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Biblioteca Digital Curt Nimuendajú


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índio junto à planta de maconha com
inflorescência recente (fe9'ereiro de 1979)
Foto do autor.

Uma venão anterior deste trabalho


foi apresentada no 1 Congaesso
da Internacional Cannabis Alliance
for Reform, realizado em
i Amsterdi de 8 a 1O de fevereiro
de 1980, e publicada
em The Ecologist, Londres,
vol. 10, n. 8/9, 1980.

ANTHONY RICHARD HENMAN


Antropologia / Unicamp

l
1
'
A, GUERRA AS DROGAS
E UMA GUERRA ETNOCIDA
um estudo do uso da maconha entre
os índios Tenetehara do Maranhão

Religião e Sociedade 10, Rio, nov.1983, pp 37/48


Biblioteca Digital Curt Nimuendajú - Coleção Nicolai
www.etnolinguistica.org
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Não se tem observado no Brasil grande nhão em 1977, chegou a ser ampla- repressão ao uso de drogas nas princi-
interesse em documentar o efeito deso- mente divulgada em agosto do ano se- pais cidades do país. Invertendo a lógi-
rientador e contraproducente das cam- guinte - quando o seu depoimento e ca da guerra de trincheiras, é hora de
panhas dirigidas pelas autoridades con- vários relatórios da FUNAI referentes escutar a mensagem implícita na prá-
tra o uso de drogas. A abordagem ofi- à posterior Operaçao de 1978 foram tica indígena de que as plantas psico-
cial prima por seu obscurantismo, uma entregues à imprensa e ao Conselho trópicas não são maléficas em si, mas
autêntica paranóia cujas duas vertentes lndigenista Missionário (CIMI). que o seu aproveitamento adequado
- a policialesca e a sanitarista - são depende de uma precisa contextualiza-
ambas igualmente desprovidas de um Com o meu interesse despertado por ção cultural. Se não somos capazes de
mínimo entendimento dos complexos esse material, resolvi examinar um entender essa simples verdade e, a par-
processos envolvidos na experiência de pouco mais de perto seu contexto so- tir dela , repensar a política adotada
uma alteração da percepção. Por esse cial, fazendo duas viagens às áreas dos com relação ao uso e ao abuso de
motivo, não é de estranhar que as cam- índios Tenetehara (ou Guajajara, como drogas, que autoridade moral teremos
panhas oficiais procurem antes de mais são conhecidos pela população circun- para continuar maltratando e encarce-
nada ridicularizar e infantilizar os dante): wna, para fazer o contato e rando amplos setores da população em
adeptos das drogas, tratando sua pro- estabelecer amizades numa época do nome da saúde pública?
cura de novos estados de ânimo como ano em que sabia não existirem planta-
uma "fuga", desconhecendo e até ções de maconha na região (setembro/ Sim é o seguinte, chefe. No dia 19 de
ignorando o fato de que o uso de tais outubro de 1978), e a outra, já em maio do ano passado numas 1O horas
substâncias se encontra necessariamen- pleno começo da safra (fevereiro/mar- da manhã, a Polícia veio atrás de mim
te sujeito a controles de ordem cultu- ço de 1979). Às observações de cam- na aldeia Coquinho. Eu estava cortan-
ral. po, acrescentei dados históricos e com- do ª"ºz na roça, num roçado . .. Aí
parativos provenientes da reduzida, ele disse: nós vamos até Grajaú, o coro-
Procura-se, dessa maneira, minimizar o porém bem fundamentada bibliografia nel tá pra Grajaú. A z: quando nós che-
sentido cognitivo que o costume de sobre a maconha no Brasil, e - para gamos em Grajaú, ª"odeamos a sede
ingerir uma determinada droga pode melhor explicitar o choque de culturas do Batalhão e entremos lá pra dentro,
ter para o seu usuário, reservando-se aqui relatado - decidi manter no texto lá onde tava as polícias lá. Aí eles
para este o papel passivo de um "pro- trechos significativos do depoimento disseram para mim: rapaz nós vamos
blema" a ser tratado pelos especialistas de Celestino, resguardando assim a ori- ali conversar com o coronel, se o coro-
do ramo. Entre os muitos perigos de- ginalidade de sua expressão. nel está az: Quando eu vi, foi gente
correntes dessa situação, destaca-se o diferente. Chegou um soldado por no-
fato de o discurso oficial tornar-se to- Além de uma modesta contribuição à me André, me procurou. Você é que é
talmente auto-suficiente e fechado em etnografia do Maranhão, espero que o o Celestino? Eu respondi é ele mesmo:
si mesmo, com a conseqüente impossi- presente trabalho sirva também para Você está preso. E me algemou logo e
bilidade de estabelecer um elo de sim- alertar a opinião pública sobre os efei- outro co"eu e passou uma camisa na
patia e entendimento entre as "autori- tos freqüentemente infelizes das cam- minha cara aí eu entrei Me levaram
dades competentes" e as supostas panhas contra o uso de drogas, e de- para dentro. Lá fiquei sentado numa
"vítimas do flagelo". Na falta do diálo- monstrar que tais campanhas - longe sala. Lá me botaram em riba de um
go entre usuários e agentes repressores, de serem moralmente inexpugnáveis - banco lá fiquei sentado ... E num mo-
cria-se um confronto entre dois univer- inspiram-se numa clara vontade etnoci- mento tiraram aquela camisa e passa-
sos culturais que se assemelha a uma da por parte da nossa civilização, que ram um capuz na minha cara, aí eu
guerra de trincheiras, com longos pe- busca denegrir e suprimir aspectos con- fiquei sem conhecer ninguém Agora
ríodos de surdez e indiferença mútua, siderados "indesejáveis" na cultura dos eu conhecia aquelas pessoas, que eu já
alternados com breves tiros de canhão, remanescentes indígenas no Brasil. Por tinha conhecido, eu conhecia as falas
anunciando uma feroz disputa pelo es- certo não são os índios os únicos a deles inclusive a fala do senhor coronel
paço intermediário onde efetivamente sofrerem este tipo de interferência. lá. Mas que coronel? perguntamos. Ce-
são debatidos os discursos provenien- Processo similar é observado nas cam- lestino respondeu: o coronel Per[etti,
tes de ambos os lados. panhas contra o uso de drogas entre chefe dos índios. Então, eu lá, me fize-
muitos outros segmentos da sociedade, ram uma porção de perguntas, aí eu
O presente artigo trata de um desses especialmente aqueles cuja aparência e sempre dizendo que não, aí de mo-
momentos, quando se tornou mais comportamento divergem significativa- mento ele chegou, aí disse: você se vira
nítida e evidente a defasagem entre mente das normas aceitas pela maioria com os meninos, você conta o que
setores dntintos da sociedade brasilei- da população. Considerando que o sabe aí pros meninos . . . ( aMJ 50:
ra, com a vantagem adicional de que o processo de criminalização já atingiu 5-6).
caso em questão, por uma série de não só o uso da maconha no Mara-
fatores conjunturais, acabou sendo re- nhão, mas também o consumo tradi- A primeira parte do depoimento de
lativamente bem documentado. A tor- cional da coca no noroeste amazonen- Celestino revela, de forma inequívoca,
tura do índio Celestino Guajajara, se e o da oasca no Acre, é de se esperar que o então delegado da FUNAI no
oconida durante a Operação Maconha um agravamento do conflito em torno Maranhão, cel. Armando Perfetti, esta-
empreendida por agentes da Polícia dessas substâncias, e a reproduçao, em va presente, pelo menos no início do
Federal nas áreas indígenas do Mara- escala nacional, do triste espetáculo da interrogatório policial a que o índio

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foi submetido. Ao fazer essa interven- os índios existem sérios problemas de
t ç,ão, o coronel contrariava claramente ab uso de drogas.'' (Murad 1977: 118).
a posição oficial da FUNAI com rela-
ção ao uso da maconha entre os ind í- Fica então patente que a ênfase dada
genas Tenetehara , po ição que reco- aos aspectos supostamente "místicos"
nhecia o importante papel que a planta do uso da maconha entre os Tenete-
cumpre nos seus costumes tradicionais, hara (aliás inexistentes, como veremos
sendo por essa razão protegida pelo a seguir) tem muito menos a ver com a
Artigo 47 do Estatut o do Índio. que percepção dos próprios índios sobre o
reza : efeito dessa substância do que com a
tentativa do governo de distorcer o
"É assegurado o respeito ao patrimô- costume indígena como uma inofensi-
nio cultural das comunidades indíge- va aberração cultural, um traço idios-
nas, seus valores artlsticos e meios de sincrático sem nenhuma vinculação
expressão." (Lei 6. 001 de 19.12. 73). com a temática de " loucura e morte", lência por parte dos órgãos de seguran-
associada ao uso da mesma droga no ça em casos envolvendo entorpecentes.
O próprio presidente da FUNAl na contexto urbano. A lógica subjacente a (JB Especial " Os Documentos da Cen-
época, gal. Ismarth de Araújo Oliveira. essa classificação serve principalmente sura", 18.06. 78).
já havia dado a conhecer a linha ofi- para reafirmar estereótipos já bem
cial: arraigados entre a população - a ima- Não foi por mera coincidência que essa
gem do índio inocente, quase infantil, proibição acabou sendo promulgada
"O consumo de plantas tóxicas pelos colocada em contraposição à do "vicia- justamente naquele momento, quando
(ndios não tem a conotação nega tiva do" violento e desesperado das grandes uma crescente demanda pela maconha
que tem entre os civilizados . .. Proi- cidades - e, apesar de uma tolerância nas cidades vinha encorajando muitos
bi-lo seria inter!erir na cultura tribal, o aparente, não demonstra respeito al- pequenos produtores a aumentar sua
que. . . teria conseqüências altamente gum ao considerável entendimento das produção bem além do padrão tradi-
negativas nas relações entre z'ndios, propriedades da planta evidenciado pe- cional de auto-suficiência. As primeiras
PUNA/ e até com os civilizados . .. " los Tene tehara. operaçoes policiais nas áreas indígenas
(Beltrão 19 77: 22 7). do Maranhão começaram durante asa-
Ai ele saiu, foi embora, eu fiquei lá, fra de 1973, sendo autorizadas pelo
Para os índios continuarem desfrutan- eles fazendo muita pergunta, eles me delegado da FUNAI em São Luís, em
do livremente de seu status privilegia- botando choque pelas pernas, ama"an- aberta discordância com a linha oficial
do perante a lei, colocava-se apenas do fio elétrico nos meus dedos, botan- de seus superiores em Brasília (Beltrão
uma condição: eles não deveriam parti- do aquele choque de momento eu ia 1977: 224-227). Já em 1975, a quase
cipar da produção de maconha para o pro céu e voltava. Então é melhor vo- totalidade dos Tenetehara - um grupo
comércio clandestino. Foi encomenda- cês me matarem, eu dizendo para eles. com mais de 4.300 membros, distri-
do um estudo para determinar a quan- (E eles respondiam): Ó seu sacana você buídos em cinco reservas principais,
tidade exata de maconha de que neces- tem que dizer, você sabe, né? Deram ocupando uma área total em torno de
sitariam para consumo próprio. Este palmada com a palmatória nas cos- um milhão e meio de hectares - havia
estudo, embora nunca tenha chegado a tas . .. ( C/MI 50:6). sentido na pele os resultados das inves-
ser feito, supostamente restringiria o tidas repressivas da Polícia Federal. Os
uso da erva maldita a contextos mais t público e notório que o Departa- primeiros relatos sobre os pavorosos
aceitáveis para as autoridades, contex- mento de Polícia Federal tem lançado espancamentos sofridos nas mãos dos
tos descritos em termos de " ritos reli- mão com bastante freqüência da tortu- agentes federais provocaram um rápido
giosos", " cerimônias e festas" e " ri- ra como forma de interrogação em in- declínio na produção para a venda,
tuais 1nísticos" (FSP 19.07. 73; CB vestigações sobre tóxicos, pelo menos ficando evidente para os índios que o
26.07.73; ESP 18.10.78, 22.06.79, desde o fim da década de 60, quando boom da maconha acabaria antes mes·
05.08.79). práticas desse tipo foram adotadas em mo de realmente começar. (Gomes
grande escala na luta contra a "subver- 1977: 248).
1nevitavelmente, o liberalismo da são". Tais abusos, ainda que comenta-
FUNAI frente a essa questão foi dura- dos à boca pequena entre amplos seto- As campanhas do DPF no interior do
mente atacado não só por figuras co- res da população, raramente chegaram Maranhao coincidiram também com
mo o gal. Antônio Bandeira, chefe do a ser divulgados pela grande imprensa, um período de repetidas invasões do
Departamento de Polícia Federal mesmo quando denúncias sobre a tor- território indígena, empreendidas por
(DPF), mas também pelo establish- tura de presos políticos começavam a fazendeiros e pequenos posse iros, que
ment de Saúde Pública, incluindo o ganhar um certo espaço nas manche- vinham sendo expulsos das terras cir-
eminente farmacólogo e membro do tes. Inclusive, durante a fase negra da cundantes por grandes projetos agro-
Conselho Federal de Entorpecentes, censura prévia, uma ordem datada de 9 pecuários. Durante essa fase, porém, o
dr. José Elias Murad, que prontificou- de janeiro de 1973 chegou a proibir DPF permaneceu praticamente alheio
se a denunciar o fato de que " até entre especificamente a publicação de qual- ao problema, fugindo do seu dever
quer notícia referente ao uso de vio- constitucional de velar pela integridade

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dos bens da União. Sua indiferença à não seria precipitado supor que o mes- uma suposta apreensão de 1.300 quilos
problemática da invasão das terras in- mo tipo de arranjo é bastante comum provoca uma certa descren ça nas ou-
dígenas se explica não só pelas pres- no Maranhão. Este fato explicaria a tras características da Polícia Federal,
sões políticas movidas por grupos liga- falta de iniciativa da PoJícia Federal especialmente naquelas referentes aos
dos ao governo, como também pelo em estender suas operações às áreas totais de maconha apreendidos no Ma-
profundo racismo e antipatia de que os controladas pela oligarquia la tif undiá- ranhão em 1978 (205 toneladas) e
índios eram alvo, decorrentes das cam- ria e por outros grupos ligados ao apa- 1979 (367 toneladas).
panhas contra a maconha. relho de poder, ao mesmo tempo que
deixaria patente os motivos da repres- Quando foi sete horas da noite, era
Durante a Operação Maconha de 1978, são ao uso da maconha entre os Tene- escuro, eles me levaram em um campo
os agentes federais utilizaram expres- hehara. Por um lado, esses índios são com capuz na cara ... ! Você tem que
sões como "sacana", "desgraçado", os únicos cidadãos brasileiros que não contar aqui. Ou você conta ou você
"filho da puta", "seu merda'', refe rin- fazem segredo do uso da planta. Por morre. Ai me algemara1n, fiquei agar-
do-se aos índios. Essas ofensas não outro, se u sistema de produção - ao rado, meu braço num galho de pau. Ai
apenas eram comunicadas a terceiros, mesmo tempo tenazmente indepen- eles metendo o couro, dois soldados
mas também dirigidas pessoalmente dente e de escala bastante limitada - em cima dos meus pés pra gente não
aos índios. O relatório do sertanista jamais será acessível ao tipo de mono- estribuchar. Az' eles me bateram muito,
Elomar Gerhardt, que registrou essas polização característico do comércio me deram pancada na ba"iga, no estô-
injúrias e as freqüentes agressões físi- em grande escala no mercado negro. Já mago, por as costas. Uns chegavam e
cas ocorridas na ocasião, também con- nos anos 50 era perfeitamente evidente me chutavam assim aqui por riba dos
tém a seguinte frase, bastante significa- a natureza corrupta do comércio ilíci- rins que eu ficava sem fôlego. Foi
tiva, proferida por um dos agentes que to no interior nordestino. Um prefeito quando eu pedi a arma de um rapaz, é
participou da Operaçao: " Mas o quê alagoano chegou a fazer o seguinte de- melhor vocês me darem uma arma de
esses índios vao querer com esse hor- sabafo: "A maconha tem dado é muito vocês que eu mesmo quero me matar
ror de terras? " (CIMI 50:21 ). dinheiro para a polícia, essa é a ver- com minhas mãos que tanto eu sofre,
dade." (Araújo 1961 : 259). Esses fatos sofrer não sei qual motivo que estou
Em novembro de 1976 os Tenetehara é que explicariam a preocupaçao quase sofrendo, eu dizendo pra ele .. . (CIMI
do Posto Indígena Angico Torto de- obsessiva da Polícia Federal em provar 50: 6).
monstraram que a paciência tem limi- que os Tenetehara se dedicam a plan-
tes. Percebendo que o apoio da Polícia tar maconha em grandes áreas, obses- A ocorrência dessa absurda violência
Federal lhes seria negado indefinida- sao manifesta pelo constante exagero por parte da repressão policial é resul-
mente, resolveram recuperar o territó- que caracteriza seus informes sobre a tado obviamente da cobertura e da jus-
rio usurpado na região denominada questão. tificativa dadas por uma cuidadosa-
Marajá, onde mil colonos estavam em mente orquestrada campanha de desin-
vias de consolidar um pequeno povoa- Apesar de repetidas referências às "vas- formação pública sobre o uso de dro-
do. Ao queimar as casas dos invasores, tas plantações" e numerosas " máqui- gas no Brasil. O emprego de termos-
chamaram a atenção da imprensa na- nas para prensagem e embalagem" su- chavão como tóxico e viciado não só
cional, e um jornalista de O Estado de postamente existentes nas áreas indíge- evidencia uma lamentável falta de cri-
São Paulo chegou à área para entrevis- nas (Beltrao 1977: 225), o único teste- tério no que se refere à grande varie-
tar os índios e brancos envolvidos no munho independente de uma operação dade de drogas e formas de uso exis-
conflito. O fazendeiro Raimundo Bar- do DPF - o do indigenista Elomar tentes no país, mas também traz à
roso foi citado por diversas fontes co- Gerhard t (em CIMI 50: 12-30) levanta tona uma atitude, ao mesmo tempo
mo responsável pela introdução de sérias dúvidas a respeito da veracidade moralista e etnocêntrica, de repúdio ao
grandes plantações de maconha dentro das estimativas feitas pelos agentes fe- consumo de qualquer substância não-
da área indígena, artifício que lhe per- derais sobre o volume de maconha pro- incluída no trio culturalmente aceito,
mitiria desfrutar de total imunidade duzido pelos Tenetehara. Num deter- que inclui o álcool, o tabaco e as bebi-
legal, caso as plantações fossem "des- minado momento, o comandante da das à base de cafeína (café, chá, mate e
cobertas" pelas autoridades. De qual- Operação Maconha de 1978, bastante guaraná). O caso da maconha é parti-
quer forma, essa possibilidade parecia irritado, chegou a ameaçar o indigenis- cularmente ilustrativo dessa incapaci-
bastante remota, visto que as autorida- ta de fazer "graves denúncias", caso dade de assimilar o "outro", pois, ape-
des tinham pouco interesse em apurar ele não concordasse em assinar alguns sar de uma longa trajetória histórica e
casos dessa natureza. O próprio Barro- autos de apreensão e incineração de de uma difusão extraordinariamente
so declarou ao jornalista, sem nenhum maconha, que exageravam enorme- ampla no Brasil, continua sendo um
constrangimento, que contava com o mente a quantidade encontrada dentro assunto tabu na grande maioria das
apoio da Polícia Federal (ESP das áreas indígenas. Depois que o erro discussões políticas - inclusive, e espe-
15.01. 76). de avaliação lhe foi apontado, o co- cialmente, em determinados setores de
mandante esclareceu que aqueles da- esquerda. O próprio ato de acender um
Com base nessa afirmação - e em mui- dos serviriam para fins "puramente es- baseado rarissimamente é encarado
tas outras que me foram confidencia- tatísticos". Assim, o fato de que a com real naturalidade, até mesmo na
das por índios e "civilizados" nos mu- descoberta de menos de cem plantas companhia de outros usuários.
rúcípios de Barra do Corda e Grajaú - poderia ter sido utilizada para criar

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O que indica essa angústia, essa impos- sobre a manipulação social do "droga- tes chegaram ao Novo Mundo escondi-
sibilidade de incorporar o ato de fumar do" como categoria de acusação, não das no interior de pequenas bonecas de
maconha ao comportamento social- se percebe na literatura nenhum ques- pano, e que o uso da erva se difundiu
mente aceito, mesmo àquele das sub- tionamento a fundo da continuada vi- no período colonial no contexto dos
culturas contestatárias da nossa socie- gência do modelo do uso da maconha quilombos nordestinos, onde foi ado-
dade? Será unicamente resultado do como doença epidêmica - defendido, tado por negros nagôs que não a te-
status ilegal da planta, da possibilida- entre outros, pelo professor Murad riam conhecido em sua terra de origem
de, sempre presente, da implacável re- (1977) - mesmo frente à evidente in- (Carneiro 1966: 18; Hutchinson
pressão policial? Será, como sugerem capacidade de tal modelo oferecer al- 1975).
os punks paulistanos (a maioria deles guma "solução". Enquanto não se
maconheiros de fato, porém não "assu- admitir que só haverá solução se a pró- Provas documentais da existência de
midos") que o costume mantém uma pria colocação do "problema" for alte- maconha no Brasil só datam, porém,
vinculação já cristalizada com certas rada, é de se esperar imobilismo ainda do início do século XIX, sendo de
atitudes consideradas libertárias no fi. maior e um crescente esvaziamento da qualquer forma, bem anteriores às evi-
nal da década de 60? Ou será um fator questão das drogas. Questão, aliás, já dências citadas em outros países da
decorrente de um enquadramento suficientemente batida para dispensar América, como México, Cuba, Colôm-
ideológico mais amplo, no qual o fenô- mais comentários, pelo menos até sua bia e Jamaica. Ironicamente, a primei-
meno do uso da maconha se vê cons- completa reformulaçao ... ra referência segura sobre o uso da
tantemente sujeito a um discurso alta- planta provém da Corte portuguesa
mente tendencioso, de inspiração psi- Capuz na cara, nao tinha jeito de instalada no Rio de Janeiro durante as
co-mecânica, um discurso que cria um olhar, fazendo muitas perguntas, eles guerras napoleônicas. Sabe-se que a
sentimento de quase-vergonha até no me passando aquele negócio, eu estava rainha Carlota Joaquina utilizava com
usuário mais inveterado? de bermudas. Eles me passando aquele freqüência um chá preparado de
negócio que dá choque, que vai co- '' <liamba do Amazonas" preparado por
Basta estudar a coletânea sobre a ques- mendo a gente, beliscando. Passaram seu escravo Felisbino (Cintra 1934;
tão publicada pelo Ministério da Saúde onde? Passaram aqui na minha perna. Hutchinson 1975 : 175). Já em outu-
(1958) para entender como historica- Choque eles m e passaram duas vezes. bro de 1830, o uso da maconha para
mente esse discurso ganhou primazia , Lá assim que cheguei e lá no campo fumar era tão amplamente difundido
partindo do velho racismo nordestino quando eles me levaram E isso alto na na cidade do Rio de Janeiro que a
de um Rodrigues Dória (1915) até che- tua barriga, o que é? Isto foi pancada Câmara Municipal se viu obrigada a
gar a teoria epidemiológica dos anos que a polícia me deu. Pancada, tô ceder a pressões racistas - segundo um
50, made in USA e reproduzida pela doente que eu não posso nem traba- ditado popular da época: "Maconha
ONU nos seus acordos internacionais. lhar pra mim . . . Sinto aquela dor em pito faz negro sem vergonha" (Pi-
Comparando estas leituras com quando eu como às vezes muito, passo nho 1975: 294) - proibindo a venda e
Schmidt (1976), Russel (1978) ou a comer mais um pouco, vem aquela a importação da erva, assim como "o
com qualquer uma das inúmeras séries dor de ba"iga, fica, cresce, incha, é uso do pito do pango e sua presença
de reportagens publicadas pela grande assim né. Sinto dores aqui assim Nas em estabelecimentos públicos" (Dória
imprensa nos últimos anos, entende-se costas também? Aqui em riba dos 1915 em Min. Saúde 1958: 7). O pito
porque no plano teórico, quase nada rins. Que eles me deram muito, me em questão era um cachimbo ou mari-
de fundamental foi alterado no último bateram muito. Cada um homiio da- ca que filtrava a fumaça através da
quartel do século. As observações mis- quele, senhor. Não sei como eles não água contida numa cabaça ou garrafa.
tificadoras de Pinho (1975: 299) de me mataram (CIMI 50: 8-10). De inspiração originalmente árabe, ti-
que "as psicoses observadas em usuá- nha atravessado o continente africano
rios de maconha compartem uma fisio- A incompreensão de Celestino das tor- e chegado ao Brasil em parceria com a
nomia schizofreniforme, nunca antes turas que sofreu se deve ao fato de que maconha, perdurando como elemento
apresentada em nossa casuística, e ou- o uso da maconha tem sido encarado característico do uso tradicional da
tras síndromes de reação exóge- pelo povo maranhense, ao longo da planta até anos bem recentes.
na ... " , por exemplo, poderiam ter história, como uma coisa normal, e -
sido escritas há 20 ou 30 anos. por que não dizer? - até mesmo sau- Por outro lado, o fato de a rainha
dável. Parece que a planta foi introdu- Carlota Joaquina referir-se à erva pelo
Cabe, sem dúvida nenhuma, às ciências zida nessa parte das Américas por es- nome de diamba do Amazonas sugere
sociais uma boa parte da responsabili- cravos de origem angolana, e tanto o que uma boa parte da maconha então
dade por tal situação. Fora os traba- nome local ( diamba) como o termo encontrada no Rio de Janeiro provinha
lhos de Wagley e Galvão (1949: comum em outras regiões do Brasil do norte do país. Juntamente com a
41-42), Araújo (1961 : 316-322) e ( maconha) têm sua, origem na língua região às margens do baixo São Fran-
Hutchinson (1975), nenhum autor quimbundo da Africa central. Aliás, cisco, nos atuais estados de Alagoas e
tem-se dedicado à questão do uso tra- uma expreisão aparentemente corri- Sergipe, o Maranhão seria, sem dúvida,
dicional da maconha no Brasil com um queira em Alagoas, fumo de Angola, um dos principais centros de di~rsão
mínimo de objetividade e compreen- deixa perfeitamente evidente a fonte do uso dessa planta no Brasil. E de se
sao. E, no contexto urbano, sem des- da introdução dessa planta no Brasil. A suspeitar uma referência à maconha
merecer a perspectiva de Velho (1978) mitologia popular supoe que as semen- (mais conhecida dos portugueses de

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então como cânhamo, uma variedade Lá eles não arrumaram nada. Viemos Como resultado das operações policiais
da mesma espécie Cannabis sativa, uti- embora chegamos em Grajaú eu fui dos últimos anos, não é fácil conseguir
lizada na Europa para produzir fibra livre num dia de terça-feira, quatro ho- que os Tenetehara falem abertamente
numa carta dirigida a Lisboa em 1784 ras da tarde. Eles falaram também A a estranhos sobre o uso que dão à
pelo governador do Maranhão e Grão- polícia disse para mim, o que estava maconha. No caso da s minhas visitas à
Pará, José Teles da Silva, "que nessa escrevendo, na máquina batendo, ele região em 1978-9 , foram necessárias
ocasião remetia uma planta, que era disse para mim: Oi você nao vá dizer duas viagens e a disposiçao de compar-
semelhante à malva, de que as nações nada na aldeia, você não vá dizer pra tilhar de um bom número de baseados
do norte, e principalmente os hambur- ninguém que você apanhou da mão da para estabelecer um mínimo de con-
gueses, se serviam para cordagens, a polícia. Mas quem sente deve dizer . .. fiança e convencê-los de que eu não
qual mandando preparar achou ser Eu vou dizer para o senhor como eu traballiava para a Federal. Algwnas das
muito útil, o que melhor em Portugal estava lá. Estava com o capuz assim, reservas Teneteharas - a de Bacurizi·
se poderia verificar pelas amostras que aqui assim aqui eu, quando queria gri- nho, por exemplo - se tornaram quase
mandava . . . Dizia também que no tar: Oh senhores nao façam mais isso herméticas a esse respeito, e provavel-
caso de ser útil à fábrica de cordoaria, comigo, e eles chegando e apertando, mente cerca de 25% dos homens adul-
se fizesse interesse e fosse de bom uso, dizendo não grita seu safado, não grita, tos ainda plantam maconha e a usam
poderia carregar um navio da sobredita não grita, eles botando as mãos na regularmente. Mesmo em outras áreas,
planta." (Marques 1970: 517). minha cara e tapando a minha boca, onde a erva é fuma da pela grande
enforcando a minha güela de tanto so- maioria dos homens e rapazes adoles-
Negros angolanos só começaram a che- frer, que eu tinha sofrido, eles dizendo centes, existem numerosos casos de in-
gar ao Maranhão em grandes levas na pra mim que iam me jogar de dentro divíduos que nunca chegam a usá-la.
segunda metade do século XVIII, de avião do céu pra baixo, ia morrer Esse comportamento é respeitado,
quando a mão-de-obra escrava foi re- assim. Iam me levar para Minas Gerais mesmo sendo objeto de ocasionais go-
quisitada para trabalhar nas plantaçoes quebrar pedra lá, sem ganhar um tos- zaçoes, e certamente uma "cabeça
de algodão. Durante a primeira metade tão. Desse jeito que a polícia fez comi- leve" não implica nenhuma exclusão
do século XIX, os índios Tenetehara go . .. De momento chegou aquela co- dos não-fumantes nas ocasiões em que
tiveram repetidos contatos com negros ragem em mim, parece que Deus disse se consome a maconha.
foragidos na área do baixo Pindaré ao meu coração: Fale, fale que você
(Gomes 1977: 70, 90, 108), e é bem não deve. Num momento fiquei numa O contexto em que a maconha é mais
provável que o uso da maconha tam- altura do chão, criei coragem tão gran- consumida ocorre durante a realização
bém tenha sido introduzido por essa de . .. de trabalhos que exigem esforços f ísi-
via. Sua rápida aceitação na região não cos. Acredita-se que a planta tem efei-
é, aliás, o único exemplo de assimila- Entre as muitas explicações pela atroz to estimulante, ajudando na execução
ção da maconha por parte das comuni- tortura que Celestino sofreu a princi- das tarefas pesadas associadas às derru-
dades indígenas. Dória (1915) cita o pal seria dada, sem dúvida , por sua badas e plantaçoes. Os índios concor-
caso de grupos não identificados no firme recusa em " cantar" para os seus dam que a maconha " te dá ânimo de
baixo São Francisco; Tastevin (1923) algozes. De acordo com as regras de trabalhar" (Wagley e Galvão 1949 :
fala do uso da planta entre os Mura do conduta Tenetehara, é uma questão de 42), e sua principal queixa depois da
baixo Madeira ; e Pereira ( 1954) e honra negar qualquer participação em Operação Maconha de 1978 foi a se-
Wassén (1976: 171) descrevem sua in- atividades que possam causar ofensa a guinte: "Karaiw (branco), como é que
trodução entre os Saterê-Mawé do terceiros, especialmente se as supostas nós vamos botar roça? Tu sabe que
Amazonas. Mas entre os Tenetehara é vítimas de tal ofensa são as mesmas nós só bota roça fumando maconha"
que ela certamente foi adotada com que tentam forçar os índios a admitir a (CIMI 50: 30). Ao mesmo tempo, não
mais entusiasmo, recebendo o nome de sua culpa. Comparem-se as palavras do seria justo inferir dessa declaração que
petem-ahê - que tem os significados Celestino quando sujeito às sevícias os Tenetehara tenham de fato alguma
de "fumo bravo" e "tabaco silvestre" policiais: dependência psíquica da maconha . A
- e adquirindo, ao longo de mais de época de fazer a roça coincide com o
um século e meio de uso, um caráter Ele sabe que ele tem a roça de maco- fim da safra, e logo depois - na segun-
mítico repetido por vários dos meus nha, eles dizendo lá pra mim A polícia da metade do ano - o rápido esgota-
informantes: "Nos tempos dos antigos, dizendo. Então rapaz eu não tenho mento dos estoques leva muitos ho-
, . , .
antes de se fixar num lugar para fazer esse negocio ... mens a passar vanos meses sem consu-
roça e plantar tabaco, os nossos avós mir maconha nenhuma. A imprevidên-
só fumavam petem-ahê ... " com a sua confirmação descontraída, cia que caracteriza sua relação com as
quando entrevistado por wn funcioná- coisas materiais em geral se faz tam-
Eu acompanhei a polícia até a aldeia. rio amistoso da FUNAI : bém claramente presente no tocante à
Lá os índios quiseram se revoltar con- maconha. Fumam quantidades impres-
tra mim. Os índios queriam me bater, Você já vendeu alguma vez maconha? sionantes quando a erva está disponí-
me cutelar, muita coisa . .. Se revolta- Já sim senhor. Mas pouca, assim de vel, e raramente guardam pequenas re-
ram contra eu. Diz que era eu que dois quilos, eu já vendi mesmo. Então servas para depois.
andava indicando aonde tinha maco- desde esse tempo que eles vem dizendo
nha viu, sem ser. Aí viemos embora. que eu trabalho com isto . ..

42
O segundo contexto do uso da maco- e Dias (1974) no Maranhão, e Dória
nha entre os Tenetehara são as reu- (1915), Araújo (1961) e Duarte
niões noturnas, durante as quais os {1974) em Alagoas. Ainda que falte
índios se juntam para discutir questoes entre os índios o elemento material do
referentes à vida da comunidade, dan- pito ou da marica, sobrevivem interpe-
do espaço para os velhos recitarem mi- lações (em português) do tipo "xinga a
tos e fazerem discursos políticos, e os bicha!", às quais deve-se responder
jovens contarem piadas e aventuras se- com as loas estabelecidas pela tradição,
xuais. Enormes quantidades de maco- conhecidas pelos índios apenas nas
nha (digamos, 25 gramas por pessoa suas versões mais resumidas:
numa só noitada) são consumidas nes-
sas ocasiões, com a erva sendo enro- Ó diamba, sarabamba!
lada em grandes charutos cônicos, fei- Quando eu fumo a diamba
tos com papel fino de embalagem, ou, Fico com a cabeça tonta
mais raramente, com a casca interna da E com as minhas pernas zamba tintas épocas pelo Nordeste inteiro, e a
árvore tawarí (Couratari tauary Berg.). terceira também foi escutada por Mon-
Os baseados são feitos cada um por um (os índios sempre faziam questão de teiro ( 1966) entre caboclos do Amazo-
indivíduo, retornando a este depois de escorregar no chão ao recitar esta últi- nas, que apenas modificaram a diamba
oferecidos aos demais presentes. Não ma linha, ironizando o suposto efeito pelo nome local dirijo. A estas evidên-
circulam, porém, numa roda disciplina- da erva - efeito, aliás, nao reconheci- cias de wn contato razoavelmente es-
da como costtuma acontecer em nossa do por eles, a não ser depois de doses treito entre os Tenetehara e outros
cultura; em geral se vêem vários giran- homéricas). usuários nãcrind ígenas da maconha,
do anarquicamente, com cada fumante dever-se-ia adicionar o uso, bastante
tomando uma baforada - ou diversas, e também : arraigado entre os índios, da expressão
de acordo com a sua vontade - de (de novo em português) bicudo para
cada baseado que lhe vem às mãos. Em Quando não é tia Ch ica descrever o tipo de concentração e sen-
suma, o aspecto ritualístico desses en- Então é tia Rosa sibilização sensoriais resultantes de
contros é pouco desenvolvido, sendo Quanto mais véia mais sebosa uma boa fumarada, uso que vai direta-
bem menos elaborado nos gestos e nas Quanto mais nova mais cheirosa mente ao encontro da tese de Becker
expressões do que o da roda de guara- sobre a definição cultural do efeito da
ná-e-tabaco entre os Saterê-Mawé, de ou ainda : droga. Poderíamos, então, supor que o
coca-e-tabaco entre os vários grupos complexo da maconha entre os Tene-
Tukano, ou até mesmo do chimarrão Diamba é coisa excelente tehara nada mais é que uma reprodu-
entre índios e brancos no sul do Brasil. Remédio de dor de dente ção periférica da cultura tradicional
Assim como Deus nao mente nordestina?
Portanto, falar de " ri tua is místicos" Diamba não mata a gente
no uso tenetehara da maconha só pode Pessoalmente, considero perigoso acei-
ser um equívoco devido à falta de Becker (1977) tem chamado a atenção tar tal passividade por parte dos ín-
observação. O fato se torna ainda mais para o fato de que o adepto de drogas dios, e dois elementos em particular
evidente quando se considera a ausên- ilícitas normalmente não dispõe de parecem indicar uma clara especifici-
cia da maconha no xamanismo desse muita informação científica sobre os dade indígena no aproveitamento des-
grupo indígena, em que o estado de efeitos das substâncias que ingere, mas sa planta. Uma é a emergência da ex-
transe - uma autêntica narcose, com o que em compensação, desfruta de uma pressão hê 'mongatú, considerada por
pajé caído duro no chão por um perío- ampla rede de comunicaçoes infarmais todas as autoridades lingü ísticas como
do de 1O a 20 minutos - é atingido com outros usuários, o que permite a "gíria", ou seja, elemento não-inte-
unicamente pelo uso do tabaco, sendo criação e a definição do estado de grante do vocabulário clássico tenete-
a fumaça engulida para o estômago, consciência que se procura mediante o hara. Ainda que seu sentido seja ape-
acompanhada de violentos tragos e ges- consumo de drogas. No caso tenete- nas "numa boa" ou "tudo bem" (nor-
ticulações. A maconha também está hara, é evidente que a sobrevivência de malmente conjugado com o verbo es-
ausente dos principais ritos de passa- loas adquiridas da população envolven- tar), é de se notar que a expressão
gem tenetehara, como a célebre "festa te indica também uma certa conver- originalmente foi utilizada com exclu-
da moça'', através da qual a adolescen- gência da sua percepção do efeito da sividade para referir-se ao estado de
te é reintegrada à sociedade depois de maconha com as atitudes aceitas pelos ânimo decorrente do uso da maconha,
sua primeira menstruaçao. Na verdade, camponeses maranhenses em geral. Na e mesmo hoje, seu emprego em outros
os poucos elementos propriamente ri- verdade, a rede informal dos usuários contextos seria considerado duplamen-
tualizados no uso da maconha entre tradicionais de maconha no Brasil não te neológico. A etimologia do termo é
esses índios denotam uma clara in- pode sequer ser circunscrita a um de- obscura - os índios afirmam que "não
fluência da população circundante, e terminado estado. É notável o fato de tem outro sentido, só quer dizer tudo
seriam melhor considerados como so- que a primeira das loas citadas acima já bem" - mas com certeza o uso de uma
brevivências do padrão nordestino des- foi encontrada por diversos autores palavra específica indica não só a exis-
crito por autores como Iglésias (1958) (começando com Dória, 1915) em dis- tência atual de uma categoria especial

43

l
para descrever o efeito da maconha, ra, sofrem uma capaçao na extremida- planta chegar a ser curtida depois de
mas também - o que é muito mais de superior, prática que supostamente seca. Os sistemas de curtiçao incluem
significativo - a criação dessa catego- evita que elas se tornem machas, além desde utna simples pilha dentro de um
ria inédita em algum momento do pas- de favorecer o desenv~lvimento das recinto fechado para favorecer a fer-
sado. Ao nomear esse novo estado de florações laterais. mentação orgânica, até as famosas mu-
consciência, deu-se uma precisa con- tucas de bambu ou de cabeça, con-
textualização cultural do efeito da dro- A prática de capação denota uma clara tendo o material vegetal amassado no
ga, contextualização que foi bem além influência da população envolvente, já interior, que sao colocadas no teto ou
da importação do termo português que esses cuidados não são dispensados debaixo da terra durante dois meses.
bicudo, ou mesmo do reconhecimento aos pés de tabaco, inserindo-se no con- Distingue-se imediatamente um fumo
lingüístico da planta em si, o que signi- texto das arraigadas crenças populares bem curtido pela cor parda e pela au-
ficou sua equiparação à categoria do nordestinas sobre a sexualidade da ma- sência do cheiro de clorofila, caracte-
fumo já conhecido (petem = "taba- conha. Evita-se que as mulheres se rístico da maconha em estado verde.
co", petem-ahê = "tabaco bravo, forte aproximem das plantas, especialmente Vários nomes locais descrevem as tona-
ou silvestre"). na época da capação, para não favore- lidades desta cor mais escura - manga
cer o desenvolvimento de exemplares rosa tem traços avermelhados, cabeça
Outro elemento que indica que a ma- machos, de escasso rendimento. Além de nego puxa mais para o preto - ou
conha adquiriu um caráter especifica- disso, o próprio consumo da maconha indicam a qualidade do produto -
mente tenetehara, não compartilhado é, em geral, restrito aos homens, e ape- rabo de raposa seria uma inflorescência
por outros grupos sociais, é a sua assi- nas as mulheres de status elevado - bem desenvolvida, maior que o cama-
milação à extensa lista de plantas utili- avós e pós-menstruantes - se dão a rão, que por sua vez é preferível ao
zadas por estes índios para favorecer a liberdade de pedir aos homens maco- pelo de macaco, expressao usada para
caça. Considera-se que o poder mágico nha para o seu uso pessoal. Para as designar um fumo de segunda, com-
da fumaça da maconha pode ser apro- crianças e mulheres mais jovens, a prin- posto principalmente de folhas e não
veitado para "chamar" ou "encantar" cipal função da planta é medicinal, de inflorescências.
animais, particularmente pássaros e sendo usada em infusoes para o trata-
roedores como a paca, que seriam ávi- mento de febres e gastrites. Celestino, você tem notícia de outro
dos consumidores de suas sementes. índio que sofreu assim? Sei do nome
Mesmo outros bichos são considerados Nos primeiros meses da safra ( dezem- dele. Como é? Djalma. Mora aonde o
presas mais fáceis dos índios que te- bro a fevereiro), os Tenetehara fumam Djalma? Ele mora no Bacuri, sobrinho
nham fumado maconha, já que a sensi- exclusivamente as folhas da planta, do senhor A lderico . . . Lá no Grajaú
bilidade resultante permite ao· caçador que vao sendo retiradas de acordo com tem um localz inho dos índios de nome
aproxunar-se a uma menor distância a necessidade, e secadas rapidamente Morro Branco, senhor Mourao é que
sem espantar o animal. ao sol. Este fumo é muito verde, relati- foi buscar ele lá. Quando ele chegou
vamente fraco, e irrita bastante a gar- botaram dentro desse quarto onde fi-
Também no plano propriamente agro- ganta, razão pela qual espera-se ansio- quei também Então chegou lá, viu que
nômico, a maconha tem-se inserido nas samente a chegada das primeiras plan- ninguém ligou, quando ele conheceu
práticas teneteharas com relativa facili- tas à completa maturidade em março. que era policia, aí tentou escapulir.
dade, complicado apenas pela necessi- Nos três meses seguintes as plantas sao Ele co"eu, foi besteira, fizeram fogo
dade de esconder as plantas das fre- colhidas inteiras, assim que os "pelos" nele pra matar ele ou pra adoecer, foi
qüentes operações policiais. Pequenas (pistilos) nas flores femininas passam como cercaram ele, enganchou a perna
cestas, contendo uma mistura de terra de amarelo-claro a um marrom meio no arame. Aí o índio caiu, aí eles
preta e areia - e umas cinco a dez ressecado, ponto no qual a planta efe- trouxeram ele, ele sofreu do mesmo
sementes de maconha - , são prepara- tivamente pára de desenvolver-se. É tanto d'eu, pois os pés dele estava todo
das com uma folha de babaçu, e guar- também nesse momento que a planta inchado . . . Tem mais alguma coisa a
dadas perto da casa para protegê-las contém um teor mais alto do princípio dizer? O que você acha, o que você
dos ataques de roedores e formigas psico-dinâmico ~9-THC (delta 9-Te- espera da FUN AI? Eu espero da
cortadeiras. Quando as plantinhas atin- tra-hidrocanabinol) do que do elemen- FUNAJ que a FUNAI dê um jeito so-
gem uma altura de- aproximadamente to CBD (Canabidiol), que provoca uma bre este caso meu. Olhe chefe eu vou
20 cm são transferidas para a roça, sen- certa sonolência. lhe dizer, porque sou uma pessoa que
do distribuídas irregularmente e em não gosto de andar dizendo certas coi-
pequenas concentrações, o que as tor- As plantas geralmente são secadas in- sas. Quando eu digo uma coisa é por-
na, às vezes, de difícil identificação no teiras, penduradas de cabeça para bai- que eu sinto. Nem a vida do Coronel
meio da folhagem mais densa da man- xo sob um abrigo. Com alguma fre- não paga a pisa que eu peguei, e nem a
dioca. Cada grupinho individual de qüência, como resultado desse trata- riqueza do Coronel, riqueza dele, não
plantas tem sua origem na cesta usada mento, a maconha é consumida ainda paga não, não paga nao, não paga não,
como sementeira, e individualmente verde. A pressa para usufruir da safra é porque não paga mesmo. Porque ele
acaba contendo alguns exemplares fra- responsável por essa prática, já que os diz que é chefe dos índios e ao mesmo
cos, que são arrancados para não preju- índios - e outros eventuais consumi- instante ele não é, ele é contra os ín-
dicar as duas ou três plantas principais. dores - reconhecem que obtém-se dios, isso ai eu digo, posso até dizer
Estas, ao atingirem um metro de altu- uma melhor qualidade de fumo se a pra ele, ai ele pode mandar me matar.

44
Se tem lei para matar o índio, se não as arbitrariedades da Polícia Federal, devido ao fato de que Celestino estava
tem, então . .. (CIMJ 50: 9-10). ao tentar sem êxito convencer o co- encapui.ado na ocasião, ficando por-
mandante da Operação Maconha de tanto impossibilitado de identificar
Celestino teve a sorte de contar sua 1978 dos efeitos nefastos de sua atua- seus torturadores (ESP 22.06. 79).
história a um interlocutor simpatizante ção sobre as conturbadas relações in-
dos índios, José Porfírio Fontenele de ter-étnicas na região. A documentação t difícil acreditar que o caso de Celes-
Carvalho. Ao assumir a chefia da Aju- de Carvalho, juntamente com o depoi- tino Guajajara tenha sido apenas wn
dância de Barra do Corda no começo mento de Celestino e o relatório do acidente histórico, wn acontecimento
de 1978, Carvalho ficou profundamen- indigenista Elomar Gerhardt denun- limitado a urna determinada época,
te chocado ao descobrir que a prática ciando a atuação dos agentes federais quando o emprego da tortura ainda
de tortura fora autorizada por seu su- dentro das áreas indígenas, foi enviada continuava em voga nos órgãos poli-
perior, cel. Armando Perfetti - wn primeiro à delegacia em São Luís e ciais. Reportagens esporádicas do inte-
ex-oficial da Polícia Militar sem nenhu- depois à sede da FUNAI em Brasília. A rior do Maranhão descrevem a repeti-
ma experiência de trabalho com ín- Polícia Federal passou então a hostili- ção, a cada ano, das tristemente céle-
dios, e cuja nomeação como delegado zar os funcionários da FUNAI em Bar- bres Operações Maconha, uma rotina
da 6~ Delegacia Regional da FUNAI ra do Corda, tentando em repetidas no calendário da Polícia Federal no
fora resultado de favor político a nível ocasiões provar que eram eles os gra~­ período de abril a julho. Pior ainda, a
estadual. Era de se esperar como con- des traficantes que se beneficiavam da violência física contra indígenas e ou-
seqüência das indagações wn caso produção de maconha dos índios. O tros pequenos produtores da região já
exemplar de idealismo lutando contra próprio cel. Armando Perfetti reagiu às deixou de ser notícia, e faltam funcio-
o nepotismo e a corrupção. Mas aten- acusações de tolerar a tortura de ín- nários da estatwa e da coragem de wn
ção! O desenrolar da história demons- dios com a fria declaração de que não Porfírio Carvalho para denunciar os
tra claramente como interesse excusos conhecia nenhum indivíduo chamado abusos praticados em nome da repres-
e obscuras maquinações conseguem Celestino Guajajara. Seu nome final- são às drogas. Existe uma clara lógica
perverter o curso normal da justiça, mente ganhou as manchetes quando neste cenário de indiferença, pois a
cada vez que se trata do temível assun- insinuou que as acusações que lhe politização da questão das drogas avan-
to das drogas. eram feitas partiam de traficantes de ça inexoravelmente com a contratação
maconha atuantes no interior do Mara- dos agentes dos extintos DOPS para as
O testemunho de Celestino foi gravado nhão (EMa 24.08. 78). delegacias estaduais de entorpecentes,
no final de fevereiro de 1978. Em e com a monopolização da repressão
maio do mesmo ano, sr. Mourão, chefe A própria comissão de inquérito da política nas mãos da mesma Polícia
do Post o Indígena Bacurizinho, final- FUNAI - obviamente pressionada pela Federal, que tanto tem-se distinguido
mente concordou em fazer uma decla- Polícia Federal em Brasília - concluiu na luta por controlar o tráfico. Que
ração sobre o seu envolvimento no cinicamente pela improcedência das este controle tem-se colocado às or-
caso do índio Djalma Guajajara : " ... acusações contra as autoridades, isen- dens das grandes máfias internacionais
com relação a maus tratos aos índios, tando de culpa o delegado Perfetti e - como no caso da corrupção compro-
tenho a informar que cheguei a pre- punindo Carvalho e outros dois indige- vada do Superintendente Regional do
senciar, quando o índio Djalrna Gua- nistas pela divulgação de documentos DPF no Amazonas, Ivo Americano -
jajara estava sendo interrogado dentro oficiais (ESP 10.10.78). Uma semana ou que o excesso de zelo repressivo
do acampamento do BEC em Grajaú, o mais tarde, o próprio Celestino chegou continua dando margem à tortura com
Dr. Nazareno (segundo ele identifi- a Brasília e, na companhia de vários pancadas e choques elétricos (confor-
cava-se) aplicar-lhe dois tapas, com as chefes teneteharas, repetiu suas denún- me foi denunciado pelo cantor portu-
mãos abertas, nos ouvidos do índio cias ao então presidente da FUNAI, guês Sergio Godinho em dezembro de
Djalrna Guajajara. Como não aprovava gal. lsmarth de Araújo Oliveira. Celes- 1982, no Rio de Janeiro), nada disso
as atitudes agressivas contra o índio, tino também foi recebido pela cúpula parece alterar a lógica cega da campa-
retirei-me do local não sabendo o que do CIMI e concedeu algumas entrevis- nha de vitimização dos usuários de
ocorreu depois. Explico ainda que a tas a jornais (ESP 18.10.78). Sua inter- drogas, assim como não tem levado a
pessoa que se dizia chamar Dr. Naza- venção sustou a punição a Carvalho e nenhum questionamento fundamental
reno dizia-se pertencer à Polícia Fede- aos outros indigenistas, mas mesmo da forma pela qual a nossa sociedade
ral e chefiava a equipe em operação em assim o delegado Perfetti continuou no encara a questão do abuso de tais subs-
Grajaú" (CIMI 50: 11). cargo, só sendo demitido um ano mais tâncias.
tarde, quando foram comprovados sua
Teria sido suficiente perguntar ao pró- anuência e seu direto envolvimento em No fundo, não se procura solucionar
prio Djalma sobre as torturas que so- vários casos de invasão e usurpação de um problema de saúde pública, e sim
freu, mas aparentemente o sr. Mourão terras nas reservas indígenas. Como era assegwar a representação de uma "ver-
não fez isso, nem se preocupou em de se esperar, as investigações realiza- dade" científica, monolítica e intole-
apurar qualquer informação sobre o das pelo delegado de Ordem Política e rante, que ao mesmo tempo reflete e
assunto até ser interrogado, quase um Social do DPF para apurar as denún- justifica o autoritarismo da estrutura
ano depois, por Porfírio Carvalho. Já cias de tortura também decidiram - política no plano maior. Numa época
por essa época, Carvalho tivera a opor- após um ano de demorados inquéritos em que o presidente dos Estados Uni-
tunidade de sentir na pele as pressões e pela " improcedência da denúncia", dos dedica grande parte de sua visita

1
45
ao Brasil a insistir na necessidade de BELTRÃO, Luís MURAD, José Elias
wna guerra sem quartel às drogas, 1977 - O lndio, um mito brasileiro. Pe- 1977 - " O abuso de drogas e sua exten-
trópolis, Vozes. são no meio estudantil no Brasil", Belém
numa década em que a infiltração de
doPará, Boletim de Policia Cientf[ica 1
agentes da Drugs Enforcement Admi- CARNEIRO, Edison (2): 85- 123.
nistration (DEA) norte-americana con- 1966 - O quilombo dos Palmares, Rio
tinua subvertendo os aparelhos estatais de Janeiro, Civilização Brasileira. PERNAMBUCO, Jarbas
em toda a América Latina, não é de se 19 37 - A maconha em Pernambuco, in
CINTRA, Assis Gil berto Freyrc (ed.) Novo:; estudos
esperar muito respeito ao direito ana- 1934 - Escândalos de Carlota Joaquina, afrcrbrasileiros vol. 2: 185-191, Rio de
crônico dos índios de continuarem Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. Janeiro, Civilização Brasileira.
desfrutando do seu patrimônio cultu-
ral. Afinal de contas, na heróica luta DIAS, Erasmo PINHO, Álvaro Rubim
1974 - " A influência da maconha no 1975 - Social and medical aspects of the
contra a "erva assassina", pequenos de- fol clore maranhense", São Luís, Revista use of Cannabis in Brazil, in Vera Rubin
talhes como os direitos humanos de Maranhense de Cultura n. 1, Fundação (ed.) Cannabis and culture, Den Haag,
wn grupo de índios podem ser pisotea- Cultural do Maranhão. Mouton.
dos sem preocupação algwna. É wn
desserviço que rendemos a nós mesmos DÔRIA, Rodrigues RUSSELL, George K.
1915 - Os fumadoresde maconha: efei- 1978 - Maconha hoje, São Paulo, Asso-
pois, ao rotular os índios Tenetehara tos e males do vicio (apresentado no 29 ciação Beneficen te Tobias.
como meros "maconheiros", perdemos Congresso Científico Pan-Americano,
a oportunidade de aprender uma lição Washington D.C. ) in Ministério de Saúde SCHMIDT, Ivan
sobre o uso adequado desta planta, de 1958: 1-14. 1976 - A ilusaõ das drogas: Um estudo
inestimável valor para a nossa civili- sobre a maconha, LSD · e anfetaminas,
DUARTE, Abelardo Santo André, SP, Casa Pu blicadora Brasi-
zação. J974 - Folclore negro das A lagoas, Ma- leira.
ceió, Dept<? de Assuntos Culturais.
TASTEVIN, Constant
GOMES, Mercio Pereira 1923 - " Les inr.! iens Mura de la région
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tehara lndians of Maranhão, Brazil, tese l 'Anthropologie 33: 514-533.
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Brazil" in Vera Rubin (ed.) Cannabis and antropologia da sociedade contemporâ-
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Rio de Janeiro, Zahar. Janeiro, Revista Brasileira de Folclore 6
(16): 285-300.

46
AP~NDICE

Apenas termina·.la a versão brasileira Um dia depois, a Folha de São Paulo

l deste artigo - e enfrentadas as pri-


meiras críticas de colegas que consi-
deravam sua temática " ultrapassada '',
(0 7.0 5.8 3) publicou o seguinte des-
mentid o:

e •'de interesse meramente histórico''


- recebi uma inesperada confirmação Funai nfio reprimirá os
da atualidade e mesmo da urgência
de um debate científico em torno das
questões aqui levantadas. Refiro-me a
índios por uso d,e drog~
uma nefasta reportagem publicada BRASILIA - O presiden- aproveitam deste tra~ cul-
n'O Estado de São Paulo (06.05 .83): te da Funai. coronel Paulo tural".
Moreira Leal, garantiu on- Para o coronel Leal, o
tem que a ação repressiva dlflctl nessa operação é
contra o uso de aluctnó- determinar o limite das
Cadeia para genos não será estendida
aos lndios. "A operação
plantações para as c~
munldades. evitando-se o
contra as drogas, entre elas comércio. Entre as ~
índios que o epadu <coca> e a ma~ munldades lndlgenas que

, .
nha~ se dirige aos nã~ln­ fazem uso de drogas encon-
dios que estão usando os tram-se os GuajaJara. no
usam toxico grupos indlgenas na comer-
cialização das drogas'' -
Maranhão. os Macu. Tu-
cuna e Tucano. no Ama-
afirmou o coronel Leal. zonas. e o presidente da
O. sucurNI de Disse ele ainda que. na F\mal reconhece o fato de
BRASÍLIA campanha de fiscalização que estes grupos lndtgenas
contra a comercialização usam aluclnógenos
Os lndios que usarem çu trafira- das drogas plantadas pelos "apenas em rituais". A
rem drogas poderio, "em prtncfpio ·•. lndios. a Funai "conta com Funal. informou o coronel
ser responsab1112adoa penal mente. total apoio da Policia Fe- Leal. Já encaminhou amos-
ou seja. preios, segundo decisão to- deral. Não podemos re- tras das ervas utilizadas
mada ontem pelo Conselho Federal primir os lndlos. pois o uso pelos lndlos para a central
de Entorpecentes (Confen), depois de de alguns aluclnogenos é de Medicamentos a fim de
urna palestra e di.'icussõea com o cultural. O importante que sejam feitos estudos
president.e da Funai, coronel Paulo agora é coibir e mesmo per- sobre o uso medicinal des-
Leal. Aos jufzes, no entanto. seri seguir os brancos que se sas ervas.
recomendada a apllcaçlo atenuada
das penas previstas na lei antitóXl·
cos. de acordo com o que prevê o
Estatuto do índio, inclusive o cum-
primento da ~na em regime de ae- Finalmente,. O Estado de São Paulo Quais são as principais dúvidas susci-
m111berdade, em estabelecimento da ( l 0 .05.83) se viu na obrigação de tadas por uma leitura atenta destes
F'unai. corrigir sua versão original, mediante textos? Além das referências de pra·
Esta declsAo deve-te ao aumento uma diminuta nota: xe aos "rituais" , místicos ou não,
significativo do cultivo, uao e comer·
ctaua~lo de maconha por fndlos, que estariam orientando o uso de
prtncipalment.e no Maranhão, em co- drogas entre as populações indígenas
munidades onde o uso desta dr\1g& Funai não pune tóxico do país, observa-se, em primeiro lu-
nlo fazle parte de auaa culturas, tt·n-
do lido introduzida por ctv11tzadoa. o presidente do Conselho Fede- gar, uma clara discordância entre o
Os 1ndloa ttm tido um tratemento ral de Entorpecentes, Arthur Casti- presidente da FUNAI e o presidente
espec1al em ielaçlo ao problema, o lho. negou ontem. em Bra1ílla, que o do CONFEN sobre o status cultural
que tem estimulado traticant.ea a órgão tenha determinado a repres- do uso da maconha entre os índios
lhes proporcionar aementea e recur- são ao consumo de maconha nu
sos para p••ntto. voltando àa tribos comunidades 1nd1genas: "Em ne- do Maranhão. Se o primeiro conside-
após a colheita e comprando toda a nhum momento afirmou-se que a Fu· ra que "não podemos reprimir os
produçlo para venda. na! iria punir lndios por 1110. mesmo índios, pois o uso de alguns alucinó·
As ln.formações foram dadas on- p0rque a competência para a repres-
tem à tarde pelo pres1dente do Con- são aos tóxicos é da Policia Federal genos é cultural" (note-se de passa·
fen. Arthur Cast.tlho, ressalvando e, segundo estudos da Fundação, a gem que nenhuma das duas plantas
que "dentro do aspect.o cultural. o maconha não faz parte da cultura citadas, nem maconha nem coca, é
consumo de determinadas aubat&n- indígena".
cias utntzad•• em rltnata, pralrnen- propriamente um "alucinógeno"),
te de cunho religioso. m1st1co. não é esta posição se vê abertamente con-
um fator de desagxegaçlo da comu- testada pelo presidente do CONFEN,
n1daóe''. Observou, no entanto. que
est.e consumo eventualmente deve com base em dados apresentados pela
ocorrer dentro de rituais e oc1110es própria FUNAI: •• . . . segundo estu-
P.specfficas, de acordo com determi- dos da Fundação, a maconha não faz
nadas regra culturaia próprlaa de parte da cultura indígena."
cada comunidade em qilé se evita.
iraclusive, a utilização por parte das
c1ianças.

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Será que os presidentes dos dois ór- De acordo com a minha experiência desviar as atenções de sua evidente
glos federais envolvidos nessa ques- entre os Tenetehara, os meninos co- incapacidade de atuar contra os gran-
tlo nlo puderam chegar, mesmo após meçam a puxar fumo na mesma ida- des traficantes no Maranhão? Com o
longas discllssões a portas fechadas, a de em que se iniciam no uso do taba- "total apoio" da Polícia Federal cita-
um acordo sobre a interpretação dos co também. Isso ocorre, em geral, na do pelo presidente da FUNAI, pode-
dados etnográficos? Nlo é possível fase pós-infantil mas pré-adolescente, se contar com uma crescent~ ativi-
que a confuslo em torno desta inter- ou seja, entre os seis e os dez anos. O dade repressiva nas áreas indígenas,
pretação se deva, antes de mais nada, pouco acesso desses meninos à maco- impressão confirmada por uma leitu-
a uma certa confusfo também no nha - eu não diria que eles fumam o ra atenta das sinistras palavras do pre-
próptjo levantamento dos dados em dia todo, nem mesmo todo dia - não sidente do CONFEN: "Em nenhum
questlo? Enfim, cabe à comunidade é determinado por moralismos pater- momento afirmou-se que a FUNAI
científ)ca questionar a objetividade e nos, mas pelo simples fato de não iria punir índios por isso, mesmo por-
a competência dos citados "estudos disporem de plantações próprias, e de que a competência para a repressão
da Fundação", especialmente se tais serem os últimos na hierarquia mas- aos tóxicos é da Polícia Federal ... "
estudos, ao serem examinados em de- culina que prevalece na roda dos fu-
talhe, nada descrevem além de vagos, mantes. Por esta raz.lo, é justamente Ao analisar os discursos das diferen-
indefUlidos e mistificantes "rituais" e ~ pai, ou possivelmente um "padri- tes autoridades envolvidas, chega-se à
"regras culturais". nho" in loco parentis, que pode in- impressfo de que em breve veremos
verter a hierarquia e ofereçer o basea- multiplicarem-se os casos de abusos,
Como já demonstrei no texto princi- do a seu filho, antes de passá-lo aos espancamentos e torturas aos índios
pal deste trabalho, é muito difícil outros homens adultos. Sem dúvida que utilizam maconha, coca, ou qual-
definir exatamente o que é "ritual" esta atitude paterna, determinada por quer outra substância considerada
ou "regra" no uso Tenetehara da ma- um real respeito entre as gerações, "alucinógena", "tóxica", ou "entor-
oonha. Se ritual é observar uma certa assim como pela falta de autoritaris- pecente". Sem dúvida, espera-se em
concentração no ato de fumar, wna mo no processo educativo, terá pou- círculos oficiais que os resultados
reciprocidade nas trocas de baseado ca acolhida entre os pais "civiliza- dessas campanhas acabem confirman-
com parentes e afms, e wn tipo de dos", acostumados a tratar o assunto do a tese da "nao-indianidade" do
comportamento padronizado nos ges- através do medo e da negação. consumo das drogas vegetais, e que
tos e nas expressões - os Tenetehara efetivamente o uso de tais substân-
praticam "rituais" ao conswnir a ma- Por outro lado, é de se indagar tam- cias deixe de fazer parte da cultura
conha. Agora, se ao invés do caráter bém a origem e a veracidade da infor- indígena. Ao desenvolver uma polí-
difuso, ambíguo e espontâneo das mação sobre o "aumento significati- tica dessa natureza, o Estado brasilei-
práticas Tenetehara se vê, nas pala- vo do cultivo, uso e comercialização ro dá renovadas provas de sua clara
vras do presidente do CONFEN, "re- de maconha por índios, principal- vocação etnocida - agora, porém,
gras culturais" que evitam "a utiliza- mente do Maranhão, em comunida- justificada perante a opinião pública
ção por parte das crianças", é de se des onde o uso dessa planta não fazia em termos da guerra contra as dro-
colocar uma interrogação fundamen- parte de suas culturas." Nlo é possí- gas. O resultado de tal obscurantismo
tal. vel que esta constatação se inspire em será o empobrecimento não só da
novas manobras por parte de certos cultura indígena, mas da cultura bra-
elementos na Polícia Federal, interes- sileira como um todo, privada do
sados tanto em aumentar o raio e a exemplo de uma relação sadia com a
impunidade de sua atuação, como em flora psicotrópica do país.

Biblioteca Digital Curt Nimuendajú - Coleção Nicolai


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