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Editora CRV – Proibida a impressão e/ou comercialização

Leila da Costa Ferreira


Fabiana Barbi Seleguim
(Organizadoras)
Editora CRV – Proibida a impressão e/ou comercialização

A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança


multinível e multiatores no contexto brasileiro

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2023
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Imagem de Capa: Unsplash
Revisão: Os Autores

Este livro contou com o apoio da Fapesp processo 2022/10220-7 e do programa de


Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Editora CRV – Proibida a impressão e/ou comercialização

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


CATALOGAÇÃO NA FONTE
Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

EM53

A emergência climática: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro / Leila


da Costa Ferreira, Fabiana Barbi Seleguim (organizadoras) – Curitiba : CRV, 2023.
198 p.

Bibliografia
ISBN Digital 978-65-251-4141-1
ISBN Físico 978-65-251-4144-2
DOI 10.24824/978652514144.2

1. Ciências sociais 2. Clima 3. Meio ambiente 4. Gestão – meio ambiente 5. Governança


I. Ferreira, Leila da Costa. org. II. Seleguim, Fabiana Barbi. org. III. Título IV. Série.

2023 CDD 304.250981


CDU 37
Índice para catálogo sistemático
1. Emergência Climática – 304.250981

2023
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 – E-mail: sac@editoracrv.com.br
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Três de Febrero – Argentina) (Universitat de Barcelona, UB, Espanha)
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de La Havana – Cuba) Ricardo Ferreira Freitas (UERJ)
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Lourdes Helena da Silva (UFV)
Luciano Rodrigues Costa (UFV)
Marcelo Paixão (UFRJ e UTexas – US)
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Renato Francisco dos Santos Paula (UFG)
Rodrigo Pratte-Santos (UFES)
Sérgio Nunes de Jesus (IFRO)
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Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA)
Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO�������������������������������������������������������������������������������������������� 9
Leila da Costa Ferreira
Fabiana Barbi Seleguim

CAPÍTULO 1
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UM PASSO A FRENTE, DOIS ATRÁS: a importância da


questão ambiental para a mudança social e o futuro do Brasil����������������������� 11
Leila da Costa Ferreira
Fabiana Barbi Seleguim

CAPÍTULO 2
SOLUÇÕES BASEADAS NA NATUREZA NA GOVERNANÇA
CLIMÁTICA: os casos de Campinas e Santos – SP�������������������������������������� 25
Fabiana Barbi Seleguim
Marcelo Soeira
Niklas Weins
Jaqueline Nichi
Eduardo Prado Gutiérrez

CAPÍTULO 3
GÊNERO NA GOVERNANÇA CLIMÁTICA:
um olhar sobre o projeto “Pira no Clima”�������������������������������������������������������� 43
Lígia Amoroso Galbiati

CAPÍTULO 4
MUDANÇAS CLIMÁTICAS GLOBAIS E REPRESENTAÇÕES
LOCAIS: desigualdades de Acesso e Representação na imprensa
de Santos (SP)������������������������������������������������������������������������������������������������ 71
Eduardo Prado Gutiérrez

CAPÍTULO 5
MUDANÇAS CLIMÁTICAS E GOVERNOS LOCAIS:
o papel da governança multinível e multiatores para um
transporte urbano de baixo carbono��������������������������������������������������������������� 95
Jaqueline Nichi

CAPÍTULO 6
METAMORFOSE DO MUNDO E NOVOS MODELOS DE
NEGÓCIOS DIANTE DA EMERGÊNCIA CLIMÁTICA:
experiências locais no Estado de São Paulo������������������������������������������������ 109
Felipe Barbosa Bertuluci
CAPÍTULO 7
METAMORFOSE DO CAMPO: um estudo de caso
sobre três assentamentos do Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra no estado de São Paulo�������������������������������������� 131
José Caio Quadrado Alves
Guilherme Augusto Lemos Fest

CAPÍTULO 8
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FORMAS-DE-VIVER VERNACULARES: por uma celebração


dos limites socioecológicos a partir de uma perspectiva illichiana���������������� 155
Neto Leão

CAPÍTULO 9
A METAMORFOSE DOS RISCOS CLIMÁTICOS GLOBAIS
NO CONTEXTO BRASILEIRO: entre uma agenda de “Cidades Unidas”
Cosmopolitas e um Estado-Nação Negacionista������������������������������������������ 179
Niklas Werner Weins

ÍNDICE REMISSIVO����������������������������������������������������������������������������������� 193

SOBRE OS AUTORES�������������������������������������������������������������������������������� 195


APRESENTAÇÃO
Leila da Costa Ferreira
Fabiana Barbi Seleguim

Este livro é mais um produto de um projeto de pesquisa financiado pela


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FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e vincu-


lado ao Laboratório LABGEC – Laboratory of Social Dimensions of Global
Environmental Changes in the Global South, do Núcleo de Estudos e Pesquisas
Ambientais da Unicamp1.
O mundo está diante de uma situação de emergência climática planetá-
ria, isto é, uma situação em que é necessária uma ação urgente para reduzir
ou deter as mudanças climáticas e evitar danos potencialmente irreversíveis
delas decorrentes.
Voltamos nosso olhar ao Brasil frente à difícil situação que o nosso país
tem vivido nos últimos anos.
Sendo as atividades humanas as maiores responsáveis pelo agravamento
das mudanças climáticas, a compreensão acerca das dimensões sociais e polí-
ticas dessas mudanças é fundamental para empreender estratégias de enfren-
tamento dos seus impactos.
A questão sociológica e analítica que se coloca é: o que a mudança
climática faz por nós e como ela altera a ordem da sociedade e a política?
Utilizamos de várias metodologias e dimensões teóricas para elucidar
essa questão, como a metamorfose cosmopolita da mudança climática ou do
risco global em geral, pautada por Beck (2016).
Ao abordar um desafio tão multifacetado e complexo como a mudança
climática, espera-se também que as soluções sejam abrangentes, incluindo
diversas escalas e níveis de atuação, diversas áreas da atividade humana,
várias partes interessadas e setores da sociedade.
Os riscos climáticos são fruto de processos multiescalares, são pro-
blemas que surgem a partir da organização e estrutura da sociedade, refle-
tindo as opções de como as sociedades se organizam e de suas escolhas
de desenvolvimento.
As mudanças climáticas apresentam-se, dessa forma, como um desafio
multescalar, relacionando-se simultaneamente às escalas local e global. Em
termos de governança, isso se reflete num desafio multinível. Os governos
nacionais são, de fato, atores relevantes para conduzir o enfrentamento das
mudanças climáticas, em se tratando de estratégias de mitigação e adaptação.

1 Processo Fapesp 2022/10220-7.


10

Porém, os níveis subnacionais têm liderado respostas contundentes aos desa-


fios das mudanças climáticas em todo o mundo, principalmente as cidades.
Ademais, em se tratando de um desafio antropocênico, caracterizado pela
sua multidimensionalidade e sua natureza complexa, seria ingênuo acreditar
que apenas um grupo de atores seria capaz de resolver a crise climática. O
envolvimento de atores governamentais e não governamentais, de organiza-
ções da sociedade civil, da iniciativa privada, das universidades e instituições
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de pesquisa é imprescindível para a produção de respostas ao problema.


O presente livro conta com 9 capítulos que trazem contribuições para
o entendimento da governança climática no Brasil a partir da perspectiva
multínivel e multiatores.
O primeiro capítulo aborda a problemática das mudanças climá-
ticas nos níveis nacional, regional e local vinculando essa questão ao
debate internacional.
O segundo capítulo analisa estratégias climáticas locais nas áreas urbanas
e o papel das Soluções baseadas na Natureza em dois municípios paulistas,
Santos e Campinas.
No terceiro capítulo, analisa-se a questão de gênero envolvendo a gover-
nança climática a partir do caso de Piracicaba-SP.
O quarto capítulo traz o tema das mudanças climáticas globais e a repre-
sentação local na imprensa, com o caso de Santos-SP.
O quinto capítulo aborda a temática dos transportes urbanos de baixo
carbono na cidade de São Paulo, com enfoque multinível e multiatores.
O sexto capítulo explora os novos modelos de negócios diante da emer-
gência climática a partir de experiências locais no estado de São Paulo.
O sétimo capítulo analisa a metamorfose do campo a partir de três assen-
tamentos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra no estado de São Paulo.
O oitavo capítulo traz uma reflexão sobre os limites socioecológicos a
partir da perspectiva de Illich.
Por fim, o nono capítulo sintetiza o debate sobre as mudanças climáticas
no contexto brasileiro a partir da agenda de “cidades unidas” cosmopolitas e
um Estado-Nação negacionista.
Exploramos, assim, os caminhos possíveis de enfrentamento das emer-
gências climáticas que têm surgido no contexto brasileiro bem como as lacunas
a serem preechidas nesse processo.
Importante salientar que as opiniões e discussões no livro são responsa-
bilidade dos autores e não da FAPESP.
Boa leitura!
CAPÍTULO 1
UM PASSO A FRENTE, DOIS ATRÁS:
a importância da questão ambiental para
a mudança social e o futuro do Brasil
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Leila da Costa Ferreira


Fabiana Barbi Seleguim

Emergência climática e Metamorfose: a realidade brasileira

A última comunicação do IPCC (2021) reforçou que as mudanças recen-


tes no clima são generalizadas, rápidas, intensificadas e sem precedentes em
pelo menos 6.500 anos. A mudança climática já está afetando todas as regiões
da Terra, de muitas maneiras e é indiscutível que as atividades humanas estão
causando tais mudanças.
A questão sociológica e analítica que se coloca é: O que a mudança
climática faz por nós e como ela altera a ordem da sociedade e a política?
Segundo Beck (2018), a literatura sobre mudanças climáticas tornou-se
um “supermercado para cenários apocalípticos”. O autor argumenta que em
vez disso, o foco deve estar no que está surgindo agora – estruturas e normas
futuras e novos começos. Sua tese centra-se na ideia de metamorfose, isto é,
sobre uma nova maneira de gerar e implementar normas na era das mudan-
ças climáticas. Ainda, ele afirma que a mudança climática produz um senso
básico de violação ética e existencial que cria novas normas, leis, mercados,
tecnologias, entendimentos da nação e do estado, formas urbanas e coopera-
ções internacionais.
Segundo Beck (2018), a metamorfose cosmopolita da mudança climática
(ou do risco global em geral) diz respeito à coprodução de percepções de risco
e horizontes normativos.
Ou seja, vivendo na modernidade suicida, pautada pelo capitalismo, a
caixa preta das questões políticas tradicionais se reabre. Isso induz a neces-
sidade de superar o neoliberalismo e praticar novas formas de responsabili-
dade transnacional.
No caso da mudança climática como metamorfose, há uma aglutinação
entre natureza, sociedade e política.
12

Abordando um desafio tão multifacetado como a mudança climática,


espera-se também que as soluções sejam abrangentes, incluindo diversas
áreas da atividade humana e várias partes interessadas e setores da socie-
dade, por exemplo: agências multilaterais, governos, setor privado, institutos
de pesquisa e grupos da sociedade civil organizada. Desta forma, poderiam
elucidar-se os fatos que geram os riscos da mudança climática e encontrar as
possíveis condições para seu confronto (FERREIRA, 2020). Há vários atores
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importantes nesse processo e, dentre eles, as cidades mundiais estão surgindo


como atores cosmopolitas.
Sendo as atividades humanas as maiores responsáveis pelo agravamento
das mudanças ambientais globais, sobretudo das mudanças climáticas, a com-
preensão acerca das dimensões sociais e políticas dessas mudanças é funda-
mental para empreender estratégias de enfrentamento dos impactos decorrentes
delas (DUNLAP; BRULLE, 2015).
Os riscos são fruto de processos multiescalares, são problemas que sur-
gem a partir da organização e estrutura da sociedade, refletindo as opções de
como as sociedades se organizam e de suas escolhas de desenvolvimento.
As mudanças climáticas apresentam-se, dessa forma, como um desafio
multiescalar, relacionando-se simultaneamente às escalas local e global. Os
governos nacionais são, de fato, atores relevantes para conduzir o enfrenta-
mento das mudanças climáticas, em se tratando de estratégias de mitigação e
adaptação. Porém, os níveis subnacionais têm liderado respostas contundentes
aos desafios das mudanças climáticas em todo o mundo, principalmente as
cidades (BETSILL; BULKELEY, 2007).
Ademais, em se tratando de um desafio antropocênico, caracterizado pela
sua multidimensionalidade e sua natureza complexa, seria ingênuo acreditar
que apenas um grupo de atores seria capaz de resolver a crise climática.
O envolvimento de atores não governamentais, de organizações da socie-
dade civil, da iniciativa privada, das universidades e instituições de pesquisa
é imprescindível para a produção de respostas eficientes e bem-sucedidas
ao problema.
Em primeiro lugar, é importante compreender quais são os “players”
principais nesse processo. O Brasil é um ator importante, por se configurar
entre os 10 principais emissores cumulativos de gases de efeito estufa (GEE),
como mostra o Gráfico 1.
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 13

Gráfico 1 – Países com maiores emissões de GEE cumulativas (1850-2021)


Fossil Land
United States
China
Russia
Brazil
Indonesia
Germany
India
United Kingdom
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Japan
Canada
Ukraine
France
Australia
Argen�na
Mexico
South Africa
Poland
Thailand
Italy
Iran
-50 0 50 100 150 200 250 300 350 400 450 500 550

Fonte disponível em: https://www.carbonbrief.org/analysis-which-countries-are-


historically-responsible-for-climate-change/. Acesso em: 22 jun. 2022.

Outro ponto relevante são as emissões GEE brasileiras por setores e,


como podemos ver no Gráfico 2, a questão do uso e ocupação da terra, energia
e agricultura são setores emblemáticos.

Gráfico 2 – Emissões brasileiras por setor (2011-2019)


Mudança no uso da terra Energia Indústrias Resíduos sólidos Agricultura

2.500.000.000

2.000.000.000

1.500.000.000

1.000.000.000

500.000.000

0
2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019
Ano

Fonte: INPE, 2021.


14

Assim, as emissões de GEE no Brasil estão amplamente ligadas às


mudanças no uso da terra e nas práticas de gestão da terra (SEEG, 2018).
Em 2018, o uso da terra e a mudança da cobertura da terra contribuíram com
44% do total de emissões do país, seguidos pela agricultura, que respondeu
por 25%. O desmatamento tem sido a principal fonte de emissões do uso da
terra, representando 93% do total do setor no período de 1990 a 2018.
Em termos de vulnerabilidade às mudanças climáticas, o Brasil ocupa
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o 92º lugar entre 181 países no Índice ND-GAIN 20202. Prevê-se que as
temperaturas extremas, o aumento do nível do mar, bem como os desafios
complexos de diferentes regiões em todo o país que enfrentam escassez signi-
ficativa de água e chuvas fortes, coloquem pressão significativa sobre grupos
vulneráveis, infraestrutura urbana, economia e ecossistemas únicos do país
(WORLD BANK, 2021).
Nesse cenário, o presente capítulo analisa as políticas brasileiras de
mudanças climáticas numa perspectiva multinível e multiatores, buscando
compreender os papeis tanto no nível nacional como no nível local, bem como
o envolvimento dos diversos atores nesse processo.

Dimensão local das mudanças climáticas no Brasil

Segundo o Relatório do Fórum Econômico Mundial (2022), quase metade


(44%) do PIB global proveniente das cidades está sob risco devido às perdas
da natureza e da biodiversidade. O relatório mostra que as falhas na ação
climática podem prejudicar a economia dos municípios ao redor do mundo.
O estudo explica que a biodiversidade contribui positivamente para as ati-
vidades econômicas ao influir na qualidade do ar, nos ciclos da água e na
regulação das enchentes, além de sustentar a produção de energia, alimentos
e medicamentos.
No Brasil, 85% da população vive em áreas urbanas, correspondendo
a 185 milhões de pessoas, com um déficit urbano proveniente do processo
de urbanização, com problemas urbanos se intensificam com as mudanças
climáticas, como déficit de moradia, falta de saneamento básico, problemas
com abastecimento de água, entre outros (FERREIRA et al., 2020).
No entanto, as políticas climáticas locais brasileiras são iniciativas iso-
ladas no contexto nacional. Doze dos 5.570 municípios possuem lei especí-
fica que estabelece uma política climática, correspondendo a uma população
de mais de 30 milhões de pessoas (IBGE, 2010). Entre 2003 e 2011, seis

2 O Índice ND-GAIN11 classifica 181 países usando uma pontuação que calcula a vulnerabilidade de um
país às mudanças climáticas e outros desafios globais, bem como sua prontidão para melhorar a resiliência
(Universidade de Notre Dame, 2022).
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 15

municípios aprovaram suas leis de mudanças climáticas (Belo Horizonte,


Curitiba, Feira de Santana, Manaus, Palmas, Rio de Janeiro e São Paulo) e
cinco municípios (Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Santos e Sorocaba) apro-
varam após 2014, com maior atenção à adaptação. Nem todas as políticas
municipais têm estratégias claras de mitigação ou adaptação. Sete dos doze
municípios possuem estratégias de mitigação e seis deles possuem ações
de adaptação. Três municípios não definiram ações de mitigação nem de
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adaptação. A maioria das estratégias de mitigação inclui o estabelecimento


ou planejamento para estabelecer metas de redução de emissões de GEE.
Outras ações envolvem conservação de áreas verdes e eficiência energética.
As estratégias de adaptação envolvem principalmente os setores de defesa
civil e planejamento urbano.
As cidades litorâneas representam uma lacuna importante nas políticas
climáticas locais do Brasil. Elas são consideradas ainda mais vulneráveis ​​às
mudanças climáticas por sua especificidade geográfica, sua interface entre
continente, atmosfera e oceano, e por serem locais com alta concentração
de pessoas e estruturas – o que transforma esses eventos em desastres, uma
vez que pessoas e estruturas podem ser severamente afetadas. O Brasil tem
um litoral de quase 7.500 km de extensão, onde estão localizadas muitas e
algumas das mais importantes cidades do país e onde se concentra a maior
parte da população. Apenas cinco cidades litorâneas (Fortaleza, Recife, Rio
de Janeiro, Salvador e Santos) possuem estratégia de adaptação.
Em termos de mecanismos institucionais para implementação de políti-
cas, dez das doze cidades estabeleceram um Fórum ou Comitê do Clima, com
a participação de secretarias e órgãos municipais, universidades e institutos de
pesquisa, setor privado e organizações da sociedade civil. Um resumo dessas
políticas climáticas municipais é apresentado na Tabela 1.

Tabela 1 – Políticas de mudanças climáticas nos municípios brasileiros

Mecanismos
Política/Lei Estratégias de Estratégias de
Cidade/Estado Ano institucionais para
climática mitigação adaptação
implementação

Comitê Municipal
30% de redução Plano de
Belo Horizonte de Mudanças
Lei nº 10.175 2011 de emissões de adaptação em
(MG) Climáticas e
GEE até 2015 elaboração
Ecoeconomia (2006)
Plano de Fórum Curitiba
Plano de mitigação
Curitiba (PR) Decreto nº 1.186 2009 adaptação em de Mudanças
em elaboração
elaboração Climáticas (2009)

continua...
16
continuação

Mecanismos
Política/Lei Estratégias de Estratégias de
Cidade/Estado Ano institucionais para
climática mitigação adaptação
implementação

Fórum Municipal
Objetivo de reduzir as
Feira de de Mudanças
Lei nº 3.169 2011 emissões de GEE, mas A ser definida
Santana (BA) Climáticas Globais e
sem meta definida
Biodiversidade (2011)
Redução de 15,5% nas Plano de Fórum Fortaleza
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Fortaleza (CE) Lei nº 10.586 2017 emissões de GEE até adaptação em de Mudanças
2020 e 20% até 2030 elaboração Climáticas (2015)
Uso obrigatório
Uso obrigatório de de equipamentos
equipamentos voltados voltados ao
ao uso racional de uso racional de
Manaus (AM) Lei nº 254 2010 energia e água em energia e água Governo municipal
edificações e incentivos em edificações e
fiscais para práticas incentivos fiscais
sustentáveis para práticas
sustentáveis
Plano de conservação
Secretaria Municipal
Palmas (TO) Lei nº 1.182 2003 de áreas verdes e Não definido
de Meio Ambiente
eficiência energética
Metas de redução de Comitê Municipal de
Lei
Porto Alegre emissões de GEE a Plano de Mudanças Climáticas
Complementar 2020
(RS) serem definidas após a Resiliência (2016) e Eficiência
nº 872
execução do inventário Energética (2016)
Comitê Recife de
Sustentabilidade e
Plano de redução de Mudanças Climáticas
emissões de GEE Plano de (Comclima) (2013)
Recife (PE) Lei nº 18.011 2014
com metas por setor Adaptação (2019) Grupo Executivo de
de atividade (2016) Sustentabilidade e
Mudanças Climáticas
(Geclima) (2013)
Metas de redução de Estratégia de Fórum Carioca de
Rio de emissões de GEE: Adaptação Mudanças Climáticas
Lei nº 5.248 2011
Janeiro (RJ) 8% em 2012; 16% em às Mudanças e Desenvolvimento
2016; 20% em 2020 Climáticas (2016) Sustentável (2009)
Comissão Municipal
Plano de Plano de de Adaptação
Santos 2016 Não definido
Adaptação Adaptação (2016) às Mudanças
Climáticas (2015)
Plano de Ação Plano de Ação
Secretaria Executiva
Decreto nº Climática do Climática do
São Paulo (SP) 2021 de Mudanças
60.290 Município de São Município de São
Climáticas (2021)
Paulo 2020-2050 Paulo 2020-2050
continua...
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 17
continuação

Mecanismos
Política/Lei Estratégias de Estratégias de
Cidade/Estado Ano institucionais para
climática mitigação adaptação
implementação

Comitê Local de
Metas de redução de
Plano de Mudanças Climáticas
emissões de GEE a
Sorocaba (SP) Lei nº 11.477 2016 adaptação em e Grupo de Trabalho
serem definidas após a
elaboração sobre Mudanças
execução do inventário
Climáticas (2019)
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Fonte: Adaptado de Barbi e Rei (no prelo).

Em 2017, a Frente Nacional de Prefeitos (FNP), o ICLEI (Governos


Locais pela Sustentabilidade) e a União Européia assinaram o Pacto Global
de Prefeitos pelo Clima e Energia, acordo que promove maior colaboração
entre as cidades do mundo. Mais de 70 cidades brasileiras integram essa
iniciativa, que buscou construir conexões entre municípios para aumentar a
oferta de financiamentos e viabilizar ações locais para o clima e as energias
renováveis. É considerada a maior aliança global de cidades e governos locais
para conter as mudanças climáticas.

Políticas climáticas no nível federal brasileiro

As ações climáticas relacionadas às estruturas políticas institucionais


no Brasil no nível federal podem ser divididas em quatro fases, conforme
a Figura 1.

Figura 1 – As quatro fases da política climática brasileira (1992-2018)

4ª fase
3ª fase (2013-2018)
Implementação
(2009-2012) da Política
2ª fase
Política
(2003-2008) Climática
1ª fase
Agenda
(1992-2002) Político-
Início das Institucional
discussões

Na primeira fase, podemos observar as estruturas político-institucionais


(1992-2002) e verificamos os seguintes importantes acontecimentos: o Pro-
grama Nacional de Mudanças Climáticas em 1994, assim como a Comissão
18

para o desenvolvimento sustentável e Centro de Estudos Climáticos (INPE/


CPTEC). A Comissão de Mudanças Climáticas Globais foi criada em 1999.
O Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, integrando representantes
do governo, sociedade civil, setor privado e institutos de pesquisa, criado em
2000 e ainda a importância da sociedade civil no processo, como a atuação
do Observatório do Clima (ONG) desde 2002.
Na segunda fase, há o desenvolvimento da agenda climática (2003-2008).
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O Primeiro Inventário de emissões dos gases de efeito estufa acontece em


2004. O Plano Nacional de Mudanças Climáticas em 2007. Em conjunto com
a Rede Global de Mudanças Climáticas (Rede Clima). Destaca-se o papel do
Centro do Sistema Terrestre (CCST) (2008) e do Instituto Nacional de Ciên-
cia e Tecnologia as Mudanças Climáticas (INCT). Finalmente, é elaborado o
Plano Nacional de Mudanças Climáticas em 2008.
Na terceira fase, há o estabelecimento da política climática (2009-2012).
A Política Nacional de Mudança Climática (PNMC) ocorre em 2009 em con-
junto com o Fundo Nacional de Mudanças Climáticas. É estabelecido o Painel
Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC). Em 2010, o segundo Inventário
nacional de emissões de gases de efeito estufa é publicado e, em 2012, sai
o Primeiro Relatório do PBMC. Trata-se de um período muito significativo
para o processo brasileiro.
Na quarta fase, começa a implementação da política de mudança cli-
mática (2013-2018) com os seguintes planos abrangendo todos os biomas
nacionais e vários setores: Plano de Controle do Desmatamento para Amazônia
Legal; Plano de Controle para o desmatamento do Cerrado; Plano energético
para dez anos; Plano de agricultura de baixo carbono; Plano de transformação
da indústria; Plano para emissão de baixo carbono e por fim, o Plano para o
Transporte e mobilidade urbana.
Entretanto, o balanço das 3 grandes Convenções de 1992 – clima, biodi-
versidade e combate à desertificação – não merece outro qualificativo que o
termo fracasso. Fracasso ocorre quando nos distanciamos da meta almejada
e foi exatamente o que aconteceu.
No que diz respeito ao Brasil, a Petrobrás aumentou sua produção de
petróleo e demais combustíveis fósseis e as emissões de GEE logicamente
aumentaram também, o desmatamento aumentou desde 2012 no Brasil, assim
como a erosão e a desertificação dos solos.
Neste sentido, só poderemos reagir à emergência climática com o
aumento da geração de energias renováveis de baixo carbono. Ela decorre das
emissões de GEE produzidas pela queima de combustíveis fósseis. Portanto,
o que se impõe é a diminuição dessas emissões. Como sabemos o volume
delas apenas aumentou no Brasil desde 1992.
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 19

Não houve em 2015 e nas 5 COPs sucessivos compromissos do Brasil,


(e de qualquer outro país no mundo) de uma diminuição imediata dessas
emissões. Apenas metas futuras que não serão provavelmente honradas (pelo
menos nenhuma o foi até agora).
Em síntese, há uma dissociação total entre, de um lado, as estruturas
institucionais (Acordos, agências e Planos nacionais, metas, compromissos
internacionais assumidos e ratificados etc.) e, de outro, a consecução dos
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objetivos e a própria razão de ser dessas estruturas, pois a realidade constatada


é o aumento da queima de combustíveis fósseis e da aniquilação da biodiver-
sidade, e isso, no caso brasileiro, mesmo antes de Bolsonaro.
O que ocorreu no Canadá em 2021 (49,6 C em British Columbia) ou o
que está ocorrendo (novamente) na Índia e no Paquistão (49 a 50 C, em plena
primavera) é a enésima advertência do que nos aguarda já no próximo El Niño,
quando deveremos atingir momentaneamente 1,5 C pela primeira vez, numa
trajetória de aceleração do aquecimento e demais desequilíbrios planetários.

2019 em diante

Desde 2019, com o governo Bolsonaro, há grande ceticismo em relação


às mudanças climáticas e preocupação com os riscos. Além disso, promove
ações contra o ambiente em casa, em consonância com os grupos ruralistas,
aumentando o desmatamento e as queimadas.
O governo nega a ciência, por isso não há urgência em mitigar as mudan-
ças climáticas, promovendo uma política interna e externa contra o assunto.
Como podemos observar no Gráfico 3, a taxa de desmatamento subiu signi-
ficativamente em 2019 e 2020.

Gráfico 3 – Taxa anual de Desmatamento na Amazônia Legal (Km²) 2016-2020

4ª fase
3ª fase (2013-2018)
Implementação
(2009-2012) da Política
2ª fase
Política
(2003-2008) Climática
1ª fase
Agenda
(1992-2002) Político-
Início das Institucional
discussões

Fonte: Autoras, baseado em INPE, 2021.


20

As instituições em nível federal – o Comitê Interministerial de Mudanças


Climáticas, a Comissão Interministerial de Mudanças Climáticas Globais e o
Fundo Nacional de Mudanças Climáticas – foram afetadas pela posição nega-
cionista do atual governo (ESTEVO, 2021). O trabalho do Painel Brasileiro
de Mudanças Climáticas também foi afetado por reduções de financiamento,
assim como o Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas3.
Na análise da importância da emergência na política externa de mudanças
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climáticas, entendemos que o governo é cético, portanto não há preocupações


com esta emergência nem com as atuais e sem perspectivas futuras.
Acompanhando a mensagem brasileira em Glasgow, o país anunciou
meta pouco ambiciosa de reduzir 50% de emissões até 2030. Na verdade, o
Ministro do Meio Ambiente não aponta base de cálculo e o país pode manter
“pedalada climática”.

Nova Democracia para o Brasil: descarbonização da economia,


sustentabilidade ambiental e equidade social

É inegável que nas últimas décadas o Brasil tem tido uma relevância e
protagonismo na área ambiental, incluindo aqui a emergência climática, como
podemos observar nos dados apresentados nos itens anteriores.
Em todos os setores da sociedade houve avanços na internalização da
problemática e podemos dizer aqui que a relação entre política e ciência
contribuiu muito para esse processo. Destaca-se a relevância dos cientistas
brasileiros em diversos postos internacionais e nacionais de formulação e
implementação de políticas climáticas.
Destaca-se ainda a importância da diplomacia brasileira no âmbito inter-
nacional e salienta-se o papel brasileiro na Conferência Rio+20 na proposi-
ção dos ODS-Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, aprovados pela
Assembleia Geral em 2015.
A partir de 2019, entretanto, há grande ceticismo em relação ao aqueci-
mento global e à emergência climática. São tantos os exemplos que confir-
mam o caráter antidemocrático, negacionista e atrasado desse governo que
os impasses são colocados em várias instâncias.
Neste sentido, os resultados da COP26 não são animadores e devemos
pensar nas eleições de 2022, quando estaremos celebrando 50 anos de Esto-
colmo. Neste sentido, há alguns pontos que no caso brasileiro pode-se avan-
çar significativamente.

3 Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/exonerado-por-bolsonaro-alfredo-sirkis-diz-que-brasil-


-precisa-de-uma-lava-jato-do-desmatamento-23656390. Acesso em: 22 jun. 2022. O Fórum Brasileiro de
Mudanças Climáticas mudou seu nome para Fórum Clima Brasil.
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 21

Deve-se pensar em forte investimento em sistemas coletivos de produção


de energia renovável em substituição às hidrelétricas e termelétricas; sanea-
mento básico e sistemas coletivos de produção limpa de alimentos (WINKLER
et al., 2007).
Além disso, é necessário um forte investimento em economia 4.0, mode-
los de produção com tecnologias para mudar a produção, os negócios, o
mercado de trabalho e a própria sociedade, como a produção tecnológica de
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essências, alimentos e fármacos a partir das florestas em pé e o envolvimento


das populações locais (NOBRE, 2021).
Ainda, é preciso um forte investimento cientifico e econômico para manu-
tenção e conservação da biodiversidade, das terras indígenas, e o replantio
de florestas nativas e um forte investimento em acordos para diminuição de
agrotóxicos e produção agrícola mista, a fim de proteger a disseminação de
pragas na monocultura e proteção de polinizadores (FERREIRA et al., 2021).
Além disso, deve-se fomentar a economia circular, novos modelos de
negócios e otimização de processos, com menor dependência de matéria prima
virgem, priorizando insumos duráveis, recicláveis e renováveis, melhorando
a produção e destinação de resíduos sólidos.
As dimensões, ritmo e consequências devastadoras das mudanças
ambientais globais (emergência climática, perda da biodiversidade e poluição)
tornam as medidas nesse campo necessariamente estruturantes do conjunto.
A emergência climática, foco prioritário do combate às mudanças
ambientais globais, é parte dos processos históricos de exclusão. Desse modo,
o combate à emergência climática deve ser apresentado como necessário à
correção das desigualdades estruturais. Essa abordagem, fundamentada em
dados apresentados tanto pelas ciências da natureza quanto pelas ciências
sociais, determina que economia, cultura, pesquisa, justiça, saúde e educação
sejam pensadas a partir de compromissos com a transformação favorável tanto
à justiça social quanto à justiça ambiental (FERREIRA, 2017).
O combate à emergência climática deve ser apresentado como aquilo que
efetivamente é, como garantia de dignidade humana e como fonte imediata de
geração de emprego, trabalho e renda. Essa abordagem elimina a dicotomia
entre cidade e campo e estabelece uma abordagem econômica equilibrada em
que a geração de renda para o trabalhador não decorre apenas do incentivo
à atividade industrial, mas do apoio à agricultura familiar orgânica de curta
distância, cujas políticas de apoio devem visar tanto à segurança alimentar,
quanto à produção de segurança hídrica e de biodiversidade.
Os sistemas de saúde e de segurança precisam ser preparados para o
atendimento às situações de desastre e para a atenção às doenças físicas e
mentais decorrentes do cenário ambiental (SEIXAS; HOEFFEL, 2021).
22

A educação e a força psicológica permitirão às novas gerações mais opor-


tunidades de atuação em favor de uma tecnologia orientada para o desenvol-
vimento social que, no novo cenário, não depende de crescimento econômico,
mas da redefinição das prioridades e das oportunidades.
Nesse sentido, é fundamental o exame das demandas econômicas à luz
daquilo que o país já tem disponível em termos de terras disponíveis para
uso humano a fim de conciliar geração de emprego e renda no campo com
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o aumento da restauração dos ecossistemas terrestres, lacustres e marinhos.


Desse modo, as ações de combate às mudanças ambientais globais são
estruturais e, portanto, transversais à economia, à cultura, à educação, à pes-
quisa e à salvaguarda da democracia. Elas devem ser o princípio necessário
a todas as frentes sem se subordinar a nenhuma delas. No sistema capitalista,
o reconhecimento dos direitos da natureza são a única forma de assegurar
os direitos humanos para a maioria cujo acesso a eles tem sido reiterada-
mente negado.
Guimarães (2022) salienta que a posição do Brasil no Relatório Oficial
do Brasil submetido à Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente
e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro (Rio-92) apontou com clareza crista-
lina que “em situações de extrema pobreza, um indivíduo marginalizado da
sociedade e da economia nacional não tem compromisso algum em evitar a
degradação ambiental se a sociedade não impedir sua própria degradação como
ser humano”. Na verdade, o Brasil ecoou a Resolução 44/228 das Nações
Unidas, que convocou a Rio-92 e afirmava que a pobreza e a deterioração
ambiental são indissociáveis ​​e as novas estratégias “exigem mudanças nos
padrões de produção e consumo, principalmente nos países industrializados”.
A metamorfose diante da emergência climática e os demais desafios
enfrentados pelas sociedades contemporâneas é um processo sem volta, porém,
como buscamos mostrar, no caso brasileiro, há escolhas que nos levarão para
caminhos mais sustentáveis e equitativos.
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 23

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24

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CAPÍTULO 2
SOLUÇÕES BASEADAS NA NATUREZA
NA GOVERNANÇA CLIMÁTICA:
os casos de Campinas e Santos – SP
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Fabiana Barbi Seleguim


Marcelo Soeira
Niklas Weins
Jaqueline Nichi
Eduardo Prado Gutiérrez

Introdução

As mudanças climáticas impactam significativamente a sociedade com


efeitos mais consideráveis vivenciados nas áreas urbanas. As cidades estão
particularmente ameaçadas pelas mudanças climáticas devido a fatores que
incluem a forte dependência de infraestruturas interconectadas por redes, alta
densidade populacional, grande número de pessoas em situação de vulnera-
bilidade e grandes concentrações de bens materiais e culturais. Além disso,
os processos sociais, econômicos e políticos, como estruturas de governança
precárias ou projetos urbanos inadequados, podem exacerbar os riscos das
mudanças climáticas nas áreas urbanas (CARTER et al., 2015). Os principais
riscos são decorrentes principalmente de eventos extremos de precipitação,
de seca e de temperatura e do aumento do nível do mar, no caso das cidades
costeiras (REVI et al., 2014).
Somado a isso, espera-se um desenvolvimento urbano adicional signifi-
cativo nos próximos anos, uma vez que 60% das áreas urbanas previstas até
2030 ainda serão construídas (HALL; PFEIFFER, 2013; HEYNEN, 2014;
UN-HABITAT, 2016). Com isso, uma série de pressões interligadas, como
a perda ou degradação de áreas naturais, a impermeabilização do solo e o
adensamento de áreas construídas, representam desafios adicionais à funcio-
nalidade dos ecossistemas e, com isso, ao bem-estar humano em cidades ao
redor do mundo.
Por essas razões, as respostas urbanas às mudanças climáticas se torna-
ram cada vez mais significativas nas últimas décadas e permanecerão críti-
cas para alcançar a resiliência nessas áreas (BULKELEY; BETSILL, 2013;
26

BULKELEY et al., 2014; BULKELEY; NEWELL, 2015). Nesse contexto,


os espaços verdes e azuis dentro de áreas urbanas vêm sendo cada vez mais
reconhecidos pela sua capacidade de apoiar a conservação da biodiversidade,
de gerar benefícios ambientais, econômicos e sociais adicionais e de promover
o funcionamento dos ecossistemas como sustentação essencial para a mitiga-
ção e adaptação às mudanças climáticas (KABISCH, 2016; ALMASSY et al.,
2018; NÉTO et al., 2020).
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Surgido na interface ciência-política-prática, o conceito de Soluções


baseadas na Natureza (SBN) é um entre outros conceitos que promove a
manutenção, o aprimoramento e a restauração da biodiversidade e dos ecos-
sistemas como forma de abordar diversos desafios simultaneamente, incluindo
as mudanças climáticas. Outros conceitos relacionados são “adaptação baseada
em ecossistemas (AbE)”, “infraestrutura verde”, “redução de risco de desastres
baseada em ecossistemas”, “infraestrutura baseada na natureza” e “engenharia
com a natureza”. Na maioria dos casos, essas abordagens são complementares,
têm considerável sobreposição e também são usadas no contexto não urbano
(KABISCH, 2016; NESSHÖVER et al., 2017).
As SBN têm mostrado potencial significativo para diminuir a vulnerabi-
lidade e aumentar a resiliência de assentamentos humanos à luz das mudanças
climáticas (MCPHEARSON et al. 2015, POTSCHIN et al., 2016, KABISCH
et al. 2017). Essas estratégias podem, assim, ajudar a minimizar os impac-
tos induzidos pelas mudanças climáticas e servir como opções de adaptação
proativa para os municípios. Qualquer adequação ou ajuste em resposta aos
impactos reais ou previstos das mudanças climáticas, com os objetivos de lidar
com as consequências, moderar os prejuízos, reduzir as vulnerabilidades ou
explorar as oportunidades benéficas são caracterizados como estratégias de
adaptação (ADGER et al., 2003; IPCC, 2007).
Nesse contexto, a principal questão que norteou esse trabalho é como as
SBN estão sendo integradas na agenda climática urbana das cidades brasilei-
ras. Além disso, buscou-se compreender o contexto favorável para o desen-
volvimento dessas estratégias, quais agentes estão envolvidos e de que forma.
Grande parte das pesquisas que trabalham com o conceito de SBN está
concentrada na área de ciência ambiental e ecologia, sendo embrionária a
abordagem pelas ciências sociais (RODRIGUES et al., 2021). Além disso, as
pesquisas no e sobre o Brasil acerca dessa temática são incipientes (STÖBERL
et al., 2019). Pretende-se contribuir, dessa forma, para preencher essas lacunas,
trazendo mais elementos de análise sobre cidades brasileiras para o debate
sobre governança climática no contexto urbano.
As cidades brasileiras são consideradas vulneráveis às mudanças climá-
ticas e os possíveis impactos decorrentes dessas alterações deverão ocorrer
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 27

em diferentes escalas, de acordo com a vulnerabilidade e as características


específicas de cada região do Brasil. É esperado que eventos severos de pre-
cipitação se intensifiquem, impactando muitas cidades. Ao mesmo tempo, a
maioria da população brasileira está sujeita a riscos e não tem condições de
enfrentar os desafios que as projeções apontam (MARENGO et al., 2017a).
A análise da integração das SBN na agenda climática urbana é feita
a partir de dois estudos de caso em profundidade nas cidades paulistas de
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Campinas e Santos. Essas cidades têm apresentado iniciativas de adaptação


aos impactos da mudança do clima a partir de SBN. Embora com diferentes
faixas populacionais4, ambas são sedes de regiões metropolitanas, possuem
importância econômica e regional, são vulneráveis às mudanças climáticas e
já enfrentam os impactos decorrentes da mudança do clima, como enchentes,
alagamentos, aumento da temperatura do ar, e no caso de Santos, o aumento do
nível médio do mar (CAMPINAS, 2016; MARENGO et al., 2017a,b,c, 2018;
CHOU et al., 2019; FREITAS et al., 2019; HARARI et al., 2019; SOUZA
et al., 2019; BARBI; REI, 2021; INTERACT-BIO, 2021).
Foram realizadas análises de documentos governamentais oficiais sobre
as estratégias de SBN, (por exemplo, planos municipais) e entrevistas semies-
truturadas com representantes de perfil técnico dos governos municipais entre
2019 e 2021.
Primeiro, apresentamos uma discussão teórica acerca da governança
climática envolvendo as SBN nas áreas urbanas. A seguir, apresentamos a
análise de como as SBN estão sendo internalizadas no planejamento climático
nas cidades pesquisadas.

Governança climática e Soluções Baseadas na Natureza nas


cidades

A noção de Soluções baseadas na Natureza (SBN) foi inicialmente pro-


posta pela União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN) numa
referência às “ações para proteger, manejar de forma sustentável e restaurar
ecossistemas naturais ou modificados que abordam os desafios da sociedade
de forma eficaz e adaptativa, proporcionando simultaneamente bem-estar
humano e benefícios à biodiversidade” (COHEN-SHACHAM et al., 2016).
Segundo as pesquisas de Seddon et al. (2019), as SBN poderiam forne-
cer cerca de 30% da mitigação economicamente viável necessária até 2030
para estabilizar o aquecimento global abaixo de 2°C. Ademais, elas também
propiciam proteção contra os impactos e riscos das mudanças climáticas.
4 Na faixa de um milhão de habitantes está Campinas e Santos abaixo de 500 mil habitantes, segundo dados
do IBGE, disponíveis em https://cidades.ibge.gov.br/. Acesso em: 2 mar. 2022.
28

Contudo, a apropriação do conceito de SBN por governos e corporações


para seus próprios fins foi alertada por grupos da sociedade civil organizada na
última Conferência das Partes (COP) da Convenção do Clima da Organização
das Nações Unidas (ONU), em 2021. Nesse caso, em que as SBN estão volta-
das, sobretudo para a mitigação das mudanças climáticas, grandes empresas
afirmaram ser possível reduzir suas emissões de gases de efeito estufa (GEE)
a zero com soluções baseadas na natureza e continuar lucrando com a extração
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de combustíveis fósseis. Segundo essas empresas, plantar árvores, proteger


florestas e mudar práticas da agricultura industrial, armazenará carbono extra
nas plantas e no solo em quantidade suficiente para compensar as emissões de
GEE que essas empresas lançam na atmosfera. As organizações da sociedade
civil alertam, entre outros pontos, que essa visão reduz a “natureza” a uma
prestadora de serviços para compensar a poluição das empresas e proteger os
lucros das corporações que são as maiores responsáveis pelo caos climático
global, desviando assim a atenção das soluções que, de fato, podem contribuir
para minimizar a crise climática (FOEI, 2021).
Alguns autores (EGGERMONT et al., 2015) identificam pelo menos três
tipos de SBN. O primeiro, de intervenção mínima, está ligado ao conceito de
reservas da biosfera e tem como objetivo manter os ecossistemas, como por
exemplo, a proteção de manguezais que favorecem tanto a preservação da
biodiversidade no local bem como a população da região. No segundo tipo,
a intervenção trata de abordagens de gestão e está mais ligada à agricultura
natural, agroecologia e silvicultura orientada para a agricultura, como por
exemplo, o planejamento inovador de paisagens, meios para melhorar espé-
cies de árvores, dentre outros. O último tipo é o de intervenção, que pode até
criar novos ecossistemas, e está relacionado às infraestruturas verdes e azuis
urbanas, com objetivos de restauração de áreas degradadas ou poluídas, como
restauração de mata ciliar no trecho urbano de um rio.
Nesse capítulo, utilizamos a noção de SBN com o enfoque urbano e
relacionado ao último tipo descrito acima, em consonância com a abordagem
de Bulkeley et al. (2017), que entendem as SBN como intervenções delibe-
radas que podem ser inspiradas pela natureza ou apoiá-la no enfrentamento
dos desafios urbanos, como mudança do clima, gestão da água, uso do solo
e desenvolvimento urbano.
Dessa forma, as SBN podem ser incluídas nas políticas urbanas de várias
formas – por meio de integração em políticas setoriais já existentes, regula-
mentação de políticas específicas para estímulo às SBN, ou ainda, por meio
de incentivos econômicos. Alguns tipos de incentivos econômicos são os
mecanismos de comercialização de créditos de carbono, compensação de
impactos à biodiversidade, pagamentos por serviços ecossistêmicos, benefícios
fiscais, dentre outros (CHRYSOULAKIS et al., 2021).
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 29

Outra forma de viabilizar a implementação de SBN no meio urbano é


a integração das ações em infraestrutura urbana, como obras viárias, habita-
cionais ou de drenagem. A consideração da natureza como parte da solução
pode fazer com que esses projetos tragam benefícios adicionais além daque-
les para o qual foram propostos e, por isso, diversas agências de fomento no
mundo todo já estão solicitando a inclusão de SBN como contrapartida para
financiamentos de obras de infraestrutura urbana (CASTELLAR et al., 2021).
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A integração pode ocorrer entre políticas já existentes que regem o


ordenamento territorial urbano, não somente nas políticas ambientais. Um
caminho possível e pouco explorado pelas cidades brasileiras se dá por meio
da incorporação de estratégias de SBN no principal instrumento de planeja-
mento urbano brasileiro: o plano diretor (BARBI; REI, 2021). Em relação
à questão climática, os planos diretores de Belo Horizonte (BH), Campo
Grande (MS), Salvador (BA), Rio Branco (AC) e Vitória (ES) apresentam
contribuições indiretas, sem menção específica, em seus princípios e diretrizes,
sobre possíveis políticas de adaptação ou à ampliação aos efeitos da mudança
climática; enquanto o plano diretor de Palmas (TO) traz levantamentos e
diretrizes específicos para as questões climáticas (ESPÍNDOLA; RIBEIRO,
2020). Considerando que a preservação e proteção do meio ambiente, bem
como a sustentabilidade urbana ambiental são metas e diretrizes estabeleci-
das pelo próprio Estatuto da Cidade, as SBN nas cidades devem passar pelos
planos diretores.
Por fim, a integração das ações climáticas, incluindo as estratégias de
SBN no planejamento urbano pode ser firmada ainda com a inclusão delas no
orçamento municipal, por meio das suas três peças de planejamento: o PPA
(Plano Plurianual), a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) e a LOA (Lei
Orçamentária Anual).
A seguir, analisamos como duas cidades brasileiras têm integrado estra-
tégias de SBN em seu planejamento urbano e climático.

Adaptação climática e SBN no nível local em Santos-SP

O município de Santos possui população residente de cerca de 400 mil


habitantes e abriga o maior porto da América Latina, o Porto de Santos. A
cidade é considerada o centro econômico da Região Metropolitana da Baixada
Santista (RMBS). Assim como a maioria das cidades costeiras brasileiras,
Santos é considerado um município com alta vulnerabilidade às mudanças cli-
máticas, sobretudo em decorrência dos riscos relacionados à elevação do nível
relativo do mar (NRM) à ocorrência de eventos extremos de chuvas, ressacas
e às consequências socioambientais decorrentes desses eventos (MARENGO
et al., 2017a, SOUZA et al., 2019). As áreas mais vulneráveis às inundações
30

costeiras e enchentes em Santos são a Zona Noroeste (ZNW) e a região sudeste


(ZSE), que compreende a área entre o Canal 4 e a Ponta da Praia e parte do
Porto de Santos (MARENGO et al., 2017b, 2017c).
Até 2050, o NRM deverá subir entre 18 e 23 centímetros em rela-
ção ao nível médio de 2000, podendo chegar até 45 centímetros em 2100
(MARENGO et al., 2017b; HARARI et al., 2019). Segundo Souza et al.
(2019), na Baixada Santista e em especial em Santos, entre 2000 e 2016 o
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número de eventos de ressacas fortes aumentou em 3,3 vezes (76,5% dos 115
eventos registrados) em relação ao número de eventos ocorridos no século
XX (entre 1928 e 1999).
As modelagens climáticas realizadas para o projeto “Metropole” (CHOU
et al., 2019) revelaram que a temperatura em Santos deverá aumentar entre 2
e 4,5º até o final do século XXI, com aumento na frequência de noites quentes
e ondas de calor; para o total anual de precipitação5. No entanto, o modelo
aponta aumento da variabilidade nos climas futuros, com predominância de
anomalias negativas em comparação com o presente, embora com diversos
eventos de chuva acima do normal. Isso traria consequências como aumento
da magnitude de erosão costeira, movimentos de massa, enchentes e inunda-
ções, e aumento do risco de desastres.
O planejamento para adaptação começa com a avaliação das condi-
ções climáticas atuais e históricas, projeções de mudanças climáticas e as
implicações futuras sobre as vulnerabilidades e impactos. Essas informa-
ções constituem a base das políticas de adaptação que podem ser formula-
das como intenções de ação ou ações de adaptação (GAGNON-LEBRUN;
AGRAWALA, 2006; BASC, 2010). Essa foi a trajetória da política climática
do município de Santos.
Santos apresentava esforços, ainda que iniciais, em direção à internaliza-
ção da temática política das mudanças climáticas em sua agenda desde 2010.
As políticas relacionadas à adaptação aos impactos das mudanças climáticas
estavam voltadas, sobretudo, à gestão de desastres, abordando a questão de
forma indireta (BARBI, 2015).
Houve um avanço significativo na abordagem dos efeitos das mudan-
ças climáticas em Santos a partir do desenvolvimento do projeto Metrópole,
em termos de construção de arranjos político-institucionais e planejamento
para ação. O projeto desenvolveu uma modelagem (plataforma COAST,
MARENGO et al., 2017b, 2017c) contendo as projeções de cenários de

5 Projeto Metropole “Uma estrutura integrada para analisar tomada de decisão local e capacidade adaptativa
para mudança ambiental de grande escala: estudos de caso de comunidades no Brasil, Reino Unido e
Estados Unidos”, coordenado por Jose Antonio Marengo Orsini, entre 2013 e 2017: Disponível em: https://
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A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 31

elevação do NRM somadas a eventos extremos de inundação costeira para


os anos de 2050 e 2100, e os danos econômicos potenciais associados à
estrutura física das construções nas duas regiões mais vulneráveis de Santos
(ZNW e ZSE), comparando situações sem e com medidas adaptativas, no
caso apontadas e elegidas pela sociedade durante a realização de oficinas.
Influenciados pelos resultados do projeto, os agentes políticos locais
engajaram-se para estabelecer a Comissão Municipal de Adaptação à Mudança
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do Clima (CMMC) em 2015 (Decreto no. 7293), com o objetivo de elaborar


um plano de adaptação para a cidade (FREITAS et al., 2019). A Comissão
ficou a cargo da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, com a
participação de outras secretarias: Meio Ambiente, Serviços Públicos, Infraes-
trutura e Edificações, Assuntos Portuários e Marítimos, Desenvolvimento
Econômico e Inovação e o Departamento de Defesa Civil da Secretaria de
Segurança. Esse arranjo institucional a partir dos diversos setores relacionados
à adaptação climática demonstra o reconhecimento da multidimensionalidade
da questão no âmbito governamental.
O Plano Municipal de Mudanças do Clima de Santos foi publicado em
2016 (SANTOS, 2016), alguns meses depois do Plano Nacional de Adaptação
(PNA) e essa iniciativa levou a cidade a ser escolhida como piloto do projeto
de Apoio ao Brasil na Implementação da Agenda Nacional de Adaptação à
Mudança do Clima (ProAdapta) do Ministério do Meio Ambiente.
O Plano inicial de Santos considerou as projeções de aumento do NRM
e de eventos climáticos para a região; prevê o acesso à informação através
de um banco de dados sobre mudanças climáticas e a participação de outros
segmentos da sociedade. Depois da sua publicação, foi criada uma Comissão
Consultiva Acadêmica, que buscou reunir pesquisadores e cientistas com o
objetivo de contribuírem para a revisão do plano. Também foi criada a Seção
de Mudanças Climáticas (SECLIMA) no município e depois de um processo
de quase quatro anos, o novo Plano de Ação Climática de Santos (PACS) foi
publicado em 2022, com a visão de Santos como “Cidade Inclusiva, Sus-
tentável, Resiliente e Adaptada aos Riscos Climáticos e Carbono Neutra em
2050” (SANTOS, 2022).
Algumas ações do plano de Santos já estão sendo implementadas. Uma
delas, que pode ser caracterizada como uma SBN utiliza a metodologia de
Adaptação baseada em Ecossistemas (AbE). O trabalho do governo local tem
envolvido a comunidade de um dos principais morros da cidade, o Monte
Serrat, em ações de conscientização e convencimento de que preservar o meio
ambiente reduz os efeitos das mudanças do clima e gera benefícios econômi-
cos. O objetivo do projeto é realizar a recuperação da vegetação do morro com
vistas a minimizar os deslizamentos de terra e seus impactos. Embora a escala
da intervenção seja local, pretende-se que o processo gere aprendizado e que
32

esse tipo de ação possa ser expandido para demais localidades do município
e dos demais integrantes da região metropolitana.
Outras SBN estão sendo planejadas no Plano Municipal da Mata Atlân-
tica (PMMA), que busca identificar as áreas da cidade onde não há mais Mata
Atlântica a fim de que seja recuperada.
Os demais municípios da RMBS apresentam condições geográficas seme-
lhantes em termos de clima e estão interligados por forte interação socioeco-
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nômica e por sistemas integrados de transporte e saneamento. Dessa forma, a


articulação das políticas climáticas municipais com as escalas regional e metro-
politana reconhece a natureza multinível da questão climática e é um item funda-
mental para que essas políticas sejam efetivamente bem-sucedidas (Gupta, 2007).
O município de Santos deu o primeiro passo no enfrentamento das
mudanças climáticas na região. Entretanto, para pensar a adaptação às mudan-
ças climáticas na RMBS há a necessidade de maior interação entre os diferen-
tes níveis de governo (municipal, metropolitano e estadual) e mais parcerias
com diversos agentes dos diferentes segmentos da sociedade. É necessário
incorporar as variáveis climáticas e seus possíveis impactos nos instrumentos
de gestão pública relacionados à gestão costeira, uso e ocupação do solo, ges-
tão de desastres, infraestrutura e serviços urbanos, meio ambiente e saúde, que
são os principais setores de atuação governamental relacionados à adaptação
aos riscos das mudanças climáticas.

Ações pela biodiversidade e SBN em Campinas-SP

Com população estimada em 1.223.237 pessoas, Campinas é a 14ª maior


cidade brasileira em termos de população. 97,9% dos domicílios campineiros
se encontram em áreas urbanas do município, que representam 48% de seu
território (Campinas, 2022; IBGE, 2022).
Campinas publicou o Plano Municipal do Verde (PMV) (Campinas,
2016), um documento que estabelece diretrizes e metas voltadas para a gestão
integrada das áreas verdes do município, em 2016. Devido a sua interdisci-
plinaridade, a elaboração do plano foi realizada de forma participativa sob
coordenação da Secretaria Municipal do Verde, Meio Ambiente e Desenvol-
vimento Sustentável. Assim, este processo envolveu outras secretarias muni-
cipais (16 ao todo) e outros órgãos da administração indireta do município por
meio de um grupo de trabalho dedicado. Os demais agentes do terceiro setor
e da sociedade civil foram envolvidos por meio de oficinas participativas e
consulta pública.
Como parte integrante do PMV, está o Plano Municipal de Conservação
e Recuperação de Mata Atlântica de Campinas, em atendimento à Lei da Mata
Atlântica (Lei Federal nº 11.428/06), realizado em parceria com a ONG SOS
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 33

Mata Atlântica e demais agentes também por meio de oficinas participativas


e consultas públicas.
As ações e a implantação do PMV aqui exploradas caminham em duas
direções: (i) no nível municipal, por meio dos corredores ecológicos e dos
parques lineares e (ii) no nível regional, por meio da articulação com os demais
municípios da RMC para a consolidação de uma área de conectividade e seus
desdobramentos. Detalhamos essas duas direções a seguir.
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SBN no nível local

A elaboração do PMV foi baseada em um diagnóstico que buscou iden-


tificar e analisar as áreas verdes do município com função ecológica e social,
delinear os panoramas legais e institucionais relacionados ao manejo, proteção
ou recuperação dessas áreas a fim de identificar oportunidades de atuação e
articulação, além da condução de oficinas participativas visando compreender
a relação da população do município com suas áreas verdes. A partir da síntese
dessas informações foi elaborado um prognóstico que descreve os cenários
atual, ideal e possível (alvo) para as áreas verdes do município.
Para minimizar o Déficit de Áreas Verdes Sociais do município, o PMV
propõe a implantação de 34 Parques Lineares, divididos em 49 trechos, tota-
lizando uma área equivalente a cerca de 900 hectares. A opção pelos parques
lineares, enquanto estratégia principal para ampliação do acesso às áreas verdes
sociais se deve ao entendimento de que a preservação da função ecológica de
Áreas de Preservação Permanentes (APPs) urbanas só é viável mediante adap-
tação do espaço natural para a promoção concomitante de função social. Ainda
que a legislação restrinja o uso e ocupação do solo de áreas marginais a cursos
d’água exclusivamente à preservação ambiental, em Campinas verifica-se que
essa forma de preservação não é eficaz: 2.764 ha (74%) das Áreas de Preser-
vação Permanente do município em área urbana encontram-se degradadas.
Além de localização e limites, foi estabelecida uma ordem de prioridade
para a implantação dos parques lineares, visando assegurar que os beneficiados
serão os moradores de unidades territoriais básicas onde não há áreas verdes
ou que estejam longe delas.
De acordo com o subprograma de implantação de parques lineares, o
PMV previa a elaboração de análise de via viabilidade de todos os parques até
2018, projeto executivo dos parques prioritários até 2020 e projeto executivo
dos demais parques até 2022, com a implantação total dos parques viáveis
ocorrendo no prazo de 10 anos, até 2026.
No nível municipal, o PMV começou a ser implantado em 2016, quando
foram estabelecidos cinco corredores ecológicos em Campinas, instituídos por
34

resolução específica de cada trecho definindo as áreas que o compõem, seus


objetivos, suas características (tipo de vegetação, tipo de passagem de fauna,
tipo de cercamento etc.), e diretrizes para o desenvolvimento do projeto em
áreas particulares.
Até 2021, foi implantado um trecho do Parque Linear do Córrego
do Piçarrão; 6 trechos de outros 5 Parques Lineares tinham o projeto exe-
cutivo aprovado e 13 trechos de 10 Parques Lineares tinham o projeto
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básico aprovado.
Dentro das áreas definidas dos parques lineares, há as que são públicas
e as privadas. Para garantir que a inserção de parques no desenvolvimento
de empreendimentos situados em áreas privadas, foi necessário um ajuste no
decreto de aprovação de loteamentos. Esse ajuste na legislação urbanística
do município garante ainda que as áreas reservadas para o parque dentro dos
empreendimentos sejam apropriadas para a implementação dos parques.
Nas oficinas realizadas com a população no contexto da elaboração do
PMV, os moradores indicaram como principais motivos para evitar algumas
áreas verdes no município: (i) falta de estrutura (iluminação, calçadas, bancos
entre outros); (ii) falta de manutenção (poda de árvores, corte de grama, reparo
de estruturas); e (iii) falta de segurança. Essas razões demonstram a importân-
cia da gestão pós-implantação para a fruição das áreas verdes, elemento que
têm sido levados em conta nas ações desenvolvidas. Além de articulação com
outras secretarias para melhorar os cuidados de manutenção das áreas verdes
e o patrulhamento delas, o planejamento tem previsto a inclusão de funciona-
lidades e atrativos aos parques para fomentar seu uso, tendo em vista que sua
ocupação oferece segurança e resiliência frente ao vandalismo que ocorre em
áreas verdes abandonadas ou pouco frequentadas. Esse quadro reflete uma
relação e preocupações da população urbana com relação às áreas verdes que
já foi observada em outras localidades do Brasil e da América Latina e pode
constituir uma barreira à sua implantação.
Também foram realizados estudos de viabilidade a fim de compreender
a vocação de cada trecho do parque linear, permitindo delimitar como será
planejado cada espaço, além da recuperação da área de preservação per-
manente, como ciclovia, horta urbana, centros comunitários, playground,
academia, entre outros.
Além disso, houve um avanço na própria ideia de parque linear no inte-
rior da equipe técnica do município desde o PMV, em 2016. Ampliou-se a
noção de suprir o déficit de verde para um conceito mais amplo de Soluções
baseadas na Natureza (SBN), transcendendo o limite do parque e pensando
no bairro como um todo.
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 35

SBN no nível regional

A outra direção de implantação do PMV se deu no nível regional. O


município de Campinas possui nove unidades de conservação que fazem
divisa com outros municípios da RMC. Assim, o que começou com um pla-
nejamento municipal das áreas verdes, avançou no ano seguinte para a Região
Metropolitana de Campinas (RMC), que abrange mais dezenove municípios.
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No âmbito do PMV, ao observar o território de maneira integrada, foi possível


traçar uma linha de conectividade entre áreas prioritárias para conservação e
preservação, que possuíam vegetação altamente fragmentada. Assim, o PMV
apontou a necessidade de um programa de integração com os demais muni-
cípios da RMC, a fim de garantir a preservação da fauna e da flora da região.
Assim, Campinas começa a se articular com os demais municípios da
RMC no âmbito da Agência Metropolitana de Campinas (Agemcamp), em
2017. Dessa forma, o município lidera esse processo de articulação e capa-
citação, e foi estabelecido o Programa Reconecta RMC, com o intuito de
integrar estratégias de conservação e recuperação de fauna e flora entre 20
municípios, a partir de três eixos principais de atuação: (i) recuperação de áreas
de preservação permanente, (ii) fortalecimento de unidades de conservação
existentes e criação de novas áreas protegidas e (iii) proteção animal. Para a
capacitação dos municípios, foram envolvidos agentes estaduais.
Ainda em 2017, foi firmada uma parceria entre a RMC e o ICLEI, a partir
da participação no Projeto INTERACT-Bio. A partir dessa parceria, passou-se
a trabalhar o conceito de serviços ecossistêmicos dentro de cada um daqueles
eixos de atuação do Reconecta RMC. É definida a Área de Conectividade (AC)
como ação estratégica para a RMC, isto é, uma zona estratégica para promo-
ver iniciativas de conservação da biodiversidade, manutenção de processos
ecológicos, oferta de serviços ecossistêmicos e recuperação da paisagem, de
forma integrada e em nível regional.
O Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado (PDUI) da RMC estava em
fase de diagnóstico e conseguiram inserir a AC, em 2018 (PDUI, 2018). Porém,
a Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano S/A (Emplasa), responsá-
vel pelo PDUI, foi extinta e o plano não foi finalizado. O PDUI é o principal
instrumento para dar força para que a AC seja de fato implantada na região.
Campinas insere as AC na revisão do seu plano diretor (Campinas, 2018).
Entretanto, nem todos os municípios conseguiram fazer essa inserção nos
seus planos, o que pode dificultar a implantação da AC na falta de um plano
regional estabelecido.
Os trabalhos do Reconecta RMC ganharam reforço e apoio com a parti-
cipação do município na iniciativa Cities4Forests, uma rede global que visa
catalisar apoio político, social e econômico entre os governos municipais e
36

habitantes das cidades para integrar as florestas internas, próximas e distantes


nos planos e programas de desenvolvimento, em 2019. Essa iniciativa é resul-
tado da parceria da Frente Nacional de Prefeitos com o WRI Brasil (World
Resources Institute) e oferece elaboração conjunta de plano de trabalho para
que cada município participante seja auxiliado em seus projetos locais em
prol das florestas. A partir dessa parceria, a AC foi detalhada, pensando nas
áreas de corredores e no potencial de recuperação, ou seja, se tem ideia de
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quantos hectares é necessário restaurar em cada cidade.


O Plano de Ação para Implementação da Área de Conectividade da
Região Metropolitana de Campinas (AC-RMC) foi publicado em 2021 (Inte-
ract-Bio, 2021). A AC tem como eixos estruturais os seguintes pilares: (i)
arborização urbana, (ii) parques lineares, (iii) corredores ecológicos, (iv) fauna
silvestre, (v) regulamentação, fiscalização e compensação e (vi) articulação
e comunicação. O Plano foi desenvolvido de forma participativa por meio
de escutas direcionadas, questionários e facilitação de oficinas virtuais. Seu
processo de elaboração contou com o envolvimento de cerca de 80 agentes
distintos, o que resultou na consolidação de 19 objetivos estratégicos.

Considerações Finais

Esse capítulo tratou da análise da integração de estratégias de SBN na


gestão urbana em nível local, bem como o contexto em que foram elaboradas
e implementadas, além do envolvimento de demais agentes nessas ações.
Os resultados mostraram que nas cidades paulistas de Campinas e Santos,
as SBN estão sendo integradas no planejamento e desenvolvimento urbano
impulsionadas, principalmente, impulsionadas pela participação dos gover-
nos locais em projetos conduzidos por agentes não governamentais, como as
redes de cooperação de municípios e agências internacionais de cooperação.
Nessas cidades, as SBN estão sendo planejadas para responder aos
impactos da mudança do clima, integrando planejamento climático como as
estratégias de adaptação baseada em ecossistemas (AbE). Embora essas ações
sejam necessárias e relevantes no enfrentamento dos impactos das mudanças
climáticas, ainda são incipientes e estão aquém dos desafios projetados resul-
tantes dessas mudanças (IPCC, 2022).
De toda forma, as articulações entre os diferentes agentes por meio das
cooperações têm aberto novos caminhos para a governança climática nas cida-
des brasileiras. Todavia, é necessário seguir acompanhando em que medidas as
estratégias terão continuidade com a finalização das cooperações mencionadas.
Além disso, é preciso investigar de que maneira as demais cidades brasileiras
que não participam de nenhum projeto de cooperação estão incorporando
estratégias de SBN no enfrentamento das mudanças climáticas.
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 37

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CAPÍTULO 3
GÊNERO NA GOVERNANÇA
CLIMÁTICA: um olhar sobre
o projeto “Pira no Clima”
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Lígia Amoroso Galbiati

Introdução

A emergência climática já se configura como um fenômeno que deixa


de ser pensado em um tempo futuro. É cada vez mais comum nos deparar-
mos com notícias perturbadoras em todo o mundo, relacionadas a extremos
climáticos, alteração nos regimes e fluxos de chuvas, com consequências
nefastas para a vida de humanos e não-humanos, dentre elas, mortes, extin-
ções e deslocamentos.
O que está em jogo não é apenas o sistema climático mundial, mas a
habitabilidade da vida no planeta, colocando em xeque o modelo neolibe-
ral hegemônico de sociedade, que se mostra cada vez mais predatório para
humanos e não-humanos (Stengers, 2015). Partindo do pressuposto de que
as relações humano-natureza são mediadas por sistemas estruturais como o
capitalismo, racismo, machismo, colonialismo, é imprescindível um olhar
sistêmico para a problemática das mudanças do clima. Viver no ou sobreviver
ao Antropoceno,

[...] implica um repensar radical das noções hegemônicas euro-americanas


de progresso e crescimento que emergiram de uma paisagem colonial mar-
cada pela desqualificação violenta de outras formas de viver e conceber
o mundo (Tola, 2016, p. 10).

É necessário que a emergência climática seja discutida de forma


interdisciplinar e para além do campo das ciências físicas e naturais, uma vez
que as barreiras históricas e disciplinares entre ambiente e sociedade não se
sustentam mais (Beck, 2009, 2010; Latour, 2020). Assim, ao considerar gênero
como uma categoria de análise histórica, é possível desvendar as relações de
poder implicadas nos debates sobre mudanças climáticas, em seus espaços de
governança e, com efeito, compreender os sistemas simbólicos que operam
nas discussões (Scott, 1986).
44

O questionamento principal de algumas pensadoras feministas, como


Isabelle Stengers, Donna Haraway e Anna Tsing, reside na suposta universa-
lidade do Humano (anthropos), representante deste período em que vivemos,
nomeado como Antropoceno. O que propõem é que se reoriente a atenção
para as “muitas forças terrenas que participam dos projetos de construção do
mundo” (Tola, 2016, p. 17), colocando em xeque a ideia de excepcionalismo
humano, alimentada pela Ciência Moderna e a narrativa épica de progresso
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econômico (Stengers, 2015), que subsidia os cercamentos da natureza e de


todos aqueles que não se encaixam nessa estreita categoria de Humano.
De acordo com a autora Anna Tsing (2021), o Antropoceno está relacio-
nado com a redução da habitabilidade do planeta, e a redução cada vez maior
de refúgios habitáveis, para humanos e não-humanos. Apesar de ser inegável o
caráter transfronteiriço da problemática do clima, a autora propõe que pense-
mos a era em que estamos vivendo a partir de uma perspectiva de fragmentos
ou manchas na paisagem, que criam geografias planetárias desiguais (Tsing,
2021). Assim, apesar de global, não existe uma homogeneidade ao longo dos
territórios no que se refere a emissões dos gases de efeitos estufa, bem como
na incidência dos efeitos da mudança do clima.
A importância de se construir políticas para as mudanças considerando
as especificidades dos territórios reside exatamente nessa fragmentação das
paisagens e com o aporte de experiências feministas é possível ampliar a
imaginação política a partir de suas práxis – no sentido de prática, mas tam-
bém de construção de conhecimentos – às quais ao mesmo tempo em que são
produzidos nos territórios, os excedem (Galbiati et al., 2022).
Uma governança multinível e multiatores pretende considerar essas
geografias desiguais, e pensar a problemática do clima para além da esfera
global ou federal, incluindo os diferentes atores envolvidos, como governos,
organizações da sociedade civil, cientistas, populações historicamente margi-
nalizadas, movimentos sociais, dentre outros, em diferentes níveis de atuação
(Barbi & Ferreira, 2017; Barbieri & Ferreira, 2018; Ferreira, 2020).
Importante destacar que o entendimento de governança não se faz livre
de críticas, especialmente à ideia de “gestão” que se destaca, por seu caráter
supostamente neutro, nas quais as relações de poder e assimetrias contidas
nos processos sociais são subsumidas, em nome de um suposto consenso
ou interesse comum que emerge na noção de desenvolvimento sustentável
(Zhouri, 2008).
Ao incluir a perspectiva interseccional dos marcadores sociais da dife-
rença, as relações de poder são incorporadas à essa discussão, alargando
horizontes para a compreensão tanto das consequências quanto das causas das
mudanças climáticas, que não são neutras em relação à raça, classe e gênero,
refletindo em políticas que também não são neutras.
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 45

De acordo com ranking da Global Carbon Tracker, o Brasil é o 12º maior


emissor de gases de efeito estufa do mundo6, sendo as alterações no uso do
solo – ligadas principalmente ao desmatamento –, a agropecuária e o setor
energético, os maiores responsáveis por essas emissões (OC, 2021). No caso
específico do estado de São Paulo, o setor energético se caracteriza como o
maior emissor (SEEG – Municípios, 2022). Assim, os planos e políticas devem
ser pensados de forma integrada com outros planos para que de fato haja um
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enfrentamento real da problemática. Considerando que no Brasil, 85% da


população mora em cidades, é essencial pensar no papel destas no enfrenta-
mento das mudanças do clima. Um olhar para a escala local é essencial para
que se compreenda as diferentes possibilidades de atuação dos municípios
diante da emergência climática.
Piracicaba é um município localizado no interior do estado de São Paulo,
cerca de 160 km a noroeste da capital, com uma extensão territorial de apro-
ximadamente 1.378,069 km² e uma população estimada em 410.275 pessoas
(IBGE, 2021). Dessas, 98,18% residem em área urbana, que ocupa aproxi-
madamente 18% do território total. A economia de Piracicaba se desenvolveu
fortemente associada ao ciclo da cana-de-açúcar e do café, seguida de uma
rápida industrialização vinculado ao setor sucroalcooleiro (Emerique, 2015).
Atualmente, quase 50% do PIB municipal é proveniente do setor de serviços,
seguido pelo setor industrial, com 27%, sendo as indústrias de máquinas e
equipamentos e de veículos automotores as responsáveis por aproximadamente
68% do setor industrial (São Paulo, 2022a). Apesar de pouco impactante no
PIB geral, a produção de cana-de-açúcar representa 77% do PIB da produção
agropecuária de Piracicaba (São Paulo, 2022a)
O município está localizado na região das bacias hidrográficas do rio
Piracicaba, Capivari e Jundiaí (Bacias PCJ), de grande importância para a
segurança hídrica da região, no entanto devido à ocupação territorial histori-
camente relacionada à produção agrícola, há uma alta degradação das forma-
ções de vegetação nativa no município. Remanescem pequenos fragmentos
de Mata Atlântica e Cerrado, sendo a Floresta Estacional Semidecidual a
formação predominante, ainda que restrita a áreas de difícil acesso, sendo
assim consideradas inaptas para agricultura, além de reservas ou parques
ecológicos (Rodrigues, 1999).
Apesar de fazer parte do Programa Município Verde-Azul, com progra-
mas municipais para ampliar a arborização urbana, sua cobertura vegetal não
é suficiente para prevenir riscos de enchentes ou proporcionar a redução da

6 Website “Global Carbon Tracker”. Disponível em: http://www.globalcarbonatlas.org/en/CO2-emissions. Acesso


em: 10 jun. 2022.
46

temperatura no município (Giuliani & Pizzinatto, 2015), riscos importantes


relacionados às mudanças climáticas.
Diante desse contexto, o Instituo de Manejo e Certificação Florestal e
Agrícola (IMAFLORA), organização do terceiro setor, com financiamento
da OAK Fundation, lançou em 2020 o projeto “Pira no Clima”, que tem
como objetivo:
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[...] contribuir para a elaboração de um Plano Municipal de Mitigação


e Adaptação à Mudança do Clima em Piracicaba/SP que considere as
questões de gênero direta e indiretamente relacionadas ao tema (Vello &
Campos, 2020, p. 2).

Neste sentido, o município de Piracicaba pode ser considerado um caso


relevante para analisar a inserção da temática de gênero na construção de um
plano municipal sobre mudanças climáticas, em uma perspectiva de atuação
multiatores, considerando que a iniciativa emerge de uma organização da
sociedade civil.
Esse capítulo tem por objetivo analisar o processo de construção do
projeto “Pira no Clima”, com foco em aspectos relacionados ao campo de
gênero. Para isso, foram realizadas análises de materiais como documen-
tos, vídeos, gravações, website, além da própria observação-participante em
reuniões dos Grupos de Trabalho de Mitigação e Adaptação e em reuniões
focais da temática de Gênero do projeto, nas quais foi possível estabelecer
diálogos, realizar intervenções, tirar dúvidas e colher relatos dos participantes
e coordenadores do projeto.
O capítulo parte de uma revisão sobre como a temática de gênero vem
sendo tratado na governança climática global, seguida de discussão sobre a
importância do nível local na questão climática, situando então o trabalho
no município de Piracicaba. Após essa contextualização, será apresentado
o estudo de caso e a recepção do projeto pelo poder público, a partir dos
quais foi possível tecer algumas reflexões no que tange a aspectos de gênero,
especialmente relacionadas às dimensões simbólicas de gênero que ficam
impressas nos documentos, às barreiras estruturais e políticas que esse tipo
de projeto encontra para ser efetivamente participativo e representativos das
diversidades, para além da equidade de gênero, e à recepção desse tipo de
iniciativa pelo Poder Público.

Gênero na governança climática

A inclusão de gênero como pauta importante na governança climática


é recente, ainda que o tensionamento dessas questões na pauta ambiental já
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 47

aconteça nos espaços internacionais já no início das discussões sobre desen-


volvimento sustentável, com críticas a perspectivas desenvolvimentistas da
época que não faziam diferenciação por gênero (Momsen, 2020). A partir do
livro de Ester Boserup, Women’s Role in Economic Development (1970), o
argumento de que com a modernização e industrialização mulheres seriam
automaticamente beneficiadas pelo desenvolvimento econômico é subvertido,
ao demonstrar que mulheres eram ainda mais marginalizadas por esses ideais,
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propondo mudanças que integrassem e incorporassem mulheres na economia


da época (Pearson, 2019).
Como desdobramento político, movimentos de mulheres começam a
atuar, com diferentes abordagens para a questão do desenvolvimento susten-
tável – campo que começa a se desenvolver também nos anos 1970. Grupos
como Women in Development (WID), Women and Development (WAD),
Women, Environment and Development (WED), Gender and Development
(GAD), preconizam diferentes perspectivas para a questão das mulheres,
variando desde uma abordagem calcada em um feminismo liberal, que pouco
considera as assimetrias de poder, centrando a análise na categoria “mulher”
de forma indiferenciada, a uma abordagem relacional, que vai para além de
um olhar sobre a mulher, trazendo as teorias de gênero para o campo ambiental
(Momsen, 2020; Rathgeber, 1990).
A recepção normativa desses debates se dá na Conferência das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento de 1992 (ECO-92), no
capítulo 24 da Agenda 21. Neste, governos signatários firmaram o compro-
misso de tomar medidas para aumentar o envolvimento de mulheres com o
desenvolvimento sustentável, aumentar sua participação na vida pública, além
de calcular o valor de seu trabalho não-remunerado, dentre outras medidas.
Com a criação do Women’s Major Group (WMG), nesta mesma Conferência,
garantiu-se um espaço de “observadoras” para grupos de mulheres e organi-
zações feministas, atuando com objetivo de promover a equidade de gênero
e garantir a participação de mulheres da sociedade civil nos processos rela-
cionados ao desenvolvimento sustentável na ONU (Gabizon, 2016).
Em 2015, com a substituição da Agenda 21 pela Agenda de Desenvolvi-
mento Sustentável 2030, foram estabelecidos os 17 Objetivos para o Desen-
volvimento Sustentável (ODS) para os países signatários da ONU, e dentre
eles, o ODS 5 tem como meta “alcançar a igualdade de gênero e empoderar
todas as mulheres e meninas”.
O tom que fica impresso na agenda ambiental internacional é aquele
preconizado por um feminismo liberal, que pouco discute as estruturas de
poder assimétricas resultantes das relações de gênero, resumindo medidas
ditas de gênero ao balanço numérico entre homens e mulheres, e na inserção
48

de mulheres à vida econômica, de forma universal e indiferenciada desta


categoria, o que reforça um estereótipo de mulheres como “vítimas”, espe-
cialmente as do Sul global (Resurrección, 2017).
Dentro da esfera de governança climática, com destaque para a UNFCCC,
a recepção dos debates de gênero é mais recente, porém com uma perspectiva
semelhante a dos outros espaços da ONU. Em 2009, foi criado o “Women
and Gender Constituency”, dentre nove grupos de interessados da UNFCCC,
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formado por 33 organizações de mulheres e ambientalistas da sociedade civil,


que tem por objetivo “garantir que as vozes das mulheres e seus direitos sejam
incorporados em todos os processos e resultados da estrutura da UNFCCC,
para um futuro sustentável e justo, de modo que a igualdade de gênero e os
direitos humanos das mulheres sejam centrais nas discussões em andamento”7.
Mas foi apenas na Conferência das Partes de 2014, COP-20, que se
avançou na institucionalização do debate, com o lançamento do Lima Work
Programme on Gender (LWPG) (Decision 18/CP.20), que tinha por objetivo
avançar nas questões de balanço de gênero e integrar considerações relativas
à gênero no Acordo de Paris. Em 2017, o primeiro Plano de Ação de Gênero
sob âmbito da UNFCCC foi estabelecido através da Decisão 3 do Acordo da
COP-23, na qual se reconheceu oficialmente a importância do envolvimento
igualitário de homens e mulheres nos processos da UNFCCC, e do desen-
volvimento e implementação de políticas climáticas nacionais sensíveis a
gênero (COP, 2017). No entanto, é importante destacar que o Plano de Ação
de Gênero não é um acordo vinculativo, ou seja, obrigatório para as Partes.
Apesar de não mandatário, o Brasil fez um esforço para recepcionar os
debates relativos a gênero em suas legislações climáticas a partir de 2014,
no caso, as Contribuições Nacionalmente Determinadas, nas quais o governo
brasileiro se compromete com a “promoção de medidas sensíveis a gênero”
(Brasil, 2016b, p. 1), e o Plano Nacional de Adaptação, em que os objetivos
incluem a “aplicação de abordagens sensíveis a gênero e com critérios raciais
e étnicos” (Brasil, 2016a, p. 19).
Mesmo que muito relevante, ainda se observa uma tendência dicotô-
mica nas discussões de gênero nesses espaços, que incorre na polarização e
universalização da categoria mulher, situando mulheres do Sul global como
vítimas e vulneráveis, e as do Norte global como as virtuosas e conscientes da
problemática ambiental, mais capacitadas para sua resolução (Arora-Jonsson,
2011; Elmhirst, 2011). Percebe-se uma essencialização do “ser mulher”, que
não leva em consideração a grande diversidade de mulheres no mundo, e as

7 Website Women and Gender Constituency. Disponível em: https://womengenderclimate.org. Acesso em: 11
abr. 2022.
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 49

intersecções com classe, raça, etnia, idade, além de uma visão paternalista
do Norte sobre o Sul.

Climate victims appear as passive figures in need of help to become sel-


f-reliant enough to cope in harsh conditions beyond their comprehension
and control. People who are positioned as vulnerable to extreme weather
and other forms of climatic destruction are both feminised and racialised
(MacGregor, 2017, p. 19).
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Assim, como aponta Ulrich Beck, “o discurso sobre política climática até
agora é um discurso especialista e elitista no qual povos, sociedades, cidadãos,
trabalhadores, eleitores e seus interesses, opiniões e vozes são muito negli-
genciados” (Beck, 2010, p. 254), em especial, vozes de mulheres, que ainda
são minoria em altos cargos políticos e científicos (MacGregor, 2010). Além
disso, instituições científicas e políticas são espaços simbolicamente masculi-
nos, como estudo de Magnusdottir & Kronsell (2015) aponta, ao demonstrar
que apenas uma equidade descritiva não leva necessariamente a impactos
diferenciais no que tange à questões de gênero em políticas climáticas.
Neste sentido, os estudos locais são de grande relevância, pois é a partir
das relações construídas nos territórios que as intersecções dos marcadores
sociais da diferença com as questões climáticas se materializam, possibilitando
a construção de políticas que de fato levem em conta as dinâmicas territoriais,
econômicas, sociais, que vulnerabilizam diferentes grupos populacionais,
incluindo suas especificidades, e considerando sua agência, imaginação polí-
tica e capacidade de mobilização.

O papel do nível local no enfrentamento às mudanças do clima:


o caso de Piracicaba

A globalização, as relações transnacionais, a complexificação dos riscos e


a radicalização da modernidade, apontados por Beck (2010), levam à demanda
por uma transição do governo (centrado nos Estados) para a governança
(Barbieri & Ferreira, 2018).
Ao ser construída como uma problemática de escala global, a pauta
climática passa a fazer parte de uma governança global ambiental, termo
polissêmico, que dentre várias definições, pode ser expressa como:

[...] a soma de todos os meios pelos quais os indivíduos e instituições,


públicos e privados, administram seus assuntos comuns. É um processo
contínuo pelo qual interesses conflitantes ou diversos podem ser acomoda-
dos e ações cooperativas podem ser tomadas (COMISSION ON GLOBAL
GOVERNANCE, 1995, p. 53).
50

A despeito da importância dos governos nacionais neste modelo, os estu-


dos sobre governança climática apontam para a necessidade deuma abordagem
multinível, que envolva governos subnacionais, os quais também são respon-
sáveis pela formulação e implementação de políticas e programas (Barbi &
Ferreira, 2017; Ferreira, 2020).
A legislação ambiental brasileira se constitui a partir de um processo de
descentralização desde a promulgação da Política Nacional do Meio Ambiente,
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em 1981 (Lei nº 6.938/81), que já previa uma gestão descentralizada com o


Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA). A Constituição Federal
do Brasil, instituída em 1988, reforçou esse aspecto ao elevar os municí-
pios ao status de unidade federada, trazendo obrigações e competências, e
por estabelecer a proteção do meio ambiente como competência comum da
União, Estados e Municípios por meio do artigo 225. Além disso, para que
haja efetividade no processo de descentralização, Scardua & Bursztyn (2003)
ressaltam a importância da participação social, a qual:

Tem como objetivo principal “facilitar, tornar mais direto e mais cotidiano
o contato entre os cidadãos e as diversas instituições do Estado, e possi-
bilitar que estas levem mais em conta os interesses e opiniões daqueles
antes de tomar decisões ou de executá-las” (Borja apud Jacobi, 2000,
p. 31), minimizando os efeitos/limitações da democracia representativa,
via engajamento da sociedade civil na formulação de políticas públicas
e no controle das ações governamentais e da coisa pública (Scardua &
Bursztyn, 2003, p. 294-295).

No entanto, para que essa descentralização seja efetiva, é necessário que


ocorra um compartilhamento das responsabilidades com as outras instâncias e
esferas governamentais, além de que sejam estimulados a capacidade institu-
cional e administrativa local, o controle social e medidas de flexibilização, com
responsabilidade na transferência de responsabilidades (Azevedo et al., 2007).
Neste sentido, o governo do estado de São Paulo instituiu em 2007 o
Programa Município Verde-Azul (PMVA), originalmente Município Verde,
para estimular os municípios a implementar políticas ambientais, através de
metas e objetivos a serem atingidos, além de fornecimento de apoio técnico
e institucional para capacitação local (Dantas & Passador, 2020). A partir da
avaliação do desempenho do município mensurado pelo Índice de Avaliação
Ambiental (IAA), desenvolvido pelo PMVA, os municípios são certificados
e recebem o selo “VerdeAzul” (Dantas & Passador, 2020).
O município de Piracicaba, participa do PMVA desde o início do pro-
grama em 2008 e atualmente ocupa a 22ª posição do ranking geral (que
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 51

apresenta a somatória do desempenho histórico dos municípios entre 2008


e 2020), tendo sido certificado oito vezes, dos treze anos avaliados (São
Paulo, 2022b).
De acordo com Sistema de Estimativa de Emissão de Gases – Municípios
(SEEG-Municípios), Piracicaba ocupa a 260ª posição no ranking de emissões
por município, tendo emitido 1.281 mil tCO2e no ano de 2018. Deste total,
785 mil tCO2e foram emitidas pelo setor energético (61%), sendo transportes a
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principal atividade emissora. O setor de resíduos foi responsável pela emissão


de 236 mil tCO2e (18%), seguido pela agropecuária, com 186 mil tCO2e (14%)
e Mudanças de Uso da Terra e Florestas com 74 mil tCO2e (6%). Não existem
informações relativas às emissões realizadas pelo setor industrial para este
município (SEEG – Municípios, 2022). Considerando que é uma atividade
econômica relevante para Piracicaba, há um prejuízo para compreensão do
panorama de emissões com a ausência deste dado.
Outro aspecto relevante é o fato de o município ser integrante das Bacias
PCJ. Essas bacias (Piracicaba, Capivari e Jundiaí) formam o conjunto com
maior comprometimento hídrico do estado de São Paulo, sendo as principais
fontes de captação de água e de lançamento de rejeitos (Giuliani & Pizzinatto,
2015). A sub-bacia do rio Piracicaba, que abrange o município aqui estudado,
apresenta situação crítica no sentido de que há uma demanda maior do que
a disponibilidade hídrica, muito relacionado à ocupação territorial da região
(CBH-PCJ, 2019).
A despeito da importância dessas bacias e da criticidade da questão
hídrica, são poucos os estudos que tratam dos efeitos das mudanças do clima
na região e em específico no município. De acordo com estudo realizado por
Molon e colaboradores (2019), através de registro histórico de 20 anos de
médias pluviométricas, constata-se um aumento de precipitação na região das
Bacias PCJ, que pode estar ligado a diversos fatores, dentre eles, a mudança
climática, que pode ampliar riscos de desastres, como deslizamentos, enchen-
tes, desmoronamentos.
Além disso, a baixa cobertura vegetal do perímetro urbano, uma média
de 26,8% de acordo com estudo da prefeitura (Piracicaba, 2017), a despeito da
existência de um plano de arborização urbana, pode levar à vulnerabilização
dos munícipes a ondas de calor, por exemplo.
Apesar da relevância da temática, considerando o exposto, o município
ainda não possui um plano ou política de enfrentamento às mudanças do
clima. No ano de 2010, foi promulgada a Lei Complementar nº 251/2010,
que “Dispõe sobre a consolidação da legislação que disciplina a proteção ao
meio ambiente, os programas e as iniciativas na área de interesse ambiental
do Município de Piracicaba”. Em seu artigo 39, institui a Comissão Municipal
52

sobre Mudanças Climáticas e Ecoeconomia Sustentável (COMCLIMA), que


tem por objetivo “promover e estimular ações que visem à mitigação das
emissões de gases causadores do efeito estufa, [...]”. Essa Lei foi alterada pela
Lei Complementar nº 420/2020, e regulada pelo Decreto nº 18.773/2021, o
qual dispõe sobre a nomeação dos membros da COMCLIMA. Até o momento,
foram realizadas 9 reuniões ordinárias sob âmbito da COMCLIMA, na
qual está sendo discutida a elaboração da Política de Mudanças Climáticas
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do município.

“Pira no Clima”: o papel de uma ONG na proposição de um


Plano Municipal de Mudanças Climáticas com olhar para gênero

Como já explorado no tópico anterior, a governança climática apresenta


um caráter multinível, do global ao local, mas também multiatores, uma vez
que diante de um processo complexo e multifacetado, a expectativa é de
soluções multifacetadas, que incluam diversos campos de atividade humana,
diversos setores sociais e partes interessadas, para além dos governos, como
agências multilaterais, setor privado, institutos de pesquisa e sociedade civil
organizada (Ferreira, 2020).

Esses atores desenvolvem uma multiplicidade de atividades relevantes


para a governança global: fornecem conhecimento técnico, definem agen-
das e tomam decisões regulatórias voluntárias complexas, participam da
formulação de políticas públicas nos âmbitos internacional e doméstico,
monitoram o cumprimento de obrigações e padrões, e até mesmo “sancio-
nam” o descumprimento através da exposição pública das partes faltosas
(naming and shaming) (Gianini, 2021, p. 58).

Na instância global, a participação desses grupos nas Conferências das


Partes no âmbito da UNFCCC é digna de destaque. Tanto como participantes
das delegações dos países, ou com credenciamento por ONGs no sistema de
Constituency, e até mesmo na organização de eventos paralelos, esses gru-
pos emergem como “co-contribuintes nas negociações multilaterais formais;
regentes e instrumentistas em diferentes esforços de orquestração; parceiros
em redes transnacionais; governadores privados; e manifestantes de fora”
(Kuyper et al., 2018, p2, tradução da autora).
Para fins de delimitação de escopo, neste trabalho trataremos da atuação
de uma parcela da sociedade civil organizada, as Organizações Não-gover-
namentais (ONGs), um universo que não é homogêneo, tanto em relação às
temáticas, quanto no sentido mais ontológico. De acordo com Gohn (2000,
2013), as ONGs surgem nos anos 1970/80 com um perfil militante, de apoio
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 53

aos movimentos sociais e populares, contra a ditadura e na luta pela redemo-


cratização do Brasil, possuindo então um perfil ideológico e projeto político
bem definidos.

Nesta fase as ONGs se preocupavam em fortalecer a representatividade


das organizações populares, ajudava a própria organização se estruturar,
muitas delas trabalhava numa linha de conscientização dos grupos organi-
zados. Não se tratava de um tipo qualquer de ONG mas das ONGs cidadãs,
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movimentalistas, militantes (Gohn, 2013, p. 243).

Já a partir dos anos 1990 há uma mudança neste perfil, com uma amplia-
ção e diversificação das organizações. As entidades que surgem neste momento
estão mais articuladas às empresas e fundações, neste sentido buscam um
afastamento das ONGs “militantes”, inclusive na nomenclatura, ao se reivin-
dicarem como “Terceiro Setor”.

As novas ONGs do Terceiro Setor não têm perfil ideológico definido, falam
em nome de um pluralismo, defendem as políticas de parcerias entre o
setor público com as entidades privadas sem fins lucrativos e o alargamento
do espaço público não estatal. A maioria delas foi criada nos anos 90 e
não tem movimentos ou associações comunitárias militantes por detrás.
Muitas delas surgiram pela iniciativa de empresários e grupos econômicos
e seu discurso é muito próximo das agências financeiras internacionais;
outras surgiram por iniciativas de personalidades do mundo artístico e
esportivo (Gohn, 2013, p. 247).

De qualquer forma, o que se percebe atualmente é uma forte atuação


destas organizações na área ambiental, tanto participando de conselhos e
comitês dos entes federativos, o que reflete na formulação, execução e fis-
calização de políticas públicas e programas de ação ambiental, participando
então da gestão direta do ambiente, mas agindo também de forma indireta,
como instrumentos de pressão social sobre o poder público em determinados
temas (Almeida et al., 2013). Além disso, cada vez mais existe uma diver-
sificação nas atividades exercidas pelas ONGs na área ambiental, atuando
no desenvolvimento de projetos socioambientais, na prestação de serviços
e assessoria técnica, desenvolvimento de estudos científicos, produção de
dados, comunicação, dentre outras atividades.
54

IMAFLORA e o projeto “Pira no Clima”: espaços participativos e


equidade de gênero

O Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (IMAFLORA)


ilustra bem a atuação das ONGs que surgem nos anos 1990, chamadas por
Gohn (2000) com ONGs propositivas, as quais “atuam segundo ações estraté-
gicas, utilizando-se de lógicas instrumentais, racional e mercadológica” (Gohn,
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2000, p. 24). Fundada em 1995, na efervescência das discussões sobre desen-


volvimento sustentável que ocorreram na Conferência das Nações Unidas
sobre Meio Ambiente (ECO-92), tinha como premissa conciliar o desenvolvi-
mento socioeconômico com a conservação florestal, a partir do entendimento
que “a viabilidade econômica é fundamental para a efetiva sustentabilidade
social e ambiental de empreendimentos florestais e agrícolas” (IMAFLORA,
2022a, s.p.). Com sede no município de Piracicaba-SP, e com dois escritórios
no estado do Pará, nos municípios de São Félix do Xingu e Santarém, possui
atuação em 25 estados brasileiros e na Argentina, mais de 68 milhões de
hectares (IMAFLORA, 2022b),

[...] o Imaflora tem a missão de contribuir para o desenvolvimento susten-


tável, incentivando e promovendo o manejo florestal e agrícola ambiental-
mente adequado, socialmente justo e economicamente viável; utilizando
como ferramentas a certificação, o treinamento e o apoio ao desenvolvi-
mento de políticas públicas (IMAFLORA, 2005, p. 5).

Possui atuação diversa, desde certificação florestal, certificação agro-


pecuária, certificação de carbono e de pequenos produtores, treinamentos e
assessoria técnica, na elaboração e implementação de políticas de interesse
público, através de análises e estudos técnicos, participa também de conselhos
governamentais, faz parte de redes de organizações ambientais, atuando em
parcerias para desenvolvimento de ferramentas e produção de dados vincu-
ladas principalmente ao setor agropecuário e de florestas, além de participar
de projetos locais em parcerias com setor privado, relacionados em geral com
a implementação de cadeias produtivas e de valor, dentre outras atividades
(IMAFLORA, 2022b).
O desenvolvimento de suas ações ocorre com o aporte de financiado-
res, patrocinadores, doadores e parceiros para os projetos, dentre eles outras
instituições não governamentais brasileiras e internacionais, governos de
outros países, governo brasileiro (através do Fundo Amazônia, por exemplo)
e empresas privadas. Possuem também um Fundo Social, para o qual é des-
tinado 5% do valor de todo contrato de certificação realizado com grandes
empresas. Com o financiamento deste Fundo, realizam certificações florestal e
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 55

agropecuária para pequenos proprietários e comunidades. A relação de projetos


e financiadores está disponível no website da organização, na seção Transpa-
rência, sendo possível verificar as fontes de financiamento, projeto a qual foi
destinado, valores e prazos de vigência (IMAFLORA, 2022d).
Dentre os projetos vinculados às políticas de interesse público, está o
“Pira no Clima”, que atua em Piracicaba com objetivo e construção de um:
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Plano Municipal Participativo de Mitigação e Adaptação às Mudanças


Climáticas, através de princípios metodológicos e objetivos finais que
buscam ampliar a participação e combater as desigualdades de gênero,
ao mesmo tempo em que geram e difundem dados sobre o município
(IMAFLORA, 2022b, s.p.).

O projeto foi financiado pela OAK Foundation e realizado em parceria


com Observatório do Clima, SEEG Brasil, Observatório Cidadão de Piraci-
caba, Engajamundo, Unesp – Rio Claro, WayCarbon, MOVE e Estúdio Nó
(IMAFLORA, 2022c). Não foram encontradas informações referentes ao
valor de financiamento na página de Transparência.
De acordo com relatos colhidos ao longo do processo, a ideia do projeto
surge a partir das relações pessoais e “conversas de corredor” que costumam
acontecer no ambiente profissional. Assim, a partir de conversas entre pessoas
que trabalhavam na área de políticas públicas e de clima, o projeto começou
a ser pensado. O financiamento, um “Seed money” – por ser um valor baixo
para a fundação financiadora – foi recebido no ano de 2018, com prazo para
que fosse finalizado até o final do ano de 2020. A ideia de realizar a atividade
com uma perspectiva de gênero foi trazida pelo financiador, no entanto, não
havia diretrizes de como o projeto deveria ser executado.
O projeto começou a ser executado no ano de 2020 e desde sua concepção
foi desenhado para ser um processo participativo e com perspectiva de gênero.
Para isso, a estratégia de desenvolvimento foi a de criação e facilitação de
diferentes espaços participativos, com diferentes objetivos, adaptados para
que ocorressem de forma virtual uma vez que o processo foi atravessado pela
pandemia de COVID-19, deflagrada em março de 2020. A tabela a seguir
sintetiza os espaços, realizados ao longo do ano de 2020, com seus principais
objetivos, número de reuniões e participantes, com o indicativo de gênero,
quando a informação estava disponível (Quadro 1).
56

Quadro 1 – Espaços participativos do projeto “Pira no Clima”,


subgrupos dos espaços, número de eventos relacionados, objetivo
do Espaço, participantes e organizações envolvidas
Eventos/ Organizações
Espaço Subgrupos Objetivos Participações
Encontros envolvidas
63 pessoas
(32 mulheres e
Monitorar e
7 encontros entre 21 homens)
Grupos de Mitigação validar as etapas
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abril e setem- Espaço aberto 28 instituições


Trabalho Adaptação da formulação
bro de 2020 (divulgação
das ações.
ampla) e pessoas
convidadas.
Agropecuária;
Resíduos Sóli-
dos; Mudança 52 pessoas (35
do Uso da mulheres e 17
Terra; Energia Levantar propos- homens).
Reuniões e Indústria; tas de ações a Público espe-
9 encontros 29 instituições
Temáticas Deslizamentos; serem contem- cífico: pessoas
Enchentes; Se- pladas no Plano. com experiência
cas e Ondas de acadêmica ou
Calor; Gênero; empírica nos temas.
Desigualdade
Sociais.
-Caminhos da Conscientizar
Solução e escutar
19 participantes Engajamundo,
- Sarau Clima demandas e
Juventude 44 participantes EngajaPira e
e Juventude percepções da
27 participantes Batalha Central
- Diálogo população jovem
Participativo sobre o tema.
42 participantes
Alcançar pes-
da Oficina de
soas que vivem
Justiça Climática
nas periferias
4 mulheres negras
- Oficina de Justiça de Piracicaba e
com bolsas para
Climática sensibilizá-las
Gênero atuarem como
Diálogos - Compartilhando sobre o tema da
multiplicadoras (ví-
Participativos Saberes justiça climática,
deos gravados com
além de colher
relatos, experiên-
suas visões e
cias e percepções
demandas.
sobre o tema).
Colher experiên-
cias, percepções Grupo Raízes do
e contribuições Entrevistas com Tupi (Laboratório
Entrevista com
dos produtores 7 produtores de Educação e
Rural líderes comunitários
rurais, que não rurais (pequenos Política Ambiental
e produtores
estavam repre- e familiares). – OCA da
sentados nos ESALQ/USP)
espaços virtuais.
Fonte: Elaborado pela autora a partir dos registros das reuniões.
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 57

A imagem abaixo, apresentada na 4ª reunião dos Grupos de Trabalho,


ilustra o fluxo de eventos e atividades realizadas ao longo do projeto (Figura 1).

Figura 1 – Fluxo de eventos e atividades realizadas ao longo


do desenvolvimento do projeto “Pira no Clima”

Coleta de Redação do
diretrizes Coleta de ações Plano
(reuniões temá�cas
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(formulário)
e diálogos
par�cipa�vos)

1ª reunião 2ª reunião 3ª reunião 4ª reunião 5ª reunião Consulta


dos GTs dos GTs dos GTs dos GTs dos GTs pública

Diálogo com Análise Análise de emissões Validação das Validação das


outros legisla�va e risco diretrizes ações
municípios (produto 1) (produtos 2 e 3) coletadas coletadas

Fonte: Registro da 4ª reunião dos Grupos de Trabalho em Adaptação e Mitigação


do projeto “Pira no Clima”, realizada no dia 20 de julho de 2020.

Houve um cuidado para que todo o projeto tivesse equidade de gênero


em seus espaços, além da participação da sociedade civil, para que diferen-
tes perspectivas sobre como as questões climáticas incidem no território de
Piracicaba fossem consideradas. Para além de apenas garantir a participação
de mulheres, a partir da quarta reunião dos GTs (conjunta), a pactuação dos
acordos coletivos que costumeiramente eram adotados (como manter micro-
fones fechados, câmeras abertas e inscrição de falas através da ferramenta
virtual de “levantar a mão”) passou a incluir a preferência da palavra para
mulheres e recém-chegados, uma vez que houve ocasiões de interrupções e
monopólio das falas por parte de homens em outras reuniões.
De acordo com síntese do processo documentada pelo IMAFLORA
(Garcia-Drigo et al., 2020), em torno de 82% das pessoas que participaram
dos espaços participativos eram mulheres, porém das pessoas convidadas
para mediar ou realizar palestras, a porcentagem cai para 45,5%. Ao analisar
especificamente os Grupos de Trabalho, as autoras verificaram que os GTs
se aproximaram bastante de uma equidade de gênero (Garcia-Drigo et al.,
2020), e de acordo com as atas dos encontros, a maioria dos participantes
era proveniente do Poder Público e da Academia, e uma pequena minoria do
terceiro setor e de empresas privadas.
58

Ao desagregar as reuniões de acordo com a temática relacionada a ques-


tões sociais ou das ciências exatas/biológicas, é possível perceber que nas
discussões sociais houve predomínio de mulheres (82,4%), enquanto em reu-
niões relacionadas às ciências exatas/biológicas, a diferença entre os gêneros
cai, ainda que com maior percentual de mulheres (65,2%) do que de homens
(Garcia-Drigo et al., 2020).
Apesar dos esforços para alcançar a diversidade de gênero, a diversidade
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racial não foi alcançada nos espaços dos grupos de trabalho, com predomínio
de pessoas brancas. Foi necessário um esforço ativo para trazer mulheres
negras para o processo, através da contratação e pagamento de bolsas para que
gravassem vídeos trazendo suas percepções e olhares sobre como a mudança
climática atravessa suas vidas, atuando também como multiplicadoras em
seus bairros e espaços de vivência (Garcia-Drigo et al., 2020). Os diálogos
que envolveram a juventude também apresentaram maior diversidade racial,
especialmente o Sarau, por ter sido realizado em parceria com um coletivo
jovem de Hip Hop local, Batalha Central (observação pessoal).
Ainda na questão sobre diversidades, a participação de pessoas transgê-
nero foi pouco significativa, com a identificação de apenas uma mulher trans
participante dos processos participativos e mediando uma mesa. Também
houve tentativa de trabalhar com pessoas refugiadas, porém sem sucesso.

Produtos do projeto “Pira no Clima”: aspectos de gênero

Ao longo do processo, foram produzidos documentos que tinham como


propósito servir como subsídios para elaboração das diretrizes e ações do
Plano. São eles: “Mudanças climáticas na legislação”, que traz um mapea-
mento da legislação de Piracicaba relacionado à agenda climática e de gênero,
o relatório “Emissões de gases de efeito estufa”, no qual foram identificados
os setores de maior emissão do município através de dados do SEEG-Mu-
nicípios, e o relatório “Risco socioclimático”, que traz um levantamento de
riscos nas áreas urbanas e rural do município, com uma perspectiva baseada
em ameaças ambientais e vulnerabilidades sociais.
A partir do documento de diretrizes colaborativas, e das ações, foi redi-
gido o documento final “Piracicaba Resiliente: proposta de ações para o Plano
Municipal de Mudanças Climáticas de Piracicaba”, com “propostas de dire-
trizes, objetivos e ações para integrarem o Plano Municipal de Mudanças
Climáticas de Piracicaba.” Assim, o produto resultante do projeto não foi um
Plano Municipal, mas propostas que serviriam como insumo para a formu-
lação do Plano Municipal pelo Poder Público, juntamente com os outros três
documentos técnicos produzidos ao longo do projeto. A perspectiva é que essas
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 59

ações propostas sejam levadas em consideração pelo Poder Público, gerando


metas e resultados monitoráveis na sua implementação (IMAFLORA, 2020).
Partindo para um olhar sobre os produtos, fica muito marcado como
questões de gênero e suas interseccionalidades ainda ficam restritas a aspectos
adaptativos e relacionados à questão de vulnerabilidades. No relatório sobre
aspectos da legislação de Piracicaba, questões sobre gênero ou mulheres apa-
receram no eixo temático “Acolhimento e empoderamento de grupos especial-
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mente vulneráveis”, que tratavam de “Medidas de proteção e adaptação para


mulheres, LGBTQIA+, população de baixa renda, pessoas com deficiência,
idosos e crianças; Ações de acolhimento a pessoas prejudicadas por eventos
climáticos extremos; Medidas para aumento da representatividade de grupos
vulneráveis” (Vello & Campos, 2020).
O boletim de risco socioclimático de Piracicaba (Vello et al., 2021) é
o que mais aborda questões de gênero, especificamente, sobre mulheres. O
relatório destaca que o aumento das ondas de calor impacta diretamente na
saúde de idosos, crianças e mulheres gestantes, elevando a vulnerabilidade
de pessoas que vivem em áreas de maior risco socioclimático. Além disso,
ressaltam a vulnerabilização de mulheres chefes de família, destacando o papel
de cuidado que exercem com idosos e crianças, e como os efeitos diretos das
ondas de calor na saúde desses grupos pode gerar efeitos indiretos sobre essas
mulheres (Vello et al., 2021).
O documento que sintetiza as Diretrizes Colaborativas, gerada a partir
dos espaços participativos, traz como valor fundamental para uma aborda-
gem da questão climática que leve a uma transformação de paradigmas e não
apenas readequação da situação atual, “o respeito e valorização da diversi-
dade sexual, de gênero, de raça, de classe, de etnia, de credo, de origem, de
expressão e outras, através da equidade e da isonomia de direitos”. Ao longo
do texto, questões relacionadas a mulheres, gênero, refugiados, população
negra, LGBTQIA+, migrantes ou pessoas em situação de rua (não necessaria-
mente todos) aparecem nos eixos de agropecuária, mobilidade, acolhimento
de vulneráveis, empoderamento de vulneráveis e doenças amplificadas com
a mudança do clima.
Na proposta final, “Piracicaba Resiliente”, a justiça climática é entendida
como pilar fundamental, junto ao respeito e valorização da diversidade sexual,
de gênero e identidade de gênero, de raça, de classe, de etnia, de credo, de
origem, de expressão e outras, através da equidade e da isonomia de direitos,
do reconhecimento e valorização dos saberes tradicionais e diversas formas
de vida existentes (IMAFLORA, 2020).
Dentre os nove temas abordados (Arranjos institucionais e governança,
Mitigação – Energia, Mitigação – Agropecuária, Mitigação – Resíduos,
60

Mitigação – Mudança de uso da terra, Mitigação – Processos industriais,


Adaptação – Prevenção e redução de exposição – Inundações, Adaptação –
Redução de vulnerabilidades), gênero, mulheres, população negra, refugiados,
idosos, crianças, migrantes, são mencionados apenas nos temas “Mitigação –
Energia’, em diretriz relacionada à mobilidade urbana e “Adaptação – Redução
de vulnerabilidades”, em diretrizes relacionadas a medidas de acolhimento,
proteção e fortalecimento da participação política de grupos socialmente vul-
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neráveis frente às mudanças do clima, e de fortalecimento do sistema de saúde


(IMAFLORA, 2020).
Por fim, um dos objetivos do projeto através de estratégias de incidência
política e advocacy era a regulamentação da COMCLIMA (IMAFLORA,
2022c), instância criada em 2010, mas ainda não operacional no ano de 2020.
Este objetivo foi atingido e em junho de 2021 com o Decreto nº 18.773,
foram nomeados os representantes do Poder Público e da Sociedade civil
para compor a COMCLIMA.
Essa incidência política se deu não apenas no sentido de colocar a Comis-
são em funcionamento, mas também de garantir a equidade de gênero entre
seus membros. Ficou consolidado em seu regimento interno, de novembro de
2021, que a COMCLIMA deveria ser formada por no mínimo “50% (cinquenta
por cento) de membros do gênero feminino, devendo também ser considerada
a diversidade étnicoracial da população piracicabana” (COMCLIMA, 2021,
p. 2), o que de fato se deu apenas no que diz respeito a gênero, com a Comissão
atualmente contando com 23 mulheres e trezes homens, na maioria branca.

A recepção da proposta pelo poder público: COMCLIMA e


elaboração da política municipal

Com a efetivação da COMCLIMA, o município de Piracicaba inicia o


processo de construção do seu Plano de Mudanças Climáticas para o muni-
cípio. Em sua 4ª reunião ordinária, realizada em outubro de 2021, a pro-
posta de articulação para construção do Plano é parte da pauta e Bruno Vello,
vice-presidente da Comissão e representante do IMAFLORA, apresenta o
projeto “Pira no Clima” para os outros membros. Na 6ª reunião ordinária,
a proposta de Plano de Trabalho para a construção do Plano Municipal de
Mudanças Climáticas é discutido, e fica definido que deverá ser elaborada uma
Política Municipal de Mudanças Climáticas e posteriormente Planos de Ações
bianuais. Na 8ª reunião ordinária, houve a apresentação de uma proposta de
Política de Mudanças Climática pelo vice-presidente, que teve sua redação
inicial baseada no documento “Piracicaba Resiliente”, produto do projeto
“Pira no Clima” e um GT foi criado para trabalhar neste documento, pois,
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 61

de acordo com registro em ata, “O formato do documento ainda está muito


parecido com o documento do “Pira no Clima”. É preciso transformá-lo num
texto mais voltado para a legislação” (COMCLIMA, 2022b).
Ao avaliar a “Minuta da Política Municipal de Mudanças Climáticas de
Piracicaba – versão 02.2022, no que diz respeito à abordagem de questões rela-
cionadas a gênero e suas interseccionalidades, o que se tem é, em consonância
com os documentos do “Pira no Clima”, o indicativo em seus pilares e valores
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de que a Política deve ser construída a partir de valores fundamentais como:


“respeito e atenção às diversidades de gênero, de raça, de poder aquisitivo, de
etnia, de origem, de expressão e outras, através da equidade e da isonomia de
direitos, do reconhecimento e valorização dos saberes tradicionais e diversas
formas de vida existentes” e no tema “Adaptação – Redução de vulnerabili-
dades”, em itens relacionados ao acolhimento, medidas de proteção e forta-
lecimento da participação política de grupos socialmente vulneráveis frente
aos efeitos das mudanças climáticas, mesmo na Política constando os mesmos
nove temas propostos pelo “Piracicaba Resiliente” (COMCLIMA, 2022a).

Considerações finais

A proposta deste capítulo foi, através de um estudo de caso, o projeto


“Pira no Clima”, executado no município de Piracicaba, analisar uma proposta
empírica de construção de um plano municipal participativo para o enfren-
tamento das mudanças climáticas. O que torna esse projeto um interessante
estudo de caso é o fato de, além de ser uma proposta participativa, foi elabo-
rado por uma organização não-governamental e apresenta, desde sua proposta
inicial o objetivo de construir um plano municipal com perspectiva de gênero.
A despeito de sua importância, é perceptível que algumas barreiras
estruturais permanecem, ainda que se tenha buscado realizar um processo
participativo, trazendo gênero e suas interseccionalidades desde o processo
de construção dos espaços, reforçando alguns aspectos já informados pela
literatura no que diz respeito aos campos simbólicos de gênero nas discussões
sobre mudanças climáticas e em como os espaços de governança operam em
relação a dinâmicas de poder.
A centralização de propostas ligadas a gênero e populações marginali-
zadas no eixo da adaptação reproduz um discurso de gênero que essencializa
grupos não-hegemônicos, retirando sua agência e as colocando no papel de
vítimas passivas das mudanças climáticas.
A predominância de pessoas representantes do meio científico e do poder
público também reforçam o caráter simbólico (e material) masculino que o
campo de mudanças climáticas apresenta, reforçando discursos e narrativas
62

com viés androcêntrico ao reproduzir uma estrutura binária que coloca as


Ciências Modernas e o Estado (campos simbolicamente masculinos) no eixo
da resiliência, e populações socialmente minorizadas (como mulheres e pes-
soas não-brancas) no eixo da vulnerabilidade, excluindo-as da possibilidade
de contribuir com soluções.
Houve predomínio de pessoas brancas nos espaços decisórios, ainda
que mulheres, e apesar de haver um esforço ativo, no sentido de busca e
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remuneração, para inclusão de pessoas negras e periféricas, a participação


desses grupos ficou limitada a espaços de discussão e colheita de propostas,
enquanto os espaços decisórios permaneceram ocupados por pessoas brancas,
especialistas e do Poder Público.
Assim, ainda que existam representantes do gênero feminino nestes espa-
ços, ocupando posições de especialistas e burocráticas, apenas uma represen-
tação descritiva (ligada à identidade do representante), não é suficiente, uma
vez que mesmo as mulheres que participam da tomada de decisão em geral
fazem parte de uma elite branca a qual os interesses e visões diferem dos
conhecimentos de grupos marginalizados. Além disso, as normas e poderes
masculinos estão entranhados em instituições nas quais, independente do
gênero, essas normas são reproduzidas.
Assim, o racismo estrutural se retroalimenta uma vez que esses grupos
vulnerabilizados, que comprovadamente sofrem mais com os efeitos negativos
da mudança climática, não fazem parte dos espaços de poder e tomada de
decisão, mesmo em um processo que foi pensado para ser participativo – as
barreiras estruturais ainda se fazem presentes.
Outro ponto de destaque está relacionado à inclusão da perspectiva
de gênero a partir da demanda do financiador, o que levou os responsáveis
pela execução a buscar uma pessoa com experiência no campo de gênero. A
maneira como essa perspectiva seria incluída no projeto não foi determinada
pelo financiador, o que permitiu que a coordenação desenvolvesse as próprias
estratégias de forma livre.
Considero esse fato como algo positivo, no sentido de não haver demanda
para uma perspectiva específica de gênero, que em decorrência das diretrizes
constituídas em espaços internacionais, costuma apresentar um viés liberal e
não-interseccional. A perspectiva de gênero pensada para o projeto foi crítica
e interseccional, decorrente das experiências pessoais da coordenadora. No
entanto, o entendimento da importância de incluir gênero no processo não se
efetivou plenamente na recepção pelo Poder Público, que reduziu o número
de propostas vinculadas à gênero na sua minuta de Plano Municipal.
Assim, apesar de uma iniciativa com muitos potenciais, os entraves estru-
turais, políticos e burocráticos, decorrentes dos sistemas de opressão de raça,
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 63

classe e gênero, ainda impedem que diferentes vozes sejam de fato ouvidas
e consideradas na efetivação de uma governança climática que de fato seja
co-produzida com a sociedade civil ampla, e não apenas por especialistas e
burocratas, o que reforça as críticas a um entendimento de governança que
não leve em consideração as relações de poder.
Para além da importância na construção de uma política climática, o
engajamento da população nas ações e no controle social é essencial. Pers-
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pectivas feministas e interseccionais de gênero, que levam em consideração


as relações de poder que operam na sociedade, podem fornecer pistas sobre
como superar essas barreiras para a construção de políticas e de uma gover-
nança menos no sentido de gestão e mais no sentido de novas imaginações
políticas, que representem de fato os interesses diversos da população.
64

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CAPÍTULO 4
MUDANÇAS CLIMÁTICAS GLOBAIS
E REPRESENTAÇÕES LOCAIS:
desigualdades de Acesso e Representação
na imprensa de Santos (SP)
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Eduardo Prado Gutiérrez

Introdução

A mudança climática antropogênica constitui um risco global complexo


cujas causas e consequências se encontram desacopladas no tempo e espaço,
com seus efeitos deletérios se explicitando de maneiras heterogêneas ao redor
do globo (IPCC, 2021). A conexão entre causa e efeito e a percepção do risco
climático nos diferentes contextos urbanos em que se materializa são definidas
e mediadas socialmente a partir de complexas interações entre global e local
(BECK, 2018), com redes internacionalizadas de especialistas constituindo
uma importante ponte entre as representações globais do fenômeno e o seu
tratamento local e urbano (BARBI; MACEDO, 2019). A partir dessa intera-
ção entre conhecimento científico e histórias e relações sociais localizadas,
emergem representações urbanas da mudança climática, com os veículos de
comunicação regionais constituindo uma instância crucial para a disseminação
de seus significados locais (HANSEN, 2010; VIVARTA, 2010).
Nesse sentido, constata-se forte emergência de tais representações no
imaginário social de municípios que já experienciam riscos climáticos dra-
máticos, como cidades costeiras e portuárias expostas à elevação do nível do
mar (BLOK; TSCHÖTSCHEL, 2018). No Estado de São Paulo, a cidade de
Santos abriga o maior Porto da América Latina e exemplifica essa questão,
já estando sujeita a efeitos da mudança climática como a intensificação de
ressacas, erosão costeira, ondas de calor e episódios de precipitação intensa
(MARENGO et al., 2019; HARARI et al., 2019; SANTOS, 2022). Nesse
município, tal deterioração da conjuntura climática têm motivado uma eferves-
cente transformação das representações do fenômeno, visíveis em importantes
periódicos regionais como ‘A Tribuna de Santos’, e em esferas de política
pública (BARBI, 2014; GUTIÉRREZ, 2021).
72

Essa efervescência tem sido catalisada pela operação de redes interna-


cionalizadas de especialistas na cidade, que apresentam forte diálogo com
os formuladores de política e exercem importante papel na co-produção
de estratégias municipais envolvendo múltiplos atores e níveis de governo
(MARENGO et al., 2019; Gutiérrez, 2021). Instrumentos chave nesse sentido
têm sido a projeção de cenários climáticos e custos econômicos dos impactos
cumulativos da mudança do clima para o município, realizada pela primeira
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vez pelo Projeto METROPOLE, iniciativa científica interdisciplinar que ope-


rou entre 2013 e 2017 (MARENGO et al., 2019).
As projeções resultantes dessa iniciativa focam em perdas econômicas
futuras em duas áreas da cidade tidas como especialmente vulneráveis: a
Zona Sudeste e a Zona Noroeste (MARENGO et al., 2019). Para a primeira,
os custos econômicos relativos à elevação do nível do mar até 2050 são 7
vezes maiores do que para a segunda (MARENGO et al., 2017), refletindo
a concentração da população de alta renda em edifícios próximos à Orla na
Zona Sudeste, enquanto a Zona Noroeste se encontra distante do centro de
Santos e abriga majoritariamente populações de baixa renda que convivem
com elevada vulnerabilidade socioambiental (BARBI, 2014; SANTOS, 2022).
A delimitação dessas Zonas para modelagem dos custos exerce um efeito
interessante sobre a cobertura jornalística da ‘Tribuna de Santos’, onde essas
duas áreas passam a figurar simbolicamente como as fronteiras dos impactos
climáticos na cidade. A inserção dos especialistas internacionalizados viabi-
liza a conexão jornalística entre risco climático e eventos extremos, levando
também à transformação da percepção sobre questões como a erosão costeira,
que passam a ser crescentemente percebidas como problemas relacionados à
elevação do nível do mar e que exigem uma articulação regional de soluções
(GUTIÉRREZ, 2021).
No entanto, há um noticiamento desproporcional da Zona Sudeste, que é
mencionada textualmente em notícias sobre mudança climática com o dobro
da frequência de bairros localizados na Zona Noroeste e em Morros de Santos
(GUTIÉRREZ, 2022). Nesse sentido, o bairro da Ponta da Praia torna-se um
símbolo particularmente importante ao concentrar potenciais perdas econô-
micas e figurar como o segmento da Zona Sudeste mais exposto à ocorrência
de ressacas (GUTIÉRREZ, 2021).
Partindo da identificação dessa priorização textual das áreas abastadas
localizadas na Orla, este capítulo tem como objetivo comparar a frequência e
os mecanismos representacionais associados à representação imagética des-
sas diferentes Zonas na cobertura da ‘Tribuna de Santos’. Para tal propósito,
utiliza-se uma metodologia quantitativa de análise de conteúdo, de modo a
identificar a frequência e o conteúdo das imagens referentes às diferentes
áreas na cobertura regional sobre mudanças climáticas na ‘Tribuna de Santos’.
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 73

As variáveis que guiam a análise são definidas de modo a capturar qual área
está sendo representada na imagem e os mecanismos representacionais que
estão sendo invocados. Além disso, busca-se identificar a relação dos textos
visuais com a circulação de artefatos e diagramas de visualização do risco a
partir de redes científicas internacionalizadas como o Projeto METROPOLE.
Encontra-se como resultado que no diálogo com as redes de pesquisa-
dores, criam-se novos símbolos e representações do território que fazem a
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conexão entre a mudança do clima e os impactos nas áreas estudadas. Porém,


as imagens são saturadas por retratos do bairro da Ponta da Praia, enquanto
a Zona Noroeste é representada raramente e de formas geralmente abstratas
e que colocam a vulnerabilidade como um traço ontológico a partir do qual a
região é enxergada (MIKULEWICZ, 2020). Mais do que isso, sugere-se que
essa representação pode estar calcada em uma imaginação potencialmente
danosa sobre as populações ali residentes, condensando-as a partir de traços
de desempoderamento, passividade e pobreza.
As seguintes seções realizam essa discussão estruturando-se da seguinte
forma: A seção seguinte se inicia com uma revisão da literatura sobre mudança
climática na mídia, de modo a compreender as disparidades na frequência e
na representação jornalísticas do Norte e Sul Global, e de centro e periferia
urbanas. Passa-se então para uma contextualização da conjuntura climática
da Baixada Santista, e na Seção 3 detalha-se a metodologia quantitativa a ser
utilizada. Já na Seção 4 se expõem os resultados colhidos a partir da Meto-
dologia, e na Seção 5 se realizam discussões e inferências a partir dos dados
e de seu diálogo com a literatura. Finalmente, conclui-se na Seção 6.

Mudanças climáticas e disparidades inter e intra-regionais na


imprensa

Há ampla literatura na área de estudos de comunicação explorando as


representações globais da mudança climática na imprensa internacional. Varia-
dos estudos se debruçaram sobre a operação de veículos de escopo global
e nacional (BOYKOFF, 2013; ALMIRON; MORENO, 2020; RODAS; DI
GIULIO, 2016), evidenciando as redes de atores a partir das quais a questão é
mobilizada e contestada na cobertura e as maneiras pelas quais riscos ambien-
tais ‘não-intrusivos’ passaram a ser conectados a implicações normativas e a
uma coleção de recursos semióticos (HANSEN, 2010).
A visualização do tema na imprensa de escopo internacional tende a
enfatizar a conexão com ‘outros distantes’ como populações de países-ilha
e espécies ameaçadas de extinção, associando a mudança do clima a símbo-
los e dimensões afetivas (BRAASCH, 2013; BECK, 2018). Tais representa-
ções colorem a mudança climática e riscos ambientais globais em termos de
74

responsabilidade normativa para com gerações futuras, seres não-humanos e


comunidades vulneráveis, evidenciando a interdependência entre civilização
e ambiente (HANSEN, 2010; BECK, 2018). No entanto, ao mesmo tempo
em que as manchetes expressam necessidades urgente de ação global unida
e colorem o tema a partir de responsabilidade para com a humanidade e o
planeta, verifica-se também a ocorrência de longos silêncios na ausência de
eventos dramáticos ou que mobilizem os centros de poder social (ANDRADE,
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1994; BOYKOFF, 2013, 2022).


Essa alternância pode ser explicada pela dificuldade de encaixar riscos
sistêmicos, abstratos e de longo prazo na pauta midiática. Os eventos e fatos
que serão transformados em notícia são selecionados segundo critérios e valo-
res como a adequação do evento ao tempo do noticiário, sua importância para
elites econômicas e políticas, sua proximidade (geográfica ou cultural), sua
possibilidade de personalização, sua negatividade, ineditismo e dramaticidade,
entre outros (GALTUNG; RUGE, 1965; HARCUP; O’NEILL, 2017). Desse
modo, tende a ocorrer um sub-noticiamento de riscos abstratos de desen-
rolar longo, que permeiam a pauta apenas quando chegam a um desfecho
(ANDRADE, 1994; GIRARDI et al., 2020).
No caso das mudanças climáticas, a prática jornalística estruturada a
partir dessas convenções traz como resultado uma cobertura com alguns vie-
ses informacionais, como a super-representação de fontes oficiais devido à
sua credibilidade percebida, e também dos eventos que as reúnem, como
conferências diplomáticas, acordos políticos e desastres naturais (HANSEN,
2010; BOYKOFF, 2013). Desse modo, fontes científicas internacionalizadas
ou governamentais tendem a predominar na cobertura (BOYKOFF, 2013).
Além disso, fontes e eventos baseados no Norte Global tendem a ser
super-representados (FRANKS, 2006; GALTUNG; RUGE, 1965), dadas as
desigualdades inter-regionais na distribuição de recursos jornalísticos, tendên-
cia cristalizada na importância das agências ocidentais (Thomson Reuters, AP
e AFP) no ecossistema mundial de informação (BOYD-BARRETT, 2011).
Dado esse circuito, eventos em países do Sul tendem a adentrar o noticiário
internacional apenas quando exibem ângulos relevantes para o Norte, ou a
partir de eventos dramáticos e negativos, como tragédias humanas e golpes
militares (GALTUNG; RUGE, 1965; FRANKS, 2006). A concentração nesse
tipo de notícia tende a circular uma ideia de inerente inferioridade do Sul Glo-
bal (GALTUNG, RUGE, 1965), podendo constituir uma forma de violência
discursiva ao resumir as populações referidas a partir de traços como desem-
poderamento, passividade e dependência externa (MIKULEWICZ, 2020).
Tais disparidade inter-regionais se somam à constatação de desigualdades
intra-regionais com a concentração de recursos jornalísticos em capitais e as
diferenças do tratamento dos espaços urbanos centrais e periféricos, assim
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 75

como dos grupos que neles residem (VIVARTA, 2010; HELTON, 2021).
Assim como ocorre com populações do Sul Global na cobertura internacional,
as representações jornalísticas e midiáticas dos residentes nas periferias urba-
nas tendem a estar baseadas na imaginação de uma subjetividade específica
que condensa traços de primitivismo e desempoderamento (HALL, 2015). Tal
constatação está em linha com a extensa literatura de estudos culturais que
demonstra que a pauta e o conteúdo na imprensa de referência são construídos
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sobre e potencialmente reforçam ideologias hegemônicas relacionadas a estra-


tificações sociais de classe, gênero e raça (KELLNER, 2015; HALL, 2015).
Dada essa questão teórica e constatando a intensificação das materiali-
zações urbanas dos riscos climáticos (IPCC, 2021), busca-se aqui conduzir
um estudo empírico que se sustenta sobre uma ponte entre estudos culturais
e linhas de pesquisa dentro da ciência ambiental focadas no detalhamento da
interação entre definições públicas de risco e desigualdades e imaginários
locais (AMARAL, 2018; PEREIRA et al., 2020; HINKEL et al., 2018). Tendo
isso em mente, a próxima seção se direciona para contextualizar as antigas
disparidades sociais que se cristalizaram na segregação socioespacial de popu-
lações de baixa renda na cidade de Santos (OSCAR JÚNIOR et al., 2019).

O contexto santista

O município de Santos é palco de discussões avançadas sobre riscos e


oportunidades da mudança climática, sendo também permeado por intensas
desigualdades urbanas. Centro da Região Metropolitana da Baixada Santista
(RMBS), a cidade possui 450.000 habitantes e abriga ao mesmo tempo o
maior Porto da América Latina e a maior aglomeração de palafitas do Sudeste
brasileiro (BARBI, 2014; MARENGO et al., 2019). Localizado entre Serra
do Mar e Oceano Atlântico, o município se divide entre área continental e
insular, com essa última concentrando a maior parte da população (OSCAR
JÚNIOR et al., 2019). Seu perfil geográfico é marcado pela presença das
formações de Serra na área continental e pela baixa elevação da área insular
em relação ao nível do mar, sendo o território historicamente vulnerável a
riscos ligados à variabilidade climática, como eventos de inundação, ressacas
e deslizamento (BARBI, 2014).
Constata-se vulnerabilidade socioambiental crítica em certas áreas da
cidade, relacionada a um processo de expansão urbana pouco planejado regio-
nalmente e marcado pela segregação espacial de populações segundo seu
perfil socioeconômico (BARBI, 2014). O território da Região passa por um
acelerado processo de expansão horizontal periférica entre 1940 e 2000 que
tem o centro de Santos como núcleo polarizador, com os terrenos habitáveis na
área insular da cidade apresentando saturação já na década de 1970 (AFONSO,
76

2006; OSCAR JÚNIOR et al., 2019). Com isso, o processo de verticalização


da Orla iniciado na década de 1940 torna-se mais intenso, sendo voltado para
classes altas e acelerando o deslocamento de populações de classes mais bai-
xas para municípios vizinhos ou áreas de Santos marcadas pela fragilidade
ambiental e escassa infraestrutura urbana (BARBI, 2014; SANTOS, 2022;
OSCAR JÚNIOR et al., 2019).
Esse processo leva à concentração de moradias irregulares em bairros da
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Zona Noroeste e da Zona de Morros de Santos (Imagem 1). A Zona Noroeste


tem poucas vias de acesso e encontra-se distante do centro da cidade (Martins;
Matias, 2019). A área sofre com riscos de inundação devido à concentração
de populações em áreas que antes eram de manguezal e em locais de eleva-
ção abaixo do nível do mar, muitas vezes em moradias de palafitas (BARBI,
2014). Já a Zona de Morros localiza-se no Centro da Ilha de São Vicente e é
uma região pouco urbanizada devido à dificuldade de ocupar áreas íngremes
e de encostas ali localizadas, estando grande parte das moradias vulneráveis
a deslizamentos (SANTOS, 2016; 2022).

Imagem 1 – Localização de Santos com destaque


das Zonas Sudeste, Noroeste e Morros

Fonte: Souza et al. (2019, p. 103), traduzido e editado pelo autor para incluir a Zona de Morros.
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 77

No entanto, esses riscos têm historicamente sido alvo de programas insti-


tucionais como o Plano Preventivo de Defesa Civil (PPDC), o Plano Municipal
de Redução de Riscos (PMRR) e o Santos Novos Tempos (BARBI, 2014),
que conjuntamente trouxeram como resultados a redução de acidentes e uma
década sem fatalidades em episódios de deslizamento e inundação na cidade
de Santos entre 2010 e 2020 (TORRES et al., 2021). Nos últimos anos, têm
sido implementados experimentos de Adaptação baseada em Ecossistemas
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(AbE) visando a capacitação das populações vulneráveis para explorar siner-


gias entre preservação da vegetação e redução de riscos (SANTOS, 2022).
Ao mesmo tempo, a Zona Sudeste torna-se um ponto da cidade cada
vez mais exposto a riscos climáticos, com o bairro de alta renda da Ponta da
Praia sendo um dos mais afetados por episódios de inundação e ressacas. As
grandes estruturas e contingente populacional nesse segmento podem agravar
a subsidência e a erosão da faixa de areia (MARENGO et al., 2019). Isso, por
sua vez, aumenta os riscos relacionados à elevação do nível do mar, como a
ocorrência de ressacas, cuja frequência triplicou entre os anos de 2000 e 2016,
em relação ao período entre 1924 e 2000 (HARARI et al., 2019).
Entre tais eventos, episódios graves ocorreram nos anos de 2004 e 2016,
quando as ondas superaram 3m de altura e causaram a inundação de gara-
gens de prédios e da Avenida Saldanha da Gama (SANTOS, 2016; TORRES
et al., 2021), gerando forte pressão sobre a Prefeitura (GUTIÉRREZ, 2021).
Na ocasião de 2016 é possível enxergar a aceleração da adoção de estraté-
gias climáticas na cidade, sendo visível o papel de redes internacionalizadas
de especialistas climáticos em subsidiar respostas políticas e subsequentes
transformações na governança climática do município (GUTIÉRREZ, 2021).
Um dos principais atores nesse sentido é o Projeto METROPOLE, que
elabora os primeiros cenários de risco climático e condensa a atenção pública
sobre o tema a partir de 2015 (GUTIÉRREZ, 2021). Essa iniciativa configura
uma cooperação internacionalizada e interdisciplinar no âmbito do Belmont
Forum, e entre seus resultados apresenta a projeção de cenários de aumento
do nível relativo do mar, modelando uma elevação entre 18 e 23 centímetros
até 2050, em relação aos patamares do ano de 2000 (MARENGO et al.,
2019; HARARI et al., 2019). As perdas econômicas cumulativas referentes
à mudança do clima são projetadas em 242 milhões de dólares para as Zonas
Sudeste e Noroeste da cidade, se concentrando na primeira (MARENGO
et al., 2019).
A iniciativa envolve setores da sociedade civil e formuladores de política
na modelagem de diferentes caminhos de adaptação, alcançando ressonân-
cia tanto na administração pública quanto na imprensa (MARENGO et al.,
2019; GUTIÉRREZ, 2021). Em relação a respostas políticas, forma-se o
78

Comitê Municipal de Mudanças Climáticas após a divulgação dos primeiros


resultados, com o propósito de auxiliar a elaboração do Plano de Mudança
Climática de Santos de 2016, que por sua vez impulsiona a seleção da cidade
enquanto piloto do Programa Nacional de Adaptação (ProAdapta) em 2018
(BARBI; SOUZA, 2019).
Já na esfera jornalística, as fontes científicas são as mais citadas e tota-
lizam 39% dos interlocutores consultados sobre a mudança climática em
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cadernos regionais da Tribuna de Santos, com um papel de destaque de cien-


tistas internacionalizados vinculados ao Projeto METROPOLE e à USP, as
instituições mais frequentemente consultadas jornalisticamente (GUTIÉRREZ,
2021). Além disso, identificou-se que no período analisado entre 2015 e 2020,
a cobertura foca a Zona Sudeste e particularmente o bairro da Ponta da Praia,
onde a intensidade das ressacas e da erosão costeira é bastante visível. O
foco nesses símbolos específicos indica um viés informacional na cobertura,
visto que áreas mais vulneráveis como Zona Noroeste e Morros aparecem
com menos da metade das menções textuais constatadas para praias da região
(GUTIÉRREZ, 2022).
A partir dessa constatação, esse estudo passa para a averiguação mais
aprofundada da dinâmica de priorização jornalística entre essas áreas da
cidade.. Já havendo sido feita em Gutiérrez (2021, 2022) uma análise textual
sobre as menções às diferentes zonas da cidade, passa-se a uma análise visual
da cobertura da Tribuna de Santos de modo a confirmar os vieses informa-
cionais identificados e potencialmente encaminhar interpretações distintas
àquelas encontradas em texto, dado que as imagens podem ser incongruentes
com ou se sobrepor ao texto escrito (COLEMAN, 2010).

Metodologia

A metodologia escolhida para o estudo empírico foi a análise quantitativa


de conteúdo. Nesse método, designam-se variáveis independentes de análise
e definem-se valores que cada uma pode assumir (BELL, 2001). O universo
de textos utilizado foi constituído pelo material coletado por Gutiérrez (2021)
referente às publicações entre Janeiro de 2015 e Março de 2020 em cadernos
regionais da Tribuna de Santos. Foram selecionadas Notícias, Notas e Entre-
vistas em que o assunto da mudança climática aparece com densidade média
ou central, totalizando 92 textos para análise.
Entre esses, buscou-se identificar quais textos possuem fontes cientí-
ficas internacionalizadas, de modo a quantificar sua super-representação na
cobertura. Para tal, separaram-se os textos nos quais foi identificada alguma
fonte científica, totalizando 55 unidades (Tabela 1). A classificação das fon-
tes científicas nesses textos é então revisada de modo a identificar o grau de
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 79

internacionalização das fontes nacionais, tarefa feita a partir de pesquisas


na Plataforma Lattes. Considera-se internacionalizada a fonte que apresenta
algum dos seguintes critérios: realização de docência ou parte da formação
acadêmica no exterior, ou participação em comitês científicos e editoriais de
revistas acadêmicas internacionais.

Tabela 1 – Textos em que a mudança climática aparece com


densidade média ou central (01/2015 – 03/2020)
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Unidades de Análise

Total de Textos 92

Total de Textos com Fontes Científicas 55

Após a revisão das fontes científicas parte-se para a análise de imagens,


sendo identificadas 122 imagens entre o total de 92 textos. Cada imagem
é então analisada a partir de três variáveis independentes deduzidas após
observação flutuante do conteúdo: Tipo de Imagem, Situação/Indivíduo
Representado e Área Representada. Essas variáveis podem assumir valores
(Tabela 2) que foram obtidos após observação e posteriormente aplicados
indutivamente às unidades de análise.

Tabela 2 – Variáveis independentes e valores deduzidos para análise de imagens


Tipo de Imagem Situação/Indivíduo Representado Área Representada

Desenho/Mapa Efeitos da Mudança Climática Zona Noroeste e Morros

Fotografia Autoridades Zona Sudeste

Paisagem Porto

Adaptação e Pesquisa Guarujá

Residentes Cubatão

Fauna Outros

Outros

A primeira variável simplesmente identifica se a imagem é uma fotogra-


fia ou uma representação abstrata realizada a partir de desenhos, mapas ou
diagramas. A segunda variável busca entender a atividade ou indivíduo repre-
sentados. Alguns valores desta agrupam sob uma mesma categoria imagens
que representam diferentes eventos interconectados. Por exemplo, ‘Efeitos da
mudança climática’ é uma interpretação resultante de imagens que retratam
danos e transformações na paisagem associados ao fenômeno, como ressacas
80

e comparações históricas da faixa de areia na Ponta da Praia, deslizamentos e


inundações na Zona Noroeste e Zonas de Morros, queda de árvores no centro
da cidade, erosão costeira no Guarujá, entre outras. O mesmo ocorre com
imagens relativas ao valor de ‘Adaptação e Pesquisa’, combinando imagens de
expedições científicas, pesquisadores em laboratórios, e tratores transportando
sedimentos na Ponta da Praia. A terceira variável, por fim, indica diferentes
áreas da RMBS identificáveis pelas imagens.
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Após a classificação, esses dados são cruzados entre si e com os textos


que apresentam fontes científicas, de modo a confirmar as seguintes hipóteses:

H1: A frequência imagética da Ponta da Praia é maior do que a da


Zona Noroeste.
H2: A conexão da Zona Noroeste à mudança do clima é mediada a partir
de redes internacionalizadas de especialistas.
H3: Nas Zonas Noroeste e de Morros predomina a representação da vul-
nerabilidade à mudança climática.

A hiper-representação da Ponta da Praia e a vulnerabilização


da Zona Noroeste

De início identifica-se que fontes científicas internacionalizadas consti-


tuem a maioria dos interlocutores na cobertura regional, constituindo 62,7%
do total, com o restante sendo dividido entre 25,4% de fontes nacionais sem
internacionalização, e 11,9% de fontes internacionais (Gráfico 1).

Gráfico 1 – Fontes científicas na cobertura regional (55 u.a.)

Cien�fica Internacional

11,9%

25,4% Cien�fica Nacional


Cien�fica Nacional
62,7%
Internacionalizada

Fonte: Elaboração Própria�


A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 81

Seguindo para a análise de imagens, inicialmente identifica-se que 83,7%


das imagens são fotografias, enquanto 16,3% são desenhos, mapas ou diagra-
mas. A análise de ‘Situação/Atividade Representada’ mostra que as situações
mais comuns na cobertura são aquelas representando efeitos da mudança
climática sobre a cidade, constituindo 33% das imagens (Gráfico 2). Isso é
esperado, dado que há preferência jornalística por imagens que mostram ação
ou drama (COLEMAN, 2010).
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Gráfico 2 – Situação/Atividade Representada (122 u.a.)


Outros 3,3%
Fauna 1,6%
Residentes 3,3%
Adaptação e Pesquisa Efeitos
13,9%
33,6%

18,9%
Paisagem

25,4%

Autoridades

Fonte: Elaboração Própria�

No entanto, imagens que não representam ação também ocupam parcela


significativa da cobertura, com a representação de Autoridades e Paisagens
correspondendo a respectivamente 25,4% e 18,9% da cobertura, superando
outros valores mais raros que representam ação, como atividades visíveis de
Adaptação e Pesquisa (13,9%). Isso pode ser resultado da forte mediação
científica do tema, que recorrentemente é inserido na cobertura a partir de
desdobramentos científicos e políticos (BOYKOFF, 2013). Já a representação
de residentes e fauna não constitui grande parcela da cobertura.
Passando para a análise da Área Representada (Gráfico 3), identifica-se
claro predomínio da Zona Sudeste (57%), com frequência imagética signifi-
cativamente maior do que a frequência textual indicada em Gutiérrez (2022),
onde se constatou que a associação da mudança climática a impactos em praias
da região ocorria com o dobro da frequência constatada para a Zona Noroeste
e regiões de morros. A dimensão imagética mostra super-representação ainda
maior, com frequência 6 vezes maior da Zona Sudeste em relação às Zonas
Noroeste e Morros (9,3%), que são seguidas pelo Porto (9,3%), pela cidade de
Guarujá (8%), outras localidades como Centro de Santos e São Vicente (8%), e
82

depois Cubatão (2,7%). Ressalta-se que de 7 imagens identificadas para Zona


Noroeste e Morros, apenas uma se refere à Zona de Morros, área menos central
que as Zonas Noroeste e Sudeste nos resultados do Projeto METROPOLE.

Gráfico 3 – Área representada (122 u.a.)


Outro Zona Noroeste

Cubatão
9,3%
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8%
2,7%
Guarujá

8%

Oceano
5,3%

Porto 9,3%

57,3%

Zona Sudeste

Fonte: Elaboração Própria�

Com esses dados em mente, é interessante cruzá-los de modo a entender


quais tipos de representação estão associados a cada área. Realizando essa
atividade na Tabela 3, identifica-se que os efeitos da mudança climática são
predominantes nas imagens referentes à Zona Noroeste e Morros (100%), à
cidade de Guarujá (83,33%), a outros pontos da cidade (66,67%) e à Zona
Sudeste (60,47%). Paisagens predominam nas imagens referentes ao Oceano
(100%) e à cidade de Cubatão (100%), enquanto as atividades de Adaptação
e Pesquisa predominam apenas no Porto (71,43%). Esse último ponto pode
ser explicado devido à ocorrência de expedições científicas que partem do
Porto de Santos, como o Projeto Sambar, além da representação de esquemas
de adaptação para o local através de desenhos.

Tabela 3 – Tabulação Cruzada da ‘Área Representada’ com


‘Tipo de Imagem’ e ‘Situação/Atividade’’ (122 u.a.)
Zona
Zona
Noroeste Porto Oceano Guarujá Cubatão Outro
Sudeste
e Morros
Total de imagens 7 43 7 4 6 2 6
67,44% 71,43% 83,33%
Fotografia 28,57% (2) 100% 100% 100%
(29) (5) (5)
32,56% 28,57% 16,67%
Desenho/Mapa 71,43% (5) 0% 0% 0%
(14) (2) (1)
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 83

Zona
Zona
Noroeste Porto Oceano Guarujá Cubatão Outro
Sudeste
e Morros
Efeitos da Mudança 60,47% 14,29% 66,67%
100% 0% 83,33% (5) 0%
Climática (26) (1) (4)
23,26% 14,29%
Paisagem 0% 100% 16,67% (1) 100% 0%
(10) (1)
Adaptação e 71,43% 16,67%
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0% 16,28% (7) 0% 0% 0%
Pesquisa (5) (1)
16,67%
Outro 0% 0% 0% 0% 0% 0%
(1)

Além disso, fotografias são o tipo mais frequente para retratar todas as
áreas, com exceção da Zona Noroeste, onde 71,43% (5 de 7) das imagens
são abstratas, constituídas de desenhos ou mapas. Entre essas últimas, uma
imagem específica (Imagem 2) é predominante na representação da área,
tendo aparecido na Tribuna de Santos pela primeira vez em 30/09/2015, com
o objetivo de funcionar como visualização dos cenários climáticos divulgados
pelos cientistas do METROPOLE na mesma data, destacando abstratamente
as Zonas Noroeste e Sudeste.

Imagem 2 – Mapa estilizado destacando áreas


estudadas pelo Projeto METROPOLE

Fonte: A Tribuna de Santos, 30/09/2015.


84

Tais dados sugerem uma confirmação da hipótese de que a representação


dos efeitos da mudança climática sobre a Zona Noroeste é inserida visualmente
na cobertura a partir da mediação científica, com preferência pela utilização
de mapas que expõem cenários divulgados pelo Projeto METROPOLE. Mais
do que isso, a única imagem classificada sob ‘Zona Noroeste e Morros’ que
não ocorre dentro de textos com fontes científicas é também a única referente
à Zona de Morros. Portanto, a representação imagética da Zona Noroeste está
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restrita a textos com fontes científicas, algo não constatado para qualquer
outra área.
Essas representações diferem da abordagem para a Ponta da Praia, que,
apesar de também ser retratada abstratamente em mapas e diagramas, se
sobrepõe na cobertura a partir de fotografias que contemplam tanto paisagens,
ações de adaptação e danos de décadas de intensificação de ressacas e erosão
costeira. O uso de imagens aéreas expressa o extenso dano das inundações e
a transformação da paisagem (Imagens 3 e 4).

Imagem 3 – Imagem histórica da faixa de areia


no bairro de Ponta da Praia em 1958

Fonte: A Tribuna de Santos, 23 jun. 2015, p. A3.


A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 85

Imagem 4 – Episódio de ressaca em trecho da Ponta da Praia em 2016


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Fonte: A Tribuna de Santos, 6 jun. 2017, p. A3.

Além disso, a evidência visual da Zona Sudeste acompanha certo deta-


lhamento e complexidade, com a representação sendo feita não apenas para
danos, mas também para a própria paisagem estática (23,26% do total) e
atividades de adaptação do trecho às ressacas agora mais intensas (16,28%).
Tais percentuais sugerem uma cobertura mais complexa do trecho em rela-
ção às outras áreas da cidade, com o relato não se restringindo aos danos da
mudança climática, mas se estendendo ao cotidiano da área, vista como local
sob risco mas onde soluções tecnológicas estão sendo testadas para mitigação
dos perigos pronunciados pelo oceano aberto e pelas fortes ressacas.
Além de confirmar a hipótese do predomínio da Ponta da Praia na cober-
tura, tais constatações sugerem contraste com o modo como a Zona Noroeste
é retratada. Isso porque essa última é colocada não apenas de modo abstrato,
com pouco detalhamento de seus bairros e disparidades internas, mas também
é visualizada exclusivamente a partir dos danos resultantes da mudança do
clima, algo que confirma a Hipótese 3. Nesse sentido, sugere-se para discussão
a ideia de que a representação se limita aos riscos e catástrofes recorrentes,
em uma atitude de enxergar as comunidades da Zona Noroeste a partir de
uma lente de negatividade.
86

Representações das Zonas Noroeste e de Morros: a lente da


negatividade

A análise confirma grande foco visual na Zona Sudeste, especialmente


no bairro da Ponta da Praia, cuja repetida representação torna imagens das
ressacas e da erosão em um símbolo da mudança climática na região. Isso
está em linha com o imaginário relacionado à elevação do nível do mar em
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municípios costeiros, com representações diluvianas de oceanos engolindo


cidades estando profundamente enraizadas na cultura e na mídia (BRAASCH
et al., 2013).
É esperado que o periódico priorize a conexão desse imaginário com
as fotografias de ondas quebrando contra as frágeis muretas históricas da
Zona Sudeste, sendo órgãos jornalísticos não um ‘espelho’ da sociedade, mas
instituições que possuem suas próprias convenções sobre como selecionar
notícias (GALTUNG; RUGE, 1965; HARCUP; O’NEILL, 2017). Assim,
a ressonância imaginada de tais imagens em relação aos leitores estrutura a
atenção jornalística sobre mudança climática de forma muito mais profunda
do que variáveis científicas como escala ou probabilidade do risco, ponto
amplamente demonstrado na literatura sobre representação de desastres, que
constata super-representação de eventos inesperados de desenrolar rápido em
detrimento de crises mais latentes (GALTUNG; RUGE, 1965; KASPERSON
et al., 2003; FRANKS, 2006).
Outro resultado esperado foi a primazia de cientistas brasileiros interna-
cionalizados dedicados às ciências naturais na cobertura. O poder epistêmico
de tal comunidade leva à intensa circulação de definições de risco que trazem
uma lógica antecipatória e em certa medida redefinem o território. Além de
impulsionarem uma lógica de enfrentamento dos riscos que transcendem
as fronteiras municipais (GUTIÉRREZ, 2021), também são os principais
responsáveis por iluminar a conexão das inundações na Zona Noroeste com
a mudança climática. Em relação à Ponta da Praia, há também o impulsio-
namento de uma reavaliação sobre a desejabilidade do trecho residencial, à
medida que a atenção midiática desperta ansiedades sobre o futuro da área
sob a mudança do clima, com a perspectiva de perda das faixas de areia e
prejuízos financeiros (MARENGO et al., 2019).
No entanto, há uma importante diferença qualitativa no conteúdo das
imagens retratando a Zona Sudeste e as Zonas Noroeste e de Morros. Essas
últimas, além de serem predominantemente retratadas abstratamente, são
representadas em imagens exclusivamente a partir de sua vulnerabilidade.
Identificou-se nesse sentido que além do diagnóstico científico do risco, o
único outro motivador para inserção imagética dessas áreas na cobertura de
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 87

mudanças climáticas é a ocorrência de tragédias humanas, com os locais sendo


inseridos a partir do valor notícia de negatividade (GALTUNG; RUGE, 1965;
FRANKS, 2006).
Tais circunstâncias também são o principal motivador da inserção dos
poucos residentes consultados sobre o fenômeno climático (Imagem 5), ouvi-
dos em situações trágicas que encaminham representações das populações de
áreas mais precárias como vítimas passivas à mercê da natureza ao seu redor.
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A seguinte imagem, publicada em uma ocasião de deslizamento que deixa 2


mortos no Morro do Tetéu na Zona de Morros de Santos, vem acompanhada
de diversas citações de moradores que exemplificam esse ponto, como as
seguintes: “Tenho muito medo, mas não podemos fazer nada. É a natureza”,
“Não sei para onde eu vou. Pode ser para casa de parente ou amigo. Aqui não
dá para ficar.”, “Nessa situação, não há o que fazer. É só rezar” (ATRIBUNA,
4 mar. 2020, p. A6).

Imagem 5 – Episódio de Deslizamento no Morro do Tetéu na


Zona de Morros de Santos em 4 de Março de 2020

Fonte: A Tribuna de Santos, 4 mar. 2020, p. A6.

Em imagens como a anterior, o risco parece vir da própria terra, que


escorrega e desmorona sobre frágeis moradias, um simbolismo diferente
daquele das ressacas que atingem os firmes prédios da Ponta da Praia e se
assemelham a uma ameaça ‘externa’, que está sendo combatida a partir da
engenhosidade e tecnologia. A representação parece assim calcada em uma
lente que enxerga traços primitivos e riscos endógenos no local, associados a
88

uma incapacidade de domínio sobre o ambiente, concepção muito conectada


à herança positivista que define a civilização em contraposição dicotômica à
natureza (HANNIGAN, 2006).
Nesse sentido, a representação das Zonas Noroeste e de Morros parece
estar calcada em uma ontologia da vulnerabilidade (MIKULEWICZ, 2020).
Ou seja, tendo em seu cerne a interação entre tragédias humanas e riscos cien-
tificamente definidos, a vulnerabilidade é apresentada como a característica
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essencial dessas áreas, e parece estar vinculada a uma imaginação de que as


populações ali residentes portam uma subjetividade passiva e desempoderada.
Essa última constatação pode ser confirmada por estudos adicionais que
utilizem uma metodologia qualitativa que combine análise de imagens e tex-
tos, tomando um recorte com notícias sobre ocorrências de deslizamento e
inundação que não necessariamente mencionam mudança climática. Nesse
sentido, além da escolha pela metodologia quantitativa, a própria escassez
de imagens referentes às Zonas Noroeste e de Morros na cobertura sobre
mudanças climáticas constitui uma limitação desse estudo para auferir exaus-
tivamente essa questão.

Conclusão

Durante décadas, a cobertura jornalística da mudança climática privile-


giou uma espetacularização do assunto baseada em uma iconografia dedicada a
expandir nossa percepção sobre a escala do problema ao representar a finitude
do planeta através de símbolos globais. No entanto, à medida que seus efeitos
se materializam drasticamente sobre populações urbanas, significados asso-
ciados a antigas desigualdades locais passam também a permear a cobertura.
Isso traz para a vista disparidades urbanas que se somam às disparidades de
representação entre Norte e Sul Global constatadas há longa data na literatura
sobre mudanças climáticas na imprensa.
Ao delimitar para estudo a representação jornalística de áreas municipais
com diferentes graus de vulnerabilidade socioambiental, este capítulo buscou
aferir o diálogo entre as representações do risco climático e a segregação
socioespacial local. Como resultado, enxergou-se a saturação da cobertura
por áreas afluentes da cidade que permitem conexão simbólica mais fácil com
a questão da elevação do nível do mar, como trechos sujeitos a ressacas e
erosão cristalizados nas imagens da Ponta da Praia. Essa priorização é acompa-
nhada por uma frequência baixa da Zona Noroeste e dos Morros, com a Zona
Noroeste sendo inserida imageticamente na cobertura a partir da divulgação
do conhecimento especialista produzido pelo Projeto METROPOLE.
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 89

O foco jornalístico excessivo em ícones relacionados às ressacas e desa-


parecimento das faixas de areia na Ponta da Praia tem assim por outro lado a
falta de priorização e a circulação de representações incompletas sobre a Zona
Noroeste. Isso porque para esta área a atenção é despertada apenas por danos
e tragédias, em contraste com áreas mais abastadas da cidade, que apresentam
uma relevância política e econômica mais imediata para as elites santistas e
assim motivam maior variedade de ângulos. Essas aparecem não apenas sob
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risco, mas também como locais onde a tecnologia e engenhosidade industriais


estão sendo mobilizadas, seja a partir de imagens de expedições científicas
no Porto, ou de engenheiros instalando projetos avançados de adaptação no
leito da praia para impedir seu desaparecimento.
Dito isso, para balancear a cobertura é evidentemente necessária a veicu-
lação de representações com ângulos mais positivos sobre as Zonas Noroeste
e de Morros. A própria operação das redes internacionalizadas de especialistas
que atuam junto à Prefeitura pode oferecer uma oportunidade importante
nesse sentido, visto seu grande prestígio junto a formuladores de políticas e
jornalistas. Projetos em andamento que valorizam a construção de percepções
e soluções junto às comunidades vulneráveis, como os experimentos de AbEs
na Zona de Morros, podem ser conduítes para novas bases da representação
jornalística dessas áreas sob a crise climática. Essas devem reconhecer as
populações vulneráveis não como vítimas passivas à mercê da natureza, mas
como sujeitos que possuem trajetórias marcadas pela resistência em condições
socioambientais bastante adversas.
90

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CAPÍTULO 5
MUDANÇAS CLIMÁTICAS E
GOVERNOS LOCAIS: o papel da
governança multinível e multiatores para
um transporte urbano de baixo carbono
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Jaqueline Nichi

Introdução

As mudanças climáticas afetam as cidades em dois aspectos que se des-


tacam: a alta crescente de emissões de gases de efeito estufa (GEE), dada a
alta densidade populacional, e a maior sinergia entre a política climática e
o desenvolvimento sustentável, que estimula inovações sociotécnicas para
responder mais rapidamente às variações e impactos do clima urbano. Seja
pela tecnologia, ou pelo investimento em energias alternativas, a melhora da
infraestrutura do transporte público é crucial.
O Brasil já pode ser considerado um país urbano, com 84,3% da popula-
ção concentrada em cidades (Farias et al., 2017), e altamente dependente das
indústrias de energia e transporte. Eventos climáticos extremos, como enchen-
tes, alagamentos e deslizamentos, afetam a mobilidade urbana nas cidades
brasileiras. Danos, interrupções ou redução de desempenho nos sistemas de
transporte interferem na mobilidade da população e afetam diferentes setores
e atividades econômicas (PBMC, 2013; Santos, 2014).
Riscos e incertezas já se configuram características do viver urbano;
resultado do embate entre tradição e modernidade nas práticas cotidianas.
Ao mesmo tempo, representam a possibilidade de reinventar a modernidade
industrial, no momento em que esta já não responde aos anseios dos cida-
dãos. Na transição para uma modernidade reflexiva, novas práticas sociais
possibilitam que ajudam a redesenhar o futuro (Beck, Giddens e Lash, 1997).
A legitimidade das instituições políticas no Antropoceno passa a ser ques-
tionada (Crutzen e Stoermer, 2000) já que o cidadão migra da passividade
política para a conscientização sobre seu papel diante dos riscos naturais e
antropogênicos Giddens (2009).
96

Quanto aos impactos socioambientais, a indústria de transportes é respon-


sável por emitir 90% das emissões de gases poluentes e de dióxido de carbono
por meio da queima de combustíveis de veículos (Corrêa, 2010), sendo 73%
oriundos do transporte individual (WRI, 2015). Ainda muito dependente dos
combustíveis fósseis, como diesel (43%) e gasolina (27%), o modal rodoviário
é o principal meio de deslocamento urbano no país (EPE, 2020), responsável
por 63% dos deslocamentos com mais de 1 milhão de habitantes em 2018
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(ANTP, 2020).
O setor de transporte tem apresentado a maior taxa de crescimento médio
de demanda por energia, sendo que somente os automóveis consomem 60% do
total do consumo energético, embora representem somente 25% das viagens
(SEEG, 2018; EPE, 2020, ANTP, 2020). Para minimizar esse efeito poluidor
do uso intensivo de veículos motorizados, estratégias de controle de emissões
devem abranger políticas que promovam modais de baixo carbono, o uso de
combustíveis mais limpos e tecnologias mais eficientes de mobilidade.
A mobilidade urbana sustentável é fundamental para a adaptação e miti-
gação dos riscos climáticos. Como um fenômeno subpolítico que descentraliza
as estruturas do modus operandi da política na modernidade Beck (2011),
compreender a constituição institucional e a necessidade de arranjos de gover-
nança multinível é fundamental. Esta é a proposta da presente análise teóri-
co-crítica, que busca identificar os mecanismos que influenciam a inovação
do sistema sociotécnico de transporte urbano de passageiros na megacidade
de São Paulo a partir de suas dinâmicas institucionais e políticas que afetam
a descarbonização do setor.

Governança climática e transição em sistemas sociotécnicos

O projeto civilizatório da sociedade do risco, globalizada, passou a


demandar uma transição de governo para governança (Beck, 2010), conceito
que foi reinterpretado ao longo das últimas décadas, de uma perspectiva verti-
cal liderada por autoridades estatais (Jacobi e Sinisgalli, 2012) para modelos
menos hierárquicos e mais horizontais.
Na modernidade reflexiva, público e privado se hibridizam com novas
possiblidades de ação política ou subpolítica (Beck, 1997). Assim, atores
não-estatais passam a interferir na política, enquanto os governos mantem o
poder de definir políticas públicas pró-clima a partir de seu papel regulador
(Bulkeley e Betsill, 2003). Logo, governança ambiental refere-se ao processo
político, incluindo motivações e impactos, de temas da agenda ambiental e de
sua gestão (Bulkeley, 2010). Com a articulação de diferentes esferas sociais,
são contabilizadas as interações e tradições que guiam o processo político e
influenciam a tomada de decisão (Borges, 2017).
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 97

A adaptação às mudanças climáticas tem sido estabelecida em diferentes


níveis de governança e com uma variedade de atores e setores governamentais
com interesses e prioridades variadas (Adger et al. 2005). A presença do ator
estatal segue decisiva para o desenvolvimento e implementação de políticas
nas cidades, pois são os agentes que levam a questão climática para a agenda
urbana (Bulkeley e Betsill, 2003; Bulkeley e Kern, 2006; Schreurs, 2008).
Entretanto, suas ações podem ser limitadas devido ao contexto institucional
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ou por outros níveis governamentais (Romero Lankao, 2007; Setzer, 2009).


Assim sendo, a governança ambiental requer uma atuação multiescala, mul-
tiator e multinível para gerir a agenda das mudanças climáticas por se tratar
de um tema complexo que demanda ações de adaptação e mitigação a partir
de parcerias e redes de apoio (Barbieri e Ferreira, 2018; Dewulf et al., 2015;
Newell et al., 2012).
Bulkeley e Kern (2006) concluíram que a política local de mudança do
clima, para ganhar eficiência, precisa ser complementada por quatro modos
de governança: i. autogoverno (capacidade do governo local de reger suas
próprias atividades); ii. por habilitação (coordenação e facilitação de parce-
rias com atores não estatais); iii. por recursos (por meio de infraestrutura e
financiamento) e; iv. por autoridade (via regulação e sanções).
De fato, uma maior participação democrática nas decisões políticas
relacionadas ao clima e ao meio ambiente e que tenham impacto direto no
cotidiano dos cidadãos em curto e longo prazos, também dá à política mais
legitimidade (Nichi e Zullo, 2021). E deve também absorver a coprodução e
circulação de conhecimentos no processo decisório para evitar não agradar a
nenhum dos lados (Jasanoff, 2004).
Quanto a transição em sistemas sociotécnicos, Smith e Raven (2012)
examinaram, no setor energético, como a inovação pode gerar mudanças
incrementais ou disruptivas. Os autores reconhecem a importância das nar-
rativas e dos atores para impulsionar transformações em regimes políticos
estabelecidos. Para tanto, melhorias na governança e colaboração multinível
devem ser as primeiras iniciativas para apoiar os países nos seus compro-
missos climáticos em forma de planos, políticas e legislação em nível local.
Nos municípios, há uma miríade de mecanismos legais e institucionais para o
enfrentamento da degradação socioambiental, no entanto, os governos locais
ainda não estão totalmente equipados para enfrentar os problemas ambientais
globais (Ferreira, 1999).
Mesmo assim, o caminho possível tem sido aderir a iniciativas e metas
bem estabelecidas globalmente, como os Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável que fornecem uma estrutura clara para que a política de desen-
volvimento local tenha sinergia com as metas internacionais de mudança
do clima. Além disso, o nível local tem condições de tangibilizar políticas
98

e planos nacionais de adaptação conectados às Contribuições Determinadas


Nacionalmente (NDCs) no âmbito do Acordo de Paris.
Muitas cidades têm realizado inventários de emissões de GEE como
parte de redes transnacionais como Governos Locais pela Sustentabilidade
(ICLEI) ou da Nova Agenda Urbana, resultado da Conferência Habitat III, para
orientar a urbanização sustentável pelos próximos 20 anos. Políticas urbanas
que focam no uso misto do solo, cidades mais compactas e desenvolvimento
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orientado para o trânsito são algumas das soluções apontadas que podem
viabilizar a mobilidade sustentável.
Em relação ao setor de transporte no Brasil, a Constituição Federal de
1988 estabeleceu que o sistema de transporte público é serviço essencial e
transferiu sua gestão aos municípios sem mencionar a fonte de recursos para
qualquer ente federado (Vasconcellos; Carvalho; Pereira, 2011). A legislação
esclarece as competências dos três níveis de governo: à União compete esta-
belecer leis e normas de trânsito; aos Estados, licenciar veículos e motoristas
e; aos municípios, ser responsável pela construção e manutenção das vias
públicas, regulamentar o uso, gerir o sistema e fiscalizar o cumprimento da
legislação e normas de trânsito (OCDE, 2014).
Na gestão de arranjos de governança multinível de sistemas sociotéc-
nicos, como é o caso do transporte, é premente harmonizar os interesses de
gestores públicos e de empresas privadas responsáveis por sua operação (Gar-
rison e Levinson, 2014). O entendimento de padrões históricos que desaguam
na constituição desses sistemas é essencial para o planejamento na gestão
pública, enquanto na iniciativa privada, captar a lógica político-administrativa
faz com que as empresas possam entender as estratégias públicas considera-
das, por vezes, contraditórias (Koppenjan, 2005). As relações de poder entre
Estado, empresas e sociedade civil requerem arquitetar alianças transpostas
por conflitos resultantes de assimetrias entre as organizações e atores que as
compõem (Jacobi, 2004).
Logo, compreender lógicas causais das influências dos modelos de gover-
nança adotados pode apoiar inovações de gestão nos sistemas sociotécnicos
constituídos, além de permitir interpretações de padrões políticos, a rede de
atores e instituições e outros aspectos sociais relevantes para definir iniciativas
em mobilidade que impactam diretamente a vida dos cidadãos.

São Paulo: lições de uma cidade congestionada

Com 12,2 milhões de habitantes, a cidade de São Paulo é o maior aglo-


merado urbano da América do Sul (IBGE, 2018) e uma das 31 megacidades
do mundo, com perspectiva de chegar a 22 milhões de habitantes até 2050
(ONU, 2018).
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 99

O município de São Paulo está localizado no Estado de São Paulo, e conta


com uma frota de 8,6 milhões de veículos, o equivalente a 7,4 para cada 10
habitantes (CET, 2018). A frota contratada de ônibus é de 13.945 coletivos
(SPTrans, 2021), considerando veículos em operação e de reserva. Neste
cenário, as maiores emissões de GEE em São Paulo vêm dos transportes, com
um crescimento do nível de emissão de 8,36 milhões de toneladas em 2010
para 9,57 milhões de toneladas em 2017 (São Paulo, 2021).
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Mesmo com maior capacidade financeira para empreender ações de


mudança climática, com 12% do PIB nacional, São Paulo ainda enfrenta
dificuldades para planejar o uso da terra e prevenir e responder aos impactos
relacionados ao clima (Martins & Ferreira, 2011). As projeções climáticas são
preocupamente e indicam um aumento da temperatura entre 1,5°C e 2°C e
de precipitações entre 15 e 20% em meados do século (2041-2070) e ao fim
do século (2071-2100) esses números devem subir para 2,5°C e 3°C e entre
25 e 30% respectivamente (Ambrizzi et al., 2012).
São Paulo adotou como meta contribuir com um aquecimento global
abaixo de 1,5ºC, o que equivale a um declínio de 45% das emissões de CO²
até 2030, em relação a 2010, atingindo zero emissões em 2050. Como forma
de se preparar para esse objetivo, a cidade conta com a Política Municipal
de Mudanças Climáticas e o Plano Diretor Estratégico (PDE), cuja revisão
estava prevista para ocorrer em 2021, mas que teve seu prazo prorrogado
para o final de julho de 2022 por causa da pandemia. O atual PDE, de 2014,
orientava para o adensamento nas regiões que possuem infraestrutura de trans-
porte com metrô, trem e/ou corredores de ônibus, a fim de reduzir a distância
entre moradia e trabalho e desincentivar o uso do carro. Além disso, indicava
diretrizes para limitação do número de vagas de garagem e para a eliminação
de requisitos mínimos para construção de estacionamentos.
As mudanças climáticas configuram parte da agenda de São Paulo desde
2003, quando a cidade aderiu à campanha Cidades pelo Clima. Em 2005,
ingressou no Cities Climate Leadership Group (C40), entre as cidades com-
prometidas em reduzir as emissões de GEE e mitigar impactos climáticos.
Ambos, incentivaram a cidade a assumir outros compromissos, incluindo um
inventário de GEE (Setzer et al., 2015).
Por ser uma cidade global, é fonte de inovação e processos transforma-
dores e está passando por grandes transformações, liderando os processos de
adaptação no país (Martins e Ferreira, 2011; Barbi, 2015; Setzer et al., 2015;
Di Giulio, Martins, Vasconcellos e Ribeiro, 2017). Em 2009, tornou-se a
primeira cidade brasileira a lançar uma Política de Mudança do Clima com
metas que incluem a obrigatoriedade de redução de emissões. Políticas subse-
quentes se somam à essa agenda: a Política de Compras Verdes (2007); Plano
de Controle de Poluição Veicular (2007); e o Plano Setorial de Transporte e
100

de Mobilidade Urbana para Mitigação da Mudança do Clima (2013). Mais


recentemente, lançou o Comitê Gestor do Programa de Acompanhamento da
Substituição de Frota por Alternativas Mais Limpas (2019) e, em junho de
2021, o Plano de Ação Climática do Município de São Paulo (PlanClima),
desenvolvido em parceria com a C40, com 43 ações para zerar as emissões
de GEE até 2050, cujas estratégias incluem melhorias de caminhabilidade no
percurso ao ponto de ônibus e o aumento de atratividade do sistema municipal
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de ônibus.
O modelo de urbanização da cidade de São Paulo foi marcado pela
especulação imobiliária, no qual lotes centrais eram deixados vazios como
investimentos, e os localizados em regiões periféricas eram vendidos para
a população mais pobre. Esse processo levou a um crescimento fragmen-
tado espalhado da cidade (Bacelli apud Barbosa, 2001). Como consequên-
cia, a acessibilidade espacial ainda gera congestionamentos, superlotação do
transporte coletivo e falta de acesso a equipamentos públicos nas periferias,
impulsionando a “exclusão territorial” (Rolnik, 1999), já que a população
mais vulnerável enfrenta viagens longas e desconfortáveis para trabalhar e
acessar os serviços urbanos.
A partir de 1920, o modelo rodoviarista tornou-se o foco das políticas de
desenvolvimento na cidade, privilegiando o transporte individual motorizado.
No início do século 21, o transporte coletivo recebeu grande quantidade de
investimentos públicos, mas grande parte foi gasta em subsídios em vez de
aumentar a capacidade de transporte (Rolnik e Klintonwitz, 2011). Em 2014,
São Paulo teve início a um amplo processo de instalação de ciclovias, mas
não foi uma política pública consistente em toda a cidade.
Desde o início na década de 1950, a indústria automotiva no Brasil
adotou a política de “substituição de importações”, que trouxe fábricas de
multinacionais, em vez de desenvolver tecnologias nacionais. Atualmente, o
setor passa por um momento de crise, simbolizado pela saída da montadora
norte-americana Ford, que estava no país desde 1919. Mas a aposta no setor
continua a guiar ambições políticas, como o pacote bilionário de incentivos
para a indústria automobilística em São Paulo, o IncentivAuto, que prevê
descontos de até 25% no ICMS para empresas que investirem ao menos
R$ 1 bilhão em fábricas e no desenvolvimento de produtos. Outro exemplo
recente é a aprovação, em nível federal, do projeto Rota 2030, que concede
desoneração fiscal à indústria automobilística, com a contrapartida de inves-
timentos em veículos elétricos e autônomos. Mas esse tipo de solução atende
a apenas um problema ambiental, que é a queima de combustíveis fósseis.
Independente da tecnologia, automóveis ocupam espaço, atendem a poucos
e reforça o deslocamento em longas distâncias.
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 101

Em contraste com a falta de investimentos em outros modais, Cintra


(2014) estima que a falta de infraestrutura adequada de transporte gere pre-
juízos em produtividade e saúde, devido aos níveis de congestionamento, na
metrópole cheguem a 1% do PIB brasileiro todos os anos. Os gastos gerados
pela perda produtiva por conta do trânsito em São Paulo passaram de R$ 17
bilhões, em 2002, para R$ 40 bilhões, em 2012. Em todo o país, 50 mil pes-
soas morrem no trânsito por ano e cerca de 15% das internações em hospitais
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públicos são de vítimas de acidentes de trânsito.


Os efeitos antropogênicos na atmosfera puderam ser verificados a partir
da pandemia de COVID-19, com a queda de 31,3% de mortes em acidentes de
trânsito (68 mortes contra 99) no Estado de São Paulo entre 24 e 31 de março
de 2020, início da quarentena como medida para enfrentar o coronavírus, na
comparação com o mesmo período do ano anterior (Infosiga SP, 2020). A fuga
de grandes centros urbanos para cidades do litoral e interior e o fechamento
de lojas e escritórios da região, fez com que a poluição caísse 50% e o índice
de poluentes que desencadeiam doenças respiratórias caísse 30% na cidade
de São Paulo (CETESB, 2020).
Uma vez que o retorno das atividades é acelerado em 2022, após as
campanhas de vacinação contra a COVID-19, o transporte urbano sustentável
deve ser priorizado. O Working Group on Sustainable Urban Transport define
transporte urbano sustentável com base na Agenda 21 e deve apresentar os
seguintes objetivos: reduzir viagens motorizadas, priorizar modais menos
intensivos em energia fóssil e, melhorar o desempenho dos veículos com
tecnologias mais modernas (WGSUT, 2004). Já a Declaração de Bogotá para
um Transporte Sustentável (BOGOTA, 2011), a qual o Brasil é um dos signa-
tários, adotou a abordagem “evitar-mudar-melhorar” para alinhar o transporte
aos Princípios do Desenvolvimento Sustentável e implica em evitar viagens
ineficientes ou desnecessárias; mudar o modal de transporte para opções
menos poluentes e; gerar soluções de transporte de baixo carbono por meio
de melhorias em tecnologia, regulação, operação e infraestrutura para tornar
a oferta mais ambientalmente eficiente.
Outro aspecto importante é a adesão às tecnologias digitais, que têm
transformado todos os aspectos do cotidiano, com grande impacto na mobili-
dade e nos transportes. Em termos de demanda, as tecnologias de informação
e comunicação (TICs) permitem o teletrabalho, que substituem as viagens para
esse fim. Sistemas de compartilhamento de carros, bicicletas e transporte sob
demanda também se tornaram parte do dia a dia nas cidades. Em termos de
oferta, as TICs melhoram a eficiência das redes de transporte com informações
em tempo real aos passageiros, com centros de gestão de tráfego, e sistemas
integrados de bilhetes eletrônicos.
102

O conceito de cidades inteligentes é ainda difuso e frequentemente asso-


ciado a avanços tecnológicos como acesso a dados e sensores, mas essas fer-
ramentas não são suficientes para resolver problemas estruturais das cidades.
A integração de cidades inteligentes com tecnologias emergentes (Zanella,
2014; Batty, 2012; Schaffers et al., 2011) é apenas um dos aspectos desse
campo de estudo. Outros autores abordam o tema priorizando a integração de
tecnologias com pessoas e instituições (Hollands, 2008; Nam e Pardo, 2011;
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Neirotti et al., 2014), e sistemas sociais e ambientais (Giffinger et al., 2007;


Caragliu et al., 2011; Ahvenniemi et al.,2017).
Uma abordagem mais adequada para integrar a tríade tecnologia-mobi-
lidade-clima é a de Giffinger et al. (2007), que aponta seis características ou
setores prioritários em uma cidade inteligente: economia, pessoas, governança,
mobilidade, ambiente e vida inteligentes.
Neste sentido, a cidade paulistana também se apropria da agenda das
Cidades Inteligentes e Sustentáveis. Pelo segundo ano consecutivo, São Paulo
é a primeira colocada no ranking Connected Smart Cities 2021. Elaborado
pela Urban Systems, o ranking mapeia todos os 677 municípios brasileiros
com mais de 50 mil habitantes para identificar as cidades com maior potencial
de desenvolvimento inteligente do Brasil a partir de 75 indicadores como
conectividade, serviço público digitalizado e mobilidade.
No quesito Mobilidade e Acessibilidade, a cidade também se sobressai
pela diversidade de modais e inovações como o bilhete eletrônico, semáforos
inteligentes, 600 km de ciclovias, e uma frota de veículos de baixa emissão.
Em contraposição, no eixo Governança, que considera participação, investi-
mentos e transparência, a cidade está posicionada na 60ª colocação, com baixa
pontuação em Transparência e Lei de Zoneamento e Uso do Solo (Connected
Smart Cities, 2021).
Para fortalecer a agenda de inovação, foi lançada em 2009, a Câmara das
Cidades 4.0, criada pelo Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) e
o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC),
que compreende uma câmara técnica voltada a Cidades Inteligentes e Sus-
tentáveis. Seu objetivo é propor ações que estimulem o desenvolvimento de
soluções tecnológicas para melhorar ambientes urbanos e a qualidade de vida
da população. Como resultado, fornece subsídios para o Programa Nacional
de Cidades Inteligentes Sustentáveis.
Tornar, construir ou adequar cidades inteligentes parece ser um caminho
natural para os grandes centros urbanos. Inserir a Tecnologia da Informação
e Comunicação (TIC) na construção de um ambiente urbano com serviços
e infraestrutura mais eficientes requer uma transição sociotécnica. Broto e
Bulkeley (2013) apontam a experimentação como uma tendência global na
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 103

governança climática urbana, na qual governos municipais formulam inter-


venções, processos e instrumentos que ajudam a acelerar a ação climática
em nível local.
Geels et al. (2016) argumentam que a transformação pode ocorrer quando
os atores mudam a direção estratégica para abarcar uma mudança, dependendo
de elementos organizacionais que são reajustados a partir de hábitos, crenças
e valores subjacentes. Aqui, transformação é interpretada como um conjunto
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de processos por meio dos quais os regimes existentes são gradualmente


transformados em termos de tecnologias, instituições e cultura.

Conclusão

As tecnologias digitais têm tido um papel fundamental nas transfor-


mações urbanas influenciando novas formas de governança, já que o acesso
ampliado plataformas tecnológicas e de dados abertos tendem a fortalecer a
democracia participativa e a ação política, como é o caso do Plano Diretor
Estratégico de São Paulo, que incentiva a participação popular, incluindo
grupos heterogêneos como movimentos sociais, representantes do mercado,
acadêmicos e ambientalistas.
Cidades inteligentes e inovadoras muitas vezes se unem a redes trans-
nacionais que incentivam a troca de conhecimento e melhores práticas, e a
representação dos interesses de seus membros em um sistema de governança
multinível e multiatores, como é o caso das cidades C40.
O espaço urbano aglutina diferentes necessidades relacionadas à movi-
mentação de pessoas e mercadorias e novas soluções de mobilidade surgem
impulsionadas pela tecnologia para tentar equilibrar as necessidades de oferta
e demanda e reduzir os impactos socioambientais causados pelo excesso de
veículos automotores. Portanto, novos modelos de negócios e a economia
compartilhada são necessários para dinamizar a atual infraestrutura de trans-
portes ainda orientada aos modais rodoviaristas altamente dependentes de
combustíveis fósseis. A revolução digital permite o acesso à dados em tempo
real sobre viagens, o compartilhamento de viagens e a otimização de trajetos
de forma integrada.
A crescente urbanização e os impactos antropogênicos no clima trazem
inúmeros desafios. Após os impactos socioeconômicos enfrentados durante
a pandemia de COVID-19, as mudanças climáticas são a próxima grande
crise a ser combatida. Assim, evoluir para uma cidade inteligente e susten-
tável implica em uma visão integrada do espaço e dos diferentes atores e
setores urbanos. Para isso, a governança climática deve equilibrar a tomada
de decisão do setor público com os interesses do mercado e as demandas dos
104

cidadãos, especialmente os mais vulneráveis, a fim de moldar o futuro da


mobilidade urbana inteligente, bem como rever a lógica atual de urbanização
e desenvolvimento.
A transição para a mobilidade urbana de baixo carbono requer priorizar
o planejamento centrado no uso e ocupação do solo, investimentos em trans-
porte público de alta capacidade movidos a energia limpa e priorização de
mobilidade ativa, que inclui o caminhar e o pedalar na matriz de mobilidade.
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Desta maneira, incentivar soluções tecnológicas e sustentáveis e estabelecer


um modelo de governança que harmonize a implementação dessas inova-
ções alinhadas às necessidades e expectativas dos cidadãos são premissas
para desenvolver iniciativas para que cidades se tornem, de fato, inteligentes
e sustentáveis.
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 105

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CAPÍTULO 6
METAMORFOSE DO MUNDO E NOVOS
MODELOS DE NEGÓCIOS DIANTE
DA EMERGÊNCIA CLIMÁTICA:
experiências locais no Estado de São Paulo
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Felipe Barbosa Bertuluci

Introdução

“Any transition of this scale will be disruptive”


(World Economic Forum, 2022, p. 41)

De maneira cada vez mais evidente, as mudanças ambientais globais


revelam a dificuldade das ordenações sociais contemporâneas em reorientar
as trajetórias fundamentais de exploração dos limites biofísicos planetários
(ROCKSTRÖM et al., 2009; STEFFEN et al., 2015; UN ENVIRONMENT,
2021). Em razão de sua complexidade, abrangência e grau de incerteza ine-
rentes, a problemática das mudanças ambientais globais configura questio-
namentos de ordem estrutural e que se referem às bases de organização das
sociedades modernas, em questões como os sistemas energéticos e materiais
usados na produção de bens de consumo, bem como os próprios padrões de
consumo, estilos de vida, valores, crenças e instituições correntes (BECK,
2016; DUNLAP; BRULLE, 2015; FERREIRA, 2017, 2018; REDCLIFT,
2006; VIOLA; BASSO, 2016; YEARLEY, 1996).
Tais tendências globais a respeito das relações entre atividades sociais
humanas e ambiente biofísico evidenciam, sob bases científicas, a insus-
tentabilidade dos atuais padrões de produção e consumo (ARTAXO, 2014;
IPCC, 2018; ROCKSTRÖM et al., 2009; STEFFEN et al., 2015; UN ENVI-
RONMENT, 2021). É preciso, nesse sentido, que mudanças profundas
e significativas sejam colocadas em ação, no sentido de reestruturar e
reorganizar o modo como nações, corporações, empresas, instituições, famílias
e indivíduos, nos diferentes níveis de atuação correspondentes, relacionam-se
com as dimensões ecológicas e ambientais de suas atividades. Cumpre
110

reconhecer a necessidade e urgência em se adotarem amplas transformações


em aspectos centrais das sociedades industriais modernas, de modo a recon-
figurar estruturas e sistemas produtivos, práticas sociais coletivas, matrizes
energéticas, arranjos institucionais, normas culturais e valores (ABRAMO-
VAY, 2012; ARTAXO, 2014; BULKELEY et al., 2016; DUNLAP; BRULLE,
2015; FERREIRA, 2018; MCCORMICK et al., 2013; VEIGA, 2008).
Os atores econômicos privados, tais como empresas e corporações, repre-
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sentam agentes fundamentais para os investimentos necessários em direção às


transformações em questão. São destes atores que derivam parte significativa
dos recursos econômicos, financeiros, institucionais e técnicos que permitem
a emergência de novos modelos de negócios, processos de inovação tecnoló-
gica, novos padrões produtivos e bens/serviços sustentáveis (ABRAMOVAY,
2012; GRAMKOW, 2019; VEIGA, 2008). Deste modo, o foco analítico deste
capítulo direciona-se à apresentação e discussão de algumas proposições,
abordagens e perspectivas cujo objetivo central reside em redefinir pressu-
postos teórico-conceituais e epistemológicos fundamentais, propor modelos
de negócios inovadores, reorientar padrões de produção e consumo vigentes
e apontar para novos caminhos de desenvolvimento socioeconômico com
vistas à sustentabilidade. O papel desempenhado pelos atores econômicos
privados, em articulação com os demais atores sociais envolvidos nos pro-
cessos de governança ambiental, compõe aspecto privilegiado da discus-
são empreendida.
Assim, temos que o objetivo do presente capítulo reside em discutir a
emergência de novos modelos e abordagens que propõem reconfigurar as
relações marcadamente insustentáveis entre sociedade, natureza e atividades
econômicas. Para isso, apresentamos de forma geral algumas tendências e
debates que predominam no âmbito internacional de discussão científica e
política, exploramos algumas perspectivas localizadas no contexto específico
do Brasil e da América Latina e discorremos acerca de algumas experiências
locais identificadas no estado de São Paulo. Entre os procedimentos meto-
dológicos que embasam a análise, apoiamo-nos na revisão bibliográfica de
relatórios, artigos, coletâneas e livros especializados e na análise documental
de leis, planos de ação, portais institucionais, levantamentos e apresentações
produzidos por atores diretamente envolvidos nos casos observados. Além
disso, tomamos como aporte teórico-conceitual a noção de “metamorfose do
mundo”, proposta por Ulrich Beck (2016), como lente analítica de interpre-
tação das experiências discutidas.
Cabe destacar que o Brasil ocupa posição privilegiada para inserção nos
processos contemporâneos de governança ambiental, de modo geral, e para a
proposição de novos modelos de negócios e padrões de produção e consumo
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 111

para o contexto do século XXI. Entre os fatores que justificam tal posiciona-
mento, encontram-se: a enorme diversidade biológica, cultural, geográfica e
social que definem a própria constituição e identidade do país (ABRAMOVAY,
2012; GRAMKOW, 2019; VEIGA, 2008); sua grande extensão territorial e
multiplicidade de biomas, ecossistemas e arranjos socioeconômicos regionais
(FERREIRA, 2020; NOBRE et al., 2016; NOBRE; NOBRE, 2019); o papel
histórico de liderança que o país desempenhou na constituição de mecanismos
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e instituições que compõem o regime internacional de governança climática


e ambiental (BARBI; FERREIRA, 2017; FERREIRA; BARBI; BARBIERI,
2020); e a oportunidade do país colocar-se como potência em suas relações
internacionais a partir de novos pressupostos teórico-conceituais e econômi-
cos, valendo-se de seu patrimônio ambiental e riquezas naturais como fatores
de geração de valor agregado qualificado (NOBRE; NOBRE, 2019; VEIGA,
2008; VIOLA; BASSO, 2016).
A partir de tais elementos, o capítulo está estruturado em três seções,
além desta Introdução e Considerações Finais. Na Seção 2, discutimos ini-
cialmente a problemática das mudanças ambientais globais e da emergência
climática à luz da teoria da metamorfose social de Beck e analisamos algu-
mas publicações, relatórios e trabalhos que estruturam o debate internacional
acerca destes temas. Na Seção 3, incorporamos perspectivas e abordagens que
propõem novos modelos de negócios, cadeias de valor emergentes e processos
de reestruturação econômica com vistas à sustentabilidade cujo foco se loca-
liza no contexto brasileiro e latino-americano. Na Seção 4, aproximamo-nos
dos níveis regionais e locais, para analisar algumas experiências localizadas
no âmbito subnacional do estado de São Paulo e importantes regiões de seu
interior, como a Região Metropolitana de Campinas. A análise destes casos
locais justifica-se, sobretudo, a partir do papel econômico que o estado de
São Paulo possui na estrutura produtiva e tecnológica do país, bem como
pela posição de liderança no estabelecimento da política climática desde, ao
menos, a década de 2000. Nas Considerações Finais, retomamos os resultados
discutidos ao longo do capítulo à luz de nosso objetivo central e apontamos
para questões futuras de pesquisa suscitadas a partir da análise empreendida.

A emergência climática como risco econômico fundamental no


contexto do século XXI

De acordo com Beck (2016), as mudanças climáticas representam desafio


estrutural ao modo como se organizam e operam as ordenações sociopolíticas
da modernidade reflexiva (ou modernidade tardia). Nas palavras do autor,
“as mudanças climáticas são a corporificação dos erros de toda uma época
112

de industrialização em curso, e os riscos climáticos perseguem o seu reco-


nhecimento e correção com toda a violência da possibilidade de aniquilação”
(BECK, 2016, p. 42, tradução nossa). Tal possibilidade de aniquilação ou
desestruturação basilar dos sistemas biofísicos e ecológicos que oferecem
suporte às múltiplas formas de vida do planeta, incluindo-se aqui a espécie
humana, aparece como cenário possível (ou mesmo provável, segundo alguns
analistas) em decorrência das mudanças ambientais globais causadas pelas
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atividades antrópicas (ARTAXO, 2014; IPCC, 2018; ROCKSTRÖM et al.,


2009; STEFFEN et al., 2015; UN ENVIRONMENT, 2021).
Em sua teoria da sociedade de risco (BECK, 1992), Ulrich Beck sustenta
a ideia de que tais dinâmicas antrópicas de pressão sobre os sistemas naturais
decorrem de efeitos colaterais imprevistos e incalculáveis do próprio processo
de industrialização. São, nesse sentido, resultado do desenvolvimento das
forças produtivas e institucionais que caracterizam os sistemas econômicos,
políticos, culturais, técnicos das sociedades modernas (BECK, 1992). Em
The Metamorphosis of the World (2016), obra publicada postumamente, o
autor avança em sua interpretação e leitura da ordem social contemporânea,
a partir do enquadramento oferecido por sua consolidada produção teórica
e analítica anterior. Assim, emerge de sua reflexão a proposta de um novo
conceito-chave para o entendimento de nosso tempo presente (Zeitgeist): a
noção de metamorfose social.
Segundo argumenta Beck (2016), no caso das mudanças climáticas e, de
modo mais geral, dos riscos globais sistêmicos que caracterizam a passagem
do século XX ao século XXI, os efeitos colaterais negativos associados ao
próprio sucesso dos processos históricos de industrialização desdobram-se,
por sua vez, em novos resultados e consequências decisivas. No jogo de
palavras do autor, “a teoria da metamorfose vai além da teoria da sociedade
de risco mundial: não se trata dos efeitos colaterais negativos dos bens, mas
dos efeitos colaterais positivos dos males” (BECK, 2016, p. 114, tradução
nossa). Nesse sentido, os riscos e desafios a serem enfrentados atualmente
por todas as sociedades e pela humanidade, de modo abstrato, reconfiguram
arranjos institucionais, políticos, culturais, econômicos até então vigentes de
maneira profunda. São oportunidades e necessidades históricas que se apre-
sentam devido aos perigos, ameaças e crises que afetam os sistemas sociais,
políticos e naturais, inseparavelmente correlacionados na realidade do século
XXI. De acordo com Beck (2016), a metamorfose do mundo representada
pelas mudanças climáticas obriga a que atores públicos e econômicos se apre-
sentem como responsáveis, ao mesmo tempo em que abre novos mercados
mundiais, gera novos padrões de inovação, altera estilos de vida e reorienta
padrões de consumo.
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 113

Tal perspectiva é compartilhada por crescente número de líderes empre-


sariais, economistas e representantes políticos, que veem nas mudanças climá-
ticas uma força que contribui para a retração do Produto Interno Bruto (PIB),
maiores custos dos alimentos e commodities, interrupção de cadeias de supri-
mento e aumento do risco financeiro (ABRAMOVAY, 2012; BECK, 2016;
VEIGA, 2008). Em consonância com a proposta conceitual de metamorfose
do mundo em Beck, para Abramovay (2012) as mudanças ambientais globais
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impõem a necessidade de construção de um novo paradigma econômico, que


supere as limitações advindas da matriz de pensamento e dos padrões de pro-
dução e consumo atualmente vigentes. De acordo com este autor, “uma nova
economia (que promova a unidade entre sociedade e natureza, entre economia
e ética) questiona o mais importante pilar não só científico mas também polí-
tico, cuja base se avalia o uso dos recursos sociais: o crescimento econômico”
(ABRAMOVAY, 2012, p. 26). Isso significa operar a partir de concepções
e práticas que desafiam as fronteiras rígidas que prevaleciam anteriormente
entre, por exemplo, mercado, governo e sociedade civil. Em outras palavras,
as mudanças climáticas passam a ser vistas como uma força economicamente
disruptiva, que precisa ser enfrentada de maneira comprometida e responsável.
Os esforços necessários ao adequado enfrentamento de tais problemá-
ticas envolvem a participação e mobilização de uma gama enorme de atores
sociais, entre os quais se destacam: governos, setores empresariais, instituições
científicas, organizações da sociedade civil, grupos de interesse, cidadãos e
consumidores individualmente considerados (BHAGAVATULA; GARZILLO;
SIMPSON, 2013; FENTON; GUSTAFSSON, 2017; FERREIRA; BARBI;
BARBIERI, 2020; FERREIRA, 2018; HANNIGAN, 2006; NEWELL; PAT-
TBERG; SCHROEDER, 2012). Assim, configuram-se arranjos pautados
pelo princípio da atuação multiatores de amplos segmentos, grupos e setores
sociais, ao articular em um mesmo sentido e direção diversos escopos de
organização, planejamento, atividade e desenvolvimento socioeconômicos.
De maneira correlata, a governança ambiental pauta-se igualmente pelos prin-
cípios de atuação multinível e multisetores, nas múltiplas áreas mobilizadas
em sua consideração (BARBI; FERREIRA, 2017; BULKELEY et al., 2016;
BULKELEY; NEWELL, 2010; DEWULF; MEIJERINK; RUNHAAR, 2015;
DI GIULIO et al., 2019; FERREIRA, 2020).
Digno de destaque é o modo como o desafio imposto pelas mudanças
climáticas deixou de ser tratado como questão meramente científica e restrita
ao debate de especialistas para ser incorporado aos discursos e práticas coti-
dianas de múltiplas instituições, setores, grupos e indivíduos. Além disso, a
urgência representada pelos impactos atuais e projeções futuras advindos das
alterações antropogênicas nos sistemas planetários de regulação climática é
114

cada vez mais amplamente difundida e reconhecida. Em um de seus mais


recentes relatórios, o IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change) é
enfático ao dizer que as atividades antrópicas inequivocamente provocaram
o aquecimento da atmosfera, oceanos e continentes, com a observação de
mudanças rápidas e muito difundidas na atmosfera, oceano, criosfera e bios-
fera (IPCC, 2021). Nesse sentido, o Painel reconhece ainda que o enfrenta-
mento às mudanças climáticas requer transições rápidas e de longo alcance
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em setores como energia, infraestrutura, transportes, construções, sistemas


industriais e planejamento urbano, transformações que “não têm precedentes
em termos de escala, embora não necessariamente em termos de velocidade, e
implicam em profundas reduções de emissões em todos os setores, um amplo
leque de opções de mitigação e um significativo aumento de investimentos
em tais opções” (IPCC, 2018, p. 15, tradução nossa).
Com relação aos investimentos necessários para o financiamento de
semelhantes transições sistêmicas, cumpre reconhecer o fato de que o poder
público (em suas diferentes esferas e níveis) não é capaz de mobilizar, isolada-
mente, o montante de recursos e ativos econômicos fundamentais. Em outras
palavras, os custos de oportunidades e alocação de investimentos precisam
ser compartilhados através de toda a sociedade, com cada agente político e
econômico cumprindo papel indispensável para o incentivo a novos mode-
los, práticas e estruturas produtivas (ABRAMOVAY, 2012; BULKELEY;
NEWELL, 2010; NEWELL; PATTBERG; SCHROEDER, 2012; VEIGA,
2008). As políticas públicas, nesse sentido, podem atuar como elementos
catalisadores e multiplicadores de investimentos privados e do terceiro setor
para o enfrentamento às mudanças ambientais globais, considerando espe-
cialmente a importância do setor público em suas atribuições fundamentais
de regulamentação, fiscalização e definição de diretrizes coletivas de ação.
Nas palavras de Gramkow (2019), “será preciso o engajamento dos setores
público e privado e dos parceiros internacionais na mobilização de investimen-
tos, de forma coordenada, eficiente, efetiva e com impacto” (GRAMKOW,
2019, p. 23).
Interessante citar, neste particular, algumas iniciativas e proposições
de âmbito internacional que buscam, justamente, construir tais arcabouços
institucionais, políticos e econômicos que permitam subsidiar as transições
necessárias para sociedades resilientes e sustentáveis. Podem ser enumera-
dos a este respeito: o “Green New Deal Report” (2008), no Reino Unido; o
relatório “Green recovery: a program to create good jobs and start building
a low-carbon economy”, nos Estados Unidos (2008); o relatório “Global
Green New Deal” proposto pelo Programa das Nações Unidas para o Meio
Ambiente (2009); o relatório “Rumo a uma economia verde: caminhos para
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 115

o desenvolvimento sustentável e a erradicação da pobreza” (PNUMA, 2011);


o relatório “Towards green growth” da OCDE (OCDE, 2011); e o relatório
“A Green New Deal: a progressive vision for environmental sustainability
and economic stability” (2018), nos Estados Unidos (GRAMKOW, 2019).
São abordagens que, de forma geral, procuram fornecer respostas às múltiplas
crises contemporâneas (econômica, social, ambiental, climática, política),
reconhecendo a urgência em empreender ações concretas para o combate a
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tais desafios. É digno de destaque o fato de que todas estas iniciativas prece-
dem o surgimento da pandemia de Covid-19, outra crise global de amplas e
profundas consequências.
No contexto dos esforços de recuperação econômica com relação a esta
última crise socioambiental (Covid-19), destacamos finalmente os principais
resultados recentemente divulgados pelo World Economic Forum acerca de
suas prospecções dos riscos e desafios para a economia global nos próximos
anos e décadas (WORLD ECONOMIC FORUM, 2022). Para a discussão
empreendida no presente capítulo, chamamos a atenção para o dado de que
“eventos climáticos extremos” e “falha nas ações para o clima” figuram entre
os cinco maiores riscos de curto prazo enumerados pelos respondentes do
estudo. Além disso, ao consideramos perspectivas de longo prazo, as cinco
maiores ameaças reconhecidas às sociedades e economias globais são todas
de âmbito ambiental, com severos riscos potenciais associados para o hori-
zonte da próxima década, em temas como eventos extremos, mudanças cli-
máticas e perda de biodiversidade. O relatório destaca ainda que, embora as
preocupações com os processos de degradação ambiental sejam anteriores
ao surgimento da pandemia, a preocupação crescente com falhas no enfren-
tamento às mudanças climáticas (climate action failure) revela falta de fé e
pessimismo na capacidade dos presentes esforços internacionais em lidar com
a emergência e gravidade da questão.

Novos modelos de negócios diante da emergência climática:


perspectivas, propostas e abordagens para o Brasil

Diante de tamanhos desafios e obstáculos representados pelos riscos


globais discutidos até aqui, poderíamos retornar à questão proposta por Beck
(2016) ao refletir sobre as perspectivas futuras em relação aos atuais dilemas
estabelecidos: o que a mudança climática (ou emergência climática, em termos
atualizados) faz por nós, e como ela altera a ordem da sociedade, da política,
da economia? No caso das atividades produtivas e dos modelos de desenvolvi-
mento estruturados pelas sociedades modernas a partir do marco fundamental
da Revolução Industrial, que marcam grande parte das alterações antrópicas
116

realizadas nos sistemas biofísicos e ecológicos planetários (ARTAXO, 2014;


IPCC, 2018; STEFFEN et al., 2015; UN ENVIRONMENT, 2021), as mudan-
ças climáticas representam ponto de inflexão incontornável. Dito de outra
maneira, as trajetórias históricas que orientaram o modo como as sociedades
humanas interagiram e apropriaram-se dos recursos, bens, produtos e serviços
oriundos da natureza não podem continuar a se reproduzir, o que aponta para
a urgência e necessidade de construir novos modelos, caminhos e padrões de
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interação (DUNLAP; BRULLE, 2015; FERREIRA, 2017, 2018).


De acordo com Veiga (2008), uma dificuldade central para a reconfigura-
ção dos modelos econômicos hegemônicos reside no papel predominante que
a ideia de “desenvolvimento” ainda ocupa em círculos intelectuais, políticos
e ideológicos de tomada de decisão. Segundo o autor, tal ideia fundamenta-se
em um conjunto de valores e utopias que oferecem base de sustentação às
sociedades industriais modernas, no qual noções como progresso material e
crescimento econômico ocupam posições de destaque. Entendendo por utopia
a visão de futuro sobre a qual uma civilização cria seus projetos, fundamen-
tando seus objetivos ideais e suas esperanças, Veiga (2008) sustenta que “assim
entendida, talvez não haja noção que mais concentre a utopia da sociedade
moderna do que a noção de desenvolvimento” (VEIGA, 2008, p. 193). Desta
maneira, a ampla difusão de discursos e propostas que se orientam para a
construção do chamado “desenvolvimento sustentável” deve, segundo esta
leitura, estar atenta às limitações práticas e conceituais que tal movimento
pode carregar consigo.
Entre os pontos decisivos a serem considerados, encontra-se o reconheci-
mento de fatores, processos e dinâmicas que se caracterizam pela apresentação
de limites e fronteiras. Abramovay (2012), em trabalho que procura refletir
amplamente sobre as possibilidades e necessidades associadas à emergência
de novas estruturas econômicas, aponta para esta questão de modo bastante
esclarecedor. Segundo o autor, a construção de uma economia que considere
apropriadamente os desafios relacionados às mudanças ambientais globais
passa pela redefinição das dinâmicas de interação entre sociedade e natu-
reza. Para isso, o reconhecimento de limites ecossistêmicos ao processo de
desenvolvimento socioeconômico e aos padrões de produção e consumo dele
derivados representa condição indispensável. Isto requer, por sua vez, a revi-
são dos objetivos sociais que compõem a própria constituição das atividades
econômicas, superando-se a ideia dominante segundo a qual o propósito da
economia é promover o crescimento incessante da produção e do consumo
com vistas à satisfação de necessidades humanas através do mercado (ABRA-
MOVAY, 2012).
Além disso, outro ponto fundamental compreende a estruturação de sis-
temas de inovação orientados para a sustentabilidade, no sentido de reduzir a
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 117

dependência de recursos, materiais e energia para a obtenção de bens e servi-


ços de utilidade econômica e social. Segundo Abramovay (2012), tal esforço
não se confunde genericamente com a busca por aumento na produtividade
por si mesma, mas implica na melhoria substantiva de processos produtivos e
dinâmicas de transformação da energia, materiais e da própria biodiversidade
em produtos e serviços úteis para a sociedade. Assim, o reconhecimento da
existência de limites biofísicos e ecossistêmicos à expansão das atividades
humanas não significa o mesmo que paralisia ou estagnação econômica. Ao
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se adotarem critérios rigorosos e procedimentos adequados, que busquem


refletir os reais custos associados às formas predominantemente predatórias
que marcam o crescimento econômico convencional, “o espaço para gerar
prosperidade por meio de bens e serviços públicos e de inovações voltadas
para fortalecer o bem-estar social é imenso” (ABRAMOVAY, 2012, p. 79).
Exemplo paradigmático de semelhantes iniciativas a favor da emergên-
cia de um novo modelo de desenvolvimento socioeconômico com vistas à
sustentabilidade, concebido a partir da realidade específica do Brasil e da
América Latina, pode ser encontrado na proposição da Amazônia Third Way
Initiative (Amazônia 4.0) (NOBRE et al., 2016; NOBRE; NOBRE, 2019).
De acordo com esta proposta, a região amazônica é marcada historicamente
por dois modelos distintos de ocupação territorial e organização socioeco-
nômica: de um lado, uma abordagem que busca estabelecer políticas rigo-
rosas de conservação ambiental e proteção de amplas porções do território
de qualquer atividade econômica ou humana, à exceção dos modos de vida
das comunidades indígenas; de outro, um padrão (insustentável) de apropria-
ção intensiva de recursos naturais e conversão/degradação de áreas florestais
para produção agropecuária de commodities e produtos madeireiros, bem
como grandes projetos de infraestrutura para geração de energia hidrelétrica.
Deste modo, considerando a urgência em construir modelos alternativos de
desenvolvimento econômico alinhados às complexidades e desafios do século
XXI, os autores propõem um conjunto de profundas transformações sociais e
tecnológicas em direção a um caminho de desenvolvimento sustentável para
a Amazônia. Nas palavras de Nobre et al. (2016),

Deste modo, argumentamos que há uma Terceira Via ao nosso alcance na


qual agressivamente pesquisamos, desenvolvemos e conferimos escala a
uma nova abordagem de inovação de alta tecnologia, que vê a Amazônia
como um bem público global de ativos biológicos e designs biomiméticos
que podem permitir a criação de produtos, serviços e plataformas inova-
doras de alto valor para mercados atuais e totalmente novos, aplicando
uma combinação de avançadas descobertas tecnológicas digitais, materiais
e biológicas aos seus recursos biológicos e biomiméticos privilegiados
(NOBRE et al., 2016, p. 10764, tradução nossa).
118

Em um levantamento inicial, a iniciativa identificou mais de duzentas


espécies da flora amazônica com conhecido potencial para serem utilizadas
como matéria-prima para produtos alinhados às caraterísticas de uma nascente
bioeconomia na região. São bens produzidos a partir de materiais advindos da
imensa biodiversidade típica do bioma amazônico e que buscam aproveitar
toda a riqueza natural contida em tal patrimônio biológico, originado a partir
de milhões de anos de evolução. Além disso, envolvem diferentes setores de
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transformação industrial, desde alimentos, fármacos, perfumes, cosméticos,


até novos materiais e fontes inovadoras de energia. Entre as tecnologias que
podem ser apropriadas neste novo modelo econômico, estão ramos especia-
lizados como biotecnologia, computação avançada, genômica, nanociências,
ciência de materiais, inteligência artificial e internet das coisas (IoT), que
configuram a emergência de uma próxima etapa de intensificação industrial
comumente designada de Quarta Revolução Industrial (Indústria 4.0) (ABRA-
MOVAY, 2012; NOBRE et al., 2016; NOBRE; NOBRE, 2019).
Assim, temos que movimentos recentes que procuram reestruturar os
processos econômicos contemporâneos, a fim de readequá-los à realidade da
emergência climática e das mudanças ambientais globais, são constituídos de
dois elementos-chave até aqui discutidos. O primeiro deles diz respeito à crí-
tica e redefinição de pressupostos teóricos, conceituais e epistemológicos que
fornecem base de sustentação à própria configuração da economia enquanto
campo de atividade humana e interação com o âmbito natural. Entre tais pres-
supostos, destacamos noções como progresso material, crescimento econômico
e desenvolvimento humano (BECK, 2016; DUNLAP; BRULLE, 2015; RED-
CLIFT, 2006; VEIGA, 2008; YEARLEY, 1996). O segundo elemento-chave
que compõe tais proposições de novos modelos de desenvolvimento com
vistas à sustentabilidade reside na posição central que a dimensão da inovação
tecnológica e conhecimento científico ocupa em inúmeras abordagens, como
é o caso da iniciativa Amazônia 4.0.
Além destes dois fatores, devemos mencionar ainda um terceiro com-
ponente de transformações que se associa aos anteriores para a constituição
de perspectivas de desenvolvimento sustentável, em especial em contextos
nacionais como do Brasil: inovações e mudanças de caráter eminentemente
social, que buscam erigir novos padrões de relações sociais e lógicas de
interação/cooperação. São exemplos de tais inovações sociais movimentos
como economia popular e solidária, economia compartilhada, redes locais
de produção e consumo, bem como práticas sustentáveis desenvolvidas por
cooperativas, associações, representações de povos e comunidades tradi-
cionais, rurais e locais (ABRAMOVAY, 2012; FERREIRA; BARBI; BAR-
BIERI, 2020; GRAMKOW, 2019). Tão importantes quanto os desdobramentos
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 119

estritamente tecnológicos ou produtivos, estas transformações sociais apontam


para a necessidade de integrar as múltiplas dimensões constitutivas da sus-
tentabilidade em esforços coerentes, coordenados, com impacto local e que
apresentem significado efetivo para as populações, grupos e indivíduos mais
diretamente afetados pelas consequências dos eventos associados às mudanças
climáticas e às crises globais mais amplas de nosso tempo.
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Experiências e propostas empíricas locais no contexto do estado


de São Paulo

Uma vez apresentada, de forma abrangente, a tendência atual de algu-


mas proposições, perspectivas e abordagens que buscam erigir novos mode-
los de desenvolvimento econômico e padrões de interação entre sociedade
e natureza, com vistas à construção de sociedades sustentáveis e resilientes
no contexto do século XXI, discutimos no restante deste capítulo algumas
experiências e propostas localizadas no nível subnacional do estado de São
Paulo, Brasil. Como dito anteriormente, uma das condições fundamentais
da governança ambiental contemporânea diz respeito à importância da ação
articulada e coordenada entre múltiplos níveis de intervenção sociopolítica
(global, internacional, nacional, regional, local), além da mobilização de dife-
rentes atores sociais em variados setores de atividade (BULKELEY et al.,
2016; BULKELEY; NEWELL, 2010; DEWULF; MEIJERINK; RUNHAAR,
2015; DI GIULIO et al., 2019; FERREIRA, 2020; NEWELL; PATTBERG;
SCHROEDER, 2012).
Dada a centralidade econômica que o estado de São Paulo ocupa na
economia brasileira e seu papel de liderança no estabelecimento da política
climática do país desde, ao menos, a década de 2000 (BARBI; FERREIRA,
2013, 2017; FERREIRA, 2020), destacamos os esforços mobilizados pelo
governo estadual para a proposição do “Plano de Ação Climática do estado
de São Paulo – Net Zero 2050”. Trata-se de proposta de política pública que
dá continuidade às iniciativas desenvolvidas no nível estadual e em muitos
municípios do estado a fim de empreender ações concretas de mitigação e
adaptação às mudanças climáticas. Entre tais iniciativas anteriores, que ofe-
recem subsídio ao plano atual, podem ser elencadas a participação em redes
internacionais de governos locais pela sustentabilidade, como o ICLEI (Local
Governments for Sustainability), a aprovação da política estadual de mudanças
climáticas em 2009 e o estabelecimento de programas e metas setoriais de
atuação nesta temática (BARBI; FERREIRA, 2013, 2017; DI GIULIO et al.,
2019; FERREIRA, 2020). O Plano de Ação – Net Zero 2050 foi proposto
120

inicialmente em 2021, encontrando-se em fase de aperfeiçoamento através


de processo de consulta pública.
De acordo com o documento da proposta, o plano busca definir o equi-
líbrio entre as iniciativas e incentivos do poder público e o engajamento pro-
gressivo e seguro dos setores econômicos, governos locais e sociedade, em
seus compromissos com a mitigação de emissões de gases de efeito estufa,
resiliência socioeconômica, inovação e competitividade. Destaca-se, ainda,
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“o envolvimento dos empresários brasileiros e de grandes corporações inter-


nacionais com os compromissos da agenda de governança socioambiental
– ESG –, cuja tendência é irreversível” (ESTADO DE SÃO PAULO, 2021,
p. 1). Entre os eixos estruturantes do plano, temos: 1. Eletrificação Acelerada,
com incentivo robusto na transição energética para novas fontes renováveis de
energia (em especial a solar, eólica e biomassa); 2. Combustíveis Avançados,
entre os quais destaca-se cada vez mais o desenvolvimento do hidrogênio e
suas múltiplas aplicações; 3. Eficiência Sistêmica, eixo que busca transformar
a forma com que se consome energia e materiais no transporte, nos edifícios,
na indústria e na agricultura; 4. Resiliência e Soluções Baseadas na Natureza,
com foco nas capacidades de adaptação de sistemas humanos e naturais aos
impactos das mudanças climáticas; e 5. Finanças Verdes e Inovação, envol-
vendo meios de implementação do plano como financiamentos, capacita-
ção, pesquisa, desenvolvimento tecnológico e intercâmbio de informações
(ESTADO DE SÃO PAULO, 2021).
Notamos, desta maneira, que a proposta de política pública apresentada
pelo governo estadual encontra-se, ao menos conceitualmente, bastante ali-
nhada aos principais temas, problemáticas e desafios discutidos internacio-
nalmente em fóruns de governança socioambiental (FERREIRA; BARBI;
BARBIERI, 2020; IPCC, 2018, 2021; ROCKSTRÖM et al., 2009; STEFFEN
et al., 2015; UN ENVIRONMENT, 2021; WORLD ECONOMIC FORUM,
2022). Além disso, trata-se de abordagem marcada por importante caráter de
ambição política e que se projeta para diferentes escalas temporais, desde o
curto prazo com medidas imediatas e ações em andamento até os médios e
longos prazos (horizonte até 2050), visando a aceleração de medidas com
vistas à obtenção de escala comercial para soluções propostas.
Nas reuniões e encontros de discussão acerca do Plano de Ação, desta-
cam-se múltiplos desafios de alinhamento, construção de consensos e opera-
cionalização. Um dos mais importantes refere-se à necessidade de esforços
coordenados entre diferentes níveis de intervenção política relevantes, desde
o âmbito federal com compromissos assumidos internacionalmente até os 645
municípios que constituem o arranjo administrativo do estado de São Paulo.
Neste particular, destacamos a predominância da abordagem multinível de
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 121

governança ambiental, que explora diferentes configurações de construção da


liderança política em prol de ações efetivas de enfrentamento à problemática
das mudanças climáticas (BARBI; FERREIRA, 2017; BULKELEY et al.,
2016; BULKELEY; NEWELL, 2010; DI GIULIO et al., 2019). No caso em
análise, o Plano de Ação proposto reconhece a posição de responsabilidade dos
governos subnacionais envolvidos em assumir compromissos e metas ambi-
ciosas em direção à descarbonização da economia até 2050 (zero emissões
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líquidas), a despeito de movimentos contrários ou ausência de mobilização


por parte de outros níveis administrativos, especialmente o atual governo
federal do país (FERREIRA; BARBI; BARBIERI, 2020; FERREIRA, 2020).
Como parte destes compromissos, os esforços de construção de iniciativas
articuladas e capacitação técnica das administrações locais para os temas em
discussão aparecem como elementos de primeira grandeza.
Além disso, o envolvimento dos múltiplos setores econômicos, empresas
e corporações nas iniciativas e ambições delineadas pelo plano é considerado
decisivo e fundamental. Assim, notamos a valorização de programas de Pes-
quisa, Desenvolvimento e Inovação e estímulo ao avanço do conhecimento
técnico-científico, como condição indispensável para o estabelecimento de
parcerias bem-sucedidas entre empresas, governos, centros de pesquisa e
sociedade civil. De acordo com a proposta inicialmente estabelecida, refe-
rindo-se ao caso da transição para combustíveis sustentáveis, “a ambição
é até 2030 investir fortemente em pesquisa, desenvolvimento, inovação e
disseminação, ampliando a escala de produção e viabilizando também regra-
mentos que induzam novos modelos de negócios para apoiar esses projetos”
(ESTADO DE SÃO PAULO, 2021, p. 12). Assim, conforme expresso por
proponentes do Plano de Ação8, setores econômicos e organizações que his-
toricamente apresentavam posições refratárias em relação ao envolvimento
com problemáticas socioambientais mudam de posicionamento, ao reconhecer
as transformações e tendências atualmente vigentes em direção a sociedades
mais sustentáveis e resilientes no contexto do século XXI.
Outra iniciativa que cumpre destacar com relação à temática deste capí-
tulo diz respeito ao “Hub Internacional para o Desenvolvimento Sustentável”
(HIDS), localizado na região do município de Campinas-SP. Segundo dados
do governo estadual, a Região Metropolitana de Campinas (RMC) é a segunda
maior região metropolitana do estado de São Paulo em termos de população,
com mais de 3,1 milhões de habitantes, e ocupa importante posição econô-
mica nos níveis estadual e nacional. Entre suas principais características, a

8 Conferir encontro realizado pela Associação Nacional de Municípios e Meio Ambiente (ANAMMA – São
Paulo) e a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo, em 20 de agosto de 2021.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4wqD2eNZdwk. Acesso em: 2 jun. 2022.
122

região comporta um parque industrial moderno, diversificado e composto por


segmentos setoriais complementares. Possui uma estrutura agrícola e agroin-
dustrial bastante significativa e desempenha atividades terciárias de expres-
siva especialização. Destaca-se, ainda, pela presença de centros inovadores
no campo das pesquisas científica e tecnológica, bem como do Aeroporto de
Viracopos, localizado no município de Campinas, o segundo maior do país
em transporte de carga9.
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Com relação à iniciativa do HIDS, o estímulo inicial para a ideia foi


propiciado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ao oferecer
como ativo tangível para o projeto uma área de 1,4 milhão de m² adquirida
em 2014, conhecida informalmente como Fazenda Argentina e que se loca-
liza de modo contíguo ao atual campus de Barão Geraldo, em Campinas-SP.
Este espaço representa 60% do território ocupado pelo campus principal da
universidade e faz parte de um dos polos estratégicos de desenvolvimento do
município de Campinas, o Polo de Alta Tecnologia Ciatec II. A região abriga
importantes instituições de pesquisa, tecnologia e inovação de referência
nacional, tais como o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais
(CNPEM), o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações
(CPQD), a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), bem
como a FACAMP (Faculdades de Campinas) e a Pontifícia Universidade
Católica de Campinas (PUC-Campinas). Além disso, reúne representantes de
corporações econômicas multinacionais, como Cargill e TRB Pharma, que
também integram a iniciativa.
De acordo com a proposta do Hub, o objetivo da iniciativa consiste em
construir uma estrutura que combina e articula ações, através de parcerias e
cooperações entre instituições que possuem competências e interesses voltados
a prover contribuições concretas para o desenvolvimento sustentável de forma
ampla, incluindo as ações que tenham impactos nos eixos social, econômico
e ambiental. Sua visão é contribuir para o processo do desenvolvimento sus-
tentável, “agregando esforços nacionais e internacionais para produzir conhe-
cimento, tecnologias inovadoras e educação das futuras gerações, mitigando
e superando as fragilidades sociais, econômicas e ambientais da sociedade
contemporânea” (CELANI et al., 2021, p. 306). O projeto encontra-se em
fase de estruturação e institucionalização, sendo marcado por elevado grau
de complexidade e grandes desafios para o alinhamento de expectativas e
construção de sinergias entre atores institucionais de natureza heterogênea
(governos, empresas, instituições de pesquisa, universidades). Apesar disso,
também aqui nota-se um caráter de ambição e ousadia, com foco em questões

9 Informações derivadas do governo do estado de São Paulo. Disponível em: https://rmc.pdui.sp.gov.br/.


Acesso em: 5 jun. 2022.
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 123

de longo prazo e com potencial para “transformar a Região Metropolitana


de Campinas (RMC) e fortalecer a imagem do Brasil como lócus de desen-
volvimento de conhecimento e tecnologias sustentáveis” (CELANI et al.,
2021, p. 307).
A proposição do HIDS apresenta caráter marcadamente inovador para a
região em que se localiza e o contexto institucional mais amplo do país. Isto
porque o projeto busca erigir um arcabouço legal, econômico, tecnológico
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e político que desafia estruturas e modos de governança já historicamente


consolidados. Entre os pontos que figuram como característica inovadora,
encontra-se o caráter eminentemente integrado das atividades planejadas, em
sintonia com os melhores exemplos e iniciativas que constituem os processos
contemporâneos de desenvolvimento urbano com vistas à sustentabilidade
(BULKELEY et al., 2016; DI GIULIO et al., 2019; FENTON; GUSTAFS-
SON, 2017; MCCORMICK et al., 2013). Assim, todo o planejamento e insti-
tucionalização da iniciativa busca mobilizar de modo ativo os múltiplos atores
sociais envolvidos, pautando-se na elaboração de um Plano Diretor específico
para seu território. Tal plano desdobra-se, por sua vez, em diferentes áreas
temáticas complementares, a saber: projeto físico-espacial; modelo jurídico;
modelo de negócios; patrimônio; avaliação de sustentabilidade; governança;
e comunicação (HIDS, 2022a).
Além disso, o projeto é marcado por elevado nível de experimentação
e proposição de soluções inovadoras para problemas empíricos concretos,
baseando-se para isso no referencial teórico-metodológico dos “laboratórios
vivos” (livings labs). Entre os elementos que compõem um laboratório vivo,
ordenados a partir da perspectiva do HIDS, encontram-se: a atuação em um
contexto real (real-world context) de problemas socioambientais; valorização
dos processos de co-criação; colaboração e participação ativa dos usuários;
envolvimento de múltiplos stakeholders; abordagem múltipla de métodos de
ensino, aprendizagem e pesquisa; governança a partir de parcerias público-
-privadas; e a inovação como eixo estruturante de primeira grandeza (HIDS,
2022b). Nesse sentido, sua abordagem encontra-se intrinsecamente alinhada
com os referenciais, processos e ações que buscam lidar com as mudan-
ças ambientais globais e promover transformações concretas em direção ao
desenvolvimento urbano integrado e sustentável (BHAGAVATULA; GAR-
ZILLO; SIMPSON, 2013; BULKELEY et al., 2016; DEWULF; MEIJE-
RINK; RUNHAAR, 2015; FENTON; GUSTAFSSON, 2017; MCCORMICK
et al., 2013).
124

Considerações finais

Ao longo do capítulo, discutimos algumas proposições, abordagens e


perspectivas cujo objetivo central reside em redefinir pressupostos teórico-
-conceituais e epistemológicos fundamentais, propor modelos de negócios
inovadores, reorientar padrões de produção e consumo vigentes e apontar
para novos caminhos de desenvolvimento socioeconômico em direção à sus-
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tentabilidade. Trata-se de apenas uma amostra dentre múltiplas iniciativas


contemporâneas que apontam para a necessidade e urgência em alterarmos
coletivamente as trajetórias históricas que nos trouxeram até o presente estado
de coisas (Zeitgeist). Notamos, assim, que há muitas ações em processo de
proposição, formulação e implementação, oriundas dos relatórios e estudos
globais dedicados a tais problemáticas, como aqueles publicados pelo IPCC,
CEPAL e o Fórum Econômico Mundial, bem como dos compromissos assu-
midos nacionalmente por cada Estado-Nação no âmbito dos acordos inter-
nacionais e das iniciativas localizadas nos contextos regionais e locais de
intervenção sociopolítica.
Ao considerarmos os atores econômicos privados, agentes fundamentais
para a mobilização dos investimentos, financiamentos e capacitações neces-
sárias às transformações em direção a sociedades sustentáveis e resilientes,
a análise aponta para o crescente envolvimento e participação de tais seto-
res nos esforços mais amplos de governança climática e ambiental. Dito de
outra maneira, a agenda socioambiental tem sido cada vez mais reconhecida
por empresas, corporações e instituições financeiras como questão-chave,
de tendência irreversível, ao adequado enfrentamento dos desafios impostos
pela emergência climática e mudanças ambientais globais. Neste sentido,
observamos, em diferentes níveis de atuação econômica e política, a con-
solidação de propostas que buscam promover novos modelos de negócios,
processos de inovação tecnológica, novos padrões produtivos e bens/serviços
sustentáveis. O Brasil, a partir de sua trajetória histórica na questão ambiental
e de importantes regiões com distintas características, como os contextos
regionais da Amazônia e do estado de São Paulo, possui papel privilegiado
nestas discussões.
Apesar disto, há inúmeros obstáculos, lacunas e desafios que se colocam
diante das transformações necessárias em direção à sustentabilidade e ao
desenvolvimento sustentável, especialmente ao considerarmos o envolvimento
de atores econômicos privados. Por meio da análise empreendida, destaca-
mos dois desafios importantes: o primeiro obstáculo refere-se à dificuldade
de mobilizar e incentivar a participação efetiva, robusta, duradoura e articu-
lada de grande número de corporações e empresas para as problemáticas da
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 125

governança climática e ambiental. Apesar deste ser um movimento crescente,


ainda se observa notável caráter de envolvimento voluntário por parte dos
agentes econômicos privados, cujos compromissos e responsabilidades osci-
lam entre interesses comerciais e financeiros de curto prazo e visões de médio/
longo alcance. O segundo desafio, em associação com o anterior, diz respeito
aos esforços de articulação e alinhamento entre múltiplos atores sociais e
institucionais de características distintas (governos, empresas, instituições
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de pesquisa, universidades), bem como entre distintos níveis de intervenção


política e setores de atividade produtiva. Segundo observamos, a realização
de mais pesquisas e estudos que procurem compreender os processos e dinâ-
micas que estruturam tais obstáculos pode contribuir decisivamente para as
urgentes transformações de que necessitamos.
Conforme nos mostra Beck (2016) em sua proposição acerca da meta-
morfose do mundo, há uma janela aberta de possibilidades e oportunidades
decisivas, mas que não deve se manter aberta por demasiado tempo. Nada
garante que os esforços atuais serão suficientes e cada ação na direção das
transformações necessárias importa de modo significativo. Em último caso,
nas palavras do autor alemão, um futuro de catástrofes recorrentes também
seria uma forma de metamorfose do mundo – o pior modo de metamorfose.
126

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CAPÍTULO 7
METAMORFOSE DO CAMPO: um
estudo de caso sobre três assentamentos
do Movimento dos Trabalhadores Sem
Terra no estado de São Paulo
Editora CRV – Proibida a impressão e/ou comercialização

José Caio Quadrado Alves


Guilherme Augusto Lemos Fest

Introdução
O que a mudança climática faz para nós, e como ela altera a ordem da
sociedade e a política?’ Propor essa questão nos permite pensar para além
do apocalipse ou da salvação do mundo e focalizar em sua metamorfose
(BECK, 2018, p. 54-55).

O presente capítulo se apropria da questão formulada por Ulrich Beck


(2018) e propõe a mobilização de abordagens que se demonstram fecundas
para observação e discussão dos processos de metamorfose do mundo agroali-
mentar. Trata-se de observar como as emergências climáticas produzem novos
sentidos à agricultura, como são inseridas na dinâmica de disputas políticas e
de que modo os atores operam através da percepção de riscos ambientais ou
ecológicos em situações de conflitos socioambientais no campo.
Tal análise se debruça sobre um tipo de situação em específico: a implan-
tação de assentamentos oriundos de reforma agrária no modelo Comuna da
Terra pelo processo de luta do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
(MST). Este prevê assentamentos próximos às zonas urbanas, com áreas de
cultivo e trabalho comuns, através de técnicas agroecológicas. Isso permitiria
conciliar cultivo agrícola com áreas de preservação ambiental, sendo um ins-
trumento importante de organização do uso do solo voltada para manutenção
de ecossistemas saudáveis próximo as cidades. Embora esse modelo não tenha
sido largamente difundido, o olhar para o processo de sua implementação nos
mostra os entraves e desafios de uma metamorfose do campo em andamento.
Para isso, foram colhidos dados bibliográficos e realizado trabalho de
campo em 3 assentamentos com as características mencionadas anteriormente.
Estes se propõem, ao menos na justificação, comprometidos com um modelo
132

de agricultura sustentável. Entre abril e maio, foram conduzidas 23 entrevistas


semi-estruturadas com moradores e pessoas envolvidas no processo de reforma
agrária, 6 no Vale do Paraíba e 17 em Ribeirão Preto, de modo a compreender
seu desenvolvimento naqueles locais, as dificuldades enfrentadas e o processo
de organização e criação de instituições locais.
Para entender as histórias e situações apreendidas em campo, utilizamos
da análise da ação coletiva no contexto de um arranjo institucional que regula
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os constrangimentos e incentivos nas escolhas tomadas. Além disso, também


lançamos mão da sociologia das justificações como instrumento teórico-me-
todológico para entender essa escolha na transformação das instituições em
busca da metamorfose do campo.
Por fim, nosso objetivo final é entender quais as particularidades dos
diferentes contextos utilizados e quais fatores contribuíram para o avanço ou
paralisação da questão ambiental nos casos estudados. Para isso apresentamos,
na primeira metade do texto, uma descrição de nossa compreensão sobre o
funcionamento dos processos envolvidos na análise. Esses processos foram,
então, destacados nos casos estudados.

Instituições e transformação social

Quando tratamos de transformações nos modos de vida sociais, e neste


caso em específico na nossa relação com o meio ambiente na produção agrí-
cola, falamos de ação coletiva. Trata-se de um conjunto de comportamentos
humanos, coordenados e interligados, de modo a se produzir um resultado final
previamente desejado e planejado. A ação social é o produto da socialização
humana, a grande obra que nos permitiu, como espécie, conceber os diversos
modos de vida, concepções de mundo, subjetividades e transformações sobre
a superfície da terra.
Dentre todas as possibilidades de ação coletiva, podemos identificar
uma que se pretende funcionar de forma regular e contínua no tempo. Não se
trata de uma ação em particular, mas sim de um conjunto de ações coletivas
que inclui não apenas a transformação imediata da realidade como também
o planejamento das futuras ações e das decisões acerca dessas ações. As ins-
tituições são um tipo específico de ação coletiva onde uma estrutura é criada
para coordenar agentes previamente selecionados, cooptar novos agentes e
produzir um determinado produto social. Esse produto pode ser subjetivo,
como segurança (instituição de polícia), conforto psicológico (instituição
religiosa, que tem outras funcionalidades também) e transmissão e certificação
de conhecimentos (instituições educacionais), ou objetivo, como a produção
de alimentos e demais recursos através da agricultura. No último caso, a
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 133

transformação do meio ambiental é um produto e um imperativo da ação


social coletiva.
Há diversas formas de definir instituições, dada a complexidade de sua
natureza. Podemos pensar nelas como um padrão de ação coletiva adaptável.
Dentre suas características, Ostrom (1990) diz que uma das mais fundamentais
são as regras estabelecidas para coordenar as ações individuais.
Uma instituição só se perpetua de forma intencional. Os indivíduos não
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seguem regras de forma simplesmente automática, o que torna seu cumpri-


mento e monitoramento um problema relevante no estudo desse tema. Há toda
uma estrutura dentro da macroestrutura da instituição que visa garanti-los10,
que inclui hierarquias, divisão de trabalho, expertise e etc. Essa é a parte for-
mal, externa e objetiva da instituição, capaz de ser avaliada de forma direta
através dos produtos gerados tanto em termos de resultados quanto em termos
de comportamento observável. Porém, há um lado subjetivo que é relacionado
à adesão das pessoas a uma determinada instituição ou conjunto delas. Ele
funciona através de processos dinâmicos de conflitos argumentativos entre os
atores disputando os valores e sentidos de determinado comportamento em
determinado contexto (BOLTANSKI; THÉVENOT, 1999).
Nesse sentido, o lado subjetivo das instituições trata das motivações que
cada indivíduo possui para seguir as regras estabelecidas e participar da ação
coletiva, submetendo a sua liberdade individual às restrições dela derivadas.
Como primeiro elemento podemos citar a visão de mundo desses indivíduos,
que comporta seu entendimento sobre as pessoas com quem interage e sua
concordância ou não com os objetivos e estratégias definidos. Além disso, um
fator fundamental para o sucesso de qualquer organização social, e institui-
ções inclusive, é sua adaptação ao contexto em que se dão. Nesse momento
precisamos considerar uma característica da concepção de ator social crítico
que é extrapolada para as organizações das quais ele faz parte: a reflexividade.
Cada indivíduo adere a uma ação social por uma escolha que julga racio-
nal e a reproduz mediante condições que assim o propiciam a isso. Mesmo
quando reproduz um comportamento, o faz através de uma dialética entre
sua concepção interna e as condições nas quais esse comportamento ocor-
rerá (GIDDENS, 1991). Por exemplo, uma pessoa pode escolher fazer uma
faculdade não apenas porque outras também o fazem, mas também porque
isso a permitirá ter melhores chances de um bom emprego, ou porque isso
permitirá que ela exerça uma profissão de seu interesse. Algumas condições

10 É importante salientar que nem sempre esse monitoramento será eficiente e, dependendo do grau de
dissuasão dentro da instituição, ela pode vir a falhar e até mesmo se desfazer. Instituições de sucesso são
aquelas que conseguem manter a ação coletiva ao longo do tempo, mantém um bom monitoramento e um
bom nível de enforcement, conforme a definição dada no texto, e são capazes de se adaptar às eventuali-
dades e transformações na realidade onde elas se inserem..
134

adversas, como um emprego prévio bem remunerado, ou falta de incentivo


da família, podem fazê-la desistir de sua intenção original. Assim, cada ação
é realizada avaliando-se seus prováveis resultados no futuro. Certo padrão de
comportamento pode ser modificado mediante mudanças no meio ambiental
tanto físico quanto social daquele que o realiza.

Figura 1 – Reflexividade na ação social


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Histórico de ações e Condições Contexto social,


resultados anteriores ambientais polí�co e econômico

Indivíduo ou grupo Ação ou


social organizado Reflexividade comportamento final

Condicionantes sociais Resultado


(regras e tradições) esperado

Fonte: Elaborados pelos autores, a partir de GIDDENS (1991)�

Com organizações sociais ele ocorre. Elas devem possuir não apenas
regras de funcionamento mas também mecanismos de modificação dessas
regras e avaliação de resultados e contexto, num sistema de freios e contra-
pesos que pode ou não ser formalizado. Esse processo dialético entre a psique
individual e a configuração das organizações sociais é chamado de “reflexi-
vidade” e se manifesta de diferentes maneiras em diferentes contextos. Ele
é um mecanismo fundamental quando falamos em entender transformações
sociais. O próprio catastrofismo emancipatório, conforme citado anterior-
mente, pode ser um importante fator que, através de um processo reflexivo,
gera transformações na sociedade.

Como as instituições mudam

As transformações não ocorrem de forma automática e exigem que atores


sociais confrontem a estrutura e a normatividade vigente – os sentidos que
dão sustentação às regras e normas convencionais – mobilizando para isso
tanto elementos objetivos quanto subjetivos. Em outras palavras, a sociedade
reflexiva (GIDDENS, 1991; BECK, 1995) só encontra êxito na gestão dos
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 135

riscos através de esforços políticos e culturais dos atores sociais (BECK,


2018). Trata-se do paradoxo das sociedades autocentradas, que devem olhar
principalmente para gestão dos problemas que elas mesmo provocam (e.g.
poluição, violência, desigualdade etc), utilizando, para isso, de políticas públi-
cas (MULLER, 2018).
Nesse sentido, a sociologia das justificações junto à uma abordagem
cognitiva das políticas públicas apresenta contribuições interessantes para
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as discussões acerca das transformações sociais, apresentando explicações


para além de regimes de violência e relações de dominação entre grupos dis-
tintos. Adversa à noção tradicional dos indivíduos como “idiotas culturais”
(GARFINKEL, 2018) a sociologia das justificações, em concordância com
a etnometodologia, se baseia no princípio do ator competente ou ator crítico
(WERNECK, 2012). Ou seja, diferente da perspectiva da sociologia estru-
turalista que compreende as ações sociais como disposições moduladas pela
dominação simbólica, para sociologia das justificações as pessoas comuns são
dotadas de pensamento reflexivo e “mobilizam processos de abstração e cate-
gorização, desenhando um mundo de ‘indexação’ de entes e casos particulares
a categorias e contextos mentalmente desenhados e acessados” (Idem, p. 80).
Em outras palavras, os atores têm ciência dos dispositivos morais e
sociais (e.g. a crítica, a justificação e a desculpa) cotidianamente utilizados
na construção e organização do mundo social, sendo capazes, mesmo em
casos desiguais de acesso à informações, de elaborar estratégias e ações a fim
de valorar e legitimar determinado posicionamento ou ação (BOLTANSKI;
THÉVENOT, 1999; WERNECK, 2012). Ainda, como são capazes de produzir
novas categorizações, também são capazes de questionar as categorizações
uns dos outros; “isso desenha uma vida social marcada por aquela exigência
de racionalidade e, mais que isso, por uma perene operação de ‘cobrança’ e
‘prestação de contas’ uns aos outros” (WERNECK, 2012, p. 80).
Assim, a operação de justificação é uma reação à crítica feita por outro
ator (coletivo ou individual) que não enxerga motivo ou discorda do motivo
de determinada ação ou posicionamento, exigindo assim a “prestação de con-
tas”. A sociologia das justificações se vale então de uma das problemáticas
mais tradicionais da sociologia, o choque entre ação e estrutura. Dito de
outra forma, durante as relações e interações podem ser produzidas situações
críticas em decorrência do incômodo por parte de um dos lados, seja pela
quebra de alguma regra moral comum ou por alguma ação desprovida de
motivo, e são nesses momentos em que a crítica opera. É “como se a regra se
transformasse em uma pessoa para, com suas forças, ingressar em uma luta
em favor de sua posição” (WERNECK, 2012, p. 36), situação denominada na
136

sociologia das justificações como regime de justiça ou regime de justificação11


(BOLTANSKI; THÉVENOT, 2006). Ou seja, para restabelecer a ordem e
dar continuidade à performance conjunta entre os membros, essas situações
demandam a operação de justificações a fim atribuir sentido à determinada
ação ou posicionamento que, por sua vez, estão referenciados em diferentes
ordens de justiça, produzindo assim, na maioria dos casos, acordos, normas
ou instituições legitimadas pelas partes.
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Dessa forma, se para Max Weber (1994) a sociologia se fundamenta


enquanto meio para compreender como os atores mobilizam seus sentidos/
motivos para dar sustentação às suas ações, daí o nome sociologia compreen-
siva. Boltanski e Thévenot (1999), por sua vez, nos apresentam um meio para
a análise das estratégias performadas pelos atores em operações de justificação
a fim de dar sustentação às suas ações e posicionamentos. A noção de justiça
possui então um papel fundamental nessa abordagem, pois são as concepções
de mundo justo, as chamadas cités, que serão mobilizadas em confrontos nas
arenas públicas. Trata-se então de um olhar analítico sobre a capacidade dos
atores de se abstrair das causas pessoais e mobilizarem críticas e justificativas
fundamentadas em generalizações, ou seja, que se distancie das intenções
particulares. Dessa forma, a legitimidade de uma justificativa é condicionada
por sua abrangência aos interesses de um coletivo, que, por sua vez, estão
referenciados nas cités (Ibidem). Na obra “A Justificação” (Idem, 2006), os
autores identificam seis ordens de justiça ou cités que operam nas sociedades
modernas. Não significa que apenas essas cités foram sócio-historicamente
constituídas na vida moderna, é possível pensar, como proposto aqui também,
na formação de uma cité verde ou cité ecológica (MARCOS MORUZZI, 2014;
LAFAYE; THÉVENOT, 2017). A tabela abaixo, organizada por Boltanski e
Thévenot (1999), apresenta as cités modelizadas:

11 Regimes de ação são como gramáticas do mundo social, situações e contextos que compreendem e deman-
dam determinada ordem de ação comum. Boltanski (2012) identificou quatro regimes de ação principais
que operam nas sociedades em situação de modernidade: a) regime de justificação; b) regime de violência,
c) regime cotidiano; e por fim, d) regime de ágape ou amor. É justamente na observação dos regimes de
conflito (justificação e violência) que é possível analisar os processos de transformação do mundo social,
assim como as estratégias utilizadas pelos atores sociais para tal.
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 137

Tabela 1 – Cités das sociedades em situação de modernidade


Cité
Inspirada Doméstica Cívica Da opinião Mercantil Industrial
A política
A cidade
tirada da O contrato A riqueza das
de Deus, Leviatã, de A obra de
Obra Inspirada sagrada social, de nações, de
de Santo Hobbcs Saint-Simon
escritura, de Rousseau Adam Smith
Agostinho
Boussuet
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Modo de Graça, não


Estima, Interesse Produtividade,
avaliação conformidade, Renome Preço
Reputação coletivo eficiência
(grandeza) criatividade
Formato da Mensurável:
Oral, exemplar,
informação Emocional Formal, oficial Semiótica Monetária critérios,
anedótica
relevante estatísticas
Relação Reconhe- Ligações
Paixão Confiança Solidariedade Trocas
elementar cimento funcionais
Competência
Qualificação Criatividade, Desejo, poder
Autoridade Igualdade Celebridade profissional,
humana ingenuidade de compra
expertise

Fonte: Boltanski e Thévenot (1999). Tradução: Werneck (2012).

Além disso, o regime de justificação não se trata apenas duma questão


de linguagem, disputas desse gênero envolvem pessoas e também um
grande número de objetos (BOLTANSKI; THÉVENOT, 1999). Para o
reconhecimento e valoração das críticas e justificativas utilizadas pelos atores
em momentos de disputa, é essencial a mobilização de coisas ou pessoas que
atuem como intermediadoras entre os discursos argumentativos e o mundo.
Em outras palavras, regimes de justificação demandam provas de veracidade
das cités mobilizadas, diferenciando assim não apenas utopias impossíveis e
utopias realizáveis, mas especialmente utopias realizáveis e utopias realizadas
(BOLTANSKI, 2012). Ou seja, “os mundos estão no mundo, representam a
dimensão concreta da forma de construção de uma ordem como modelizada
pelas cités. Enquanto as cités são abstrações metafísicas, os mundos são plenos
de disposições efetivas de seres e coisas” (WERNECK, 2012). A mobilização
de provas de autenticidade em regimes de justificação pode ser compreendida
então como o “momento da verdade num julgamento” (Ibidem). Assim:

Um julgamento inclui mais do que os aspectos argumentativos da comu-


nicação. É também o momento da verdade em que os atores, para avan-
çarem em suas próprias posições, devem qualificar os entes presentes,
explicitar sua natureza e passar da coerência argumentativa à prova dos
fatos (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2006, p. 352).
138

Provas de autenticidade como produto dos arranjos institucionais

As ordens de justiça são dinâmicas e sofrem transformações ou nascem


de acordo com o contexto histórico e cultural de cada sociedade. Nas últi-
mas décadas, com o estreitamento das relações entre o mundo agroalimentar
e as mudanças climáticas, começam a surgir indícios da cité ecológica em
situações de conflito no campo, em particular na crítica à utilização do pacote
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tecnológico da denominada revolução verde – agrotóxicos, adubos químicos,


sementes transgênicas, maquinários pesados – e na reivindicação da reforma
agrária, tendo como nova justificativa a defesa do meio-ambiente através de
práticas agroecológicas e/ou agroflorestais pela agricultura familiar12 (MORU-
ZZI MARQUES; GASPARI; ALMEIDA, 2017).
Para que essas justificativas da opção ecológica possuam sustentação
em momentos agudos de conflitos ambientais é necessária a apresentação de
provas, coisas ou pessoas, que proporcionem sustentação às argumentações
mobilizadas. No caso de assentamentos de reforma agrária do MST, justifi-
cativas de ordem ecológica podem ser apresentadas como a “preservação de
um bem comum” e as provas de autenticidade dessas justificações o “investi-
mento em conservação agroecológica” (MORUZZI MARQUES, 2014). Essas
provas, por sua vez, representam em grande medida não a ação particular e
isolada de um indivíduo, mas sim o produto da ação coletiva. Ou seja, são os
produtos dos arranjos institucionais que constituem as provas que, por sua vez,
dão sustentação às argumentações de ordem ecológica mobilizadas pelo MST.

Ação coletiva em multiníveis de governança

Além das estratégias argumentativas utilizadas pelos atores em momentos


de disputa, devemos também compreender outras dimensões que constituem
a ação coletiva. Ao avaliarmos como um determinado padrão de ação coletiva
muda, mudando portanto as regras e procedimentos que a orientam, é impor-
tante nos atentarmos para a própria burocracia envolvida nesse processo. Uma
análise multinível não pretende olhar para todos os níveis possíveis, mas sim
para aqueles de interesse para o fenômeno estudado. Certas instituições estão
subordinadas a outras de nível hierárquico superior, ou sua ação depende de
outras mais ou menos abrangentes. A interligação entre ação coletiva e níveis

12 Cabe ressaltar que no caso dos conflitos em torno das questões agroalimentares, além dos argumentos
ecológicos, as cités cívica e doméstica, assim como a industrial e mercantil são frequentemente mobiliza-
das. O agronegócio promove sua autoridade sobre justificativas de ordem mercantil e industrial, buscando
exaltar sua capacidade produtiva e seus ganhos financeiros. Em contrapartida, os movimentos sociais do
campo mobilizam justificativas de ordem cívica e doméstica, construindo em grande medida sua legitimidade
enquanto luta pelo bem-comum (MORUZZI MARQUES, 2014).
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 139

de governança deve ser sistematizada e hierarquizada para que possamos


entender quais mudanças são possíveis e quais os caminhos pelos quais elas
devem passar.
Assim, devemos olhar para o nível da formulação de políticas e também
para o nível da ação, ou seja, a escala local. É lá onde as mudanças são senti-
das, operacionalizadas e onde tocam na vida das pessoas. Ao mesmo tempo,
é de lá que vem as demandas de mudanças que deverão ser articuladas nos
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diferentes níveis (FERREIRA et al., 2012; BARBI; FERREIRA, 2013). Nesse


sentido, Ostrom (1990) nos convida a classificar as regras em uso, ou seja,
aquelas que realmente são seguidas e possuem impacto na vida das pessoas,
em diferentes níveis. Elas podem ser classificadas da seguinte forma:

• Regras operacionais (Operational rules): Afetam diretamente as


decisões cotidianas daqueles que manejam um determinado recurso
e/ou território. São essencialmente regras práticas sobre o que deve
ou não deve ser feito e como deve ser feito. Por exemplo, temos
certos protocolos operacionais, como áreas onde uma comunidade
de pescadores pode pescar, quais espécies e em quais quantidades
isso pode se dar, etc;
• Regras coletivas (Collective-choice rules): Afetam diretamente as
regras operacionais. Trata-se das regras que estabelecem a política,
ou plano, a partir do qual elas serão formuladas e alteradas, quando
necessário. Como exemplo podemos citar os planos diretores de
um município;
• Regras constitucionais (Constitutional-choice rules): Determi-
nam quem é elegível para fazer e modificar as regras que influen-
ciam nos níveis inferiores e como isso deve ser feito. Essas regras
não necessariamente são sempre escritas e formalizadas. Elas refle-
tem uma visão de mundo e valores e princípios transitam entre o
objetivo e o subjetivo, pois incluem o próprio objetivo das insti-
tuições que governam. Temos como exemplo, em nível nacional, a
constituição de um país. Mas também podemos pensar isso a nível
de comunidade, como os anseios que um grupo de pessoas possuem
e que os levaram a se organizar em instituições e formalizar toda
uma burocracia para concretizá-la.

Cada um desses tópicos corresponde a um ou a um conjunto de arenas


de debate. São nelas onde as discussões para o estabelecimento e mudanças
dessas regras ocorrem (OSTROM, 1990).
140

Reforma agrária e a emergência climática

Latifúndio e degradação ambiental

Quando consideramos a ideia de mudança no modo de produção e na


relação com o meio ambiente na produção agrícola, precisamos buscar onde
está o potencial para que isso ocorra. Quando consideramos a América Latina,
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a formação das nações, em geral, está ligada ao controle político por uma
classe latifundiária, numa economia agroexportadora. A degradação ambiental
do lado sul do continente segue um padrão de desflorestamento e uso intensivo
do solo, devido a grande disponibilidade de terras para as oligarquias regionais
(PAINTER, 1995). Assim, o uso do solo é acompanhado do fenômeno das
fronteiras agrícolas, que deixam em seu rastro terras degradadas e população
sem acesso à terra e à mercê de uma série de problemas sociais. No Brasil
isso é muito claro quando analisamos o controle que os donos de terras (terra
tenentes, senhores de engenho, barões do café e da cana etc.) tinham sobre a
vida social da população camponesa (RIBEIRO, 2015).
Nos anos 1970, com o advento da Revolução Verde, o agronegócio (nome
moderno para a atividade econômica dos latifundiários) consolidou um modo
de produzir que envolve muita tecnologia, pouca mão-de-obra e intenso uso
de defensivos agrícolas, insumos e espécies transgênicas. Longe de mudar os
rumos do antigo modo de desenvolvimento, o agronegócio perpetua e inten-
sifica um padrão de degradação ambiental que é histórico (VEZZALI, 2006).
A demanda por reforma agrária vai na contramão desse processo, como
força política contrária à concentração de terras e poder nas mãos de uma oli-
garquia de herança colonial. No caso do Movimento dos Trabalhadores Sem
Terra em particular, surgiu como forma de contestação dessa dominação da
política agrária e territorial através dos meios institucionais. Isso pois a forma
de demanda e ocupação da terra segue os critérios que determinam, em lei,
quais terras são passíveis de desapropriação pelo poder público.
Atualmente o agronegócio conta com investimentos estatais, capital
acumulado, alta tecnologia, propaganda na mídia, grande peso na balança
comercial nacional e até mesmo uma bancada própria no congresso nacio-
nal, a Frente Parlamentar do Agronegócio (FPA). Seria muito difícil para o
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e mesmo outros fazerem frente
a eles utilizando-se do mesmo modo de produção monocultor. Tendo em
vista a gigantesca dependência de insumos químicos externos na agricultura
convencional e a falta de investimento do poder público, cujos recursos são
majoritariamente destinados ao agronegócio (CUBAS, 2017), não é possível
para o pequeno produtor oriundo da reforma agrária competir, em termos
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 141

de mercado, nos mesmos termos que o agronegócio. A necessidade de fazer


diferente e a possibilidade de uma maior legitimação perante a sociedade,
devido aos ataques constantes que a reforma agrária sofre há décadas na
mídia brasileira, torna os assentamentos potenciais focos de um novo modo de
produzir alimentos e matérias-primas de forma mais sustentável. Além disso,
não dispondo de grande oferta de terras a serem utilizadas, o uso sustentável
das que foram conquistadas a muito custo se torna um imperativo.
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Reforma agrária como possibilidade de mudança

Para que o potencial sustentável possa se desenvolver, é necessário consi-


derarmos o tipo de comunidade que se forma num assentamento e as próprias
regras sob as quais se dá a reforma agrária no Brasil. A legislação que a regula
é o Estatuto da Terra, de 1964. Ele é fruto do golpe militar do mesmo ano,
que veio como um movimento reacionário a diversas pautas progressistas em
andamento, uma delas a proposta de reforma agrária do governo João Goulart.
Como forma de conter os avanços, os militares fizeram uma legislação que
centralizava o processo e a gestão dos territórios desapropriados nas mãos do
governo federal, através do atual Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA) (BRASIL, 1964).
Esse Estatuto, letra morta em um período de intensas perseguições aos
movimentos sociais do campo, representa uma tentativa do então governo
militar na apaziguação dos movimentos sociais de sem terra e posteriormente
a criação de dispositivos visando a colonização de territórios na Amazônia,
campanha conhecida nos anos 1960 e 1970 como “integrar para não entregar”.
A lei prevê a desapropriação de terras tidas como improdutivas, com propósito
de assegurar em tese os princípios de justiça social e produtividade do setor da
agricultura. Constitui-se então o conceito jurídico de função social da terra13.
Dessa forma, fica estabelecido que as desapropriações são fundamentadas no
interesse social e mediante a compras diretas do poder público ou fixação das
devidas indenizações através do Incra.
Apesar da noção de função social da terra não apresentar avanços efe-
tivos da política de reforma agrária durante a ditadura militar, representa no
período democrático uma ferramenta jurídica extremamente importante nos
debates acerca da questão agroambiental. Em particular na redefinição de

13 De acordo com o Art. 2 §1º a propriedade que “a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores
que nela labutam, assim como de suas famílias; b) mantém níveis satisfatórios de produtividade; c) assegura
a conservação dos recursos naturais; d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de
trabalho entre os que a possuem e a cultivem..”
142

um referencial14 do setor da agricultura. Nesse sentido, o MST, por exemplo,


é capaz de elaborar estratégias argumentativas na reivindicação da reforma
agrária através do debate acerca da função social da agricultura, utilizando-se
para isso de dispositivos morais (críticas e justificações) da opção ecológica
coerentes ao referencial global de eficácia global (MULLER, 2018). Ou seja,
de um mundo mais sustentável.
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O caso dos assentamentos do MST no Vale do Paraíba

Relatos de assentados mostram que a dependência dessa política para


com o poder central dificulta muito o desenvolvimento do próprio processo
de reforma agrária. João Silva15, do Assentamento Olga Benário, em Tremem-
bé-SP, participou de diversas ocupações do Movimento dos Trabalhadores
Sem Terra (MST) e contou que boa parte do trabalho de divisão dos lotes,
construção de infraestrutura e organização de documentos é feito pelos pró-
prios ocupantes e futuros assentados. Nas palavras dele, semelhantes a de
outros entrevistados: “se a gente for esperar o INCRA, nem do acampamento
a gente teria saído”.
Maria Oliveira, que participa da coordenação do Assentamento Olga
Benário, conta que as visitas dos técnicos do INCRA acontecem em média a
cada 6 meses e geralmente são rápidas. É mais fácil conseguir algo do INCRA
quando se trata de pedir alguma documentação, mas demandas de infraestru-
tura ou de intermediação com o município, por exemplo, são morosas e por
isso geralmente são realizadas pela própria organização do assentamento.
Consideramos a divisão de níveis hierárquicos de debates de regras em
arranjos institucionais, conforme a figura 2, a instância do INCRA que poderia
ser classificada como uma posição intermediária (collective-choice rules) se
encontram muito distante tanto geograficamente quanto institucionalmente
dos assentamentos que administra. Mesmo os agentes regionais do INCRA
são responsáveis por um grande número de assentamentos. Na região do Vale
do Paraíba, por exemplo, somente um escritório atende toda a região. Dessa
maneira, é muito difícil, numa situação onde o contexto local é tão marcante

14 Segundo a abordagem cognitiva das políticas públicas (MULLER, 2018), as políticas públicas são constru-
ções sociais para a gestão das sociedades autocentradas. Dessa forma, o referencial informa o papel de
determinado setor na sociedade e que, por sua vez, atribui os cursos de políticas públicas. Por exemplo,
existe uma gigantesca diferença na construção de uma política numa sociedade que compreende o setor
da agricultura como um instrumento de luta contra a fome e insegurança nutricional ou como instrumento
de competitividade de mercado. No primeiro caso pretende-se garantir ao máximo o acesso da população
à alimentação saudável e em boa quantidade; no segundo, busca-se o sucesso de objetivos monetários e
reestruturações, mesmo que isso implique no aprofundamento de problemas ambientais e sociais.
15 Os nomes que constam neste texto são todos pseudônimos, para resguardar a identidade das pes-
soas entrevistadas.
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 143

como em assentamentos oriundos de reforma agrária, que as demandas locais


possam ter impacto nas ações do instituto.
Ao mesmo tempo também devemos considerar a maneira como se forma
a comunidade de um desses assentamentos. Não são comunidades tradicionais
e muitos dos assentados nem sequer são oriundos da região onde foi feita a
desapropriação. No Assentamento Conquista, em Tremembé-SP, a origem
dos assentados se dá conforme a figura 2 abaixo:
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Figura 2 – Região em que viviam os titulares do Assentamento Conquista,


Tremembé-SP, antes de entrarem para a luta pela terra, em 2013

4ª fase
3ª fase (2013-2018)
Implementação
(2009-2012) da Política
2ª fase
Política
(2003-2008) Climática
1ª fase
Agenda
(1992-2002) Político-
Início das Institucional
discussões

Fonte: Brosler (2015).

Embora seja de responsabilidade do governo federal fiscalizar e desa-


propriar terras que se enquadrem nos requisitos descritos pelo Estatuto da
Terra e da Constituição Federal de 1988, é muito difícil que aquele tome a
iniciativa do processo. Movimentos sociais, como o MST, tomam a iniciativa
de encontrar terras assim e ocupá-las, como forma de denúncia e demanda
para que a legislação seja cumprida. A operação é delicada, pois num primeiro
momento eles serão tratados como criminosos e na grande maioria das vezes
será realizada uma tentativa de reintegração de posse para o proprietário. Após
pressão sobre o Estado, essa terra poderá ser desapropriada e transformada
em assentamento. Nesse meio tempo, num período que é chamado de
“acampamento”, é criado um arranjo institucional entre eles que continuará
após essa fase, para gestão do assentamento.
Como tanto a legislação que regula a reforma agrária quanto a própria
iniciativa da ocupação não incluem processos orgânicos locais, há uma grande
influência de fatores externos à comunidade assentada na sua formação. Consi-
derando-se a figura 1, a influência do contexto político nacional possui grande
144

peso no balanço entre incentivos e constrangimentos na decisão dos atores


na hora de estruturar como será o assentamento e como se dará a produção.
Isso é visível no discurso de assentados que participaram do processo de
ocupação. João Silva foi um dos coordenadores durante a ocupação do atual
assentamento Olga Benário. Ele conta que após a eleição do primeiro governo
do Partido dos Trabalhadores (PT), havia muito otimismo em relação ao apoio
que se daria à reforma agrária pelo MST. Na mesma época, foi formulado
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o modelo Comuna da Terra, prevendo assentamentos próximos aos centros


urbanos, com incentivo a práticas agroecológicas e um modelo de produção
que representasse uma alternativa à agricultura tradicional.
Entretanto, o governo federal, tendo controle dos incentivos estruturais
do processo de reforma agrária, favoreceu aqueles que seguiram um modelo
tradicional e que ocupassem certos bolsões que não interessassem ao agro-
negócio, tivessem baixo valor de desapropriação e minimizassem possíveis
demandas jurídicas, segundo relatos dos próprios assentados. Isso gerou uma
divisão dentro do movimento, que levou muitos atores locais a preferirem
o modelo tradicional. O peso do fator “política nacional” favoreceu esse
processo, a não ser em locais onde questões locais mudassem a balança de
incentivos e constrangimentos.

Sabe uma coisa que eu tenho medo, cara? Eu tenho medo de uma volta
do PT [no poder] fazer a gente voltar àquele ciclo anterior: Deus é bom e
o diabo não é ruim. Cooptação [do movimento], investimento no agrone-
gócio, investimento no ‘agronegócinho’ para nós. Não que eu queira dizer
que tem que continuar essa ***** que está aí. Mas que tem uma série de
problemas lá tem (Entrevista de João Silva, 26 maio 2022).

Um processo semelhante ocorreu no Assentamento Nova Esperança, em


São José dos Campos. José Almeida e Júlio Castilho, dois agricultores que
trabalham com agroecologia e lá residem, contam que a propagação desse
modo de trabalho é difícil e atingiu somente cerca de um terço dos assenta-
dos em 20 anos de história como ocupação regularizada. Recentemente, um
grupo denominado Rede Agroflorestal do Vale do Paraíba, coordenado por
pesquisadores da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA)16,
vem incentivando a difusão da prática através de convênios entre assenta-
dos, pequenos produtores locais, cientistas e iniciativa privada. Isso é muito
importante pois tenta compensar a falta de incentivos do governo federal, num

16 Apesar do nome, os pesquisadores de lá trabalham na Rede de maneira independente de sua profissão


regular na agência. Não se trata, pelo que pudemos perceber nas entrevistas, de uma influência do agro-
negócio na pequena produção local.
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 145

movimento de contrapeso à estrutura geral de incentivos dentro do processo


de reforma agrária.

O caso do assentamento Mário Lago, Ribeirão Preto/SP

No caso do assentamento Mário Lago, Ribeirão Preto/SP, nota-se algu-


mas semelhanças em relação à falta de comprometimento de órgãos do poder
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central, como INCRA, assim como a perda ou redução de políticas nacionais


fundamentais para o desenvolvimento rural e a garantia da segurança alimentar
e nutricional, em especial nos últimos anos. Reconhecido em dezembro de
2004 através de decreto presidencial do então presidente Luís Inácio Lula da
Silva (PT), o assentamento teve como uma das suas principais fundamenta-
ções a preservação e restauração de áreas de afloramento do Aquífero Guarani
(AGUIAR, 2011).
A então Fazenda da Barra era acusada desde 1993 de diversos crimes
ambientais, entre eles o desmatamento de vegetação original, supressão de
áreas de reserva (RL) e áreas de preservação permanente (APP) sem autoriza-
ção dos órgãos competentes, assim como drenagem não autorizada das águas
do Rio Pardo e a contaminação de corpos d’água por agrotóxicos e outros
insumos químicos utilizados na produção de cana-de-açúcar (Ibidem). Nos
anos 2000, a fazenda foi novamente alvo de investigações por indícios de
novos crimes ambientais, a operação constatou o desmatamento de áreas de
reserva, contaminação do solo e corpos d’água e sérios riscos de contamina-
ção das águas do Aquífero Guarani, correspondendo à um passivo ambiental
superior à 7 bilhões de reais (AGUIAR, 2011; BORELLI FILHO, 2009).
Dessa forma, um dos pré-requisitos para destinação dessas áreas à polí-
tica de reforma agrária foi a constituição de um Termo de Ajuste de Conduta
(TAC), comprometendo os assentados, o INCRA e o Ministério Público (MP)
ao desenvolvimento de práticas agroecológicas e/ou agroflorestais no assenta-
mento, a proibição de agrotóxicos, assim como a disponibilização de recursos
como mudas de árvores nativas, água, ferramentas, treinamento e um plano
de reflorestamento das áreas de reserva. Ainda, foi instituída pelo TAC a con-
cessão real de uso da terra17 e três grandes objetivos visando a proteção das
águas do Aquífero Guarani: 1º comprometeu-se ao Incra e aos assentados a
recomposição arbórea das áreas de RLs fechada (20%), com árvores nativas da
região; 2º comprometeu-se ao Incra e aos assentados a recomposição arbórea

17 Os assentados-beneficiários não poderão emprestar, ceder ou transferir o uso do imóvel, mas é permitido o
trabalho cooperado entre assentados nos lotes individuais. Além disso, é vedado aos assentados-beneficiários
arrendar o imóvel ou dar-lhe destinação diversa daquela estipulada. Nos casos de desistência da condição
de assentado, este será indenizado pelas benfeitorias úteis e necessárias por ele implantadas no respectivo
lote, abatendo-se do valor da indenização os créditos por ele obtidos.
146

das APPs, com árvores nativas da região; 3º e por fim, comprometeu-se ao


Incra e aos assentados o incremento de mais 15% em áreas de RL que poderão
ser destinadas a manejo sustentado na forma de SAFs, totalizando 35% da
propriedade em RL.
Assim, para a concretização da reforma agrária na região, o ônus ambien-
tal foi transferido para os assentados e sem nenhuma compensação pelos
danos provocados por parte dos antigos proprietários. Sendo assim, em con-
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cordância com o modelo Comuna da Terra, então preconizado pelo MST no


estado de São Paulo, o Incra enquadrou o assentamento na categoria Projeto
de Desenvolvimento Sustentável (PDS), sendo então formalmente conhecido
como PDS da Barra.
Cabe ressaltar aqui, durante o período de pré-assentamento, quando já se
tinha uma perspectiva de desapropriação da área e se aguardava os devidos
processos legais (2004 até 2008), eclodiram uma série de desentendimentos
entre algumas famílias e a coordenação do MST. Em especial com relação às
regras de convivência como, por exemplo, a obrigatoriedade na participação
de reuniões e atividade dos setores18 ou reuniões gerais da coordenação. Em
decorrência disso, ocorreram dissidências que originaram o assentamento
Santos Dias (154 famílias), formado em 2005 sob a bandeira do Movimento
de Libertação dos Sem Terra (MLST), onde posteriormente também ocorreram
mais duas dissidências. A primeira em 2006, dando origem ao assentamento
Índio Galdino (bandeira branca e com 44 famílias)19, e a segunda em 2008,
dando à luz ao assentamento Luíza Marri (bandeira branca e com 59 famílias).
Atualmente o assentamento Mário Lago conta com cerca de 260 famílias
(BORELLI FILHO, 2009; AGUIAR, 2011; FREITAS, 2018).
Seja como for, nos três casos apresentados o MST se vale da mobilização
de críticas e justificações da opção ecológica em momentos agudos de conflitos
por legitimação dos assentamentos, ou seja, em respostas à discursos difamató-
rios e que possam qualificar a atuação do MST e das famílias assentadas como
unworthy (indigna) em relação à determinada ordem de justiça. Observa-se
então um esforço na operação de um criticismo radical, principalmente por
parte das lideranças do MST, ou seja, quando se “desafia o próprio princípio da
qual a situação é baseada e a disputa se transforma em uma competição entre

18 Especialmente durante o período de acampamento e pré-assentamento, a coordenação do MST organiza


junto às famílias regras de convivência. As famílias são organizadas em núcleos, batizados com o nome de
personalidades reconhecidas pela luta social (Paulo Freire, Zumbi dos Palmares, Dandara etc), em particular
no caso do assentamento Mário Lago, cada núcleo possui 8 setores – produção, segurança, educação,
saúde, cultura e lazer, secretaria e setor da criança – que, por sua vez, realizam reuniões ao longo da semana
entre coordenadores dos setores e repassam aos núcleos. Além disso, também eram realizadas reuniões
semanais com a organização central do MST (BORELLI FILHO, 2009; AGUIAR, 2011).
19 Os grupos “bandeiras brancas” são aqueles popularmente conhecidos por não integrarem nenhum movi-
mento social.
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 147

dois diferentes testes de realidade (BOLTANSKI; THÉVENOT, 1999, p. 374).


Em outras palavras, trata-se de “reivindicações por outra hierarquização que
ofereça uma escala de valores diferente para um mundo agroalimentar justo”
(MORUZZI MARQUES; GASPARI; ALMEIDA, 2017, p. 553). Não mais
priorizando valores mercantis e industriais na constituição de um referencial
da agricultura, mas sim concepções de justiça ecológica, doméstica e cívica
(MARQUES MORUZZI, 2021). Por outro lado, também se observa que essas
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mudanças de referencial, em especial do papel ecológico na agricultura, não se


encontram de forma hegemônica na base dos assentamentos, ou seja, a maioria
das famílias assentadas, nos casos tratados aqui, não participa ou demonstra
interesse em desenvolver práticas agroecológicas e/ou agroflorestais. Princi-
palmente após a transição para o assentamento, quando a organização polí-
tica vai gradualmente se dissipando e iniciativas desse gênero acabam por
depender apenas da coordenação central e das cooperativas ou associações
que integram parte minoritária das famílias assentadas.

Entraves para concretização da reforma agrária sustentável

No caso desses três assentamentos, identificamos alguns entraves centrais


para o desenvolvimento de projetos agroecológicos e/ou agroflorestais que
estão de alguma forma relacionados à atuação ou ausência do poder central:

1º. a negligência e não cumprimento dos termos firmados em TAC


por parte do Incra, em especial a disponibilização de água, mudas,
equipamentos, treinamento adequado e um plano de manejo das
áreas de reserva;
2º. a quase extinção do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) a
partir do governo de Michel Temer, em 2016. Em decorrência disso,
foi perdido um dos maiores incentivos para produção diversificada
em assentamentos de reforma agrária, assim como para práticas
agroecológicas ou agroflorestais. Dessa forma, muitas famílias
foram obrigadas a dividir seu tempo em trabalhos na cidade;
3º. por fim, o enfraquecimento da coletividade entre as famílias assenta-
das em decorrência da impossibilidade de um sistema de auto gover-
nança, pois a organização e as normas do assentamento se tornam
também atribuições do Incra e Ministério Público, especialmente
aquelas que definem o regime de propriedade. Assim, se instaurou,
mas não de forma hegemônica, a lógica de “cada um no seu lote”,
dificultando a ação coletiva e a gestão conjunta das áreas de reserva.
148

Por outro lado, existem diversos esforços por parte de uma minoria dos
assentados, organizados em cooperativas ou informalmente, que visam sanar
esses problemas. Produzindo assim, mesmo em condições precárias frente ao
abandono do poder público, provas de autenticidade das justificações ecoló-
gicas que fundamentam os assentamentos em questão. É importante ressaltar
que essas famílias contam também com a intensa colaboração de voluntários,
ONGs, sindicatos, universidades e outras organizações da sociedade civil para
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realização de projetos agroecológicos e agroflorestais nessas regiões.


No caso do assentamento Mário Lago, foi através do Centro de Formação
Dom Hélder Câmara, associação do MST que atua em todo estado de São
Paulo, que muitas famílias tiveram acesso a uma série de programas voltados
especificamente para produção agroflorestal e manejo das áreas de reserva.
Ver tabela 2.

Tabela 2 – Programas agroflorestais

Programas Período Fonte de financiamento Resultados

Programa socioambiental 40 hectares de agroflorestas


Agroflorestar 2012-2013
da Petrobras em áreas de RL
Programa socioambiental 500m² de agrofloresta em 80
Agroflorestar II 2014-2015
da Petrobras lotes, cerca de 4 hectares
Candeia: Agroflorestas
iluminando a vida e
Fundo Brasileiro para a Equipamentos e capacitação
os caminhos para o 2013-2015
Biodiversidade (FUNBIO) agroflorestal
renascer das águas
do Aquífero Guarani
Banco Mundial, Projeto
de Desenvolvimento Rural Equipamentos, capacitação
Renascer das Águas
2013-2015 Sustentável - Microbacias II, da agroflorestal e implementação de
do Aquífero Guarani
Secretaria de Meio Ambiente do sistemas de comercialização
Estado de São Paulo (SAMA)
Capacitação em planejamento
SAFs de 180 participantes e
Terra Mãe 2018-2019 Banco do Brasil
implementação e aprimoramento
de 36 áreas com SAFs
10 he com SAFs e o aprimoramento
Nova Era 2021 Instituto Nova Era de áreas nos lotes dos
assentados participantes

Fontes: Iha, (2017); Freitas, (2018); Zonetti, (2019); Quadrado Alves. Organização dos autores.

Essas iniciativas, por óbvio, não suprem a ausência do poder público ou


o não cumprimento das obrigações assumidas pelo Incra. Por outro lado, é
através desses projetos que a coordenação do MST, cooperativas e associações
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 149

internas constroem ações coletivas voltadas para preservação e restauração


das áreas de reserva, assim como a produção de alimentos saudáveis e a pro-
teção das águas do Aquífero Guarani. Além disso, são também esses grupos
que constantemente reiteram as instituições formais e informais (regras em
uso) voltadas para uma agricultura sustentável, ou seja, a não utilização de
defensivos químicos ou fogo, assim como a preservação e o plantio de árvores
dentro e fora dos sistemas de produção quando possível.
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Considerações finais

Os objetivos centrais do presente capítulo foram compreender como o


MST e seus colaboradores fundamentam a política de reforma agrária através
da mobilização de discursos argumentativos de ordem ecológica. Além disso,
como dão sustentação a essas justificações através das práticas de manejo
agroecológicas e/ou agroflorestais, constituindo assim as provas de veracidade.
Constatamos que os anseios gerados em decorrência das emergências
climáticas se traduzem numa estrutura normativa, a cité ecológica, que, por
sua vez, serve de apoio para estratégias de legitimação da reforma agrária
nos casos estudados. Com efeito, o princípio de preservação dos recursos
naturais, caracterizado na função social da terra, é primordial para sustentação
jurídica desses processos.
Tratando das práticas agroflorestais, os assentamentos no Vale do Paraíba
apresentam várias diferenças na comparação com o caso do assentamento
Mário Lago, em Ribeirão Preto. Esse último, é protagonista de diversos pro-
jetos socioambientais que disponibilizam capital físico e humano para uma
quantidade significativa de famílias assentadas, possibilitando até mesmo a
criação de uma cooperativa agroflorestal. Além disso, também possui fortes
influências de fatores locais, em particular as áreas de afloramento do Aquífero
Guarani que conta com leis municipais, ONGs ambientalistas e MP atuantes
na defesa desse recurso natural. Por outro lado, nos casos dos assentamentos
no Vale do Paraíba, as argumentações ambientais são mais genéricas e a
proposta agroflorestal não é muito trabalhada e nem mesmo almejada pela
grande maioria das famílias assentadas. Assim, por conta do contexto local,
a cité ecológica manifesta maior predominância no caso de Ribeirão Preto.
Percebe-se também que os agrofloresteiros são os grupos mais atuantes
na legitimação da proposta socioambiental nos assentamentos estudados.
Tratam-se de grupos de atores comprometidos com o manejo das áreas de
reserva, implantação de agroflorestas nos lotes e, em particular no caso do
assentamento Mário Lago, expansão da proposta através da educação política
e ambiental. Grupos que, de certo modo, se constituem de forma orgânica,
150

pela motivação dos próprios atores que atribuem sentido moral às práti-
cas agroflorestais. Não é apenas agricultura, mas o modo justo e correto de
fazer agricultura.
Por fim, ficam algumas questões em aberto: até que ponto as argumen-
tações de ordem ecológica podem influenciar de forma geral no avanço da
política de reforma agrária? Ainda, a produção de provas de veracidade em
assentamentos de reforma agrária é extremamente dependente da possibilidade
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das comunidades se autogovernarem. Sendo assim, até onde a atual política


de reforma agrária é capaz de satisfazer tal demanda e constituir uma resposta
às emergências climáticas?
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 151

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CAPÍTULO 8
FORMAS-DE-VIVER VERNACULARES:
por uma celebração dos limites socioecológicos
a partir de uma perspectiva illichiana
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Neto Leão

Introdução

As mudanças climáticas e a degradação biogeoquímica alcançaram


um consenso científico desde o Painel Intergovernamental sobre Mudanças
Climáticas (IPCC) de 2007. O mais recente Relatório Especial de 2022 do
IPCC, “mostrou que (1) os impactos de um aquecimento de 1,5 ºC colocam
a humanidade claramente fora da zona de segurança e (2) qualquer aqueci-
mento acima desse limiar é terrivelmente ameaçador para o funcionamento
elementar das sociedades contemporâneas”. Isso significa que estamos todos
vivendo à beira de catástrofes planetárias. Um pescador vernacular vivendo
dentro dos limites de propriedade, ferramentas e escassez às margens do Lago
Trasimeno na Úmbria, Itália, ou uma mulher Zapoteca colhendo milho nas
colinas de Oaxaca, México, são afetados por um aquecimento para o qual
não contribuíram. Eles são os mais conscientes da perda do clima de seus
ancestrais e do surgimento de um novo.
Seguindo os argumentos do relatório, “manter-se em 1,5°C, no entanto,
exigiria reduzir as emissões dos gases de efeito estufa (GEE) até 2030 aos
níveis de 1977, ou seja, reduzir as emissões de GEE per capita aos níveis de
1955, algo implausível se mantivermos as estruturas socioeconômicas e polí-
ticas existentes” (MARQUES, 2020). Até agora, os esforços científicos têm
mostrado que várias fronteiras planetárias foram ultrapassadas. Esses limiares
são tomados como nosso teto comum. Proponho, depois de Ivan Illich, que
os arranjos sociais baseados em limites à propriedade, às ferramentas e à
escassez (valor de troca), que são dimensionados pelo corpo humano, estão
edificando uma cúpula comum de abundância na qual habitam formas-de-
-viver vernaculares. Embora esclarecedores em termos de dados científicos
e, claro, essenciais para os estudos sobre mudanças climáticas, as fronteiras
planetárias são apenas os sinais de que ultrapassamos nosso teto social comum.
156

A travessia dos limites sociais e políticos necessariamente levam a humanidade


à travessia das fronteiras planetárias.
Não vejo outra alternativa para reduzir as emissões de GEE do que
proposições políticas bem estruturadas, baseadas em limites ao regime de
propriedade (comum), às ferramentas (convivialidade) e à escassez ou valor
de troca (vernáculo). Essas proposições políticas só podem ser alcançadas
por meio da democracia radical, mudanças que surgem da base da sociedade,
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como, por exemplo, as experiência dos zapatistas, do Movimento Sem Terra


(MST) no Brasil ou dos mapuches no Chile. Eles sabem que firmamos os
passos no solo e não na Terra. Pachamama, Madre Tierra nomeia, sobretudo,
o território que os envolve. A arrogância do desenvolvimento sustentável
produziu uma degradação socioambiental na qual confundimos o Planeta
Terra como nosso ponto de vista. Somente àqueles que atuam em um meio e
com outros seres em tal escala como habitantes de um planeta podem cruzar
as fronteiras planetárias.
Leila da Costa Ferreira remonta as origens de uma Sociologia Ambiental
a Ivan Illich quando defende que o livro A Convivencialidade (1973) abriu
caminho para uma epistemologia alternativa sobre a relação entre técnica e
sociedade (Ferreira, 2005). Embora não proponha uma teoria social formal,
A Convivencialidade foi um livro que influenciou uma geração de pensadores
sociais em busca de uma crítica radical da modernização. Ferreira nomeou
essa geração de ecologistas políticos radicais – Ivan Illich, Jean-Pierre Dupuy,
Andre Gorz e William Ophuls, para citar apenas alguns. Os três primeiros,
segundo Ferreira, desenvolveram uma episteme descentralizada para uma
análise dos desequilíbrios socioambientais (ILLICH, 1973; DUPUY, 1980;
GORZ, 1987), enquanto Ophuls, na contramão dos demais, defendia um
arranjo político centralizado que pudesse coordenar as políticas e harmonizar
sociedade e ecologia (OPHULS, 1977). A emergência e o estabelecimento da
sociologia ambiental não se manteve no caminho identificado e até mesmo
aberto aos sociólogos por Leila da Costa Ferreira. Por mais de trinta anos,
ela manteve vivo o espírito dos ecologistas políticos radicais. Mesmo que
a corrente principal da sociologia ambiental não tenha sido decisivamente
influenciada por essa vertente de pensamento, este capítulo não poderia ter
sido conceituado ou escrito sem seu trabalho pioneiro na intersecção da eco-
logia e da sociologia.

Formas-de-viver vernaculares

O vernáculo é o tecido que costura formas-de-viver. Um apelo às for-


mas-de-viver vernaculares é como imaginei um encontro entre Ivan Illich
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 157

– vernáculo (Shadow Work [1980] e Gender [1982]) – e Giorgio Agamben –


forma-de-vida (Altíssima Pobreza: regras monásticas e forma-de-vida [2015]).
Ambos ressuscitaram esses termos da antiguidade latina e do antigo direito
romano. Illich rastreou o vernáculo até a codificação de Teodósio, enquanto
Agamben encontrou referências a uma forma de vida em Cícero, Sêneca e
Quintiliano, muito antes dos franciscanos (ILLICH, 1982, p. 68; AGAMBEN,
2017, p. 963).
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Ivan Illich dá nova vida à palavra vernáculo, sabendo que seu antigo sig-
nificado traz a semente para o que ele pretende definir. O vernáculo designava
tudo o que era tecido, cultivado, feito em casa, em oposição ao que se buscava
por meio da troca monetária (ILLICH, 1981). Assim, o vernáculo, a partir de
Illich, nomeia uma gama de atividades nascidas de estruturas de reciproci-
dade mútua, inscritas em cada aspecto da existência, que não são orientadas
para o mercado. As atividades vernaculares podem abranger a definição de
atividades de valor de uso, como a confecção de redes de pesca de algodão
ou o cultivo da própria comida, mas também atividades de reprodução, como
namoro, exercícios ou leitura. A abrangência do vernáculo abrange estilos de
pensamento em que a ciência não é definida para as pessoas, mas sim pelas
pessoas, quando o conhecimento não é um recurso escasso, mas um compro-
misso compartilhado de apoiar uns aos outros no embelezamento do entorno
de uma vida comunitária (SAMUEL, 2016).
Giorgio Agamben analisou minuciosamente as regras monásticas dentro
da tradição cristã para dar corpo a uma vida que não está separada de sua
forma. Ao comprometer-se livre e voluntariamente com o cenóbio (lugar
onde se vive em comum), o monge cristão adere a uma regula vitae (regra
de vida) que não se aplica à sua vida, mas produz a sua maneira de viver na
medida em que se produz nele. Foi a fé em Cristo, a pessoa, a palavra feita
carne, que gerou uma regra que se conforma ao Seu modo de viver. Ainda
que a regula fidei (regra de fé) de Tertuliano tenha posteriormente alimentado
as linhas escritas no Credo de Nicéia, a regra não pretendia ser um dogma,
mas expressa o esforço de seguir o Cristo nu (AGAMBEN, 2014, p. 75). São
Francisco de Assis insistia que uma regra de vida é menos a prescrição de algo
e mais o ato de seguir alguém. Assim, uma forma-de-vida não é a imposição
de uma norma ou forma prescrita na vida, mas viver de acordo com essa forma
particular, ou seja, uma vida que, ao ser vivida, toma a forma que busca em
última análise – o que Agamben nomeia a coincidência de vida e forma. O
“última desejo” de Santa Clara encarna a definição de uma forma de vida:
158

“Desejo… seguir a vida e a pobreza de nosso altíssimo Senhor Jesus Cristo”


(AGAMBEN, 2017, p. 967)20.
Assim, proponho, depois de Illich e Agamben, que o vernáculo engloba
as formas-de-viver que pressupõem limites à propriedade, limites ao poder das
ferramentas e limites à escassez que são dimensionados pelo corpo humano.
Tais limitações não são um conjunto de prescrições que devem ser imputadas
aos modos de viver como norma imposta, pelo contrário, dão corpo à abun-
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dância que reside nas atividades vernaculares e que conforma um viver do


qual não se pode separar, do que agora me refiro como a regula vernaculum
(regra do vernáculo) – limites as ferramentas, ao regime de propriedade e a
escassez dimensionadas pela forma humana. A regula vernaculum, coincide
com formas-de-viver quando as pessoas reduzem sua dependência do mercado
e do Estado (escassez). Assim, os limites podem fomentar formas-de-viver
vernaculares, se, e somente se, forem vividos e estabelecidos enquanto viven-
ciados, não impostos, não prescritos. Viver dentro de limites sintonizados
com limiares corporais encarna formas-de-viver vernaculares. Um apelo às
formas-de-viver vernaculares é um convite para celebrar a abundância que só
pode ser encontrada dentro de tais limites. Mais precisamente, um apelo às
formas-de-viver vernaculares é um convite para abrir um imaginário social
no pensamento e fomentar a engenhosidade das pessoas dentro dos limites
à escassez (vernáculo), às ferramentas (convivialidade) e ao regime de pro-
priedade (comuns).

Vernáculo: limite à escassez (valor de troca)

A economia, ou o que agora está rapidamente se tornando sustentabili-


dade ou desenvolvimento sustentável, impõe a escassez enquanto o verná-
culo reconhece a abundância. A primeira está mudando da gestão da “Vida”
humana para a gestão da “Vida” planetária para enfrentar a devastação eco-
lógica, enquanto a segunda promove formas de vida que não cruzam os limi-
tes naturais, uma vez que incorporam os limites sociais (à propriedade e ao
poder das ferramentas – regula vernaculum). A sustentabilidade é o reino da
escassez, enquanto o vernáculo é o jardim da abundância. Acredito que um

20 O argumento de Agamben é que a regra se fundamenta no ato de seguir a forma-de-viver de alguém.


Refere-se também à origem da regra como uma espécie de regula fidei (regra de fé), em que o monge,
vivendo pela fé, encarna a sabedoria da escuta/leitura das Sagradas Escrituras (Agamben, 2014, p. 76).
A correspondência entre a regra e as Escrituras, de onde brotavam as águas que nutriam a sua busca
da verdade, é expressa de forma inequívoca nas palavras dirigidas aos que afirmam seguir a Cristo, que
aparecem na primeira Epístola de São João: “ Aquele que diz que permanece nele, também deve andar
assim como ele andou”.
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 159

compromisso político com formas-de-viver vernáculas é uma alternativa à


economia, sustentável ou não.
Dentro das premissas da sustentabilidade ou do desenvolvimento sus-
tentável, o viver continua sendo um recurso escasso, atualizado na forma de
uma condição econômica reformulada como “verde”. O que quero dizer com
escassez é o seguinte: morar é escasso, um produto da indústria da habitação
[“verde”]; cuidar de si é escasso, um serviço da indústria da saúde; o ir e vir é
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escasso, produtos/serviços da indústria de transportes [“verde”]; o aprender e o


saber são escassos, produtos/serviços de escolas [“verdes”] e a profissionaliza-
ção de especialistas [“verdes”]; a empatia e a simpatia são escassas, produtos
da indústria cultural [sustentável] e dos consultores; a respiração é escassa,
porque a poluição do ar está sufocando milhões de pessoas; morrer é escasso,
porque você não pode mais enterrar seus próprios mortos, mas depende dos
serviços da indústria funerária. Vestir-se, comer, divertir-se, todos os aspectos
que compõem a condição humana são escassos, seja na forma de produtos
ou serviços, sejam eles “sujos” ou “verdes” (LEÃO NETO, 2020, p. 236).
A vida torna-se assim escassa, transformada em uma série de mercadorias
e serviços econômicos, coisas e ações a serem compradas e vendidas. O ato
de viver é assim transformado em “Vida” – um recurso nacional, um direito
– e tornado quase impossível fora dos limites do mercado ou da economia
planejada [“verde”]. A ilusão de que as sociedades capitalistas são os reinos da
abundância deve desmoronar, é confundir abundância por excesso. A “Vida” é
o objeto de governo e de legislação. Em todos os lugares, a biocracia – gerir a
‘Vida’ através dos mecanismos do Estado e do mercado – tornou-se a norma.
A abundância, por outro lado, é reconhecida quando as pessoas constroem
engenhosamente o modo autônomo de viver, quando na maioria das vezes
suas atividades não impõem restrições ou obrigam outros a realizar outras
atividades. Assim, a vizinhança que circunda as formas-de-viver abundante
traz as marcas das mãos; imprimem os gestos de quem faz para/por si e/ou
para o outro. Confundir abundância com quantidade de iates ou carros na
garagem, ou seja, excesso de poucos que produz mais escassez, é a assinatura
do capitalismo (LEÃO NETO, 2020, p. 237).
Infelizmente, as sociedades industriais modernas castraram tanto o sen-
tido quanto o fazer das atividades vernaculares e, portanto, a encarnação da
abundância, sobretudo dos mais pobres. A guerra contra o vernáculoimpõe a
escassez em todos os aspectos da existência, do útero ao túmulo. Hoje, por
exemplo, dar à luz uma criança em casa e encontrar conforto em uma doula
é principalmente um privilégio para os ricos, assim como construir a própria
casa com materiais “tradicionais” ou morar tão perto do trabalho que se possa
andar a pé até ele. Recuperar as atividades vernaculares não como moda, nem
160

como luxo é uma tarefa política para aqueles comprometidos com o equilíbrio
entre ambiente e sociedade. É urgente mudar, por exemplo, o foco político
de reduzir o metano ao nível que o Planeta suporta (a mais nova conquista
da COP26 em Glasgow, 2021) para o esforço em estabelecer limites à pro-
priedade, privado e público, e ao poder das ferramentas, renováveis ou ​​ não.
Esta não é uma tarefa fácil e requer uma mudança de paradigma longe
da ingenuidade. Superar o capitalismo é uma luta social desde a Comuna de
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Paris (1871) e, depois de um século e meio, continua sendo a tarefa política de


cada geração. No entanto, chegamos ao zênite de tal luta, quando a degrada-
ção social e ecológica tem inevitavelmente levado a humanidade a múltiplos
eventos catastróficos.
Para o contexto da COP26 em Glasgow (2021), a Organização OXFAM
e o Instituto do Meio Ambiente de Estocolmo (SEI) apresentaram um estudo
intitulado Desigualdade de carbono em 2030: emissões de consumo per capita
e a meta de 1,5ºC, apontando que “o clima e as crises de desigualdade estão
intimamente interligadas”. Eles concluíram que o 1% mais rico do mundo
ameaça as metas climáticas do Acordo de Paris ao mostrar, por exemplo,
que as emissões de jatos e viagens espaciais excedem em 30 vezes os limites
necessários para manter o aquecimento global abaixo de 1,5ºC. Mais uma
vez, o Acordo de Paris não estabelece limites para ferramentas, para o regime
de propriedade, e para a escassez, ele estabelece um limite para as emissões
de carbono com base em fronteiras ecológicas – o que o Planeta Terra pode
suportar. A menos que comecemos a reformular os objetivos para reequilibrar
ambiente e sociedade – como estabelecer limites para ferramentas e proprie-
dade (formas-de-viver vernáculas) – a escassez e a guerra contra o vernáculo (a
origem da desigualdade brutal) continuarão a governar as cúpulas ambientais e
a sustentabilidade continuará sendo uma moda para os bilionários se gabarem.
Devemos abordar uma verdade inconveniente e expor, por exemplo,
que Elon Musk – Tesla e SpaceX – Al Gore e Richard Branson – Virgin
Group – não são paladinos de uma nova era de renovação ecológica – a lista
é vasta, mas cito apenas alguns bem conhecidos. Eles são a nova máscara do
capitalismo, eles entendem melhor os fundamentos da sustentabilidade e do
desenvolvimento sustentável e produzem, promovem e defendem os aparatos
mais sofisticados como frutos de uma modernização ecológica. Eles não veem
limites para a propriedade, ferramentas ou qualquer alternativa à escassez,
pelo contrário, desde suas viagens à órbita do planeta, eles estenderam a
reflexão sobre os comuns ao espaço sideral. Sua arrogância não tem limites,
eles buscam a escassez universal.
Em contrapartida, o vernáculo nomeia atividades reais, não se restringe
a uma análise teórica. Um apelo por formas-de-viver vernáculas não é uma
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 161

utopia nem uma receita prescrita. São modos de viver que resistiram ao colo-
nialismo e ao capitalismo e ainda podem ser apreciados não apenas em torno
dos inúmeros grupos de povos originários, mas também entre diversos arranjos
sociopolíticos modernos nos cinco continentes. Os lugares e comunidades
onde o desenvolvimento ainda não deteriorou suas formas de convivência e
seu território estão repletos de atividades vernaculares.
Mas e as pessoas que vivem em grandes cidades, vilarejos ou aldeias
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distantes onde a escassez é a regra? Como elas poderiam recuperar a confiança


em sua capacidade de fazer para/por si mesmas e/para os outros enquanto a
dependência do mercado e do Estado só aumenta, especialmente agora sob
a égide da sustentabilidade ou do desenvolvimento sustentável? Acredito
que o caminho para as formas-de-viver vernáculas é doloroso, mas bastante
urgente. Renunciar o regime de propriedade ilimitada e de ferramentas ilimi-
tadas é angustiante, mas principalmente para os membros da geração que deve
suportar a transição para formas-de-viver vernáculas e, acima de tudo, para
aqueles plugados à dependência de alta quantidade de energia. Tal transição
não significa a recuperação de um passado perdido, nem um programa para
renovar o ludismo, é uma mudança para modos de vida modernos e equili-
brados, quando ferramentas de alta tecnologia – como painéis solares, trens, e
bicicletas, por exemplo – estão sob limites bem estabelecidos e quando a natu-
reza é maioritariamente de uso comum e por último na forma de propriedade.
A regula vernaculum, quando as pessoas decidem voluntariamente
reconhecer, estabelecer e viver coletivamente sob limites às ferramentas e à
propriedade, pode promover uma variedade de formas-de-viver surpreenden-
temente maleáveis. Cada região, território e arranjo social podem encontrar
modos de convivência engenhosos, raramente idênticos entre si, sobretudo no
que diz respeito ao e ao que estabelecem esses limites, o que torna diversas
formas-de-viver. Em outras palavras, uma vez que começamos a viver sob
essas limitações, um espaço imaginário é [re]aberto e as pessoas [re]ganham
sua criatividade, sua inventividade e sua capacidade de ganhar a vida que
não escraviza os outros, sejam árvores, animais, ou pessoas. É precisamente
quando o sentido e a materialidade da abundância começam a florescer entre
as pessoas, quando elas reconhecem que toda a criação está sob uma cúpula
de abundância, onde não há desperdício nem excesso.
Todo evento catastrófico é o cruzamento de fronteiras planetárias, uma
espécie de excesso. Foram necessários milênios, desde a era glacial e o aque-
cimento global, para que o planeta Terra estabilizasse seu clima e alcançasse
o ritmo de equilíbrio que rearranjou seus limiares biogeoquímicos, o que os
geólogos chamam de Holoceno. A humanidade também fez parte desse equilí-
brio, a história dos desequilíbrios planetários devido à ação humana é bastante
162

recente, o que hoje se convencionou chamar de Antropoceno, ou Capitaloceno,


ou Chthulucene (CRUTZEN, 2002; MOORE, 2017; HARAWAY, 2016). Eu
chamo de longa guerra contra o vernáculo, a condição histórica de forçar
violentamente a escassez sobre os povos em todo o mundo, primeiro como
serviços e depois como produtos. Enquanto a economia incorporou, perpetrou
a escassez e, em última análise, a degradação planetária, as formas-de-viver
vernaculares permanecem sob uma cúpula de abundância, onde os limites são
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celebrados e os limiares incorporados (proporcionalidade) como condição


para um buen vivir [bom viver]. Insisto que as formas-de-viver vernaculares
estão acontecendo, aqui e agora, estão muito mais próximas de nossas mãos
do que o mais novo Tesla.

Convivialidade: limite às ferramentas

Abordar a noção de limites para ferramentas pode causar uma reação ime-
diata de carranca. As pessoas tendem a confundir tal limitação com uma nova
era de paus e pedras, sobretudo aqueles que viveram apenas sob uma casca
tecnológica. No entanto, o significado de convivialidade tal como cunhado por
Ivan Illich está longe de ser uma proposta ludita e não traz nenhum vestígio
de uma visão idílica do passado. Seguindo os passos de Hugo de São Vítor,
Illich formulou uma análise múltipla em direção à tecnologia crítica, e des-
vendou os divisores de águas sociais que, uma vez atravessados, impactam
tanto a sociedade quanto o meio ambiente.
Há uma relação inseparável e entrelaçada entre sociedade e ambiente. As
ferramentas são constitutivas da sociabilidade e podem extrapolar as fronteiras
ecológicas ou equilibrar a trama dessa tapeçaria. Tomo ferramentas pelo sen-
tido amplo dado por Illich, como utensílios, pás ou peneiras, como máquinas,
tornos ou carros, como fábricas que produzem bens tangíveis, montadoras
ou corrente elétrica, como sistemas produtivos e de serviços que produzem
bens intangíveis ou serviços, conhecimento e escolas ou cuidados de saúde e
hospitais. Em suma, uma ferramenta é todo meio pelo qual as pessoas podem
expressar seus fins (ILLICH, 1973).
A convivialidade é como Illich imaginou sociedades modernas, porém
proporcionais, uma infinidade de arranjos sociais onde as pessoas estão com-
prometidas com a tarefa política de estabelecer limites ao poder das ferra-
mentas e à dependência de alta quantidade de energia. Para Illich, o senso de
proporção reflete fronteiras naturais que separam uma esfera da outra, como
as veias que limitam a circulação do sangue. A convivialidade é o caminho
para [re]conquistar a proporcionalidade, o que cabe e o que não é adequado
para equilibrar a relação ambiente e sociedade.
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 163

Nos anos 1970, quando Illich escreveu Tools for Conviviality (A convi-
vencialidade) e Energy and Equity (Energia e Equidade) como peças panfletá-
rias, a chamada crise energética – que atingiu vários países do mundo – abriu
uma janela para um debate público sobre a dependência de combustíveis
fósseis. Muitos países da Europa Ocidental, ao lado do Japão e dos Estados
Unidos, sofreram racionamento de eletricidade, proibição de voar, dirigir ou
passear de barco nos fins de semana, o cancelamento do Natal e da ilumina-
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ção comercial, juntamente com muitas outras restrições. A imposição de tais


limitações involuntárias foi o momento adequado para Illich analisar critica-
mente a dependência de alta quantidade de energia e do poder das ferramentas;
mas, sobretudo, convocar as pessoas a se engajarem politicamente com uma
reconstrução convivial, quando pudessem começar a sondar a luta política pela
fixação de limites às ferramentas como alternativa a uma crise erroneamente
abordada como um problema de falta de energia em vez de excesso energia.
Agora, acredito que sob a constante ameaça do eschaton planetário uma
nova janela foi amplamente reaberta para convocar as pessoas a voltarem sua
atenção para direcionar o debate público sobre ambiente e sociedade para
uma análise crítica da dependência energética de alta quantidade e o poder
das ferramentas. A mais recente pandemia de Covid-19, quando ocorreu algo
bastante próximo de um confinamento social planetário e a suspensão colate-
ral de quase todas as atividades sociais e econômicas, evidenciou a completa
dependência das sociedades industriais modernas de commodities e ferramen-
tas dependentes de alta quantidade de energia. Satélites mostraram a queda
acentuada da poluição gerada pela China em 2020; moradores da Califórnia
relataram a emoção de ver estrelas no céu pela primeira vez; e peixes foram
vistos depois de décadas nos canais de Veneza. Tais relatos demonstram a
violência do modo de produção industrial e a dependência de ferramentas de
alta quantidade de energia, mas, sobretudo, ilumina os efeitos imediatos, pelo
menos sobre o ambiente, uma vez que as ferramentas manipuladoras operam
sob limitações (LEÃO NETO, 2020).
A convivialidade revela a tarefa política de estabelecer coletivamente
os limites das ferramentas. Seguindo as proposições de Illich, as ferramen-
tas podem ser definidas como manipuláveis ou conviviais. O dualismo mais
incapacitante é diferenciar as ferramentas como boas ou más, a armadilha do
maniqueísmo. Carros movidos a combustíveis fósseis são ruins enquanto car-
ros elétricos são bons, ou pior ainda, qualquer tipo de carro é ruim/bom. Uma
distinção fundamental ao abordar os limites das ferramentas, por exemplo,
poderia ser enquadrá-las como altamente dependentes de energia (manipulá-
veis – carros, hospitais ou redes de pesca industrial) versus dependentes de
baixa quantidade de energia (conviviais – bicicletas, bibliotecas ou canoas)
164

ou, como disse Jean Robert, como geradores de sinergia positiva ou negativa
entre autonomia e heteronomia (ROBERT, 2019).
Todo modo de produção industrial, seja ele capitalista, socialista ou
coletivista, sob o pressuposto do homem proprietário e consumidor de escra-
vos, acabou atravessando o segundo divisor de águas e tornou as ferramentas
contraproducentes. Para Illich, as ferramentas industriais não podem deixar de
reverter a relação homem-ferramenta. Desde o sonho de Marx de que todos
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viveremos um paraíso na terra se as máquinas tomarem o trabalho dos homens


e substituírem o trabalho humano, uma grande proporção da esquerda perma-
nece cega à tecnologia crítica. A vida das pessoas tem sido reproduzida pela
operação de ferramentas manipuláveis, ou seja, aquelas ferramentas industriais
cujos propósitos são pré-determinados e projetados por outros – como carros
e rodovias, escolas, hospitais e transporte público. Todas essas ferramentas
requerem uma intervenção remota das ações e interações de quem as opera.
Quando pego o metrô na cidade de São Paulo há uma inversão da relação
entre minhas intenções em relação a essa ferramenta de trânsito; em última
análise, não é apenas a estrada de ferro que determina os fins, mas sobretudo
o fato de que sou simplesmente transportado do ponto A ao ponto B. Aqui a
contraprodutividade simbólica de Illich pode ser totalmente apreendida, é a
condição em que se torna cego para a distinção entre deixar-se levar e pedalar
a bicicleta, ou o que é pior, perder a confiança nos próprios pés.
A predominância de ferramentas manipuláveis engendra
​​ uma nova topo-
grafia mental em que essa distinção central que me separa de uma bicicleta – a
distalidade – é apagada e substituída por uma lógica de funcionamento dos
sistemas – passageiro do metrô – enquanto se concebe a si mesmo como mero
pedaço de um complexo sistema socioecológico. A convivialidade, portanto,
torna-se um processo mais difícil e doloroso para o sistema imunológico,
enquanto as pessoas encarnadas, que ainda não perderam o senso de propor-
cionalidade, podem apreender a convivialidade de forma mais intuitiva. A
proposta da convivialidade, no entanto, não supõe a supressão de ferramentas
manipuláveis – hospitais ou carros não devem ser banidos permanentemente –
mas permite que as pessoas usem ferramentas que requerem baixa quantidade
de energia (menos controlada por outras), o que abre um espaço imaginário
para engenhosamente definir os critérios de limitação de ferramentas que exi-
gem alta quantidade de energia (mais controlada por profissionais e gestores).
As mudanças climáticas e a degradação biogeoquímica são consequên-
cias do monopólio radical das ferramentas de manipulação. Quando todo um
território, por exemplo, é projetado para transporte de alta velocidade – carros,
rodovias, ônibus ou trens – a percepção ao lado da materialidade de uma espa-
cialidade se torna escassa. Quem deseja caminhar ou andar de bicicleta deve
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 165

seguir o desenho urbanístico feito especialmente para ferramentas manipulá-


veis. O uso de ferramentas conviviais em tais condições – bicicletas, skates
ou caminhos feitos por pés humanos – torna-se não apenas perigoso, mas em
muitos casos impraticável. O que a sustentabilidade ou o desenvolvimento
sustentável prometeram é que podemos, de alguma forma, continuar tendo
uma ‘Vida’ sob o monopólio radical das ferramentas manipuláveis, desde que
sejam refeitas, ou seja, se tornem ‘verdes’, para que o equilíbrio ecológico
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possa ser recuperado. Ambos estão cegos para a degradação social do mono-
pólio radical de ferramentas de alta quantidade de energia, uma vez que estão
presos pela camisa de força das ilusões verdes.
O que aconteceu em Oslo, na Noruega, é paradigmático. As faixas exclu-
sivas de ônibus estão sendo ocupadas por carros elétricos. Se você tem um
carro elétrico em Oslo, pode acessar o privilégio legal de dirigir em uma
faixa de ônibus e acelerar sua viagem (desnecessário dizer que isso ocorre às
custas de diminuir a velocidade de centenas de outras pessoas). Outro grande
benefício de ter um carro elétrico é o desconto nos pedágios, do qual você
está amplamente isento se possuir um. Esta nova regra de transporte é um dos
vários incentivos para as pessoas abandonarem seus carros movidos a com-
bustível fóssil e aderirem ao que o Parlamento norueguês decidiu, como meta
nacional, que todos os carros novos vendidos até 2025 devem ser de emissão
zero (elétrico ou hidrogênio – vamos todos ignoram, por um momento, a
cadeia de produção desses carros e suas enormes emissões de GEE). Em 2019,
em um artigo de Simon Browning, da BBC News, um cidadão norueguês lhe
disse sua razão favorita sobre ter um carro elétrico: “você não precisa fazer
fila, você pode simplesmente contornar a fila. É uma sensação ótima!”.
Devo repetir, para ser enfático, que a sustentabilidade é a nova escassez.
Não só isso, mas é também a nova prestigiosa certificação que abre os cami-
nhos do futuro para os privilegiados por ela. Provavelmente está se tornando
embaraçoso dirigir um carro a diesel em Oslo, deve-se sentir culpado por tal
desumanidade. Em vez de abordar as mudanças climáticas e a deficiência
pessoal devido ao monopólio radical de ferramentas de manipulação – todos
os tipos de carros – o Parlamento norueguês está restringindo uma ferramenta
‘ruim’ dependente de alta quantidade de energia para substituí-la por uma
ferramenta ‘boa’ dependente de alta quantidade de energia ilimitada. Não
estou nem considerando as altas emissões de GEE para a produção de carros
elétricos e toda a questão da dependência de alta quantidade energética, o que
tornaria ridículo o argumento do carro “bom verde”.
Chamo esse fenômeno de travessia de um terceiro limiar socioecológico,
que abordo mais adiante, quando as pessoas não conseguem imaginar uma
solução fora da dependência de ferramentas manipuláveis. O problema central
166

é o excesso de carros, ponto!, sejam eles movidos a diesel ou eletricidade.


Toda a cidade de Oslo é projetada, e continuará assim sob a sustentabilidade,
para ferramentas de manipulação, que empurram as ferramentas conviviais
para fora do tráfego. Tornar carros ‘sujos’ subsidiários de carros ‘limpos’ é a
assinatura da sustentabilidade ou do desenvolvimento sustentável (o terceiro
limiar). Devemos limitar as ferramentas de manipulação (diesel e carros elé-
tricos) e torná-las subsidiárias das ferramentas conviviais (bicicletas, patins,
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scooters, sapatos adequados para caminhar ou descalços). Somente a convi-


vialidade pode enquadrar os limites das ferramentas de forma que possamos
realmente começar a reequilibrar décadas de degradação socioecológica.
A prefeita de Oslo, Marianne Borgen, quando questionada por Simon
Browning sobre as implementações ‘inovadoras’ em relação aos carros elé-
tricos, afirmou o seguinte: “é sobre o futuro dos nossos netos, é sobre a saúde
das pessoas na cidade, porque o planeta e as mudanças climáticas podem
ser bastante abstratas para muitas pessoas. Mas não é. É sobre o nosso dia a
dia. É sobre saúde. É sobre o futuro”. Como membro do partido da Esquerda
Socialista, achava que Borgen conhecia um velho ditado na América Latina,
o socialismo só chegará de bicicleta21.
As mudanças climática são, de fato, sobre nossa vida diária e hoje, mais
do que em qualquer outro dia, é sobre o futuro de nossos netos. Mas o futuro
que Marianne Borgen quer, para enfrentar a concretude das mudanças cli-
máticas, só chegará de bicicleta. Sustentabilidade é a abstração! Sugiro a
prefeita de Oslo que renuncie ao poder que a sustentabilidade lhe deu e, pelo
futuro de nossos netos, reformule os objetivos da cidade e comece a limitar
todo tipo de ferramentas manipuladoras. Deixe as faixas de ônibus livres de
carros e limite a velocidade das outras faixas a 25 km/h, para que bicicletas
e outros tipos de ferramentas conviviais possam transitar entre ferramentas
manipuláveis. Mencionou-se saúde, bem, não há nada mais saudável do que
se movimentar pela própria energia metabólica (a bicicleta, por exemplo,
transforma essa energia em um movimento de velocidade além do alcance
de nossas pernas sozinhas).
Se uma pessoa em Oslo estiver tendo um ataque cardíaco e precisar de
transporte de emergência para o hospital mais próximo, chama-se uma ambu-
lância, não uma bicicleta. Mas não devemos precisar ser carregados todos
os dias e para todas as ocasiões. Há tantas alternativas de trânsito convivial
fora do monopólio radical das ferramentas manipuladoras. O tráfego, que é
dividido por transporte (ferramentas manipuláveis) e trânsito (ferramentas
conviviais), poderia ser a ponta de lança do ecossocialismo na Noruega, onde

21 A famosa frase foi dita por José Antonio Viera-Gallo, secretário adjunto de Justiça no governo de Salvador
Allende, Chile (1973).
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 167

o transporte é subsidiário do trânsito, onde a convivialidade é ampliada por


meio dos limites às ferramentas manipuláveis.
Um dos desafios fundamentais da convivialidade é que, uma vez que o
sujeito é castrado simbolicamente pela contraprodutividade, a convivialidade
pode soar utópica, romântica ou hippie. É bem o contrário. A convivialidade
tem sido, ao lado dos comuns, os fatores-chave para (re)construir as formas-
-de-viver vernaculares e para [re]conquistar o senso de proporcionalidade.
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Para combater as mudanças climáticas e diminuir a degradação socioeco-


lógica, gerada por décadas de escassez, devemos limitar as ferramentas de
alto consumo energético e devemos limitar o regime de propriedade, pública
ou privada.

Comuns: limite ao regime de propriedade

Illich usou o termo escassez em um sentido muito preciso ao tratar do


regime de propriedade, que também tem sido o uso predominante entre os
economistas desde Walras: é o campo em que as leis da economia relacionam
sujeitos, instituições e mercadorias “dentro de um ambiente em que os comuns
foram transformados em recursos, privados ou públicos” (ILLICH, 1982).
Hoje, devemos reformular a pergunta uma vez colocada pela Academia de
Dijon em 1753 – “Qual é a origem da desigualdade entre os homens e esta
é autorizada pelo Direito Natural?” Proponho a seguinte pergunta: qual é a
origem das mudanças climáticas e esta está entrelaçada com a desigualdade
social? A clausura dos comuns na forma de regime de propriedade ilimi-
tada, privada ou pública, é o fundamento da desigualdade social e a origem
das mudanças climáticas. Todos os atores-chave da causa ambiental devem
enfrentar as mudanças climáticas do ponto de vista de, pelo menos, um terreno
comum: desmantelar o regime de propriedade ilimitada. Sem esse terreno
comum fundamental, o ambientalismo é um discurso vazio.
Defendo esse argumento tomando o exemplo do consumo de carne.
Luiz Marques mostrou que: (1) carne = mudanças climáticas, (2) carne =
desmatamento, mudança no uso da terra e degradação do solo e (3) carne =
esgotamento da água. Em primeiro lugar, Robert Goodland e Jeff Anhang, do
Worldwatch Institute, consideram conservadores os resultados apresentados
nos dois relatórios (2006 e 2013) da Organização das Nações Unidas para a
Alimentação e a Agricultura (FAO) sobre a estimativa de emissões de CO2e
[CO2 equivalente] do agronegócio; 15% a 18% do total de emissões antró-
picas por ano (MARQUES, 2020). Para eles, “o gado e seus subprodutos na
verdade respondem por pelo menos 32.564 milhões de toneladas de CO2e por
ano, ou 51% das emissões anuais de GEE em todo o mundo” (GOODLAND;
ANHANG, 2009). Os resultados conservadores da FAO são suficientes para
168

expor que “a produção pecuária gera mais GEE, medido em CO2e, do que o
setor de transportes” (MARQUES, 2020).
Em segundo lugar, o mesmo relatório da FAO, de 2006, mostrava que
“as pastagens ocupavam 34 milhões de km2, ou 26% de terra seca. Isso é
mais do que a área total da África, 30,2 milhões de km2”. O que é ainda mais
alarmante é que “uma média de 27.600 km2 de florestas são substituídas por
pastagens a cada ano” (MARQUES, 2020). As grandes plantações de soja
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também são responsáveis ​​pelo desmatamento de 6.000 km2 por ano, sendo
que o principal destino de seu cultivo é a alimentação do gado. Assim, a
destruição da floresta amazônica está estritamente relacionada ao consumo
de carne, uma vez que o desmatamento é primeiramente para pastagens e em
segundo lugar para agricultura extensiva de culturas (MEIRELLES, 2005;
2014). De acordo com Jonathan Foley, cerca de 36% das calorias das colheitas
do mundo são fornecidas ao gado (FOLEY, 2014).
Em terceiro lugar, Luiz Marques calculou, com base no conceito de
‘pegada hídrica’ e com base nos dados fornecidos pela Agência Nacional
de Águas (ANA), que “a produção de 1 kg de carne requer o uso de 20.000
litros de água” (MARQUES, 2020). Esse número é bem maior no cálculo
de David Pimentel, no qual ele considera que a agricultura nos Estados Uni-
dos responde por 87% de toda água doce consumida por ano (PIMENTEL,
1997). Se incluirmos a “água usada para forragem e grãos, a quantidade de
água usada aumenta drasticamente, [...] cada quilo de carne bovina consome
100.000 litros de água” (MARQUES, 2020).
A análise minuciosa de Luiz Marques desdobra o que ele chama de
“carnívoro extremo”, a relação indissociável entre mudanças climáticas e uso
da terra (estritamente ligadas ao esgotamento da água). Extensas pastagens
tipificam a travessia do segundo limiar sociaecológico de Illich, que não pode
deixar de levar à degradação ambiental, ou seja, resultado de uma degradação
social de ferramentas e propriedades ilimitadas. É sabido que o agronegócio
é certamente a principal causa do colapso da biodiversidade (GIBBONS;
MORRISSEY; MINEAU, 2014; HALLMANN et al., 2014, 2017). O que
todos não devemos esquecer é que a produção de carne também é inseparável
do regime de propriedade, sobretudo em países devastados pelo colonialismo.
No Brasil, segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
(Embrapa), 95% da carne bovina vem de pastagens, o que equivale a 1.670.000
km2 de solo concentrado nas mãos de menos de 1% da população brasileira –
cerca de 210 milhões de habitantes. Para nos dar uma perspectiva, 1.670.000
km2 de propriedade privada usada exclusivamente para pecuária (que todos
concordamos ser uma das principais causas das mudanças climáticas), equivale
a 32 Costa Ricas, ou 18 Portugais, ou 10 Uruguais, ou 6 Novas Zelândias, ou
4 Alemanhas e meia, ou aproximadamente 3 Estados do Texas. De acordo
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 169

com o último relatório do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos


(USDA), até o final do ano de 2021 o Brasil será responsável por aproxi-
madamente 20% da produção mundial de carne bovina e, juntamente com a
Argentina, são responsáveis por 50% da importação chinesa.
Além disso, um estudo do Instituto Escolhas – intitulado Do Pasto ao
Prato: subsídios e pegada ambiental da carne bovina – mostrou que, entre
2008 e 2017, os subsídios, incentivos, créditos rurais, renúncias fiscais, impos-
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tos, anistias e desonerações aplicadas ao agronegócio da cadeia da carne


bovina custaram R$ 123 bilhões aos cofres públicos. Independentemente
dos últimos anos trágicos do governo Bolsonaro, o sistema fiscal brasileiro
financiou estruturalmente o desmatamento, a degradação social e ecológica
e, no limite, as mudanças climáticas.
A floresta amazônica é conhecida por seu importante papel no clima do
planeta, sua biodiversidade e sua condição biogeoquímica única. Se abordar-
mos a proteção da floresta amazônica ou a relação entrelaçada das mudanças
climáticas com as emissões de CO2e sem centrar nossos argumentos nos
limites ao regime de propriedade, nos encontraremos em uma aporia. Deve-
mos nomear o que significa o agronegócio no Brasil: significa pastagens
extensas e latifúndios gigantescos (plantações nas mãos de poucos); significa
que aproximadamente 62% das emissões de CO2e do Brasil pertencem a
pastagens para pecuária (1/4 do total de emissões); e significa mudança de
uso da terra. Doravante, não há solução para as mudanças climáticas fora
da reforma agrária. Devemos parar de estabelecer nossas metas ambientais
com base, por exemplo, em quanto pum de gado o planeta pode sustentar e
reformulá-las em termos de tetos sociais e unir forças com aqueles que lutam
por estabelecer limites à propriedade, privada ou pública.
A atual Constituição brasileira de 1988, nos termos do artigo 186, exige
que a propriedade cumpra sua função social, caso contrário deve passar pelo
processo de reforma agrária. Um, dentre os cinco requisitos que respondem
pela função social é o uso adequado dos recursos naturais disponíveis e a
preservação do meio ambiente. De acordo com a atual Constituição brasileira,
o Supremo Tribunal Federal deve decidir de acordo com a constituição e
remover a propriedade de cerca de 1/5 do território brasileiro (1.670.000 km2),
devido à sua ameaça direta ao meio ambiente (carne = mudanças climáticas) e
distribuir as terras para a reforma agrária. O que é ainda mais fascinante sobre
o processo legal da reforma agrária no Brasil é que, uma vez que a lei é apli-
cada, a terra é dada não como propriedade, mas como direito de uso do solo,
que pode ser herdado pelas famílias se continuarem vivendo na terra. Todas
as pessoas, coletivos, instituições, partidos políticos, movimentos sociais
que se dedicam à causa ambiental no Brasil devem ter um terreno comum de
ação: o limite à propriedade.
170

Todo regime de propriedade, pública ou privada, tem seu próprio processo


histórico e principalmente, se não sempre, está relacionado a características
territoriais. No caso do Brasil, trata-se de um território, desde 1500, ocupado
por invasores portugueses que primeiro escravizaram povos originários para
trabalhar à força no território de seus ancestrais e posteriormente aderiram
ao tráfico de escravos de povos originários na África. É a história de um solo
explorado para fins de mercantilismo, colonialismo e acumulação primitiva
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para alimentar os mercados europeus. Assim, todo conjunto de regras que


determinam os limites à propriedade deve ser fundamentado nas condições
históricas e geográficas de cada território. Limitar a propriedade não pode
vir como uma solução de engenharia nem como uma regra padrão. Os tetos
que se adequam ao litoral nordestino podem não se adequar às características
do interior goiano. Os limites de propriedade no sul da Noruega podem ser
enquadrados por medidas diferentes quando comparados aos limites reconhe-
cidos no centro do Vietnã.
Tomemos o exemplo do Movimento Sem Terra (MST) no Brasil. Ele dá
corpo a uma luta política que engenhosamente criou um regime de comunali-
dade condizente com as condições histórico-geográficas do país. As Comunas
da Terra são baseadas no uso comum dos territórios sujeitos à reforma agrária
(GOLFDARB, 2006, 2007; RAGGI, 2014). O terreno é dividido em forma
de roda de bicicleta. As porções de cada área entre ‘raios’ são destinadas ao
cultivo comum e ao trabalho. Sua produção é agroecológica e suas ferramen-
tas raramente cruzam os limites naturais, pois são conviviais – limitadas pela
regula vernaculum. Não apenas a produção para o sustento das pessoas é de
uso comum, mas as Comunas da Terra também são desenhadas por áreas
comuns de reprodução das pessoas, como espaços e locais de lazer, adminis-
tração, hospitalidade e socialização. Mais importante, elas não significam que
as pessoas não possam ter um espaço ou lugar, mesmo que muito menor do
que as áreas comuns, para o usufruto exclusivo de cada família – onde possam
respeitar sua privacidade. Acho vago, impreciso e, no mínimo, insultuoso
enquadrar esse arranjo socioecológico sob as rubricas de sustentabilidade
ou desenvolvimento sustentável. O direito de uso comum abre espaço para a
convivialidade e as pessoas [re]conquistam uma forma-de-viver vernacular
quando sua existência e condição humana é produzida e reproduzida princi-
palmente fora do reino da escassez.
As pessoas só podem ter uma parte de suas vidas fora da economia
(escassez) quando têm o solo para cultivar seus próprios alimentos, o lago para
pescar e limpar suas redes, o ar para respirar uma brisa suave e o clima para
proteger as colheitas e as estações. Em muitos lugares, essas ideias só podem
ser traduzidas materialmente por meio da reforma agrária, do tipo que reduz
a necessidade de terra privada à extensão da moradia das pessoas e amplia o
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 171

uso comum da terra agrícola fora do domínio da propriedade – como muitos,


se não a maioria das Comunas da Terra do movimento MST no Brasil. Em
muitos lugares, a reforma agrária deve ser a ponta de lança do ambientalismo,
em todos os lugares o limite ao regime de propriedade.

Fronteiras Planetárias versus Terceiro limiar socioecológico


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Rockström et al., propuseram uma estrutura baseada em fronteiras pla-


netárias. Eles identificaram fronteiras do sistema terrestre que não podem ser
cruzadas para manter um espaço operacional seguro para a humanidade. Estas
são as dez fronteiras: mudança climática, taxa de perda de biodiversidade,
ciclo do nitrogênio e ciclo do fósforo, destruição do ozônio estratosférico, aci-
dificação dos oceanos, uso global de água doce, mudança no uso da terra, carga
de aerossóis atmosféricos e poluição química. Segundo eles, as três primeiras
fronteiras já foram ultrapassadas e outras três estão à beira de serem cruzadas.
O que Rockström e seus colegas ignoraram completamente é o fato de
que limiares sociais foram cruzadas muito antes das fronteiras planetárias
serem ultrapassadas, e a travessia de tais limiares é precisamente a razão
pela qual a humanidade está ameaçada. Entendo a pedagogia de mostrar
fronteiras planetárias que foram cruzadas, mas tomar essas fronteiras como
as linhas que definem nosso teto comum é deixar de fora a degradação social
que resultou desses desequilíbrios ecológicos em primeiro lugar. Devemos
estabelecer limites para a forma como vivemos juntos, o que é sempre uma
tarefa política, se quisermos evitar catástrofes planetárias. Abordar um espaço
operacional seguro para a humanidade, medindo o quanto o sistema Terra
pode suportar, em vez de estabelecer limites para como vivemos juntos, isto
é, limites ao regime de propriedade, às ferramentas e ao valor de troca, é
uma proposição que exemplifica o que chamo de travessia de um terceiro
limiar socioecológico.
Quando Ivan Illich reconheceu a existência de dois divisores de águas que
toda ferramenta/tecnologia atravessa dentro de uma sociedade, ele almejava
o florescimento das Sociedades Conviviais (ILLICH, 1973). Consciente de
que as fronteiras ecológicas geralmente são ultrapassados após a extrapolação
dos limites sociais, ele identificou dois limiares sociais.
O primeiro divisor de águas é atravessado quando novas ferramentas
ampliam o bem-estar das pessoas de forma eficaz. A penicilina é um exemplo
na medicina moderna, o carro no tráfego e a imprensa no aprendizado. No
entanto, quando essas novas ferramentas crescem em escala além dos limites
sociais, elas passam a agir contra os próprios propósitos que deveriam alcan-
çar e, assim, atravessam o segundo divisor de águas, quando as ferramentas
172

tornam-se danosas tanto para a sociedade quanto para o meio ambiente. O


número de carros torna-se um impedimento à locomoção enquanto os sis-
temas de saúde geram iatrogenias. Para Illich, no entanto, essa degradação
social específica, devido à travessia do segundo limiar (escala de produção
de ferramentas), acontece mais rapidamente do que a degradação ecológica.
A degradação ecológica é muitas vezes o resultado da degradação social.
Illich se referiu ao duplo fenômeno da degradação socioambiental pela
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contraprodutividade. A contraprodutividade tem três dimensões: a técnica,


a estrutural e a simbólica. A dimensão técnica significa que os carros não
quebram mais o tempo e o espaço mais rapidamente devido ao congestio-
namento. A dimensão estrutural significa que os caminhos, os arredores, os
espaços e os lugares são todos moldados de acordo com as demandas dos
veículos de alta velocidade, de tal forma que andar de bicicleta ou andar a pé
se torna impossível ou muito perigoso. A dimensão simbólica significa que
as pessoas perderam a capacidade de pensar em alternativas fora da mania
de crescimento. Assim, a dimensão simbólica gera bloqueios mentais, que se
tornam, eles próprios, fonte de ilusões.
Illich se referiu ao duplo fenômeno da degradação socioecológica como
contraprodutividade. A contraprodutividade tem três dimensões: a técnica, a
estrutural e a simbólica. A dimensão técnica significa que os carros deixam
de romper o tempo e o espaço rapidamente devido ao congestionamento. A
dimensão estrutural significa que os caminhos, os arredores, os espaços e
os lugares são todos moldados de acordo com as demandas dos veículos de
alta velocidade, de tal forma que andar de bicicleta ou andar a pé se torna
impossível ou demasiadamente perigoso. A dimensão simbólica significa que
as pessoas perderam a capacidade de pensar em alternativas fora da mania
do crescimento e da dependência de ferramentas consumidoras de alta quan-
tidade de energia. Assim, a dimensão simbólica gera bloqueios mentais, que
se tornam, eles próprios, fonte de ilusões.
O que afirmo ser a travessia de um terceiro limiar socioecológico é o
resultado de décadas vivendo sob os efeitos das três dimensões da contrapro-
dutividade. Após a travessia deste terceiro divisor de águas, uma ferramenta
que ultrapassou demais os limites sociais e os limites naturais, portanto dentro
do segundo divisor, torna-se amplamente objeto de veneração por sua condi-
ção supostamente reequipada. Em outras palavras, quando o remédio que se
tornou a doença vem agora com um sabor agradável. Nesse terceiro divisor
de águas, a sociedade acredita que carros elétricos, ônibus ou qualquer outro
meio de transporte de massa, seguindo nosso exemplo dentro das ferramentas
de locomoção, poderiam recuperar o equilíbrio perdido ou recriar uma socie-
dade convivial devido à sua estrutura “limpa” ou “renovável”.
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 173

A dimensão simbólica da contraprodutividade, a perda do espaço imagi-


nário capaz de vislumbrar alternativas reais aos desequilíbrios socioecológicos,
é fruto do segundo divisor de águas e catapulta a sociedade para este terceiro
divisor de águas. Somente depois de décadas vivendo sob a contraproduti-
vidade e suportando um profundo sentimento de frustração é que o terceiro
limiar se torna o “novo normal”. Só posso esperar que a solução para as
mudanças climáticas seja a mudança para carros elétricos quando caminhar
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é considerado um meio de transporte.


Décadas vivendo sob a contraprodutividade simbólica geram propostas
como a mudança da dependência energética dos combustíveis fósseis para a
energia solar. Em vez de abordar politicamente a questão da energia em termos
de excesso de energia, a solução do desenvolvimento sustentável é continuar
vivendo sob a mesma dependência de energia (sem limites de energia ou ferra-
mentas) e esperar que a energia solar, por exemplo, nos permita evitar os limites e
nos salve da devastação ecológica. Ozzie Zehner, mostrou, há quase uma década
em seu livro Green Illusions: The Dirty Secrets of Clean Energy and the Future
of Environmentalism (2012), que a mudança dos combustíveis fósseis para a
quimera da energia limpa é claramente resultado do que chamo de a travessia
do terceiro limiar sociecológico, quando a ferramenta se torna um sistema.
Suponhamos que todos os países, sobretudo os que mais poluem, concor-
dem em mudar para energia limpa a partir de hoje, sem nenhum compromisso
em estabelecer limites para o consumo de energia: “um programa solar global
custaria cerca de US$ 1,4 quatrilhões, cerca de cem vezes o PIB dos Estados
Unidos. Mineração, fundição, processamento, transporte e fabricação dos
painéis e seu hardware associado renderia cerca de 149.100 megatons de
CO2” (ZEHNER, 2012, p. 9, tradução nossa).
A energia solar só pode se tornar uma alternativa quando formulada
pela convivialidade. Promover uma mudança planetária para painéis solares
sob a rubrica de sustentabilidade ou desenvolvimento sustentável é insistir
no crescimento ilimitado. A sustentabilidade é o motor que impulsiona as
sociedades para a travessia do terceiro limiar socioecológico. Neste terceiro
divisor de águas, as ferramentas tornam-se sistemas, aquilo que não pode ser
desligado. Nas palavras de Illich, sistema é “um arranjo complexo extraordi-
nário de ciclos de feedback.
A característica fundamental do sistema é buscar sua própria sobrevivên-
cia mantendo um equilíbrio informacional que o mantenha viável” (CAYLEY,
2005, tradução nossa). O próprio fato de não podermos imaginar uma socie-
dade dentro de limites definidos e pré-estabelecidos quanto ao consumo de
energia e, em vez disso, estarmos comprometidos, nos últimos trinta anos, com
o desenvolvimento sustentável, ou seja, depender de energia ilimitada, apenas
174

“mais limpa”, exemplifica a incapacidade de renunciar nossas ferramentas.


Não podemos sequer nos conceber como sociedades modernas porém dentro
de limites à dependência em alta quantidade de corrente elétrica.
Na década de 1980, Illich já havia presenciado a mudança da Era das
Ferramentas para a Era dos Sistemas. Ele identificou a Era das Ferramentas
como aquela da causa instrumentalis – uma causa não intencional – que é uma
subcategoria da noção aristotélica de causa efficiens. Tais noções compõem
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a clara separação entre o usuário e sua ferramenta (uma forma de expressar


intenções), na medida em que essa relação também é separada de seu meio.
A essa separação clara Illich deu o nome de distalidade. Em outras palavras,
uma ferramenta é algo que só se pode conceber como separado de si mesmo,
algo que então se pode usar ou não (CAYLEY, 2005, p. 158). Quando me
vejo precisando ajudar meu descanso tomando melatonina, devido às horas de
escrita em frente ao computador (que é um sistema por excelência do qual não
posso me desvincular), espero que ainda esteja habitando meu corpo encar-
nado. Mas quando o mundo começa a ser concebido como um ecossistema
e os corpos das pessoas como sistemas imunológicos, não se pensa mais em
termos de causalidade, mas em termos de análise de sistemas. Se eu estivesse
habitando um sistema imunológico, preferiria tomar um Prozac para desligar
o sistema, cuja distalidade está completamente dissolvida.
A travessia daquilo que defini como o terceiro divisor de águas culmina
na era dos sistemas, quando nosso espaço imaginário foi moldado pela contra-
produtividade a tal ponto que não podemos ver alternativas à degradação social
e ecológica fora de ferramentas ilimitadas, escassez ilimitada e propriedade
ilimitada porque fomos incorporados aos sistemas. Deixar de lado nossas fer-
ramentas e recuperar a convivialidade é uma tarefa política muito mais radical
do que qualquer proposta política acordada pelas nações nos últimos trinta
anos de cúpulas ambientais. A história do desenvolvimento (e, mais recente-
mente, da sustentabilidade) pode ser entendida como a travessia de limiares
socioecológicos que tem fabricado o rompimento das fronteiras planetárias.
Inspirado pelo sopro de Ivan Illich, espero que a celebração de tal cons-
ciência possa reanimar nossas mentes e reabrir um espaço imaginário para
cultivar formas-de-viver dentro de limites. Estou convencido de que as for-
mas-de-viver vernaculares podem ser uma experiência contagiante para recu-
perar a confiança em nossa capacidade de (re)construir ambiente e sociedade
dentro dos limites da proporcionalidade. Não há liberdade sem limites, não
há abundância sem limites.
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 175

REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Altíssima Pobreza: Regras Monásticas e Forma de
Vida. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.

AGAMBEN, Giorgio. O Mistério do Mal: Bento XVI e o Fim dos Tempos.


São Paulo, Florianópolis: Boitempo Editorial e Editora da UFSC, 2014.
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AGAMBEN, Giorgio. O Reino e a Glória: uma Genealogia Teológica da


Economia e do Governo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.

AGAMBEN, Giorgio. The Omnibus Homo Sacer. California: Stanford Uni-


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CAPÍTULO 9
A METAMORFOSE DOS RISCOS
CLIMÁTICOS GLOBAIS NO
CONTEXTO BRASILEIRO: entre uma
agenda de “Cidades Unidas” Cosmopolitas
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e um Estado-Nação Negacionista
Niklas Werner Weins

Introdução: da cidade do risco à metamorfose urbana

Mudança climática não é mudança climática;


é ao mesmo tempo muito mais e algo muito diferente
(BECK, 2016, p. 79)

A emergência climática e as mudanças drásticas com ela associadas


apresentam uma multidão de questões e possíveis soluções aos tomadores
de decisão. No entanto, entendendo a mudança climática a partir de uma
perspectiva sociológica da teoria do risco, ela pode ser vista também como
uma mudança histórica (até civilizacional) nas relações humanas e nas nossas
conceitualizações sobre ela. Aprofundamos aqui algumas reflexões apresenta-
das no início deste livro sobre os riscos das mudanças climáticas e as possibi-
lidades de entendê-las como uma metamorfose do mundo induzida por eles.
A teoria da Sociedade do Risco de Ulrich Beck, publicada pela primeira
vez em 1986, meses após o desastre de Chernobyl na União Soviética, afirma
que os riscos que estamos enfrentando na modernidade foram silenciosamente
gerados como subprodutos das instituições econômicas, sociais e políticas
da sociedade contemporânea. Ao contrário dos perigos ou desastres naturais,
os riscos são considerados antropogênicos e assim evitáveis (BARBI; FER-
REIRA; GUO, 2016; FAN, 2018; BAXTER, 2020). Tomando os riscos de
geração de energia atômica como ponto de partida para entender as consequên-
cias muito além do Estado-nação, Beck enfatiza que a globalização “cosmopo-
litizou” a maioria dos aspectos de nossas vidas sociais. Desde a dependência
de trabalhadores migrantes (internos e internacionais) até o surgimento de
180

pandemias, os atuais problemas causados por seres humanos implicam todas


e todos na Terra em uma “Sociedade Mundial de Risco” (BECK, 1999).
Desde que foi concebida dentro do contexto europeu e do Norte Global
industrializado, a teoria da primeira e segunda modernização paulatinamente
começou a ganhar interesse fora da Europa como na Coreia do Sul, na China
e no Brasil. Em uma visita a Seoul em 2014, Beck introduziu a metamorfose
do mundo como novo conceito no qual ele estava trabalhando. De acordo com
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Han (2016), este se tornaria uma chave para melhor explicar seu conceito de
catastrofismo emancipatório (BECK, 2015) e a resposta pública e acadêmica
foi considerável, no entanto (ainda) não teve tanto destaque quanto sua teoria
base da sociedade do risco. Com base nesta experiência, vários artigos de
diálogo foram publicados na revista Current Sociology em 2015 (veja por
exemplo VARA, 2015; HAN, 2015). Na sua palestra pública na prefeitura
de Seoul, Beck mencionou a ideia de “Cidades Unidas da Ásia”, com um
apelo enfático à cidade de Seoul para se tornar pioneira na direção de uma
governança cosmopolita do risco (HAN, 2016).
Além do contexto europeu, Ianni (2012, p. 364) afirma que é a partir da
ideia do choque antropológico que a obra de Beck também “alcança a esfera
política” e se mostra relevante a um público leitor além da academia. Com a
descrição do risco generalizado, juntamente com a ausência de garantias de
proteção contra eles, Beck descreve como essas sensações gerais resultam em
uma “perda de fé em especialistas e na ciência” (BAXTER, 2020, p. 305).
Suas contextualizações em volta do elemento estruturante do risco, sobre a
erosão da confiança em instituições e sistemas de experts também nos ajudam
a entender a busca de uma segurança perdida dos tempos de antes e a (impos-
sível) proteção contra os riscos da globalização. Políticos conservadores e da
extrema direita no mundo todo – como Trump, Orban, Duterte e Bolsonaro –
têm respondido a esse sentimento na população com campanhas que prometem
tal segurança por meio do isolamento – na contramão do cosmopolitismo e
uma visão de mundo completamente globalizada pela qual Beck argumentava.
Beck enquadrou, de forma mais esperançosa como “metamorfose”, ou
seja, uma (possibilidade de) transformação positiva (ou pelo menos não nega-
tiva) da forma como nos organizamos globalmente face à emergência climá-
tica. De acordo com os últimos trabalhos do autor, algo muito menos distópico
poderia estar emergindo sem ação política coordenada pelos estados ou por
poderosos grupos de interesse capitalistas. Na última obra antes da sua morte,
A Metamorfose do Mundo: Como a Mudança Climática Está Transformando
Nosso Conceito de Mundo, Beck (2016) revisita suas concepções anteriores
da sociedade de risco e as redimensiona no conceito de metamorfose como
uma oportunidade para a sociedade global. Mais especificamente, graças ao
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 181

choque antropológico causado pelos riscos da mudança climática, a metamor-


fose (Verwandlung no original em alemão) representa “uma nova forma de
gerar normas críticas na era dos riscos globais” (2016, p. 39), encadeando-se
à sua concepção anterior do “catastrofismo emancipatório” (BECK, 2015).
Salienta que “o risco global não é uma catástrofe global” (BECK, 2016,
p. 43), mas que é um evento que “abre nossos olhos e aumenta nossas espe-
ranças” (p. 166) por meio da transformação da nossa forma de ver o mundo
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e nosso impacto dentro dela. De acordo com Beck, “metamorfose significa


que a mudança climática tem a ver com o homem moldando a direção da
evolução planetária e social – não por intenção, mas pela política de efeitos
colaterais ou pela política de danos normalizados” (p. 42). Assim, nos últimos
anos de sua vida, Beck apresenta uma visão de como a sociedade avançará em
meio a uma modernidade tardia, repleta de riscos. Neste capítulo seguimos
essas pistas esperançosas que Beck nos deixou como marco teórico inacabado
apresentando uma breve investigação sobre a tensão entre as possibilidades
de uma resposta cosmopolita à Emergência Climática pelas cidades no Brasil
e o governo nacional negacionista.
Neste capítulo apresentamos alguns exemplos dos processos de transfor-
mação das formas de se fazer política sobre mudanças climáticas em diferentes
niveis. Para tanto, apresentamos na próxima seção o enquadramento teórico
e metodológico da governança multinível aplicado às cidades como atores
políticos na agenda climática. Em seguida, na seção 3, apresentar-se-ão pers-
pectivas para as cidades brasileiras no cenário atual e como os marcos teóricos
da governança multinivel são indicativos da metamorfose do mundo e o que
isto pode significar para futuras práticas da política climática no Brasil. O
capítulo fecha encorajando as leitoras e os leitores a enxergarem essas “pre-
liminaridades” de forma esperançosa após anos de governança negacionista
na qual as mudanças climáticas foram todo o contrário de um assunto central
da agenda política.

Governança Multinível: Cidades como atores em prol do


ambiente em escala global

Baseado nas reflexões sobre a evolução do potencial transformador do


caráter onipresente dos riscos na segunda modernidade, o último capítulo
da sua última obra reapresenta a ideia das Comunidades Cosmopolitas de
Risco a partir do qual Beck argumenta que o caráter transnacional dos riscos
contribui para uma estrutura de governança global cada vez mais complexa.
Um dos exemplos emblemáticos a destacar aqui é o desenvolvimento “das
Nações Unidas para as Cidades Unidas” (2016, p. 178). De acordo com o
182

cosmopolitismo metodológico que o sociólogo defende ao longo da sua obra,


os governos nacionais são complementados como os únicos atores legítimos
na arena global. As cidades, como principais afetados, mas também como
principais responsáveis pela implementação das mudanças para a maioria
da população mundial nesse cenário seriam atores cada vez mais relevantes.
Assim, não são cidades individuais que se engajam na política mundial, mas é
a multidão de redes de cooperação entre vários delas que se forma diante dos
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riscos globais que desempenham um papel ativo nos espaços cosmopolitizados


da ação climática. Nesse sentido, as cidades seriam atores muito específicos
que se diferenciam de outros atores (sub)políticos por exemplo da sociedade
civil, do mercado e movimentos e organizações religiosas (BECK, 2016).
Adotamos como marco teórico-metodológico a governança multinivel
das mudanças climáticas. Além do papel de empresas, organizações não-
-governamentais (HALE et al., 2018), seguindo as revindicações de Beck,
focamos aqui nos níveis de governo que não o nível nacional para explorar
quais campos de ação estão se abrindo na governança climática. Em nível
subnacional, os governos locais têm criado e desenvolvido suas próprias ins-
tituições, cúpulas e redes internacionais para defender seus interesses em
uma escala global (KESKITALO et al., 2016). Reuniões regulares como a
Assembléia Mundial de Prefeitos, assim como estruturas como a United Cities
and Local Governments (UCLG) e a Global Task Force of Local and Regio-
nal Governments são espaços onde os atores locais, ora em cooperação, ora
em resistência frente aos governos nacionais ou organizações internacionais
tradicionais participam em discussões sobre questões globais focadas em
cidades como atores principais. Estas arenas e organizações são plataformas
importantes para a adoção de políticas em níveis subnacionais que imple-
mentam decisões formuladas a nível supranacional, cada vez mais pulando
a camada nacional. Essas práticas de negociação, as trocas de conhecimento
e finalmente a implementação de políticas concretas em cidades ao redor
do mundo, efetivam uma governança multinível idealizada a nível teórico
há décadas. Devido à forte capilaridade que essas redes têm nos diferentes
níveis organizacionais, as cidades do mundo todo são constituintes do sistema
de governança global como agentes políticos de nível mais local no mundo
globalizado (STONE et al., 2020).
Durante a pandemia da Covid-19, as cidades têm se mostrado como
agentes políticos poderosos da governança multinível no mundo todo – res-
pondendo muitas vezes pela primeira vez de forma visível – como entidades
políticas pioneiras. Face às demandas urgentes à governança urbana, as inter-
conexões cada vez mais complexas de um lado mostraram a importância de
modelos mais completos para responder a crises, e de outro lado têm apontado
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 183

de forma clara para a centralidade da consideração de variáveis socioambien-


tais na sua resposta (SCHMIDT et al., 2021).
Uma das maiores redes de cidades e governos locais hoje é o ICLEI –
Governos locais pela Sustentabilidade. Desde a Agenda 21 Local em 1992
um grande número de acordos e iniciativas da ONU relacionados à sustenta-
bilidade, medidas climáticas, biodiversidade, desastres, planejamento urbano,
migração, metas de desenvolvimento sustentável, governança ambiental, ali-
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mentação e saúde, têm reconhecido cada vez mais o conceito de ação coo-
perativa e multinível. Depois da Rio+20 em 2012, a Força Tarefa Global de
Governos Locais e Regionais, o ICLEI foi uma das principais lideranças e
tem facilitado esforços em reunir redes internacionais de governos locais para
cooperar nos processos políticos globais a partir das cidades (ARIKAN, 2022).
A integração de assuntos ambientais, mesmo tendo reconhecimento for-
mal pelos estados nação representados na ONU pelo menos desde os anos
1990, fica atrasada. Em termos de políticas climáticas, mais e mais esforços
estão sendo realizados. No entanto, temas em volta da biodiversidade muitas
vezes ficam em segundo plano (PUPPIM DE OLIVEIRA, 2014). Enquanto
o Acordo de Paris tem recebido cada vez mais atenção, as discussões sobre
uma Estrutura Global de Biodiversidade pós-2020 têm sido menos consi-
deradas publicamente. As negociações sobre ela começaram no “super ano
para o ambiente” em 2020 e se estendem até a segunda rodada da COP15
da Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica (CDB) em
Kunming, China em 2022.
No entanto, para que o Acordo de Paris e a CDB possam ser alcançadas,
são necessárias ações conjuntas que considerem ambas as metas. Conforme
o relatório conjunto entre o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Cli-
máticas (IPCC) e a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e
Serviços Ecossistêmicos (IPBES) em 2021 “limitar o aquecimento global
para garantir um clima habitável e proteger a biodiversidade são objetivos
que se apoiam mutuamente, e sua realização é essencial para proporcionar
benefícios às pessoas de forma sustentável e equitativa” (PÖRTNER et al.,
2021, p. 14). Já há exemplos abundantes sobre “a criação de infraestrutura
verde em cidades que é cada vez mais utilizada para a adaptação às mudanças
climáticas e a restauração da biodiversidade com co-benefícios de mitigação
climática” (ibid. p. 17).
Com isso, uma multidão de iniciativas que respondem a interesses e
objetivos locais contribuem para as metas globais – que em torno precisam
ser coordenadas ambos local e globalmente entre as cidades. As evidências
empíricas sobre tais iniciativas globais estão organizadas, por exemplo nas
redes “CitiesWithNature” e INTERACT-Bio do ICLEI que contribuem para a
184

formação de uma agenda global de adaptação que tenta harmonizar os esforços


de combate à perda de biodiversidade com assuntos climáticos (VELLOZO
et al., no prelo; veja capítulo 2).
Com 216 cidades de 61 países (desde Áustria até Zâmbia) que já parti-
cipam (CITIESWITHNATURE, 2022), a rede já configura uma versão das
“Cidades Unidas” com um número maior de cidades do que de países que
se organizam em volta dos riscos globais. Beck reivindica que “alianças de
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cidades mundiais estão adquirindo uma nova soberania, poder e um papel


pioneiro na política mundial, que é confrontada, por um lado, com riscos
globais e, por outro, com o fato de que os Estados-nação estão praticamente
capitulando diante desses desafios” (BECK, 2016, p. 180). Isto é muito pare-
cido com os anos 1930 e 1940 quando a Liga de Nações se formava. Arikan
(2022) afirma a ideia de que o atual sistema multilateral global (em início de
2022) está lutando para evitar uma guerra global na Ucrânia e tentando apre-
sentar respostas adequadas a desafios globais como a pandemia, emergências
planetárias como as mudanças climáticas e a 5ª extinção em massa.
Arikan (2022) apela para nos esforçarmos, reunindo “toda habilidade,
oportunidades, sabedoria e esperança do Mundo Urbano” para que o sonho
de uma década de muitos prefeitos e líderes subnacionais de “ter um assento
na mesa” se tornar realidade por meio de uma nova Carta das Nações Unidas
que considere as cidades. Embora uma reformulação da ONU em direção
a mais voz para as prefeitas e os prefeitos possa levar algum tempo, já há
um grupo de trabalho especial sobre cidades intermediárias no G20 e há
referências sem precedentes a cidades e urbanização no G7 que podem ser
consideradas importantes contribuições para uma outra visão de cidades na
ONU (ARIKAN, 2022).
Com um certo otimismo e certa falta de olhar crítico para o capitalismo
e as diferenças de poder, Beck (2016, p. 181) afirma que “não há atores ou
detentores do cosmopolitismo”. Dentro da sua conceitualização, essa é a mani-
festação de uma lógica política diferente, mais cosmopolita (aqui no sentido
urbano da palavra) – uma metamorfose do mundo em volta dos riscos das
mudanças climáticas. No entanto, há de reconhecer que cidades como Teresina
e Goiânia entram na arena cosmopolita urbana de formas muito diferentes
do que São Paulo, Rio de Janeiro ou Brasília. Tendo populações muito mais
desiguais do que na Europa, as esperanças sobre a lógica cosmopolita também
tendem a depender das conexões de indivíduos das elites locais da periferia.
Dentro do sistema neoliberal uma cidade média do Norte Global pode ter um
acesso facilitado a recursos de cooperação que não podem estar à disposição
de uma megacidade no Sul Global (CAISON; VORMANN, 2014), fazendo
da globalização idealizada das cidades um jogo tão desigual quanto o sistema
de estados-nação.
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 185

Reconhecendo essas limitações teóricas, em luz do panorama atual de


esperança de um fim à pandemia e por mais vontade política de fazer mudan-
ças necessárias (parcialmente impulsionadas por disputas geopolíticas rela-
cionadas à Rússia e à China), queremos propor aqui um olhar positivo sobre
os potenciais de uma governança ambiental global mais inclusiva das cidades
no Brasil.

O caminho à frente para as cidades brasileiras


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O que então significam essas bonitas ideias teóricas para a realidade


atual e cruel do Brasil que há quatro anos se encontra sob um governo nega-
cionista? Quais respostas uma reflexão sobre a metamorfose pode fornecer
ao contexto brasileiro frente aos enormes desafios das mudanças climáticas
que precisam de respostas urgentes? Como as diferentes respostas políticas
(negacionistas) em nível nacional e subnacionais (em defesa de ações) têm
sido dificultadas ou têm realmente induzido um diálogo e cooperação mais
amplos entre setores e de uma gama mais ampla de partes interessadas, como
proposto pela teoria da sociedade de risco de Beck?
Uma chave pode ser encontrada na ciência, aqui especificamente sobre
os fenômenos climáticos e sua interface com a política, um assunto central
à obra de Beck. Enquanto as reivindicações de conhecimentos concorrentes
que o sociólogo descreve ao longo das suas obras aumentam, eles corroem
o consenso de especialistas em um ciclo vicioso que se desdobra na atual
sociedade da pós-Verdade. Mesmo tendo cada vez mais conhecimento sobre
o mundo e as mudanças que ocorrem nele, há uma sensação de impotência
de ação política. Latour (2018) chamou essa transformação de “mutação” e
salienta como a mudança climática transformou o “sonho da globalização em
um pesadelo para a maioria das pessoas”, enquanto os negacionistas “aban-
donam qualquer pretensão de compartilhar um futuro comum com o resto do
mundo”. No entanto, agora mais que nunca, é preciso uma cooperação mais
próxima entre as esferas política e científica a nivel global para coordenar as
respostas às mudanças climáticas no mundo todo. Enquanto há configurações
institucionais e desníveis de poder históricos que já dificultam a transferência
de conhecimentos nessa interface há décadas, as ações políticas, especialmente
dentro dos marcos nacionais, também fazem com que as próprias transfor-
mações necessárias de processos produtivos e decisórios em direção a um
mundo mais sustentável sejam mais lentas.
Como foi refletido em outros capítulos deste livro, em um primeiro
momento as políticas negacionistas a nível federal sem dúvida têm destruído
muitos dos avanços frágeis construídos ao longo de mais de três décadas
de democratização no Brasil continuando em altos e baixos na governança
186

ambiental brasileira (VIOLA; GONÇALVES, 2019; FERREIRA, cap. 1;


ESTEVO, 2022). As eleições de 2018 foram um choque para muitas e muitos
acadêmicos e começaram uma onda sem precedentes de violência e resistência
por parte de grupos de interesses poderosos no Brasil. No entanto, a inclusão
de movimentos sociais, atores econômicos (capítulo 6), perspectivas de gênero
(capítulo 3) e a representação midiática das mudanças climáticas (capítulo
4) também têm avançado de formas promissoras e que, apesar de estruturas
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a nível nacional inibindo seu acesso e sua inclusão política, os atores nos
níveis local, subnacional e internacional continuaram com seus trabalhos –
ainda quando muito mais dificultoso – e têm conseguido, a partir de redes
(principalmente as urbanas), se manter. Isto, graças às formas variadas de
organização que existem além do Estado-nação westfaliano que já não é (e
talvez nunca foi) a única forma de ação política (LING; PINHEIRO, 2014).
Dentro das estruturas de Estado-nação os atores subnacionais já têm
conquistado um papel jurídico extraordinário pela constituição democrática de
1988 (VISWANATHAN, 2014; MACEDO, 2019). A autonomia e igualdade
dos municípios no Brasil está fortemente inscrita na constituição, garantindo a
determinação e administração dos seus próprios interesses (PIZELLA, 2015).
Reforçando essa base, o Estatuto da Cidade em 2001 estabeleceu fundamenta-
ções jurídico-legais de garantia ao direito a cidades sustentáveis (Lei 10.257).
Não só as cidades como município sede, mas as regiões metropolitanas têm
começado a jogar um papel cada vez mais relevante nessas discussões e na
implementação conjunta de soluções (CASSILHA et al., 2020).
Além delas, muitas cidades brasileiras também têm participado do cres-
cente movimento internacional de respostas subnacionais às mudanças cli-
máticas (BULKELEY; NEWELL, 2010; BARBI; MACEDO, 2019). Isto
tem levado a um redimensionamento das políticas subnacionais que não se
orienta somente em uma estrutura vertical centrada no governo federal, mas
que também se coordena horizontalmente com outras cidades e a nível inter-
nacional. Setzer (2014) afirma que do Estado de São Paulo, funcionários
estaduais têm participado regularmente da delegação brasileira às COPs de
clima e biodiversidade e da UNFCCC (desde 1997) e da CBD (desde 2006)
(SETZER, 2014). Como membro do ICLEI e da Rede de Governos Regionais
para o Desenvolvimento Sustentável (NRG4SD), o Estado também participa
anualmente do Congresso Mundial do ICLEI e das reuniões dos grupos de
trabalho do NRG4SD. Representantes do Estado de São Paulo participam
dessas reuniões como membros da delegação nacional brasileira. No mesmo
local onde os líderes nacionais estão negociando, elas e eles participam e
apresentam experiências em eventos próprios ou paralelos organizados por
ICLEI e NRG4SD (SETZER, 2014).
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 187

Ainda, por meio de canais como o Pacto Global de Prefeitos pelo Clima
e Energia, cidades brasileiras como Belo Horizonte, Fortaleza, Recife, Rio
de Janeiro, Sorocaba, Porto Alegre e Curitiba têm se engajado na paradiplo-
macia urbana, se organizando paralelamente às estruturas do Estado-nação.
Nesse cenário, São Paulo, embora tenha desempenhado um papel de liderança
durante a primeira fase de concepção e adoção de respostas climáticas nos
anos 2000 e 2010, de acordo com Mauad e Betsill (2019), não conseguiu
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sustentar esta posição durante a fase de implementação. Mesmo que ainda


se trate de iniciativas isoladas (BARBI; MACEDO, 2019), demonstram uma
tendência cosmopolita como Beck a descreve, com cidades mais poderosas
encabeçando. Contudo, outras cidades, a partir de iniciativas diplomáticas,
têm buscado e conseguido se conectar internacionalmente, criar precedentes
e estabelecer a barra para compromissos climáticos.

Conclusões – Preliminaridades esperançosas

A mudança climática é muito mais do que uma simples mudança. Ela


representa um ponto decisivo de inflexão na história humana que pode deci-
dir se teremos futuro na Terra. Face à emergência climática discutida neste
livro, o peso político das cidades (brasileiras e no mundo todo) apresenta
uma saída de uma situação que não parece ter solução por meio da hierarquia
estabelecida da governança global atual. Vendo a organização espontânea
das cidades, seus compromissos políticos de manter compromissos em nível
subnacional enquanto seus governos nacionais retrocedem em negacionismo,
são prova de que existem caminhos factíveis fora dos marcos pré-estabelecidos
pelos Estados-nação.
Seguindo o esboço teórico de Beck sobre a metamorfose do mundo em
curso, o objetivo deste artigo foi uma investigação de algumas das formas
da nossa convivência em tempos da emergência climática. Principalmente o
exemplo das redes de cooperação urbana em assuntos relacionados às mudan-
ças climáticas se mostra especialmente promissor. Destacamos aqui que pes-
quisas futuras considerando mais níveis e tipos de atores serão necessárias
para entender de forma mais completa os processos e atores que transformam
a governança das mudanças ambientais no Brasil e no mundo.
O esboço de uma teoria da metamorfose do mundo em volta das mudan-
ças climáticas nos permite enxergar os efeitos colaterais positivos (e muitas
vezes não-intencionais) que a ameaça iminente dos riscos globais das mudan-
ças climáticas e a complexificação das interações humanas em um mundo
globalizado pode trazer. Talvez nem se trate de um movimento “um passo à
frente, dois atrás” porque estamos em um momento no qual a nossa forma
188

de andar está mudando sem que consigamos enxergá-lo por causa do nosso
horizonte de referência. Não negando a multidão de efeitos negativos produ-
zidos pelo neoliberalismo e por governos negligentes, a forma emergente de
interações globais em volta da solução de problemas globais traz uma espe-
rança – mesmo que preliminar – que pode ser o começo de uma nova forma
de interação entre humanos e natureza porque a emergência climática desperta
uma consciência mais ampla e global sobre a necessidade de mudança.
Editora CRV – Proibida a impressão e/ou comercialização
A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: governança multinível e multiatores no contexto brasileiro 189

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ÍNDICE REMISSIVO

A
Alta quantidade de energia 161, 162, 163, 164, 165, 172
Áreas de reserva 145, 147, 148, 149
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C
Climate change 23, 24, 37, 38, 39, 40, 42, 64, 65, 67, 90, 91, 92, 93, 94, 105,
114, 126, 127, 128, 151, 152, 175, 176, 189, 190, 191

D
Desenvolvimento sustentável 16, 18, 20, 32, 44, 47, 54, 95, 97, 101, 115,
116, 117, 118, 121, 122, 124, 126, 129, 146, 156, 158, 159, 160, 161, 165,
166, 170, 173, 183, 186

E
Elevação do nível do mar 71, 72, 77, 86, 88
Emergência climática 3, 9, 10, 11, 18, 20, 21, 22, 43, 45, 109, 111, 115, 118,
124, 140, 179, 180, 181, 187, 188

G
Gases de efeito estufa 12, 18, 28, 45, 58, 95, 120, 155
Grupos de trabalho 46, 56, 57, 58, 186

I
Implementação de políticas 15, 20, 48, 50, 54, 97, 182

M
Metamorphosis of the world 112, 126, 189, 190
Metas de redução de emissões 15, 16, 17
Modelos de negócios 10, 21, 103, 109, 110, 111, 115, 121, 124
Movimento dos trabalhadores sem terra 10, 131, 140, 142
Mudanças ambientais globais 12, 21, 22, 109, 111, 112, 113, 114, 116, 118,
123, 124
194

Mudanças climáticas 9, 10, 11, 12, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 23, 25, 26, 27,
28, 29, 30, 31, 32, 36, 37, 38, 41, 43, 44, 46, 52, 55, 58, 60, 61, 64, 65, 66,
67, 69, 71, 72, 73, 74, 78, 87, 88, 90, 91, 93, 94, 95, 97, 99, 103, 105, 107,
111, 112, 113, 114, 115, 116, 119, 120, 121, 127, 138, 155, 164, 165, 166,
167, 168, 169, 173, 179, 181, 182, 183, 184, 185, 186, 187, 190

N
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Novos modelos de negócios 10, 21, 103, 109, 110, 111, 115, 121, 124

O
Organizações da sociedade 10, 12, 15, 28, 44, 113, 148

P
Padrões de produção 22, 110, 111, 113, 116, 124
Participação política 60, 61
Plano de ação climática 16, 31, 41, 93, 100, 119, 127
Plano municipal de mudanças climáticas 52, 58, 60, 66
Poder das ferramentas 158, 160, 162, 163
Poder público 46, 53, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 114, 120, 140, 141, 148
Política de reforma agrária 141, 145, 149, 150

R
Redes internacionalizadas de especialistas 71, 72, 77, 80, 89
Regime de propriedade 147, 156, 158, 160, 161, 167, 168, 169, 170, 171
Riscos das mudanças climáticas 25, 27, 32, 179, 184

S
Soluções baseadas na natureza 10, 26, 27, 28, 34, 41, 42, 120, 192

U
Uso da terra 14, 51, 56, 60, 93, 99, 145, 167, 168, 169, 171
SOBRE OS AUTORES

Leila da Costa Ferreira (Organizadora)


Professora Titular/ IFCH. Vice-Presidente da Comissão Especial de Mudança
Ecológica e Justiça Ambiental/Reitoria. Pesquisadora sênior Núcleo de
Estudos e Pesquisas Ambientais/Nepam. Universidade Estadual de Campi-
Editora CRV – Proibida a impressão e/ou comercialização

nas/ UNICAMP.
Contato: leilacf@unicamp.br

Fabiana Barbi Seleguim (Organizadora)


Pesquisadora de Pós-Doutorado (USP Susten). Bacharel em Ciências Sociais/
Licenciada em Sociologia (Unicamp). Mestre em Ciência Ambiental (USP).
Doutora em Ambiente e Sociedade (Nepam/Unicamp).
Contato: fabarbi@gmail.com

Eduardo Prado Gutiérrez


Bacharel em Ciências Econômicas (IE – Unicamp). Mestre em Sociologia
(IFCH – Unicamp). Doutorando em Sociologia (TU-Dresden, Faculty of Arts,
Humanities and Social Sciences).
Contato: eduardopgutierrez@hotmail.com

Felipe Barbosa Bertuluci


Graduação (Bacharelado e Licenciatura) em Ciências Sociais – IFCH/Uni-
camp. Mestrado em Sociologia – IFCH/Unicamp. Doutorando em Ambiente
e Sociedade (NEPAM/IFCH – Unicamp – Campinas).
Contato: felipebertuluci@gmail.com

Guilherme Augusto Lemos Fest


Bacharel em Engenharia Ambiental (UNIFEI). Bacharel em Ciências Sociais
– Antropologia (UNICAMP). Mestrando em Sociologia (IFCH/UNICAMP).
Orientador Social – Centro de Referência Especializada em Assistência Social
(CREAS) de Paulínia-SP.
Contato: guilherme.fest93@gmail.com

Jaqueline Nichi
Bacharel/Licenciada em Sociologia Política (FESP São Paulo). Mestre em Sus-
tentabilidade (EACH-USP). Doutoranda em Ambiente e Sociedade (NEPAM/
IFCH – Unicamp – Campinas).
Contato: jaque.nichi@gmail.com
196

José Caio Quadrado Alves


Bacharel em Ciências Sociais – Antropologia (Unicamp/Campinas). Licencia-
tura em Ciências Sociais Geral (Unicamp/Campinas). Mestrando em Socio-
logia (IFCH/Unicamp).
Contato: j200027@dac.unicamp.br

Lígia Amoroso Galbiati


Bacharel/Licenciada em Ciências Biológicas (Unesp – Rio Claro). Mestre em
Editora CRV – Proibida a impressão e/ou comercialização

Zoologia (Unesp – Rio Claro). Mestre em Conservação da Fauna (UFSCar


– São Carlos). Doutoranda em Ambiente e Sociedade (NEPAM/IFCH – Uni-
camp – Campinas).
Contato: margarida.ligia@gmail.com

Neto Leão
Pesquisador da UniTierra (Universidad de la Tierra), Oaxaca e membro do
painel Otros Horizontes Políticos, Oaxaca – México. Bacharel em Relações
Internacionais (FACAMP – Campinas). Bacharel em Ciências Econômicas
(FACAMP – Campinas). Mestre em Ciência (Ecologia Aplicada, Esalq –
USP). Doutor em Ambiente e Sociedade (Nepam/UNICAMP).
Contato: netoleao@tutanota.com

Niklas Werner Weins


Bacharel em Política e Economia da Ásia Oriental (Ruhr University –
Bochum). Mestre em Tecnologia e Sociedade (UTFPR – Curitiba). Douto-
rando em Ambiente e Sociedade (NEPAM/IFCH – Unicamp – Campinas).
Contato: weinsniklas@gmail.com
Editora CRV – Proibida a impressão e/ou comercialização
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SOBRE O LIVRO
Tiragem não comercializada
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 x 19,3 cm
Tipologia: Times New Roman 10,5/11,5/13/16/18
Arial 8/8,5
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal Supremo 250 g (capa)

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