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Aline Trigueiro
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descontinuidade; por conta disso, a proposta da pios que ainda hoje vemos presentes em inúme-
produção de grandes narrativas está inviabilizada, ras práticas científicas, e é justamente a esse mo-
já que essas presumem processos sociais unifor- delo que Rorty dirige a sua crítica, o qual ele quer
mes que não condizem mais com a heterogeneidade superar.
e multiplicidade da realidade social. O pragmatismo, opção analítica de Rorty,
Richard Rorty também segue a linha dos reverte todos esses conceitos e métodos da filoso-
autores que apostam na pós-modernidade. A sua fia cartesiana, tentando estabelecer um olhar sobre
contribuição no que diz respeito à prática antropo- o mundo o mais próximo deste, fugindo das
lógica não é, assim como a de Seidman, também, epistemologias e metafísicas. Nesse princípio, tudo
de imediato compreendida, mas seus escritos cer- surge como construção, e não é aceita a idéia de
tamente influenciaram os trabalhos de muitos ci- representação pura, ou seja, do conhecimento como
entistas sociais que acreditam já termos supera- espelho da natureza; ao contrário, as representa-
do a era moderna. ções são construídas em um contexto concreto,
A principal crítica a percorrer o trabalho do repleto de historicidade, e seu resultado não é a
filósofo Rorty se concentra nos paradigmas da fi- busca da verdade universal, pois ela não existe. A
losofia clássica, segundo ele impregnada de uma verdade é vista como atrelada a um contexto. O
visão cartesiana de mundo que se tornou a base seu significado é contextual e nunca universal. Por
da epistemologia moderna. O cerne de seu debate isso, ela é múltipla assim como a realidade social
recai sobre a superação da dicotomia mente e cor- também o é.
po, e toda a metafísica e transcendência que disso A incorporação do aspecto local remete o
resultou. A filosofia clássica com sua ênfase na pragmatismo para algo mais próximo da
idéia de Verdade, de Razão, de Sujeito etc, teria historicidade e de suas contingências, pois nada é
tornado abstrata a análise sobre o mundo, porque plenamente determinado, não existe teleologia,
teria acabado por se posicionar fora do próprio apenas o devir. Essas noções dão um novo rosto
mundo para entendê-lo; nesse sentido, não seria ca- para a própria filosofia que, nesse sentido, intro-
paz de descobri-lo como realmente é e se apresenta. duz-se no mundo para melhor pensá-lo, deixando
Segundo Rorty, Descartes parece ser o gran- longe a idéia clássica do filósofo como aquele que
de responsável por nos ter deixado como herança precisa estar fora do mundo para entendê-lo; com
esse dualismo mente e corpo, e, acima de tudo, isso, o pragmatismo põe em xeque os princípios
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com outros costumes. Esse modelo baseava-se na partir da ação desses atores, foram criadas novas
retirada do caráter subjetivo do autor de sua pes- fronteiras e híbridos promotores de constantes tro-
quisa; o antropólogo deveria permanecer apenas cas culturais, não mais entre culturas exógenas,
observando, entendendo os costumes e as lingua- mas no interior da própria cultura. “Los encuentros
gens de outros povos. É claro que esse modelo con la ‘diferencia’ a hora invaden la vida cotidiana
não se constituiu como a prática stricto sensu de moderna en marcos urbanos” (1991, p. 37).
todos os antropólogos clássicos. A introdução da Novas fronteiras emergem nesse contexto,
busca do ponto de vista nativo talvez possa ter não só entre diferentes culturas, mas no interior
flexibilizado tal modelo, mas, em grande parte, a de uma mesma cultura, como “intersecciones me-
prática antropológica privilegiou o ponto de vista nos formales como las de género, edad, estatus y
do autor sobre o nativo, o que foi muito recorrente experiencias únicas” (1991, p. 38). Nesse aspecto,
no período colonizador. a realidade social torna-se cada vez mais diferenci-
Muitos autores hoje fazem crítica a esse tipo ada, incorporando a cada cena novos atores e
de postura, tanto os que seguem a linha da redefinindo e ampliando antigos e novos papéis.
modernidade quanto da pós-modernidade, e in- A vida diária torna-se um núcleo de fronteiras a
troduzem aspectos novos nessa discussão, como: serem cruzadas.
a subjetividade como forma de conhecimento; o Essa maior heterogeneidade não condiz com
papel do antropólogo e da antropologia no atual as antigas normas da antropologia clássica, que
contexto; os dilemas e perspectivas da análise cul- eram precisamente o “estar lá” – coletar os dados
tural no período pós-colonização, etc. Essas análi- em um outro lugar exótico – e “escrever aqui” – no
ses estão na seqüência com os enfoques de C. Geertz seu centro de origem para seus pares de disciplina
e Renato Rosaldo. – uma análise cultural que era, em seu cerne, o
ponto de vista do antropólogo sobre os nativos.3
Esse modelo ditou as regras até os anos 60 aproxi-
A ANTROPOLOGIA EM XEQUE: em busca de madamente, trazendo a necessidade de se repen-
um novo olhar antropológico sarem os antigos conceitos e a própria disciplina
frente às mudanças do sistema mundial.
A antropologia clássica, analisada por Re- Essa necessidade de reinventar a antropo-
nato Rosaldo, estava impregnada por uma discus- logia resulta do bojo desse processo de
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são que não tinha as fronteiras culturais como foco descolonização e das transformações do próprio
privilegiado de análise, isto é, não foi uma antro- capitalismo. A turbulência política dos anos 60-70
pologia interessada nos fluxos culturais que se e as respostas sociais a esses fatos produzem no-
constituíram após o estabelecimento do contato vos dilemas à disciplina, que agora se pergunta:
entre diferentes culturas, mas, antes, preocupava- como produzir análises sociais em contextos mar-
se em traduzir, ou seja, trazer à tona um tipo de cados por trocas culturais que se processam tão
vida cultural exótica e completamente diferente dos rapidamente?
padrões ocidentais europeus (Rosaldo, 1991). A descolonização foi indubitavelmente um
Com o processo de descolonização, novos dos fatores que desencadeou essa crise na antro-
centros e novos atores emergiram no contexto pologia e, com ela, a emergência de culturas que
mundial, reivindicando inclusão em seu atual sis- querem mostrar suas vozes ao mundo. Os “anti-
tema político-social. Nesse curso, ganham força as gos” nativos, que eram antes os objetos privilegia-
minorias étnicas, religiosas, de diferentes orienta-
ções sexuais, ou seja, diferentes atores se articu-
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O “ventriloquismo etnográfico” também foi uma prática
criticada por Geertz – consistia na pretensão de não só
lam a diferentes movimentos e reivindicações so- falar de outras formas culturais, mas a tentativa de achar
que se está falando de dentro dela – isto é, fazer descrições
ciais, o que dinamiza ainda mais a sociedade. A como se fosse o próprio nativo a falar de sua cultura.
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dos, querem agora falar por si. Em concordância soas enigmáticas de outros lugares. “O fim do
com esse fato, houve a emergência de inúmeros colonialismo alterou radicalmente a natureza do
movimentos sociais nos anos 70, que deslocaram relacionamento social entre os que perguntam e
o foco dos “tradutores culturais” (antropólogos) olham e os que são perguntados e se tornam obje-
para os próprios agentes sociais. Foi um período to do olhar.” (Geertz, 1989a, p. 60).
rico em movimentos em prol dos direitos civis, Alterado o contexto sociocultural, alteram-
dos movimentos de contracultura, dos movimen- se também as perguntas que são feitas e as respos-
tos em prol das minorias, etc.. Os antigos nativos tas que são dadas. Esse movimento, que advoga
do colonialismo não se reconheciam e nem con- aos nativos – antigos súditos coloniais – a quali-
cordavam com o que havia sido escrito sobre eles. dade de cidadãos soberanos, traz a necessidade
É nesse sentido que o papel do antropólogo de reinventar a própria Antropologia, seus méto-
é questionado, e uma mudança de papel lhe é dos, seus interlocutores, etc.
exigida em conseqüência da mudança da própria
Na verdade, o próprio direito de escrever – escre-
vida social. À medida que a vida social ganha no- ver etnografia – parece um risco. A entrada de
vas direções e se complexifica, também se altera o povos outrora colonizados ou rejeitados (usando
suas próprias máscaras, recitando seus próprios
próprio conceito de cultura que agora não pode textos) no palco da economia mundial, da alta
mais ser visto sob os moldes da antropologia clás- política internacional e da cultura mundial tor-
nou a afirmação do antropólogo de ser uma tri-
sica. buna para os desatendidos, um representante dos
É possível afirmar, então, que a necessida- inobservados, um abrigo dos mal interpretados,
cada vez mais difícil de ser mantida (Geertz,
de de reformulação do pensamento cultural emer- 1989a, p. 60).
giu concomitantemente ao próprio movimento de
transformação cultural, em um real exemplo de uma As barreiras que separavam o antropólogo
interseção hermenêutica entre ciência social e rea- dos nativos foram erodidas, e o problema atual
lidade social. refere-se ao peso da autoria nas etnografias. Isso
Além da crítica feita à antropologia clássica, traz para a Antropologia como disciplina uma ne-
Rosaldo (1994) também propõe uma nova forma cessária renovação ou reinvenção do seu próprio
de construir o olhar antropológico e de se discurso. Isso resulta de que “os ali e os aqui estão
posicionar na prática da pesquisa. Sua contribui- hoje muito menos isolados e muito menos bem
ção diz respeito à introdução do fator subjetivida- definidos, muito menos espetacularmente contras-
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cultural, pois a etnografia serviria, sobretudo, para crição densa”, que está relacionada a uma análise
dinamizar “o diálogo entre linhas societais dife- microscópica feita pelo etnógrafo frente aos traços
rentes – de etnicidade, religião, classe, sexo, lin- culturais que deseja entender; é, portanto, a busca
guagens, raça” (Geertz, 1989a, p. 62). Ou seja, tra- dos detalhes que passam pela fala dos informan-
ta-se de um diálogo que possa ser capaz de dina- tes, as imagens em evidência, os textos; etc. Todas
mizar uma troca essas são formas privilegiadas de entrar em contato
com a história social e, com isso, buscar seus signi-
inteligente entre pessoas que diferem conside- ficados no interior de suas culturas específicas.
ravelmente entre si em interesses, perspectivas
e poder, e no entanto estão limitadas em um Embora esse autor se distancie dos modelos
mundo onde, envolvidas em interminável cone- aplicados pela antropologia clássica, ele também não
xão, fica cada vez mais difícil sair uma do cami-
nho da outra (1989a, p. 62). se aproxima completamente do formato radical da
análise dos pós-modernos, pois ainda acredita que
C. Geertz, propõe, portanto, uma antropo- é possível produzir interpretações sobre culturas,
logia interpretativa, que visualize as culturas como não compartilhando do desconstrutivismo de tal
teias de significados passíveis de serem interpre- corrente, que acredita que:
tadas, tentando acrescentar algo novo à prática
etnográfica. A análise se desloca do “ter de ser e ... tudo que o antropólogo pode fazer em seus
textos é inscrever processos de comunicação em
pensar como nativo” – como nos ditou Malinowski que ele é apenas uma das muitas vozes. As vozes
– para, em Geertz, ser traduzida como o entendi- são todas equiparadas (...) Assim, o etnógrafo
pode evocar, sugerir, provocar, ironizar, mas não
mento e interpretação que o próprio nativo ou in- descrever culturas” (Caldeira, 1988, p. 142).
formante tem e faz sobre suas ações, ou seja, a
interpretação etnográfica recai sobre a própria in- Nesse sentido, a proposta de Geertz é mui-
terpretação que os agentes culturais produzem so- to mais hermenêutica do que pós-moderna, já que
bre si mesmos. O objetivo desse autor passa pela ele acredita na possibilidade de se descreverem
utilização do discurso meta-social e, nesse senti- densamente as particularidades culturais.
do, as culturas são vistas como textos que devem
ser “lidos” e interpretados a partir dos significa-
dos e símbolos expressos pelos seus informantes. COMO VER O OUTRO? Discutindo o etnocentrismo
Cria-se, então, uma analogia, pois “ler” uma cultu-
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ra seria semelhante a produzir uma interpretação As dúvidas sobre como ver o outro, como
sobre um texto. escrever sobre sua cultura, fundamentam o debate
Geertz não se propõe utilizar as descrições atual na Antropologia. É nesse contexto que anti-
e interpretações holísticas sobre a cultura – rom- gos temas, como etnocentrismo e relativismo, são
pendo com o modelo predominante. Seu propósi- revisitados e acabam ganhando novas traduções.
to é produzir uma interpretação de um contexto O etnocentrismo sempre foi uma posição
específico no interior da cultura (seja sobre a briga combatida pelos antropólogos. Por isso, sempre
de galos balinesa ou sobre o Estado balinês no sé- foi um tema muito próximo da discussão sobre
culo XIX). Segundo esse autor, não é possível com- objetividade científica. Nas ciências sociais, espe-
preender uma cultura como um todo, porque isso cialmente na antropologia, que tomou primeira-
passa pelo entendimento das formas simbólicas mente o trabalho de campo como referência fun-
que se apresentam de forma concreta (dentro de damental para a produção do conhecimento sobre
um contexto onde sujeitos agem e produzem sig- as culturas, a prática do anti-etnocentrismo sem-
nificados sobre suas ações). pre foi uma meta. Despojar-se dos seus valores
A forma privilegiada para compreender e culturais, impedindo que eles se sobreponham aos
interpretar a cultura é a prática etnográfica da “des- valores de outras culturas era também parte da
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constante luta do antropólogo por objetividade, a globalização não segue para uma homogeneização
impedindo que traços subjetivos aflorassem em seu cultural, pois que existem articulações entre os
trabalho. Essa isenção axiológica, consolidada na agentes culturais e os eventos, e é isso que permite
prática científica e legitimada pela separação entre a transformação cultural.
sujeito e objeto, alicerçou o anti-etnocentrismo como Por outro lado, a globalização também traz
modelo privilegiado para a análise de culturas. Dis- novamente a questão do anti-etnocentrismo e do
so resulta que as culturas tinham de ser tratadas relativismo, perguntando: é possível se despojar
como unidades autônomas axiologicamente, cada dos valores culturais de sua própria cultura, quan-
uma portando seus próprios códigos e valores, que do esses mesmos valores estão mesclados,
não podiam ser aproximados a nenhuma outra. retraduzidos e presentes, de alguma forma, em
Assim, não havia espaço para discussões sobre outros meios culturais? É muito difícil fazer, hoje,
trocas culturais ou comensurabilidade de cultu- delimitações exatas entre valores culturais. O que
ras. Cada cultura possuía sua própria peculiarida- se vê é a emergência de mais e mais zonas de fron-
de, e muito comumente era aceita a existência da teiras, onde estão presentes híbridos culturais,
“chave de significado cultural”: aquela que, ao ser novas formas de tradução para antigos valores e
descoberta, abriria ao antropólogo todos os códi- práticas sociais.
gos e segredos da cultura estudada. Todos esses aspectos devem ser levados à
O contexto que hoje se apresenta é outro. análise quando se pensar em fazer Antropologia.
Conforme já discutimos, houve a transformação A prática do anti-etnocentrismo – essa busca por
do sistema político-econômico mundial, e não é não pertencer a nenhuma cultura, por relativizar
mais possível entender culturas apenas como en- todos os seus valores – torna-se mais difícil quan-
tidades geográficas distintas umas das outras. do os valores e significados que compõem as ações
As fronteiras estão muito mais fluídas, já que as dos indivíduos estão em constante tradução e
diferenças estão hoje presentes no cotidiano cul- retradução, frente às diferentes situações e even-
tural de diferentes contextos sociais; o diferente tos. É nesse contexto que a discussão sobre o anti-
não está hoje a quilômetros de distância, em terras anti-etnocentrismo ganha validade e consideração
exóticas, mas, ao contrário, convive conosco na para alguns teóricos sociais.
multiplicidade de possibilidades que existem para Talvez seja refletindo sobre essa situação que
se apropriar de uma realidade, adequar-se aos pa- Rorty (1997), entre outros, proponha discutir o
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poder, mas esta fica ausente da análise de Rorty, que, Tudo o que devemos fazer é pontuar as vantagens
práticas das instituições liberais, constituindo que
ao contrário, acredita na boa convivência entre os di- indivíduos ou culturas sigam em frente juntos,
versos participantes de uma mesma cultura. sem que uns se intrometam na privacidade do
outro, sem que uma se imiscua nas concepções do
bem de cada uma das outras (1997, p. 279).
Nossa cultura liberal burguesa (...) é uma cultura
que se orgulha de si mesma por constantemente
instalar mais janelas, constantemente alargar suas E ainda:
simpatias. Essa é uma forma de vida que está
constantemente estendendo seus pseudópodes e Mas você pode ter uma sociedade civil do tipo
adaptando a si mesma ao que encontrar. Seu sen- democrático burguês. Tudo que você precisa é a
tido de sua própria dignidade moral está funda- capacidade de controlar seus sentimentos quan-
do em sua tolerância frente à diversidade. (Rorty, do pessoas que parecem irremediavelmente di-
1997, p. 272). ferentes aparecem na prefeitura, ou na quitan-
da, ou no bazar. Quando isso acontecer, você ri
Em seu livro “Objetivismo, Relativismo e Ver- muito, mostra a maior consideração que você
puder, depois da disputa de um dia difícil, reti-
dade” (1997), Rorty faz uma crítica a Geertz. O capí- ra-se para o seu clube. Aí você será reconfortado
tulo intitulado Acerca do etnocentrismo: uma répli- pelo companheirismo de seus iguais morais
(1997, p. 279).
ca a Clifford Geertz está repleto da moral e dos valo-
res americanos, da competência de sua justiça pro- Pensando por outro lado, a proposta do anti-
cessual, das benesses da cultura liberal burguesa, anti-etnocentrismo pode ser lida também como
da diversidade cultural etc. Em suma, trata-se de defesa do local frente à homogeneidade que a
uma apologia às “maravilhas” da sociedade liberal globalização inspira. Seria uma forma de garantir
e de sua capacidade de convivência entre diferen- que não caminhamos para uma homogeneização,
tes culturas, sem necessariamente ter de equacionar como os primeiros críticos da globalização temi-
seus valores (o caso do índio e do médico, utiliza- am. Porém, sob outro aspecto, poderíamos enxer-
dos por Geertz), embora haja a demarcação da po- gar a exacerbação da diferença também com mais
sição hierárquica que cada qual ocupa. Assim, tor- cautela já que essa postura poderia legitimar a se-
nar-se anti-anti-etnocêntrico é, para Rorty, ser ca-
gregação e a exclusão social.
paz de conviver com as diferenças sem desejar tor-
É tênue a discussão entre diversidade e
nar-se semelhante a nenhuma delas.
igualdade, mas essa não foi um ponto discutido
por Rorty, justamente porque não há menção so-
Para resumir, anti-anti-etnocentrismo deve ser
visto como um protesto contra a persistência da bre a questão do poder em seu artigo, parecendo
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ram analisados alguns aspectos do ponto de vista seqüências da modernidade estão se tornando
mais radicalizadas e universalizadas do que an-
pós-moderno, com Steven Seidman e Richard tes (Giddens, 1991, p. 12).
Rorty, e ainda o ponto de vista de autores como
Geertz, que faz uma crítica aos modelos da Antro- Assim, antes de estarmos vivendo na era
pologia clássica, propondo uma Antropologia pós-moderna, estamos inseridos em um momento
hermenêutica, sem se deixar levar pelo radicalis- em que as conseqüências da modernidade se in-
mo de muitas proposições pós-modernas. tensificam. A característica principal desse momen-
Existe, porém, um autor que tem na base de to é o caráter descontinuísta do desenvolvimento
toda a sua produção acadêmica uma discussão social, sobretudo, no que concerne às formas tra-
sobre o tema da modernidade, trazendo uma pos- dicionais da ordem social. A modernidade é, por-
tura crítica e diferente no que concerne ao tema da tanto, dinâmica, possui intenção globalizante no
pós-modernidade: estamos falando de Anthony que se refere a suas instituições; a natureza dessa
Giddens. Segundo sua interpretação, não é possí- dinâmica encontra-se, segundo Giddens, na sepa-
vel afirmar que nós estamos vivendo em uma era ração entre tempo e espaço, nos mecanismos de
pós-moderna, mas, antes, vivemos em um contex- desencaixe e reencaixe dos sistemas sociais e na
to de radicalização e exacerbação da modernidade. reflexividade das relações sociais.
As discussões sobre a pós-modernidade Essas características da modernidade se
surgem como resultado da forma como as trans- constituem de forma diferente daquelas apresen-
formações que estão ocorrendo entre o final do sé- tadas nas sociedades pré-modernas, nas quais as
culo XX e o início do XXI são interpretadas, o que práticas sociais eram referenciadas por relações lo-
tem gerado muitas controvérsias epistemológicas. cais, estabelecidas entre pessoas concretas num tem-
po e espaço fixo, ou seja, as “dimensões espaciais
[De uma forma geral] a pós-modernidade se re- da vida social eram dominadas pela ‘presença’, onde
fere a um deslocamento das tentativas de funda- as trocas sociais se davam em contextos localiza-
mentar a epistemologia, e da fé no progresso pla-
nejado humanamente. A condição da pós- dos.” (Giddens, 1991, p. 27). A modernidade rom-
modernidade é caracterizada por uma evapora- pe com esse aspecto, porque fomenta a possibili-
ção da grand narrative – o ‘enredo’ dominante
por meio do qual somos inseridos na história dade de que haja relações e interações sociais “sem
como seres tendo um passado definitivo e um
futuro predizível. A perspectiva pós-moderna vê rostos”, ou seja, “encontros” entre pessoas distan-
uma pluralidade de reivindicações heterogêne- tes, espacial e temporalmente. Essa possibilidade
as de conhecimento, na qual a ciência não tem
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mações renovadas sobre estas próprias práticas, Como crítica a essa prática, a Antropologia
alterando assim constitutivamente seu caráter” hermenêutica se propõe a produzir uma análise
(Idem). É, antes, entender como o conhecimento interpretativa das culturas, tendo como agentes
produzido sobre a vida social altera esse próprio participantes seus próprios integrantes. O antro-
espaço que, consequentemente, também irá alterar pólogo cria suas descrições a partir das interpreta-
o próprio conhecimento. ções emprestadas do próprio nativo que a agencia.
Esse tipo de argumento faz Giddens se dis- Uma outra vertente, muito mais crítica e radi-
tanciar das proposições pós-modernas. Segundo cal a respeito desse problema, não concorda com esse
esse autor, essa definição é mais apropriada às re- tipo de construção etnográfica, exatamente por ain-
flexões estéticas, aos movimentos na literatura, nas da manter-se muito presa ao ponto de vista do au-
artes plásticas e na arquitetura. Tal conceito só tor: aquele que interpreta e escreve sobre a cultura.
poderia ser defendido se o rumo do desenvolvi- Seguindo a linha pós-moderna, os autores que in-
mento social estivesse caminhando para um novo tegram esta vertente se propõem a escrever etnografias
tipo de ordem social que rompesse com as insti- onde o modelo polifônico esteja presente.
tuições vigentes. Assim sendo, Giddens fragiliza o
projeto pós-moderno, ao concluir que ele não con- A idéia é representar muitas vozes, muitas pers-
pectivas, produzir no texto uma plurivocalidade,
siderou devidamente um dos aspectos centrais da uma ‘heteroglossa’, e para isso todos os meios
vida social, suas instituições; por isso, ele não acei- podem ser tentados: citações de depoimentos,
autoria coletiva, ‘dar voz ao povo’ ou o que mais
ta a sua viabilidade do ponto de vista sociológico. se possa imaginar (1988, p. 141).
Existe uma outra maneira de lidar com a
tensão entre modernidade e pós-modernidade. Essa posição chega hoje, muitas vezes, a tal
Caldeira (1988) trata dessa tensão dentro da pro- radicalismo, que os textos etnográficos tornam-se
dução antropológica através do “papel do autor reproduções stricto sensu da fala dos informantes.
no texto etnográfico”. Ela identifica um movimen- Mas se, por um lado, isso garante, em certa medi-
to que vai da preeminência do ponto de vista do da, o deslocamento da análise para o ponto de vis-
antropólogo sobre o nativo para um outro que ten- ta do nativo, de outro, acaba fragilizando o pró-
ta incorporar a fala deste dentro do texto etnográfico. prio papel do antropólogo que, dessa forma, pode
Essa análise tenta entender o processo de autocrítica ser aproximado a um mero transcritor de falas, mais
por que passa a Antropologia, sobretudo no que próximo da prática jornalística.
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se refere à indagação: como descrever o outro? Essa Desse modo, o debate entre modernidade e
questão retorna à mesma inquietação de Geertz fren- pós-modernidade está longe de ser superado. A
te o papel do etnógrafo e como este deve produzir tensão entre ambas as asserções tende a se intensi-
suas análises. ficar num contexto tão múltiplo e contraditório e,
A crítica contemporânea desenvolvida nos Esta- justamente por isso, passível de ser entendido sob
dos Unidos ao modelo etnográfico analisa a ma- vários ângulos e aspectos. O mais interessante é
neira pela qual os antropólogos têm aparecido
em seus textos desde Malinowski até os anos 80. que todas as teorias que tentam, hoje, produzir
Ela vai dizer, por um lado, que se trata de uma entendimento sobre a vida social devem abarcar
presença excessiva. Na verdade, seria a única
presença real nos textos, ainda que ocultada. Ela sua característica principal, o escopo de mudança.
apagaria as vozes, as interpretações, os enuncia- Por isso, seja discutindo a sociedade (Giddens) ou
dos daquelas sobre quem fala. Na melhor das
hipóteses, seria uma presença que subsume tudo os textos produzidos sobre ela (Caldeira), percebe-
à sua própria voz. O outro só existe pela voz do mos que o grande mote está na questão da trans-
antropólogo que esteve lá, viu e reconstruiu a
cultura nativa enquanto totalidade em seu texto. formação, da mudança pela qual a sociedade con-
Mas essa presença excessiva do antropólogo
corresponderia a uma ausência: a do temporânea vem passando. Nesse sentido, a
questionamento do antropólogo sobre a sua in- refiguração do pensamento social que Renato
serção no campo, no texto e no contexto em que
escreve (Caldeira, 1988, p.134). Rosaldo faz menção na epígrafe deste trabalho é
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são feitas nos manuscritos etnográficos devem ser RORTY, R. A filosofia e o espelho da natureza. Rio de
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