspectiva renovada, vai se apresentando


via teóricos franceses e norte-americanos. Na França, os destaques são: Paul Claval,
Augustin Berque, Bonemaisson, dentre outros (CORRÊA; ROSENDAHL, 2011; CORRÊA;
ROSENDAHL, 2008). Nos EUA, são: James Duncan, Dennis Cosgrove, entre outros
(CORRÊA; ROSENDAHL, 2011; CORRÊA; ROSENDAHL, 2008).

Todavia, estas duas escolas, por assim dizer, e autores apresentam influências de
La Blache e Sauer, especialmente no caso francês, pois eles se dedicam a estudos
de grupos mais específicos, como os contextos culturais não ocidentais. Desta

Conceito e história da geografia cultural 25


U1

forma, somam-se a estas influências passadas influências diretas das teorias das
representações, da fenomenologia – filosofia dos significados – e também de um
materialismo cultural (CORRÊA; ROSENDAHL, 2011; CORRÊA; ROSENDAHL, 2008).

Assim, as representações adquirem um peso maior, pois os significados passam a ser


a palavra-chave da cultura, isto é, a cultura não é mais compreendida como elemento
que explica as sociedades, mas que precisa ser explicado em sua complexidade de
significados, que são materiais oriundos das técnicas, dos artefatos, da vivência dos
sujeitos, mas também imateriais vindos das representações das relações que cercam
os sujeitos e/ou grupos.

De acordo com Corrêa e Rosendahl (2008, p. 75):

Significados constitui a palavra-chave da Geografia Cultural


renovada. Incorpora a tese de Cassirer (2001), de que para a
compreensão da realidade social, é necessário se ir além de
sua organização, constituição e estrutura, introduzindo-se os
significados que dela fazem aqueles que com suas práticas
sociais construíram a própria realidade. Trata-se de interpretar a
espacialidade criada e seus sentidos.

Trata-se de um momento em que voltam à busca pelo homem nas análises, ou


ainda a preocupação humanista (CLAVAL, 2001). Os primeiros trabalhos que apontam
essa nova preocupação são de William Kirk (1952) que se dedica ao contexto que influi
nos comportamentos (CLAVAL, 2001). Eric Dardel (1952), também desenvolveu um
estudo que buscava entender, compreender as razões da presença humana na terra,
um sentido à existência (CLAVAL, 2001).

Todavia, estes trabalhos são (re)descobertos neste momento de renovação, após


1970. A redescoberta é feita na América do Norte, no Canadá, mais especificamente,
com Yi-Fu Tuan, que se apropria dessas ideias e se aprofunda na Geografia
Comportamental (CLAVAL, 2001). Tuan busca entender questões até então ignoradas
pela cultura ocidental, discutindo a ligação que as pessoas têm com os lugares
(CLAVAL, 2001).

É Tuan quem propõe, em 1976, a Geografia humanista como a nova Geografia


Cultural. Seria uma Geografia em que o homem e as suas percepções estão no centro
dos estudos (CLAVAL, 2001). Este geógrafo apresenta alguns conceitos importantes,
dentre eles:

• Topofobia: lugares de repulsão em função das relações com o lugar (CLAVAL,


2001).

26 Conceito e história da geografia cultural


U1

• Topofilia: lugares de atração em função das relações com o lugar (CLAVAL, 2001).

Por exemplo, um trecho de BR que direciona para a praia, para alguns pode ser um
lugar de atração, pois pode representar a chegada ao lazer, logo a um lugar topofílico,
no entanto, para outros que possam ter passado por maus momentos em função de
acidentes neste local, poderá ser um lugar topofóbico, lugar que gera medo, repulsa.

A partir de Tuan surgem alguns seguidores como Edward Helph ou Leonard Guelke,
e, também, outros autores que se apoiam em Heidgger e traduzem o mundo a partir
da experiência direta dos indivíduos (CLAVAL, 2001). Impõe-se, nesse momento, sob
os estudos da Geografia Cultural, a abordagem fenomenológica. Nessa abordagem
destacam-se Anne Buttimer e Marwym Samuels (CLAVAL, 2001).

É bom lembrar de que a Geografia Cultural renovada apresenta também outras


bases teóricas em que fundamentam seus estudos, como a antropologia, a filosofia
e a etnologia. Assim, temos muitas interpretações para serem utilizadas na Geografia
Cultural que devem ser colocadas no mesmo patamar de importância (CORRÊA;
ROSENDAHL, 2011; CORRÊA; ROSENDAHL, 2008; CLAVAL, 2001).

Neste sentido, Corrêa (2007) destaca que na Geografia Cultural renovada são
produzidos trabalhos sob três influências básicas, sendo elas: a humanista, a marxista
e a pós-estruturalista.

Contudo, diante destas influências, ou ainda possibilidades para olhar a Geografia


Cultural, temos as temáticas de pesquisa mais específicas. Estas são destacadas por
Claval (2001) e, também, são mencionadas em obras de Corrêa e Rosendahl (2011) e
Almeida (2009).

São algumas delas:

• Paisagem rural como matriz cultural.

• Percepção e avaliação ambiental por parte de grupos sociais e culturais.

• Caráter simbólico de edifícios, praças, montanhas, para grupos étnicos,


religiosos etc.

• Feiras enquanto uma prática cultural.

• Manifestações religiosas em sua dimensão espacial.

• Variação espacial da linguística.

• A cultura popular e suas manifestações espaciais.

• A questão dos conflitos devido a processos migratórios.

• Uso da literatura na leitura da paisagem.

Conceito e história da geografia cultural 27


U1

• A caracterização e delimitação de áreas culturais em meio a uma dinâmica global.

Neste sentido, a Geografia Cultural foi se expandindo para diferentes temas e


também por distintas escolas de Geografia no mundo, assim como a ciência geográfica
como um todo, de modo que chegou ao Brasil, mas isto é tema para a próxima seção!

Mas, antes de partimos para a próxima sessão, é preciso ficar claro que a Geografia
Cultural renovada é construída a partir das contribuições da Geografia Cultural
tradicional, da crise vivenciada no globo, pois é a partir das reflexões e das críticas
que avançam. Assim, esta fase da Geografia cultural vai buscar compreender as
manifestações culturais presentes no espaço, sejam elas permeadas pela materialidade
ou imaterialidade da cultura, pela economia ou política, pela existência ou idealismo
do homem. Por fim, trata-se do contexto direto e indireto que envolve as relações
humanas, logo, as manifestações culturais.

Esta fase da Geografia Cultural renovada é muito rica em detalhes e tem


autores de grande destaque, como James Duncan e Denis Cosgrove
(CORRÊA; ROSENDAHL, 2011). Assim, é fundamental a leitura de textos
complementares.
É fundamental bebermos direto da fonte para ampliarmos nosso
conhecimento!
ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, Roberto Lobato (orgs) Manifestações da
cultura no espaço. Rio de Janeiro, EDUERJ, 1999.

CORRÊA, Roberto Lobato. Sobre a geografia cultural. Textos NEPEC,


3, 2007. Disponível em: <anpege.org.br/revista/ojs-2.2.2/index.php/
anpege08/article/.../pdf5B>. Acesso em: 15 mai. 2015.

ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, Roberto Lobato (orgs). Geografia cultural:


um século (2). Rio de Janeiro: EDUERJ, 2000.

Como a Geografia Cultural é trabalhada no período da


Segunda Guerra Mundial ou ainda da Guerra Fria?
Como fica a sua abordagem diante da Geografia Quantitativa
e mais tarde a Geografia Crítica?

28 Conceito e história da geografia cultural


U1

Onde ela tem seus maiores núcleos de pesquisas atualmente?


Quais são as suas principais temáticas de pesquisa?

1. Observe a citação a seguir que expõe algumas considerações


sobre a Geografia Cultural.
“A Geografia Cultural deixa de ser subdomínio da Geografia humana
e adquire status próprio cujo objetivo é entender a experiência dos
homens No meio ambiente e social, compreender a significação
que estes impõem ao meio ambiente e o sentido dado às suas
vidas” (CLAVAL, 2002, p. 20).

a) A partir desta e dos conhecimentos que foram construídos,


destaque o objetivo da Geografia Cultural, na atualidade, e suas
características.

2. Os autores atuais que apresentam referências para os debates na


Geografia Cultural, como os citados no texto acima, apontam em
suas obras que a Geografia Cultural, sob um perspectiva mundial,
se concentra em duas ou três fases, pertinentes à Geografia Cultural
Tradicional e uma pertinente à Geografia Cultural Renovada. Deste
modo, a partir da reflexão proposta, elabore um mapa conceitual
que destaque e organize o processo de evolução da Geografia
Cultural mundial, em suas fases tradicional e renovada, o contexto
mundial e/ou geográfico, objetivos, pensadores e características
de pesquisa/estudos.

Conceito e história da geografia cultural 29


U1

30 Conceito e história da geografia cultural


U1

Seção 4

Geografia Cultural no Brasil


Neste momento, veremos uma discussão acerca da Geografia Cultural no Brasil,
para compreender como ela se desenvolve e solidifica no cenário nacional. Para tanto,
autores utilizados são: Almeida (2009), Corrêa e Rosendahl (2008; 2011), Claval (2001).

4.1 Geografia Cultural no Brasil

Como vimos até o momento, a Geografia Cultural passa a ser amplamente


discutida e torna-se a área de muitas pesquisas, especialmente, após 1990. Contudo, é
fato apontado por autores como Corrêa e Rosendahl (2008) que tal processo, quando
se instala no Brasil, o faz sob um contexto interno e externo. Os autores também
destacam que algumas ações pontuais alteram parte desta primeira afirmação.

Neste sentido, vale a pena destacarmos o processo que envolve a instalação


da Geografia Cultural no Brasil, para tanto, é importante fazermos alguns
questionamentos, como: Por que a Geografia Cultura chega ao Brasil apenas
nos anos 1990? Quais são as principais temáticas discutidas na Geografia Cultural
brasileira? Como discutir manifestações culturais/vivências na Geografia Escolar?
Como é possível trazer este debate para a sala de aula, de modo que o aluno
compreenda? Como é possível utilizar desta bagagem teórica da Geografia Cultural
na prática como docente?

Autores destacam que o desenvolvimento tardio da Geografia Cultural no Brasil,


isto é, em média 35 anos após a instalação da ciência geográfica no país, se deve a
alguns motivos. Dentre eles:

• A chegada da ciência geográfica no Brasil na década de 1930 via franceses:


neste período, a Geografia Cultural já estava recebendo forte destaque via Sauer nos
Estados Unidos e a apropriação que se faz da Geografia francesa no Brasil, ou ainda,
da Geografia vidaliana, é, sobretudo, da Geografia Regional, isto é, os estudos deste
momento, no Brasil, valorizam muito os estudos das paisagens agrícolas e urbanas,
que, por sua vez, enxergavam a cultura como mais um elemento da relação entre
homem e natureza, nada específico ou determinante para as paisagens (CORRÊA;

Conceito e história da geografia cultural 31


U1

ROSENDAHL, 2008). Outro fator importante é que os geógrafos franceses que


iniciam as atividades na ciência no Brasil e seus seguidores não reconhecem uma
Geografia Cultural na obra de La Blache. Deste modo, neste momento em que a
ciência Geografia emerge no Brasil, a abordagem cultural produzida por La Blache
não é considerada, muito menos a exercida por Sauer naquele momento (CORRÊA;
ROSENDAHL, 2008).

• Desinteresse da Escola Berkeley pelo Brasil: Sauer e seus discípulos na América


do Norte não costumavam desenvolver pesquisa ao longo de toda a América
Latina. As pesquisas além dos limites norte-americanos foram realizadas apenas
na proporção espanhola da região, mais precisamente no México. Todavia, houve
uma exceção no caso brasileiro, com Hilgard Sterbeng. Este professor brasileiro,
que atuava na Universidade Federal do Rio de Janeiro, na década de 1960, era
um admirador do trabalho de Sauer e mudou-se e foi ser professor na Escola de
Berkeley, junto a Sauer. A tese que garantiu sua cátedra na escola fazia bem o estilo
da pesquisa sueriana, ou seja, a pesquisa que busca este conhecimento do homem
e o de outro elemento quase sempre natural. O título da tese foi “A água e homem
na Várzea do Carneiro” (CORRÊA; ROSENDAHL, 2008).

• Crescimento de outras correntes geográficas: ao logo do século XX,


especialmente pós 1950, a Geografia brasileira foi marcada por correntes geográficas
bem definidas. Neste período, duas possuem destaque, a quantitativa e a crítica. Em
ambas as culturas era vista de modo muito específico e não se aproximava das análises
realizadas em outros campos do conhecimento, como a antropologia, que mais
tarde viria a subsidiar a virada na Geografia Cultural. Todavia, as definições também
não se aproximavam da chamada Geografia Cultural tradicional. Assim, na Geografia
Quantitativa, a cultura era informação, não era elemento importante para explicação
de fenômenos, sendo apenas variável para compor análises e interpretações. Já na
Geografia Crítica, a cultura seria influenciada ou determinada pela base econômica,
logo, esta última deveria receber estudos (CORRÊA; ROSENDAHL, 2008).

É certo que existiram algumas exceções na produção da Geografia Cultural


brasileira no período de 1930 até 1980, como a própria abordagem humanista
realizada em 1970 por Lívia de Oliveira, com a chamada Geografia Comportamental
(CORRÊA; ROSENDAHL, 2008). Contudo, em função do contexto descrito acima,
ela não recebeu destaque nacional naquele momento.

Assim, sabemos que a Geografia Cultural no Brasil chega de fato após 1980 e vem
influenciada por um contexto incialmente externo. Segundo Corrêa e Rosendahl
(2008), trata-se de um contexto marcado por:

• A renovação da Geografia Cultural que ocorre nos EUA a partir de 1970, com
geógrafos como Cosgrove, Jackson e Duncan: este último faz criticas à obra de
Sauer e os debates estabelecidos por este teórico, entre outros, permite que haja

32 Conceito e história da geografia cultural


U1

a adoção de outra concepção de cultura (CORRÊA; ROSENDAHL, 2008), agora


compreendida como contexto. Como já vimos na seção anterior, trata-se da cultura
como sendo fruto das relações sociais e não mais como um elemento maior que
os grupos, como na visão supraorgânica, mas como produto dos grupos, das suas
vivências. E, por isso, por ser fruto das relações sociais, é mutável. Liberta-se então
da visão exclusivamente material (CORRÊA; ROSENDAHL, 2008).

• A diversidade metodológica vivenciada por esta Geografia Cultural anglo-


saxônica: buscou bases para desenvolver suas pesquisas em outras áreas do
conhecimento, como na antropologia, nas ciências sociais, na filosofia e na linguística,
o que permitiu diferentes olhares para os fenômenos. Dentre as abordagens relativas
ao passado, a Geografia Cultural renovada ainda inclui a saueriana, que ainda possui
discípulos e a francesa, oriunda das produções de La Blache, que tem como grande
expoente, inclusive no Paul Claval (CORRÊA; ROSENDAHL, 2008).

• A valorização dos significados: significado foi adotado como palavra-chave


para este momento da Geografia Cultural, uma vez que, na atualidade, é comum
a apresentação de símbolos com muitos significados diferentes. Os lugares
costumam adquirir esta característica, isto é, um lugar com muitos significados,
que são produzidos de acordo com as vivências, é denominado como polivocal,
por exemplo, uma praça ou uma grande avenida pode ter diferentes significados.
Estes irão depender das relações que se colocam ali em um determinado momento
(CORRÊA; ROSENDAHL, 2008). Ex.: Av. Paulista, em São Paulo, para empresários,
funcionários e autônomos que trabalham nesta avenida, os significados desta são
relativos ao mundo do trabalho, à labuta diária. No entanto, já para os moradores
da avenida ou de suas imediações, representa um espaço de lazer, ou mesmo de
vivências relacionadas à moradia, ao lar. Trata-se de significados diferenciados que
habitam um mesmo lugar e permitem interpretações diversas.

É sob este contexto, bebendo de todas estas fontes e debates, que a Geografia
Cultural renovada, ou nova Geografia Cultural, chega ao Brasil a partir dos anos de
1980, 1990.

Ela vai sendo introduzida via artigos e defesa de teses, como o artigo de Corrêa,
em 1989, acerca de Sauer e a Geografia Cultural. Na sequência, tem-se a tese de
Rosendahl, em 1994, acerca da Geografia da Religião. Tais fatos combinam-se e
estes geógrafos, juntos, fundam o NEPEC – Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre
Espaço e Cultura (CORRÊA; ROSENDAHL, 2008). Este fica situado no Rio de Janeiro
e tem como objetivo discutir e produzir acerca das relações entre espaço e cultura.
Em seguida, como fruto do núcleo e da parceria, é criado, em 1995, o periódico
Espaço e Cultura, que se destina a publicações relativas a estas relações entre
espaço e cultura (CORRÊA; ROSENDAHL, 2008). Tal periódico é fundamental para
a sistematização e publicação da Geografia Cultural entre os geógrafos brasileiros,
uma vez que o periódico gera, além das inúmeras publicações relevantes à pesquisa,

Conceito e história da geografia cultural 33


U1

uma coleção de livros da Geografia Cultural, que trazem publicações nacionais e


geógrafos da Geografia Cultural anglo-saxônica e francesa (CORRÊA; ROSENDAHL,
2008).

Demais publicações em diferentes regiões do Brasil vão fortalecendo a Geografia


Cultural, como as produzidas por Maria Geralda de Almeida, Werther Holzer, João
Batista de Ferreira Melo, entre outros, que passam a compor os trabalhos pioneiros
na Geografia Cultural renovada do Brasil (CORRÊA; ROSENDAHL, 2008).

A partir deste período, as produções da Geografia Cultural no Brasil só vêm


aumentando, assim como a criação de núcleos, de grupos de pesquisa e estudos
e linhas de pesquisa em programas de pós-graduação. Tais criações foram
fundamentais para seu destaque no cenário nacional (CORRÊA; ROSENDAHL, 2008).

Corrêa e Rosendahl (2008) destacam que, dentre as publicações realizadas no


país nas décadas recentes, os temas que mais se destacam são: religião, história e
biografias e festas, com cerca de 40% das pesquisas.

Com relação à temática da religião, são realizadas pesquisas com temas como:
territorialidade e difusão espacial das igrejas ou religiões, centros de peregrinação,
como o Santuário de Aparecida, em Aparecida do Norte – SP, por exemplo (CORRÊA;
ROSENDAHL, 2008).

Nestes temas, as abordagens são diferenciadas, como foi mencionado anteriormente,


a Geografia Cultural renovada apresenta uma pluralidade metodológica. Deste modo, a
abordagem de tais fenômenos espaciais e culturais pode ser, sob o olhar humanista, da
fenomenologia ou outra base filosófica, como existencialismo ou idealismo, ou ainda
materialista histórica (CORRÊA; ROSENDAHL, 2008).

No caso da Geografia da Religião, nome dado a esta área do conhecimento


geográfico, tratam-se de pesquisas e debates anteriores a esta fase da renovação.
Pierre Deffontaines (1948) é considerado um pioneiro com sua obra Geografia e
religião na qual destaca a questão dos signos que a religião imprime nas paisagens,
além de destacar: “[...] se influi sobre o povoamento, modela centros históricos das
cidades e cria espaços para a morte” (CLAVAL, 2001, p. 45). Deffontaines destaca-se
por se debruçar sob o fato religioso no que tange à influencia para a modificação no
espaço e não sobre a fé ou dogmas colocados pelas religiões (CLAVAL, 2001).

Outros nomes anteriores à década de 1970 também surgiram: discutindo religião


sob esta abordagem cultural na Geografia, como: Xavier de Planhol (1957), que
trabalhava com a questão dos fundamentos religiosos da Geografia do mundo
islâmico; David Sopher (1967), que também se dedicou aos estudos da Geografia
vinculados à religião, discutindo também temáticas relativas a organizações religiosas
(CLAVAL, 2001).

34 Conceito e história da geografia cultural


U1

Com relação à temática das festas, percebemos que se trata do estudo de festas
religiosas, mas também não religiosas, além de manifestações de grupos específicos.
Neste caso, alguns trabalhos buscam compreender os impactos das manifestações
culturais populares na dimensão espacial. Para tanto, também é possível utilizar
diferentes embasamentos metodológicos para orientar a pesquisa.

Outros temas também aparecem na produção brasileira da Geografia Cultural,


são eles: literatura; música; paisagem cultural; identidade territorial; gênero e
sexualidade, entre outros (CORRÊA; ROSENDAHL, 2008). Inclusive, alguns destes
temas já são postos, por alguns grupos, como campos da Geografia, assim como é
o caso da Geografia do gênero e da sexualidade e da própria Geografia da religião.

A seguir, alguns títulos seguidos de autores, locais de produção e tipo de pesquisa


que exemplificam as áreas e/ou temáticas mencionadas.

Quadro 1.1 | Pesquisas na Geografia Cultural que ilustram a variedade de temáticas

Titulo Autor Local de Produção Tipo de pesquisa

LITERATURA E
CIDADE: UMA LEITURA
Janaina de Alencar Universidade Estadual Monografia - Trabalho
GEOGRÁFICA DA
Mota e Silva de Londrina / 2004 de Conclusão de Curso
OBRA DE ITÁLO
CALVINO.
PROSTITUIÇÃO E
ESTRUTURAÇÃO
Ana Cláudia Soistak;
DE UMA ESPAÇO
Luciane do Rocio Universidade Estadual Monografia - Trabalho
DE RESISTÊNCIA
Moura Martins; Thiago de Ponta Grossa / 2009 de Conclusão de Curso
FEMININA NO JARDIM
Barbosa Taques.
BOM RETIRO EM
PONTA GROSSA-PR
O ENCONTRO DE
TERRITORIALIDADES
NA DIÁSPORA: Universidade Federal Dissertação de
Carla Holanda da Silva
JAPONESES E do Paraná / 2008. Mestrado
NORDESTINOS EM
ASSAÍ-PR.
QUILOMBOLAS
PARANAENSES
CONTEMPORÂNEOS:
UMA IDENTIDADE
TERRITORIAL
AGENCIADA? Universidade Federal
Carla Holanda da Silva Tese de doutorado
UMA ANÁLISE A do Paraná / 2013
PARTIR DO EXEMPLO
DE ADRIANÓPOLIS
NO VALE DO RIBEIRA
PARANAENSE

Continua

Conceito e história da geografia cultural 35


U1

OS “MUNDOS” RURAL E
URBANO: RELAÇÕES E
INTERAÇÕES A PARTIR
Ana Paula Aparecida Universidade Estadual Dissertação de
DO COTIDIANO DA
Ferreira Alves. de Ponta Grossa / 2011 Mestrado
COMUNIDADE DE SÃO
JOÃO NO VALE DO
RIBEIRA-PR.

Deste modo, é possível notarmos que a Geografia Cultural, de modo geral, é


plural, ampla e no Brasil não foi diferente. Pelo contrário, ela foi sendo produzida a
partir de influências externas da Geografia Cultural, do encontro com outras áreas
do conhecimento e também considerando as especificidades internas, vindas
dos fenômenos a serem estudados e do próprio histórico da Geografia no Brasil
(ALMEIDA, 2009; CORRÊA; ROSENDAHL, 2011; CORRÊA; ROSENDAHL, 2008;
CLAVAL, 2001).

Neste sentido, é fundamental ao geógrafo ou licenciado em Geografia ter


conhecimento desta área do conhecimento geográfico, pois o elemento cultura,
ou ainda abordagem cultural, é fundamental para explicar com mais completude os
fenômenos espaciais aos alunos e humanizá-los.

Assim, já existem algumas produções dedicadas a fazer esta análise da contribuição


da Geografia Cultural para o ensino de Geografia ou ainda como abordagem cultural
pode ser introduzida neste processo e resultados que podem apresentar.

Assim, pretendemos neste momento discutir, a partir de reflexões como a de


Castro (2008), entre outros, e apresentar possibilidades de contribuições entre a
Geografia Cultural ou mesmo a abordagem cultural e o Ensino de Geografia, posto
que entendemos que as contribuições são efetivas, uma vez que a Geografia Cultural
possibilita que o homem na sua dimensão cultural seja compreendida e como esta
dimensão manifesta-se no espaço.

Todavia, também se entende que existem dificuldades em encontrar prática


ou caminhos que auxiliem no processo de fazer com que o aluno compreenda
manifestações culturais em uma escala mais ampla. Por exemplo, a relação que os
indianos têm com o Rio Ganges, pois tratam-se de manifestações culturais distantes
das vividas pelos alunos, que são permeadas por visões de mundo também distantes,
o que permite o estabelecimento de pré-conceitos.

Neste sentido, é possível fazer alguns questionamentos: Como discutir


manifestações culturais/vivências na Geografia Escolar? Como é possível trazer este
debate para a sala de aula, de modo que o aluno compreenda? Ou ainda, como
é possível utilizar desta bagagem teórica da Geografia Cultural na prática como
docente?

Tais questionamentos serão respondidos na sequência, contudo, o primeiro item

36 Conceito e história da geografia cultural


U1

a saber é que a Geografia Cultural ou a sua a abordagem, o ensino de modo geral,


permite compreender como as pessoas vivem sobre a terra, suas experiências e
significados.

Deste modo, entendemos que, se utilizado junto aos instrumentos e estratégias


metodológicas adequadas, esta abordagem pode permitir que o aluno compreenda
tais vivências, inclusive a partir do olhar do outro, de modo que algumas barreiras ou
conceitos pré-adquiridos possam ser desconstruídos.

Em função das leituras de Castro (2008), percebemos que a abordagem cultural


pode ser inserida na escola sob diferentes caminhos, contudo, independente da
estratégia e/ou instrumentos, estes devem buscar explorar as significações das
manifestações, das vivências dos indivíduos e/ou grupos.

Para tanto, Castro (2008) destaca que é fundamental romper com visões
eurocêntricas, com ações de dominação que se colocam sob as práticas culturais,
locais e regionais, práticas que acabam por minar a vivência cultural local.

Um exemplo muito comum e citado por Castro (2008) é que nas escolas é
prática cotidiana comemorar ou realizar atividades na data de Halloween, todavia,
poucas ou quase inexistentes são as atividades que fazem menção a festividades ou
mitos, mitos relativos à cultura africana ou indígena, posto que, muitas vezes, estas
manifestações são vistas com pré-conceitos, sob visões pejorativas.

Neste sentido, entendemos que não é interessante que se crie a valorização de


algumas manifestações e marginalização de outras. Fato que é já realizado pela mídia
e, muitas vezes, (re)afirmado por professores e materiais didáticos (CASTRO, 2008).
Quando você observa um livro didático, você percebe um destaque para a cultura
de continentes e países tidos como marginais, no processo de desenvolvimento
econômico e político, como África e alguns países da Ásia como Índia, Malásia, ou
ainda do Oriente Médio, Paquistão, por exemplo? Se observar, ainda que rapidamente,
irá perceber que este processo ocorre e é muito comum ao longo das diferentes
coleções de livros didático. Tais realidades não ocidentais e não participantes dos
grupos dos colonizadores tendem a ser expostas carregadas de estereótipos que
desprezam a cultura local, a visão do indivíduo ou grupo acerca do mundo e das
suas próprias manifestações.

Para sanarmos tal realidade, é necessário explorá-las sob uma perspectiva


revitalizadora de significados, de acordo com Castro (2008). Um exemplo é quando
trabalhamos com a Ásia, é possível não apenas explorar as manifestações de
países de destaque como o Japão, mas também de outros países que possuem
manifestações amplamente ricas, como a Índia. E, neste sentido, buscar via imagens,
leituras e documentários compreender ou trazer para o debate com os alunos as
significações das manifestações lá vividas.

Conceito e história da geografia cultural 37


U1

Assim, Castro enfatiza que é preciso romper com a visão de safari, muitas vezes
predominante nas aulas de Geografia. Visão na qual buscamos compreender a
cultura de um grupo a partir das descrições, especialmente do que é material, do
visível, de modo que apelamos para uma visão restrita de cultura.

É preciso ir além, buscar os significados do que é descrito, das representações


para os sujeitos e/ou grupos, pois é olhando o outro a partir deste olhar também
do outro, ou ainda com profundidade, que é possível romper com visões pré-
estabelecidas.

A fim de que tal processo seja realizado, a utilização de filmes, documentários e


músicas é fundamental, pois permite uma conexão mais representativa, pois aciona
outros sentidos que não os refere à leitura ou às aulas expositivas. Conectam de
modo mais intenso o aluno e a realidade do outro.

Para tanto, Castro (2008) sugere algumas obras que podem auxiliar nesta
abordagem cultural. Estas obras e as possiblidades de exploração seguem no quadro
1.2.

Quadro 1.2 | A abordagem cultural nas aulas de Geografia: algumas possibilidades a partir
das ideais de Castro (2008)

Recurso Conteúdo / Temática Abordagem Cultural

- Analisar criticamente a posição dos EUA


como “dono do mundo”.
- Analisar esta posição diante das
manifestações culturais atuais.
- Hegemonia da cultura
Filme Armagedon - Discutir a inserção de palavras de língua
americana.
estrangeira no cotidiano, como: Shopping
Centers / Fast Food, isto é, a americanização
da cultura ou ainda a supervalorização da
cultura americana.
- Discutir a relação dos diferentes povos com
a natureza.
- Vulcanismo. - Analisar o vulcão em outras culturas, como
Filme Inferno de - Vulnerabilidade do homem o sagrado, por exemplo, como é cultuado
Dante diante da força da natureza. por alguns povos africanos como a Morada
- Apropriação da Natureza. dos Deuses.
- Romper com a visão eurocêntrica,
avistando diferentes perspectivas.
- Uso da água - Apresentar e discutir a importância da água
- Problemas referentes ao para alguns povos, como o caso dos rios
Ex.: Música Planeta
mal uso Sagrados.
Água
- Transposição do Rio São - Discutir o desvio de rios sagrados e seus
Francisco impactos na cultura local.

Continua

38 Conceito e história da geografia cultural


U1

- Compreender as relações dos migrantes


com novo território.
- Migrações - Discutir as perdas e ganhos culturais.
- Segregação sócio espacial - Discutir os processos de (re) construções
Músicas “Cidadão” e - Dinâmica da sociedade de laços, via festas que reproduzem a cultura
“Triste partida” capitalista local, como as festas ou ainda as feiras
- Mudanças na dinâmica de nordestinas nos grandes centros.
migrações no Brasil - Apresentar e discutir a diversidade
linguística e o encontro dela nos grandes
centros;
- Analisar o contexto cultural das
Trabalho de Campo
construções e apropriações sob o território.
na área urbana, - Processo de urbanização.
- Verificar as relações de poder implícitas via
com enfoque em - Relações políticas
construções, monumentos, praças nomes
monumentos, estabelecidas.
de ruas.
nomes de ruas e - Territórios urbanos.
- Analisar o uso dos espaços pelos grupos
praças.
pertencentes à cidade.
Fonte: Castro (2008)

Diante de tais proposições, percebemos que inúmeras são as possibilidades para


prover a leitura e a discussão de conteúdos geográficos sob outras perspectivas que
não apenas as econômicas e as políticas. Essas perspectivas permitem descontruir
leituras eurocentrizadas do mundo, em que as realidades locais não são exploradas.

O professor de Geografia deve transitar entre as leituras, os debates centrais


e periféricos. Todavia, para tanto, é necessário além do domínio de conteúdo e
instrumentos, recursos diferenciados que caminhem além do livro didático. É
preciso de uma concepção ampla acerca da cultura e dos seus processos. Além de
interações com demais disciplinas do currículo básico, como destaca Castro (2008).

Neste sentido, fica claro que, para propor uma abordagem cultural nas temáticas
e práticas do ensino de Geografia, é preciso disposição e compreensão por parte
do professor, a fim de desejar propor também para o aluno uma ampliação da sua
visão de mundo, a partir do olhar do mundo do outro, com o olhar também do
outro. Logo, é possível uma humanização maior deste aluno, também a partir das
discussões geográficas.

Neste para saber mais, propomos, além da leitura de uma das obras
utilizadas para esta reflexão, a leitura de materiais que te levem a
conhecer um pouco mais sobre as comunidades quilombolas no Brasil
e Paraná, uma vez que este é um tema muito rico para ser explorado
pela Geografia cultural, seja na pesquisa ou no ensino.

Conceito e história da geografia cultural 39


U1

Boa Leitura!

CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny. A geografia cultural


brasileira: uma avaliação preliminar. Revista da ANPEGE. v. 4, p. 73-88,
2008.
CARRIL, Lourdes. Quilombo, favelas e periferia: a longa busca pela
cidadania. São Paulo: Editora Anablume/Fapesp, 2006.
SILVA, Carla H. Quilombolas paranaenses contemporâneos: uma
identidade territorial agenciada? Uma análise a partir do exemplo de
Adrianópolis no Vale do Ribeira paranaense. 2013. Tese (Doutorado em
Geografia). Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade
Federal do Paraná, Curitiba, 2013.
Acesse também o site Koinonia, lá você irá encontrar vários vídeos sobre
comunidades do Brasil! É um material muito rico.
Acesse em: <http://www.koinonia.org.br/visoes_quilombolas/>. Acesso
em: 15 mai. 2015.

Por que a Geografia Cultural chega ao Brasil apenas nos anos


1990?
Quais as principais temáticas discutidas na Geografia Cultural
brasileira?
Como discutir manifestações culturais/vivências na Geografia
Escolar?
Como é possível trazer este debate para a sala de aula, de
modo que o aluno compreenda?
Como é possível utilizar desta bagagem teórica da Geografia
Cultural na prática como docente?

1. Corrêa e Rosendahl (2008, p. 73) destacam que “A despeito


da Geografia acadêmica brasileira ter sido criada em 1924,
com a implantação do curso de Geografia e História NE
Universidade de São Paulo, foram necessários 60 anos

40 Conceito e história da geografia cultural


U1

para que a Geografia cultural fosse reconhecida, e ainda


assim por poucos geógrafos. E, este subcampo já tinha
longa história na Europa e nos Estados Unidos, tendo se
desenvolvido a partir de 1890”. Os autores, no trecho acima,
iniciam um debate acerca do desenvolvimento tardio da
Geografia Cultural no Brasil. Neste sentido, assinale com
V para verdadeiro e F para falso sobre os argumentos que
seguem acerca da Geografia Cultural no Brasil.
( ) A Geografia Cultural no Brasil apresenta pesquisas
apenas após 1990, em função de diferentes motivos. Dentre
eles: desinteresse das produções da Escola de Berkeley
pelo Brasil; eventos geográficos realizados no Brasil que
não valorizavam a temática; apego à Geografia francesa;
destaque de correntes geográficas, como a quantitativa e
a crítica.
( ) Os fatores externos que incentivam o desenvolvimento
da Geografia Renovada no Brasil são: o contexto de
diversidade metodológica nas ciências humanas como
um todo; a adoção dos significados para compreender
as espacialidades criadas pelos indivíduos; a inserção da
dimensão da política nos estudos culturais.
( ) Alguns momentos específicos marcam o início da
Geografia Cultural Renovada no Brasil, como: a defesa
de algumas teses na área, especialmente discutindo a
espacialidade de religiões; traduções de obras importantes;
a criação de periódicos específicos e de núcleos de
pesquisa pelo Brasil.
( ) Embora a Geografia Cultural no Brasil tenha se iniciado
tardiamente, atualmente trata-se de uma das área ou
subcampos da Geografia que mais produz, superando
campos já tradicionais da pesquisa geográfica, como
Geografia Urbana.

2. Realize a escolha de um conteúdo e/ou tema do livro


didático de sua preferência e apresente uma proposta
de abordagem cultural para a discussão dele. Para tanto,
destaque:
• Tema/conteúdo.
• Objetivo da proposta.

Conceito e história da geografia cultural 41


U1

• Encaminhamentos metodológicos para uma abordagem


cultural.
• Apresente e discuta com a sala de aula ao final da realização.

Vimos, ao longo desta unidade, que a Geografia Cultural se


revela como um campo rico da ciência geográfica, pois permite
a compreensão das manifestações culturais presentes no espaço
geográfico. Todavia, o seu estudo exige a compreensão de
inúmeros conceitos, como o de cultura e a leitura de reflexões de
outras áreas do conhecimento, como antropologia, por exemplo.

Assim, diante deste contexto próprio da Geografia Cultural,


nesta unidade tínhamos como objetivo compreender a história,
a evolução e as possibilidades de aplicabilidades da Geografia
Cultural na pesquisa e no ensino, diante da ciência geográfica.

Para que conseguíssemos atingir o objetivo, nós fizemos um


caminho interessante sobre a história do pensamento geográfico
e da própria evolução da sociedade.

Iniciamos este caminho com a apresentação do conceito


de cultura sob os seus diferentes olhares, que contribuíram
diretamente para a Geografia Cultural em suas diferentes fases. Na
sequência, chegamos ao conceito de cultura proposto e utilizado
pela Geografia Cultural, tanto em sua fase considerada tradicional
como a renovada.

Neste momento, é fundamental que você tenha compreendido


que, num primeiro momento da Geografia Cultural tradicional,
a concepção que se tinha para a cultura era mais reducionista,
pois se limitava às técnicas e aos instrumentos que os grupos
possuíam, isto é, a cultura material. Num segundo momento
de renovação da Geografia Cultural, a concepção de cultura se
amplia e passa a ser vista além da material, agora englobando
os significados presentes nas relações, nos símbolos. A cultura é
entendida como mutável e fruto das relações sociais.

42 Conceito e história da geografia cultural


U1

Em seguida, iniciamos a trajetória pela evolução da Geografia


Cultural, passando pelos seus primórdios, no fim do século XIX e
início do século XX, com Ratzel, Lablache e Sauer. Também vimos
a sua estagnação e uma possível crise, que é a mesma que serve
de propulsão para o seu ressurgimento e consolidação que ocorre
especialmente a partir da escola francesa e norte-americana. Todos
estes fatos no século XX.

Chegamos, então, à Geografia Cultural no Brasil, neste momento


buscamos compreender como ela chega ao Brasil e por que apenas
no fim dos anos 1980 e anos 1990, mais precisamente. Neste
momento, é importante que você tenha compreendido o histórico
da Geografia Cultural brasileira que, é marcado, no início, por
teóricos, trabalhos e núcleos de pesquisa pontuais e, depois vai, se
expandido e, também, ter ciência da grande possibilidade de temas
para o estudo neste campo do conhecimento.

Por fim, trouxemos para o debate a possibilidade de utilizar toda esta


discussão teórica e acadêmica no ensino de Geografia na prática
docente cotidiana, posto que acreditamos que esta abordagem
também é muito rica para a Geografia Escolar, pois pode auxiliar
na apresentação do mundo e no olhar para o outro. Logo, na
humanização dos nossos futuros alunos.

Esperamos que esta unidade tenha auxiliado você a compreender


melhor este campo do conhecimento geográfico e se interessar
em desenvolver pesquisa na área!
Para ampliar seus conhecimentos, seja para o desenvolvimento de
pesquisas e/ou aprofundamento nos estudos, é preciso que você
leia os textos complementares ou pelo menos capítulos, partes
deles e também busque outros materiais em livros e periódicos,
inclusive disponíveis na internet. Além de perguntar sempre! Se você
encontrou um material, um artigo ou resumo científico interessante
e ficou com dúvidas, envie um e-mail ao autor para solicitar maiores
esclarecimentos. É sempre bom fazer estas trocas!
Bons estudos!
Carla

Conceito e história da geografia cultural 43


U1

1. A Geografia Cultural é uma área ou subcampo da Geografia


que tem adquirido destaque nas pesquisas brasileiras nos últimos
anos. Deste modo, aponte e comente o objetivo desta área da
Geografia na atualidade e suas características.

2. Explique as diferenças na concepção de cultura discutidas


por alemães e franceses e pelos norte-americanos, mais
precisamente por Sauer e a escola de Berkeley.

3. Aponte os motivos que fizeram Sauer ser considerado um


importante precursor da Geografia Cultural tradicional.

4. Para Castro (2008, p. 71-72), “A partir, sobretudo dos anos


1990, tem se notado um expressivo crescimento de pesquisas
e estudos relacionados à Geografia Cultural e suas múltiplas
abordagens. Dentre as temáticas que podem ser trabalhadas
sob o enfoque cultural da Geografia podem-se citar as religiões,
as festas populares e a diversidade de povos do planeta [...] Na
atualidade, nota-se, no entanto, que nos espaços educacionais
do ensino básico falta uma maior valorização e, uma maior
consistência metodológica para as abordagens da vertente
cultural da Geografia”. Diante desta fala de Castro (2008) e das
discussões realizadas no início do segundo bimestre, elabore um
pequeno texto, com, no mínimo, 10 e, no máximo, 20 linhas, que
aborde, de modo dissertativo, os seguintes questionamentos:
- Quais as contribuições da abordagem cultural para o ensino de
Geografia?
- O que é preciso para inserir a abordagem cultural no ensino de
Geografia?
- Quais os motivos que levam ao não emprego ou uso desta
abordagem cultural no ensino de Geografia?
- Aponte brevemente um encaminhamento/atividade que faça
uso da abordagem cultural no ensino de Geografia.

5. Elabore um mapa conceitual que apresente, sob uma


organização cronológica, a evolução da Geografia Cultural de
Ratzel, a Renovação.

44 Conceito e história da geografia cultural


U1

Referências

ALMEIDA, Maria Geralda de. Geografia cultural: contemporaneidade e um flashback na


sua ascensão no Brasil. In: Espaço e tempo: complexidades e desafios do pensar e do
fazer geográfico (Org.) MENDONÇA, Francisco de Assis; LOWEN-SAHR, Cicilian Luiza.
Curitiba: Associação de Defesa do Meio Ambiente (ADEMADAN), 2009. p. 243-260.
BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Philippe e STREIFF-
FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. São Paulo: Unesp, 1998, p. 185-227.
CARRIL, Lourdes. Quilombo, favelas e periferia: a longa busca pela cidadania. São
Paulo: Editora: Anablume/Fapesp, 2006.
CASTRO, Jânio Roque Barros de. Desafios e Potencialidades da Geografia Cultural nos
espaços educacionais: uma abordagem reflexiva e propositiva. In: Ateliê Geográfico.
Goiânia, n. 3, v. 2, p. 71-88, dez. 2008.
CORRÊA, Roberto Lobato. Geografia Cultural: Passado e Futuro – Uma Introdução.
In: ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, Roberto Lobato (Org.) Manifestações da cultura no
espaço. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1999. p. 49-58.
CORRÊA, Roberto L.; ROSENDHAL, Zeny (Org.). Introdução à geografia cultural. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.
CORRÊA, Roberto Lobato. Sobre a Geografia Cultural. Textos NEPEC, 3, 2007.
Disponível em: <anpege.org.br/revista/ojs-2.2.2/index.php/anpege08/article/.../
pdf5B>. Acesso em: 28 jun. 2015.
CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny. A geografia cultural brasileira: uma
avaliação preliminar. Revista da ANPEGE, v. 4, p. 73-88, 2008.
CLAVAL, Paul. Autour de Vidal de la Blache. Paris: CNRS Èditions, 1993.
CLAVAL, Paul. A geografia cultural o estado da arte. In: ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA,
Roberto Lobato (Org.) Manifestações da cultura no espaço. Rio de Janeiro, EDUERJ,
1999, p. 59-98.
______. A geografia cultural. 2. ed. Tradução: Luiz Fagazzola Pimenta; Margareth de
Castro Afeche Pimenta. Florianópolis: UFSC, 2001.
______. “A volta do cultural” na geografia. Mercator: revista de Geografia da UFC,
Fortaleza, CE, ano 01, n. 01, p. 19-28, 2002.
DIEGUES, Antonio Carlos. As populações tradicionais: conflitos e ambigüidades. In: O
mito moderno da natureza intocada. 5. ed. São Paulo: NUPAUB-USP, 2004. p. 66-88.

Conceito e história da geografia cultural 45


U1

EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. Tradução: Sandra Castello Branco. São Paulo:
Editora UNESP, 2005.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
LARAlA, R. B. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.
LÈVI-STRAUSS. Natureza e Cultura. In: Estruturas elementares do parentesco. 3. ed.
Petrópolis: Vozes, 2003, p. 41-50.
RATZEL, Friedrich. Geografia dell’uomo (Antropogeografia): principî d’applicazione
della scienza geográfica alla storia. Primo volume. (Tradotta da Ugo Cavallero) Torino:
Fratelli Boca Editore, 1914. 596p.
ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, Roberto Lobato (Org.) Manifestações da cultura no
espaço. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1999.
ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, Roberto Lobato (Org.). Geografia cultural: um século
(2). Rio de Janeiro: EDUERJ, 2000.
SILVA, Carla Holanda da. Quilombolas paranaenses contemporâneos: uma identidade
territorial agenciada? Análise a partir do exemplo de Adrianópolis no Vale do Ribeira
paranaense. 2013. Tese (Doutorado em Geografia). Programa de Pós-Graduação em
Geografia, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2013.
SAUER, Carl O. The morphology of landscape. University of California Publications. In:
Geography 2: 19-54, 1925.

46 Conceito e história da geografia cultural


Unidade 2

PAISAGEM, CULTURA E
SIMBOLISMO

Clevisson J. Pereira

Objetivos de aprendizagem:

Nesta Unidade você vai identificar e compreender as diversas possibilidades


de sentido do termo paisagem dentro da Geografia e, principalmente,
na Geografia Cultural. Você será convidado a contemplar os diferentes
momentos, dentro do pensamento geográfico, que conformaram
interpretações distintas da noção de paisagem. Você também será incentivado
a refletir sobre as dinâmicas culturais humanas, assim como a considerar as
muitas configurações espaciais denotadas pela ideia de paisagem cultural.

Seção 1 | A trajetória conceitual do termo paisagem na


Geografia

Seção 2 | A paisagem cultural e o movimento de


interiorização da paisagem
U2

48 Paisagem, cultura e simbolismo


U2

Introdução à unidade

As relações entre Paisagem, Cultura e Simbolismo são múltiplas e variadas. Mas


como elas transparecem dentro da dinâmica geográfica? Com certeza também de
uma maneira plural. Sem dúvida, uma das melhores estratégias para entendermos
como a paisagem e a cultura humana se entremeiam é analisando o próprio termo
“paisagem”. Outro passo mais ousado seria tentar captar o conceito de paisagem e
a partir dele buscar evidências da cultura humana. Porém, será que tais evidências
estão lá nas paisagens?

Ainda que as respostas pareçam evidentes, é trabalho do geógrafo investigar e,


de maneira cuidadosa, refletir sobre tais interações. Assim, mesmo com ou sem
respostas, devemos nos lançar nesta empreitada a fim de desvelar as conexões
culturais entre paisagens e significações humanas.

Para isso, vamos abordar neste capítulo basicamente duas grandes seções
temáticas: uma sobre “a trajetória conceitual do termo paisagem na Geografia”,
que irá explorar como a ideia de paisagem foi pensada, construída e reconstruída
em diferentes momentos na ciência geográfica, e outra sobre “a paisagem cultural
e a interiorização/internalização da paisagem”, tencionando a questão de como
a Geografia Cultural se valeu da terminologia paisagem cultural em diferentes
contextos. Como você perceberá, a paisagem é um termo caro para a ciência
geográfica e isso não somente pela sua capacidade de sintetizar a dimensão
física com a dimensão humana, mas, sobretudo, por sua fertilidade conceitual e
operacionalidade. Assim, com estes dois grandes temas, certamente teremos um
panorama geral das muitas possibilidades de interação entre paisagem, cultura e
simbolismo.

Paisagem, cultura e simbolismo 49


U2

50 Paisagem, cultura e simbolismo


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Seção 1

A trajetória conceitual do termo paisagem na


Geografia
Para contextualizar o termo paisagem a partir do senso comum e de uma base
etimológica, lançamos a discussão, inicialmente, mostrando como concepções além
do âmbito geográfico permeiam o consciente social. Seguimos destacando como
a superação paradigmática na ciência, com o racionalismo, possibilitou olhares para
campos explicativos mais abrangentes e não emoldurados por ideais teológicos.
Nesse contexto, o termo paisagem desponta como figurante excepcional na trama
não só epistemológica, mas também socioespacial que envolve a trajetória da
Geografia.

Em princípio, a noção de paisagem, como recorte espacial contendo objetos


fixos e ordenados, não foi suficiente para abarcar todas as possibilidades do espaço
analisado pelos estudos geográficos ao longo de sua trajetória, o que resultou na
busca de outros caminhos conceituais para ampliação do termo. A paisagem, que
era tida inicialmente apenas como espaço territorial, mais ou menos definido, ligado
ao campo visível do espaço terrestre, alcança compreensões maiores ao adotar
definições em que predomina uma visão mais sistêmica e, posteriormente, mais
subjetiva do local.

Nesse sentido é que propomos uma breve abordagem de como as diferentes


linhas de pensamento da Geografia entenderam e trabalharam com o conceito, por
vezes categoria , paisagem.

1.1 Olhar inicial sobre o termo


Antes de começar uma discussão sobre o conceito paisagem, faz-se necessária
uma contextualização de fundo etimológico e de senso comum do referido termo.
Nesse sentido, paisagem pode significar:

i. Imagem que representa a vista de um setor natural; superfície terrestre, relevo


de uma região em seu conjunto produzido ou modificado por forças geológicas;
território ou parte da superfície terrestre que a vista pode observar simultaneamente
incluindo todos os objetos discernidos.

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ii. Conjunto da superfície terrestre abarcado num lance de vista, ou seja,


conhecimento objetivo e visível da natureza.

iii. Lance de vista que observa de um ponto alto um conjunto de elementos


(incluindo, aqui, as formas resultantes da associação do homem com os demais
elementos da superfície terrestre).

Enquanto objeto de conhecimento científico, a paisagem, al. landshaft, in. landscape,


fr. paysage, desenvolve inúmeros conceitos e abordagens no decorrer do século XX,
principalmente, dentro da Geografia. Porém, antes de olhar diretamente para as
dinâmicas epistemológicas de âmbito geográfico, precisamos contemplar como a ideia
paisagem deixou o ranço religioso para alcançar o patamar de categoria científica.

1.2 O termo paisagem e o olhar científico


A ideia ou conceito de paisagem, que remonta à Idade Média e, posteriormente, à
Renascença, surge como termo descritivo da imagem da natureza – representação
do espaço visível – vista através do olhar e expressa na tela do pintor (séculos XV a
XVIII), tal representação parte da consciência do sujeito (pintor), que se distancia do
objeto observado (natureza). Nesse sentido, desde o início da utilização do referido
termo deu-se muita ênfase ao valor estético da representação de determinado
“recorte espacial” visível, que era expresso principalmente pela pintura – neste
período predominando representações idealizadas do “real”. Tais representações
eram respondidas e integradas, predominantemente, sob o ponto de vista religioso,
em que caberia ao ser humano contemplar e descrever a criação divina.

A ideia de “paisagem” acompanhou as mudanças paradigmáticas ocorridas nas


ciências. Dentre tais mudanças, a principal foi, ao menos num primeiro momento,
com o racionalismo, a dissociação entre natureza e divino. Esta alteração tornou
a paisagem natural objeto de conhecimento e legitimou sua manipulação e
transformação pelo ser humano. Visto que agora não mais explicações teológicas
ditavam o saber, caberia ao homem, sob um viés laico, explorar os limites de tal
realidade (SALGUEIRO, 2001, p. 39).

1.3 Geografia e Paisagem


A Geografia, logo no início de sua sistematização enquanto ciência (século XIX),
defini a paisagem, junto a outros conceitos fundantes, como sendo um dos focos
de seus estudos.

1
No presente trabalho utilizamos frequentemente os termos conceito e categoria como sinônimos, embora
saibamos que, dentro da discussão filosófica, ambos em muito se distinguem, porém não é intenção discutir as
diferenças entre os termos, mas sim evidenciá-los apenas como construções cognitivas.

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Ao longo da trajetória percorrida pela Ciência Geográfica, ora sendo uma ciência
da natureza (física), ora sendo uma ciência humana (antrópica), os estudos sobre
paisagem sempre se evidenciaram no seu arcabouço teórico. Várias foram as
correntes filosóficas, dentro da Geografia, que se apropriaram de tais estudos a fim
de melhor compreender a realidade à sua volta.

O olhar geográfico sobre a “paisagem” é notório desde os pais da Geografia


moderna, que com Alexander Von Humboldt consideravam a Geografia uma
ciência de síntese da paisagem. Esse ponto de vista era logicamente carregado das
concepções positivistas e das práticas empíricas das ciências naturais, preponderantes
no século XIX, o que refletia uma paisagem evidentemente física – morfológica,
fitofisionômica, topográfica, hidrogeográfica e geológica.

A Geografia começa a entender a paisagem, de uma maneira um pouco mais


distinta, quando Vidal de La Blache reforça que há forte possibilidade do homem
atuar independente deste recorte geográfico, apesar das reais influências que o
meio pode exercer, trazendo uma noção mais funcionalista da paisagem.

Os estudos da Geografia envolvendo paisagem eram focados na descrição das


formas físicas da superfície terrestre e, progressivamente, incorporaram as múltiplas
relações presentes no ambiente e os dados da ação humana.

Visivelmente, dois campos, dentro dos estudos da paisagem, se destacaram entre


os geógrafos:

Podemos identificar dois modos principais de os geógrafos estudarem


as paisagens. Para uns paisagem é vista como uma fisionomia
caracterizada por formas e o seu estudo recorre basicamente ao
método morfológico [...]. A outra linha de estudo da paisagem privilegia
as características de uma área expressa nos seus atributos físico-
naturais e humanos e o estudo das inter-relações dos fenômenos nesse
território (SALGUEIRO, 2001, p. 41).

Surgiram várias correntes teóricas no decorrer do século XX, algumas com novas
abordagens tentavam romper com os vieses tradicionais, enquanto outras buscavam
completar antigos métodos e conceitos.

As correntes teóricas da Geografia, na verdade, dificilmente conseguiram romper


completamente com as escolas ou correntes antecessoras, pois carregavam
concepções e usavam métodos que não eram absolutamente inovadores.

Com o passar do tempo, uma diferença começa a ser notada com relação
às primeiras abordagens: a paisagem passa a ser entendida como resultante da
integração entre os aspectos físicos de certo espaço geográfico e o uso que o

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homem faz deste espaço.

Embora, tradicionalmente, os geógrafos conceituem de forma diferenciada o


que é uma paisagem natural de uma paisagem cultural – em que a paisagem natural
se refere aos elementos combinados, como terreno, vegetação, solo, rios e lagos,
enquanto que a paisagem cultural, humanizada, incluiria todas as modificações
feitas pelo homem, como nos espaços urbanos e rurais (SCHIER, 2003) – uma das
asserções consensuais que emerge no âmbito da Geografia é que “a paisagem,
embora tenha sido estudada sob ênfases diferenciadas, resulta da reação dinâmica
de elementos físicos, biológicos e antrópicos” (MAXIMIANO, 2004, p. 87).

1.4 O trajeto conceitual do termo paisagem na Geografia


A Geografia, ao passar por distintos paradigmas e ao desenvolver cada vez mais
estudos específicos, viu no termo paisagem uma grande variedade de concepções.
Dentro da ciência geográfica, alguns termos acompanham-na desde sua formação
e entre eles o conceito de paisagem sempre esteve demarcado – em mais ou
menos intensidade, seja por sua capacidade integradora entre uma Geografia Física
e uma Geografia Humana ou pelo uso variado nas diversas “correntes” e “escolas”
da Geografia.

Nesse sentido, o conceito de paisagem vem sendo analisado há alguns séculos.

[...] as premissas históricas do conceito de paisagem, para a


geografia, surgem por volta do século XV no Renascimento,
momento em que o homem, ao mesmo tempo em que começa
a distanciar-se da natureza, adquire técnica suficiente para vê-la
como algo passível de ser apropriado e transformado (MENDONÇA;
VENTURI apud SHIER, 2003, p. 81).

Especificamente na Geografia, o conceito de paisagem perpassou tempos


históricos e necessidades filosóficas e sociais, não ficando livre de adaptações e
modificações; que, por fim, acabaram por engrandecer a sua abrangência.

Após o conceito de paisagem sofrer várias influências, como a do pensamento


naturalista do século XIX, da Revolução Industrial, da lógica capitalista, do materialismo
histórico, chega aos dias de hoje como algo fluido, no sentido de não ser único,
acabado e rígido, e não necessariamente obedecendo à lógica de uma única escola
ou corrente teórica específica.

A discussão sobre “paisagem” sempre se deu no intuito de se entender as


relações sociais e naturais que ocorrem em certo recorte espacial. Na Geografia,

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a interpretação do que é paisagem, por vezes, é distinta e até mesmo divergente


dentro das suas diversas abordagens. O que fica claro é que a definição, ou
conceituação, está estreitamente ligada às influências culturais e discursivas sofridas
pelos geógrafos.

Ao evidenciar as várias abordagens filosóficas que direcionaram os estudos


da Geografia sobre paisagem, Raul Alfredo Schier (2003, p. 80), de uma maneira
interessante, resume como se deu a apreensão do termo e do conjunto de ideias
que envolve os conceitos de “paisagem”.

A maioria destes conceitos se atrela, no fundo, a determinadas


abordagens filosóficas. Pode-se dizer que o conceito de paisagem
foi originalmente ligado ao positivismo, na escola alemã, numa forma
mais estática, onde se focalizam os fatores geográficos agrupados em
unidades espaciais e, numa forma mais dinâmica, na geografia francesa,
onde o caráter processual é mais importante. Ambas tratam a paisagem
como uma face material do mundo, onde se imprimam as atividades
humanas. A abordagem neopositivista direcionou para o termo região,
tentando dar enfoque ao processo de abstração da realidade física,
conforme a sua metodologia quantitativa. A abordagem marxista
(materialista), pouco interessada na geograficidade da paisagem,
identificou-se com o termo região, o qual define como um produto
territorial da ação entre capital e trabalho. As abordagens da ecologia
humana, entretanto, beneficiam-se da ideia da paisagem ao demonstrar
suas características sistêmicas, reunindo diversas categorias no mesmo
recorte espacial.

Essa pluralidade de visões acerca do termo paisagem trouxe para a Geografia


um ponto de apoio desde o momento de sua afirmação enquanto ciência natural e
humana, pois conciliava tanto abordagens físicas como antrópicas.

Para os geógrafos do princípio do século XX, preocupados já com a


afirmação científica da disciplina e com os perigos da ruptura entre
geografia física e geografia humana, a paisagem aparecia como um
conceito integrador, pois traduzia as interações entre os elementos
do mundo físico e entre estes e os grupos humanos numa dada área
(SALGUEIRO, 2001, p. 42).

O termo paisagem ganhou mais força científica quando começou a combinar a


abordagem horizontal do geógrafo através do exame das inter-relações espaciais de
um fenômeno natural, com a abordagem vertical dos ecologistas.

Paisagem, cultura e simbolismo 55


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Carl Troll lança, em 1939, na Alemanha, uma nova noção de paisagem que
reagrupa os elementos da paisagem de um ponto de vista ecológico. Com este modo
de pensar, introduzia-se um entendimento sistêmico das unidades geográficas.

Nessa perspectiva, onde a paisagem começa a ser vista como um sistema, vemos
mais alguns teóricos enfatizarem tal relação.

Dentro da geografia física, a visão da paisagem foi ampliada, (...),


com a incorporação de elementos da civilização, como exposto
nas obras dos irmãos Odum. Nesta discussão, gradativamente o
termo “paisagem” é substituído por “ecossistema”, focalizando
mais nos elementos funcionais, integrativos, e menos na parte
descritiva. Esta percepção da unidade da paisagem por meio
das relações dos ecossistemas ajuda, em muito, durante os anos
80, a incorporar as ideias de desenvolvimento sustentável e do
ecocentrismo (SCHIER, 2003, p. 84).

O conceito de paisagem mostra uma evolução própria do meio físico, com uma
dinâmica constante. Em termos práticos, Georges Bertrand (2004, p. 141), geógrafo
francês, explica que:

A paisagem não é a simples adição de elementos geográficos


disparatados. É uma determinada porção do espaço, resultado
da combinação dinâmica, portanto instável, de elementos físicos,
biológicos e antrópicos que, reagindo dialeticamente uns sobre os
outros, fazem da paisagem um conjunto único e indissociável, em
perpétua evolução.

Fica claro que há uma integração entre sociedade e natureza. A paisagem é


tida como uma unidade composta por fatores físicos e humanos em uma relação
dinâmica.

1.5 Diferentes olhares ou evolução conceitual?


A concepção primeira do termo paisagem estava focada no visual apreendido por
um observador, uma cena – determinado recorte espacial –, evidenciando, quase
que exclusivamente, características físico-naturais. Nessa concepção, buscava-
se entender a paisagem como unidade composta por um mosaico de formas e
cores. Neste viés, individualizava fragmentos diferenciando-os e configurando uma
imagem. Embora o termo mais utilizado, al. landshaft, por boa parte dos geógrafos

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tradicionais, não fosse preciso conceitualmente, ele já denotava uma característica


fundamental para a afirmação e não ruptura (físico/humano) da nascente Geografia
– visto que além de favorecer uma abordagem naturalista também dava margem ao
trabalho humano. Isto, de certa forma, justificava sua sustentação e relevância nos
trabalhos iniciais da Geografia.

Posteriormente, com os pressupostos da Geografia Tradicional saturados,


desponta uma visão mais (geo)sistêmica que passa a considerar as relações entre
os objetos (fragmentos) do mosaico (paisagem). O conceito de paisagem atinge a
ideia de “sistemas”, pois os elementos identificados em tal “recorte espacial” são tidos
como unidades integradas e não são nunca a simples soma de seus componentes;
assim, a interação dinâmica (entradas/saídas) entre eles origina uma estrutura que
os converte em algo basicamente diferente. A paisagem, enquanto um “sistema”, é
complexa e intrinsecamente processual. Como unidade integrada, ela pode ser um
conjunto de objetos com diferentes níveis de organização.

A concepção sistêmica entende a paisagem como realidade


objetiva, como o resultado de uma combinação dinâmica e,
por conseguinte, instável, de elementos físicos, biológicos e
humanos. Essa interação é singular para cada porção do espaço e
torna a paisagem um conjunto individualizado, indissociável e em
contínua evolução (CABRAL, 2007, p. 150)

Sob os pilares das duas definições anteriores, e já caminhando pela via cultural,
iniciada principalmente por Carl O. Sauer, em Berkeley, na década de 1920, mas
aprofundada por Pierre Deffontaines e David E. Sopher nas décadas de 1950-60,
e mais contemporaneamente por Yi-Fu Tuan, Denis Cosgrove e Paul Claval nas
décadas de 1970-80, não apenas os objetos e as suas ligações são importantes, mas
também as suas significações simbólicas. Partindo destes teóricos da Geografia, é
construída uma visão mais “humanista” nos estudos da paisagem e, principalmente,
na percepção da paisagem, em que o conhecimento não depende somente da
cientificidade, mas das experiências de vida, dos sentimentos e do simbolismo – que
integram parte da paisagem cultural.

Sob a ótica cultural, toma-se a paisagem como mediação entre


o mundo das coisas e aquele da subjetividade humana, a noção
surge ligada, portanto, à percepção do espaço (...). A paisagem
percebida é também significada e construída. Sua estrutura e
dinâmica são acessíveis ao homem e agem como guias para suas
atitudes e condutas (CABRAL, 2007, p. 150).

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Buscando responder à questão do subtítulo, entendemos que nos meandros


dessa evolução conceitual vê-se que o termo paisagem, a partir de diferentes
e integrados olhares, passou a uma abrangência muito maior, abarcando várias
dimensões da vida: material, social e espiritual.

A Geografia, através das análises da paisagem, ampliando os seus conceitos, busca


cada vez mais uma compreensão da estrutura e organização da superfície terrestre
em seu conjunto socioambiental. Dessa forma, na paisagem vemos refletidos os
mais diversos tipos de elementos existentes na superfície da Terra, bem como suas
mais profundas relações – sejam físicas, antrópicas ou simbólicas.

1.6 Algumas possibilidades


O conceito “paisagem”, na Geografia, surgiu como uma expressão visível de uma
dada área – certa herança medieval, para fins de estudo da superfície terrestre. Em
princípio, eram destacados os atributos físico-naturais, e valorizada a morfologia desse
recorte espacial, isso fortemente influenciado pelas próprias ideologias da “nascente
Geografia” (séculos XVIII e XIX) que começava a despontar entre naturalistas.

Nesse sentido, a natureza física era privilegiada nas descrições, porém, os


estudiosos do tema não ficaram restritos a tais procedimentos, mas com a busca de
novas possibilidades de interpretação e estudos mais elaborados procuraram outras
dimensões explicativas.

Uma das características preponderante do conceito, no início da sua utilização,


era a sua potencial superação da dualidade físico versus humano encontrada na
“nascente” ciência Geografia. Dessa forma, a paisagem era vista como conceito
integrador, pois, conseguiria unir tanto atributos físicos como as relações humanas
no seu objeto (recorte espacial) de estudo.

Percebe-se que o termo paisagem adquiriu diferentes conceitos e enfoques,


conforme a “escola e linha geográfica” preponderante em determinado contexto
histórico. Nesse percurso conceitual, algumas clarividências são notadas com
relação ao conceito paisagem:

i. Primordialmente significava a representação da natureza física, bucólica e


campestre – idealizada e divina.

ii. Com a dissociação entre natureza e divino, passa a ser vista como objeto
passível de conhecimento científico.

iii. Com concepções sistêmicas, a partir das distintas relações entre os


componentes de cada recorte espacial visível, integra discussões mais complexas e
de âmbito fisiológico e morfológico.

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iv. Sob um viés mais sociocultural, é vista como modo de organização da


exploração de recursos – em consequência da dinâmica capitalista. Assim, é o
contexto visual da existência quotidiana.

v. Na Geografia Humana tem o enfoque centrado no indivíduo e nas suas


relações.

vi. A Geografia das percepções/humanista – focada nos processos cognitivos


– entende-a como reflexo das crenças, valores e comportamentos. O viés subjetivo
do ser humano é visto como estruturador de parte do mundo-vivido.

Por fim, a paisagem pode incluir elementos ambientais de caráter objetivo (físico-
naturais) e subjetivo (sociorrelacionais), a escolha de um viés específico dependerá
do foco da análise e do embasamento teórico norteador.

Por que a paisagem se tornou um conceito tão utilizado pela


Geografia?
As paisagens são criações humanas ou existem por si mesmas?
O que as paisagens dizem ou revelam sobre o contexto cultural
e social?

1. Sabendo que o termo paisagem possui uma enorme gama de


significações, e que a sua definição não é unânime, por que ele é
objeto de extremo apreço pela ciência Geografia?

2. Até que ponto a ideia ou concepção de paisagem nos


informa com precisão sobre o meio em que estamos? E em que
medida nos auxilia a compreendermos a dinâmica espacial das
experiências humanas?

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60 Paisagem, cultura e simbolismo


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Seção 2

A paisagem cultural e o movimento de


interiorização da paisagem
A paisagem cultural é um conceito frequentemente utilizado pelos geógrafos
e muito caro aos estudiosos do fenômeno cultural humano. De forma sintética,
o referido conceito pode significar uma porção da superfície terrestre captada e
entendida/compreendida num vislumbre/olhar. Destarte, o termo paisagem aqui
suscita, no mínimo, um conjunto de possibilidades interpretativas.

Segundo Steve Hoelsher (2006), ao analisar o termo paisagem, em inglês


landscape, dois significados específicos, que ao mesmo tempo são complementares
e também, às vezes, contraditórios, compõem o entendimento contemporâneo do
que são as paisagens. Conforme o autor, o termo paisagem (cultural) evoca: i) a
modificação do espaço territorial (superfície terrestre) através da ação humana; e ii)
as imagens mentais e visuais daquele espaço (que pode ser captado num vislumbre).
Estes significados, o material e o representacional, foram incorporados ao termo em
diferentes momentos e por diferentes rotas.

Assim, como destacamos anteriormente, o conceito paisagem passou por


diversos desdobramentos. Para exemplificá-lós parcialmente, vamos trafegar por
três concepções distintas – especificamente relativas à paisagem cultural.

Nesse sentido, comentaremos alguns pontos sobre a “morfologia da paisagem”


e como Carl O. Sauer (2008) concebia a noção de paisagem. Sob outra análise,
a humanista, discorreremos a respeito da “percepção da paisagem” e como ela
possibilitou novas abordagens. Também, complementando nossa aproximação
conceitual, iremos pontuar questões relativas à “hermenêutica da paisagem”, que
de uma maneira inovadora está capitaneando interpretações diversas sobre as
paisagens culturais.

Outra forma de visualizar parte dos processos que a noção de paisagem sofreu nos
meandros geográficos se dá através da metáfora da “interiorização/internalização da
paisagem”. Nesse sentido, vamos refletir sobre este movimento e como a partir dele o
conceito de paisagem cultural alcança outros patamares, deixando de ser algo relativo
à exterioridade material e passando a ser concebido como algo interno aos sujeitos e,
ao mesmo tempo, tendo em seu interior o homem como agente principal.

Paisagem, cultura e simbolismo 61


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Finalizando esta subseção, focaremos em três possibilidades específicas de


entendimento do que pode ser e de como acessar a paisagem cultural. Assim, tanto
a paisagem “como processo social“como texto” e/ou “como construção simbólica”
irão se revelar como expressões contemporâneas altamente relevantes.

2.1 Morfologia da paisagem


Carl Ortwin Sauer (1889-1975) foi um dos geógrafos mais influentes e, sem
dúvida, o mais conhecido da Geografia Cultural Tradicional. É sob sua influência
que a Escola de Berkeley de Geografia Cultural se tornou referência nos estudos
geográficos estadunidenses, principalmente na primeira metade do século XX. Além
de configurar uma forte tradição de Geografia Cultural, Sauer contribuiu de maneira
única para os estudos de paisagem cultural. Seus trabalhos ainda hoje são leituras
obrigatórias para todos que se dedicam aos estudos de paisagem.

Embora em alguns momentos Sauer pareça ter sido vanguardista, elaborando


concepções que permaneceram até os dias de hoje, ele foi mais propriamente “um
homem do seu tempo”, participou e contribuiu com o espírito de sua época.

No seu contexto, grande parte dos geógrafos, por quererem se manter dentro
de um escopo de ciência positiva e naturalista, não se aprofundaram nas dimensões
culturais da vida social e suas expressões geográficas, por isso, suas análises culturais
focavam aspectos materiais da vida, e, apenas tangencialmente, abordavam algumas
expressões da vida mental e social dos grupos analisados (CLAVAL; ENTRIKIN, 2004).
E nesse mesmo “espírito” é que as contribuições de Sauer se erigiram.

Com o seu texto “The morphology of landscape”, de 1925, Sauer (2008) lança
uma das suas mais importantes considerações: a ideia de que a paisagem é um
conceito unificador da Geografia e que ela é uma peculiar associação de fatos
geográficos (SAUER, 2008). Através desta perspectiva, demonstra que a maneira
geográfica de analisar a cultura deve estar relacionada com o estudo dos trabalhos
humanos impressos em uma determinada área (SAUER, 2008), unificando, assim,
numa mesma abordagem, a dimensão física à dimensão humana.

A geografia é baseada na realidade da união dos elementos físicos


e culturais da paisagem. O conceito de paisagem encontra-se,
então, nas qualidades físicas da área que são significativas para
o homem e nas formas de uso da área, nos fatos do background
físico e nos fatos da cultura humana (SAUER, 2008, p. 100).

Sauer se empenhou em observar as significações da paisagem através de uma


aproximação cultural que se baseava nas ações construtivas dos grupamentos humanos.

62 Paisagem, cultura e simbolismo


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A paisagem cultural é a área geográfica no seu sentido final (Chore).


Suas formas são todo o trabalho do homem que caracteriza
a paisagem. Sob esta definição não estamos preocupados em
geografia com a energia, os costumes ou as crenças do homem, mas
com o registro do homem sobre a paisagem (SAUER, 2008, p. 103).

Mais precisamente, o que interessava ao autor era como “paisagens naturais” se


transformavam, através do trabalho humano, em “paisagens culturais”; e também como
era possível certa “domesticação da paisagem” evidente nos processos de criação e
cultivo de animais e plantas pelos grupos humanos.

Como consequência, sua abordagem geográfica baseava-se em dimensões da


botânica e, ao mesmo tempo, explorava o impacto humano no equilíbrio natural
(CLAVAL; ENTRIKIN, 2004).

Para Sauer (2008), as paisagens eram primeiramente realidades biológicas.


As paisagens naturais eram transformadas pelas atividades humanas – como
desmatamentos ou cultivos diversos. A ideia era que as ações humanas remodelavam
a biosfera, e fazendo isso reordenavam as “paisagens naturais”. Assim, diante deste
processo, o resultado seria o surgimento das “paisagens culturais”. A ideia de que
diferentes processos culturais produzem diferentes “paisagens culturais” seria
fortemente explorada nesta concepção (JACKSON, 2003).

Desta maneira, a paisagem cultural seria nada mais do que tais processos culturais
empregados em uma determinada área, ou melhor, empregados em uma determinada
paisagem física. Isto é, uma paisagem natural sendo modificada, remodelada,
conformada, por um grupo cultural (JACKSON, 2003.) Nesta perspectiva, segundo as
próprias considerações de Sauer (2008), a cultura é o agente, a área natural é meio e a
paisagem cultural é o resultado da interação de ambas.
Figura 2.1 | Transformação da paisagem natural em paisagem cultural

Fonte: Sauer (2008, p. 103).

Partindo deste ponto de vista, ocorre certa tendência de se despersonalizar as


ações culturais. Ao dizer que o agente modificador das paisagens é a cultura, e não

Paisagem, cultura e simbolismo 63


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necessariamente indivíduos ou grupos, o foco tende a recair sobre o ambiente físico a


ser transformado; e não sobre os reais agentes transformadores, aqueles produtores de
cultura.

Muito embora o próprio Sauer (1956) tenha se debruçado em análises, procurando


evidenciar o agenciamento humano nas transformações da superfície terrestre, o seu
foco primordial sempre fora a paisagem. E mesmo quando falava da agência cultural
humana como “efeitos cumulativos históricos”, sua ênfase recaia sempre nos processos
biológicos e físicos postos em movimento pela intervenção humana; e não em
processos sociais (JACKSON, 2003).

Na perspectiva saueriana, as paisagens originalmente se encontram numa condição


balanceada, porém, através das ações humanas, este tênue equilíbrio natural é destruído,
ocasionando uma reconfiguração paisagística (CLAVAL; ENTRINKIN, 2004). Com isso,
uma das possibilidades oferecidas pelos estudos da paisagem de Sauer (2008) é a
evidência do aspecto moral das interações entre ser humano e seu meio.

Quando Sauer fala que o ambiente é “deformado”, “flexionado” e “apropriado”


pelos seres humanos, gerando as paisagens culturais, isso implicitamente sugere um
padrão (i)moral refletido na ideia de que os recursos da superfície terrestre estão sendo
“explorados destrutivamente” pelos seres humanos. Conforme Sauer (2008, p. 103), “A
paisagem natural está sujeita à transformação pelas mãos do homem, o último e para
nós o mais importante fator morfológico. Pelas suas culturas ele faz uso das formas
naturais, em muitos casos as altera, e em alguns casos as destrói”.

Nesse sentido, quando Sauer aponta para certa agência humana na modificação
do meio e construção das paisagens, ele pondera não um viés moderno e progressista
do agente humano agindo sobre a Terra, mas vê tal atividade antrópica como
potencialmente destrutiva e até regressiva (JACKSON, 2003 ).

Para melhor avaliarmos as contribuições de Sauer, devemos novamente considerar o


contexto em que o referido autor desenvolveu seus estudos. Quando ponderamos que
o determinismo geográfico era uma das forças preponderantes na Geografia Humana
daquele contexto (final do século XIX e meados do XX), a perspectiva de Sauer passa
a soar como uma voz dissonante. E neste sentido, a dinâmica da paisagem cultural
saueriana é muito mais uma crítica e oposição ao determinismo ambiental do que uma
simples reificação da cultura. Bem verdade que, potencialmente, a “crítica” de Sauer
pode funcionar de maneira pendular e, nesse sentido, ir de um extremo (determinismo
ambiental) a outro (determinismo cultural). Ainda assim, nesta perspectiva, a dinâmica
físico-natural desempenha um papel extremamente importante nas configurações da
paisagem, embora certamente o principal mecanismo de transformação seja o agente
“cultura”.

Sinteticamente, utilizando as palavras de Steve Hoelsher (2006, p. 76), podemos dizer


que:

64 Paisagem, cultura e simbolismo


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Para Sauer, paisagem não era uma bela vista a ser apreciada; não era
uma imagem, uma pintura ou uma visão. Antes, paisagem significava
uma “área” que era o produto de atributos naturais do clima, solo,
plantas e vida animal e de atributos culturais da população, habitação,
economia e comunicação. Ela deveria ser estudada historicamente
através do exame de como a paisagem natural se desenvolveu em
uma paisagem cultural.

2.2 A percepção da paisagem


Um salto relativamente importante, dentro do conceito de paisagem, pode ser visto
com John B. Jackson (1996; 1997). O autor sugeriu, já em meados da década de 1970-
80, que paisagens culturais podem ser expressas, de forma mais consistente, como
“paisagens vernaculares”. Estas seriam paisagens típicas, porém pouco consideradas do
cotidiano popular – como hotéis, restaurantes de fast-food, casas comuns, garagens,
conjunto comercial de lojas etc.

Para John B. Jackson (2006), o sentido verdadeiro e durável do termo paisagem não
diz respeito a algo para se olhar, mas sim algo para se viver – com outras pessoas e não
sozinho. Dessa forma, a paisagem é ancorada na dimensão social da humanidade, em
sua estranha e grandiosa variedade (HOELSHER, 2006).

A ideia central esposada por John B. Jackson evidencia que “todas as paisagens são
expressões de valores culturais e que o estudo da paisagem cultural é um compêndio
voltado para a história social que procura entender as vidas de pessoas comuns”
(HOELSHER, 2006, p. 77). O tema latente, na perspectiva de John B. Jackson, se expressa
na ideia de que “a interpretação das paisagens está longe de ser uma ciência exata e que
nossas subjetividades inevitavelmente conformam estas interpretações” (HOELSHER,
2006, p. 77).

Neste contexto, uma importante figura foi o geógrafo americano David Lowenthal
(1961), que, com um projeto epistemológico renovador, afirmava que a Geografia era “a
ciência que mais se aproximava da incorporação sem mediações dos elementos da vida
cotidiana, que deveriam ser considerados em suas particularidades a partir da inclusão
dos mundos vividos pessoais como dado concreto da disciplina” (HOLZER, 1999, p. 155).

Esta perspectiva, também comungada pelo viés de John B. Jackson, trouxe novas
compreensões para a noção de paisagem. Segundo Lowenthal (apud HOLZER, 1999,
p. 155-156), “As paisagens são formadas pelas preferências paisagísticas. As pessoas
veem seu entorno através das lentes da preferência e do costume, e tendem a moldar
o mundo a partir do que veem”.

Tal abordagem promoveu certa ampliação dos limites conceituais da paisagem

Paisagem, cultura e simbolismo 65


U2

cultural, em que as subjetividades dos que vivenciam a paisagem passavam a ser


consideradas. Com isso, o tema da “percepção ambiental” se tornou algo relevante
dentro da Geografia Cultural e criou demandas novas no estudo da paisagem (HOLZER,
1999).

Tomando a fenomenologia como aporte teórico-metodológico, a Geografia Cultural,


transmutada em Geografia Humanista (HOLZER, 1999), vê na dinâmica das percepções
um caminho consistente para explorar noções mais amplas da paisagem cultural.

Através da perspectiva da “percepção ambiental” é que o famoso geógrafo sino-


americano Yi-Fu Tuan (2006) constrói um arcabouço paradigmático no seio da Geografia
Humanista Cultural. Sua linha de pensamento, sistematizada nas obras Topofilia (1980)
e Espaço e lugar (1983), se baseia na ideia geral de que as nossas representações
espaciais, e entre elas a paisagem (TUAN, 2006), são frutos de uma dinâmica perceptiva,
cognitiva e psicológica; e que, em muito, nossas construções espaciais estão envoltas
em questões sentimentais e de afinidade ou repulsão ao ambiente circundante.

Por esta visão geográfica humanista, o que se está em jogo é uma fenomenologia da
paisagem, ou seja, é a paisagem evidente através dos próprios sujeitos que a experienciam
– isto é, o fenômeno da paisagem. Nesse sentido, os mecanismos perceptivos (visão,
audição, tato, olfato e paladar) e cognitivos (inteligência, motivações, humores,
conhecimentos, valores, expectativas) desempenham uma função importante, pois é
por meio deles que ocorre a interação dos sujeitos com o meio ambiente (ROCHA,
2007), ou seja, é através destes mecanismos mentais que se concretiza a experiência
da paisagem.

Nesse sentido, a paisagem é fruto das percepções fundadas na dinâmica sensitiva


humana. E, de certa forma, é também uma representação da relação entre homem e
natureza (ROCHA, 2007). Assim, a paisagem cultural é entendida a partir das percepções,
dos sentimentos e dos valores humanos.

Hermenêutica da paisagem
Outro viés tão importante quanto fora (e ainda é) o da percepção da paisagem é o que
emerge com a New Cultural Geography. Importante personagem deste momento é o
geógrafo britânico Denis Cosgrove (1948-2008), que com trabalhos como “A geografia
está em toda parte: cultura e simbolismo nas paisagens humanas” (2008[1988]) suscita
questões a respeito das muitas possibilidades de configuração e interpretação das
paisagens (culturais).

Para Cosgrove (2008, p. 179), a paisagem não é um objeto ou uma área geográfica,
mas sim um “modo de ver”.

66 Paisagem, cultura e simbolismo


U2

Paisagem sempre esteve fortemente conectada em geografia


humana com a cultura, a ideia de formas visíveis na superfície da
Terra e sua composição. Paisagem é de fato um “modo de ver”, um
modo de compor e harmonizar o mundo externo em uma “cena”,
uma unidade visual.

A paisagem estaria mais próxima de ser um meio pictórico de representar e estruturar


o mundo do que ser um simples recorte geográfico. E assim como existem diferentes
“modos de ver”, existem também diversas maneiras de captar a(s) paisagem(ns), ou dito
de outra forma, a dinâmica humana e cultural permite a existência de uma multiplicidade
de paisagens.

Segundo Cosgrove (2008), a paisagem deve ser lida como um texto cultural, mas
sem deixar de reconhecê-lo como multifacetado. Significando que, de forma geral, as
paisagens possibilitam diferentes leituras, simultâneas e igualmente válidas.

Esta perspectiva enfatiza os aspectos comunicativos e representacionais das


paisagens. E através de aproximações metodológicas baseadas no texto e textualidade
interpreta os variados sentidos que uma paisagem pode conter.

Para Cosgrove (2008, p. 178), algumas paisagens são “lugares altamente textuais” e
possuem várias camadas de sentido. São instâncias simbólicas onde inúmeras culturas
se encontram e, em alguns momentos, colidem.

As múltiplas camadas de sentido que uma paisagem pode ter devem ser
geograficamente decodificadas. As formas de decodificá-las podem ser alcançadas
através de investigações de campo, mapas mentais e interpretações – metodologias
presentes nas humanidades.

Nesse contexto, a metáfora da paisagem como um palimpsesto é altamente


representativa, pois evoca a ideia de que “aqueles sentidos reais e autênticos podem, de
alguma forma, ser recuperados através das técnicas corretas” (COSGROVE; DANIELS,
1988, p. 8). Neste sentido, a construção histórica dos sentidos e significados das
paisagens está disponível para aqueles que se proponham a, utilizando uma metodologia
específica, entender a mensagem que uma paisagem carrega.

Nesta mesma lógica, a “iconografia da paisagem”, proposta por Cosgrove e Daniels


(1988), sugere que, a partir de um mundo de superfícies exteriores e de aparências,
é possível termos acesso a um mundo interior de sentido, significado e experiência
(JACKSON, 2003). O foco da paisagem como um ícone, inevitavelmente, chama a
atenção para o papel que a visão desempenha na construção dos sentidos, e, nesse
caso, também para o papel desempenhado pelos observadores ao interpretarem os
significados da paisagem (HUGGETT; PERKINS, 2004, p. 232).

Paisagem, cultura e simbolismo 67


U2

Dentro desta perspectiva, as paisagens não se reduzem à materialidade, embora


se estruturem na superfície terrestre. Elas não são simplesmente construtos mentais,
ainda que possuam dimensões expressamente simbólicas. As paisagens são mais
propriamente articulações de sentido e significação. E com isso um importante papel
é demandado aos geógrafos culturais: a tarefa de efetuarem uma hermenêutica da
paisagem, decodificando os sentidos e significados deste “texto cultural”.

O movimento de interiorização/internalização da paisagem


Como se observou até o momento, os estudos da paisagem na Geografia foram
muito frutíferos. O percurso, até se chegar à noção mais elaborada de paisagem cultural,
passou por distintas etapas no pensamento geográfico. Se atentarmos especificamente
para a dinâmica da paisagem cultural, notaremos que, em termos teóricos e epistêmicos,
houve certo movimento interpretativo e compreensivo nos estudos da paisagem. Este
movimento pode ser exemplificado metaforicamente pela ideia de “interiorização” ou
“internalização”.

O termo paisagem, de forma geral, inicia seus contatos na Geografia oferecendo-se


como uma noção integradora dos aspectos físicos e humanos. Nesta empreitada, bem
sinalizada por Sauer (2008) e pela Geografia Cultural Tradicional, a paisagem transparece
como algo material, uma feição física transformada pela cultura. Ela é um recorte da
superfície terrestre moldada pelas ações culturais humanas. Por esta razão, a “morfologia
da paisagem” se torna algo extremamente relevante, pois, através das descrições das
variadas formas e possíveis evoluções que a paisagem pode tomar, mais evidente se
tornaria o trabalho da cultura nas dinâmicas espaciais.

Posta em perspectiva, nesta primeira aproximação, a paisagem claramente é


entendida como algo fora dos sujeitos/indivíduos. Sua condição de existência está
relacionada diretamente com a dinâmica física por si mesma, ou seja, a paisagem é
algo expresso “lá na materialidade”, é uma realidade por si mesma, algo que se anuncia
independente das subjetividades. Nesse sentido, a paisagem tem existência própria e diz
respeito à dinâmica exterior.

Outro ponto considerável é o ausente papel do indivíduo/sujeito nesta perspectiva


de paisagem. Aqui, a lógica paisagística não pressupõe uma ação individual/subjetiva
do agente humano, considerando apenas as atividades culturais enquanto expressões
de grupos, colocando assim a cultura como o ente por excelência. Nesta linha de
pensamento, o indivíduo dotado de subjetividades parece estar fora deste recorte da
paisagem. A configuração da paisagem que aqui emerge postula intencionalmente
o ser humano (sujeito singular) como variável fora da dinâmica estrutural e interna da
paisagem.

Por esses dois vieses, a da existência em si mesma e a da desconsideração de ações

68 Paisagem, cultura e simbolismo


U2

subjetivas, a paisagem se consolida como algo exterior ao ser humano e destituído dele
enquanto indivíduo. Assim, tanto a paisagem está fora dos sujeitos como o próprio ser
humano (sujeito singular) está fora da paisagem.

Isto mudaria substancialmente com as abordagens geográficas da “percepção


ambiental” e da Geografia Humanista Cultural, personificadas de forma destacada na
pessoa de Yi-Fu Tuan (1976; 1980); bem como alcançaria patamares ainda mais elevados
com a New Cultural Geography, bem representada pelos trabalhos de Denis Cosgrove
(2008), Peter Jackson (2003) e James S. Duncan (1990).

Com estas abordagens culturais pós 1960-70, novas perspectivas sobre a


paisagem despontam. Através da percepção ambiental, do teor humanista e do viés
fenomenológico-hermenêutico, a dimensão da experiência individual e subjetiva
começa a ter um papel mais significativo na concepção de paisagem.

Ao explorar os diferentes caminhos perceptivos, através dos órgãos dos sentidos


humanos, a paisagem passa a ser considerada pelos geógrafos dentro da dimensão
cognitiva e subjetiva. Dessa forma, ela não é mais vista de forma unilateral como algo
“lá fora”, algo exterior ao ser humano. Mas, ao contrário, é entendida agora como uma
realidade interna dos sujeitos que experienciam o seu entorno geográfico. Ela se volta
para o próprio sujeito que via percepção, cognição e representação, faz erigir a sua
paisagem.

Além de ser algo gerado a partir das significações subjetivas e individuais, a paisagem
passa, através de um viés mais crítico, com a New Cultural Geography, a exibir
dimensões interpretativas. Não está mais vinculada a apenas uma possível significação
de sentido, mas sim a uma grande diversidade de concepções geográficas passíveis
de decodificação. Neste sentido, a paisagem, além de ser uma realidade propriamente
interna dos sujeitos, também revela em seu interior o próprio sujeito/indivíduo capaz de
edificar sentidos simbólicos (até mesmo nas materialidades).

Assim, com estas contribuições, a paisagem sofre um processo de “internalização” ou


“interiorização” no seio geográfico. Ela passa de uma realidade externa e independente
para uma que é entendida como construção/articulação internalizada, existente no
interior do indivíduo. Não só é vista como uma conformação cognitiva e simbólica,
como também passa a considerar o sujeito como o principal agente conformador
das paisagens – isto é, o ser humano não está mais fora da paisagem, sendo um
contemplador passivo, mas agora é parte integrante dela e está em seu interior atuando
como protagonista.

Desta forma, em certo sentido, a paisagem é “internalizada” pelo homem e também


o próprio homem é “interiorizado” na paisagem. Dito de outra forma, a paisagem passa
a ser, em primeiro lugar, uma realidade mental, e esta mesma paisagem passa a abrigar
em seu âmago os sujeitos/indivíduos como orquestradores dos sentidos simbólicos
que a estruturam. Assim, dentro desta lógica, a paisagem pode agora ser percebida,

Paisagem, cultura e simbolismo 69


U2

representada, construída, experienciada, experimentada, ou seja, ser vivida em sua


completude, e mais, ser também o palco e o próprio espetáculo da trama dos sujeitos
e suas subjetividades.

Possibilidades contemporâneas de estudos da paisagem cultural


Tendo como referência o panorama trabalhado até aqui, percebe-se que diversas
possibilidades de aproximação ao termo paisagem cultural podem ser empregadas pelo
empreendimento geográfico. Tanto a perspectiva da “morfologia” como a “percepção”
ou a “hermenêutica” da paisagem (cultural) são agências viáveis contemporaneamente,
porém queremos, nesta subseção, expressar de forma mais pontual três possibilidades
específicas que não estão necessariamente desconectadas das demais, mas que exibem
características próprias e extremamente relevantes nos dias de hoje.

A primeira diz respeito à ideia de paisagem como “processo social”. Fundada nas
teorizações do geógrafo Don Mitchell (2005), o termo paisagem aparece como
uma totalidade social. A partir de influências da “teoria social crítica”, bem como de
outras correntes da Geografia Cultural, Don Mitchell (2005) identifica as paisagens
(humanas/culturais) como instâncias tributárias dos processos políticos e sociais e
que representam relações sociais. Nesta perspectiva, a paisagem se distancia da
noção de ser apenas um pano de fundo para os processos sociais, e passa a ser um
agente atuante nas configurações sociais – efetuando a manutenção dos poderes e
constituindo identidades culturais.

Uma clara análise das práticas que produzem a paisagem, e seus


variados sentidos que são conectados a ela, pode ser vista através
do entendimento de que a paisagem (como forma, sentido e
representação) ativamente incorpora as relações sociais que
ocorrem em sua produção. A paisagem (em todos os seus sentidos)
é duplamente uma consequência e um meio das relações sociais, é
ambos o resultado e o input para específicas relações de produção
e reprodução (MITCHELL, 2005, p. 49).

De forma evidente, esta aproximação busca tratar a paisagem em seus processos


sociomateriais e, em alguma medida, advoga que as paisagens são construídas de
forma dialética, ao mesmo tempo constroem e são construídas pelos processos
sociais. Embora volte a sua atenção aos processos materiais, cumpre notar que esta
forma de análise não se erige a partir dos métodos da “morfologia da paisagem” de
Sauer (HUGGETT; PERKINS, 2004, p. 233), mas, sim, por considerar em grande medida
os sentidos e representações, está mais sensível às aproximações da New Cultural
Geography.

70 Paisagem, cultura e simbolismo


U2

A outra perspectiva contemporânea, que em alguma medida transpareceu na subseção


da “hermenêutica da paisagem”, é a paisagem “como um texto”. Trabalho de referência
nesta perspectiva é a obra “A Cidade como Texto”, de James S. Duncan (1990).

Nas teorizações esposadas pelo autor acima, a questão da viabilidade da leitura/


interpretação de uma paisagem é colocada como um dos pontos principais. Assim,
tendo em vista que a paisagem pode ser lida como texto, o próximo passo se dá na
direção de como efetuar esta leitura. Nesse sentido, um dos recursos utilizados para a
inteligibilidade das paisagens culturais tem recaído sob a utilização de metáforas literárias.

Assim como construções textuais se valem da linguagem metafórica, de igual modo


as paisagens transparecem como textos culturais recheados de metáforas. Da mesma
forma que uma metáfora aponta para sentidos além da literalidade textual, as paisagens
culturais apontam para sentidos além das aparências.

A noção de que as paisagens podem ser lidas como textos metaforizados viabiliza
uma pluralidade de interpretações, significados e conexões textuais, expondo as mais
diversas realidades culturais, isto proporciona uma infinidade de sentidos possíveis para
as experiências paisagísticas dos seres humanos.

Outro recurso utilizado para a interpretação das paisagens (textos culturais) é a crítica
textual. Por esta perspectiva, tanto a paisagem como texto como a construção discursiva
das paisagens são temas debatidos num viés pós-estruturalista; nestes, a crítica se levanta
procurando a desconstrução dos sentidos prontos. Estudos iniciais deram uma grande
atenção para as lógicas semióticas de interpretação textual das paisagens. Atualmente,
uma ênfase maior é dada a interpretações baseadas numa hermenêutica das paisagens,
ou numa leitura alegórica delas (HUGGETT; PERKINS, 2004).

A última perspectiva contemporânea diz respeito às paisagens culturais como


“construções simbólicas”. Fundado na perspectiva fenomenológico-hermenêutica, bem
como pós-estruturalista, este viés procura salientar o simbolismo das paisagens. Nesse
sentido, segundo Cosgrove (2008, p. 180), “Todas as paisagens são simbólicas, ainda
que o link entre o símbolo e o que ele representa (seu referente) possa aparecer de
maneira muito tênue”.

Com isso, temos que a lógica simbólica evidencia outra realidade, uma que é tão
ou mais significativa que a própria materialidade. Ainda que se possa falar de uma
“materialidade simbólica” (GIL FILHO; GIL, 2009, p. 3), o que se destaca nesta perspectiva
é a capacidade de tais “materialidades” carregarem sentidos e significados simbólicos,
em outras palavras, tais expressões físicas carregam as intencionalidades humanas.

Todas as paisagens carregam sentido simbólico porque todas são


produtos da apropriação e transformação humana do ambiente. O

Paisagem, cultura e simbolismo 71


U2

simbolismo é mais facilmente lido nas paisagens altamente projetadas


– a cidade, o parque e o jardim – e através da representação da
paisagem na pintura, poesia e outras artes. Mas está lá para ser lido
nas paisagens rurais e mesmo nos ambientes naturais aparentemente
desumanizados. Estes últimos são geralmente poderosos símbolos em
si mesmos (COSGROVE, 2008, p. 180-181).

Dessa forma, até mesmo espaços “aparentemente desumanizados” se projetam


como paisagens altamente significativas, isto é, simbólicas.

Nesta perspectiva, a qualidade que vai além das expressões físicas é o conteúdo que
importa. Assim, quando se diz que a paisagem cultural é uma “construção simbólica”, ela
pode sim, em algumas instâncias, refletir uma modificação na materialidade (como nos
parques e casas), mas não necessariamente – como nos ambientes in natura, ou seja, a
construção simbólica se trata de uma conformação de sentido da realidade. Com isso,
a paisagem cultural é simbólica, porque articula e é articulada por sentidos e significados
culturais, prescindindo, em alguns momentos, inclusive, uma modificação direta na
materialidade física.

Quais os impactos culturais que o ser humano pode provocar


quando altera as “paisagens naturais”?
Como os vínculos afetivos com o ambiente interferem na
nossa percepção e concepção de paisagem?
É possível que os sentidos e significados culturais não estejam
evidentes em nossas paisagens?

1. As formas que uma paisagem pode adquirir dizem muito sobre


os processos nela ocorridos. Nestes termos, de que maneira você
definiria uma “paisagem natural” em distinção a uma “paisagem
cultural”? Quais os principais processos que estariam em jogo?

2. O ato de perceber uma paisagem está vinculado não apenas

72 Paisagem, cultura e simbolismo


U2

ao meio em que este acontece, mas também às dinâmicas


mentais, cognitivas e representacionais dos sujeitos que a
vivenciam. Neste viés, qual dimensão poderíamos dizer que
é preponderante em nossos discursos sobre as paisagens?
Seria a materialidade ou intelectualidade?

Neste capítulo você pôde perceber que o termo paisagem é


polissêmico, e que, assumindo a lógica científica, foi e é uma
ferramenta conceitual extremamente relevante para os geógrafos.
A sua relevância em muito se deve à capacidade de integração das
realidades física e humana. Embora a noção de paisagem tenha
sido delineada de diferentes maneiras, por diferentes correntes
geográficas, ela sempre se destacou pela sua operacionalidade. Isto
ficou claro, principalmente, nas discussões da paisagem cultural,
em que, com estudos da morfologia da paisagem, foi possível
mensurar o nível de interferência cultural nas “paisagens naturais”;
com a percepção ambiental, ficou evidente a preponderância
dos fatores cognitivos na representação das paisagens; e com
a hermenêutica da paisagem distinguiu-se o real sentido
simbólico cultural, que estaria para além das dimensões materiais.
Neste processo, consideramos a metáfora de “interiorização/
internalização” para representar o movimento que o conceito
paisagem cultural sofreu. Tal movimento exemplificou como a
paisagem cultural passou de uma concepção relacionada, quase
que exclusivamente, a dimensão material para uma essencialmente
mental e que, ao mesmo tempo, contemplasse o sujeito como
ator principal. Finalizamos nosso percurso explorando ainda três
distintas perspectivas contemporâneas sobre paisagem cultural,
em que elas salientavam esta sob o ponto de vista da “paisagem
como processo social”, da “paisagem como texto” e da “paisagem
como construção simbólica”.

1. Tendo como base a etimologia, bem como uma noção geral,

Paisagem, cultura e simbolismo 73


U2

podemos afirmar que o termo paisagem pode significar:


I Uma imagem que representa a vista de uma área natural.
II Uma superfície terrestre, como o relevo de uma região em seu
conjunto.
III O território ou parte de uma superfície terrestre que a vista
pode observar.
IV O conjunto da superfície terrestre abarcado num lance de
vista, ou seja, conhecimento objetivo e visível da natureza.
V Um lance de vista que observa de um ponto alto um conjunto
de elementos antrópicos e naturais.
Estão corretos os itens:
a) I, II e III.
b) II, III e IV.
c) III, IV e V.
d) I e V
e) Todos estão corretos.

2. Na Geografia, o conceito de paisagem perpassou tempos


históricos e necessidades filosóficas e sociais distintas, não
ficando livre de adaptações e modificações. Isto, por fim, acabou
por engrandecer a sua abrangência. Nestes termos é correto
afirmar que:
I Após o conceito de paisagem sofrer várias influências, como a
do pensamento naturalista do século XIX, da Revolução Industrial,
da lógica capitalista, do materialismo histórico, chega aos dias de
hoje como algo fluido.
II A noção de paisagem não é única, acabada e rígida; e não
necessariamente obedece à lógica de uma única escola ou
corrente teórica.
III A discussão sobre paisagem nunca se deu no intuito de se
entender as relações sociais e naturais que ocorrem em certo
recorte espacial.
IV Na Geografia, a interpretação do que é paisagem por vezes
é distinta e até mesmo divergente dentro das suas diversas

74 Paisagem, cultura e simbolismo


U2

abordagens.
V A definição, ou conceituação, da paisagem na Geografia está
estreitamente ligada às influências culturais e discursivas sofridas
pelos geógrafos.
Estão corretos os itens:
a) I, II, III e V.
b) I, III, IV e V.
c) I, II, IV e V.
d) I, II, III e IV.
e) Todos estão corretos.

3. Sabendo que o termo paisagem adquiriu diferentes conceitos e


enfoques, conforme a “escola e linha geográfica” preponderante
em determinado contexto histórico, podemos afirmar que:
I Primordialmente a paisagem significava a representação da
natureza física, bucólica e campestre – idealizada e divina.
II Com a integração entre natureza e divino, cada vez mais forte
no seio geográfico, a paisagem passa a ser vista como objeto
sagrado e não passível de conhecimento científico.
III Com concepções sistêmicas, a partir das distintas relações
entre os componentes de cada recorte espacial visível, a
paisagem passa a integrar discussões mais complexas e de
âmbito fisiológico e morfológico.
IV Sob um viés mais sociocultural, a paisagem é vista como modo
de organização da exploração de recursos – em consequência
da dinâmica capitalista. Assim, é o contexto visual da existência
cotidiana.
V A Geografia das percepções/ humanista – focada nos processos
cognitivos e subjetivos – entende a paisagem como reflexo das
crenças, valores e comportamentos.
VI A paisagem não inclui elementos ambientais de caráter objetivo
(físico-naturais) e subjetivo (sociorrelacionais) ao mesmo tempo,
mas sim os aborda separadamente.
Estão corretos os itens:
a) I, II, V e VI.

Paisagem, cultura e simbolismo 75


U2

b) I, III, IV e V.
c) I, II, IV e V.
d) I, III, V e VI.
e) Todos estão corretos.

4. Segundo o famoso geógrafo americano Carl O. Sauer


(2008, p. 100), “a geografia é baseada na realidade da união
dos elementos físicos e culturais da paisagem. O conceito de
paisagem encontra-se, então, nas qualidades físicas da área que
são significativas para o homem e nas formas de uso da área, nos
fatos do background físico e nos fatos da cultura humana”. Com
base nesta assertiva e na perspectiva saueriana, é correto afirmar
que:
I Sauer apresenta a ideia de que a paisagem é um conceito
unificador da Geografia e que ela é uma peculiar associação de
fatos geográficos. O autor demonstra também que a maneira
geográfica de analisar a cultura deve estar relacionada com o
estudo dos trabalhos humanos impressos em uma determinada
área, unificando, assim, numa mesma abordagem, a dimensão
física à dimensão humana.
II Sauer se empenhou em observar as significações da paisagem
através de uma aproximação cultural que se baseava nas ações
construtivas dos grupamentos humanos e não do homem
como indivíduo único. Assim, sua definição de paisagem não se
preocupava especificamente com a energia, com os costumes
ou com as crenças do homem, mas sim com o registro deste
sobre a paisagem.
III O que interessava a Sauer era o processo de como “paisagens
naturais” se transformavam, através do trabalho humano,
em “paisagens culturais”, e também como era possível certa
“domesticação da paisagem” evidente nos processos de criação
e cultivo de animais e plantas pelos grupos humanos.
IV Para Sauer, as paisagens eram apenas, em última instância,
realidades biológicas. Assim, as paisagens naturais eram
consequências das atividades humanas e, neste sentido, seriam
através das ações humanas de remodelamento da biosfera
que as “paisagens naturais” seriam criadas. A ideia que se estava
em jogo era de que diferentes processos culturais produziriam
diferentes “paisagens naturais”.

76 Paisagem, cultura e simbolismo


U2

V Para Sauer, a paisagem cultural seria o resultado de processos


culturais empregados em uma determinada área. Isto é, uma
paisagem natural sendo modificada, remodelada, conformada,
por um grupo cultural. Segundo o próprio autor, a cultura seria o
agente, a área natural seria o meio e a paisagem cultural seria o
resultado da interação de ambas.
Estão corretos os itens:
a) I, II, IV e V.
b) I, III, IV e V.
c) I, II, III e V.
d) II, III, IV e V.
e) Todos estão corretos.

5. Partindo da perspectiva da “Percepção da Paisagem” e da


“Hermenêutica da Paisagem”, podemos afirmar que:
I A abordagem das percepções promoveu uma limitação
conceitual ao termo paisagem cultural, pois, por esta perspectiva,
somente as objetividades dos pesquisadores, ao investigarem as
paisagens, é que deveriam ser consideradas.
II Através da perspectiva da “percepção ambiental” é que o
famoso geógrafo sino-americano Yi-Fu Tuan constrói um
arcabouço paradigmático no seio da Geografia Humanista
Cultural. Sua linha de pensamento se baseia na ideia geral de
que as nossas representações espaciais, e entre elas a paisagem,
são frutos de uma dinâmica perceptiva, cognitiva e psicológica e
que, em muito, nossas construções espaciais estão envoltas em
questões sentimentais e de afinidade ou repulsão ao ambiente
circundante.
III Para a visão geográfica humanista, o que se está em jogo é
uma fenomenologia da paisagem, ou seja, é a paisagem evidente
através dos próprios sujeitos que a experienciam. Nesse sentido,
os mecanismos perceptivos (visão, audição, tato, olfato e paladar)
e cognitivos (inteligência, motivações, humores, conhecimentos,
valores, expectativas) desempenham uma função importante;
pois é por meio deles que ocorre a interação dos sujeitos com
o seu ambiente.
IV Segundo a perspectiva da “hermenêutica da paisagem”, a
paisagem deve ser lida como um texto complexo e indecifrável,

Paisagem, cultura e simbolismo 77


U2

pois as paisagens, ao possibilitarem diferentes leituras, entram em


conflito numa busca por uma validação universal.
V No contexto da “hermenêutica da paisagem”, algumas paisagens
são “lugares altamente textuais” e possuem várias camadas de
sentido. São instâncias simbólicas onde inúmeras culturas se
encontram e, em alguns momentos, colidem.
VI Dentro da abordagem hermenêutica, as paisagens não se
reduzem à materialidade, embora se estruturem na superfície
terrestre. Elas não são simplesmente construtos mentais, ainda
que possuam dimensões expressamente simbólicas. As paisagens
são mais propriamente articulações de sentido e significação; são,
por assim dizer, textos culturais.
Estão corretos os itens:
a) I, II, V e VI.
b) II, III, IV e V.
c) I, II, IV e VI.
d) II, III, V e VI.
e) Todos estão corretos.

78 Paisagem, cultura e simbolismo


U2

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80 Paisagem, cultura e simbolismo


Unidade 3

GLOBALIZAÇÃO E
IDENTIDADE CULTURAL

Tanize Tomasi Alves

Objetivos de aprendizagem
Afetar a forma como pensamos a globalização e a concepção de identidade,
numa imaginação alternativa que correlacionará o movimento global às
mudanças identitárias.

Seção 1 | A globalização vista da única narrativa às outras


trajetórias históricas
Na primeira seção, construiremos uma visão alternativa para o
fenômeno da globalização, que o desvincule da ideia de homogeneização
de todos os espaços de vida, devolvendo sua autonomia diante de sua
própria trajetória.

Seção 2 | Pluralização de identidades: o sujeito global


contemporâneo
Na segunda seção, tendo ampliado sua concepção para os processos
globalizadores, verá que a identidade não é algo inerente ao nascimento,
mas um processo aberto e contínuo que se constrói ao longo da vida no
entrecruzamento das vivências e experiências sociais de cada indivíduo e
no encontro desse com os outros indivíduos.
Seção 3 | Comunidades transnacionais: os fluxos globais e
a simultaneidade de indivíduos
Na terceira e última seção, você, aluno, será apresentado ao fenômeno
das comunidades transnacionais, fruto das forças globalizantes, que
efetivamente revelam a existência da diferenciação espacial pela
articulação social dos espaços de vida, sobrepondo-se aos fluxos
econômicos homogeneizadores.
U3

Introdução à unidade

Pense você, aluno, em um migrante haitiano de trinta e oito anos que chega
ao Brasil, desembarcando em São Paulo, em 10 de agosto de 2013, trazendo na
“bagagem” um período anterior de migração que se estendeu por dez anos no
país vizinho da República Dominicana. Isso reflete a nossa sociedade cada vez
mais móvel, com um número crescente de indivíduos que muda de localização
geográfica, às vezes de maneira recorrente ao longo do ciclo de vida.

Quando ocorre essa mudança, ainda mais quando se trata de uma migração
que transcende os limites culturais, podemos pensar no fenômeno da globalização,
conectando permanentemente o migrante (que deixa de ser temporário) a outros
lugares, povos e culturas, mas ao mesmo tempo construindo um espaço social de
múltiplas relações entre as sociedades de origem e de destino. Situação que não
lhe deixa desprovido de sua própria história/trajetória que reflete na construção de
sua identidade.

Aluno, mantendo no imaginário o exemplo do migrante em seu fluxo


migratório para além de sua fronteira vizinha, faz-se necessário questionar neste
primeiro momento a real existência da concepção de uma “única narrativa” para o
fenômeno da globalização.

Na primeira seção, procura-se apresentar os aspectos que nos fazem acreditar


no mundo governado por uma única força externa, que tem sua origem na
Europa, e que se impõe aos demais países universalizando e homogeneizando a
experiência humana, além de impor ao nosso imaginário um mundo totalmente
integrado. Com o rompimento desta visão midiática, alerta-se para a questão de
haver a coexistência simultânea de outras trajetórias, vivenciando suas próprias
histórias, ou seja, vivendo os acontecimentos da sua própria maneira.

Já na segunda seção, aborda-se a questão da identidade frente à globalização,


fazendo um paralelo de que a globalização não conduz a um todo integrado,
em que haveria algumas identidades isoladas que escaparam ou resistiram a uma
homogeneização, mas que o processo de globalização condiz com a criação de
espaços abertos e instáveis que estão numa reconfiguração ativa de conexões
e desconexões, e o encontro através de práticas e relações de uma enorme
quantidade de trajetórias. São os encontros com os outros, através das interações,
que levam à construção constante da identidade. Esta não é de forma alguma

Globalização e identidade cultural 83


U3

um processo fechado, acabado, contrariamente, está sempre em construção,


vinculado ao contexto de inserção dos indivíduos.

A terceira e última seção foi proposta com o objetivo de lhes mostrar que,
atualmente, o estabelecimento de correntes migratórias permanentes, vindas das
ditas periferias mundiais, proliferam-se em torno da luta pela resistência e autonomia
de seus espaços de vida, entre o país de origem e destino, independentemente das
restrições e oportunidades. Isso revela que o fenômeno da globalização se alimenta
da diferenciação espacial ou destes movimentos transnacionais de seus atores
protagonistas, sejam eles centrais ou periféricos, e não pela homogeneização
promovida pela mercantilização econômica e cultural mundial. Muitos migrantes
internacionais migram exatamente por terem sido excluídos desse circuito mundial
da economia, utilizam-se de fluxos diversificados e constroem comunidades
migrantes transnacionais que se estabelecem na sociedade de destino, sem
desprender-se da sociedade de origem. Esse espaço de vivência que transcende
os limites das fronteiras nacionais reflete no processo de estabelecimento das
identidades destes indivíduos.

Por fim, ao completar a leitura de todas as seções, você, aluno, perceberá


que a globalização não é exclusivamente um processo estruturado pelas trocas
capitalistas, mas ela igualmente compreende as vivências das populações, as
redes de ações e os fluxos variados. A homogeneização do mundo dito global
está longe de realmente existir, pois é a diferenciação (incluindo as desigualdades
e desconexões) que edifica a globalização. O estabelecimento das comunidades
migrantes transnacionais nos permitem entender o processo de globalização que
inclui tanto os países centrais quanto os periféricos. Diante disso, as identidades
dos protagonistas periféricos até então consideradas fechadas e escondidas são
uma particularidade que acompanha a trajetória histórica da globalização.

Bom aprendizado!

84 Globalização e identidade cultural


U3

Seção 1

A globalização vista da única narrativa às outras


trajetórias históricas
A primeira seção conduzirá você, aluno, a pensar o processo de globalização
não mais como um fenômeno universalizador. Digo isso acreditando que, a partir
de agora, você, em seu contexto social, também se sentirá parte desse mundo dito
globalizado e verá que quem você acredita ser e os elementos socioculturais que
carrega refletem muito mais as distintas experiências que vivenciou e o contato que
estabeleceu com outras pessoas em detrimento à padronização de um modelo
econômico de vida.

1.1 A globalização

Muito se ouve falar de globalização, na maioria das vezes em seu extremo senso
popular, que evoca uma visão de mobilidade totalmente desimpedida, de espaço
livre, sem limites. Na área acadêmica, ela talvez ganha corpo numa abordagem
econômica. E, em seu pior aspecto, tornou-se um mantra com palavras e frases
como: instantâneo; internet; circuito financeiro 24 horas; as margens invadindo
o centro; o colapso das barreiras espaciais; a eliminação das distâncias; o acesso
à tecnologia e informação. É representada também pelos ícones populares da
economia mundial, como: a CNN, ao McDonald’s, a Sony, a Ford, a Nike etc., tidos
frequentemente como o suficiente para expressá-la.

Com a divulgação de uma aldeia global, na difusão instantânea de notícias e o


imaginário da supressão das distâncias, criou-se uma falsa realidade diante daqueles
que realmente podem viajar, como se o mundo se houvesse tornado, para todos,
ao alcance da mão. Um mercado avassalador, dito global, é apresentado como
capaz de homogeneizar o planeta quando, na verdade, as diferenças espaciais são
aprofundadas. Há uma busca de uniformidade a serviço dos atores hegemônicos,
mas o mundo se torna menos unido, tornando mais distante o sonho de uma
cidadania verdadeiramente universal. Enquanto isso, o culto ao consumo é
estimulado (SANTOS, 2001).

Diante disso, não podemos confundir a globalização com apenas a criação de


uma economia global. Precisamos olhar para além da economia, pois antes de

Globalização e identidade cultural 85


U3

tudo a globalização requer a eliminação de obstáculos técnicos, não de obstáculos


econômicos. Ela resulta do encurtamento das distâncias, mas não da supressão do
espaço e do tempo, pois cada país vive suas próprias espacialidades e temporalidades
(HOBSBAWM, 2009).

Reflita, na paródia do Hino Nacional Brasileiro, a inclusão dos ícones


da economia emergente que são tomados falsamente como sinônimo
da globalização. Hino da Globalização. Disponível em: <http://
geografiapulsante.forumeiros.com/t12-hino-da-globalizacao>. Acesso
em: 15 mai. 2015.

A globalização não é um processo universal que atua da mesma forma em todos


os campos da atividade humana. Ainda que se possa dizer que há uma tendência
histórica natural para a globalização nas áreas da tecnologia, comunicações e
economia, isso certamente não vale para a política, tampouco para a cultura ou
identidade. Estamos comparando aspectos diferentes do mundo, aspectos que não
se desenvolvem de maneira similar (HOBSBAWM, 2009).

Portanto, a globalização implica um acesso mais amplo, mas não igualitário


para todos, mesmo em sua etapa teoricamente mais avançada. Tendencialmente,
as pessoas acreditam que a globalização garante um acesso igualitário aos fluxos
em um mundo naturalmente (recursos naturais) marcado pela desigualdade e
diversidade (HOBSBAWM, 2009).

A globalização na dimensão econômica, apesar de criar uma integração estreita


entre economias e mercados, em que companhias podem trabalhar de maneira
simultânea em distintos países e, ainda, movimentar seu capital financeiro de maneira
transcendente, não torna invisível a heterogeneidade humana e cultural.

Conforme Massey (2008), a globalização não mostra um sistema totalmente


interconectado, há tanto suas ausências de longa duração quanto a produção
sistemática de novas desconexões. Logo, a intenção desta seção é ater-se à dimensão
cultural, tendo os processos e sujeitos protagonistas da instituição da globalização.
Neste contexto, conforme Haesbaert e Porto-Gonçalves (2006), é preciso superar
a visão de um protagonismo exclusivo dos europeus e tomar os diferentes povos e
lugares como constitutivos do mundo e da globalização.

É o espaço-mundo em sua totalidade que precisa ser levado em conta, e não um


único polo ativo, a Europa, e outro passivo, resto do mundo. Realidade que os pôs,
enquanto “avançados”, em relação a outros povos e países que seriam “atrasados”,
pois reduziram as diferentes temporalidades do mundo ao seu próprio tempo, ao

86 Globalização e identidade cultural


U3

funcionamento do seu relógio, que julgaram ser universal.

A nova narrativa hegemônica da globalização é contada como uma história


universal, mas trata-se de um processo que não é universalizado (MASSEY, 2008).
Contudo, são trajetórias com diferentes recursos, dinâmicas distintas, forças no
mercado e temporalidades que têm suas próprias direções no espaço-tempo e que
se encontram diferenciadamente inseridas dentro da globalização (MASSEY, 2008).

Amplamente notada, e cada vez mais preocupante, a ideia da polarização do


mundo e de sua população não é uma interferência externa, estranha, perturbadora,
um entrave ao processo de globalização, é erradamente visualizada como efeito
dele (BAUMAN, 2008). Uma vez que a concepção da singularidade da narrativa
modernista esconde a existência de outras histórias que foram excluídas ao passado,
devemos substituir a única história por muitas. Vive-se em uma época em que a
globalização ainda é facilmente imaginada como um tipo de força emanando
sempre de outro lugar (MASSEY, 2008).

O lugar centraliza a Europa como propulsora da globalização, entretanto, o


momento requer que ampliemos nosso horizonte e redirecionemos nosso olhar
em defesa da contemporaneidade de outros países que experienciam diferentes
momentos. Todavia, se mantivéssemos nosso foco sobre uma única história,
estaríamos vivenciando uma atemporalidade (= que não pode ser afetada pelo
tempo), em que haveria apenas uma sequência temporal para os acontecimentos,
ou seja, os acontecimentos estariam fadados há apenas uma definição.

Por exemplo, neste início de ano, nós, brasileiros, estamos acompanhando a


ocorrência de greves em vários de nossos estados, as reivindicações podem até
ser as mesmas (educação, transporte etc.), mas as formas como os indivíduos dos
diferentes estados estão organizando e conduzindo as greves pode revelar muitas
diferenças. Logo, não se segue uma sequência lógica, primeiro a greve se inicia
num estado, depois passa para outro repetindo a mesma forma sucessivamente,
mas ocorrem simultaneamente com diferentes definições, apesar de ser um único
fenômeno (greve).

Espero que agora, quando você pensar em globalização, possa reconhecer a


coexistência simultânea de outros (todos os países), com suas próprias trajetórias e
com sua própria história para contar. A globalização concebida como uma sequência
histórica não reconhece a coexistência de outras histórias com características que
sejam distintas, inclusive a existência da desconexão e futuros próprios (MASSEY,
2008).

A globalização não se constrói apenas por uma ação, como muitos destacam
sendo a econômica, ela é, acima de tudo, um processo histórico que, embora
apresente-se nos últimos anos de forma acelerada, está numa transformação
incessante. Sua essência é a expansão e, num planeta que, por sua própria natureza,

Globalização e identidade cultural 87


U3

é marcado pela diversidade (geográfica, histórica, natural, cultural, política etc.), essa
realidade impõe restrições à unificação de todo o planeta (HOBSBAWM, 2009).

O sociólogo Bauman (2006) também complementa ambos os argumentos


citados acima, nos atentando para a questão de que vivemos num ambiente fluido,
em constante mudança, em que a ideia de eternidade, duração perpétua ou valor
permanente, imune ao fluxo do tempo, não tem fundamento na experiência
humana. O tipo de cultura de que participa esta falsa globalização dita de um mundo
totalmente integrado, não é a cultura de um determinado lugar, mas a de um tempo.
É a cultura do presente absoluto, que, conforme este falso imaginário, estaria imune
ao fluxo do tempo, aos acontecimentos (BAUMAN, 1999).

Ao passo que você já desvinculou o global como sendo algum modo sempre
acima, exterior, certamente em algum outro lugar (MASSEY, 2008), e descentrou
a economia, como único fluxo da globalização, torna-se necessário reconhecer a
Europa, apenas uma das histórias que estão sendo feitas, reelaborando a narrativa
da modernidade capitalista de sua centralização europeia para as dispersas periferias
globais.

Não basta compreendermos a globalização com o simples sentido de aumentar


os contatos e fluxos globais (MASSEY, 2008), pois, dessa forma, projeta-se uma
ideia de organizar o espaço recusando a reconhecer as multiplicidades (existência
diversificada de indivíduos), suas fraturas e dinamismos. É uma estabilização das
instabilidades inerentes e das criatividades do espaço, uma forma de chegar a um
acordo com o grande ‘exterior’.

O fato de considerarmos a globalização como sequência histórica, isto é, coisas


acontecendo umas após as outras, nos impõe a instantaneidade de um único
presente global, como se o mundo fosse totalmente integrado. Sabemos que isso
seria impossível, mas a divulgação contínua e atenta aos acontecimentos midiáticos
globais, como a Copa do Mundo, as Olímpiadas, os Jogos de Inverno, e também,
as instituições internacionais, como a ONU (Organização Mundial das Nações
Unidas), o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, entre outros, sustentam
e reforçam essa crença na falsa realidade de que tudo, por toda parte, já está ligado
com tudo.

Todavia, de acordo com Massey (2008), não há naturalmente nenhum momento


único global integrado, pois certamente a construção desses acontecimentos
midiáticos, enquanto globais, é precisamente um resultado das interseções/
cortes dentro dessa multiplicidade, demostrando a natureza complexa, desigual e
espacialmente diferenciada da sua construção.

Entender, ainda, a globalização como um processo acabado é um equívoco,


pois ora ouve-se alegações de que já estamos impregnados dela, ora ela torna-se
uma promessa de um futuro. Esse discurso coloca aqueles que “ainda” não estão

88 Globalização e identidade cultural


U3

integrados nessa única globalidade como atrasados, temporariamente, “atrás”


(MASSEY, 2008).

A nossa imaginação geográfica, conforme Massey (2008), transforma-se de um


unido de lugares delimitados para um mundo de fluxos em que a participação e a
atuação dos distintos povos é diferenciada. E em vez de identidades isoladas, um
entendimento do espacial como relacional, através de conexões e desconexões,
mostrando que as coisas não são já e para sempre constituídas, mas em processo
constante de transformação. Entretanto, essas diferenças potenciais das trajetórias são
apagadas pela ideia da vivência numa sequência temporal. Negam-se as multiplicidades
essenciais, pois trata-se de uma narrativa com uma trajetória única (Europa).

Então, acadêmico de Geografia, é preciso se atentar que a globalização não é,


segundo Massey (2008), um movimento único que tudo abarca (espaço livre e sem
limites), mas uma criação de espaços, uma reconfiguração ativa e encontro através
de práticas e relações de uma enorme quantidade de trajetórias.

O termo trajetória refere-se, na perspectiva de Massey (2008),


a movimento, mudança das próprias coisas, ou seja, as pessoas
experienciam e vivenciam o mundo de distintas maneiras.

Portanto, ao contrário do que se pensa, os processos globalizadores não levaram


à relativa homogeneização promovida pela mercantilização econômica e cultural
mundializada, mas evidencia-se que a globalização se alimenta da diferenciação, ou
então, através da luta por maior autonomia de determinados espaços de vida.

Claramente, o mundo não é totalmente globalizado, o próprio fato de que alguns


estão se empenhando tanto em fazê-lo é prova de que o projeto está incompleto.
Mas isto é mais do que uma questão de incompletude - mais do que uma questão
de esperar que os retardatários os alcancem. Há múltiplas trajetórias/temporalidades
aqui. Mais uma vez, como no caso da modernidade, esta é uma imaginação geográfica
que ignora as subdivisões estruturadas, as necessárias rupturas e desigualdades, as
exclusões das quais depende o sucesso de prosseguimento do próprio projeto.
Enquanto a desigualdade for lida em termos de estágios de avanço ou atraso, não
apenas as histórias alternativas não são reconhecidas, mas também a evidência da
produção da pobreza e da polarização, dentro e através da própria globalização
pode ser riscada do mapa (MASSEY, 2008).

A segregação de identidades promovidas e transformadas num “dever” pela

Globalização e identidade cultural 89


U3

globalização dos mercados e da informação não refletem uma diversidade igualitária


entre países, pois o que se apresenta como opção para alguns abate-se sobre outros
como destino cruel. Definir a globalização essencialmente como o processo de
concentração de capitais, das finanças e todos os outros recursos de escolha e
ação efetiva, e de concentração da liberdade de se mover e agir estaria incompleto
(BAUMAN, 2005).

Para alguns, diante do mundo dos globalmente móveis, o espaço perdeu sua
qualidade restritiva e é facilmente transposto “real” ou “virtual”. Para outros, impedidos
de se mover e assim fadados a suportar passivamente qualquer mudança que afete
a localidade onde estão presos, o espaço real está se fechando rapidamente. É
um tipo de provação que se torna ainda mais penosa pela insistente exibição na
mídia da conquista do espaço e do “acesso virtual”, as distâncias que permanecem
teimosamente inacessíveis na realidade efetiva (BAUMAN, 1999, p. 85).

Numa perspectiva econômica, conforme Haesbaert e Porto-Gonçalves


(2006, p. 41), a globalização é um processo que se estende “a todo o
planeta, marcada pela ruptura de fronteiras, pela perda de influência
dos condicionamentos locais e pela expansão de uma dinâmica de
acumulação e contração de capital em nível mundial”. Esta se desdobra
em quatro formas: a comercial, a produtiva, a tecnológica e a financeira.
No mesmo contexto, Santos (2001) coloca que a globalização é, de certa
forma, o ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista,
concretizada pela atuação de um sistema unificado de técnicas, que
permite ações igualmente globais. Ela é o resultado das ações que
asseguram a emergência de um mercado dito global, responsável pelo
essencial dos processos políticos atualmente eficazes. Os fatores que a
explicam são: a unicidade da técnica, a convergência dos momentos, a
cognoscibilidade do planeta e a existência de um motor único na história,
representado pela mais-valia globalizada.
Para Santos (2001), haveria um motor único, a mais-valia universal,
conduzido e, ao mesmo tempo, homogeneizado pelo mercado global
regulador, assim, a globalização surge do embate entre um dinheiro
globalizado e as instâncias político-administrativas do Estado.

O mundo cada vez mais cosmopolita e extraterritorial dos homens de negócio


globais, dos controladores globais da cultura e dos acadêmicos globais percebe
que as fronteiras foram derrubadas, como foram para as mercadorias, o capital e
as finanças. No entanto, para o restante da população os muros constituídos pelos
controles de migração, as leis de residência, a política de “ruas limpas” e a “tolerância
zero” ficaram mais altos; os fossos que os separam dos locais de desejo e da

90 Globalização e identidade cultural


U3

sonhada redenção ficaram mais profundos, ao passo que todas as pontes, assim que
se tentam atravessá-las, revelam-se pontes levadiças. Os primeiros viajam à vontade,
divertem-se bastante viajando, são moldados a viajar (BAUMAN, 1999).

O capital, os ricos, os qualificados podem se mover com mais facilidade pelo


mundo, como investimento, ou comércio, ou em função de grande demanda de
trabalho, ou como turistas, e, ao mesmo tempo, quer seja nos países ocidentais
de migração controlada ou nas comunidades muradas dos ricos em qualquer
metrópole importante de qualquer lugar, ou nos redutos elitizados de produção
de conhecimento e de alta tecnologia, eles podem proteger seus lares-fortaleza.
Enquanto isso, os pobres e os não qualificados das chamadas margens deste
mundo são instruídos tanto a abrir suas fronteiras e dar as boas-vindas à invasão
do Ocidente, sob qualquer forma que ela venha, quanto a permanecer onde estão
(MASSEY, 2008).

O mundo não parece mais uma totalidade e, sim, um campo de forças dispersas
e díspares, que se reúnem em pontos difíceis de prever e ganham impulso sem que
ninguém saiba realmente como pará-las.

A globalização, aos olhos de muitos, indicava e ainda indica uma ordem universal,
cuja produção ocorre numa escala universal, verdadeiramente global. A concepção
de universalização foi cunhada com base nos recursos das potências modernas e
das ambições intelectuais modernas. Ambos anunciam a vontade de tornar o mundo
diferente através da expansão, mudança e melhoria em escala global, a dimensão
da espécie. Além disso, declarando a intenção de tornar semelhantes as condições
de vida de todos, em toda parte, e, portanto, as oportunidades de vida para todo
mundo; talvez mesmo torná-las iguais (BAUMAN, 1999).

Contudo, o que percebemos atualmente é que a globalização condiz aos


efeitos globais notoriamente não pretendidos e imprevistos, e não às iniciativas e
empreendimentos globais (BAUMAN, 1999).

Alunos, nossas ações podem ter, e muitas vezes têm mesmo, efeitos globais,
mas nós não temos nem sabemos bem como obter os meios de planejar e executar
ações globalmente. A “globalização” não diz respeito ao que todos nós desejamos
ou esperamos fazer. Diz respeito ao que está acontecendo a cada um de nós. A
ideia de “globalização” refere-se aos tipos de “forças anônimas” que se estendem
para além do alcance da capacidade de desígnio e ação de quem quer que seja em
particular (BAUMAN, 2008).

O que é imposto à população midiática é um mundo de fabulações (= ilusões),


que consagra um discurso único, fundamentado na produção de imagens e
do imaginário, que está a serviço do império do dinheiro, pela economização e
monetarização da vida social e da vida pessoal (SANTOS, 2001).

Globalização e identidade cultural 91


U3

Diante de tudo que vimos sobre globalização (verdades e


ilusões), impõe-se a questão da transcendência da identidade
cultural enraizada na especificidade local para além das
garras da globalização na versão midiática?

1. Quais são os principais mitos da globalização difundidos


pelo discurso midiático?

2. A concepção de globalização como um processo que


projeta o fim das fronteiras, a livre circulação e a integração
total do mundo está dentro de qual perspectiva?

3. Como você definiria o fenômeno da globalização com base


no que foi exposto?

92 Globalização e identidade cultural


U3

Seção 2

Pluralização de identidades: o sujeito global


contemporâneo
A seção 2 trabalha com a emersão de alguns aspectos que são mencionados de
forma recorrente no nosso dia a dia, que nos induz a acreditar que somos parte de
algo já constituído, solidificado, como os símbolos nacionais que nos são impostos.
É preciso voltar-nos para nós mesmos a fim de resgatar esse processo criativo e
impulsivo de nos reconstruirmos constantemente de acordo com os momentos e
as fases da vida.

2.1 Identidades transitórias

Retornemos novamente nossa atenção à trajetória do migrante haitiano que


chegou ao Brasil em 2013, após uma vivência de 10 anos na República Dominicana.
Imagine você, num ciclo curto de vida, mudar periodicamente de país, esse
movimento e mudança de práticas e interações que se efetivam na experiência
humana ao inserir-se em um novo contexto social, cultural etc. contribui para a
edificação da sua identidade, pois são as experiências humanas ao longo de nossa
vida que tecem nossa identidade.

Um exemplo disso é vislumbrado no livro “O mundo de Sofia: romance da história


da filosofia”, de autoria de Jostein Gaarder (1995), em que o filósofo Alberto Knox
lança à menina Sofia a questão “Quem sou eu?”. E quem de nós já não se fez e refez
essa pergunta no decorrer dos anos? No livro, ao passo que a menina Sofia vivencia
novas práticas e atividades sociais, e se insere no contexto do mundo da filosofia,
apresentam-se respostas momentâneas para essa pergunta.

Do mesmo modo, nós, ao longo de nossa jornada, nos deparamos com


diferentes práticas, interações e contextos sociais que embasam nossa resposta
em determinado momento. Isso ocorre porque toda identidade, ou melhor, toda
declaração identitária (individual ou coletiva) é múltipla, inacabada, instável, sempre
experimentada mais como uma busca do que como um fato (AGIER, 2001).

Portanto, a identidade, de acordo com Castells (1999), é a fonte de significado e


experiência de uma pessoa ou de um povo. Precisamos também, aqui, desvincular

Globalização e identidade cultural 93


U3

o discurso simplista de caráter absoluto, autêntico e atemporal projetado sobre


uma identidade afirmada, uma vez que a nossa realidade de vivência de diferentes
práticas e atividades, além do frequente questionamento de quem somos, nos
possibilita vislumbrar o caráter profundamente construído, processual e situacional
da identidade (AGIER, 2001).

O migrante haitiano que mencionamos no começo desta unidade representa


essa multidão de pequenas narrativas identitárias, que ocupam o vazio deixado pelas
“grandes narrativas” em crise (missão cristã, destino das classes, projeção nacional).
Elas aparecem nos mais diversos contextos, em construções híbridas, “bricoladas”,
heterogêneas. Enfim, são o resultado da iniciativa dos indivíduos, dos pequenos
grupos ou das redes que, frequentemente, têm dificuldades em fazer compreender
a especificidade que reivindicam para si (AGIER, 2001).

Assista, no site YouTube, ao seguinte vídeo disponível em: https://www.


youtube.com/watch?v=ttWUBCFoWkQ. Acesso em: 15 mai. 2015.
Ele retrata a vida do camaleão, uma espécie de lagarto que muda de cor
ficando semelhante ao ambiente em que está inserido. Diria que em parte
podemos equiparar nosso processo de identificação com a mudança
constante de cor do camaleão, pois a construímos ao longo da vida
ininterruptamente, de acordo com o que experienciamos e o contexto
em que estamos inseridos.

Com o desmantelamento das “grandes narrativas”, nosso mundo encontra-


se em uma fase de criatividade intensa feita de múltiplas buscas identitárias e,
simultaneamente, de novas culturas declarativas de identidade. A identidade de
um momento será, talvez, mais tarde esquecida, quando outros contextos e outras
relações prevalecerão, mas a cultura do lugar onde isso ocorre atualmente, também
terá sido transformada, “trabalhada” profundamente (AGIER, 2001).

Pensando nesse processo constante de mudanças, em que as culturas mudam


junto às identidades, podemos vincular nossa concepção de identidade, segundo
Castells (1999, p. 23), a “um processo de construção de significado com base em um
atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados”, os
quais prevalecem sobre outras fontes de significado.

Por exemplo, os estereótipos destinados aos colombianos que são amplamente


relacionados com as drogas, violência e corrupção (através dos meios massivos
de comunicação), contradizem essa significação do processo de identificação via
atributos culturais, pois trata-se de uma imposição fixa feita pelo outro, sem que haja

94 Globalização e identidade cultural


U3

a identificação de quem a recebe.

Toda e qualquer identidade é construída, uma vez que a identificação como


uma construção, como um processo nunca completo, como algo sempre “em
andamento”, não é, nunca, completamente determinada, devido que se pode,
sempre, “ganhá-la” ou “perdê-la”. Portanto, ela pode ser, sempre, sustentada ou
abandonada, de acordo com suas condições (recursos materiais e simbólicos)
determinadas de existência. A identificação é, ao fim e ao cabo, condicional e, uma
vez assegurada, ela não anulará a diferença (HALL, 2001).

Assista ao filme “O Show de Truman” para entender melhor como


as mudanças e as transformações diante das práticas, atividades,
interações e contextos em que estamos inseridos influenciam na
construção de nossa identidade. No filme, Truman é um homem, cuja
vida é um reality show contínuo de televisão, sem seu consentimento
ou ciência disto. Referenciais materiais e simbólicos são introduzidos
ao longo da vida de Truman para que ele construa sua identidade. No
entanto, ao longo da trama com a realização de outras interações, ele
começa a questionar quem ele é, e, ao passo que as coisas mudam, ele
abandonará sua antiga identidade e buscará outros recursos materiais
e simbólicos para sustentar outra. O primeiro deles será mudar seu
contexto de vivência.

Neste contexto, podemos dizer que as identidades constituem fontes de


significado (identificação simbólica) para os indivíduos e, dependendo do indivíduo,
pode haver identidades múltiplas (CASTELLS, 1999). Todavia, não confunda
identidade com o conjunto de papéis sociais que se pode desempenhar ao longo
da vida, como: esposa, mãe, dona de casa, advogada, mecânico, professor, geógrafo,
estudante, entre outros. “Enquanto as identidades organizam significados, os papéis
encarregam-se de organizar funções” (CASTELLS, 1999, p. 23).

As identidades não são nunca unificadas, visto que na modernidade tardia são
cada vez mais fragmentadas e fraturadas. Nem singulares, mas multiplamente
construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou
ser antagônicos. As identidades estão sujeitas a uma historicização radical, estando
constantemente em processo de mudança e transformação (HALL, 2001).

Uma abordagem que considere essas identidades já, ou para sempre, constituídas
e defenda os direitos ou reivindique a igualdade para essas identidades já constituídas,
reivindicações baseadas em noções de identidade imutável, se apresenta como

Globalização e identidade cultural 95


U3

insustentável, uma vez que “as identidades são construídas relacionalmente ao longo
da vida” (MASSEY, 2008, p. 30- 31). Logo, não há identidades sempre já constituídas.

A identidade é realmente algo formado ao longo do tempo através de processos


inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do
nascimento. Apesar de recebermos um nome quando nascemos, uma certidão de
nascimento e, posteriormente, documentos que nos façam existir para a sociedade,
estes não são suficientes para declarar nossa própria identidade/identificação, pois
precisamos de nossas experiências para edificá-la. Existe sempre algo imaginário ou
fantasiado sobre sua unidade. “Ela permanece sempre incompleta, está sempre em
processo, sempre sendo formada” (HALL, 1999, p. 38).

Precisamos nos atentar também para o fato de que a identidade não tem a solidez
de uma rocha, não é garantida para toda a vida, é bastante negociável e revogável,
e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a
maneira como age - e a determinação de se manter firme a tudo isso - são fatores
cruciais para a identidade (BAUMAN, 2005).

A identidade nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto; como
alvo de um esforço, um objetivo; como uma coisa que ainda se precisa construir a
partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e protegê-la lutando
ainda mais, mesmo que, para que essa luta seja vitoriosa, a verdade sobre a condição
precária e eternamente inconclusa da identidade deva ser, e tenda a ser, suprimida e
laboriosamente oculta (BAUMAN, 2005).

Assim, em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar
de identificação, e vê-la como um processo em andamento. A identidade surge não
tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas
de uma falta de inteireza que é preenchida a partir de nosso exterior, pelas formas
através das quais nós imaginamos ser vistos por outros.

Psicanaliticamente, nós continuamos buscando a identidade e construindo


biografias que tecem as diferentes partes de nossos “eus” divididos numa unidade,
porque procuramos recapturar esse prazer fantasiado da plenitude (HALL, 1999).

O sujeito visto como tendo uma identidade fixa e estável, com ampliação do
pensamento, frente aos processos de globalização, foi descentrado, resultando
nas identidades abertas, contraditórias, inacabadas, fragmentadas, do sujeito pós-
moderno. Tudo se passa como se os imaginários locais fossem “pesados” demais,
colados demais nas realidades dos territórios, sempre tentando alcançar as retóricas
globais mais leves e fluídas, com relação às quais eles estão sempre atrasados
(AGIER, 2001).

As identidades estão se movendo não unicamente pela globalização, mas


porque o processo de construção de identidade está em processo. Os processos

96 Globalização e identidade cultural


U3

de globalização apenas intensificam a construção relacional da identidade (de nós


mesmos, do cotidiano, dos lugares). São formadas através de uma miríade de práticas
de negociação e contestação cotidianas, práticas, através das quais as identidades
constituintes são, também, elas mesmas, continuamente moldadas (MASSEY, 2008).

A multiplicidade interna da identidade cultural reflete a multiplicidade externa das


relações entre corpos, ainda mais vislumbrada pela fluidez da globalização (fluxos de
informação, pessoas, atributos culturais) que densifica as próprias interconexões que
são partes da construção de identidade (MASSEY, 2008).

Agora, direcione seu pensamento para a sua ou nossa experiência social diante
da era pós-moderna de descentralização, deslocamento e múltiplas redes sociais
(virtuais e espaciais), projete-se de um sujeito de uma identidade unificada e estável
para um fragmentado. Composto não de uma única, mas de várias identidades, por
vezes contraditórias ou não resolvidas. Esse sujeito pós-moderno, com o qual nos
identificamos neste momento é, compreendido, conforme Hall (2011), como não
tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente.

Sua mobilidade é formada e transformada continuamente em relação às formas


pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos
rodeiam, portanto, a mudança está relacionada não com a questão biológica, mas
com as distintas trajetórias históricas.

O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades


que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente, pois convivemos com
contradições que nos apontam para diferentes direções, de tal modo que nossas
identificações estão sendo continuamente deslocadas.

São mudanças em nossa trajetória que vão acrescendo ou substituindo distintos


caracteres próprios e exclusivos de cada sujeito social. Assim, o fato de algumas
pessoas sentirem que têm uma identidade unificada desde o nascimento até a
morte é apenas porque constrói uma cômoda história sobre si mesmo ou uma
confortadora narrativa do “eu” que o envolve numa trajetória moralmente intacta.

A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente, para Hall


(2011, p. 13), é uma fantasia, pois à medida em que os sistemas de significação e
representação cultural se multiplicam, “somos confrontados por uma multiplicidade
desconcertante e mutável de identidades possíveis”, que poderíamos nos identificar
mesmo que temporariamente.

Estamos agora passando da fase sólida da modernidade para a fase fluída. E os


fluídos são assim chamados porque não conseguem manter a forma por muito
tempo e, a menos que sejam derramados num recipiente apertado, continuam
mudando de forma sob a influência até mesmo das menores forças. Com nosso
processo de identificação não é diferente, “estamos constantemente mudando de

Globalização e identidade cultural 97


U3

forma, buscando novos recursos materiais e simbólicos que possam sustentar nossa
identidade” (BAUMAN, 2005, p. 57).

Uma identidade coesa, firmemente fixada e solidamente construída seria um


fardo, uma repressão, uma limitação da liberdade de escolha. Seria um presságio da
incapacidade de destravar a porta quando a nova oportunidade estiver batendo. É como
se fôssemos aprisionados a estereótipos, estigmas, categorizações (BAUMAN, 2005).

A essência da identidade é a resposta à pergunta Quem sou eu?


Independentemente da qual possa ser dada, esta jamais poderá ser constituída
sem fazer referência aos vínculos que conectam o “eu” a outras pessoas e ao
pressuposto de que tais vínculos são fidedignos e gozam de estabilidade com o
passar do tempo (BAUMAN, 2005).

Na era do Estado-nação, proclamava-se pela nacionalidade a edificação de


uma “metaidentidade”, a mais geral, volumosa e onívora de todas, que emprestaria
significado a todas as outras e as reduziria ao papel secundário e dependente de
exemplos ou casos especiais. Neste intuito, os Estados-nação buscaram recursos
materiais e simbólicos para sustentar a identidade nacional. Mas com a intensificação
da globalização, esta não sustentou sua exclusividade, múltiplas identidades
floresceram (BAUMAN, 2005).

Associando identidade ao processo de globalização, podemos vislumbrar dois


polos que integram os indivíduos. De um lado aqueles que constituem e desarticulam
as suas identidades mais ou menos à própria vontade, escolhendo-as no leque
de ofertas extraordinariamente amplo, de abrangência planetária. No outro polo,
abarrotam-se aqueles que tiveram negado o acesso à escolha da identidade, que
não têm direito de manifestar as suas preferências e que no final se veem oprimidos
por identidades aplicadas e impostas por outros - identidades de que eles próprios
se ressentem, mas não tem permissão de abandonar, nem das quais conseguem
se livrar. Identidades que estereotipam, humilham, desumanizam, estigmatizam
(BAUMAN, 2005).

A busca desenfreada pelo reconhecimento, travada individual ou coletivamente,


em geral se desenrola de duas maneiras, em uma delas a identidade escolhida e
preferida é contraposta, principalmente, com as sobras das identidades antigas,
abandonadas e abominadas, escolhidas ou impostas no passado. Na outra, impõem-
se sob pressões de outras identidades, maquinadas e impostas (estereótipos,
estigmas, rótulos), promovidas por forças inimigas. Estas devem ser enfrentadas e
repelidas, mas nem sempre é isso que acontece (BAUMAN, 2005).

Quando nós nos deparamos com determinados acontecimentos que


experienciamos, estes, aos olhos dos outros, projetam sobre nós identidades. Por
exemplo, a condição de abandono dos estudos, de mãe solteira, viciado ou ex-
viciado em drogas, sem-teto, mendigo ou de outras categorias arbitrariamente

98 Globalização e identidade cultural


U3

excluídas da lista oficial dos que são considerados adequados e admissíveis. Qualquer
outra identidade que você possa ambicionar ou lutar para obter lhe é negada a priori.
Estas identidades representam a ausência de identificação, pois se tem a abolição ou
negação da individualidade, do rosto, pela exclusão do espaço social e tempo em
que as identidades são buscadas, escolhidas, construídas, avaliadas, confirmadas ou
refutadas.

Para os refugiados (sem-Estado), a situação não é diferente do que acabamos


de expor, ao passo que compartilham de uma identidade imposta que lhe nega
a condição espacial e temporal da vivência, eles ainda são privados do direito da
presença física dentro de um território sob lei soberana. Exceto em não lugares
especialmente planejados, denominados campos para refugiados ou pessoas
em busca de asilo, a fim de distingui-los do espaço em que os outros, as pessoas
“normais, perfeitas”, vivem e se movimentam. A não presença destes em um território
revela a privação aos recursos materiais e simbólicos que sustentam a construção
das identidades. Portanto, a identidade que recebem de “refugiados” é o extremo de
qualquer estereótipo, pois não permite nem sequer que o indivíduo simpatize com
um referencial de significados, mesmo que imposto. É como se essa identidade
coubesse àqueles que a nada se identificam, os que sobraram dessa busca incansável
pela identificação (BAUMAN, 2005).

O anseio por identidade vem do desejo de segurança, no entanto, no caso dos


refugiados, que segurança eles podem receber no campo de refugiados, uma vez
que com a expulsão do país de origem já lhes foi tirado todo o tipo de direitos?
Portanto, tal categorização não pode ser considerada uma identidade de fato, pois
não é uma construção própria daqueles que a recebem. Em nossa época líquido-
moderna, em que o indivíduo é percebido como livremente flutuante, desimpedido,
estar fixo - ser identificado de modo inflexível e sem alternativa - é algo cada vez mais
incabível (BAUMAN, 2005).

Nós, habitantes do líquido mundo moderno, buscamos, construímos e mantemos


as referências comunais de nossas identidades em movimento, lutando para nos
juntarmos aos grupos igualmente móveis e velozes que procuramos, construímos e
tentamos manter vivos por um momento, mas não por muito tempo (BAUMAN, 2005).

A identidade pode sofrer alusão a um manto leve pronto a ser despido a qualquer
momento. O conjunto de indivíduos que assume uma identidade semelhante forma,
segundo Bauman (2005), comunidades guarda-roupa. Estas são edificadas enquanto
dura o espetáculo e prontamente desfeitas quando os espectadores apanham os seus
casacos nos cabides. Suas vantagens em relação à coisa genuína são precisamente
a curta duração de seu ciclo de vida e a precariedade do compromisso necessário
para ingressar nelas e aproveitá-las.

Diante de tudo que foi exposto, podemos acreditar que a fonte de especificidade

Globalização e identidade cultural 99


U3

cultural não está apenas no isolamento espacial e nos efeitos emergentes de


processos internos de articulação como anteriormente acreditávamos, mas também
de modo muito importante, em interações com o que está além (com os outros que
completam esse mundo). É tal articulação que permite até mesmo que importações
culturais muito recentes sejam absorvidas tão facilmente como características
primordiais de autenticidade (MASSEY, 2008).

Por exemplo, uma especificidade cultural externa que foi absorvida enquanto
símbolo interno da identidade brasileira é o futebol. Este começou no final do século
XIX pelas mãos dos ingleses, e, atualmente nós, brasileiros, nos identificamos e
reconhecemos por excelência como “país do futebol”.

Portanto, pela efetivação constante de conexões e desconexões, precisamos


cogitar que a identidade cultural é construída através de um processo nunca-isolado,
nunca-imutável de produção da diferenciação cultural num espaço inter-relacional.

2.2 Identidade e Nação

A equivocada noção da distância como subitamente erradicada, espacial e


temporalmente, não se concretiza, mas o que se evidencia é o seu encurtamento
pelos recursos que se apresentam. Esta é fruto da globalização, assim como,
segundo Bauman (2005), a posição do Estado que não tem mais o poder ou o
desejo de manter uma união sólida e inabalável com a nação. Isso nos transporta
para a ideia do abandono de uma identidade integral, originária e unificada (HALL,
2001), pois no admirável mundo novo das oportunidades fugazes e das seguranças
frágeis, as identidades ao estilo antigo, rígidas e inegociáveis, simplesmente não
funcionam, em contrapartida, as identidades ganharam livre curso, e agora cabe
a cada indivíduo, homem ou mulher, capturá-las em pleno voo, usando os seus
próprios recursos e ferramentas.

Essa cultura nacional que nos é imposta ao nascermos constitui uma das
principais fontes de identidade cultural, contudo, elas não são coisas com as quais
nós nascemos, todavia, são formadas e transformadas no interior da representação
(HALL, 1999). Da mesma forma, a identidade irá ser formada e transformada ao
passo que a cultura também se modifica, quando entramos em contato com outros
referenciais, seja da cultura de origem ou externa.

A cultura nacional é um discurso, um modo de construir sentidos que influencia e


organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos (HALL,
1999). Sentidos (memórias, mitos, histórias e imagens) são recursos simbólicos
criados para sustentar nossa identificação, portanto, a identidade nacional é uma
comunidade imaginada, pois somos induzidos a acreditar que nascemos com tal
reconhecimento impresso em nossos genes, como se fosse uma questão biológica

100 Globalização e identidade cultural


U3

e não reflexo de nossa trajetória histórica.

O papel da identidade nacional é dar significado e importância à nossa monótona


existência, conectando nossas vidas cotidianas a um destino nacional que preexiste
a nós e continua existindo após nossa morte (HALL, 1999).

Mesmo pensando no processo da identidade nacional, cujas tradições nacionais


são inventadas e reinventadas ao longo do tempo com o intuito de alimentar o
reconhecimento dos indivíduos à nação, podemos então inferir que as identidades
não são de modo algum fixas e estáveis, mas sim em constante processo de
transformação. Por isso, não importa quão diferentes seus membros possam ser
em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa
identidade cultural, para representá-los todos como pertencentes à mesma e grande
família nacional (HALL, 1999).

Em contrapartida, a globalização, conforme Hall (2001), como um processo de


mudança constante, rápida e permanente revela as diferentes posições do sujeito:
criação de novas identidades e a produção de novos sujeitos. Embora o sujeito esteja
sempre partido ou dividido, ele vivencia sua própria identidade como se ela estivesse
reunida e resolvida, ou unificada, como resultado da fantasia de si mesmo como
uma pessoa unificada que ele formou na fase do espelho.

A tendência a uma maior interdependência global está levando ao colapso de


todas as identidades culturais fortes e está produzindo aquela fragmentação de
códigos culturais, aquela multiplicidade de estilos, aquela ênfase no efêmero, no
flutuante, no impermanente e na diferenciação e pluralismo cultural. Os fluxos
culturais, entre nações, e o consumismo global criam possibilidades de identidades
partilhadas como consumidores para os mesmos bens, clientes para os mesmos
serviços, públicos para as mesmas mensagens e imagens entre pessoas que estão
distantes uma das outras. À medida que as culturas nacionais tornam-se mais
expostas às influências externas, é difícil conservar as identidades culturais intactas
ou impedir que elas se tornem enfraquecidas através do bombardeamento e da
infiltração cultural (HALL, 1999).

Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares
e imagens, viagens internacionais, imagens da mídia e sistema de comunicação
globalmente interligado, mais as identidades se tornam desvinculadas, desalojadas -
de tempos, lugares, histórias e tradições específicos -, e parecem flutuar livremente.
Somos confrontados por uma gama de diferentes identidades (cada qual nos
fazendo apelos, ou melhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós), dentre as
quais parece possível fazer uma escolha.

A continuidade e a historicidade da identidade são questionadas pela imediatez


e pela intensidade das confrontações culturais globais (HALL, 1999). Vivenciamos a
era do consumismo, em realidade ou sonho, a qual projetou-se sobre o processo de

Globalização e identidade cultural 101


U3

identificação, como se as identidades fossem ofertadas num supermercado cultural.


No interior do discurso do consumismo global, as diferenças e as distinções culturais,
que até então definiam a identidade, ficam reduzidas a uma espécie de língua franca
internacional ou de moeda global em termos das quais todas as tradições específicas
e todas as diferentes identidades podem ser traduzidas (HALL, 1999).

As identidades nacionais, como vimos, representam vínculos a lugares, eventos,


símbolos, histórias particulares. Elas representam a falsa ideia de uma especificidade
cultural criada de forma isolada, mas o que tentam esconder é que o advento a
novos recursos materiais e simbólicos é o que permite a manutenção da identidade
nacional. Não é possível, no mundo de contato intenso que vivemos, com as
multiplicidades internas ou externas e as constantes mudanças, pensar num processo
de identificação voltado a referenciais de momentos passados.

Podemos pensar também que a proliferação das escolhas de identidade é mais


ampla no centro do sistema global do que nas suas periferias (HALL, 1999). Lembrem-
se de que a globalização não é vivenciada da mesma forma por todo o mundo e,
como ela é responsável também por abrir o leque das múltiplas identidades possíveis,
certamente os que vivenciam a maior intensidade dos fluxos são privilegiados na
quantidade exposta à escolha.

A globalização tem, sim, o efeito de contestar e deslocar as identidades centradas


e fechadas de uma cultura nacional, visto que ela tem um efeito plural sobre as
identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de
identificação, e tornando as identidades “mais posicionais, mais políticas, mais plurais
e diversas, menos fixas, unificadas ou trans-históricas” (HALL, 1999).

A natureza provisória de toda e qualquer identidade e de toda e qualquer escolha


entre a infinidade de modelos culturais a disposição não é uma descoberta, nem
invenção. Como tudo nas práticas humanas, é vivenciada com o direito de apelo
ou reforma. Tudo que é criado num determinado momento pode ser mudado
infinitamente. Esse aspecto acompanhou a era moderna desde o início. De fato, a
mudança obsessiva e compulsiva é a essência do modo moderno de ser. Você deixa
de ser moderno quando para de modernizar-se, quando abaixa as mãos e para de
remendar o que você é e o que é o mundo à sua volta (HALL, 1999).

Assim, a construção da identidade assume a forma de uma experimentação


infindável, sem nunca terminar, é um processo sempre aberto ao novo. Logo, você
assume uma identidade num momento, mas muitas outras, ainda não testadas,
estão na esquina, esperando que você as escolha. E outras identidades ainda não
sonhadas estão por ser inventadas e cobiçadas durante sua trajetória de vida. Você
nunca saberá ao certo se a identidade que agora exibe é a melhor que pode obter e
a que provavelmente lhe trará maior satisfação (HALL, 1999).

Em nosso mundo fluído, comprometer-se com a ideia de termos uma identidade

102 Globalização e identidade cultural


U3

única no decorrer de nossa vida independe das experiências que tivermos, dos
contatos, das interações, da troca de informações etc., é infundada devido às
absorções e identificações com outros atributos culturais que revelam que as
identidades são para usar e exibir, não para armazenar e manter.

O fato da existência da imposição ao nascermos de uma


identidade nacional nos condiciona a ter uma identidade fixa,
estável, imutável em relação ao nosso país de origem?

1. Qual é a diferença entre a concepção de identidade na era do


Estado-nação e na Modernidade?

2. Como esse sujeito fragmentado é colocado em termos de suas


identidades culturais?

3. Pense num tipo de identidade utilizada como estereótipo


(imposta) que foi apontada no texto e argumente o que a torna
diferente da identidade escolhida pelo indivíduo.

Globalização e identidade cultural 103


U3

104 Globalização e identidade cultural


U3

Seção 3

Comunidades transnacionais: os fluxos globais


e a simultaneidade de indivíduos
A última seção é idealizada para que você, aluno, faça um exercício de reflexão
diante do que foi trabalhado na seção 1 para o termo globalização e na seção 2
para a concepção de identidade. Para que você consiga fazer uma conexão entre
globalização e identidade, apresenta-se um elemento humano das forças globalizantes,
a migração, que por si só revela a coexistência simultânea de outros, seja nos países
ditos desenvolvidos ou nas periferias mundiais. Um movimento social que conecta
indivíduos no país de origem e destino e escancara a autonomia desses espaços de
vida. Em contrapartida, alerta-nos para a falsa ideia de uma aldeia global, onde todos
os espaços estariam da mesma forma conectados e interligados, sendo que essas
articulações nem sempre se revelam pelos fluxos de uma economia globalizada.

3.1 Transnacionalismo

Agora, aluno, proponho a você o contato com um novo conceito, o de


“transnacionalismo”, pois além de revelar a coetaneidade de outras trajetórias históricas,
vivenciando o mesmo fenômeno, ainda permite visualizar que sua ocorrência está
entrelaçada ao contexto da globalização e impulsionando o processo de construção
da identidade. O transnacionalismo se revela na migração de diversos indivíduos/
povos para outros países, com destaque para aqueles de maior visibilidade mundial.
Ao estabelecerem-se no país de destino, estes migrantes manterão também um
intenso relacionamento com o país de origem. Uma vinculação habitual diversificada
em um espaço social transcendendo as fronteiras revela a globalização e a identidade
enquanto processos sempre em construção, por meio da experiência humana dos
diferentes indivíduos mundiais nos mais variados contextos.

A migração é, desse modo, uma afirmação da coetaneidade, a qual nos desperta


para a existência de outros, vivenciando cada qual à sua maneira o mundo, ou seja,
enfatiza a natureza das narrativas, do próprio tempo, não se referindo ao desenrolar
de alguma história internalizada (identidades preestabelecidas) - como a história
autoproduzida da Europa -, mas o processo de interação e da constituição de
identidades que reformula a existência das multiplicidades (MASSEY, 2008).

Globalização e identidade cultural 105


U3

Você pode assistir agora ao documentário “Identidades em Trânsito”,


disponível em: <http://portacurtas.org.br/filme/?name=identidades_
em_transito>. Acesso em: 15 mai. 2015., no intuito de entender melhor
como se estabelece o fenômeno do transnacionalismo pelas experiências
de estudantes de Guiné-Bissau e Cabo Verde que migraram para o Brasil
para ingressar no ensino superior. A trama do documentário aborda a
vivência de estudantes num espaço social de múltiplas relações entre
as sociedades de origem e de destino, transformando-se em atores
transnacionais, que experienciam um processo social que cruza fronteiras
geográficas, culturais, econômicas e políticas. Você perceberá, também,
o processo da construção/transformação das identidades destes
estudantes, pelo entrelaçamento com recursos materiais e simbólicos
do país de origem e destino via os fluxos globais.

As relações, expectativas, oportunidades e limitações da migração contemporânea


se encontram entrelaçadas à rapidez, fluidez e liberdade dos fluxos globais. As
possibilidades transnacionais têm se popularizado independente da classe social e país
de origem e destino dos migrantes. Atualmente, o processo de migração de diferentes
populações não só indica um padrão migratório permanente, mas a existência de
um padrão transnacional para as vivências destes indivíduos. Quando os migrantes
se estabelecem e aceitam as demandas da nova sociedade, é provável que operem
transnacionalmente e seus discursos e práticas refletem ambos os mundos. O país de
origem e de destino.

A existência destas comunidades implica um marco transnacional em sua própria


construção, reprodução econômica-social e identitária. Este fenômeno é composto por
um crescente número de pessoas que vivem uma vida dupla, falam dois idiomas, têm
lugares em ambos os países (de origem e destino) e sua vida ocorre em um contato
contínuo e habitual através das fronteiras nacionais. As atividades dentro do campo
transnacional abarcam uma grande gama de iniciativas econômicas, políticas e sociais,
que vão desde negócios informais de importação e exportação ao surgimento de uma
classe de profissionais binacionais e até à participação dos migrantes em campanhas
políticas em seus países de origem (PORTES; GUARNIZO; LANDOLT, 2003).

O transnacionalismo vem para mostrar que o fenômeno da globalização atinge


tanto as grandes potências quanto as ditas periferias mundiais. Também revela o que
a autora Massey (2008) propõe sobre a globalização, não sendo nunca uma única
narrativa, mas muitas que apresentam sua própria trajetória histórica, portanto, com o
estabelecimento contínuo destas populações migrantes provenientes principalmente
de países com menos visibilidade mundial para seu posterior estabelecimento em
grandes potências. A manutenção de fluxos variados destes migrantes entre o país

106 Globalização e identidade cultural


U3

de origem e o de destino nos abre os olhos para a efetivação da experiência da


globalização por todos, cada qual à sua maneira.

Nas correntes da globalização, as comunidades migrantes transnacionais têm


pouco poder político se comparado com seu lugar na economia, que é um recurso
cada vez mais decisivo para suas nações de origem (LOZANO, 2003).

Geralmente, os imigrantes mantêm laços ativos com seu país de origem pelo
envio de remessas do retorno para as celebrações, visitas ou ainda pela ajuda a seus
compatriotas para migrar. De acordo com Glick-Schiller e Fouron (2003, p. 19), “[...]
o transnacionalismo envolve os indivíduos, suas redes sociais, suas comunidades e
estruturas institucionais mais amplas [...]”. Logo, vivencia experiências sociais entre o
país de origem e de destino como exposto acima.

Diante disso, o transnacionalismo refere-se a “[...] ocupações e atividades que


requerem contatos sociais habituais e sustentáveis através das fronteiras nacionais
para sua execução” (GLICK-SCHILLER; FOURON, 2003, p. 18, tradução nossa).

Assim, tem-se que “o âmbito transnacional proporciona aos migrantes


transnacionais, no mínimo, oportunidades e perspectivas que constituem opções
para comprometer-se exclusivamente com a nova ou a velha sociedade" (ROBERTS;
FRANK; LOZANO-ASCENCIO, 2003, p. 46, tradução nossa).

A migração transnacional define um padrão migratório no qual as


pessoas, ainda que se mobilizem através das fronteiras internacionais,
se estabelecem e forjam relações sociais em um novo estado, ao
mesmo tempo que mantêm vínculos sociais dentro do sistema de onde
procedem. Na migração transnacional, as pessoas vivem literalmente
suas vidas através das fronteiras internacionais. Essas pessoas se
identificam melhor como ‘transmigrantes’, é dizer que emigram e,
todavia mantêm ou estabelecem relações familiares, econômicas,
religiosas, políticas e sociais no estado de procedência, ainda que forjem
também estas relações no novo estado onde se estabelecem (GLICK-
SCHILLER; FOURON, 2003, p. 199, tradução nossa).

Portanto, de acordo com Portes, Guarnizo e Landolt (2003), a intensidade das


conexões, as novas formas de transação e a multiplicidade de atividades que transpassam
as fronteiras nacionais requerem este movimento geográfico para seu êxito.

Primeiramente, é preciso entender que o transnacionalismo contemporâneo


corresponde a um período diferente de propagação de fluxos mundiais e a um conjunto
distinto de respostas e estratégias de atores populares que se encontram em posição de
desvantagem em relação ao sistema econômico capitalista, mas que se beneficiam dos
novos meios técnicos para superá-la (PORTES; GUARNIZO; LANDOLT, 2003).

Globalização e identidade cultural 107


U3

O sistema transnacional está baseado em inter-relações de oportunidades tanto


no país de origem quanto no país de destino. Dependendo da inserção econômica
no país de destino das comunidades transnacionais, podem ter amplas maneiras tanto
na natureza quanto no poder de seus fluxos transnacionais. Em seus espaços de ação
se fundamenta a comunicação entre ambos os países, com uma fronteira flexível e
permeável, conexões através de distintos meios de transporte e telecomunicações
(ROBERTS; FRANK; LOZANO-ASCENCIO, 2003).

Assim, o âmbito transnacional proporciona aos migrantes, no mínimo,


oportunidades e perspectivas que constituem opções para comprometer-se
exclusivamente com a nova e velha sociedade. Mesmo os que se estabelecem no
país de destino, continuam mantendo laços ativos com os países de origem por meio
do envio de remessas, do retorno para celebrações e de ajuda a seus compatriotas
para migrar (ROBERTS; FRANK; LOZANO-ASCENCIO, 2003).

As comunidades migrantes transnacionais são grupos de migrantes que participam


de forma rotineira em um âmbito de relações, práticas e normas que abarcam tanto o
local de origem quanto o de destino. O processo de migração transnacional evidencia
a importância contínua que têm para os migrantes as estruturas sociais, culturais,
econômicas e políticas do país de origem e destino.

Portanto, as restrições e as oportunidades em ambos os locais, tanto no país


de origem quanto no de destino, sustentam este tipo de comunidade migrante
transnacional. As relações comunitárias constituem a base das comunidades e
permitem as atividades econômicas, relações sociais e práticas (ROBERTS; FRANK;
LOZANO-ASCENCIO, 2003).

Paralelamente, com as exigências do capital internacional, desenvolvem-se


maiores facilidades para viajar e se ampliaram as tecnologias das comunicações,
como o telefone, o fax, o correio eletrônico, tudo isso tem permitido que os migrantes
internacionais mantenham seus vínculos intensos e habituais através das fronteiras
nacionais (POPKIN, 2003).

A mobilidade física dos migrantes transnacionais entre dois Estados-nação é uma


condição necessária para o estabelecimento do transnacionalismo. Muitos autores
acreditam que os migrantes optem por vínculos transnacionais para sustentar uma
identidade do país de origem ou uma identidade híbrida (composta pelo contato com
diferentes atributos materiais e culturais) para evitar marcas de estigmatização racial/
étnica da sociedade receptora (país de destino) (POPKIN, 2003).

Outros autores consideram que o restabelecimento e o fortalecimento das


nacionalidades étnicas do país de origem dos migrantes se dá de forma mais intensa
nas sociedades receptoras pelo fato da supressão de parte dos recursos (materiais
e simbólicos) que sustentam essa identidade. Para outras comunidades migrantes
surgem novas formas de identidade em resposta às condições da sociedade receptora.

108 Globalização e identidade cultural


U3

E há ainda as comunidades de migrantes transnacionais que reafirmam e fortalecem


as formas de etnicidade existentes, enquanto paralelamente expressam uma nova
identidade que revela a influência dos vínculos transnacionais tanto com o país de
origem quanto com o de destino.

Dependendo das condições que enfrentam na sociedade receptora, estes


migrantes tomam emprestado e reinventam elementos tradicionais do país de origem
em um processo influenciado pela interação contínua.

À medida que se entrelaçam permanentemente com a migração internacional,


constroem novas identidades que refletem contextos religiosos e culturais
transnacionais. Na vida diária, estes transmigrantes podem adotar muitas identidades,
sobrepondo-as sem que elas sejam contraditórias.

Os esforços para construir uma identidade estão condicionados também em parte


ao processo de adaptação a uma comunidade de indivíduos conterrâneos que estão
inseridos num ambiente externo em que as minorias são discriminadas e excluídas de
certas participações.

Muitos superam as distâncias, assim com as adversidades econômicas e legais, para


forjar uma variedade de relações e compromissos transnacionais com seus países de
origem.

Diante do que descrevemos na segunda seção, em relação à concepção de


identidade e, agora associando-a à questão da migração, podemos reforçar a ideia
de que a identidade não é nunca um processo acabado, estável e imutável, mas
sim um processo aberto, em constante transformação/construção, conforme as
práticas sociais, as relações e o contexto de inserção dos indivíduos. No caso dos
migrantes transnacionais que convivem num mesmo período com duas sociedades
respectivamente, a do país de origem e de destino, sua identidade refletirá esse
condicionamento, seja adotando uma identidade que recrie e reinvente tradições
do país de origem pelo contexto discriminatório vivenciado na sociedade receptora,
seja adotando uma nova identidade que inclua atributos culturais de ambos os países.
Contudo, o que se observará é que a construção da identidade destes migrantes está
condicionada a essa inter-relação simultânea com outras trajetórias.

O que vivenciamos e experienciamos ao longo da vida reflete na construção


e estabelecimento de nossas identidades. Se num determinado momento estes
migrantes se encontram vinculados a duas realidades distintas, isso se projetará na
sua identidade. Nunca se poderá manter a identidade intocada, pois as coisas que
vivenciamos nos recriam e assim também a identidade.

O fenômeno do transnacionalismo sustenta, ademais, que os limites entre


a sociedade emissora e a receptora se corroem à medida que os migrantes se
comprometem simultaneamente tanto com o país de origem como com o de destino.

Globalização e identidade cultural 109


U3

De fato, a circulação de bens, pessoas e informações de um lado a outro dos lugares


de emissão e recepção conduzem ao surgimento de um espaço social transnacional
localizado entre as fronteiras internacionais, sem que tenha uma posição fixa aqui
ou ali, sendo um espaço social aberto em permanente construção, de conexões e
desconexões sempre prontas a se tornar interações (LANDOLT; AUTLER; BAIRES,
2003).

Acima, você pôde constatar como o fenômeno da globalização através dos seus
fluxos possibilita essa conexão intensa e habitual entre ambos os países. O fato de
que os novos migrantes (transmigrantes) utilizem seus escassos recursos para manter
vínculos com familiares e amigos de seu país de origem indica a força do processo de
globalização.

Alguns migrantes destas comunidades transnacionais se envolvem em intercâmbios


comerciais, para outros são parte de seus vínculos políticos, embora para alguns a
única experiência no espaço transnacional se dá pelos atributos simbólicos, como
parte de seu espaço de referências significativas.

O fenômeno do transnacionalismo mostra que essas comunidades de migrantes


que se estabelecem em países externos, por um longo período ou permanentemente,
ainda assim não se desligam de seu país de origem, contraditoriamente, mantêm e
alimentam seus vínculos com esse país. Os processos da globalização que expandem
a tecnologia das comunicações e do transporte têm permitido a intensificação e a
imediatez destes vínculos.

Essa ligação transnacional rompendo qualquer limite fronteiriço para a participação


política, de mobilidade social e de formação de entidades organizadas, revela que as
experiências, práticas, relações e identidades dos migrantes não se produz dentro das
fronteiras nacionais, mas através delas.

Portanto, o transnacionalismo é um produto das condições atuais da globalização


e do tipo de relações que esta gera por meio de seus fluxos. O espaço social
transnacional se constrói na vida diária dos migrantes e nas atividades que afetam
todos os aspectos de suas vidas, desde oportunidades econômicas, comportamentos
políticos, até suas identidades individuais ou coletivas (DORE et al., 2003).

Um exemplo disso é o migrante haitiano apontado diversas vezes no texto acima,


que chegou a São Paulo em 2013. Este pode ser considerado um transmigrante,
pois mantém vínculos permanentes com seu país de origem através de cotidianas
ligações e mensagens telefônicas, e-mails, redes sociais virtuais, remessa de dinheiro
aos familiares, ajuda na migração de amigos e familiares, manutenção de negociações
comerciais, além de estar inserido em nossa sociedade brasileira, realização de curso
universitário, compra de terreno, participação em instituições religiosas, conclusão de
processo de habilitação veicular, execução de atividades trabalhistas, entre outros.

110 Globalização e identidade cultural


U3

Diante disso, o transnacionalismo cultural se refere a diversas práticas e instituições


que tomam parte da formação de significações, identidades e valores. Estes são
os processos que definem a mudança dos discursos sobre possuir determinada
nacionalidade no país de origem e no estrangeiro.

Esses fluxos, por seu alcance e impacto, podem ser considerados globais. Em
contraste, certos movimentos de pessoas, ideias e objetos podem ser melhor
concebidos como transnacionais pelos fluxos globais. Os processos transnacionais
contemporâneos refletem a globalização, no entanto, têm um alcance mais limitado,
apenas entre dois países, ou um número limitado deles.

Os fluxos globais permitem aos migrantes, dentre outras coisas, manterem-se


informados e em contato permanente com o que acontece em seu país de origem. Por
sua vez, esse contato ininterrupto contribui para o fortalecimento da identidade, assim
como o sentimento de fazer parte da imaginada comunidade nacional. Portanto, não
é um processo de homogeneização, mas o compartilhamento de muitos aspectos, a
absorção de alguns e a manutenção de outros. É por esse comportamento distinto das
populações que nunca irá se concretizar um processo completo de homogeneização,
pois cada qual possui suas espacialidades e temporalidades frente às experiências,
práticas e relações. De modo algum, vivencia-se as coisas de maneira igual.

Em muitos casos, os migrantes transnacionais no estrangeiro participam e


influenciam mais intensamente no país de origem do que se estivesse presente
fisicamente naquele espaço. Participam de compromissos políticos do país de origem
por meio de meios de comunicação, defendem-nos em seus discursos com outros
indivíduos, participam de atividades organizadas em prol do desenvolvimento daquele,
em campanhas políticas, tomando decisões sobre gastos e consumo, crianças,
empregos e relações interpessoais dentro de uma rede de familiares e amigos.

Diante dessa realidade e da importância que estes indivíduos têm dentro de sua
nação, muitos governos reconhecem sua própria condição de transnacional. Um
exemplo disso é o Haiti, que está se convertendo num país de migrantes que fornece
recursos economicamente e politicamente para grande parte da população nacional.
Dessa forma, tanto a nação como o Estado são percebidos como transnacionais,
como uma extensão mais além das fronteiras territoriais do país.

Ao fazer isso, os governos destas comunidades migrantes estão desafiando a


opinião generalizada de que a população de um Estado reside dentro de seus limites
territoriais e que um Estado representa a população de uma nação que compartilha
idioma, cultura, identidade nacional, assim como residência dentro de um território
comum. As populações começam a identificar-se com uma terra nativa transnacional
e com os projetos políticos para ambas as populações. Assim, edifica-se um Estado-
nação transnacional global muito mais ligado aos laços e à descendência do que à
presença física no país (GLICK-SCHILLER; FOURON, 2003).

Globalização e identidade cultural 111


U3

É preciso atentar-se ainda para dois significados do termo Estado-nação. Num


sentido tradicional, relaciona-se a um território sobre o qual o povo (nação) tem
poder soberano, escolhe seu governo e decide viver sob determinada Constituição
e leis. Outra concepção é a de um território que pertence a um povo específico,
com características étnicas, linguísticas e culturais que constituem a nação. As outras
minorias não fazem parte do Estado, apesar de viverem no mesmo local, portanto, é
possível vislumbrar atualmente Estados multinacionais, compostos por mais de uma
nação (HOBSBWAM, 2009).

No caso do Haiti existem duas nações, a elite branca, e os afrodescendentes,


descendentes de populações africanas escravizadas, que sustentam as correntes
migratórias das comunidades transnacionais. A interação permanente da nação
afrodescendente mostra a formação de uma identidade transnacional através da qual
pessoas se consideram a si mesmas como parte do país de origem, mesmo que já
estejam incorporadas no país de destino para qual migraram e utilizem também dos
referenciais materiais e simbólicos deste. Essa identificação adquire forma através
de ações e fluxos que marcam um compromisso com a sobrevivência cotidiana, a
prosperidade, a independência e a reputação do país de origem.

Por exemplo, a concepção do Haiti como um Estado-nação que existe onde haja
haitianos fundamenta-se na forte crença desta população nos laços sociais que unem
a família e a nação. Mesmo antes dos governantes reconhecerem estes migrantes
haitianos que vivem no estrangeiro como parte integrante do país, a própria população
interna do país, especialmente a com menos recursos que se sustentava com os fluxos
enviados por seus familiares migrantes, passaram a solicitar tal reconhecimento.

Parte dos migrantes que não conseguem efetuar, e parte dos que efetuam sua
inserção total no país de destino, atualmente, demandam uma participação contínua
na nação de origem. O vínculo de sangue (no sentido de pertencimento à mesma
terra) e a descendência possibilitam a interação. O mesmo acontece com os indivíduos
que permanecem no país de origem e necessitam da manutenção do vínculo com
os migrantes, estes constroem uma identidade que se amplia pelos laços de sangue
como indivíduos transnacionais, pela consolidação de uma nação transnacional.

Os laços de sangue lhes proporcionam uma ponte que lhes conecta com um
espaço de maiores oportunidades, assim, inclui-se qualquer pessoa descendente,
independe do local que tenha nascido ou está estabelecida. Uma nação se estende
transnacionalmente pelas experiências pessoais e as estratégias familiares de
sobrevivência de sua população em circunstâncias econômicas, políticas, educacionais
difíceis etc., de modo que floresce uma identidade nacional no estrangeiro.

Tal realidade de intercâmbio de informações, dinheiro, bens e serviços, além


da união pelo entrelaçamento de redes sociais (laços de solidariedade, amizade,
vizinhança, parental) legitima a ideia de identidade nacional pela família, sangue

112 Globalização e identidade cultural


U3

e nação numa revitalização do Estado-nação. Isso faz com que os governantes se


apoderem dessa situação (assumem uma retórica pelas obrigações dos migrantes
com os antepassados, com a família e a terra nativa através de mensagens pelas vias
modernas de comunicação) para reestruturar-se e beneficiar-se com a recuperação
dessa população migrante vislumbrada na migração a outros países.

Os valores que unem a família e a nação podem legitimar as estratégias migratórias


que atravessam as fronteiras nacionais e reforçam suas identidades. Assim como os
que permanecem no país de origem creem que a solução e o desenvolvimento de
seu país estão nesta população que migrou em busca de novas oportunidades para
todos, isso acaba por fortalecer o sentimento de nação, portanto, viver fora do país de
origem não significa não ser parte dele.

Entende-se que o transnacionalismo se estabelece por processos moldados,


com múltiplas facetas e localizações, incluindo práticas econômicas, socioculturais
e políticas, além dos discursos que transcendem os limites da jurisdição territorial do
Estado-nação e são parte inerente da vida dos migrantes. Essas relações, estabelecidas
por protagonistas sociais individuais ou coletivos, envolvem o intercâmbio de um
turbilhão de recursos materiais e simbólicos. Incluem pessoas que reemigram, que
visitam seu país de origem com regularidade ou não, que obtêm recursos monetários,
enviam remessas familiares, ajuda comunitária, ideias, símbolos culturais, apoio político
e oposição (GUARNIZO; SANCHEZ; ROACH, 2003).

Essas comunidades de migrantes transnacionais têm mantido seus laços


criando uma complexa rede de relações multidirecionais, conforme o contexto de
estabelecimento.

A criação de uma comunidade transnacional que une grupos de


migrantes em países avançados com suas respectivas nações de
destino e origem me permite questionar a você, aluno: essa conexão
reforça uma identidade nacional no estrangeiro ou apenas possibilita
que desfrute de outros recursos materiais e simbólicos?

1. Quais são os aspectos para que se estabeleça o fenômeno do


transnacionalismo?

Globalização e identidade cultural 113


U3

2. De que forma a identidade e a globalização se entrelaçam ao


transnacionalismo?

3. Como as comunidades migrantes transnacionais se vinculam


aos países de origem e destino?

4. Das alternativas a seguir, qual não corresponde aos principais


fluxos que conectam o migrante transnacional entre país de
origem e destino?
a) Discursos que transcendem os limites da jurisdição territorial
do Estado-nação e a participação dos migrantes em campanhas
políticas em seus países de origem.
b) Tomar decisões sobre gastos e consumo, crianças, empregos e
relações interpessoais dentro de uma rede de familiares e amigos.
c) Iniciativas econômicas que vão desde negócios informais
de importação e exportação, ao surgimento de uma classe de
profissionais binacionais.
d) Viagens cotidianas ou semanais para estar presente e participar
ativamente das práticas e atividades em ambos os países.

• A globalização não é um processo universal que atua da mesma


forma em todos os campos da atividade humana.

• A globalização implica um acesso mais amplo, mas não


totalmente interconectado e igualitário para todos.

• Deve ser descentralizada da dimensão econômica, pois apesar


de criar uma integração estreita entre economias e mercados, não
torna invisível a heterogeneidade humana e cultural.

• Representa tanto as ausências de longa duração, quanto a


produção sistemática de novas desconexões.

• Reivindica-se a superação da visão de um protagonismo

114 Globalização e identidade cultural


U3

exclusivo dos europeus, redirecionando o olhar para os diferentes


povos e lugares como constitutivos do mundo.

• A globalização não é um movimento único que tudo abarca (espaço


livre e sem limites), mas uma criação de espaços, uma reconfiguração
ativa e encontro através de práticas e relações de uma enorme
quantidade de trajetórias.

• O movimento e a mudança de práticas e interações que se efetivam


na experiência humana ao inserir-se em um novo contexto social,
cultural etc., contribuem para a edificação da sua identidade.

• A identidade é múltipla, inacabada, instável, sempre experimentada


mais como uma busca do que como um fato.

• Ela é a fonte de significado e experiência de uma pessoa ou de um


povo, por isso seu o caráter é profundamente construído, processual
e situacional da identidade.

• O processo de construção de qualquer identidade não é nunca


completo, mas tido como algo sempre “em andamento”, pois não
pode ser completamente determinado, devido que se pode, sempre,
“ganhá-la” ou “perdê-la”.

• A globalização densifica as interconexões, as práticas, os contextos,


que são os permanentes construtores das identidades.

• O transnacionalismo é um fenômeno da migração internacional


que demanda interação habitual tanto com a sociedade receptora,
quanto com a sociedade emissora, de modo que os fluxos da
globalização a estruture e que a identidade se construa refletindo
ambos os contextos de inserção.

• A existência das comunidades migrantes transnacionais diante


do processo de globalização revela a construção de identidades
nacionais fora dos limites territoriais do Estado-nação.

• O estabelecimento das comunidades migrantes transnacionais,


com sua particularidade de atuação em um espaço social aberto,
instável, transcendendo os limites das fronteiras nacionais traz à tona
a amplitude da concepção de globalização, deslocando a centralidade
e exclusividade da área econômica, para revelar sua edificação na
diferenciação espacial e no movimento transnacional dos indivíduos
protagonistas.

Globalização e identidade cultural 115


U3

A compreensão da globalização e da identidade de forma


alternativa nos possibilita ampliar os horizontes para
duas questões tidas como já e para sempre constituídas.
Contraditoriamente ao que se está acostumado a pensar, e o
que é midiaticamente divulgado, ambos estão em processo
constante de construção.
A globalização não chegou à dita homogeneização global, tão
pouco conseguiu integrar todas as partes do mundo ou ser
visualizada através da única narrativa, ou seja, a Europa como
a protagonista mundial de um presente absoluto. Atentou-se
para a existência simultânea de outras trajetórias, cada qual
vivendo os acontecimentos à sua própria maneira.
Com uma sociedade cada vez mais móvel, cujos indivíduos
mudam frequentemente de localização geográfica, tem-se o
movimento e mudança de práticas e interações na experiência
efetiva destes indivíduos. Com mais intensidade e repetidas
vezes, surge diante de nós a questão “Quem sou eu?”. A essência
da identidade é a resposta a esta questão, independentemente
de qual seja, esta não pode deixar de estar vinculada ao novo
contexto social, cultural etc., e aos vínculos estabelecidos com as
outras trajetórias.
A multidão de pequenas narrativas identitária que atualmente
se percebe ocupa o vazio deixado pelas “grandes narrativas” em
crise (missão cristã, destino das classes, projeção nacional). Elas
aparecem em construções híbridas, “bricoladas”, heterogêneas.
Enfim, são o resultado da iniciativa dos indivíduos, dos pequenos
grupos ou das redes que lutam pelas múltiplas significações
internas que reflete a multiplicidade externa das relações entre
indivíduos, ainda mais vislumbrada pela fluidez da globalização
(fluxos de informação, pessoas, atributos culturais) que densifica
as próprias interconexões que são parte da construção de
identidade.
O imaginário da globalização, homogeneizando e rompendo
com identidades isoladas, não reflete a realidade humana de
ter a experiência ligada à reconfiguração ativa de conexões,
desconexões e possíveis interações. O contato com o outro
permite a construção constante da identidade. Esta não é de
forma alguma um processo fechado, acabado, contrariamente,
está sempre em construção.

116 Globalização e identidade cultural


U3

1. A globalização, descentrada da dimensão econômica, refere-


se a:
a) Um processo universal que atua da mesma forma em todos
os campos da atividade humana e integra todos os espaços
mundiais.
b) Uma criação de espaços, uma reconfiguração ativa e encontro
através de práticas e relações de uma enorme quantidade de
trajetórias.
c) Uma única narrativa, um único polo ativo, a Europa, e outro
passivo, resto do mundo.
d) Um movimento único que compreende a mobilidade
totalmente desimpedida, de espaço livre, sem limites, com total
extinção das distâncias.

2. Quais das alternativas a seguir não corresponde ao processo


de construção de uma identidade?
a) O conjunto de papéis sociais que se pode desempenhar ao
longo da vida, como: esposa, mãe, dona de casa, advogada,
mecânico, professor, geógrafo, estudante, entre outros.
b) Não é, nunca, completamente determinada, devido que se
pode, sempre, “ganhá-la” ou “perdê-la”;
c) A identidade é realmente algo formado ao longo do tempo
através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na
consciência no momento do nascimento.
d) As identidades são construídas relacionalmente ao longo da
vida.

3. Leia o fragmento a seguir e indique a resposta que corresponde


ao fenômeno.
Surgimento de um espaço social transnacional, localizado
entre as fronteiras internacionais, sem que tenha uma posição
fixa aqui ou ali, sendo um espaço social aberto em permanente
construção, de conexões e desconexões sempre prontas a se
tornar interações.

Globalização e identidade cultural 117


U3

a) Globalização.
b) Sistema capitalista global.
c) Transnacionalismo.
d) Migração internacional.

4. Os estereótipos, estigmas e categorizações podem ser


pensados como:
a) Uma identidade coesa, firmemente fixada e solidamente
construída.
b) Um fardo, uma repressão, uma limitação da liberdade de
escolha.
c) Um presságio da incapacidade de destravar a porta quando a
nova oportunidade estiver batendo.
d) Nenhuma das respostas.

5. Aponte qual das alternativas a seguir revela que o


estabelecimento das comunidades migrantes transnacionais nos
permitem entender o processo de globalização na sua amplitude.
a) Com a estruturação das comunidades dos migrantes
transnacionais visualiza-se que as possibilidades de tais indivíduos
passarem a integrar a classe social central e deixarem de ter
conexão com o país de origem revela a popularização dos fluxos
globais.
b) A conexão dos migrantes transnacionais com o país de origem
(periférico) e o país de destino (central) evidencia as identidades
dos protagonistas periféricos até então consideradas fechadas
e escondidas numa particularidade que acompanha a trajetória
histórica da globalização.
c) Pelo crescente número de pessoas que se desvinculam de
uma vida dupla, falam dois idiomas, tem lugares em ambos os
países e adotam identidades homogeneizadas.
d) Nas correntes da globalização, as comunidades migrantes
transnacionais mostram que é exclusivamente o sistema
econômico mundial que permite o caráter de mobilidade da
globalização.

118 Globalização e identidade cultural


U3

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