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UNIDADE IV

Psicologia da Educação
Concepção Sócio-Histórica
de Vygotsky e suas
Implicações Educacionais

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
■■ Estabelecer as relações entre os conceitos e as implicações pedagógicas na

abordagem vygotskyana.

■■ Reconhecer a importância da linguagem no processo de desenvolvimento e

aprendizagem do aluno.

■■ Compreender o processo de formação de conceitos sob a perspectiva de

Vygotsky.

ROTEIRO DE ESTUDOS
■■ SEÇÃO 1 - A formação social da mente: conceitos vygotskyanos

■■ SEÇÃO 2 - A linguagem e seu papel na aprendizagem e desenvolvimento

■■ SEÇÃO 3 - A formação de conceitos

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unidade 1
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Para início de conversa

Você já estudou a perspectiva interacionista de Jean Piaget. Agora,


na Unidade IV, você vai saber como Vygotsky, um eminente estudioso
russo, concebeu o processo de desenvolvimento em íntima relação com o
aprendizado humano.
Tal como você verificou nas contribuições que a teoria piagetiana
oferece à Educação, a teorização vygotskyana traz inestimáveis subsídios
para a nossa ação-reflexão como educadores.
A compreensão de Vygotsky sobre o indivíduo humano é pautada
por sua vinculação com a sociedade e com o contexto histórico. Sua
concepção é comumente conhecida como “Sociointeracionista” ou ainda
“Histórico-Social”. O assunto em questão está contido nas seções que
compõem esta unidade.
Na Seção 1 - “A formação social da mente: conceitos vygotskyanos”,
você conhecerá os pilares básicos do pensamento de Vygotsky, suas
teses centrais e o conceito de internalização das funções psicológicas
superiores.
Na Seção 2 - “A linguagem e seu papel na aprendizagem e
desenvolvimento”, analisamos o papel mediador dos sistemas simbólicos
no processo de desenvolvimento humano, bem como buscamos esclarecer
a importante noção vygotskyana de Zona de Desenvolvimento Proximal.
Na Seção 3 – “A formação de conceitos”, trouxemos a explicação
de Vygotsky sobre o tema com vários exemplos para ajudá-lo a entender
melhor.
Estudando estas seções e realizando as atividades propostas,
certamente você encontrará contribuições que venham a favorecer a
qualidade de sua prática pedagógica. Boas leituras!

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Psicologia da Educação
SEÇÃO 1
A formação social da mente: conceitos
vygotskyanos

Nascido em Orsha, na Bielo-Rússia, em 1896, Lev Semenovich


Vygotsky teve um percurso acadêmico marcado por uma diversidade
de temas: artes, lingüística, literatura, antropologia, filosofia, ciências
sociais, psicologia e medicina. Iniciou sua carreira aos 21 anos, em
Gomel, logo após a Revolução Russa, em 1917. Lecionou literatura e
psicologia. Mais tarde, em Moscou, fundou o Instituto de Defectologia,
tendo dirigido o Departamento de Educação para Deficientes Físicos e
Retardados Mentais.
Junto com seus principais discípulos, Luria e Leontiev, Vygotsky
realizou estudos sobre os processos mentais superiores do homem e o papel
da mediação no seu desenvolvimento. Teve a publicação de suas obras
censurada na União Soviética, de 1936 a 1956. Morreu prematuramente,
de tuberculose, aos 38 anos.
A perspectiva vygotskyana é conhecida como abordagem histórico-
cultural, em virtude de estudar as raízes sócio-históricas do psiquismo
para compreender como se desenvolvem nos indivíduos as características
tipicamente humanas, que nos diferenciam dos animais.
Influenciado pelo Materialismo Histórico-Dialético de Marx,
Vygotsky concebeu que o organismo ativo interage com um ambiente
histórico e essencialmente social. Assim, nas idéias de Vygotsky e de
seus colaboradores, você poderá sentir a influência da teoria de Marx,
pois eles compreendem o indivíduo vinculado ao seu contexto histórico,
construído dialeticamente na interação com o meio social.

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Segundo OLIVEIRA (1993, p.23), há três pilares básicos que são centrais no pensamento de
Vygotsky:
• As funções psicológicas têm um suporte biológico, pois são produtos da atividade cerebral.
• O funcionamento psicológico fundamenta-se nas relações sociais entre o indivíduo e o mundo exterior,
as quais se desenvolvem num processo histórico.
• A relação homem/mundo é uma relação mediada por sistemas simbólicos.

O processo de internalização da cultura pelo sujeito


Vygotsky considera que os processos psicológicos superiores são
tipicamente humanos, ou seja, diferem de processos elementares que
são compartilhados com outras espécies animais.
Enquanto os processos psicológicos elementares - reflexos,
reações automáticas, associações estímulo-resposta - são regulados por
mecanismos biológicos, seguindo uma linha de desenvolvimento natural,
os processos psicológicos superiores são produzidos por uma linha de
desenvolvimento cultural, a partir da internalização de práticas históricas
e sociais, sob a base das operações com signos.
Os processos psicológicos superiores consistem, assim, em ações
conscientes e controladas, atenção voluntária, pensamento abstrato,
memória ativa e comportamento deliberado. Para o desenvolvimento dos
processos superiores, a existência de processos elementares é condição
necessária, mas não suficiente.
A compreensão da origem social e histórica das funções superiores
passa pela compreensão de que o social é eminentemente constitutivo do
desenvolvimento humano e não um mero coadjuvante ou um incidente do
processo. Portanto, as funções psicológicas superiores emergem a partir
da interação da criança com membros mais experientes da cultura.
Nesse sentido, podemos dizer que as forças natural e cultural atuam
como co-formantes dos processos psicológicos, operando em dupla e
penetrando uma na outra (BAQUERO, 1998).
Então, você pode observar que Vygotsky não separa o orgânico do
social, mas destaca a apropriação ativa que a criança faz da cultura de
seu grupo.

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O processo pelo qual Vygotsky explica a apropriação ativa da cultura
é o processo de internalização. Para Vygotsky,
os fatores
orgânicos têm
preponderância
apenas no
início da vida
da criança;
ao longo do
Veja como ele explica o processo de internalização: desenvolvimento,
O processo de internalização envolve transformações. Vygotsky (1989) citou as seguintes: são as interações
- uma operação que inicialmente representa uma atividade externa é reconstruída e começa a ocorrer socioculturais que
interferem mais.
internamente;
- um processo interpessoal (entre pessoas/ interpsicológico/ social) é transformado num processo
intrapessoal (no interior da pessoa/ intrapsicológico/ individual);
- tais transformações são produzidas mediante uma série de eventos ao longo do desenvolvimento e,
mesmo sendo transformado, o processo continua a existir e a mudar por um longo período, antes de se
dar a interiorização definitiva.

A internalização das funções psicológicas supõe que o processo de


desenvolvimento do homem é marcado por sua inserção cultural. Toma,
portanto, a direção de “fora para dentro”, ou seja, ocorre a partir das ações
externas que o indivíduo realiza, as quais são interpretadas por outras
pessoas da cultura que estão ao seu redor e que atribuem a essas ações
certos significados culturalmente produzidos. É por isso que a interação
entre sujeitos tem um papel fundamental na abordagem de Vygotsky,
pois através das relações interpessoais, internalizamos formas culturais
de comportamento e de funcionamento psicológico.
É importante dizer que a internalização não se constitui um
processo passivo, ou seja, não pode ser reduzida a uma cópia do mundo
exterior. Na verdade, a internalização é um processo bastante complexo,
a ponto de estudiosos da abordagem vygotskyana como Werstch (1988),
Baquero (1998) e Pino (2000) advertirem que não podemos interpretar
a internalização como uma simples reprodução de conteúdos externos
pela consciência. São palavras de Werstch (1988, p.83) a esse respeito:
“a internalização não é um processo de cópia da realidade externa em
um plano interior já existente; é mais, é um processo em cujo seio se
desenvolve um plano interno de consciência”.

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Veja o que dizem Davis e Oliveira (1990, p.50) sobre o papel da interação no desenvolvimento cognitivo
do sujeito:
... gradativamente, as interações sociais com adultos ou com
companheiros mais experientes governam o desenvolvimento
e o próprio comportamento da criança.
A forma como a fala é utilizada na interação social com
adultos e colegas mais velhos desempenha, portanto, um
papel importante na formação e organização do pensamento
complexo e abstrato, em nível individual. Há uma interiorização
progressiva das direções verbais fornecidas à criança pelos
membros mais experientes disponíveis no ambiente social. À
medida que as crianças crescem, elas internalizam a ajuda
externa que vai-se tornando desnecessária. O pensamento
infantil, amplamente guiado pela fala e pelo comportamento dos
mais experientes, gradativamente adquire a capacidade de se
auto-regular. Por exemplo, quando a mãe mostra a uma criança
de dois anos um objeto e diz “a faca corta e dói”, o fato de ela
apontar para o objeto e de assim descrevê-lo provavelmente
provocará uma modificação na percepção e no conhecimento
da criança. O gesto e a fala maternos servem como sinais
externos que interferem no modo pelo qual o menino ou a
menina age sobre o seu ambiente.

SEÇÃO 2
A linguagem e seu papel na aprendizagem e
desenvolvimento

Para se relacionar com o mundo que o cerca, o ser humano conta,


a partir do momento em que nasce, com a mediação de outras pessoas.
Para Vygotsky (1989), o caminho do objeto até o aprendiz e deste até
o objeto passa através de outra pessoa, implicando que, pela mediação
do outro, a criança, desde cedo, aproprie-se dos significados socialmente
construídos na cultura.
Os sistemas
Segundo Vygotsky, a idéia de mediação torna mais complexa a
mediadores possuem
uma natureza relação do indivíduo com o mundo, supondo sistemas que se interpõem
semiótica, o que
entre um e outro, no interior de interações e intercomunicações sociais.
quer dizer que são
sistemas dotados Para compreender melhor o papel que os sistemas mediadores
de significações
desempenham no processo de desenvolvimento humano, Vygotsky partiu
produzidas pelos
grupos sociais dos do conceito marxista de trabalho, concebendo que o trabalho implica a
quais o indivíduo
ação transformadora do homem sobre a natureza para dominá-la, ou
participa.
seja, para fazer com que sirva aos seus próprios propósitos (OLIVEIRA,

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1993). Foi para ampliar suas possibilidades de interferir na natureza que
o homem criou os instrumentos ou ferramentas de trabalho.

A partir dessa perspectiva, Vygotsky distinguiu funções diferentes para os instrumentos e os signos.
Vejamos suas palavras (1989, p.62) a esse respeito:
A função do instrumento é servir como um condutor da
influência humana sobre o objeto da atividade; ele é orientado
externamente; deve necessariamente levar a mudanças
nos objetos; constitui um meio pelo qual a atividade humana
externa é dirigida para o controle e domínio da natureza;
o signo, por outro lado, não modifica em nada o objeto da
operação psicológica; constitui um meio da atividade interna
dirigido para o controle do próprio indivíduo; o signo é orientado
internamente.

Vemos, então, que, para Vygotsky, os signos são análogos aos


instrumentos ou ferramentas de trabalho, pois desempenham o mesmo
papel de transformação na natureza. Porém ele os caracteriza como
instrumentos psicológicos, uma vez que são criações da cultura humana
que se dirigem para o mundo interno do próprio homem, como meio
auxiliar na resolução de problemas.
Utilizamos os signos para trazer de volta, ou tornar presente
alguma coisa, no plano mental. Assim, valemo-nos de símbolos, palavras,

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gestos, desenhos que nos lembram algo. Por exemplo: anotar aniversários
ou compromissos em agendas, fazer lista de compras, executar uma
melodia seguindo uma partitura, virar o relógio para lembrar de fazer
uma atividade, desenhar o projeto de uma casa, etc.
Originalmente, os signos surgiram como marcas exteriores
utilizadas pelos homens para controlar a memória e a atenção, funcionando
como representações da realidade referidas a pessoas, coisas e situações
ausentes no espaço e no tempo. Muito antes da existência dos sistemas
de numeração, por exemplo, os homens primitivos já representavam
quantidades através de pequenos riscos no chão ou nas paredes de grutas,
ou nós em cordas, de modo que podiam recuperar, sem se perder, quantos
animais ou quantos feixes de trigo possuíam para trocar com outros
homens. Essas marcas exteriores exerciam a função de representação das
coisas existentes na realidade, de modo a auxiliar a memória, sempre que
necessário.

O processo de
mediação através de Ao longo da evolução histórica do homem, como também ao longo
signos possibilitou ao
homem controlar e do desenvolvimento ontogenético de cada um de nós, ocorrem, então,
dominar o seu próprio duas mudanças qualitativas quanto ao uso de signos: 1º) através da
comportamento,
tornando a atividade internalização, as marcas externas vão se transformando em signos
psicológica muito internos, isto é, em representações mentais da realidade exterior;
mais sofisticada, pois
os sinais exteriores 2º) desenvolvem-se sistemas simbólicos (organização dos signos em
forneceram um suporte estruturas complexas e articuladas) (OLIVEIRA, 1993).
concreto para sua
relação com o mundo. Entre os sistemas simbólicos, a linguagem figura como forma básica

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de os grupos humanos se comunicarem e aprimorarem as interações
sociais. A mediação da linguagem possibilita, aos novos indivíduos de
um dado grupo social, a apropriação, desde cedo, das formas de perceber
e organizar o mundo, como um filtro interposto entre o homem e a
realidade. Tal fato significa que a linguagem não tem apenas a função
de comunicar nossos pensamentos, sentimentos e desejos. Ela também
carrega uma outra função que é a de servir para o domínio de si como
reguladora da própria conduta.

Palangana (2000, p.28-29) explicita o papel da linguagem do ponto de vista vygotskyano.


Preste bastante atenção:
A linguagem encerra em si o saber, os valores, as normas de
conduta, as experiências organizadas pelos antepassados,
por isso participa diretamente no processo de formação do
psiquismo desde o nascimento. Ao nomear os objetos, explicitar
suas funções, estabelecer relações e associações, o adulto
cria, na criança, formas de reflexão sobre a realidade. Está-se
destacando a intercomunicação como fundamental não apenas
na apreensão do conteúdo, mas igualmente na constituição
do afetivo, do emocional, da cognição. Sim, pois a palavra,
mais especificamente o significado, contém determinadas
possibilidades de conduta, em especial de operações mentais
cristalizadas. Ela é, nesse sentido, generalização e síntese
de representações que os homens fazem do real. Quando a
criança, pela intervenção de pessoas, toma para si significados
socialmente construídos, junto com eles incorpora e desenvolve
uma qualidade de percepção, de memória e atenção, de
raciocínio e abstração, dentre outras capacidades presentes
no mundo moderno. Daí a razão para se afirmar que a prática
conjunta e nela a mediação dos signos e significados (re)criam
a atividade psíquica – uma conquista do coletivo – em cada
novo membro da espécie.

Mediante o exposto, você pode concluir que a mediação dos signos


modifica as formas de agir, pensar, sentir e querer. Através dos signos,
os sujeitos adquirem controle do próprio comportamento a partir dos
significados compartilhados na cultura, tornando seu, ao mesmo tempo
em que (re)cria, o mundo à sua volta.

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Quando a criança passa a utilizar a


fala e os signos (amarrar um cordão no dedo
para lembrar de algo ou usar um código para
trazer idéias), produz-se uma modificação
em suas funções psicológicas superiores.
Se a fala e os signos são incorporados a
qualquer ação, esta ação se transforma e se
organiza de forma totalmente nova.

A Zona de Desenvolvimento Proximal


Em Vygotsky, a interação entre sujeito e objeto de conhecimento
passa pela mediação de outras pessoas. O conceito que explica a influência
da mediação no desenvolvimento do indivíduo é o conceito de Zona de
Desenvolvimento Proximal. Então, vejamos.

Vygotsky (1989, p.97) concebeu a zona de desenvolvimento proximal


como: a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se
costuma determinar através da solução independente de problemas, e
o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução
de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com
companheiros mais capazes.

O nível de desenvolvimento real caracteriza o desenvolvimento


retrospectivamente, referindo-se às funções mentais já amadurecidas.
As funções do nível real pertencem, então, ao domínio daquilo que
o indivíduo controla e consegue resolver de maneira autônoma,
independente. A zona de desenvolvimento proximal define funções que
ainda não amadureceram, não se completaram, mas estão em processo,
em estado embrionário. A essas funções Vygotsky chamou de “brotos” ou
“flores” do desenvolvimento.
As funções que pertencem à zona de desenvolvimento proximal
podem ser verificadas pela necessidade de ajuda ou de apoio que o
indivíduo tem para resolver problemas a elas afetos. Contando com um
suporte mediador adequado e suficiente, as funções que hoje estão na

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zona de desenvolvimento proximal vão se consolidar, transformando-se
em funções reais que, de ora em diante, já não mais exigem a ajuda de
outras pessoas para a resolução de problemas.
Vemos, portanto, que a zona proximal é um domínio psicológico A mediação que
propicia um bom
dinâmico, em constante transformação, em face da mediação de pessoas aprendizado
propicia também
mais experientes. Esta maneira de conceber o desenvolvimento remete, a ampliação do
desenvolvimento
pois, à importância significativa dos mediadores no desenvolvimento real do sujeito,
individual. Como diz Oliveira (1993, p.60): “É como se um processo do domínio das
funções mentais,
de desenvolvimento progredisse mais lentamente que o processo de ao mesmo
tempo em que
aprendizado; o aprendizado desperta processos de desenvolvimento que, lhe abre novas
possibilidades ou
aos poucos, vão tornar-se parte das funções psicológicas consolidadas do novas zonas de
desenvolvimento
indivíduo.” proximal.
A concepção vygotskyana coloca, portanto, o aprendizado “na
frente” do processo de desenvolvimento, exercendo o papel de puxá-lo, de
fazê-lo acontecer. Ora, a implicação pedagógica dessa concepção, como
vemos, é imediata, pois remete à importância que a escolarização tem
na vida dos indivíduos, supondo que os professores, como mediadores,
devem propiciar os suportes concretos e a interferência adequada para
que os alunos transformem as funções mentais que hoje estão na zona
proximal em funções consolidadas, adquirindo, assim, autonomia.

Vygotsky disse que o único bom ensino é aquele que se adianta


ao desenvolvimento. Com esta afirmação, ele valorizou sobremaneira
a intervenção pedagógica: as instruções dadas pelos professores, as
demonstrações, a assistência oferecida aos alunos na resolução de
problemas, o fornecimentos de pistas e indicativos. Para ele, o que o
sujeito consegue fazer com a ajuda de alguém, amanhã ele fará por si

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só.
De acordo com Fontana e Cruz (1998, p.64), a zona de
“desenvolvimento proximal como desenvolvimento em elaboração
possibilita a participação do adulto no processo de aprendizagem da
criança. Para consolidar e dominar autonomamente as atividades e
operações culturais, a criança necessita da mediação do outro”. Essas
autoras consideram que o simples contato que o aluno tem com o
objeto de conhecimento não garante a aprendizagem, nem promove o
desenvolvimento. Há necessidade da intervenção do professor, de forma
questionadora, desafiadora, intencional e planejada. É desse modo que
o aluno pode organizar, ressignificar tudo aquilo que está aprendendo
e desenvolvendo. Em suma, a participação do professor no processo de
ensino e aprendizagem é fundamental, numa conduta de parceria, dando
assistência, orientando e instruindo o aluno de maneira sistemática e
constante.
De tudo o que vimos, cabe destacar que a escola, os professores,
os membros mais experientes da cultura, assim como todo tipo de
ambiente de aprendizagem, têm um papel fundamental na promoção do
desenvolvimento psicológico dos indivíduos.

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SEÇÃO 3
A formação de conceitos

A matéria-prima do trabalho docente é o que chamamos de


“conceito”. No dicionário, a expressão conceito corresponde à formulação
de uma idéia por meio de palavras, quer dizer, uma definição. Os conceitos
não nascem prontos em nossas mentes, nem ficam armazenados nela, no
dizer de Vygotsky, “como um saco armazena ervilhas”. Pelo contrário, os
novos conceitos são formados como resultado de um processo gradativo
de elaboração em que contam a experiência do sujeito no mundo e a
inter-relação de um novo conceito com outros conceitos formados
anteriormente. Vejamos este processo com mais detalhes.

CARACTERIZAÇÃO DO PROCESSO DE FORMAÇÃO DE CONCEITOS


• é um processo gradativo que ocorre ao longo das experiências do sujeito no mundo;
• é um processo mediado pelos sistemas simbólicos desenvolvidos pelo grupo cultural a que a criança
pertence;
• é um processo diretamente relacionado com a linguagem e a interação social;
• é um processo que supõe inter-relações entre conceitos novos e conceitos formados anteriormente;
• dá-se através da palavra, no entanto a palavra não se restringe ao conceito. Não há uma relação
direta/ linear entre palavra e conceito. Por causa das diferentes experiências culturais e pessoais muitas
vezes uma mesma palavra pode expressar idéias ou conceitos diferentes.

O papel da linguagem na formação dos conceitos


Segundo Vygotsky, a linguagem tem para nós duas funções básicas:
a de intercâmbio social e a de pensamento generalizante. A função de
intercâmbio social serve ao propósito de comunicação entre os indivíduos;
a função de pensamento generalizante serve como instrumento do
pensamento porque através da linguagem é que nós ordenamos a nossa
realidade. Dito de outro jeito, a linguagem na função de pensamento
generalizante simplifica e generaliza a experiência, dando uma ordem
às instâncias do mundo real através de categorias conceituais cujo
significado é compartilhado pelos usuários dessa linguagem.
Desse modo, quando utilizamos a linguagem para nomear um
objeto, estamos na verdade classificando esse objeto numa categoria,
numa classe de objetos que possuem certos atributos em comum. Por
exemplo: eu só posso chamar um objeto ou uma figura de “triângulo”
se esse objeto ou essa figura tiver três lados formando três ângulos. Esse

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conceito de “triângulo” independe da cor, do tamanho ou do tipo de


material presente no objeto.
O valor que Vygotsky atribuiu à linguagem na formação de conceitos
pode ser constatado nas seguintes palavras:
A formação de conceitos, pelo fato de estar relacionada à linguagem
e à interação social, não ocorre de uma maneira linear. Vygotsky observou
isso em seus estudos enfatizando que as crianças muitas vezes parecem

A formação de conceitos é o resultado de


uma atividade complexa, em que todas as
funções intelectuais básicas tomam parte, no
entanto o processo não pode ser reduzido à
associação, à atenção, à formação de imagens,
à interferência ou às tendências dominantes.
Todas são indispensáveis, porém insuficientes
sem o uso de signos, ou palavras, como o meio
pelo qual conduzimos nossas operações mentais,
controlamos o seu curso e as canalizamos em
direção à solução do problema que enfrentamos.
(VYGOTSKY, 1988, p.50).

dominar alguns conceitos quando fazem uso deles de modo semelhante


ao uso que o adulto faz. Entretanto, muitas vezes as crianças não têm
domínio destes conceitos.

Leia o episódio e reflita sobre ele:


A professora escreve na lousa “a mamãe afia a faca” e pede para uma criança ler. A criança lê
corretamente. Um adulto pergunta à criança:
- Quem é a mamãe?
- É a minha mamãe, né?
- E o que é afia?
A criança pensa, hesita e responde:
- Sou eu, porque ela (a mamãe) diz: “- vem cá minha fia”.
A professora desconcertada, intervém:
- Não, afia é amola a faca!

(A criança na fase inicial da escrita. Ana L. B. Smolka. São Paulo: Cortez; Campinas: Ed. da Unicamp,
1988.)

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No referencial vygotskyano diz-se que a mediação é SEMIÓTICA –
ou seja, embora se dê pela participação de um outro na relação, ela acontece
através da palavra – a qual é carregada de significados culturalmente
constituídos. É através das mediações que as pessoas mais experientes
do ambiente da criança lhe ensinam os nomes dos objetos, a utilidade
das coisas, os significados de certos comportamentos.
Vamos analisar alguns exemplos de situações que aparecem
numa pesquisa de Mestrado feita por Mônica Salles Gentil, da FE/
UNICAMP, Campinas, 1997. Neles podemos perceber como as palavras
vão funcionando numa rede de significações, na qual as noções vão se
constituindo a partir de indicadores dados no processo de mediação e na
própria vivência das palavras.

EXEMPLO 1: Numa classe de pré-escola


FELIPE: - Amanhã aconteceu uma coisa estranha...
Marina Z: - Amanhã?
FELIPE: - Amanhã aconteceu...
Guilherme: - Amanhã ainda não aconteceu.
Marina Z: - Amanhã, não. Ontem.
FELIPE: Ontem aconteceu uma coisa estranha, ficou tudo cheio de
poeira.

EXEMPLO 2: Na mesma classe


Marina M.: - Sabe por que eu cheguei atrasada, hoje?
Professora: - Não. Por quê?
Marina M: Porque meu pai chegou em cima da hora. Ele esqueceu
que ele é que tinha que trazer a gente.
André: - Em cima da hora? O que é isso? Ele estava em cima? (e faz
um gesto levantando a mão à frente do rosto)
Bruno: - Não, André. Chegou em cima da hora.
Criança 1: - É que chegou atrasado.
Criança 2: - Chegou tarde!
Professora: Calma. Quem sabe explicar pro André o que é em cima
da hora?
Crianças: - Eu sei!

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Professora: - Fale Marina Z.


Marina Z: É que chegou depois.
Professora: Não, não é isso.
Bruno: Chegou tarde.
Professora: - Não. Você sabe Marina M?
Marina M: - Sei. É quando chega e o portão está fechando, mas dá
pra entrar.
Professora: - André, em cima da hora é quando você chega na hora
quase certinha que combinou. Quando você vem para a escola, se você
chega depois da 1 hora, chega atrasado; se chega ao meio dia, como
o Felipe, chega antes, adiantado; e se você chega à 1 hora, chega em
cima da hora.

(em cima: marco espacial / serve para localização; hora: marco temporal / não
existe fisicamente)

A criança, em seu processo de elaboração conceitual, passa por


momentos diferentes em que a generalização e a abstração vão se
confirmando ou consolidando e, conseqüentemente, modificando as
palavras usadas, a partir das interações estabelecidas com o outro. O
próprio Vygotsky dizia que, em qualquer idade, um conceito expresso por
uma palavra representa um ato de generalização, mas é preciso considerar
que os significados das palavras evoluem. Quando uma palavra nova é
aprendida pela criança, tem-se um ato de generalização primitivo; mas,
na medida em que há o desenvolvimento intelectual, a criança vai se
tornando capaz de fazer generalizações cada vez mais elaboradas, mais
sofisticadas. Esse processo é de formação de conceitos.

O percurso da formação de conceitos


Vygotsky reconheceu três grandes momentos no percurso da
formação dos conceitos.
1º) A fase dos conjuntos sincréticos – na qual o significado
de uma palavra denota o que Vygotsky chamou de “amontoado” ou
“conglomerado” vago. O sujeito utiliza uma palavra para referir-se a objetos
desiguais, agrupados sem que haja um fundamento, um nexo, porque
está se baseando em suas próprias impressões, conforme as imagens se

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aglutinam em sua mente. Então, designa-se um objeto, dando a ele um
nome, muitas vezes pelo acaso, outras vezes porque existe proximidade
espacial (um objeto está perto de outro) e outras vezes mesmo porque
está apenas experimentando, num processo de ensaio e erro.
2º) A fase do pensamento por complexos – Aqui já é uma fase mais
adiantada. No complexo, os objetos associam-se na mente do sujeito não
apenas por causa de suas impressões subjetivas, mas devido às relações
que de fato existem entre esses objetos. Vygotsky diz que o pensamento
por complexos é como se o sujeito agrupasse os objetos em famílias.
No pensamento por complexos, as palavras tendem a referir-se aos
objetos e seus contextos reais, quer dizer, as ligações são factuais, isto é,
concretas. Qualquer nova ligação que aparecer na realidade pode levar a
criança a incluir um objeto dentro de uma dada categoria. Um exemplo de
pensamento por complexos é analisado por FONTANA (1996). A autora
mostra a professora trabalhando com o conceito de cultura, depois de
uma visita dos alunos ao museu. O complexo fica caracterizado neste caso
porque o conceito de cultura aparece estreitamente ligado ao contexto da
visita ao museu. Então, tendo a professora perguntado para os alunos o
que é cultura, apareceram respostas assim:
Car: - “Cultura é coisa de museu.”
Zil. – “é coisa que a gente olha, mas não pode pôr a mão” (regra do
museu).
Leo. – “é umas coisas muito velha.”
Osv. - “É coisa que se põe a mão cai de tão velha que ta.”
Algumas crianças simplesmente repetiram frases que ouviram da
coordenadora do museu:
“Cultura é criatividade.”
“Cultura é coisa que deve ser preservada.”

3º) A fase dos conceitos propriamente ditos: A principal diferença


entre os complexos e os conceitos propriamente ditos está no tipo de ligação
entre os elementos. Nos conceitos os elementos são agrupados de acordo
com um atributo; nos complexos podem existir tantas ligações quantos
forem os contatos que realmente existem entre os elementos. Para formar
os conceitos propriamente ditos, não basta unir elementos, será preciso
abstraí-los, isolá-los, examiná-los de modo separado da experiência

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imediata. Assim, a formação de conceitos requer duas operações mentais:


a análise e a síntese, ou seja, um movimento de vai e volta do geral para o
particular e do particular para o geral. Por exemplo: a criança só chegará ao
verdadeiro conceito de cão quando souber distingui-lo de outros animais,
dos vegetais, através de uma definição que sirva para as características
de todos os cães.

O papel da ecolarização na formação dos conceitos científicos

As três fases que foram apresentadas referem-se à trajetória espontânea de formação de


conceitos, isto é, aquela que ocorre através da atividade prática da criança e de suas interações sociais
no meio em que vive – ou seja, o processo espontâneo de formação de conceitos é um processo que
deriva da experiência pessoal da criança em seu cotidiano. No entanto, é interessante verificarmos que
Vygotsky distinguiu os conceitos espontâneos/ cotidianos, que advêm da experiência pessoal, daqueles
conceitos que são adquiridos por interferência da escolarização. Estes últimos, Vygotsky denominou de
“conceitos científicos”.

Os conceitos espontâneos/ cotidianos originam-se da experiência


pessoal, prática, diária da criança e são impregnados dessa experiência
pessoal.
Os conceitos científicos originam-se da interferência da escola, são
conceitos induzidos pela ação pedagógica, são adquiridos por meio do
ensino, como parte de um sistema organizado de conhecimentos, mesmo
porque a escola, nas sociedades letradas, trabalha com o conhecimento
sistematizado pela humanidade. Uma coisa é a criança adquirir o conceito
de cão na vivência com o seu cãozinho em casa. Claro que ela vai descobrir
que o cão late, que tem pêlos, que é quentinho, que gera seus filhotes na
barriga e seus filhotes mamam. Outra coisa será aprender na escola que
o cão é um animal “mamífero”, “homotérmico”, “vivíparo”, etc.
Então, a aquisição de conceitos de modo espontâneo não é igual
à aquisição de conceitos por interferência científica na escola. Vygotsky
tinha isso bem claro, tanto é que disse claramente:
A mente se defronta com problemas diferentes
quando assimila os conceitos na escola e quando
é entregue aos seus próprios recursos. Quando
transmitimos à criança um conhecimento
sistemático, ensinamos-lhe muitas coisas que
ela não pode ver ou vivenciar diretamente.
(VYGOTSKY, 1989, p.74).

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Psicologia da Educação
Quer dizer, na escola, mesmo a criança que não tem um cão ou
nunca viu um cão pode adquirir a idéia de cão através da interferência
dos conceitos científicos.
Para Vygotsky, o aprendizado de conceitos científicos na escola
é uma força poderosa no desenvolvimento infantil, que determina
o destino do desenvolvimento mental do aluno. Mas, para que isto
aconteça, deve haver uma inter-relação entre os conceitos espontâneos e
os conceitos científicos. Quer dizer, o desenvolvimento de um deve buscar
o desenvolvimento de outro.

Este ponto é muito importante para nós professores porque nos mostra que não devemos
separar a experiência da criança, as coisas que ela já conhece do seu cotidiano, de sua experiência
cultural e pessoal, dos novos conceitos que trabalhamos com ela na escola. Para que possamos atuar
no processo de formação de conceitos científicos de modo bem sucedido, precisamos compreender o
seguinte:
a) Os conceitos espontâneos são ricos de experiência pessoal, por isso são mais concretos.
No entanto, mesmo já tendo o conceito, o sujeito pode não ter consciência dele, nem saber utilizá-lo
de forma deliberada. Os conceitos espontâneos não estão organizados num sistema hierárquico na
mente. Vygotsky diz: “Ao operar com conceitos espontâneos, a criança não está consciente deles,
pois sua atenção está sempre centrada no objeto ao qual o conceito se refere, nunca no próprio ato de
pensamento.” (VYGOTSKY, 1989, p.79)
b) Os conceitos científicos são transmitidos em situações formais, portanto precisam ser
mediados face ao caráter abstrato do objeto. Desenvolvem-se a partir de definições verbais, não-
espontâneas.
c) O desenvolvimento dos conceitos espontâneos é ascendente, enquanto o desenvolvimento
dos conceitos científicos é descendente. Apesar disto, os dois processos são inter-relacionados.

Veja o que diz Vygotsky (Id. Ibidem, p.93-94):

Ao forçar a sua lenta trajetória para cima, um


conceito cotidiano abre o caminho para um conceito
científico e o seu desenvolvimento descendente.
Cria uma série de estruturas necessárias para
a evolução dos aspectos mais primitivos e
elementares de um conceito que lhe dão corpo e
vitalidade. Os conceitos científicos, por sua vez,
fornecem estruturas para o desenvolvimento
ascendente dos conceitos espontâneos da criança
em relação à consciência e ao uso deliberado. Os
conceitos científicos desenvolvem-se para baixo
por meio dos conceitos espontâneos; os conceitos
espontâneos desenvolvem-se para cima por meio
dos conceitos científicos.

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Universidade Aberta do Brasil

A concepção de Vygotsky acerca do desenvolvimento dos conceitos


científicos mostra-nos que:
a) a escola tem uma importância capital no desenvolvimento
humano pois a intervenção pedagógica provoca avanços que não
ocorreriam espontaneamente – a instrução deliberada que ocorre na
escola é fundamental na construção de processos psicológicos superiores
nos indivíduos;
b) os membros de grupos culturais que não dispõem da ciência, da
sistematização do conhecimento, funcionam intelectualmente com base
em conceitos espontâneos gerados em situações concretas, pessoais.
c) vida e escola não precisam ser instâncias incomunicáveis. É
importante que o processo de elaboração conceitual que decorre da vida
diária não se separe do processo de elaboração científica propiciado pela
escola. Os dois tipos de conceitos devem procurar-se, devem retroagir
um sobre o outro para produzir um processo de aprendizagem que seja
significativo e reflexivo.

Sugerimos para leitura:


“Formação Social da Mente”, “Pensamento e Linguagem” do próprio Lev S. Vygotsky, “Linguagem,
Desenvolvimento e Aprendizagem” de Vygotsky et al.; “Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento, um
processo sócio-histórico, de Marta Kohl de Oliveira e “Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural”, de
Teresa Cristina Rego.

Para refletir sobre a importância da mediação, recomendamos que você assista aos filmes: “O enigma
de Kaspar Hauser”, direção de Werner Herzog e “Mister Holland, meu adorável professor”, de Richard
Dreyfus.
Há também um documentário intitulado “As borboletas de Zagorski”, série “Os transformadores”, da TV
Cultura de São Paulo.

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