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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

CAOS-CONSTRUÇÃO. O FORMAL E O SENSORIAL NO


CINEMA DE LYGIA PAPE1
Ivana Bentes2
Resumo: O impulso construtivo e a expressão sensorial no cinema da artista Lygia
Pape. Contemporânea do Cinema Novo e do Cinema Marginal, figura destacada
no movimento neoconcretista, ao lado de Helio Oiticica e Lygia Clark, os filmes de
Lygia Pape continua a margem dos estudos de cinema. O texto apresenta alguns
conceitos da sua obra cinematográfica em diálogo e tensão com o campo cultural
dos anos 60 e 60, os movimentos de artes plásticas destacando a singularidade da
sua proposta caos-construtivista de anti-filmes curtíssimos, filmes-poemas, filmes-
estruturais e criação de “espaços imantados”
Palavras-Chave: 1.Lygia Pape 2.cinema experimental 3. Caos-construção

Nas décadas de 60 e 70 o cinema surge, dentro e fora do ambiente das artes plástica,
como um lugar privilegiado de invenção de linguagens e de experimentação, provocando um
diálogo entre diferentes meios.
O “efeito-cinema” (DUBOIS, P. 2003 p.7), muito visível no contexto da arte
contemporânea, foi um importante ponto de inflexão e mesmo de ruptura tanto no contexto
internacional dos anos 60 e 70 (cinema de artista, cinema expandido, cinema experimental,
etc.) quanto na cena cultural brasileira (Cinema Novo, Cinema Marginal, Super-8, etc.), com
grande impacto em termos conceituais e processuais nos diferentes campos.
O cinema _ suas figuras de linguagem, o cinetismo, os procedimentos de montagem, a
incorporação do tempo e da duração à espacialidade das artes plásticas, seu processo
artesanal-industrial _se inscreve ainda no debate em torno de uma modernidade periférica ou
alternativa. Na busca, trilhada por experimentadores e conceituadores de diferentes campos,
de uma “linguagem-Brasil” (OITICICA. H. 2006 p. 278)
É dessa forma que entendemos o interesse de Lygia Pape e sua intensa relação com o
cinema de forma estrutural, não como algo “intermitente” ou lateral a sua obra, mas uma
questão que atravessa o campo conceitual e experimental e a partir do qual essa artista multi-
meios, experimentou e apontou processos.
Para Lygia Pape e para o grupo neoconcretista carioca (especialmente Hélio Oiticica e
Lygia Clark) o que estava em questão era uma expansão da poética espacial das artes

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho “<Estudos de Cinema, Fotografia e Audiovisual>”, do XX
Encontro Nacional da Compós - UFRGS, Porto Alegre, 14 a 17 de junho
2
ECO-UFRJ ivanabentes@gmail.com

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plásticas para uma poética temporal, do devir, do corpo, “do quadro para uma estrutura
ambiental” (OITICICA. H. 2006 p. 147) privilegiando o processo em detrimento da obra, em
que “o conceitual deveria submeter-se ao fenômeno vivo”. (OITICICA. H. 2006 p. 277)
Nas palavras de Hélio Oiticica, “não existe ‘arte experimental’, mas o experimental,
que não só assume a idéia de modernidade e vanguarda, mas também a transformação radical
no campo dos conceitos-valores vigentes; é algo que propõe transformações no
comportamento- contexto (...)” (OITICICA. H. 2006 p. 280)
É nesse contexto, de caos-construção que as experiência de Lygia Pape com o cinema
se constituem, vinculadas a uma inquietação mais ampla e a um momento de extraordinária
efervescência em termos de proposições, conceituações, manifestos e experimentações
estéticas, culturais e sociais. Concretismo, neoconcretismo, releitura da antropofagia,
tropicalismo, chanchada, cinema novo, cinema marginal, a novidade da televisão, etc.
O neoconcretismo surge, segundo Ronaldo Brito como uma “série de experiências de
laboratório” que colocaram “as questões mais avançadas e produtoras de rupturas da época”
inclusive por não estarem em “confronto com um mercado” (BRITO, R. 2006 p. 74) .Ruptura
dos neoconcretistas com o racionalismo, o formalismo, o cientificismo concretos, em nome
da “expressão” .
“O neoconcretismo representou a um só tempo o vértice da consciência construtiva no
Brasil e a sua explosão” (BRITO, R. 2006 p. 74). Tendo como referências, Mário Pedrosa,
que definiu a arte como “exercício experimental da liberdade”, a fenomenologia de Merleau-
Ponty, o existencialismo, entre tantos outros arsenais teóricos e estéticos mobilizadas em
contraposição as teorias da Gestalt, a semiótica de Peirce, a Teoria da Informação de Norbert
Wiener ou na critica ao “reducionismo concreto” e a linguagem geométrica.
Se o concretismo buscava intervir no centro da produção industrial, com as novas
concepções cibernéticas das relações sociais, valorizando as matrizes da comunicação e da
cultura de massa_ o design, a comunicação visual, os signos, antenado com o projeto
desenvolvimentista brasileiro_ o neoconcretismo apontava para o caos-construção, a
marginalidade, a “linguagem-Brasil”, o criador anônimo. O processo e não o produto.
A diferença entre o concretismo paulista e o neoconcretismo carioca, pode ser
sintetizada no provocativo texto de Aracy Amaral que diz:
“em São Paulo os escultores faziam escultura, os pintores não sairiam da
bidimensionalidade do quadro, ao passo que no Rio se dá o desenvolvimento da
pesquisa de uma Lygia Clark, por exemplo, da pintura ao relevo, do relevo ao não-

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objeto, deste ao trepante e dai as experiências corpo-tato, até desembocar na não-arte,


na auto expressão, na integração totalizadora da artista com a realidade envolvente”.
A mesma trajetória poderia ser descrita sobre a obra de Oiticica ou de Lygia Pape,
anos depois, nesse se abrir para o meio circundante passando do objeto ao corpo,
deste ao relacionamento com o outro, ao filme” (LP), ou aos labirintos e destes a
palavra dita, escrita, registro (H.O) (...) “ (AMARAL, A. 2006, p. 85)

A inflexão neoconstrutivista aparece opondo a “expressão” ao produto. As


proposições neoconcretas apontam para uma investigação livre, pesquisa estética, inserção e
mobilidade no espaço, a relação com o meio-ambiente.
É importante sublinhar que o neoconcretismo se filia ainda fortemente ao ideário
antropofágico, que vislumbra uma dobra-brasileira no contexto global. A antropofagia relida
na era da sua reprodutibilidade técnica, poderia ser um postulado paródico para pensarmos
certo cinema da época assim como alguns procedimentos que vamos encontrar em alguns
filmes de Lygia Pape e nos filmes do Cinema Novo e cinema experimental dos anos 60 e
70.
O cinema (e depois a televisão e o vídeo) com seus planos-sequências, travellings,
montagem, fusão, manipulações do tempo e do espaço, vinha renovar a narrativa literária,
inventando novas sintaxes e um pensamento audiovisual extremamente elaborado.
Procedimentos como carnavalização, paródia, alegoria, meta-linguagem, fusão,
colagem, polifonia, câmera-personagem, choque e uma nova relação com o espectador. Caos-
construção que marcam as propostas e experimentações cinematográficas de Lygia Pape.
Nesse conjunto de filmes-em-fluxo que não podem ser dissociado do restante da obra,
destaco alguns filmes-conceitos, filmes-proposições, como Catiti Catiti, Eat-me, Ours
Parents, La Nouvelle Creation, que funcionam expressando, numa colagem-conceitual,
questões caras a Lygia Pape e a toda uma geração.
Catiti Catiti ou Um xadrez de palmeiras, filme de 1974, faz uma fusão a quente da
simbologia tupinambá, da devoração antropofágica, do romantismo e o modernismo
brasileiros, com alusões às vanguardas históricas e imagens das praias cariocas.
O filme vai criando uma trama de signos: uma tela de Tarsila do Amaral, montanhas
com palmeiras; uma cena de Marcel Duchamp jogando xadrez; uma imagem plástica de um
mar azul, cenas urbanas de moças de biquíni e rapazes pelas areias de Ipanema e em off uma
narração “paródica”, dita com sotaque português carregado que declama textos “fundadores”
de uma tradição luso-afro-brasileira-tropical. O poema Os Lusíadas, de Luís de Camões, a

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Carta de Pero Vaz de Caminha descrevendo as belezas e a graça da terra descoberta; a


Canção do Exílio, de Gonçalves Dias.
A narração em off, cheias de interjeições (Ai, Jesus que porto formoso!) cria um
efeito de comicidade imediata frente a paisagem (Ilhas Cagarras, Pão de Açúcar, Pedra da
Gávea) e ao “povo” brasileiro descoberto, os novos índios a beira-mar. Vemos imagens de
garotos jogando futebol, “garotas de Ipanema”, desfilando sua beleza e expondo “suas
vergonhas” de biquíni. Sons tribais, batuques africanos e indígenas e sons industriais, sons de
pássaros e flautas criam uma trama sonora heterogênea.
Catiti Catiti também coloca na mesma trama de imagens signos publicitários e
urbanos, como a marca do posto de gasolina Shell e uma definição das mulheres que desfilam
pela praia como “objetos de sedução”. O princípio antropofágico da “devoração” cultural é
trabalhado em uma montagem antropofágica, que tudo deglute e mastiga, criando uma síntese
cinematográfica, entre a afirmação, a paródia e a diluição dos signos de brasilidade. O filme
Catiti Catiti ecoa ainda o provocativo texto de Helio Oiticica, Brasil Diarréia, de 1970, um
manifesto pós-antropofágico sobre a necessidade de se criar uma “linguagem-Brasil”.
Vemos no filme a versão “atualizada” e cômica do mito fundador do Brasil baseado
no cruzamento “harmônico” das três raças: o índio brasileiro, o branco português e o negro
africano. Um índio canibal, um português vestido com a camisa do time de futebol do Vasco
da Gama e um negro mascarado como um marginal, com um tijolo ameaçador na mão.
Pape introduz toda uma série de questões políticas, o Brasil tropical, produto de
exportação, dos clichês ufanistas e da alegria, o mito da “harmonia” entre as raças e todo o
discurso triunfalista da própria ditadura militar. Em uma das imagens mostra uma primeira
página do Jornal do Brasil sobre o Ato Institucional no. 5 (o AI-5) que cerceou ainda mais a
liberdade dentro da ditadura militar instaurada em 1964 por golpe no Brasil.
O princípio antropofágico da devoração cultural de Oswald de Andrade acaba ao final
do filme numa devoração paródica e literal de melancias, abacaxis, bananas e frutas
tropicais. A comida e frutas sendo lambuzadas pelo rosto dos participantes e descascadas
diretamente com a boca. O grotesco, o nojo, a “gula-consumo”, o Brasil-diarreia que torna
tudo “indiferente”?
A passagem da antropofagia _ forma sofisticada de consumo, modernista,
tropicalista_ para o que podemos chamar de uma “autofagia”, a antropofagia dos fracos que
se auto e entredevoram é numa leitura recorrente da antropofagia no anos 1970 (no cinema o

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filme Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, nos textos como Brasil Diarreia, de
Oiticica, etc.), como entropia e consumismo. Remédio e Veneno.
Quando dizemos que Catiti Catiti é um filme-postulado, estamos sublinhando a
importância da simbologia Tupinambá e a filosofia antropofágica ao longo da obra e do
pensamento de Lygia Pape que em 1980 irá retomar o tema na sua dissertação de mestrado,
defendida no curso de filosofia da UFRJ com o título: Catiti Catiti: na terra dos Brasis. A
ontologia canibal será importante para se pensar uma arte brasileira experimental que funde o
mais “primitivo” com as questões de ponta das vanguardas modernas para encarar o presente
urgente.
Na passagem do cinema para o campo das artes plásticas, reencontramos o simbologia
Tupinambá em diferentes obras de grande impacto sensorial e visual (a cor vermelha, as
plumas, as baratas e os seios de plástico, etc.) em diferentes suportes (instalações, poesia,
fotografia, etc.) e que trazem uma forte carga política.
Em Memória Tupinambá de 1999 temos dois objetos perturbadores: uma bola coberta
por penas vermelhas de onde sai um pé ensanguentado (restos de uma devoração?) e uma
bola coberta por baratas de plástico (ambas de 50cm de diâmetro). Em Pássaro Mítico
Tupinambá, uma foto do Guará, pássaro vermelho (caro a mitologia indigena e em
extinção) junto a uma poesia que fala em “penas macias rubra-sangue”. Nas várias
versões do Manto Tupinambá, a cor vermelha domina e os objetos e ambientes, como na
sala inteiramente vermelha da versão de 1996.
O manto tupinambá ainda se tranforma numa imensa nuvem vermelha que paira
sobre a paisagem carioca, imantando o território com a presença/ausência dos povos
indígenas, expulsos dessas terras. A própria Lygia Pape recebe o manto tupinambá na
foto-montagem Bus Stop (1999). E na Mostra do Redescobrimento, em 2000, o manto
chega a sua versão monumental com 200 bolas cobertas de plumas vermelhas sobre uma
imensa rede de navio de 64 metro quadrados.
Nessa operação plástica e política ainda se destacam as instalações Banquete
Tupinambá (mesas e cadeiras cobertas com penas vermelhas e restos de seios) e Carandirú,
instalação de 2001, em que Pape transfigura o massacre dos detentos no presidio do
Carandirú em uma cascata de sangue.
A instalação traz ainda projeções de gravuras vindas da obra de Hans Staden,

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descrevendo a guerrra entre os índios tupinambás e os portugueses. Massacres no presente e


no passado, banhos de sangue.
Aqui, o que nos interessa nessa brevissima descrição das obras é o poder de síntese,
de alusões, de fusões, de “montagem” em que uma idéia atravessa difrentes suportes: filme,
poesia, fotografia, instalação, projeção, gravuras, objetos heterogênos e se transmuta em cor,
sensações, ritmos. Formal-sensorial.
Esse mesmo tipo de procedimento, a monumentalização e desconstrução do manto
Tupinambá, sua suntuosidade e violência atravessada por simbolismos, encontramos, e outra
chave e tom, no filme Our Parents (1974), onde o imaginário em tornos dos índios brasileiros
é desconstruido e re-construido a partir de imagens de indios em cartões-postais. Imagens que
eram vendidas em bancas de jornais ou consumidas nas revistas de variedades.
As imagens inicialmente ameaçadoras, exóticas, ou mesmo eróticas, indios
guerreiros, índios botocudos, jovens índias nuas com os seios a mostra, vão dando lugar a
imagens que nos aproximam dos “nossos parentes”, a relação de um índio que brinca com o
filho, os ornamentos e pinturas as mais sofisticadas pelo rosto e corpo; as casas/malocas; a
integração com o meio-ambiente e a relação íntima dos corpos com os animais domésticos.
A sensação de estranhamento e identificação é provocada pela própria forma de
mostrar os postais. A câmera passeando, parando, apontando para as imagens-fixas,
literalmente “clichés”, que ganham vida e sentido pela montagem e pela trilha sonora, com
registros de tribos.
Para Pape “as ideias poéticas expressam-se melhor com imagens concretas que
comentários", diz citando Bashô e a filosofia zen. Um tipo de pensamento plástico e
audiovisual que podemos encontra no seu curta de estreia, La Nouvelle Creation de 1967.
Nesse filme curtíssimo de 50 segundos_ baseado no livro “Terra dos Homens”, de Saint
Exupéry, realizado para o Festival de Montreal, no Canadá e premiado_ Pape mostra os
movimentos lentos e flutuantes de um cosmonauta na imensidão do espaço sideral, conectado
a dua nave por um tênue cordão umbilical.
A imagen do astronauta, cedida pela NASA, que começava as explorações espaciais,
é montada, num corte seco e abrupto, com uma tela vermelho-sangue e se ouve o choro de
uma criança. Dois cosmos, dois mundos, antes e depois do “corte” violento que nos tira do
conforto do ventre, nos desconecta da “casa” , da “nave”, da “Terra” que conhecemos e que
nos nutre e nos joga no espaço infinitamente grande dos novos mundos.

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Através da montagem precisa, e da cor vermelha que inunda as imagens (processo de


“viragem”, um banho químico que altera a cor) cria-se um filme-poema que expressão a
“nova criação” e o “novo homem”. Pape nos remete a uma ecologia e percepção cósmicas.
A idéia dos filmes-poemas de Pape reverberam as propostas da poesia-concreta que
propunha uma comunicação não-verbal. No manifesto de 1958, Plano-Piloto Para a Poesia
Concreta podemos encontrar algumas questões cara a poética fílmica e plástica da artista.
Se a poesia concreta 3 buscava integrar o som, a visualidade e o sentido das palavras
numa síntese “verbivocovisual”, segundo a a expressão James Joyce, Lygia Pape propunha
realizar poemas-visuais , “anti-filmes” ou ainda filmes em processo.
Como dar solução formal a temas politicos, ecológicos, sociais sem instrumentalizá-
los? Como aliar o rigor construtivo a sensorialidade? Essa parece ser uma das questões
decisivas na trajetória de Lygia Pape. Um dos filme que responde de forma rigorosa a essa
questão é Eat Me, de 1975, projeto que incluia também duas instalações. Nesse filme e nesse
trabalho surge ainda um dos temas recorentes do campo cultural a relação arte-consumo-
corpo.
Eat-me é um filme “estrutural” no sentido proposto por P. Adams Sitney de “um
cinema de estrutura onde a forma do filme inteiro é predeterminada e simplificada, e esta
forma é a impressão primeira do filme”. (SITNEY, P. 1979) Entre as características do filme
estrutural predomina a relação entre forma e estrutura, a posição de câmera fixa, o efeito de
flicagem, no caso de Eat-me uma pulsação luminosa produziada pela alternância de bocas em
super-close.
Também é um filme que utiliza os princípios do “cinema métrico” proposto por Peter
Kubelka e que antecede o cinema estrutural. O filme métrico tem como base o ritimo
determinado pela projeção de imagens estáticas e impulsos luminosos. É o que acontece
“entre” uma imagem “estática” e outra, produzindo uma pulsação. Nas palavras de Pape, no
seu texto para a Mostra Cinema Marginal:
“A edição do filme é feita matematicamente, isto é, as partes do filme são cortadas
na medida métrica a partir de um princípio: dividi o filme em duas partes, depois
dividi a metade em outras duas e assim sucessivamenrte até o final, conseguindo uma
pulsação que vai em um crescendo até o fim. Corta-se a imagem sem a preocupação
de uma descrição do momento - somente um metro determina o corte” (PUPPO e
MADDA, 2002 s/p)

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Em Eat-me (título apresentado sobre um fundo vermelho) vemos apenas bocas


masculinas em super-close (do artista plástico Artur Barrio e Cláudio Sampaio) filmadas por
uma camera fixa e cujas imagens se alternam em ritmo cada vez mais acelerado e “obsceno”
enquanto engolem e expelem uma pedra colorida e uma outra boca feminina que engole e
expele uma salsicha com ketchup. A imagem em close das bocas, com um bigode negro,
dentes brancos, saliva, língua, com lábios vermelhos se confunde com olhos, vagina, ânus,
orificios sensuais, sexuais, entre a sedução e o repulsivo.
As imagens são acompanhadas pelas frase “gula ou luxúria?” escrita em alemão,
inglês, italiano, português e espanhol. Os dois pecados capitais, da boca e do desejo
insaciável, o deixar-se dominar pelas paixões relacionam erotismo e consumismo. As bocas
sensuais/sexuais no clímax da excitação produzida pela montagm cada vez mais acelerada
são interrompidas nos seus movimentos de engolir e expelir por um anúncio publicitário das
“Conchas Cook”.
A ambiguida das imagens, sua afirmação e critica dos excessos do corpo e do prazer,
da imagem-boca que consome e é consumida aponta para o próprio impasse da arte-consumo.
Num momento em que a publicidade, o design, a “indústria cultural” ganham visibilidade no
contexto brasileiro, a questão pode ser sintetizadoa pela proposição de Hélio Oiticica que diz:
“Fugir ao consumo é ter uma posição objetiva? Claro que não. É alienar-se, ou melhor
procurar uma solução ideal, extra - mais certo é consumir o consumo como parte dessa
linguagem" (OITICICA, H. 2006 p. 278)
A questão do consumo (da arte, do corpo, da sexualidade, da mulher, do feminismo),
sua ambigüidade e desconforto, é explorada por Lygia Pape com a inserção de novos
elementos na instalação Eat-me: a gula ou a luxúria (1976), desdobramento do filme. Na
exposição, “objetos de sedução” femininos (batons, pêlos, cílios postiços) aparecem vendidos
em saquinhos em um banca de camelô que expões ainda textos feministas. Tudo é
cosumível? Da antropofágia potente de Oswald de Andrade ao Brasil Diarreia, do consumo e
da diluição, descrito por Hélio Oiticica, o remédio pode se tornar veneno e vice-versa.
Os “objetos de sedução” também aparecem em Ours Parents (cuja narrativa paródica
associa imagens das novas “tribos” urbanas: novas “índias”, garotas-de-Ipanema de biquini,
expondos seus corpos. Assim como as jovens índias nuas eram vendidos e expostos junto
com as pin-ups nas bancas de revista. O capitalismo e o consumo “antropofágicos” são uma
questão importante que atravessa até o presente o campo da critica da arte e da cultura.

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Entre os filmes “estruturais” podemos incluir também, Sedução III, Maiakovski e


Ballet Neo Concreto. Filmes-forma, em que a experimentação formal _ o posicionamento da
câmera e as manipulações da velocidade em Sedução III, a forma-anúncio, “agit-prop” em
Maiakovski, ou o próprio registro da obra Ballet Neo Concreto trazem questões conceituais-
formais.
Sedução III, filmado em vídeo em 1999, é um pequeno ensaio sobre o movimento, a
aceleração, o espaço construído. Filmado com uma câmera fixa em plongée (de cima para
baixo) na saída dos passageiros das barcas Rio-Niterói, transforma um “registro” documental
em um filme conceitual. Em que o vai e vem dos passageiros forma um fluxo cada vez mais
indiferenciado. As imagens começam em um ritmo normal, mas percebemos que as pessoas
“entram” nas barcas de costas, de trás para frente. Depois a imagem é invertida em seu fluxo
e apresentada de cabeça para baixo.
A aceleração da imagem, filmada do alto, o percurso dos passageiros que entram e
saem do quadro criam formas “abstratas”, um triangulo, fluxos centrífugos e centrípetos que
“absorvem” as pessoas ou as “expelem” do quadro. Com a aceleração cada vez maior das
imagens, os passantes tornam-se elementos não-humanos: formigas, insetos ou puro fluxo-
energia-velocidade.
A imagem é um campo de forças, fluxo de energias. Lygia Pape materializa e dá
visibilidade a esses “espaços imantados”, um conceito que atravessa vários de seus filmes
especialmente os “registros poéticos” de territórios e espaços urbanos, aglomerações
populares em feiras, mercados, praças, favelas, pensados como pontos de concentração e
dissipação de energia.
No curtíssimo Maiakovski temos outro poema-visual. A Viagem. O perfil de
Maiakovski feito por Rodchenco sobre um quadrado amarelo. Saindo da sua boca lemos o
poema “De rua em RUA no automóvel” , do próprio Maiakovski enquanto pequenos carros
percorrem a borda do quadro. Poesia-concreta. “Cartaz” animado. Peça de agit-prop e
design, campos transversais a poética de Pape. Esse trabalho, feito para o projeto Eletromídia
de São Paulo, foi exibido em displays pelas ruas de diferentes cidades brasileiras. Fechando
os filmes-formas podemos citar Ballet Neoconcreto, registro realizado em 2000 de uma
montagem da extraordinária obra de em parceria com o poeta Reynaldo Jardim 1958
utilizando formas geométricas emancipadas do suporte e movimentadas por bailarinos
profissionais.

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No cinema, Pape iria desenvolver ainda um de seus conceitos mais interessantes com
desdobramentos em diferentes campos. O que chamou de “espaços imantados “ e que
caracteriza filmes como Favela da Maré, Carnaval in Rio, O homem e sua Bainha (1968), e
Espaços Imantados (1968). Nesses filmes problematiza a cidade informal e o criador
anônimo. Inspiradas nas feiras, camelôs, ambulantes, artistas de rua e espaços quaisquer que
se transformam pelas atividades de “criadores”, produtores intermitentes e precariado, Pape
busca dar visibilidade e materialidade a construção de espaços carregados de
potencialidades, uma erótica espacial das aglomerações, encontros fortuitos, agrupamentos
que se fazem e desfazem na fluidez urbana, criando por algum tempo “alianças precárias” e
micro-comunidades. A “imantação” é um princípio de organização no caos, um “atrator” que
cria espaços e temporalidades provisórias e intensas em um espaço urbano despotencializado
e anônimo. A vida das ruas.

Texto e Contexto
Lygia Pape se dedicou a realização de filmes curtos e curtíssimos, filmes conceituais,
estruturais, filmes-poemas, documentações poéticas, registros de obras que ecoam tanto as
questões internas tematizadas nas suas obras ( pós-antropofagia e consumo, corpos vibráteis,
filme-poema, anti-filmes, espaços imantados) quanto questões transversais comuns a
experimentação em Super-8, ao Cinema Novo e ao chamado Cinema Marginal. A própria
artista se situa nesse lugar de dentro e fora em relação aos grupos e movimentos
cinematográficos dos quais participou ou acompanhou de uma forma muito singular.
A artista nunca se “identificou” totalmente com nenhum dos grupos em disputa no
cinema. Deixa clara sua autonomia e forma de “apropriação” dessas experiências, tanto em
relação ao Cinema Novo quanto em relação ao Cinema Undergroud ou Marginal. Duas falas
da própria artista são esclarecedoras:

“Entre os anos 1960 e 1970, assisti a todos os copiões dos filmes do Cinema Novo,
na velha Líder. Era pura visualidade –imagens soltas, brilhantes- e com a
imaginação eu construía estruturas de claro e escuro, como pinturas. Poucas vezes
me interessei em ver os filmes prontos.” (PUPPO e MADDA, 2002 s/p)

“Ser marginal, estar a margem de uma sociedade ainda permanece como um conceito
burguês. Não foi esse cinema marginal de que participei ou participo. Marginal era o

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ato revolucionário de invenção, uma nova realidade, o mundo como mudança, o erro
como aventura e descoberta da liberdade: filmes de 10 segundos, 20 segundos...o
anti-filme.” (PUPPO e MADDA, 2002 s/p)

Lygia Pape realizou letreiros, cartazes de cerca de dez filmes do Cinema Novo: Vidas
Secas e Mandacaru Vermelho, de Nelson Pereira dos Santos, Deus e o Diabo na Terra do
Sol, de Glauber Rocha, O Padre e a Moça, de Joaquim Pedro de Andrada, O Desafio, de
Paulo César Saraceni, A Falecida, de Leon Hirszman, Menino de Engenho, de Walter Lima
Júnior e mais o curtas. Filmes de “ruptura” que inovaram nos temas, nos personagens na
estética (luz estourada, câmera na mão, montagem de choque, etc.) nos procedimentos de
produção e constituíram o moderno cinema brasileiro.
Filmes que dialogavam com o modernismo literário, a poesia concreta, as artes
plásticas, os movimentos musicais e que explodiam os cânones constituindo um novo
imaginário audiovisual brasileiro que se aproximava das inovações no campo das artes, da
música, etc.
Podemos traçar por exemplo uma clara relação entre a estética do filme O Pátio, de
Glauber Rocha, seu filme (curta-metragem) de estréia, e as propostas formais do concretismo
e neoconcretismo. Formalismo e natureza, construção e caos. Um pátio, tabuleiro xadrez
onde os personagens se movimento de forma não-natural. Filme estruturado e com “música
concreta” diz o letreiro, circundado de uma natureza desordenada e exuberante.
Ou mesmo as discussões sobre a luz e o claro escuro no curta-metragem Arraial do
Cabo, de Paulo César Saraceni, fotografado pelo pintor Mário Carneiro e com gravuras de
Oswaldo Goeldi na abertura. Filmes que foram vistos na casa de Lygia Pape com os
diretores, Mario Pedrosa, Lygia Clark, Helio Oiticica e outros (PUPPO e MADDA, 2002 s/p)
Fica claro que havia um campo de questões transversais aos diferentes grupos e um
intenso diálogo, crítico e produtivo. Falando sobre “alguns cineastas que me impressionaram”
Lygia Pape cita: “Nelson Pereira dos Santos em Vidas secas que poderia ser perfeito não
fosse o roteiro linear que lhe tira toda a totalidade. No livro, pode-se abrir em qualquer
capítulo e a história está inteira. No filme é uma concessão. Poderia dizer que teria se tornado
um filme Neoconcreto, se isso significa um elogio” (PUPPO e MADDA, 2002 s/p)
Os conceitos e procedimentos atravessam e fertilizam diferentes linguagens. A
experiência de Pape como gravurista, na extraordinária série Tecelares (1955) de
xilogravuras sobre papel japonês será utilizada na composição do cartaz do filme Mandacaru

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Vermelho (1961), de Nelson Pereira dos Santos, em que as letras surgem carcomidas
“Mandacaru Vermelho (o mais trabalhoso): gravei alfabetos em madeira e imprimi todos os
letreiros, letra por letra, em precioso papel japonês para deixar aflorar a textura da madeira,
como um cordel nordestino.” (PUPPO e MADDA, 2002 s/p). As questões da gravura irão aprecer
na proposta estética de O Guarda Chuva Vermelho, filme baseado nas gravuras de Oswaldo
Goeldi.

Referências

AMARAL, Aracy. Duas linhas de contribuição: concretos em São Paulo/neoconcretos no


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