Você está na página 1de 3

HÁ PEDRAS QUE NÃO SE LEVANTAM, DEBAIXO DELAS MORAM

FANTASMAS

Mia Couto
Escritor e biólogo moçambicano

Os escritores alimentam uma relação equivocada com os outros. Talvez eles sejam
escritores por essa mesma razão: a consciência de que estão equivocados quando
representam o mundo. Os escritores, em geral, não resistem à tentação de ficarem
calados quando lhes dirigem todo o tipo de perguntas. Vão a todas. Têm opinião
sobre tudo: sobre a situação no Iraque, sobre as ameaças climáticas, sobre o destino
do Trump, sobre os caminhos atribulados da COVID-19. Perguntas que não se fazem
a um exímio dentista ou a um engenheiro espacial são dirigidas aos escritores como
se eles fossem dotados de uma sabedoria particular. No meu caso, quando me fazem
essas perguntas, a resposta mais honesta seria confessar: eu escrevo exatamente
porque não sei. Sou um especialista em ignorâncias. E imagino que essa seja a
mesma condição de todos os poetas e escritores: o gosto de reconhecer a sua mais
profunda falta de erudição sobre o mundo. A única habilidade do escritor é
enfrentar sem disfarce este desamparo.

Toda esta palavrosa introdução vem a propósito do desafio que a Fumaça me lançou:
escrever umas tantas linhas sobre a situação de guerra em Cabo Delgado. Quando me
pedem explicação sobre o conflito no Norte de Moçambique, a primeira coisa que me
ocorre é a admissão da minha incapacidade. Sei que esta declaração de não
entendimento não resulta. O mais fácil e o mais lucrativo para um jornal seria
apresentar certezas com a energia com que um jogador de cartas joga um trunfo sobre
a mesa. 

Esta minha contribuição tem a pretensão de sugerir como a abordagem jornalística


da situação em Cabo Delgado tem alertado para a existência de um drama de
dimensão global. Mas nem sempre a abordagem redutora de um certo tipo de
jornalismo nos ajuda ao entendimento das causas daquela violência. 

Quando surgiram os primeiros ataques na província nortenha de Cabo Delgado


alguns sociólogos ligados a ONGs anunciaram que tinham uma explicação sobre o
que estava a acontecer. A elucidação não variava: os revoltosos insurgiam-se contra a
exclusão social, manifestam-se contra práticas injustas de representantes do Estado.
Tratava-se, pois, de uma violência esperada e legitimada contra a violência do Estado
moderno. Essa explicação tinha um “senão”: ela explicava muito pouco. Em todas as
províncias de Maputo acontece a mesma exclusão e a injustiça. Porquê só ali, na
costa de Cabo Delgado, ocorria esse fenómeno? Não existe Estado que não imponha
a sua presença por vias que não tomam em conta as especificidades das práticas
rurais e locais de governação que uns chamam de “tradicional”. 

Por um acaso, posso dizer que conheço aquela região. Desde 2004 que, no meu
trabalho de biólogo, visito os distritos de Palma e Mocímboa da Praia, os mesmos
distritos onde hoje sucedem os ataques terroristas. Perdi a conta às vezes em que, de
tenda às costas, fiz estudos de ecologia naquelas zonas costeiras. Essas permanências
duravam, por vezes, várias semanas. Nas primeiras visitas, eu vi aquilo que
corresponde ao estereótipo que a Europa construiu da “África profunda”.
Cruzávamos na estrada com elefantes, a aldeia onde eu acampava foi objeto de
ataques de leões que, num espaço de três meses, devoraram 25 mulheres camponesas.
A presença do Estado era uma coisa vaga, quase inexistente. Foi ali – e não podia
ser em mais nenhum lugar de Moçambique – que escrevi o romance “A Confissão da
Leoa”. Ao longo do tempo, fui-me apercebendo que entre os camponeses, pescadores
e caçadores daqueles lugares era muito nebuloso o sentimento de pertença nacional.
Quando queria saber do mundo, aquela gente olha para o oceano. É ali que mora
o grande caminho, é por esse grande mar que se encontra o grande cordão que os
mantém ligados a uma identidade antiga e coletiva. Até ao início do século XX,
aquela região, apesar de estar dentro do mapa de Moçambique, funcionava como
parte orgânica de um velho império Swahili que, durante séculos, respondeu perante
o sultão de Zanzibar. 

Era raro ver por ali uma autoridade que representasse o Estado, essa criatura
abstrata e distante cuja cabeça está a três mil quilómetros, lá no Sul, onde se fala
outra língua, se pratica outra religião e se constrói uma outra narrativa do que
será o futuro. As pessoas raramente falavam português, não escutavam nem as rádios
e muito menos as televisões de Moçambique. Sintonizavam as estações tanzanianas.
Aos poucos, porém, aquela paisagem humana foi mudando. E o que eu não via era
bem mais do que era visível. Negócios obscuros de drogas, de negócios de trânsito de
imigrantes vindos dos Grandes Lagos, de venda de rubis fizeram enriquecer
camponeses pobres que beneficiavam da ausência total do Estado. Não se pode ser
ilegal quando a lei do Estado não prevalece. Não havia outra lei senão os
mandamentos locais. Não era preciso ser informal. Porque faltava o formal.
Camponeses viraram garimpeiros, pescadores viraram transportadores de
mercadorias, caçadores viraram motoristas que transportavam cargas humanas.
Enfim, uma terra completamente periférica passou a sentir que era o centro e que
vivia bem sem a presença de outros. Mas a riqueza criada por esses pequenos e
clandestinos negócios deixava de lado a grande maioria da população local. 

De repente chegou o Estado. E quis impor ordem. Quis controlar, quis ficar dono
como é da sua própria natureza. Chegaram também as empresas estrangeiras. Que
obrigou a que se pagasse impostos e exigiu dos camponeses ricos e pobres que
passassem a ser cidadãos de um Estado moderno. Esse foi o grande primeiro embate.
Essa modernidade que assim se estabelecia roubava espaço aos mecanismos locais
legítimos (e sobretudo os ilegítimos) que se haviam estabelecido. 

Mas houve mais, houve uma invasão progressiva de profetas radicais que, em nome
da religião, preparavam a violência que hoje se manifesta. Jovens que tinham sido
enviados para “estudar” na Arábia Saudita e no Sudão regressavam como
mensageiros de uma nova verdade. E que consideravam que o islamismo há séculos
estabelecido na região era uma deturpação de uma leitura mais pura do Alcorão.
Testemunhei encontros de violência verbal e física entre os muçulmanos já instalados
em Cabo Delgado e os que chegavam vindo de outras madrassas, de outras
geografias. Em 2004, fui obrigado a fugir do pátio de uma mesquita para onde eu
tinha sido convidado para falar com a comunidade religiosa. Inesperadamente, a
mesquita foi assaltada violentamente por jovens muçulmanos que defendiam
“outro” Islão.

Vou deixar de lado outras dimensões daquelas sociedades da costa de Cabo Delgado
(é importante entender que a violência atinge sobretudo os distritos litorais). Seria
importante conhecer tensões étnicas que possuem raízes antigas, sobretudo naquela
zona costeira. Recordo-me de que, enquanto preparava para escrever um outro livro,
viajei por aquelas zonas em busca de memórias da escravatura. Ninguém se oferecia
para depor, ninguém queria partilhar histórias antigas. Escravatura?, perguntavam,
fingindo-se perplexos. Nunca aqui houve nada disso, respondiam. Até que um dia
um velho deu-me o seguinte conselho: há pedras que não se levantam, debaixo
delas moram fantasmas que nunca foram enterrados. 

Não quis neste breve artigo dar respostas. A intenção foi apenas sugerir que, como
disse o velho pescador, há fantasmas antigos por debaixo de pedras. A violência em
Cabo Delgado tem dimensões históricas, sociais, religiosas que escapam a uma
resposta fácil e total. 

Você também pode gostar