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História, Liberdade e Revolução:

A propósito dos 100 Anos da Revolução Russa

Hélio Ázara de Oliveira1

Hegel e a História como realização da Liberdade


A história do mundo é para G. W. F. Hegel o
automovimento do espírito no caminho da descoberta de sua
liberdade. Essa liberdade é, a um só tempo, o conteúdo e o
Fim da História. É importante começar nossa reflexão
trazendo à memória os elementos fundamentais da Filosofia
hegeliana da História, quais sejam, o Indivíduo, o Povo e o
Estado, esses elementos se relacionam, entre outros, com o
tema da Revolução, que é posta em relevo no capítulo final
das Lições sobre Filosofia da História de Hegel. Para Hegel
estes “elementos” são os “encarregados das tarefas da
História”, entendida como caminho percorrido pelo Espírito
na apreensão consciente de sua própria liberdade.
A seu modo, K. Marx irá entender a História como um
movimento [não isento de contradições, pois revoluções e

1Doutor em Filosofia pela UNICAMP. Professor da Universidade Federal


de Campina Grande - UFCG. Membro do Grupo de Pesquisa Materialismo
e Modernidade/UFPB e Pesquisador do Centro Fausto Castilho de
Estudos de Filosofia Moderna e Contemporânea (CEMODECON).
contrarrevoluções mostram que a história é aberta e em
disputa] no sentido da Liberdade e que tem no “trabalho
assalariado” a “última figura servil do trabalho”. Essa
concepção progressiva da consciência e da luta pela
Liberdade é transposta, na Crítica da Economia Política de
Marx, para uma análise concreta dos sucessivos modos de
produção que como por meio de um “caminho” nos
trouxeram à antessala da Liberdade concreta, e que faz do
capitalismo um “momento” da Revolução Comunista, cujo
modelo deve superar aquele de 1789.
Vejamos em um primeiro momento como esses
elementos se articulam na Filosofia da História hegeliana.

Filosofia da História e Revolução


Como nos mostra Jean Hyppolite em sua Introdução à
Filosofia da História de Hegel, desde a juventude o que
interessava a Hegel era a capacidade de a Filosofia descobrir
“o espírito de uma religião, de um povo” (HYPPOLITE, 1983,
p. 13). A tarefa a ser realizada seria a de “forjar novos
conceitos, capazes de traduzir a vida histórica do homem, a
sua existência num povo e numa história”. Pensar a vida, esta
é a tarefa, escreve Hegel em sua juventude. Em suas Lições
sobre História da Filosofia, o mesmo pontifica que fazer
Filosofia é fazer o que podemos chamar de “diagnóstico do
tempo presente”, é transpor seu tempo histórico por meio de
conceitos2.
Para a Filosofia da História hegeliana há um
movimento de subjetivação e tomada de consciência da
liberdade, cujos pontos de demarcação são acontecimentos
histórico-mundiais, tais como: a 1) a Reforma Protestante;
na qual “o princípio da interioridade surgiu com a liberdade
religiosa, o “ápice dessa interioridade é o Pensamento”
(HEGEL, 2008, p. 361). Hegel diz explicitamente “o homem
não é livre se não pensa”. Portanto esse movimento do
espírito na Reforma faz do pensamento um “estágio” de onde
parte a modernidade. Esse pensamento, por assim dizer,
passa na consideração dos Latinos; 2) (Galileu, Descartes)
para uma consideração de seu outro, o mundo, na forma da
experiência e da abstração, na Ciência e no Direito natural.
Então teríamos em Descartes e nos Ingleses um segundo
movimento, o da consciência do pensamento em sua
diferença com o “Mundo” (HEGEL, 2008, p. 361). A esse

2 A Filosofia da História é “o desenvolvimento do espírito do mundo


através de seus momentos particulares, que serão os espíritos dos povos
individuais” (HYPPOLITE, 1983 p. 23).
movimento se dá o nome de Esclarecimento. O resultado
desse movimento é o que Hegel chama de “mundaneidade”,
o reino da vontade e de sua busca por liberdade. Esse seria
para nosso filósofo o traço mais distintivo dos tempos
modernos; 3) essa liberdade da vontade que se sabe livre foi
teoricamente apreendida na Alemanha na Filosofia da I. Kant
e, como pensa Hegel, experimentada como prática pelos
franceses (Idem, p. 364). Hegel apresenta uma formulação
da diferença entre o Esclarecimento alemão e o francês: “na
Alemanha o esclarecimento estava ao lado da teologia, na
França, ele se voltou contra a igreja”.
Este diagnóstico do tempo e sua implicação nas
diferenças entre França e Alemanha mostra-se como um eco
da Filosofia hegeliana da História na obra do jovem Marx.
Aquela ideia diretora da Crítica à Filosofia do Direito,
segunda a qual na Alemanha a Reforma antecipou e “fez a
vezes” de uma Revolução. Dito de modo sumário, a revolução
alemã foi a Reforma de Lutero, ela já havia conciliado
“pensamento e instituições” e desfeito injustiças. Na França
ao contrário “o princípio da liberdade da vontade faz-se
então valer contra o direito existente” (Idem, p. 365). É
evidente aqui haver uma diferença substancial entre as
considerações de Hegel e Marx sobre as revoluções. É
evidente que para Hegel a religião ocupe o mesmo papel que
as determinações econômicas terão para Marx, na geração
posterior, embora Hegel já fale em “classes” e “lucro”, é no
elemento católico ou protestante da consciência que parece
residir o ponto nevrálgico da revolução de 1789 (Idem, p.
367).
Por outro lado, para Hegel a Revolução na França foi
incentivada pela Filosofia, isto é, a revolução “parte da
Filosofia” (idem), ou seja, parte de Rousseau, embora diga a
seguir que “a terrível pressão sofrida pelo povo e o descaso
do governo, permitindo na corte a opulência e o
esbanjamento, foram os primeiros motivos para a
insatisfação” até um ponto em que “todo o sistema do Estado
manifestava-se como uma injustiça”. Citando Hegel:
A mudança foi necessariamente violenta,
porque a transformação não partiu do
governo, e ela não foi iniciativa do governo
porque a corte, o clero, a nobreza e o
parlamento não queriam abdicar de seus
privilégios, nem por necessidade, nem pelo
direito em si; além disso, o governo, como
centro concreto do poder estatal, não podia
tomar os desejos individuais como princípio e
a partir deles reconstruir o Estado;
finalmente, pelo fato de o governo ser
católico, e, em função disso, não prevalecer o
conceito da liberdade e da razão das leis como
último e absoluto compromisso – pois o
sagrado e a consciência religiosa estavam
dele separados (HEGEL, 2008, p. 365-366).

Gostaria apenas de enfatizar esse entusiasmo inicial


de Hegel com a Revolução na França, que, aliás, Kant também
demonstrou a seu tempo, o que não faz de Hegel um
Revolucionário liberal, nem tampouco permite alinhá-lo aos
“conservadores” e restauradores do Antigo Regime, nesse
sentido concordando aqui com Domenico Losurdo (1997):
Hegel não é certamente um revolucionário, mas nem por
isso é um conservador-reacionário ou um liberal. Esse é, no
interior da filosofia de Hegel, um falso problema.
O núcleo da crítica de Hegel contra a Revolução
francesa é, como se sabe, o “terror jacobino”, ou como ele o
chama em suas lições: “a liberdade abstrata e a exigência da
Virtude”, encarnado no ideal de suspeita universal de todos
por meio de um “fanatismo da virtude”, cuja figura mais
característica é Robespierre, e que elevou como princípio de
seu tempo a “virtude e o terror” como princípios reinantes
da Revolução (HEGEL, 2008, p. 368). O momento do terror
será substituído por um “poder de governar” que irá
substituir o “fanatismo da virtude” por uma habilidade
política3 de resolver as disputas internas e pela força militar,
a liberdade abstrata e a exigência da virtude dão lugar em
Napoleão aos novos princípios do Estado francês, “o respeito
e o medo” (Idem, p. 369). Certamente esse “princípio” tem
abrangência limitada a um momento e veio a cair em
desgraça, mas não sem antes espalhar suas instituições
liberais por toda Europa:
Observemos agora a Revolução Francesa em
conexão com a história do mundo, pois, em
seu conteúdo, esse acontecimento é histórico-
mundial, e a luta do formalismo deve ser
diferenciada, no que tange à expansão
exterior, quase todos os Estados modernos
foram alcançados pela conquista do mesmo
princípio ou foram expressamente
introduzidos nele. O liberalismo dominou de
modo especial todas as nações latinas, a
saber, o mundo católico romano (HEGEL,
2008, p. 370).

Gostaria, apenas para finalizar essa parte, de


enfatizar o diagnóstico do tempo feito a partir destas
páginas. A Revolução Francesa, a despeito da avaliação que
dela possamos fazer, se tornou um acontecimento histórico-
mundial, que inaugura uma nova era de movimento
permanente das estruturas e que a própria ideia de dialética

3 Em alguma medida este traçado teórico reverbera da teorização de


Marx, sobretudo no 18 Brumário e na Guerra Civil em França, na figura
conceitual do” bonapartismo”.
tenta traduzir em termos filosóficos. O que é a dialética
hegeliana senão a tentativa de transpor o presente histórico
mutante em conceitos igualmente mutantes? Por que a
filosofia deve expressar o movimento? Porque o tempo
presente é o tempo marcado pela Revolução permanente,
tempo em que “tudo o que é sólido se liquefaz”.

Sobre o futuro
O que podemos esperar do futuro? Para Hegel esta
não é uma questão filosófica, uma vez que a Filosofia, quando
não quer se degenerar num mero “dever ser”, trata apenas
do que é o caso, ou seja, do real, como um dado que nos é
legado pelo tempo histórico. Esse modo como Hegel, no
interior do seu sistema, recebe a tradição do realismo
político, terá grande influência sobre Marx e sobre seu
“silêncio sobre o futuro” da revolução. Marx mostra grande
desprezo e ironia aos que se aventuram a dizer como “deve
ser” a sociedade futura, os chamando de “cozinheiros do
futuro”, e seus programas de “receitas” para este futuro
meramente imaginado.
Seguindo a intuição hegeliana4 ele irá procurar na
“Economia Política” a anatomia da sociedade civil burguesa
e por uma reconstrução crítica de suas categorias irá
procurar mostrar como a revolução, agora a comunista, está
posta como possibilidade, pelo próprio movimento do tempo
que criou e generalizou mundialmente o capitalismo. A
revolução para Marx não é um telos, no sentido exterior e
filosófico, ela é uma decorrência e possibilidade real do
regime de acumulação capitalista que conjuga forças sociais
de produção (socializa o trabalho), mas que tem como
resultado a apropriação privada dos resultados do trabalho
social. O socialismo radicalizaria esta tendência e a uniria à
socialização dos meios de produção e dos resultados do
trabalho social.
A concepção de Marx é a de que a estrutura e
funcionamento atual da sociedade devem dar ao movimento
revolucionário os instrumentos de que necessita em sua
tarefa, não podendo “a revolução de uma época ser cantada

4 Hegel conhece a obra de Adam Smith em 1805 em Iena por meio da


tradução de Garve de “A riqueza das Nações”. Como diz Hyppolite, Hegel
“integra essa obra à sua Filosofia Política”, mas ainda a subordina à
Filosofia Política, isto implica ainda em subordinar a dimensão
econômica à dimensão política. Contudo, que ambas guardam relações
recíprocas, é inegável desde Hegel.
com a poesia dos anteriores” na interessante metáfora do 18
de Brumário. As formas (também da revolução) devem ser
dadas pelo objeto a ser revolucionado. Ou seja, é do
resultado das contradições de uma dada época que surge a
possibilidade de sua passagem para um outro patamar
histórico. Das contradições da sociedade Antiga surgem as
mudanças que conduziram ao Feudalismo. Das contradições
interiores do Feudalismo é que surgiu a possibilidade de
uma passagem para o Capitalismo. Do mesmo modo, das
contradições irresolúveis no interior da ordem capitalista
surge a possibilidade de passagem para o Comunismo. Na
metáfora de Marx, uma sociedade está sempre “prenhe” da
vindoura. Essa “filosofia da história”, entendida como
sucessão de modos de produção, emoldura em O capital o
seu conceito de “capital como tal5”.
Mas eu gostaria de fazer aqui uma homenagem ao
centenário da Revolução Bolchevique na figura de seu maior
formulador, e com isto ligar este evento à renovação atual
por que passa a pesquisa sobre Marx, sobretudo na
Alemanha.

5 Sobre o Conceito marxiano de “Capital como tal” conferir ÁZARA, 2017.


Sobre Lênin leitor de Hegel e resultados de sua intuição
fundamental.
O segundo movimento deste artigo visa analisar
resultados da intuição de Lênin de que, para se compreender
a estrutura e o andamento de O Capital, seria necessária uma
leitura a partir da Ciência da Lógica hegeliana. Como se sabe
Lênin leu a Ciência da Lógica durante a primeira guerra
mundial chegando então a formular precisamente que
“nenhum intérprete de Marx poderia entender a estrutura
lógica de O Capital sem conhecimento da Ciência da Lógica”
de Hegel. Essa conclusão que foi seguida por Rosdolsky em
Gênese e Estrutura de O Capital, sendo nisso seguido das
leituras que em meados da década de 1970 foram
empreendidas na universidade alemã (na então
Deutsche Demokratische Republik) e cujos resultados são
os trabalhos de Fulda, Teunissen e Helmut Reichelt, dando
um novo fôlego ao estudo de Marx na Alemanha e cujos
resultados o público brasileiro ainda conhece parcialmente.
Em primeiro lugar porque a própria obra, Ciência da Lógica,
está ainda parcialmente traduzida para o português, e em
segundo lugar pela tardia repercussão destes trabalhos em
língua nacional. O Hegel da maioria dos marxistas continua
sendo aquele da Fenomenologia do Espírito, quando muito.
Faremos a seguir uma pequena “demonstração” de
como os operadores da Ciência da Lógica foram utilizados
heuristicamente por Marx para a estruturação de sua obra
principal, para isso usando o exemplo do famoso Capítulo
sobre a Mercadoria6. Aqui nos atentaremos apenas sobre a
categoria de “oposição”, o mesmo pode ser feito para a
determinação do conceito de capital, na seção 2 do Livro I,
com a categoria de “contradição” (Cf. ÁZARA, 2014).
Na Wissenschaft der Logik o movimento das
categorias é ditado por oposições que se resolvem ou se
suspendem (Aufhebung) e dão lugar à novas oposições
sempre mais concretas, desde a oposição inicial e imediata
(abstrata) entre o “puro ser” e o “puro nada” até a Ideia. O
primeiro problema da exposição da Lógica é justamente o
problema do começo, estilizado por Hegel na pergunta:
“Com o que deve ser feito o início da ciência?” (HEGEL, 2011,
p. 49). A “aporia moderna do início” é a primeira dificuldade
a ser elaborada pela especulação hegeliana. Marx também
teve um problema do começo, isto é, também ele se
perguntou: “por onde deve começar a exposição das
categorias da Economia Política? ” Esse é inclusive o

6 Estudamos a fundo o problema em nossa tese de doutorado (Cf. AZARA,

2012) e também em: “Capital, subjetividade e relação” (Cf. AZARA, 2014).


verdadeiro motivo de ele ter abandonado a exposição feita
em sua obra Para a Crítica da Economia política e
recomeçado tudo novamente. Dez anos depois viria à luz O
Capital, novo projeto de exposição da economia política. A
MEGA7 revelou por meio das anotações de próprio punho
que Marx ainda ficou insatisfeito mesmo com a exposição
final de O capital.
Em uma carta a Engels de 9 de dezembro de 1861
Marx diz que na pretendida continuação de Para a Crítica da
Economia Política [que por fim veio a se tornar O capital] “o
método estará muito mais oculto”8. É intrigante que grande
parte do trabalho por fazer na interpretação desta obra
continua a ser o de revelar o que o Marx pretendeu ocultar e
que quando muito, admite como um “flerte” com “seu modo
peculiar de expressão” (MARX, 1984, p. 20.). Um dos
resultados mais interessantes da Nova leitura de Marx é a
percepção de que não se trata de mostrar o hegelianismo ou
anti-hegelianismo de Marx, mas antes de saber como Marx
estrutura sua dialética de um modo materialista (Cf. FULDA,
2017). Vejamos o caso da categoria de oposição:

7 MEGA é a sigla da “Marx-Engels-Gesamtausgabe”, edição crítica das


obras de Marx e Engels em curso na Alemanha.
8 Cf. “Que método Marx ocultou” (REICHELT, 2011).
Marx parte em O Capital da mercadoria por esta se
apresentar como determinada pela oposição inscrita em seu
corpo entre “valor de uso” e “valor”. Parte daí a dedução das
categorias da Economia Política (usando como exemplo o
capítulo 1 de O Capital). Marx parte na Seção 1 da oposição
entre valor de uso e valor, a exposição a descobre como
exteriorização de uma oposição interna ao trabalho, tema da
Seção 2: a oposição entre “trabalho concreto” e “trabalho
abstrato”, que por sua vez determina a oposição da forma
valor entre “forma de valor relativa” e “forma de valor
equivalente”, tema da seção 3, e de onde Marx deduz a forma
Dinheiro do Valor. Há, é claro, na seção 4 a temática do
Feitiço da mercadoria, que em meu ponto de vista é o modo
como o último Marx resolve a temática da ideologia,
colocando-a agora sob a determinação do feitiço como um
resultado da oposição, essa sim propriamente contraditória,
oposição entre capital e trabalho. O feitiço da mercadoria
expõe a oposição entre o fazer econômico e a consciência (ou
inconsciência) dos agentes mediados pela troca.
De fato, como resumiu Lênin, seria impossível
compreender o propósito de Marx com estas derivações das
formas de valor, sem que o leitor estivesse atento ao diálogo
crítico de Marx com Hegel e mais particularmente com seu
conceito especulativo de exposição (Cf. MÜLLER, 1982, p.
18). Marx, portanto, utiliza-se heuristicamente das
categorias da oposição e da contradição para expor seu
conceito de capital. Mas o capital não traz em si mesmo a
revolução ou ao menos não é possível deduzir a revolução
das categorias. O que nos conduz ao tema da superação do
capitalismo, um dos nós da exposição de O Capital.

Sobre a inexorabilidade da revolução


O “rebatismo” de Marx em suas fontes filosóficas
imediatas implica também, do nosso ponto de vista, no
reconhecimento dos limites e das condições que seu próprio
tempo impõe a seu pensamento. Sua filosofia da história, que
é inegavelmente uma filosofia do progresso9, invoca a
pergunta pelo futuro histórico. Contudo o materialismo não
é compatível com uma solução “logicísta”, como se a
revolução fosse um a priori histórico ou mesmo um
“destino”. Por outro lado, é inegável, como mostrou Grespan
em seu trabalho sobre a crise, que Marx cogitou a
“autossupressão” do capitalismo a partir de suas

9Seria surpreendente para Marx a constatação de que a categoria de


progresso tenha caído em desgraça como aconteceu em parte do
Ocidente no pós-guerra Europeu.
contradições imanentes, ou seja, investigou a “necessidade”
da crise como algo de absoluto, dadas as contradições que
permeiam o sistema e em especial a “queda tendencial da
taxa de lucro”. No entanto, estas investigações de Marx não
puderam ser conclusivas e no Livro III de O Capital, onde
elenca também as “causas contra atuantes” que impedem
que as crises sejam vistas como solução final, ou uma
necessidade absoluta (Cf. GRESPAN, 2012, p. 239).
Rosdolsky, seguindo a intuição de Lênin e, portanto,
estudando o Capital a partir da Lógica, já houvera chamado
atenção para este “flerte” com o ideário de auto supressão, e
mostra que dentro deste quadro referencial “o socialismo
não aparecia como mero ideal, mas sim como uma fase
necessária do desenvolvimento da humanidade, em direção
à qual a história tende” (ROSDOLSKY, 2001, p. 345). Embora
tais ideias estejam presentes em O Capital apenas e tão-
somente como um “bastidor”, para usar uma expressão de
Marcos Müller, elas são o fundamento do “flerte” da Crítica
da Economia Política com o ideário da “autossupressão do
capitalismo” ou de uma passagem inevitável e necessária ao
socialismo, ideias com as quais Marx não se compromete até
o final, mas com as quais esteve inegavelmente ocupado10.
A dialética de Marx procura apreender seu objeto de
duplo modo. Ao contrário do modo liberal de pensar, que
apenas “apreende o existente positivamente”, a crítica de
Marx não se detém unicamente nesta dimensão do
fenômeno, antes “apreende-o igualmente por seu lado
negativo ou apreende negativamente o fenômeno”, e
desvenda sua relatividade, o caráter histórico e transitório
de cada época. Nesse sentido é até interessante que aqueles
que se debruçam sobre o Livro II de O Capital têm a
impressão, a partir dos “esquemas da reprodução” que o
capitalismo é um sistema total e indestrutível, que inclusive
se alimenta das crises como uma profilaxia de seus defeitos,
e que no limite, seria algo de insuperável. De outro lado, os
que se debruçam sobre o Livro III têm a impressão de que o
capitalismo será suprimido por estas mesmas crises, e que
sua derrocada é uma necessidade própria do sistema.

10 “Se, por um lado, as fases pré-burguesas se apresentam como supostos

puramente históricos, ou seja, suspensos, por outro lado, as condições


atuais da produção se apresentam como suspendendo-se a si mesmas e,
portanto, como pondo os supostos históricos para um novo ordenamento
da sociedade” (MARX, 2011a, p. 365, grifos do autor).
Se a passagem ao socialismo pudesse ser fruto de leis
inexoráveis da história em seu progresso predeterminado,
toda política revolucionária seria, no limite, supérflua. Lênin
o sabia. O que está implícito na filosofia da história que
emoldura seu conceito de capital é que “os homens fazem sua
própria história”, muito embora “não a fazem como querem;
não a fazem sobre circunstâncias de sua escolha e sim sob
aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e
transmitidas pelo passado” (MARX, 2011, p. 25). Portanto o
curso histórico, que para Marx é cumulativo e progressivo, é
resultado tão somente da ação humana, ainda quando o
resultado desta ação se lhes apareça invertido, ou que
processos que determinam tal ação se tornem automáticos.
Esse é o verdadeiro sentido da transição. Caso seja
entendida como uma “escatologia histórica” perde todo seu
caráter crítico e seu poder explicativo para o passado e para
o presente. O socialismo se oferece a Marx como solução
histórica para os desafios do capitalismo porque suas
condições decorrem do desenvolvimento capitalista. O
socialismo é possível porque suas condições já se encontram
presentes, embora ocultas, na sociedade atual, ou como diz
o próprio Marx em uma anotação dos Grundrisse: “se a
sociedade tal qual é não contivesse ocultas as condições
materiais de produção e circulação para uma sociedade sem
classes, todas as tentativas de fazê-la eclodir seriam outras
tantas quixotadas”. A passagem para o socialismo é possível
por suas condições estarem postas pela sociedade moderna,
mas nem por isso ela é algo de necessário ou pré-
determinado. Ela é resultado de um projeto e de uma
resolução de agir.

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