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A judicialização e as configurações do sujeito "conflito com a lei": reflexões


sobre um sujeito compósito

Conference Paper · December 2014


DOI: 10.13140/2.1.3871.0080

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1 author:

Theophilos Rifiotis
Federal University of Santa Catarina
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1
A judicialização e as configurações do sujeito “conflito com a lei": reflexões
sobre um sujeito compósito1
Theophilos Rifiotis (Departamento de Antropologia/UFSC)

Situando o debate

Minha participação no IV Seminário Internacional do LEV, na comemoração dos


seus 20 anos, será sobre problemas teóricos e éticos com os quais defrontamos
na pesquisa com “adolescentes em conflito com a lei", particularmente sobre a
noção de contingência e configurações de sujeito ou modos de subjetivação.

Em grande linhas, meu objetivo é apresentar um material etnográfico e refletir


sobre as concepções de sujeito e “sujeito de direito”, colocando em perspectiva a
judicialização das relações sociais.

Para situar o debate, que não tenho tempo para desenvolver aqui, apresentarei
inicialmente os fundamentos da “judicialização”. Em trabalhos anteriores, procurei
mostrar que o cenário da judicialização é mais do que um simples contexto em que
ocorrem condutas e circulam valores (2207; 2012). “De um modo geral, a
judicialização das relações sociais e sua centralidade no cenário político atual
devem ser entendidas não como um simples contexto para a ação em que se
configuram formas específicas de atores, eventos e práticas sociais, mas antes
como uma matriz de inteligibilidade em e para outros contextos. Assim, gostaria de
sublinhar uma vez mais a necessidade de aprofundar em pesquisas empíricas a

1 Texto apresentado no IV Seminário Internacional "Violência e Conflitos Sociais: Territorialidades e


Negociações" (UFC, Fortaleza, 03 de dezembro 2014).
Trata-se de uma versão modificada de uma comunicação feita no âmbito da III Jornada de Pesquisa sobre
Infância e Família (UFRGS, Porto Alegre, 2014).
2
questão da judicialização, não apenas pela sua complexidade, mas porque ela é
contingente e coloca em diálogo múltiplas perspectivas.” (TR, ANPOCS, 2012)2.

Em grandes linhas, a abordagem da judicialização das relações sociais pode

“(...) contribuir para uma visão mais crítica e autoconsciente, com implicações sobre o
protagonismo dos atores sociais e sobre a construção de uma sociedade democrática
e solidária. Preparados para pensar criticamente os Direitos Humanos e os riscos de
transferir responsabilidade para o Estado, de engessar processos, e a necessidade
permanente de um olhar crítico sobre as nossas próprias [práticas e análises].” (Rifiotis
& Matos, 2010: 281)

Assim, considero paradigmático o debate no Senado Federal que culminou com a


rejeição (fevereiro de 2014) da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 33/2012
na Comissão de Constituição e Justiça do Senado (CCJ), que propõe a redução da
maioridade penal em casos de terrorismo, tortura, tráfico de ilícitos e entorpecentes
e hediondos - homicídios praticados por grupos de extermínio, latrocínio (roubo
seguido de morte), extorsão com morte ou mediante sequestro, estupro, entre
outros. Mesmo após a rejeição por maioria, em meados de março, foi noticiado
que o presidente do Senado Federal colocaria novamente em votação o projeto de
redução da maioridade penal e há recurso para que seja novamente apreciada a
PEC 33/20123.

Sabemos que a questão penal é recorrente na agenda social brasileira e que a


maioridade penal é seu ícone. Posições polarizadas entre "criminoso", "sujeito

2A noção de judicialização vem sendo difundida nas ciências sociais e ocupando uma posição central na
análise social. Como bem apontam Débora Alves Maciel e Andrei Koerner (2002), ela tem sido utilizada
para indicar efeitos da expansão do Poder Judiciário no processo decisório das democracias, definindo-se
mais tipicamente como “judicialização da política”.

Tenho utilizado mais especificamente a noção de “judicialização das relações sociais” no campo da
“violência de gênero” (Rifiotis, 2008; 2011) para designar os processos que se visibilizam através da
ampliação da ação do Estado em áreas de “problemas sociais” como mecanismo de garantia e promoção
de direitos. Procuro acompanhar, com algumas diferenças [que não posso detalhar aqui], a abordagem de
Luiz Werneck Vianna (1999,:149), que seguindo as pistas de Antoine Garapon, caracteriza a noção nos
seguintes termos: invasão do direito na organização da vida social.

3É um fato relevante que o anúncio da nova discussão sobre o projeto rejeitado tenha sido feito logo após o
presidente do Senado ter recebido a mãe da jovem Yorrally Ferreira morta no dia 10 de março, aos 14 anos,
com um tiro na cabeça disparado pelo ex-namorado, que completou 18 anos um dia depois de cometer o
crime (G1 do dia 11 de março 2014).
3
violento", "vítima" ou "questão social" apesar de antagônicas, elas tendem a focar-
se na resposta positiva ou negativa ao discurso penal. As razões do debate
(recuperação x prisão; educação, trajetória criminal x tratamento biográfico;
problemas sociais) são, por demais relevantes e/ou recorrentes, e podem
mascarar um outro processo mais abrangente: a judicialização das relações
sociais. Apesar de fortes movimentos descriminalizadores, de mediação e justiça
cidadã (“justiça restaurativa"), vivemos hoje um crescimento importante da via
penal para a regulação social.

Destaco, em primeiro lugar, que estamos diante de um fenômeno trans-nacional.


Apenas para ilustrar o argumento, destaco os debates num seminário entre juízes
do Canadá e da França que participei em Montreal em 2011, à convite de Álvaro
Pires. Surpreendeu-me ver os magistrados manifestando severas críticas ao
processo de judicialização, que - segundo avaliação generalizada naquele
seminário - estava em acelerada expansão, constituindo-se nas últimas décadas
numa tendência mundial. Segundo aquela avaliação, a judicialização é também
um fenômeno transversal do ponto de vista ideológico. Distintas orientações
políticas, por diferentes razões e com objetivos diversos, tendem a traduzir a sua
pauta de reivindicações a um quadro normativo, especialmente do direito penal.

Como sabemos, a semântica jurídica e a criminalização tem uma forte capacidade


catalisadora de movimentos sociais. Há grupos que reivindicam a criminalização
do aborto, do uso de substâncias psicoativas, da homofobia, do bullying, etc. É um
debate complexo e eivado de questões éticas e políticas, e que precisa ser
enfrentado também teoricamente, como pretendo mostrar aqui no campo dos
“jovens em conflito com a lei”.

Essa centralidade do campo jurídico na vida social coloca em debate a distinção


entre direitos do sujeito e sujeitos do direito. Tal distinção está assentada em
jogos de verdade (legitimidade) que se consubstanciam em políticas públicas.

O “sujeito de direito” é uma figura central que se refere a uma faculdade subjetiva
de exercício dos direitos e deveres, pressupondo uma espécie de aptidão para ser
4
titular de direitos e devedor de prestações. “Sujeito de direito”, “pessoa jurídica” é
entendida como indivíduo autônomo e racional ou incapaz e tutelado. É uma
noção atravessada pela dimensão moral e política para ser também jurídica.

Uma tensão aporética própria da produção de subjetividades contemporâneas


(RIFIOTIS, 2010). Afinal, a própria normatividade, como dispositivo de poder, não
é apenas uma negatividade ou um dever ser, ela é um modo de produção de
subjetividade.

O sujeito dos direitos remete ao campo teórico e político dos fundamentos da ação
social e não se reduz a uma entidade fixa e já dada. Em termos da teoria
antropológica, falar em sujeito de direitos remete a um importante movimento
teórico e político que se poderia chamar “a volta do sujeito” (ORTNER, 1993).
Cada vez mais temos nos defrontado com a prevalência do conceito de agência
frente ao de sociedade, de onde a importância das pesquisas que incorporem a
abordagem do sujeito4.

Quando me refiro a “sujeito de direitos”, busco pensar mais efetivamente na


condição de sujeito e sua agência. O sujeito não se reduz a um ator com um
background a partir do qual ele organiza e realiza as suas práticas. O sujeito é
aquele que atua frente a lógicas externas, avaliando-as e situando-as, identificando
e operando sobre contradições que estas geram em outros contextos. Sujeito não
é ator, não é indivíduo.

Em resumo, a pertinência da questão dos sujeitos do direito está se tornando um


equivalente do princípio de Arquimedes, a teoria da alavanca simples: “Dêem-me
um ponto de apoio e uma alavanca e eu moverei o mundo”. Investimos

4 Segundo E.V.Castro há uma ênfase atualmente na:


[...] pragmática das agências capazes, em teoria, de promover uma recuperação do
sujeito ou agente sem cair no subjetivismo ou no voluntarismo. (...) Tal retorno pôde se
mostrar teoricamente alerta, como nas propostas que parecem estar desembocando
em uma auspiciosa superação das antinomias socio-cosmológicas do Ocidente. Mas
ele significou também, em não poucos casos, uma retomada nostálgica de várias
figuras em boa hora rejeitadas pelos estruturalismos das décadas recém-passadas:
filosofia da consciência, celebração da criatividade infinita do sujeito,
retranscendentalização do indivíduo etc. (VIVEIROS DE CASTRO, s.d., s.p.).
5
enormemente no campo dos “direitos”, na sua potência transformadora, tanto
analítica quanto politicamente (RIFIOTIS, 2008; 2012), mas será que a
normatividade constitui sujeitos como seu efeito necessário? Creio que não, e
como afirma J.Butler (2004), a norma inaugura a reflexividade do sujeito e dá a ele
uma forma, um lugar, reconhecido/legitimado socialmente, mas não constitue
sujeitos.

Falando com os sujeitos dos direitos…

Para dar concretude ao debate, trago resultados de pesquisas etnográficas que


oriento há quase dez anos com crianças e adolescentes em Florianópolis, e, nos
últimos anos com "jovens em conflito com a lei” e a teoria nativa da “vida loka”.
São trabalhos eminentemente etnográficos através dos quais tive a possibilidade
de compartilhar reflexões teóricas, ler diários de campo, discutir estratégias de
pesquisa e análise de vasto material empírico de pesquisas realizadas em
instituições para jovens cumprindo medidas socioeducativas de internação e
semiliberdade.

As reflexões que serão apresentadas são em grande medida caudatárias do


competente trabalho etnográfico de duas pesquisadoras do LEVIS (Laboratório de
Estudos das Violências da UFSC): Danielli Vieira e Tatiana Dassi. Um primeiro
conjunto de trabalhos foi publicado no livro “Um olhar antropológico sobre violência
e justiça” (RIFIOTIS; VIEIRA, 2012). Antes dele tivemos vários trabalhos conjuntos
publicados nos anais da VIII Reunião de Antropologia do Mercosul (Buenos Aires,
2009), intitulado “'Papo de bandido' e a 'vida loka': ensaio sobre modalidades entre
'adolescentes em conflito com a lei' cumprindo medida socioeducativa de
internação em Itajaí” (RIFIOTIS; DASSI: 2009). E, “'Vivendo no veneno’: ensaio
sobre os regimes de modalidades entre ‘adolescentes em conflito com a lei’
cumprindo medida socioeducativa em Santa Catarina”, nos Anais da ANPOCS de
2010 (RIFIOTIS; DASSI; VIEIRA, 2010).
6
*

Começo a descrição etnográfica com uma cena observada durante durante uma
aula ministrada numa instituição para “adolescentes cumprindo medida
socioeducativa, e cujo tema era o trabalho infantil.

A educadora expôs sua posição contra essa prática e citou o ECA para justificar o
seu ponto de vista. A reação dos jovens foi imediata e forte, pois muitos tiveram
ocupações informais desde cedo e acreditam que essa é a prática ideal.

Ricardo contou que cuidava de carros na entrada de um mercado: “pra ter minha
grana e comprar minhas coisinhas”. A educadora continuou a defender sua posição
de que as crianças devem estar na escola, mas os jovens argumentam que
trabalhar e “arranjar alguma coisa para fazer” é a única maneira de comprarem o
que querem. Eles valorizam comportamentos que demonstrem o que eles
entendem como autonomia ou independência. Crianças que vendem balas nas
ruas, cuidam de carros, segundo eles, são “agilizados” e merecem ser respeitados
como tal. Assim como “os moleques” que fazem pequenos serviços para
traficantes, pois eles estão desde cedo “aprendendo a se virar”. Mais do que o
caráter lícito ou ilícito, o que torna a sua ação algo a se orgulhar é o fato dela
demonstrar a capacidade de “se virar”, sem que este estabeleça relações que
sejam percebidas como dependência.

A idéia de que vivem em uma sociedade desigual que lhes nega oportunidades
está presente; no entanto, a ênfase dada pelos jovens está no modo com que
lidam com as adversidades. Nesse sentido, a “vida do crime”, não seria apenas
uma “reação” à desigualdade estruturalmente excludente, mas uma “ação”. Entre
eles, longe de psicólogas, assistentes sociais ou figuras de autoridade, essa é a
narrativa mais comum. São inúmeras as histórias nas quais a “correria” (qualquer
atividade que lhes dê ganhos materiais) figura como algo extremamente positivo.
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Não se trata apenas de um descompasso entre a perspectiva protecionista e as
estruturas incorporadas pelos sujeitos daquelas políticas públicas. E muito menos
uma questão de estratégias didáticas inadequadas.

Estamos diante de uma questão fundamental, que apenas posso aqui descrever
em suas grande linhas: a verdade do sujeito. Um campo ao qual devemos
devemos prestar particular atenção. Um campo de atravessado por disputas sobre
o ser “jovem”, com concepções de infância e adolescência em disputa.

Numa outra ocasião, durante um evento realizado em uma das instituições onde
estavam os jovens, suas famílias e diversas autoridades do município, um juiz
expôs em seu discurso os detalhes da vida de um dos jovens ali presentes.

Contou a todos sobre o dia em que ele foi levado até o Fórum, descreveu o
“estado deplorável” do jovem, falou também de seu pai: “Falei com teu pai ontem,
mas ele não entendeu nada, estava bêbado” e concluiu que, apesar de “teu lugar
não ser aqui”, como a família não era “responsável”, ele teria que ficar ali. Em
seguida, o orador comentou sobre as famílias dos outros jovens. Apontou para o
fato de que a grande maioria, com exceção de dois deles, não tinha um "pai
presente". Enfatizou o “papel dos pais” em suas vidas e deixou claro que deve ter
“faltado” algo para eles estarem ali. Citou a “falta de tempo”, “falta de diálogo” e
afirmou que, certamente, se a “família tirasse um tempo para conversar à noite,
nada disso teria acontecido”. O desconforto dos jovens e de mães presentes era
evidente. Todos se remexiam nas cadeiras e olhavam com uma mistura de raiva e
humilhação para o juiz. No final do dia, depois que todos os convidados foram
embora, o assunto entre os jovens era o discurso do juiz. Um dos jovens
comentou: “se deu bem quem tem pai, meu pai só me fez. Até dei uma choradinha
quando ele falou de ‘pai'". A preocupação daquele jovem era, naquele momento,
não ter a figura do pai em sua vida; acreditava que, se tivesse, teria mais chances
de sair da instituição logo, pois poderia alegar que tinha uma “boa família”.

Sabendo que ideias como “família desestruturada” e “pobreza” são elementos a


partir dos quais os operadores jurídicos interpretam a "trajetória de vida" dos
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jovens, em algumas ocasiões, os próprios jovens os acionam como uma modo de
“justificar” suas ações, dar-lhes um sentido válido na sua interlocução, sobretudo,
com sujeitos ligados ao processo de institucionalização.

É o que observamos, por exemplo, em situações como a relatada por um jovem


depois de voltar do Fórum. Ele conta sentando-se ao lado da pesquisadora
(Tatiana Dassi) e de outro jovem no pátio, ele contou que, durante a audiência,
quando a promotora lhe perguntou por que havia roubado ele respondeu que foi
“porque estava com fome e não tinha o que comer, fui roubar bolacha”.

Ele comentou que foi “meio humilhante” ter que falar isso, mas “era o jeito”. Outras
vezes os jovens podem acionar a forma de “vítima”, muitas vezes implícita nesta
leitura, para conseguirem o que querem5.

Um outro jovem, Luis, no dia em que conheceu a pesquisadora (Danielle Vieira),


contou-lhe parte de sua história de vida. Ele disse que sua família é “muito pobre”
e, porque não tinha dinheiro para comer, nem pai, ele foi obrigado a trabalhar para
um traficante. Afirma saber que “essa vida é errada”, mas que enquanto a
“sociedade” o tratar como “lixo” e for injusta, traficar e roubar são sua única opção.
Luis, em seu relato, articula todos os elementos necessários para que possamos
caracterizá-lo como uma “vítima” a partir da interpretação da “situação de
vulnerabilidade”. Este é o mesmo jovem que, semanas depois, irritava-se com os
voluntários que atuavam na instituição pois, em sua perspectiva, eles o viam como
“miserável” e o olhavam com “pena”.

Portanto, a forma de vítima, em si, não é o que determina se o jovem se sentirá


humilhado ou não. A linha que separa estas duas experiências é tênue, e, para que
o jovem não se sinta humilhado, inferiorizado, ele precisa sentir que foi ele quem
se “apresentou” dessa maneira, que a decisão foi sua. Nestas situações o jovem

5 O “sujeito-vítima” é uma construção epistêmico-política com a qual precisamos aprender a dialogar para
situar os nossos próprios trabalhos sobre violência, justiça e Direitos Humanos. Os estudos de Didier
Fassin sobre a economia moral e a condição de vítima: La raison humanitaire. Une histoire moral du
temps présent (2010), e, em parceria com R.Rechtman, L’empire du traumatisme. Enquête sur la
condition de victime (2007), apontam para uma leitura renovada da dimensão moral nos estudos da
“violência” (Rifiotis, 2008; 2011a).
9
se apresenta como vítima por algum objetivo específico, “representa” um papel
legitimado pelo discurso social, político e institucional. Sabendo que esta é uma
interpretação válida para sua situação, ele a aciona para provocar em seu
interlocutor a “pena” e conseguir algo, seja ajuda, dinheiro ou simpatia. Acionar a
“forma de vítima” deste modo torna a relação duplamente assimétrica, pois o jovem
se coloca na posição de inferioridade para poder assumir, na sua perspectiva, o
controle da situação.

Neste ponto da apresentação é importante destacar que o fato de acionarem


conscientemente elementos como “pobreza” para justificar seus atos, em
determinadas situações, não significa que este acionamento seja apenas uma
questão de “manipulação” de argumentos nos quais não acreditam.

Nem sempre a interpretação acionada a partir deste marco é uma questão de


intencionalidade ou uma estratégia para conseguir algo. Além do mais o que
poderíamos chamar de “manipulação”, para eles está no registro da sua
capacidade criativa no enfrentamento das adversidades6.

Para além da tensão entre ação e vitimização, que apresentamos até agora, no
quotidiano das instituições, segundo relatam as pesquisadoras (Danielli Vieira e
Tatiana Dassi), era bastante comum os momentos nos quais os jovens reunidos,
compartilhavam histórias sobre suas “aventuras” nas ruas. Nestes momentos os
jovens mobilizam seus corpos por inteiro, ficam em pé, fazem gestos, sons, caras
e bocas, dão tiros no ar, correm, esquivam-se, pulam muros imaginários. As
histórias parecem estar inscritas em seus corpos não apenas nas cicatrizes que
mostram com certo orgulho, mas também nas emoções que suscitam quando
rememoradas. Os jovens se referem a esta emoção como “adrenalina” e, em seus
relatos, eram comuns comentários sobre este assunto, como: “adrenalina de correr
dos home [forma genérica de designação de agentes policiais], pular muros e se
esconder”, ou a adrenalina de “tá no meio do assalto sabendo que os home podem

6 Abre-se aqui um capítulo fundamental sobre o “sujeito-vítima” e a economia moral das políticas públicas
(RIFIOTIS, 2013).
10
chegar a qualquer momento”. A grande maioria dessas narrativas envolvia algum
tipo de atividade ilegal (roubos, uso de armas ou drogas, perseguições policiais). O
que todas elas pareciam ter em comum, no entanto, era a emoção que produzem.
Aqui, a intensidade da performance narrativa, evidente no modo como mobilizam
seus corpos ao narrar, parece falar também da intensidade daquelas experiências.
Numa perspectiva fenomenológica, Jack Katz (1988) discute essa dimensão dos
atos de transgressão e aponta para a necessidade de se pensar o “crime” e sua
“lógica situacional”, ou seja, compreender a experiência da transgressão em si. De
fato, a maioria dos estudos sobre “crime” focaliza a análise no contexto psicológico
e social dos “criminosos”, o background, negligenciando a atração que a
experiência de transgressão pode exercer, graças as emoções e sensações que
produz. Para os jovens que participaram da pesquisa, esse aspecto vivencial é
fundamental, como percebemos na fala de Francisco.

Francisco foi um dos casos mais “bem sucedidos” da instituição na qual estava,
segundo os funcionários. Isso porque já há alguns meses era estagiário em uma
empresa de prestígio na região, freqüentava cultos evangélicos, era bastante
responsável e prestativo. Além disso, estava determinado a não voltar para o
“mundo do crime” e diariamente marcava esta posição, corporalmente,
esteticamente e discursivamente. Bastante contido em seus movimentos, usava
um vocabulário diferente dos outros jovens, não falando palavrões ou gírias,
vestindo sempre calça e camisa, não usava anéis, correntes de prata ou boné.
Quando não estava trabalhando ou na escola, atividades que tomavam grande
parte de seu dia, estudava, limpava seu quarto, ouvia música gospel e ia a igreja.

Contudo, era considerado um dos “casos mais sérios” que já havia passado pela
instituição. “Bandidão de responsa tinha medo dele”, conta Bernardo, um jovem
que o conheceu nas “ruas”, quando Francisco era traficante. Mas Francisco tinha
uma preocupação, que dividiu com a pesquisadora em inúmeras ocasiões,
determinado a não voltar ao “mundo do crime”, preocupava-se com seu futuro, pois
acreditava ser difícil encontrar um emprego que pudesse satisfazê-lo. Dizia que
11
uma das coisas que ele mais gostava no seu “trabalho” de traficante era que ele
nunca era monótono. Como a qualquer momento algo podia acontecer – a polícia
podia aparecer, alguém podia tentar roubá-lo ou tentar “tomar” sua “boca” – ele
tinha de estar sempre “ligado”. Admite que, muitas vezes, este estado de eterna
vigilância era cansativo e estressante, mas, no final das contas, realmente gostava
do movimento constante, das perseguições, dos tiros, em suas palavras, da
“adrenalina” que esta atividade lhe proporcionava. Quando questionado, pela
pesquisadora, sobre porque, quando falava sobre sua vida de traficante, nunca
havia mencionado sentir falta do aspecto financeiro, Francisco explicou que
certamente era essa uma “grande vantagem” daquela vida, e além disso, disse ele,
“tem mulher atrás de ti e todo mundo te respeita”.

Dizia sentir falta disso também, contudo, segundo ele, “isso a gente consegue de
outro jeito, do jeito certo”. E explicou que o “tipo” de mulheres interessadas por ele
naquela época não é o mesmo que busca agora, uma companheira que o
acompanhe na igreja. Além disso, agora quer respeito por ser um “soldado de
cristo” e não um ”bandido”.

A história de Francisco é interessante na medida em que nos ajuda a pensar sobre


a dimensão da experiência do “crime”. O dinheiro “fácil” do tráfico passa a ser um
“pecado”, o prestígio do traficante, um respeito vazio. Contudo, há ainda algo que
sua vida de traficante lhe proporcionava e que agora ele não tem, algo que lhe faz
falta, a “adrenalina”.

Para completar o quadro etnográfico, é preciso ainda mencionar o “coisa ruim”.


Como no caso de um jovem que seria transferido para uma instituição na cidade
onde nasceu e na qual sua ex-companheira e filha moravam, e que contou que
seus pais estavam mortos e que toda a sua família estava “no tráfico”: a maioria de
seus tios e tias, segundo ele, estava na cadeia, “Menos a Zeca que me criou, ela é
batalhadora e guerreira, não é coisa ruim que nem a gente”. Ele tinha o nome de
Zeca tatuado na perna e explicava: “porque tenho orgulho dela, ela não é
estragada” (o mesmo jovem tinha “VL” – leia-se “vida loka” – tatuado na mão).
12
Falava de sua ex-companheira e enfatizava várias vezes que ela, como sua tia
Zeca, era “trabalhadora”, “guerreira”. Ele deixava claro que existia uma linha que o
separava dessas duas mulheres, porque ele tinha “maldade”. Em seguida, ele
buscou em sua “mala” – um saco de lixo preto – uma carta escrita para ele no
início de 2005 por uma “senhora” que fazia trabalho voluntário em uma instituição
na qual ele esteve internado. Era uma carta gasta e manchada, escrita com
simplicidade, onde dizia: “Deus salvou um menino como você que ninguém
acreditava que podia ser bom e pode salvar você também”. O fato dele guardar
essa carta por tanto tempo é bastante significativo. Demonstra algo que foi
observado muitas vezes durante a pesquisa: a surpresa dos sujeitos frente às
pessoas que eles respeitam e consideram “boas” e que não os classificam como
“maus”. Principalmente porque, normalmente, em relação a essas pessoas, eles
próprios se classificam como “maus” e avaliam suas escolhas como o “caminho
fácil da vida do crime”, em oposição com a “batalha” diária do trabalhador.

Tais questões fazem parte do cotidiano dos sujeitos da pesquisa e eram objeto de
conversas entre eles. São histórias como as de um jovem que, aos oito anos de
idade, saiu de casa e foi morar nas ruas com sua irmã de dez anos. Durante uma
conversa informal entre a pesquisadora, ele, e alguns outros jovens, sobre família
e infância, ele contou que isso aconteceu porque ele “aprontava muito” e sua mãe
não tinha mais como “controlá-lo”. Ele afirmou ter grande admiração por sua mãe –
tinha tatuado em seu corpo “mãe te amo” – e se referia a ela como uma mulher
“forte”. Alguns anos mais tarde, ele voltou para a casa da mãe; dois meses depois
foi institucionalizado pela segunda vez. Sua mãe ficou muito desapontada e,
segundo ele, no momento uma de suas preocupações era conquistar a confiança
dela novamente. Ele dizia que desta vez ia deixar de “ser mau”; ele perguntava
constantemente se a pesquisadora acreditava que alguém “ruim” como ele tinha
chance de “se recuperar”.

Um jovem, Tistu, contou a pesquisadora (Tatiana Dassi) depois de alguns meses


de pesquisa que, durante um período considerado por ele particularmente difícil de
13
sua vida: “Tudo que eu queria era ser um menino normal, ir pra praia com minha
família no domingo”, mas, como ele já havia cometido infrações e era usuário de
crack, sua família não o aceitava em casa. Quem o acolheu na época foi um
traficante, para quem o jovem realizava pequenos trabalhos em troca de moradia e
droga. O traficante o tratava como um filho porque, em suas palavras, “eu era
muito agilizado”. Para ele, estar institucionalizado não era algo muito justo, pois ele
havia tentado ter uma vida diferente, mas ninguém havia lhe dado uma chance, só
o traficante que lhe abrigou. No entanto, ele tinha muito medo de sair da
instituição, como confessou, pois “não vou resistir fazer coisa ruim”.

Considerações Finais

Trouxe para o debate relatos que falam sobre injustiça, vitalização, vulnerabilidade
social, mas também orgulho e autodeterminação e a ideia de uma pessoa má
(“coisa ruim”), ou seja, a “vida loka” na sua pluralidade. As pesquisas mostraram
que não se trata de elementos estanques de um código moral, pois eles não são
excludentes, nem demonstram fragmentação moral ou descentramento dos
sujeitos, mas um uso marcado pela performance situacional. Por isso, nos
referimos a eles como elementos num arranjo compósito, no qual um ou outro é
acionado contingentemente, e através desse jogo se dá uma auto-formatação dos
sujeitos.

De onde decorre uma conseqüência teórica: a pluralidade não é redutível a una


forma, seja ela “jovens em conflito com a lei”, tipicamente relacionada ao ECA,
mas também “ethos guerreiro” (ZALUAR, 2004), nem virilidade ou visibilidade, etc.
A pesquisa mostrou que em muitos casos a inserção no tráfico é relatada como
uma atitude consciente, no sentido que se inscrevem no tráfico sabendo que as
consequências são “hospital, cadeia, caixão”. A questão é que, apesar de tudo
isso, “essa vida” se mostra como um caminho para muitos jovens.
14
Finalmente, dentro dos limites do presente texto sobre "jovens cumprindo medidas
socioeducativas", gostaria de reforçar a necessidade de um distanciamento e uma
reflexão crítica dos discursos da indignação, assim como de análises que capturam
estes sujeitos na forma de vítimas. O desafio está em tecermos um discurso
analítico que permita nos refletir sobre uma pluralidade sintética, como foi
condensado na fala de um dos sujeitos da pesquisa: “você só precisa saber uma
coisa dona, a vida, a vida é loka”. Outro jovem presente complementa: “escreve
isso dona, é tudo que eles precisam saber”. Os dois jovens resumem, naquela
ocasião, a “vida” em uma frase, nada mais precisa ser dito aos “outros”. A
densidade e o peso da “vida loka” que alguns jovens tem inscrita na pele e nas
suas experiências é uma fórmula que não apaga seus componentes, todos bem
conhecidos e vividos pelos “jovens em conflito com a lei”.

Portanto, a questão da multivocalidade reside por um lado na contingência e na


dimensão relacional vida social dos sujeitos. Capturados na forma vítima e no
discurso vitimário, ou no seu oposto, os sujeitos desaparecem enquanto agentes e
potencialidades para serem capturados em registros fechados que negam a sua
dinamicidade, capacidade de agência e criatividade. Estamos frente a uma dupla
captura. Os sujeitos estão em devir e como tal devem ser pensados. O que nos
leva a procurar os modos pelos quais eles se constituem a si mesmos como
sujeitos morais.

O escopo de questões abordadas mostra a relevância de trabalharmos numa


perspectiva crítica, visando o desenvolver estratégias de pesquisa éticas e
engajadas. Afinal, numa “antropologia diplomática” (Latour, 2004) , pauta e os
sentidos do que é relevante não nos pertencem e nem estão dados de início, mas
são resultados possíveis da interlocução. O que exige um estado de permanente
auto-reflexão e uma postura que valorize a simetrização.

Finalmente, retomando o ponto de partida desta apresentação e a pergunta sobre


“que sujeito é esse?”, devemos lembrar que estamos no meio de um embate
judicializante e nossas posturas não podem pretender neutralidade, elas devem
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refletir sobre como operar analítica, política e eticamente entre a solidariedade, a
vitimização e a agência do sujeito. Afinal, como categorias de análise e de luta
elas são eminentemente construções epistêmico-políticas.
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