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Theophilos Rifiotis
Federal University of Santa Catarina
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Studies on the judicialization of “gender violence” and on the dissemination of alternative practices through a comparative perspective between Brazil and Argentina
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All content following this page was uploaded by Theophilos Rifiotis on 16 January 2015.
Situando o debate
Para situar o debate, que não tenho tempo para desenvolver aqui, apresentarei
inicialmente os fundamentos da “judicialização”. Em trabalhos anteriores, procurei
mostrar que o cenário da judicialização é mais do que um simples contexto em que
ocorrem condutas e circulam valores (2207; 2012). “De um modo geral, a
judicialização das relações sociais e sua centralidade no cenário político atual
devem ser entendidas não como um simples contexto para a ação em que se
configuram formas específicas de atores, eventos e práticas sociais, mas antes
como uma matriz de inteligibilidade em e para outros contextos. Assim, gostaria de
sublinhar uma vez mais a necessidade de aprofundar em pesquisas empíricas a
“(...) contribuir para uma visão mais crítica e autoconsciente, com implicações sobre o
protagonismo dos atores sociais e sobre a construção de uma sociedade democrática
e solidária. Preparados para pensar criticamente os Direitos Humanos e os riscos de
transferir responsabilidade para o Estado, de engessar processos, e a necessidade
permanente de um olhar crítico sobre as nossas próprias [práticas e análises].” (Rifiotis
& Matos, 2010: 281)
2A noção de judicialização vem sendo difundida nas ciências sociais e ocupando uma posição central na
análise social. Como bem apontam Débora Alves Maciel e Andrei Koerner (2002), ela tem sido utilizada
para indicar efeitos da expansão do Poder Judiciário no processo decisório das democracias, definindo-se
mais tipicamente como “judicialização da política”.
Tenho utilizado mais especificamente a noção de “judicialização das relações sociais” no campo da
“violência de gênero” (Rifiotis, 2008; 2011) para designar os processos que se visibilizam através da
ampliação da ação do Estado em áreas de “problemas sociais” como mecanismo de garantia e promoção
de direitos. Procuro acompanhar, com algumas diferenças [que não posso detalhar aqui], a abordagem de
Luiz Werneck Vianna (1999,:149), que seguindo as pistas de Antoine Garapon, caracteriza a noção nos
seguintes termos: invasão do direito na organização da vida social.
3É um fato relevante que o anúncio da nova discussão sobre o projeto rejeitado tenha sido feito logo após o
presidente do Senado ter recebido a mãe da jovem Yorrally Ferreira morta no dia 10 de março, aos 14 anos,
com um tiro na cabeça disparado pelo ex-namorado, que completou 18 anos um dia depois de cometer o
crime (G1 do dia 11 de março 2014).
3
violento", "vítima" ou "questão social" apesar de antagônicas, elas tendem a focar-
se na resposta positiva ou negativa ao discurso penal. As razões do debate
(recuperação x prisão; educação, trajetória criminal x tratamento biográfico;
problemas sociais) são, por demais relevantes e/ou recorrentes, e podem
mascarar um outro processo mais abrangente: a judicialização das relações
sociais. Apesar de fortes movimentos descriminalizadores, de mediação e justiça
cidadã (“justiça restaurativa"), vivemos hoje um crescimento importante da via
penal para a regulação social.
O “sujeito de direito” é uma figura central que se refere a uma faculdade subjetiva
de exercício dos direitos e deveres, pressupondo uma espécie de aptidão para ser
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titular de direitos e devedor de prestações. “Sujeito de direito”, “pessoa jurídica” é
entendida como indivíduo autônomo e racional ou incapaz e tutelado. É uma
noção atravessada pela dimensão moral e política para ser também jurídica.
O sujeito dos direitos remete ao campo teórico e político dos fundamentos da ação
social e não se reduz a uma entidade fixa e já dada. Em termos da teoria
antropológica, falar em sujeito de direitos remete a um importante movimento
teórico e político que se poderia chamar “a volta do sujeito” (ORTNER, 1993).
Cada vez mais temos nos defrontado com a prevalência do conceito de agência
frente ao de sociedade, de onde a importância das pesquisas que incorporem a
abordagem do sujeito4.
Começo a descrição etnográfica com uma cena observada durante durante uma
aula ministrada numa instituição para “adolescentes cumprindo medida
socioeducativa, e cujo tema era o trabalho infantil.
A educadora expôs sua posição contra essa prática e citou o ECA para justificar o
seu ponto de vista. A reação dos jovens foi imediata e forte, pois muitos tiveram
ocupações informais desde cedo e acreditam que essa é a prática ideal.
Ricardo contou que cuidava de carros na entrada de um mercado: “pra ter minha
grana e comprar minhas coisinhas”. A educadora continuou a defender sua posição
de que as crianças devem estar na escola, mas os jovens argumentam que
trabalhar e “arranjar alguma coisa para fazer” é a única maneira de comprarem o
que querem. Eles valorizam comportamentos que demonstrem o que eles
entendem como autonomia ou independência. Crianças que vendem balas nas
ruas, cuidam de carros, segundo eles, são “agilizados” e merecem ser respeitados
como tal. Assim como “os moleques” que fazem pequenos serviços para
traficantes, pois eles estão desde cedo “aprendendo a se virar”. Mais do que o
caráter lícito ou ilícito, o que torna a sua ação algo a se orgulhar é o fato dela
demonstrar a capacidade de “se virar”, sem que este estabeleça relações que
sejam percebidas como dependência.
A idéia de que vivem em uma sociedade desigual que lhes nega oportunidades
está presente; no entanto, a ênfase dada pelos jovens está no modo com que
lidam com as adversidades. Nesse sentido, a “vida do crime”, não seria apenas
uma “reação” à desigualdade estruturalmente excludente, mas uma “ação”. Entre
eles, longe de psicólogas, assistentes sociais ou figuras de autoridade, essa é a
narrativa mais comum. São inúmeras as histórias nas quais a “correria” (qualquer
atividade que lhes dê ganhos materiais) figura como algo extremamente positivo.
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Não se trata apenas de um descompasso entre a perspectiva protecionista e as
estruturas incorporadas pelos sujeitos daquelas políticas públicas. E muito menos
uma questão de estratégias didáticas inadequadas.
Estamos diante de uma questão fundamental, que apenas posso aqui descrever
em suas grande linhas: a verdade do sujeito. Um campo ao qual devemos
devemos prestar particular atenção. Um campo de atravessado por disputas sobre
o ser “jovem”, com concepções de infância e adolescência em disputa.
Numa outra ocasião, durante um evento realizado em uma das instituições onde
estavam os jovens, suas famílias e diversas autoridades do município, um juiz
expôs em seu discurso os detalhes da vida de um dos jovens ali presentes.
Contou a todos sobre o dia em que ele foi levado até o Fórum, descreveu o
“estado deplorável” do jovem, falou também de seu pai: “Falei com teu pai ontem,
mas ele não entendeu nada, estava bêbado” e concluiu que, apesar de “teu lugar
não ser aqui”, como a família não era “responsável”, ele teria que ficar ali. Em
seguida, o orador comentou sobre as famílias dos outros jovens. Apontou para o
fato de que a grande maioria, com exceção de dois deles, não tinha um "pai
presente". Enfatizou o “papel dos pais” em suas vidas e deixou claro que deve ter
“faltado” algo para eles estarem ali. Citou a “falta de tempo”, “falta de diálogo” e
afirmou que, certamente, se a “família tirasse um tempo para conversar à noite,
nada disso teria acontecido”. O desconforto dos jovens e de mães presentes era
evidente. Todos se remexiam nas cadeiras e olhavam com uma mistura de raiva e
humilhação para o juiz. No final do dia, depois que todos os convidados foram
embora, o assunto entre os jovens era o discurso do juiz. Um dos jovens
comentou: “se deu bem quem tem pai, meu pai só me fez. Até dei uma choradinha
quando ele falou de ‘pai'". A preocupação daquele jovem era, naquele momento,
não ter a figura do pai em sua vida; acreditava que, se tivesse, teria mais chances
de sair da instituição logo, pois poderia alegar que tinha uma “boa família”.
Ele comentou que foi “meio humilhante” ter que falar isso, mas “era o jeito”. Outras
vezes os jovens podem acionar a forma de “vítima”, muitas vezes implícita nesta
leitura, para conseguirem o que querem5.
5 O “sujeito-vítima” é uma construção epistêmico-política com a qual precisamos aprender a dialogar para
situar os nossos próprios trabalhos sobre violência, justiça e Direitos Humanos. Os estudos de Didier
Fassin sobre a economia moral e a condição de vítima: La raison humanitaire. Une histoire moral du
temps présent (2010), e, em parceria com R.Rechtman, L’empire du traumatisme. Enquête sur la
condition de victime (2007), apontam para uma leitura renovada da dimensão moral nos estudos da
“violência” (Rifiotis, 2008; 2011a).
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se apresenta como vítima por algum objetivo específico, “representa” um papel
legitimado pelo discurso social, político e institucional. Sabendo que esta é uma
interpretação válida para sua situação, ele a aciona para provocar em seu
interlocutor a “pena” e conseguir algo, seja ajuda, dinheiro ou simpatia. Acionar a
“forma de vítima” deste modo torna a relação duplamente assimétrica, pois o jovem
se coloca na posição de inferioridade para poder assumir, na sua perspectiva, o
controle da situação.
Para além da tensão entre ação e vitimização, que apresentamos até agora, no
quotidiano das instituições, segundo relatam as pesquisadoras (Danielli Vieira e
Tatiana Dassi), era bastante comum os momentos nos quais os jovens reunidos,
compartilhavam histórias sobre suas “aventuras” nas ruas. Nestes momentos os
jovens mobilizam seus corpos por inteiro, ficam em pé, fazem gestos, sons, caras
e bocas, dão tiros no ar, correm, esquivam-se, pulam muros imaginários. As
histórias parecem estar inscritas em seus corpos não apenas nas cicatrizes que
mostram com certo orgulho, mas também nas emoções que suscitam quando
rememoradas. Os jovens se referem a esta emoção como “adrenalina” e, em seus
relatos, eram comuns comentários sobre este assunto, como: “adrenalina de correr
dos home [forma genérica de designação de agentes policiais], pular muros e se
esconder”, ou a adrenalina de “tá no meio do assalto sabendo que os home podem
6 Abre-se aqui um capítulo fundamental sobre o “sujeito-vítima” e a economia moral das políticas públicas
(RIFIOTIS, 2013).
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chegar a qualquer momento”. A grande maioria dessas narrativas envolvia algum
tipo de atividade ilegal (roubos, uso de armas ou drogas, perseguições policiais). O
que todas elas pareciam ter em comum, no entanto, era a emoção que produzem.
Aqui, a intensidade da performance narrativa, evidente no modo como mobilizam
seus corpos ao narrar, parece falar também da intensidade daquelas experiências.
Numa perspectiva fenomenológica, Jack Katz (1988) discute essa dimensão dos
atos de transgressão e aponta para a necessidade de se pensar o “crime” e sua
“lógica situacional”, ou seja, compreender a experiência da transgressão em si. De
fato, a maioria dos estudos sobre “crime” focaliza a análise no contexto psicológico
e social dos “criminosos”, o background, negligenciando a atração que a
experiência de transgressão pode exercer, graças as emoções e sensações que
produz. Para os jovens que participaram da pesquisa, esse aspecto vivencial é
fundamental, como percebemos na fala de Francisco.
Francisco foi um dos casos mais “bem sucedidos” da instituição na qual estava,
segundo os funcionários. Isso porque já há alguns meses era estagiário em uma
empresa de prestígio na região, freqüentava cultos evangélicos, era bastante
responsável e prestativo. Além disso, estava determinado a não voltar para o
“mundo do crime” e diariamente marcava esta posição, corporalmente,
esteticamente e discursivamente. Bastante contido em seus movimentos, usava
um vocabulário diferente dos outros jovens, não falando palavrões ou gírias,
vestindo sempre calça e camisa, não usava anéis, correntes de prata ou boné.
Quando não estava trabalhando ou na escola, atividades que tomavam grande
parte de seu dia, estudava, limpava seu quarto, ouvia música gospel e ia a igreja.
Contudo, era considerado um dos “casos mais sérios” que já havia passado pela
instituição. “Bandidão de responsa tinha medo dele”, conta Bernardo, um jovem
que o conheceu nas “ruas”, quando Francisco era traficante. Mas Francisco tinha
uma preocupação, que dividiu com a pesquisadora em inúmeras ocasiões,
determinado a não voltar ao “mundo do crime”, preocupava-se com seu futuro, pois
acreditava ser difícil encontrar um emprego que pudesse satisfazê-lo. Dizia que
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uma das coisas que ele mais gostava no seu “trabalho” de traficante era que ele
nunca era monótono. Como a qualquer momento algo podia acontecer – a polícia
podia aparecer, alguém podia tentar roubá-lo ou tentar “tomar” sua “boca” – ele
tinha de estar sempre “ligado”. Admite que, muitas vezes, este estado de eterna
vigilância era cansativo e estressante, mas, no final das contas, realmente gostava
do movimento constante, das perseguições, dos tiros, em suas palavras, da
“adrenalina” que esta atividade lhe proporcionava. Quando questionado, pela
pesquisadora, sobre porque, quando falava sobre sua vida de traficante, nunca
havia mencionado sentir falta do aspecto financeiro, Francisco explicou que
certamente era essa uma “grande vantagem” daquela vida, e além disso, disse ele,
“tem mulher atrás de ti e todo mundo te respeita”.
Dizia sentir falta disso também, contudo, segundo ele, “isso a gente consegue de
outro jeito, do jeito certo”. E explicou que o “tipo” de mulheres interessadas por ele
naquela época não é o mesmo que busca agora, uma companheira que o
acompanhe na igreja. Além disso, agora quer respeito por ser um “soldado de
cristo” e não um ”bandido”.
Tais questões fazem parte do cotidiano dos sujeitos da pesquisa e eram objeto de
conversas entre eles. São histórias como as de um jovem que, aos oito anos de
idade, saiu de casa e foi morar nas ruas com sua irmã de dez anos. Durante uma
conversa informal entre a pesquisadora, ele, e alguns outros jovens, sobre família
e infância, ele contou que isso aconteceu porque ele “aprontava muito” e sua mãe
não tinha mais como “controlá-lo”. Ele afirmou ter grande admiração por sua mãe –
tinha tatuado em seu corpo “mãe te amo” – e se referia a ela como uma mulher
“forte”. Alguns anos mais tarde, ele voltou para a casa da mãe; dois meses depois
foi institucionalizado pela segunda vez. Sua mãe ficou muito desapontada e,
segundo ele, no momento uma de suas preocupações era conquistar a confiança
dela novamente. Ele dizia que desta vez ia deixar de “ser mau”; ele perguntava
constantemente se a pesquisadora acreditava que alguém “ruim” como ele tinha
chance de “se recuperar”.
Considerações Finais
Trouxe para o debate relatos que falam sobre injustiça, vitalização, vulnerabilidade
social, mas também orgulho e autodeterminação e a ideia de uma pessoa má
(“coisa ruim”), ou seja, a “vida loka” na sua pluralidade. As pesquisas mostraram
que não se trata de elementos estanques de um código moral, pois eles não são
excludentes, nem demonstram fragmentação moral ou descentramento dos
sujeitos, mas um uso marcado pela performance situacional. Por isso, nos
referimos a eles como elementos num arranjo compósito, no qual um ou outro é
acionado contingentemente, e através desse jogo se dá uma auto-formatação dos
sujeitos.