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Resumo:
No âmbito da ficção o filme Narradores de Javé (CAFFÉ, 2004) tem como enredo a
escrita da história de uma pequena cidade fictícia, que será submersa pelas águas de uma
represa, sem a notificação prévia, ou mesmo indenização dos seus habitantes, pois estes não
possuem documentos que comprovem seu direito às terras. Inconformados, descobrem que o
local poderia ser preservado se tivesse um patrimônio histórico de valor comprovado e
documentado.
Esta solução mobiliza os moradores na invenção de narrativas que insiram a cidade na
história. O projeto terá como primeiro obstáculo o analfabetismo dos habitantes, restando ao
único homem letrado de Javé, o carteiro Antônio Biá, a missão desta escrita. O filme se
sucede com a busca desses sujeitos por conciliar a urgência por uma história plausível e
relevante sobre a cidade e a vontade de cada pessoa por inserir seu nome na história a ser
contada.
Através de suas metáforas, o filme nos faz pensar sobre as negociações entre
memórias de sujeitos, memórias de grupos e também sobre memórias de sujeitos como
memórias de grupos. Neste sentido, cabe retomamos as contribuições de Maurice Halbwachs
(1990), para quem a memória é sempre uma construção social, erigida no presente, em
referência ao grupo social, pessoas, lugares, objetos e outros signos de nossa experiência,
jamais apenas uma faculdade individual, elucidando ainda que a construção de memórias é
sempre intencional.
No embate entre produções de memórias individuais e coletivas, não são poucas as
relações entre os moradores da fictícia Javé e alguns dos diferentes grupos de habitantes do
bairro do Coque1. Nas disputas cotidianas pela cidade, pela vida, por moradia e pelo direito a
outras representações, o bairro popularmente conhecido como o mais violento e um dos mais
pobres do Recife2 foi reconhecido em 2009 pelo Programa Pontos de Memória 3 do Instituto
Brasileiro de Museus (IBRAM), não por critérios de herança cultural, ancestralidade ou
relevância para a história da cidade, mas por figurar entre os menores Índices de
Desenvolvimento Humano do Município (IDH-M), conforme metodologia deste programa.
Se conforme Chaumier (2014, p. 275) os museus têm por função unir o corpo social
através da comunidade reunida em torno de tesouros em comum. Tendo como base território e
coleção, e mesmo quando rompem com sua versão tradicional, seus discursos demandam a
afirmação de conjuntos de objetos, práticas, afetos e/ou saberes destinados à coesão social. É
neste sentido que indagamos: como pensar um museu a partir de grupos que dividem o
mesmo espaço, sem impor ou forjar uma ideia homogênea de comunidade?
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Conhecimento e valorização da memória local; Fortalecimento das tradições locais, da identidade e dos laços de
pertencimento; Valorização do potencial local, impulso ao turismo e à economia local; Desenvolvimento
sustentável das localidades; Melhoria da qualidade de vida, com redução da pobreza e da violência.
(ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS IBERO-AMERICANOS)
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Tais objetivos podem ser lidos e problematizados a partir das análises sobre a emergência da “ideologia do
desenvolvimento” (YÚDICE, 2013), vigente desde o início da década de 1970, com o advento da ideia de
“cultura como recurso” (YÚDICE, 2013) e elemento catalisador do desenvolvimento humano. Segundo Lima
(2014), esta perspectiva se tornou majoritária no campo dos museus, contribuindo significativamente na
determinação dos rumos das políticas para o setor no Brasil.
Ao dialogar com Halbwachs, mas indo além de suas perspectivas, Michel Pollack
(1989) amplia os debates sobre memória, compreendendo-a como resultante de disputas
sociais e culturais sobre os significados do passado. Para este autor, as “batalhas pela
memória”, são empreendidas através de lutas simbólicas contra o silenciamento, por
visibilidade e pela instituição de versões do passado. É neste sentido que ele reflete sobre a
coexistência de discursos oficiais, com outras narrativas e entendimentos sobre os fatos
transcorridos. Por esta perspectiva, as memórias que não aspiram [ou não logram] tornar-se
parte do discurso oficial passam a ser transmitidas e preservadas em circuitos privados, ou
seja, através de redes de sociabilidade afetivas, como amigos, vizinhos, famílias, pequenos
grupos, associações e partidos políticos.
A esfera pública tal qual proposta por Habermas – como um “espaço” onde a
participação política se dá por intermédio da fala; uma arena institucionalizada de interações
discursivas distinta do Estado e que possibilita a produção e a circulação de discursos livres
que podem, inclusive, ser críticos ao Estado – é analisada por Nancy Fraser (1992). A autora
pondera que o conceito, conforme formulado pelo filósofo, vislumbra um espaço aberto e
acessível para todos, afirmando ainda que a interação discursiva inerente à essa proposta de
esfera pública é marcada por protocolos de estilo definidos por diferenças de status social, por
barreiras informais que persistem e que mesmo quando todos estão formal e legalmente aptos
a participar do debate, a participação política de grupos minoritários não está garantida.
Por sua vez, os grupos minoritários podem não encontrar os meios necessários para
expressar suas idéias e demandas nos meios deliberativos, fazendo com que a opinião dos
grupos dominantes prevaleça de modo a parecer universal. Algo que ocorre devido à
existência de uma única esfera pública, que se pretende acessível a todos os grupos,
desconsiderando suas condições sociais. Neste sentido, os membros de grupos minoritários
são impelidos a constituir espaços alternativos de deliberação, arenas discursivas onde seja
possível inventar e circular contradiscursos.
Tais espaços foram nomeados por Fraser (1992) de “contrapúblicos subalternos”, uma
vez que permitiriam aos grupos formularem interpretações dos assuntos públicos levando em
consideração suas identidades, interesses, necessidades. Porém, conforme a autora, não é por
emergir de grupos minoritários que
É neste sentido que, mais do que aspirar aos traços formais e oficiais da ideia de
museu, o que está em questão no Museu da Beira da Linha do Coque é a perseguição do “[...]
rastro da possibilidade de um cruzamento de subjetividades individuais em um compartilhado
empreendimento de patrimonialização, de fabricação das memórias coletivas” (BARRETO,
2014, p. 15). O que torna este museu, com suas estratégias de apropriação de saberes, fazeres
e procedimentos, uma demonstração de que existe uma diversidade que não está pronta para
ser catalogada, pois é criada e experimentada cotidianamente, nas negociações pelos lugares.
Experiência que insinua ainda que ao piratear o termo ponto de cultura, ao se afirmar
como museu, ao recorrer a novas e antigas estratégias de financiamento de projetos, ao expor
através de práticas ligadas ao imaginário do camelô e ao improvisar um conjunto de
entrevistas, os protagonistas deste projeto fundam uma museologia que mesmo na sua
informalidade, possibilita que pessoas e coletividades – ancestrais ou temporárias – se
utilizem e refaçam a noção de museu e de patrimônio cultural não para se perpetuar, mas
como licença para existir. Práticas que podem tanto reafirmar o caráter legitimador dos
museus, como indicar o acionamento de munição nas negociações por representação e
diversidade. Mas, que sobretudo, são índice da extrema dificuldade de alguns agentes por
operar a gramática disciplinadora e normativa das políticas culturais no âmbito dos museus e
dos patrimônios, por não corresponderem à critérios essencialistas (YÚDICE, 2016, p.13). O
que torna evidente, no âmbito dos museus, as lacunas, os limites e as restrições na garantia de
diversidade cultural.
Referências
BARRETO, Francisco Sá. Por uma política de intersubjetividade museal: elementos para uma
agenda de comunicação e museus. In: MUSAS – Revista Brasileira de Museus e
Museologia, n. 6, 2014.
FRASER, Nancy. Rethinking the Public Sphere: A contribution to the critique of actually
existing democracy. In: CALHOUN, Craig. (org. ). Habermas and the Public Sphere.
London: MIT Press, 1992.
SANTANA, Robson de. Cidade, Memória e Museologia Social: uma análise sobre a
relação entre espaço urbano, museus, museus comunitários e alternativas de resistência.
Monografia de Graduação, Departamento de Antropologia e Museologia, Universidade
Federal de Pernambuco, 2016. 51p.
________. Músicas Plebeyas. In: Memórias, saberes y redes de las culturas populares en
America Latina. Eds. Graciela Maglia & Leonor Hernandez Fox. Bogotá: Faculdad de
Ciencias Sociales y Humanas de la Universidad Externado de Colombia, 2015. pp. 94-139.
________. Aos leitores. In: Revista Observatório Itaú Cultural – n.20 (jan/jun2016) São
Paulo: Itaú Cultural.