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SOBRE POSIÇÕES INSTITUCIONAIS E SOBREPOSIÇÕES CULTURAIS: O

CURIOSO CASO DO CONJUNTO PAISAGÍSTICO DO SÍTIO DA TRINDADE

Grupo de Trabalho 11 - Museus e Cultura Política (1ª opção)

Grupo de Trabalho 12 - Museologia e patrimônio em espaços expandidos (2ª opção)

RESUMO: Esta pesquisa procura analisar o fenômeno da patrimonialização das cidades que
Henri Pierre Jeudy denominou de “Processo de Reflexividade”, e a partir desta análise, realiza
um estudo de caso onde procura entender quais os critérios utilizados pelo poder público
municipal, nesse caso específico a Prefeitura Municipal do Recife, para estipular a utilização de
um local, denominado Sítio da Trindade, localizado no bairro de Casa Amarela, tombado pelo
IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, pelo seu conjunto paisagístico,
para desenvolver neste espaço eventos culturais, indo de encontro ao objetivo do tombamento
de preservação, embora, por outro lado, as manifestações sejam específicas como memórias de
tradições, classificadas por Jeudy como transmissões de sentidos. O local, além do conjunto
paisagístico, abriga escavações arqueológicas do antigo Forte do Arraial do Bom Jesus, datado
de 1630. Além do antigo prédio onde funcionou a sede do Movimento de Cultura Popular
(MCP), criado na década de 1960, durante a primeira gestão de Miguel Arraes na Prefeitura do
Recife. Ocorre o que chamamos de sobreposição de camadas culturais: os eventos "populares"
culturais se sobrepõem às camadas inerentes ao local. A pesquisa traz esse problema para
discussão.

Palavras chaves: Maquinaria Patrimonial; Sítio da Trindade; Jeudy; Sobreposição de camadas


culturais; Cultura popular;

ABSTRACT: This research tries to analyze the phenomenon of patrimonialization of the cities
that Henri Pierre Jeudy called the "Process of Reflexivity", and from this analysis, it carries out
a case study where it tries to understand which criteria used by the municipal public power, in
this specific case The Municipality of Recife, to stipulate the use of a place, called Sítio da
Trindade, located in the neighborhood of Casa Amarela, listed by IPHAN, Institute of National
Historic and Artistic Patrimony, for its landscaping, to develop cultural, Going against the
objective of preservation, although, on the other hand, the manifestations are specific as
memories of traditions, classified by Jeudy as transmissions of meanings. The site, as well as
the landscaped complex, houses archaeological excavations of the old Fort of Arraial do Bom
Jesus, dating from 1630. In addition to the old building where the headquarters of the Popular
Culture Movement (MCP), created in the 1960s, during the first Management of Miguel Arraes
at the Recife City Hall. What we call the overlapping of cultural layers occurs: the "popular"
cultural events overlap the layers inherent to the place. Research brings this problem to the
discussion.

Keywords: Patrimonial Machinery; Sítio da Trindade; Jeudy; Overlay of cultural layers; Popular
culture;
INTRODUÇÃO

A preocupação com a preservação de patrimônios históricos, artísticos e


naturais, surgiu de longa data. Principalmente a partir do século XVII nos países
europeus. No Brasil constataram-se as primeiras manifestações a partir dos intelectuais
da década de 1920, e posteriormente com a política de ação cultural promovida durante
o governo de Getúlio Vargas. O grande marco ocorreu com a publicação do Decreto-Lei
25 de 1937, durante aquele governo. Inicialmente tendo como essencial e primordial
preocupação a preservação patrimonial, e o surgimento do SPHAN, Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. A partir desse fator político, herda-se essa
preocupação estatal com a preservação, considerando evidentemente que em outro
patamar no que se refere à democracia, em detrimento da preocupação inicial da
preservação arquitetônica, encontra-se hoje, outras visões do significado da preservação.
Entre essas se destaca a preocupação com a preservação das reservas naturais e dos
sítios paisagísticos.

Diante dessa nova perspectiva, procura-se compreender o comportamento do


Estado como organismo responsável pela determinação e preservação de bens públicos,
no caso específico, a Prefeitura da Cidade do Recife, responsável pela administração do
Conjunto Paisagístico do Sítio da Trindade. Segundo o Livro Histórico do IPHAN, este
conjunto foi tombado em 17 de junho de 1974, sob número 0487-T-53, inscrição 447,
Volume1, folhas 074. O tombamento de conjunto paisagístico obriga, por parte do
estado, a responsabilidade pela sua preservação. Assim determina a Constituição
Federal em seu Artigo 216.

Destaca-se outro aspecto de grande importância, no que diz respeito à presença


de uma escavação arqueológica dentro do espaço do Sítio da Trindade. Trata-se de
vestígios do antigo Forte Arraial Velho do Bom Jesus. Há uma placa indicativa e um
gradil que evita a entrada de pessoas no espaço. Diante desse fato buscam-se com o
presente artigo, também constatar e entender os procedimentos que estão sendo adotados
pelo órgão administrador com referência à salvaguarda desses vestígios.

O presente Artigo busca analisar por que o poder público, que estipula o
tombamento de um bem paisagístico, com o fim fundamental de preservá-lo, promove
ações artísticas que podem causar alguma degradação a esse patrimônio. Procura-se
compreender em primeiro lugar, a atuação do poder público, como promotor de festas
juninas, natalinas e outros eventos no local onde, de acordo com a legislação vigente,
isso não seria permitido, por outro lado, temos a necessidade de preservação de nossa
cultura, sendo contraditório a transformação de um local de preservação em um local
denominado como Centro de Difusão Cultural. Espera-se esclarecer essas duas
abordagens e identificar origens e possíveis soluções para esses problemas.

Os questionamentos desse artigo estarão baseados em quatro grandes eixos,


primeiramente a partir das teorias sobre Patrimônio e patrimonialização, em segundo
lugar as teorias sobre Políticas Culturais, depois as concepções entre bens patrimoniais
naturais e suas utilizações públicas e, finalmente a abordagem da Maquinaria
Patrimonial de Jeudy.

Apesar desse comportamento não ser considerado como uma ação local, como
ressalta Huyssen, embora o uso das memórias possa parecer um fenômeno global, no
seu cerne fazem parte de contextos específicos de territórios e nações. E, na medida em
que esses territórios e nações criam políticas democráticas e se deparam com as sombras
do passado marcado pela obscuridade de ditaduras militares, e governos totalitários,
essas nações têm como desafio “assegurar a legitimidade do futuro das suas políticas
emergentes, buscando maneiras de comemorar e avaliar os erros do passado”
(HUYSSEN, 2009). E ainda que debates sobre memória nacional incorram em temas
como genocídios, limpeza étnica, migração, direito das minorias, o autor reforça que é
preciso se perguntar como o Holocausto como lugar-comum da memória universal
traumática “reforça ou limita as práticas de memórias e lutas locais” (HUYSSEN,
2009), que para Huyssen deveriam ser pensadas e reavaliadas global e localmente.

Vive-se um momento de musealização do mundo (HUYSSEN, 2009), busca-se


entender por que guardar, o que guardar e como guardar. O individuo não guarda o que
quer guardar, mas o que a sociedade estipula o que ele deva guardar (POMIAN, 2000).
Segundo Pierre Nora (1993, p. 3), "há locais de memória porque não há mais meios de
memória".

Inicialmente guardavam-se objetos, originando-se os museus. A partir do final


dos anos 1960 inícios de 1970, novas concepções de patrimônio, ampliaram a noção da
guarda de objetos e do direcionamento social que se deva dar a eles. A perspectiva da
musealização sai das paredes de pedra e cal e vai buscar novas áreas no exterior, a partir
de monumentos, sejam históricos, artísticos e naturais.

O conceito de Patrimônio, etimologicamente, surge a partir do latim, refere-se a


tudo que pertencia ao pai, entre os romanos antigos (FUNARI & PELEGRINI), essa
concepção chega até nós de certa forma carregada pelo poder que caracteriza o Estado,
como pai de uma nação e tudo que esteja contido nela. Sendo o próprio Estado quem
estabelece a legalidade da posse, ele mesmo deu a si essa atribuição.

Jeudy problematiza a questão desse pêndulo existente entre a nossa obrigação de


não esquecer e a consequente criação de lugares de guarda de memória. Ele ressalta que
esse espírito patrimonial está substituindo a aventura da transmissão. Estamos mais
preocupados em guardar memórias do que produzir memórias. O que guardar, o que
tornar patrimônio, para Jeudy essa escolha está exacerbada, segundo ele “tudo é
transmissível”, essas estratégias de conservação é o que ele chama de “Processo de
Reflexividade” e segundo ainda esse autor, o conceito de patrimônio perpassa pelo o
que ele chama de “Reduplicação Museográfica do mundo”. A gestão patrimonial teria
como finalidade uma suposta vontade coletiva de reatualização permanente do passado,
segundo Jeudy o trabalho patrimonial seria uma constante reatualização.

No caso em estudo, o espaço denominado Sítio da Trindade ou Forte Arraial


Velho do Bom Jesus, sofre conseqüências dessa “patrimonialização” sob diversos
aspectos, que vão ser aqui apresentados e, ao mesmo tempo, torna-se um exemplo
singular do que denominamos mimetismo da reflexividade.

O SÍTIO DA TRINDADE

Situado no bairro de Casa Amarela, no Recife, o Sítio da Trindade representou


um espaço importante no período da invasão holandesa (1630 – 1654). Ali, naquela área
de terreno elevado, existiu o Forte Arraial do Bom Jesus, também chamado de Arraial
Velho, que foi construído em taipa de pilão pelo general Matias de Albuquerque, entre
1630 e 1635. O Forte funcionou como um foco de resistência contra os flamengos.
Estes bombardearam e tomaram o Forte no ano de 1635.
Logo após o surgimento do Arraial Velho, o exército montou o seu
acampamento nas redondezas, e uma população de cerca de mil pessoas, antigos
habitantes de Olinda - que abandonaram as suas casas durante a presença batava –
migraram para lá temerosos do que poderia vir a ocorrer. Dentre os residentes, por sua
vez, havia um elevado número de eclesiásticos – franciscanos, em particular – que no
Arraial erigiram um oratório, para celebrarem missas e empreenderam outros atos
religiosos.
Por outro lado, rapidamente também surgiram barracas com vivandeiros, que
montaram os seus negócios e, depois, erigiram estabelecimentos comerciais ao redor da
fortaleza. Aquele local, para os portugueses, representava um ponto estratégico no
sentido de impedir a entrada dos holandeses para o interior, rumo aos engenhos e às
plantações de cana-de-açúcar que, na época, representavam as maiores riquezas da
capitania de Pernambuco
 Com o aumento da população refugiada, e das crescentes dificuldades para se
receber os gêneros alimentícios, todos os bois, cavalos, cães, gatos, entre outros, foram
consumidos pelas pessoas famintas. Os especuladores aproveitaram a oportunidade e
elevaram tanto os preços dos alimentos que os soldados só podiam consumir uma
pequena porção de açúcar, uma espiga de milho e um pouco de farinha de mandioca,
por dia.
Há registros, inclusive, de que, por ordem do comandante – o capitão André
Marim - alguns comerciantes foram enforcados, uma vez comprovado o fato de que eles
estavam tirando proveito daquela situação. No entanto, em decorrência dos ataques
sofridos por parte dos inimigos, da falta de armamentos e de uma alimentação
adequada, o Forte Real do Bom Jesus, apesar de todos os esforços empreendidos,
capitulou em 1635.
 Os portugueses levantaram, então, um novo forte, nas imediações da Madalena,
que foi denominado de Forte Real do Bom Jesus, mas ficou sendo chamado de Arraial
Novo, para se distinguir do anterior. Esse Arraial foi o quartel-general dos restauradores
de 1646 a 1654, e, as suas ruínas ainda podem ser observadas na Avenida do Forte, no
bairro de Torrões.
Em se tratando do Arraial Velho, alguns moradores voltaram depois àquele
lugar, trataram de reparar as casas que haviam sido bombardeadas e construíram outras.
Com o passar do tempo, porém, as terras foram divididas em diversos sítios e
propriedades, surgindo novas ruas e estradas, assim como novas casas de vivenda.
Posteriormente, as terras do Arraial passaram às mãos da família Trindade
Paretti. Por essa razão, o espaço ficou sendo chamado de Sítio da Trindade. Este Sítio
possui um chalé com 600 metros quadrados de área construída, e abrange 6,5
hectares de área verde. Nele, algumas placas podem ser observadas. Em uma delas, lê-
se:
Caminhando pelas terras deste sítio, estais pisando o solo em que se
moveram Matias de Albuquerque e tantos outros heróis da luta contra
o invasor.
 
Na frente de um obelisco de granito, com dois metros de altura - um marco
comemorativo que foi inaugurado no dia 30 de janeiro de 1922 – percebe-se outra
placa:
Aqui existiu o Forte Arraial do Bom Jesus (Arraial Velho) 1630 –
1635. Instituto Archeologico, 1922.
Existe ainda um monumento singelo de cimento, com um medalhão e uma
placa, onde se encontra gravado:
Ao eminente naturalista José Pedro de Faria Neves, homenagem do
povo do Recife.

 No Sítio da Trindade também funcionou a sede do Movimento de Cultura


Popular (MCP), que foi criado no dia 13 de maio de 1960, durante a primeira gestão de 
Miguel Arraes na Prefeitura do Recife. Era constituído por estudantes universitários,
artistas e intelectuais e tinha como objetivo realizar uma ação comunitária de educação
popular, a partir de uma pluralidade de perspectivas, com ênfase na cultura popular,
além de formar uma consciência política e social nos trabalhadores, preparando-os para
uma efetiva atuação na vida política do país.

Administrativamente, era divido em três departamentos: o de Formação da


Cultura (DFC); o de Documentação e Informação (DDI) e o de Difusão da Cultura
(DFC). Dos três, o Departamento de Formação e Cultura foi, durante a existência do
MCP, o mais atuante, cabendo-lhe de acordo com o Estatuto (art. 15): 1- interpretar,
desenvolver e sistematizar a cultura popular; 2 - criar e difundir novos métodos e
técnicas de educação popular; 3 – formar pessoal habilitado a transmitir a cultura ao
povo. Era composto por dez divisões: Pesquisa, dirigido por Paulo Freire, Ensino; Artes
Plásticas e Artesanato, cujo diretor era  Abelardo da Hora, Música, Dança e Canto;
Cinema; Rádio, Televisão e Imprensa; Teatro; Cultura Brasileira; Bem Estar Coletivo;
Saúde; Esportes, que funcionavam através de programas e projetos especiais.

Outro aspecto muito importante a ser relevado quanto ao Sítio da Trindade, diz
respeito à presença das escavações arqueológicas do Arraial Velho do Bom Jesus. As
escavações iniciadas entre 1968 e 1969 foram interrompidas sendo apenas retomadas na
década de 1980. O trabalho buscou analisar os efeitos erosivos sobre a edificação, tendo
em vista que o forte ficou exposto por mais de vinte anos, desde a primeira visita e
buscar recuperar da maneira mais próxima possível da sua forma original.
Além da coleta de material e documentação histórica dos achados, foram
tomadas medidas que visassem à proteção da escavação.

Escavação do Arraial Velho do Bom Jesus

Foto: Lúcio Costa

Apesar do tombamento como bem paisagístico e da presença no mesmo espaço


das escavações do Arraial Velho do Bom Jesus, a Prefeitura Municipal do Recife, órgão
responsável pela preservação do patrimônio, tornou o local espaço de “Difusão
Cultural”. Claro que a denominação toma uma conotação bastante característica se
considerarmos toda a historicidade envolvida no local, porém essa conotação ganha
outros sentidos quando constatamos que a designação do espaço de “Difusão Cultural”
significa a utilização do mesmo para eventos culturais. A Prefeitura promove no local
tombado como Conjunto Paisagístico festas de cunho culturais onde fica evidenciada a
extrapolação mínima dos cuidados de preservação. Além das festas do ciclo Natalino,
com o Encontro de Mamulengos, apresentação de Pastoril, reisado e queima da lapinha,
há o ciclo junino que no ano de 2013 se iniciou em 07/06/2013 e se encerrou em
29/06/2013, onde ocorreram várias apresentações artísticas e concurso de quadrilhas
juninas, ocorrem também festas cujo caráter “cultural” a ser “difundido” gera dúvidas,
em 12 de junho acontece no local a festa do dia dos namorados.

Festa do dia dos namorados no Sítio da Trindade

Foto: Lú Streithrost

Em que pese toda a historicidade envolvida no Sítio da Trindade, considerando os


fatos históricos desenvolvidos no local, desde a localização de um forte de resistência à
invasão holandesa e os achados arqueológicos que refutam esse acontecimento, até a
sua utilização como sede de um movimento social patrocinado pelo Estado na década
de 1960, ressaltando os articuladores envolvidos nesse acontecimento, apesar de tudo
isso, no dia 17 de junho de 1974, o local foi classificado como um conjunto paisagístico
e tombado pelo Instituto Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), contraditoriamente
inscrito no Livro de Tombo Histórico, sob número 447, número do Processo 0487-T-
53, o IPHAN considerou mais a sua relevância paisagística do que histórica.

Por outro lado, as manifestações culturais desenvolvidas no Sítio da Trindade,


abrangem manifestações da cultura popular, as culturas populares são, por definição,
culturas de grupos sociais subalternos (CUCHE, 1999), o local funciona como uma
espécie de ilha de manifestação cultural popular por determinados períodos, visto que
está localizado em local considerado área “nobre”. Essa ilha de manifestação cultural
permite que grupos sociais subalternos se integrem às manifestações ao se apresentarem
com seus pastoris, reisados, maracatus, diante de uma platéia que não representa o local
onde originalmente costumam se apresentar.

A MAQUINARIA PATRIMONIAL

Segundo Jeudy é preciso distinguir a função social atribuída ao patrimônio e a


idéia de uma divisão social do patrimônio. Enquanto a divisão social fundamenta-se em
ambiguidades, pois o que se divide são as memórias individuais e coletivas e o
patrimônio isoladamente representa um vínculo social, fruto de certa gestão cultural,
esse vínculo social não representa as memórias coletivas. O patrimônio tem por função
tornar objetivável a dinâmica das memórias coletivas, mas fazê-lo não seria matá-la?
Existe, então, um conflito entre memória e patrimônio: o patrimônio daria às memórias
coletivas uma forma objetivável. Ainda segundo Jeudy, seria louvável torturar a boa
consciência da história, revelar publicamente todos os crimes impunes, mas esse
trabalho de rememoração acabou por provocar uma parada definitiva do tempo. O
presente morre quando apenas a atualização perpétua do passado incita a se reescrever.

Em sua Maquinaria Patrimonial Jeudy utiliza o conceito de processo de


reflexividade, que seria um estratégia patrimonial para valorizar, por exemplo, certos
lugares de uma cidade. Podemos relacionar essa idéia com as novas políticas urbano-
culturais, cada vez mais espetaculares, sobretudo por causa do incremento do turismo.
Esses processos, segundo ele, é um modo determinante da preservação da ordem
simbólica de uma sociedade, por outro lado essa preservação se tornou "mundial".

A princípio podemos pensar que estamos longe da questão patrimonial, mas não
estamos, é a forma como certo enquadramento simbólico assegura a transmissão do
sentido. Para Jeudy, a questão patrimonial é hoje, cada vez mais, um problema de
transmissão do sentido. Esse enquadramento simbólico supõe determinada gestão das
representações comuns de uma sociedade, de uma cultura. Ora, essa transmissão do
sentido ganha, frequente e efetivamente, a figura de uma ordem de transmissão, ordem
de transmissão essa que, para mim, está cada vez mais integrada num processo, que é o
processo de reflexividade. A lógica patrimonial conduz, segundo uma tradição
hegeliana, a se fazer uma apologia da reflexividade, isto é, da capacidade de uma
sociedade ou de qualquer sociedade poder se olhar no espelho dela própria, para melhor
se compreender e para melhor se gerir. Essa capacidade conduz a experimentar
coletivamente, na conservação patrimonial, um gozo que os psicanalistas chamariam de
um gozo de ordem especular, que resulta do fato de se ver sempre a si mesmo no seu
próprio espelho, graças a um jogo bem organizado de representações culturais. Esse
princípio de reflexividade, que seria um dos motores da lógica patrimonial, pode
evidentemente conduzir, como todo olhar no espelho, a efeitos de saturação.

Ainda segundo Jeudy a reflexividade patrimonial se desenvolve a partir de


determinado exibicionismo cultural. Tudo está à mostra, tudo fica visível, até mesmo
supervisível, mais particularmente nas cidades. Trata-se, aqui, de olhar uma visão
definida de territórios e lugares, uma visão que não é mais conduzida pela invisibilidade
das coisas, por seu enigma. O ato de se colocar em exposição é um princípio de
integração e de reprodução da cultura. É o contrário de uma aventura, pois o
enquadramento do sentido está definido antes do ato mesmo de expor. É no universo do
já visto e do já posto que a máquina de exposição se desenvolve, apesar de todas as
audácias declaradas, para significar uma violência contra um sentido já instaurado.

O MIMETISMO DO PROCESSO DA REFLEXIVIDADE E A SOPREPOSIÇÃO


CULTURAL
Diante do estudo de caso do Sítio da Trindade, ao aceitarmos o conceito
estipulado por Jeudy do processo de reflexividade, podemos afirmar que o espaço
patrimonializado sofre uma redundância em sua exposição, se o que vai ser visto já está
definido antes mesmo de ser exposto, o que ocorre de fato com o Sítio da Trindade. Por
tratar-se de equipamento paisagístico, segundo o IPHAN, e por já fazer parte de uma
comunidade que já o reconhecia como tal conjunto paisagístico, considerando sua
historicidade, como conjunto histórico que deveria ser preservado, torná-lo objeto de
patrimonialização torna-se uma redundância. Embora para Jeudy essa reflexividade
acarrete o que ele chama do surgimento da necessidade de uma indústria turística.

Outro aspecto a ser considerado diz respeito à Legislação que regula os bens
tombados como paisagísticos, a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial,
Cultural e Natural (Paris, 1972), conceitua “patrimônio cultural” e em seu item terceiro
estabelece

os sítios: de obras do homem, ou obras conjugadas do homem e


da natureza, bem como áreas, que incluem os sítios
arqueológicos, de valor universal excepcional, do ponto de vista
histórico, estético, etnológico ou antropológico.

Este item reforça a preocupação deste trabalho, pois o Conjunto Paisagístico do


Sítio da Trindade é um exemplo típico do item acima mencionado. Trata-se de uma obra
conjugada do homem e da natureza. E, ainda, encontra-se no local os vestígios
arqueológicos do antigo Forte Arraial do Bom Jesus.

Há ainda preceitos regulatórios na Carta dos Jardins Históricos Brasileiros (Carta


de Juiz de Fora, Outubro de 2010), e no que estipula a Constituição Federal em seu
artigo 216, onde impõe ao Estado a responsabilidade pela preservação dos bens
tombados. Outro aspecto diz respeito às políticas públicas adotadas para preservação
patrimonial. O conceito de políticas públicas é amplo, não se deve confundi-lo com
políticas governamentais. A política pode ser pública sem ser necessariamente
governamental.
Estabelecida a responsabilidade Estatal pela preservação patrimonial, como já
citada, as políticas públicas mencionadas no presente artigo serão efetivamente as
políticas governamentais, e no caso especifico as políticas municipais de cultura
adotadas na administração do Conjunto Paisagístico do Sítio da Trindade.

Encontramos no espaço estudado um paradoxo, o Estado como agente


responsável pela preservação do conjunto paisagístico, ou utilizando o conceito de
Jeudy, o Estado como agente do processo de reflexividade e ao mesmo tempo um
agente da ação da “morte” do bem patrimonializado, produz no mesmo local a
transmissão de sentido cultural ao promover no local tombado ações culturais de
divulgação e de preservação de costumes que, segundo Jeudy, correm o risco de
“morrer” ao serem patrimonializados, a esta presença de ações “vivas” num espaço
considerado “morto” por Jeudy, ocorre o que denominamos de mimetismo do processo
da reflexividade, caracterizado pela presença de ações “vivas” em locais sob processo
de reflexividade, isso vai de encontro ao discurso de Jeudy

A gestão contemporânea dos patrimônios só tem finalidade se


estiver referida a uma vontade supostamente coletiva de
reatualização permanente do passado. (JEUDY, 2005, p.22)

Não encontramos no caso do Sítio da Trindade essa tentativa de reatualização


permanente do passado, claro que existe o culto às tradições que devem ser mantidas e
transmitidas, “Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde
quando as histórias não são mais conservadas” (BENJAMIN, 1993, p.204-205),
encontramos a presença dos artistas contemporâneos atualizando o presente. Apesar das
críticas já formuladas quanto à questão da preservação do espaço tombado, existe por
parte do Estado responsável pela patrimonialização, uma preocupação com a
transmissão da tradição e com a fixação de novas tradições e narrativas, a este
comportamento neste espaço do Sítio da Trindade, a sobreposição de atividades
culturais num mesmo espaço caracteriza o mimetismo levantado neste artigo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estamos diante de quatro grandes problemas que se entrecruzam e buscam um
equilíbrio necessário para a sua compreensão: o patrimônio ou patrimonialização do
Sítio da Trindade que, nesse caso específico, entra em contradição como o Estado
classifica essa patrimonialização quando não sabe onde termina ou começa um
patrimônio histórico, e onde termina ou começa um patrimônio natural. Há o
tombamento do Sítio da Trindade como patrimônio natural, apesar de toda a sua
historicidade mencionada no presente artigo.

Outro problema diz respeito à política cultural aplicada ao equipamento, Cuche


(1999) já nos apresenta o problema da definição de cultura, definição esta que se torna
mais ambígua quando a colocamos ao lado da política. A política cultural nos meios
acadêmicos é um problema em permanente discussão, mais ainda quando estamos
falando da política que o Estado administra para as culturas que envolvem outras
“políticas”. Se há uma legislação que não permite o desenvolvimento de manifestações
artísticas em sítios naturais tombados, e esse mesmo Estado que estabelece essa
legislação produz manifestações nesses sítios, fica impossível estabelecer uma análise
que não passe pelo problema legal. Por outro lado, não podemos escapar da situação da
utilização do Sítio da Trindade (localizado em área nobre) como órgão de difusão da
cultura popular.

O terceiro problema se refere ao patrimônio natural. Quando o IPHAN reconhece


o Sítio da Trindade como equipamento que deva ser tombado como Patrimônio Natural
especificamente, não está necessariamente excluindo os aspectos históricos inerentes
àquele espaço, porém se o Estado estabelece procedimentos que devam ser seguidos ao
tombar um patrimônio natural e o próprio Estado infringe essas regras, estamos diante
de uma contradição.

Isso nos leva ao quarto problema levantado: a questão da Maquinaria Patrimonial


suscitada por Jeudy (2005), a patrimonialização de cidades e espaços como estratégia
patrimonial denominada de processo de reflexividade por Jeudy. A necessidade de
incrementar o turismo como modo determinante da ordem simbólica de uma sociedade,
no caso específico do Sítio da Trindade encontramos uma situação anômala, o Estado na
pessoa jurídica da Prefeitura da Cidade do Recife, não está preservando o patrimônio
natural, ao contrário, as manifestações ali realizadas agridem esse patrimônio natural.
Também não está preservando o sítio histórico, nem o sítio arqueológico presentes no
espaço. Está preservando as manifestações culturais que ali são desenvolvidas. A
Prefeitura entende que difundir as manifestações culturais populares numa área nobre,
trará mais benefícios para a cidade do que preservar o patrimônio natural tombado, ou
preservar o patrimônio histórico e arqueológico ali encontrado.

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