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trial, fez com que as liberdades econômi- rios pretensamente deflagrados em favor
cas da época se traduzissem em avanços da população pobre. À medida, porém,
democráticos efetivos, particularmen- que a frente contra o absolutismo viu-
te por meio da promulgação do sufrá- se vitoriosa,2 naquele exato momento
gio universal e da abolição da escravatu- se instaura a ruptura entre as suas clas-
ra nas colônias. Até então, as instituições ses constituintes, trazendo à tona as con-
políticas de inspiração liberal existen- tradições internas do ideário Iluminista,
tes na França do século dezenove apoia- particularmente entre o individualismo
vam-se num universo restrito de eleito- do mercado e o associativismo revolu-
res, cujo acesso ao voto dependia dos cionário dos trabalhadores. Os liberais,
níveis de educação e de riqueza (em 1848 nesse novo mundo, haveriam de se de-
havia 240 mil eleitores, o dito pays legal, frontar doravante com o ímpeto con-
para um total de 35 milhões de habitan- testador de um operariado que, embo-
tes). Isso significava que, até então, a in- ra imaturo e desorganizado, passava a se
terferência das massas incultas na are- expressar com a própria voz.3 Até mes-
na política se processava sob a liderança mo o moderado L’Atelier, jornal operário
de elites esclarecidas, responsáveis pe- de Paris, na sua edição de 26 de março de
la condução dos processos revolucioná- 1848, perguntava como os trabalhadores
2
Nas eleições de 1846, dos deputados e exigindo conseguem formar um novo declara o retorno da República
o ministério conservador a reforma eleitoral. Um ministério capaz de aplacar a e o fim da monarquia (Stern,
de Guizot obtém maioria banquete é programado para revolta. Na terceira jornada 1869, p. 1-140).
na Assembleia e se mostra o dia 22 de fevereiro de 1848, revolucionária, a turba dirige-se 3
Como observou Hobsbawm
insensível aos clamores por em Paris, mas proibido pelo ao Palácio das Tulherias, e Luís (1982, p. 135), no tocante à
uma reforma política e pelos governo. No dia marcado, Filipe I, pela manhã, abdica em repercussão da Revolução de
direitos de livre associação a população sai às ruas favor do neto, o infante Luís- 1848: “O segundo resultado foi que,
dos trabalhadores. Logo, confrontando as forças Filipe Alberto. Na Câmara com o progresso do capitalismo, o
o governo passa a sofrer militares. Um embate com a dos Deputados, à tarde, a ‘povo’ e os ‘trabalhadores pobres’
fortes ataques de imprensa guarda municipal resulta em população desfaz a sessão [...] podiam ser cada vez mais
democrática, multiplicando-se vários manifestantes mortos, preparada para empossar identificados com o novo proletariado
as acusações de corrupção. acirrando os ânimos do povo. como regente a nora do rei, a industrial, como ‘a classe operária’.
A oposição reformista, No segundo dia, a multidão duquesa de Orléans, e instaura Portanto, um movimento proletário-
proibida de se reunir, promove ergue barricadas pela cidade, o um Governo Provisório, sob a socialista passou a existir”.
uma série de banquetes rei derruba Guizot, mas nem liderança do deputado Dupont
pelo país, denunciando a o conde Molé ou tampouco os de l’Eure, que, reunido mais
falta de representatividade oposicionistas Thiers e Barrot tarde na Prefeitura de Paris,
A obra Sophismes Économiques, pu- cidade, o evento seria lucrativo aos bal-
blicada em 1845, é uma compilação de seiros, aos carregadores e aos hoteleiros.
diversos artigos de Bastiat contra as te- Mas, se os residentes de Bordeaux vies-
ses protecionistas correntes na França7 e sem a se beneficiar de tal lacuna na es-
veiculados no Journal des Économistes e no trada de ferro, observa Bastiat, então ci-
Le Libre Echange. Entre eles, restaria céle- dades como Angoulême, Poitiers, Tours,
bre a criativa petição dos fabricantes de Orléans, situadas no percurso, também
velas, solicitando aos deputados uma lei ganhariam se reivindicassem a mesma
determinando o fechamento das janelas coisa, resultando em tamanho fraciona-
a fim de estimular a produção doméstica mento nos trilhos que conformaria uma
de velas, abrigando-a assim da concor- “estrada negativa” (Bastiat, [1845] 1863,
rência desleal do Sol. Ainda, noutra peça, p. 57-62, 93-94).
Bastiat ironiza a sugestão de um cronis- O livro Harmonies Économiques, por
ta recomendando a interrupção, em Bor- sua vez, tem sido apontado como evi-
deaux, da estrada de ferro ligando Paris dência do otimismo ingênuo de Bastiat,
a Bayonne, uma vez que, se os passagei- por conter um repúdio às predições fu-
ros e a carga fossem obrigados a parar na nestas da economia clássica, especial-
mente o estado estacionário ricardiano e
7
O Império de Napoleão decorrendo disso resoluto
deixou como legado à França apoio ao protecionismo por
a tese malthusiana da miséria crescente
a centralização do poder e o parte dos sucessivos governos (Brunel, 1901, p. 85-88). É preciso ob-
protecionismo. Não obstante, do país. Como explica um servar a esse respeito, no entanto, que
o sucesso da união aduaneira historiador do período: “Se o próprio Bastiat já concebera, num de
alemã, o Zollverein, estimulou instala [na França] um sistema
as tratativas para a adoção original, associando liberalismo no seus mais extensos artigos, Physiologie de
de medida semelhante entre interior e protecionismo extremo la Spoliation, serem as sociedades huma-
França e Bélgica, mas que nas fronteiras. Tal construção é nas eivadas pela tendência do homem à
fracassaram em 1837 e 1842 justificada pela opinião popular pilhagem de seu semelhante.
por pressão dos industriais segundo a qual a indústria pode
franceses (Ravix, 1991, experimentar um crescimento O que previne a ordem social de alcançar
p. 494-501). A política contínuo em meio a um clima
a sua perfeição (ao menos aquela possível)
econômica do período competitivo desde que o mercado
da restauração apoiava- nacional esteja protegido dos é o esforço constante de seus membros para
se fortemente também predadores externos” viver e se desenvolver a expensas dos outros
nos proprietários rurais, (Broder, 1993, p. 63). (Bastiat, [1850] 1863, p. 128).
Quando assim ocorresse por um gru- a sua obra final, ele explica no prefácio
po já estabelecido, explica ele com crue- não esposar um otimismo pueril ou tam-
za, tais indivíduos criariam um conjunto pouco ser insensível aos vícios e defei-
de leis e um código moral autorizan- tos da sociedade diante de si. Antes, por
do e glorificando o processo existen- ser o homem livre, mas ignorante, caber-
te de espoliação. As guerras, a escravi- lhe-ia escolher. Ao fazê-lo, ele poderia
dão, os direitos feudais, as teocracias, os se equivocar e, como consequência, so-
monopólios e os tributos excessivos re- frer. Mas esse sofrimento, para Bastiat,
presentariam distintas formas históricas possuiria caráter pedagógico, porquanto
de pilhagem, para as quais o único remé- ensinaria os indivíduos a não persevera-
dio consistiria em revelar aos povos as rem nos erros. A repetição dos compor-
vantagens decorrentes da troca justa de tamentos equivocados teria o poder de
serviços úteis, já que, para Bastiat, pilhar revelar os efeitos perversos imprevistos
significava enganar. E enganar era per- da ação humana, possibilitando o apren-
suadir quem fosse roubado de que as- dizado verdadeiro decorrente de atos
sim sucedia para a própria vantagem. Ou voluntários. O aperfeiçoamento originar-
seja, a vítima deveria aceitar voluntaria- se-ia do erro e da possibilidade de repa-
mente a troca de serviços efetivos por rá-lo livremente.
outros fictícios ou de qualidade inferior.
Por certo, não pensamos que tudo corra da
Daí a origem dos sofismas, fossem eles
melhor forma. Tenho fé integral na sabedo-
econômicos, políticos ou religiosos, os ria das leis providenciais e, por essa razão,
quais deveriam ser desmistificados pe- tenho fé na liberdade. A questão é saber se
lo entendimento universal das vantagens dispomos de fato da liberdade (Bastiat, [1850]
associadas à liberdade. 1864, p. 12).
nômica a troca de serviços por serviços, des- duos almejariam melhorar a sua condi-
cartando, assim, toda a materialidade de ção de existência (Bastiat, [1850] 1864,
sua análise do valor. A partir daí, con- caps. 7, 9, 13, 14 e 16).
cebe o fenômeno do juro como essen- Bastiat não parece ter sido mere-
cialmente justo, visto que, ao contrário cedor de reconhecimento por parte de
da venda, na qual a troca é acompanha- autores como Marx, para quem ele não
da de pagamento à vista, nos emprésti- passaria de mero “harmonizador e apolo-
mos de capital o diferimento na liquida- gista de ofício” (1985, p. 1539), ou mesmo
ção do principal significaria a prestação Schumpeter que, não menos severo, con-
de um serviço ao devedor, demandan- siderava-o incapaz de “manusear o aparato
do, desse modo, retribuição na forma analítico da economia” (1963, p. 500). Tais
de juros. A tese ricardiana de aumento avaliações, por mais apropriadas que se
progressivo da renda fundiária, por sua afigurem numa abordagem retrospecti-
vez, é rebatida pela observação de que va, não chegam a fazer inteira justiça ao
o progresso técnico neutralizaria os efei- polemista francês pela simples razão de
tos negativos da ocupação de lotes cada procurarem em suas obras algo que ele,
vez menos férteis. O aumento resultan- declaradamente, nunca pretendeu ofere-
te no valor das terras mais produtivas se- cer. Noutros termos, o próprio Bastiat
ria, portanto, acompanhado pelo barate- sempre se apresentou como paladino,
amento dos gêneros agrícolas. Apoiado em vez de luminar, da causa liberal.
ainda na experiência histórica e na tese Nas conclusões da primeira par-
clássica de que a acumulação de capi- te de seus Sophismes, ele discorre precisa-
tal viria acompanhada de queda conco- mente sobre a sua missão vis-à-vis aqueles
mitante na taxa de juros, Bastiat lembra que considerava verdadeiros teóricos da
que a participação percentual dos rendi- ciência, como Say, na economia, ou La-
mentos dos capitais na renda total dimi- place, na mecânica celestial. O saber hu-
nuiria gradativamente em favor do traba- mano, segundo Bastiat, dividir-se-ia em
lho. A pressão populacional malthusiana dois campos: o primeiro, formado pe-
seria refreada, então, pelos ganhos das los ramos de estudo acessíveis somen-
classes inferiores que lhes permitiriam o te a alguns especialistas, embora de uti-
exercício de comedimento na multiplica- lidade geral, como a física ou a química.
ção familiar, posto que todos os indiví- Já o segundo abarcaria as áreas do co-
polemista, sendo condenado novamente ver o seu sustento mediante igual aces-
à prisão em 1858 e fugindo para Bruxe- so aos recursos naturais. Tampouco o
las na ocasião. De lá é expulso em 1862 trabalho poderia ser invocado como ali-
por pregar a anexação da Bélgica à Fran- cerce último da propriedade porquanto,
ça, quando retorna a Paris por sua pena ao se extinguir a capacidade laboral do
já haver prescrito. Falece em 18 de janei- indivíduo, cessaria o direito à livre dis-
ro de 1865, abatido por sequelas da cóle- posição do que fosse seu. A proprieda-
ra que contraíra em 1854 (Spoll, 1868, p. de do produto, como afirma Proudhon,
8
“ Todos os tratados de economia
5-63; Jackson, 1963, caps. 2-9). não assegura a propriedade do instru-
política assumem a propriedade
como um dado [...] Mas Proudhon Em Qu’est-ce la propriété?, obra sau- mento que lhe deu forma, assim como
procede a uma investigação crítica dada pelo jovem Marx como um divi- o viajante não se apropria do caminho
– a primeira resoluta, séria e, ao sor de águas no tratamento do assunto,8 em que passa. Nem mesmo as diferen-
mesmo tempo, científica – da base da
economia política, a propriedade
Proudhon busca demonstrar que o úni- ças de talento poderiam justificar as de-
privada. Esse é o grande avanço co mundo possível de justiça integral se- sigualdades, dado que tudo que se faz
científico que ele realiza, um avanço ria aquele de plena igualdade, quando a depende de uma infinidade de produtos
que revoluciona a economia política e ficção jurídica da propriedade não mais e serviços ofertados pelos outros, cada
que pela primeira vez torna possível
uma ciência real da economia
existisse. Os pretensos fundamentos de qual devendo receber não pelo que exe-
política” (Marx, 1845). tal instituto, definido por ele como o cutou, mas de acordo com as suas neces-
9
A usura, tema do debate “direito individual de dispor de forma absolu- sidades. Ou, como se expressa o próprio
futuro com Bastiat, é também ta da propriedade social” (Proudhon, [1840] Proudhon, sobre as implicações trágicas
considerada por Proudhon 1873, p. 45) são um a um derrubados por da propriedade:
uma das formas institucionais
Proudhon. Assim, a propriedade como
de roubo, especialmente por A justiça, ao sair da comunidade negati-
parte de agiotas e bancos, mas direito natural do homem não possui-
va, chamada pelos antigos poetas idade do
também pelos capitalistas. ria caráter absoluto, diferentemente da
Estes últimos, contudo, por ouro, começou por ser o direito da força [...]
liberdade, da igualdade e da segurança,
se satisfazerem com taxas de Do direito da força derivam a exploração
por se confrontarem aí os privilégios e
retorno mais modestas do que do homem pelo homem ou, dizendo doutro
as dos financistas, foram por as vantagens decorrentes da propriedade modo, a servidão, a usura, o tributo impos-
ele ironizados como a “fina com o princípio social da igualdade. Já a to pelo vencedor ao inimigo vencido, e toda
flor da sociedade” em razão de ocupação original do solo como hipoté- essa família numerosa de impostos, gabelas,
conseguirem exercitar a virtude
tico substrato primitivo da propriedade revelias, corvéias, derramas, arrendamentos,
suprema da moderação em
meio ao roubo (Proudhon, não levaria em conta direito similar dos aluguéis etc., numa palavra, a propriedade
[1840] 1873, p. 207). outros homens, coagidos também a pro- (Proudhon, [1840] 1973, p. 209-210).9
equilíbrio dos mercados e a ampliação trar o caráter legal do juro e sua natureza
constante da riqueza e do emprego, perpétua, defendendo a renda do capital
Proudhon defende a criação de um Ban- dos ataques conduzidos por Proudhon
que du Peuple a fim de estabelecer uma es- em seu jornal. Com isso, Bastiat preten-
pécie de republicanismo financeiro. Mais dia refutar não só a ideia de gratuidade
especificamente, ele pretende a derru- do crédito, mas toda e qualquer especu-
bada do poder absolutista do ouro co- lação socialista apoiada na crença de o
mo lastro monetário, substituindo-o pe- juro configurar-se roubo. Para tanto, ele
la concessão livre de crédito segundo a se serve de breves estórias que acredita-
capacidade produtiva de cada indivíduo, va serem versões simplificadas, mas re- 11
A abordagem praxeológica
tornado sócio comanditário do banco presentativas, da realidade econômica.11 de Bastiat favorece esse
popular. Assim, teria fim o primado da Num dos exemplos descritos em seu estilo quase lúdico – que,
moeda, dos juros e das crises financeiras texto, o carpinteiro Jacques confecciona para o leitor desavisado,
sobre a vida econômica da nação, abrin- uma plaina a fim de melhorar a qualida- pode parecer ingênuo –
cujo objetivo é facilitar o
do-se espaço para o domínio final da de dos móveis que produz e obter maior entendimento da economia
troca de produtos por produtos e para as receita. Ele reserva dez dias de trabalho pelo leigo. Considerando o
reformas sociais num contexto de con- para a tarefa, projetando reaver com ga- autointeresse como motor
da ação humana, ele analisa
córdia social. Nesse novo mundo, decla- nho os rendimentos dos quais abriu mão
as reações dos indivíduos
ra Proudhon, durante o fabrico da ferramenta. Ao tér- aos incentivos dados pela
mino da empreitada, Guillaume, também conformação institucional
[r]esolveremos todas as contradições econô- em que se inserem, para daí
carpinteiro, ao deparar-se com a plaina
micas, emanciparemos o trabalho e submete- deduzir as consequências
remos o capital; o trabalhador e o capitalista reluzente, propõe a Jacques tomá-la por
de seus atos. Assim, fazia-se
estarão ambos satisfeitos e contentes um com empréstimo durante um ano, mas sem mister visualizar cenários
o outro (Proudhon, [1848] 1868, p. 130). ônus. Jacques protesta e exige que a plai- que representassem o cerne
na, caso cedida, fosse retornada nas mes- do fenômeno abordado,
abstraindo-se os elementos
mas condições em que Guillaume a re-
propensos a falsear a
3_ Primeira escaramuça: ceberia. Este último concorda, mas se percepção dos homens. Tais
os contendores se apresentam recusa a pagar qualquer coisa além disso. estórias, nas palavras do
A resposta que recebe do colega advém, liberal francês, seriam “uma
O debate objeto do presente artigo ini- representação fidedigna, o símbolo
cia-se com o panfleto de Bastiat intitula- então, nos seguintes termos:
de todo capital, [...] de todo o juro”
do Capital et rente, publicado em fevereiro Jacques: Penso o contrário. Fiz a plaina (Bastiat, [1849] 1873, p. 46).
de 1849, em que o autor busca demons- para mim e não para você. Esperava con-
seguir algum benefício com ela, pois meu seria responsável por qualquer dificulda-
trabalho sendo de maior qualidade e mais de anterior de Guillaume, tendo a opera-
bem pago, eu melhoraria minha sorte. Não ção até contribuído para mitigar os seus
posso cedê-la gratuitamente. Qual a razão problemas econômicos. Ainda, explica
para que eu faça a plaina e você colha os lu- Bastiat, enquanto Jacques mantivesse a
cros? Eu poderia da mesma forma pedir-lhe
plaina em bom estado, ele estaria apto a
a sua serra e o seu machado. Que confusão!
renovar indefinidamente o empréstimo,
Não seria melhor que cada qual guardas-
se o que fez com as próprias mãos, assim
fazendo jus, por conseguinte, a um ren-
como guardamos nossas mãos? Servir-se das dimento perpétuo.
mãos dos outros, sem pagamento, chama-se A operação toda, quando condu-
escravidão; servir-se da plaina dos outros, zida em dinheiro, não obstante a trans-
sem retribuição, pode isso ser chamado fra- ferência de valores em vez de algo ma-
ternidade? (Bastiat, [1849] 1873, p. 45, itálicos terial, em nada alteraria as conclusões
no original).
derivadas do exemplo relatado. E, à me-
Guillaume termina por aceitar a dida que mais e mais capitais se acumu-
proposta de Jacques que, por seu tur- lassem, menor resultaria o juro a ser pa-
no, voltaria a lhe emprestar a ferramenta go, favorecendo igualmente o devedor.
por muitos anos. As lições desse exem- Para isso, seria preciso estimular tudo o
plo, segundo Bastiat, residiriam, primei- que fosse propício à poupança, no lugar
ramente, na constatação de que, acei- de se atacar a própria razão de ser dos
tando-se como justo o pagamento pelo capitais, ou seja, o juro. Daí, para Bastiat,
serviço prestado por Jacques ao colega, a origem do sofisma de Proudhon, que
então, como regra geral, se deveria acei- tomava a redução da taxa de juros, como
tar igualmente como natural o fato de ocorrera historicamente com a Holan-
o capital produzir juros. Afinal, o pró- da e outras nações europeias afluentes,
prio tomador do empréstimo, Guillau- por causa original, em vez de sintoma,
me, não resultaria prejudicado no ne- do progresso social (Bastiat, [1849] 1873,
gócio, sendo de seu interesse entrar em p. 49).
acordo com o amigo. Caso a barganha No mês de abril de 1849, Bastiat
fosse por demais dispendiosa, ele po- publica o artigo Maudit argent!, em que
deria simplesmente encerrar a conver- certo economista, indicado por F*, re-
sação. Assim, o empréstimo em si não clama da capacidade de o dinheiro pas-
sar por verdadeira riqueza. Esse equí- como sugeria Proudhon. O economista,
voco, segundo o personagem, induziria cético, ensina que o mero avanço na cir-
filósofos e legisladores a arquitetarem os culação monetária sem contrapartida na
mais sofisticados esquemas visando ao disponibilidade de mercadorias reverte-
enriquecimento da sociedade, mas que ria unicamente numa elevação geral dos
apenas faziam por trazer sofrimento e preços, provando-se o artifício inútil pa-
guerras ao conjunto da humanidade. Is- ra o objetivo proposto. Interessante, po-
so porque a identificação mercantilista rém, é a descrição oferecida por F* para
da moeda com a riqueza, ao gerar medi- os perversos efeitos distributivos de tal
das de estímulo às exportações e restri- iniciativa, até que os preços se assentas-
ção às importações, omitia o fato de que sem de vez em novo patamar:
os demais países agiriam da forma corre-
As pessoas inteligentes se preocuparão em
lata, causando disputas comerciais que,
não entregar seus produtos a menos que
no mais das vezes, redundavam em en- obtenham um número maior de cédulas.
gajamentos bélicos. Noutros termos, eles demandarão quarenta
Após extensa conversação com francos por aquilo que antes vendiam por
um amigo, ambos os personagens con- vinte. Mas os simples se deixarão apanhar.
cordam sobre a inutilidade das práticas Passarão anos até que o ajuste seja realiza-
protecionistas, discutindo, então, a pos- do para todos os valores. Sob a influência da
sibilidade de um aumento doméstico de ignorância e do costume, a jornada de traba-
papel-moeda estimular a produção de ri- lho de nosso camponês continuará por muito
queza efetiva, a saber, os bens e serviços tempo a um franco, quando o preço efetivo
ofertados e negociados entre si pela po- de todos os objetos de consumo ao seu redor
será aumentado. Ele cairá numa terrível
pulação. A certa altura, o interlocutor de
miséria, sem poder divisar a causa (Bastiat,
F* pergunta-lhe se, em dispondo de du-
[1849] 1873, p. 89, itálicos no original).
as moedas em vez de uma, não estaria ele
mais rico do que antes. F* responde que A controvérsia em si teria início
sim, ao que o amigo lhe retruca se, nesse com a contestação a Bastiat assinada por
caso, o que se aplicava ao indivíduo não Charles-François Chevé, um dos redato-
valeria igualmente para todos, de modo res de La Voix du Peuple, em artigo pu-
que a emissão geral de moeda resulta- blicado em 22 de outubro de 1849. Com
ria num incremento da riqueza nacional, certa ironia, Chevé declara concordar
com os princípios de Bastiat, ressalvan- Mas não, graças à renda e a sua monstruo-
do, porém, que os argumentos do próce- sa perpetuidade, o lazer é proibido precisa-
re liberal conduziriam de fato à conclu- mente a todos os que trabalham do berço ao
são oposta, a saber, a abolição do juro túmulo, tornando-se ela privilégio exclusivo
e da renda. E o motivo para tanto seria de alguns ociosos que, por meio dos juros do
capital, sem nada fazer, apropriam-se dos
singelo, de acordo com Chevé, estando
frutos da labuta massacrante dos trabalha-
radicado na confusão entre os conceitos
dores. Quase toda a humanidade é reduzida
de uso e de propriedade. Assim, no caso re- à estagnação, numa vida vegetativa e esta-
ferido de Jacques e Guillaume, em vez cionária, na ignorância eterna (Chevé, [1849]
de um pagamento pela utilização da plai- 1873, p. 102).
na, o segundo deveria conceder ao pri-
meiro um serviço equivalente, qual seja, Bastiat aceita de bom grado a pro-
o uso em tempo igual de uma plaina ou vocação. Em sua réplica, inserida no
de algo com valor de mesma magnitude. exemplar de 12 de novembro de 1849 de
Nisso, raciocina Chevé, residiria La Voix du Peuple, lembra ele que se o
a verdadeira troca de serviços por ser- uso de uma casa pudesse ser realizado
viços, como pretendido por Bastiat. Se sem outro requisito que não a devolu-
as coisas sucedessem de tal maneira, po- ção das chaves, existiriam, então, apenas
der-se-ia dizer, então, a rigor, ser o paga- locatários e nenhum locador. Além dis-
mento de juros contrário à natureza do so, caso determinado serviço devesse ser
capital. Ademais, a figura do juro seria pago por meio de serviço igual, ou seja,
nociva tanto ao devedor, por represen- se a cessão de uma residência requeres-
tar espoliação, quanto ao credor, que de- se a cessão recíproca de outra residên-
la cairia vítima quando viesse a necessitar cia, não haveria motivo para a transação,
de crédito. A própria sociedade, em seu pois as partes já disporiam das próprias
conjunto, seria atingida pela prática da moradias. Posto que Chevé reconhecera
usura devido ao aumento dos custos da o imperativo de retribuição por parte do
produção em geral e à redução do con- devedor, o pagamento, para adquirir sen-
sumo, causa de desemprego e, por fim, tido, precisaria suceder por meio de algo
pelo decorrente aprofundamento das de- distinto do que foi emprestado. Mas es-
sigualdades de renda. Ou, como descre- se algo, que Bastiat explica haver desig-
ve Chevé: nado juro para conformar-se ao vocabu-
der como o dia poderia ser noite ou o ju- locais eram propriedade dos trabalha-
ro legítimo e ilegítimo ao mesmo tempo. dores, que neles também buscavam em-
Se Proudhon buscava se livrar do Esta- préstimos, e nem por isso o juro deixara
do, a ‘Sociedade’ que ele invocava co- de existir. De resto, a proposta de Prou-
mo responsável pelo provimento geral dhon seria apenas uma reencarnação do
de crédito seria constituída pelos pró- sistema irresponsável de John Law.13
prios cidadãos credores e tomadores de Antes, o capital real da sociedade consis-
empréstimos. Mesmo que os custos de tiria de material de todos os tipos, pro-
circulação do capital fossem eliminados visões, ferramentas, mercadorias, ouro e
pela multiplicação dos bancos e de ou- coisas do gênero, e seu uso sempre im-
tras facilidades monetárias, ainda assim plicaria uma retribuição. O crédito fácil
o juro subsistiria. Nos Estados Unidos, não mudaria a natureza humana, nem se-
lembrou Bastiat, os numerosos bancos quer transformaria os pródigos em ava-
ros ou os preguiçosos em trabalhadores.
13
John Law (1671-1729), conversibilidade com o O grande equalizador das fortunas, em
financista escocês exilado na ouro. As notas originadas na
França, defendia a substituição instituição saem, então, de um verdade, seria o capital, e sua eventual
do ouro pela moeda fiduciária patamar de 38 milhões em abril abolição remeteria o homem aos tempos
e a conversão da dívida de 1717 para atingir 2,3 bilhões imemoriais da barbárie, quando tudo era
pública em ativos de um de livres em junho de 1720. feito com as mãos. Num lampejo de em-
grande conglomerado colonial. Nesse último ano, a companhia
Mediante suas relações com e o banco são fundidos e polgação, apregoa Bastiat:
o regente Filipe de Orléans, Law torna-se controlador- Marcha, marcha capital: segue o teu cami-
obtém em 1716 a carta patente geral das Finanças da França.
nho, realizando o bem para a humanidade.
para o Banque Générale, que Numa de suas primeiras
alcança grande sucesso inicial. medidas, ele desvaloriza a livre Foste tu que libertaste os escravos; foste tu
Em 1717, Law assume a (unidade de medida monetária que derrubaste as fortalezas do feudalismo;
Compagnie d’Occident, recebe o conversível em louis d’or, o engrandeça-te ainda, subjuga a natureza;
monopólio de desenvolver a dinheiro da época), gerando faça a gravitação, o calor, a luz, a eletricida-
Louisiana e logo absorve toda grande indignação popular de, concorrerem para a felicidade humana;
a arrecadação do governo. Em que o leva à prisão. Solto
toma para ti o que degrada e embrutece o
dezembro de 1718, o banco pouco depois, suas tentativas
de Law é nacionalizado e de reduzir o estoque de notas trabalho mecânico; eleva a democracia,
convertido no Banque Royale, do Banque Royale fracassam e, transforma as máquinas humanas em ho-
responsável por larga emissão em dezembro, ele é obrigado a mens, homens dotados de lazer, de idéias,
monetária, a qual deveria, refugiar-se em Veneza de sentimentos e de esperanças! (Bastiat, [1849]
supostamente, manter estrita (Velde, 2004). 1873, p. 167, itálicos no original).
Referências bibliográficas
BASLÉ, Maurice; GÉLÉDAN, BRODER, Albert. L’économie GIRARD, Louis. Les liberaux MARX, Karl. Teorias da mais-valia.
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