Tomás de Aquino estabeleceu uma distinção entre razão natural e conteúdos da fé que iniciou a desconexão moderna entre fé e razão. Sua visão da realidade dividida em dois andares - natureza versus graça - reforçou a ideia de que a filosofia poderia ser livre e separada da revelação. Isso preparou o terreno para a visão moderna de que a fé cristã é "irracional" comparada ao conhecimento natural.
Tomás de Aquino estabeleceu uma distinção entre razão natural e conteúdos da fé que iniciou a desconexão moderna entre fé e razão. Sua visão da realidade dividida em dois andares - natureza versus graça - reforçou a ideia de que a filosofia poderia ser livre e separada da revelação. Isso preparou o terreno para a visão moderna de que a fé cristã é "irracional" comparada ao conhecimento natural.
Tomás de Aquino estabeleceu uma distinção entre razão natural e conteúdos da fé que iniciou a desconexão moderna entre fé e razão. Sua visão da realidade dividida em dois andares - natureza versus graça - reforçou a ideia de que a filosofia poderia ser livre e separada da revelação. Isso preparou o terreno para a visão moderna de que a fé cristã é "irracional" comparada ao conhecimento natural.
moderna Quando se chega ao tempo de Kant e Rousseau, o senso de autonomia, derivado que foi de Tomás de Aquino, já se encontra plenamente desenvolvido. Assim, descobre-se agora que o problema se formulara em termos diferentes. Francis Schaeffer
A ntes de chegar ao período histórico que gostamos
de chamar de modernidade, eu preciso me demorar um pouco em uma figura importantíssima tanto na história da Igreja quanto na história do pensamento Ocidental, a saber: o doutor da igreja Tomás de Aquino. Nesse aspecto concordo plenamente com Francis Schaeffer quando ele diz que: “a origem do homem moderno pode ser atribuída a diversos períodos. Entretanto, partirei do ensino de alguém que transformou o mundo real. Tomás de Aquino (1225-1274)”. 1 Eu posso explicar o porquê dessa atribuição tão precoce do início da filosofia moderna com um teólogo medieval. Muito antes que filósofos como René Descartes, Jean-Jacques Rousseau ou Immanuel Kant escrevessem qualquer linha a respeito das capacidades da razão humana, foi Aquino que determinou substancialmente os rumos que o Ocidente iria tomar. Ainda que a dissociação entre teoria e prática tenha começado séculos antes, em Tomás de Aquino ela ficou clara e praticamente irremediável. 2 66 - Ortodoxia Integral | Pedro Lucas Dulci
Uma das principais características de sua forma de fazer
teologia é a relação que estabeleceu entre o conhecimento natural e o conhecimento dos conteúdos da fé. Ainda que fossem distintos, para Aquino essas duas formas de conhecer a verdade não estavam em conflitos. A única diferença entre as duas é que existiam assuntos e objetos de conhecimento que poderiam ser analisados pela razão natural dos indivíduos, enquanto que os conteúdos da fé e da revelação de Deus estavam fora do acesso e da capacidade racional. 3 Estabelecendo essa distinção entre dois modos de conhecer a verdade, Aquino reforçou uma forma de enxergar a realidade que já era defendida por Aristóteles. Tratava-se de compreender a realidade divida em dois andares: no andar superior estavam os assuntos e objetos divinos, isto é, Deus, sua revelação, a fé e a salvação. No andar de baixo, estavam os objetos e assuntos naturais, ou seja, a própria natureza, os objetos do mundo, a ética, a estética e tudo aquilo que poderíamos conhecer com nossa razão. Enquanto a racionalidade teórica era suficiente para decidir a respeito das questões e objetos do mundo inferior, somente a fé e a revelação de Deus poderiam tratar dos assuntos do andar superior. 4 Foi em razão dessa distinção que Aquino não conseguiu sustentar o título de ciência para a teologia – os conteúdos bíblicos não são princípios evidentes por si mesmos, por isso, no máximo, a teologia poderia ser uma ciência subordinada às evidências de uma ciência superior. A teologia seria uma ciência subalterna. 5 Ou seja, foi um teólogo cristão que iniciou a desconexão moderna entre fé e razão. Conforme coloca Schaeffer, a partir de Aquino é que: “a filosofia tornou-se livre e separou-se da revelação... a filosofia começou a criar asas, por assim dizer, voando por onde queria e deixando à margem as Escrituras”. 6 Até os dias de hoje, essa separação é percebida, quando algumas pessoas insistem que a fé e a visão bíblica do mundo é um assunto de âmbito privado, enquanto todas as outras questões da existência são Ortodoxia Integral | Pedro Lucas Dulci - 67
assuntos de interesse público. Mais do que isso, a partir dessa
desconexão, a fé cristã começou a ser encarada como “irracional”, quando comparada com o conhecimento que poderíamos ter da natureza, dos fenômenos do mundo e sobre nós mesmos. Hoje em dia ninguém ousa duvidar das hipóteses de Darwin, das afirmações de Freud ou mesmo das perspectivas de Nietzsche. Isso porque, o resultado do trabalho desses homens é fruto da razão. Contudo, a existência de Deus, sua ação na história e os conteúdos da ortodoxia sempre são vistos sob suspeita. Tudo isso porque, um dia, Aquino restabeleceu a distinção entre duas esferas da realidade: a natureza e a graça. 7 A razão que levou Aquino a sustentar uma visão da realidade dividida em dois andares foi sua concepção de pecado e queda. Para o teólogo medieval, o episódio da queda narrado em Gênesis 3 afetou apenas o relacionamento entre Deus e os seres humanos – ou seja, a justiça original do ser humano. Contudo, a imagem de Deus no ser humano, permaneceu intacta mesmo depois da queda. Sendo assim, para Aquino, as capacidades da razão não foram afetadas pela queda, fazendo com que fosse necessário apenas acrescentar a fé para restaurar o relacionamento entre Deus e os seres humanos. Nas suas palavras: “a inteligência através da qual o homem compreende é incorruptível”. 8 Além disso, uma vez que a razão não foi afetada pelo pecado, as verdades naturais da filosofia não podem contradizer aquilo que é sobrenatural na religião e na fé cristã. Justamente por isso, a filosofia aristotélica pode ser acomodada à doutrina cristã, fazendo com que surja um fenômeno bastante conveniente à Igreja Romana: “à equalização fatal da teologia com as sagradas Escrituras, por um lado, e com a doutrina da igreja, por outro”. 9 A partir da canonização e oficialização de todo o ensino de Aquino em 1879, não apenas os conteúdos apresentados pela Bíblia são encarados como normativos para a cristandade, mas também toda 68 - Ortodoxia Integral | Pedro Lucas Dulci
a tradição teológica elaborada na mente dos sacerdotes e feita
canônica pelo Papa. Fica claro, portanto, como no “Foi um teólogo Ocidente a desconexão entre vida cristão que iniciou prática e vida contemplativa, não apenas a deconexão surgiu, mas estabeleceu-se com força moderna entre fé e irresistível. Além de uma compreensão razão.” equivocada a respeito do que as Escrituras afirmam sobre os efeitos do pecado sobre os seres humanos, Aquino também se perdeu na tentativa de sintetizar a narrativa bíblica com a filosofia de Aristóteles. 10 Tudo isso fez com que Aquino não apenas repetisse os principais erros do filósofo grego, como também fosse incapaz de apresentar a correta cosmovisão bíblica. Como sintetiza Dooyeweerd: “de fato, [o pensamento de Aquino] era uma filosofia aristotélica acomodada à doutrina da igreja”. 11 Se os leitores se lembram, para Aristóteles o filósofo ou o sábio era alguém ocupado com a vida contemplativa – sem nenhuma preocupação com o “cuidado de si” e a integralidade de sua vida. Transpondo para o âmbito cristão, Aquino igualmente sustentou que: “o ofício do sábio é meditar sobre a verdade, sobretudo a partir do primeiro princípio... quanto mais o homem se dedica à sabedoria, tanto mais participa da verdadeira felicidade”. 12 Em detrimento à vida prática, e sem nenhuma preocupação com o “cuidado de si” e a integralidade da missão ortodoxa, para Aquino, vida contemplativa é sinônima de felicidade. Torna-se muito fácil agora perceber como essa imagem do sábio, do filósofo ou simplesmente daquele indivíduo que está ocupado com as coisas mais divinas e importantes (o teórico), chegou até a modernidade. Nas palavras de Schaeffer: “Tomás de Aquino como ponto de partida”. 13 A figura do intelectual como aqueles que “organizam diretamente as coisas e presidem ao seu reto governo” 14 será recuperada, e elevada ao nível mais alto, na Ortodoxia Integral | Pedro Lucas Dulci - 69
modernidade. Quando essa concepção de verdade chegou a seu
período moderno, o território já havia sido, há muito, preparado por Aquino e a filosofia aristotélica. Paulatinamente o princípio do “cuidado de si”, que guiou toda atividade cultural da antiguidade, foi sendo esquecido e cedendo lugar a uma concepção de pensamento e de vida em que teoria e prática estavam desconectadas. Tal esquecimento foi completo quando o pensamento chegou ao “momento cartesiano” da história. Isso não significa que René Descartes tenha sido o primeiro a conceber o pensamento totalmente independe da vida daquele que pensa, nem tão pouco o inventor dessa forma de pensar, mas a partir de sua obra algo ficou explícito. Quem explica isso é Foucault:
Creio que a idade moderna da história da verdade começa no
momento em que o que permite aceder ao verdadeiro é o próprio conhecimento e somente ele. Isto é, no momento em que o filósofo (ou o sábio, ou simplesmente aquele que busca a verdade), sem que mais nada lhe seja solicitado, sem que seu ser de sujeito deva ser modificado ou alterado, é capaz, em si mesmo e unicamente por seus atos de conhecimento, de reconhecer a verdade e a ela ter acesso. O que não significa, é claro, que a verdade seja obtida sem condição. Contudo, estas condições são agora de duas ordens e nenhuma delas concerne à espiritualidade. 15
O que Foucault quer nos mostrar aqui é que, a partir do
“momento cartesiano” algo que já havia começado com Aristóteles, passando por Aquino e chegando até Descartes, tornou-se evidente: a ausência de qualquer exigência para que alguém alcance a verdade. Na máxima cartesiana “penso, logo existo” esconde-se a crença de que o ponto mais sólido e indubitável da existência de um ser humano é a sua capacidade de utilizar a faculdade intelectual. 16 Não é mais exigido coerência entre vida e pensamento, como também se acredita não ser mais necessário 70 - Ortodoxia Integral | Pedro Lucas Dulci
nenhuma experiência de conversão ou transformação para que
alguém tenha acesso às verdades do mundo, da vida e até mesmo de Deus. Na verdade, todas as outras instâncias da nossa vida, tal como nosso corpo, nossos sentidos e nossas experiências deveriam ser colocadas em questionamento. Era preciso duvidar de tudo aquilo que não fosse racional. Isso porque, todos os assuntos poderiam ser conhecidos, e até mesmo a existência de Deus provada, pela simples condução correta do entendimento. Não existem mais condições espirituais para se chegar à verdade. A ortodoxia deixou de ser integral, e o conhecimento por ele mesmo é o suficiente para chegarmos à compreensão correta sobre nós mesmos e sobre Deus. Somente a loucura, isto é, a desordem das faculdades racionais, poderia impedir as capacidades do entendimento humano. Se Descartes foi aquele que disse que o pensamento por ele mesmo seria o bastante para chegarmos à verdade, foi Immanuel Kant o último responsável pela desconexão entre vida contemplativa e vida prática. Isso ele fez quando sustentou que até mesmo os limites do conhecimento estão sujeitos à própria estrutura da sua racionalidade. Isso significa dizer que, os únicos limites que os modernos pensadores conheceram à sua racionalidade é a própria estrutura de nosso aparato cognitivo. O indivíduo não precisa se transformar, passar por alguma conversão ou modificar a forma da sua vida para que alcance o conhecimento mais alto sobre si mesmo, sobre o mundo ou até mesmo sobre Deus. Basta que ele continue sendo quem é e apenas utilize corretamente sua racionalidade. A queda e o pecado não afetaram as capacidades racionais das pessoas, antes, para que elas possam conhecer a Deus e a condição humana, basta que “pensem direito”. 17 Descartes, Locke, Rousseau e Kant são herdeiros do projeto que Tomás de Aquino havia estabelecido para si mesmo: mostrar para aqueles que não são cristãos que: “a verdade, Ortodoxia Integral | Pedro Lucas Dulci - 71
estabelecida pela via demonstrativa, concorda com a fé da religião
cristã”. 18 Ou seja, ser cristão é ser racional, ou ainda, não ser cristão é ser louco! A grande diferença entre Aquino e os pensadores modernos é o processo de secularização que esses últimos entraram. Uma vez que a realidade estava dividida em dois andares – o andar superior da teologia e o andar inferior da filosofia e da ciência – os intelectuais modernos passaram a se ocupar muito mais com aquilo que não exigia fé, isto é, os assuntos do “andar de baixo”. Com isso, iniciou-se um processo que Schaeffer define da seguinte forma: “à medida que a natureza se fazia “A verdade, autônoma, passava a ‘devorar’ a estabelecida graça... Ela libertou-se de Deus à pela via medida que os filósofos humanistas demonstrativa, começaram a operar cada vez mais concorda com a fé da à vontade. Quando a Renascença religião cristã. Ou chegou ao seu clímax, a natureza seja, ser cristão é ser havia devorado a graça”. 19 Com racional, ou ainda, exceção desta modificação de não ser cristão temáticas em razão do processo de secularização, a aporia em que nos é ser louco! encontramos é a mesma. Nunca mais conseguiremos pensar em um testemunho da verdade que seja uma forma de vida, ao invés de um simples acúmulo de informações e doutrinas. 20 A ortodoxia e a missão da igreja deixaram de ser integrais, para partir-se em duas ênfases distintas: aqueles que pensavam e aqueles que praticavam o chamado e a missão de Deus.
Notas 1. SCHAEFFER, A morte da razão, p. 13. 72 - Ortodoxia Integral | Pedro Lucas Dulci
2. Conforme sustenta Foucault: “havia muito tempo já se iniciara o
trabalho para desconectar o princípio de um acesso à verdade unicamente nos termos do sujeito cognoscente e, por outro lado, a necessidade espiritual de um trabalho do sujeito sobre si mesmo, transformando-se e esperando da verdade sua iluminação e sua transfiguração. Havia muito tempo que a dissociação começara a fazer-se e que um certo marco fora cravado entre estes dois elementos. E este marco, bem entendido, deve ser buscado ... do lado da ciência? De modo algum. Deve-se buscá-lo do lado da teologia. A teologia (esta teologia que, justamente, pode fundar-se em Aristóteles - conforme o que lhes dizia há pouco - e que, com Santo Tomás, a escolástica, etc., ocupará, na reflexão ocidental, o lugar que conhecemos), ao adotar como reflexão racional fundante, a partir do cristianismo” (FOUCAULT, A Hermenêutica do sujeito, p. 36). 3. Em suas próprias palavras: “existem muitas maneiras de descobrir a verdade. [...] As verdades que professamos acerca de Deus revestem uma dupla modalidade. Com efeito, existem a respeito de Deus verdades que ultrapassam totalmente as capacidades da razão humana. Uma delas é, por exemplo, que Deus é trino e uno. Ao contrário, existem verdades que podem ser atingidas pela razão: por exemplo, que Deus existe, que há um só Deus, etc. Estas últimas verdades, os próprios filósofos as provam por via demonstrativa, guiados que eram pelo lume da razão natural” (AQUINO, Súmula contra os gentios, p. 65). 4. Conforme explica o comentador da obra de Aquino, Michel Villey: “a maior felicidade está no ato ‘do intelecto especulativo’ (art. 5). Esse tema ocupa lugar de honra na obra de Tomás de Aquino – e já na de Aristóteles: primado da especulação. Não significa negação do valor da prática. Ela tem algo de divino, pois em Deus reconhecemos outro atributo, a bondade. Trabalhar pelo próximo impõe-se ao homem, no estado de sua vida presente. Mas a própria ação é o caminho, e não o atingimento da bem-aventurança. A especulação toca o objetivo. Caberá, à maneira de Hegel ou mesmo de Aristóteles (art. 6), situar o termo felicidade no bios theoretikos, vida científica desinteressada [...]. Bem-aventurança será a visão da essência divina (art. 8). O homem não a atinge na terra. Aqui ele sabe se Deus é (an est), e não ‘o que é’ (quid sit). Essa contemplação é prometida ao homem em outro estado, por vir. Com isso termina a busca, não mais sob a égide de Aristóteles, Ortodoxia Integral | Pedro Lucas Dulci - 73
mas do Evangelho de São João e do livro de Jó – Jó 17.3 [...]. Mas,
afinal, essa conclusão já não estava presente na literatura pagã? Nos herméticos, na gnose, no neoplatonismo, de que Tomás de Aquino tributário? Ele não pretende ser original” (VILLEY, Questões de Tomás de Aquino sobre direito e política, p. 6-7). 5. Nas palavras do competente pastor e professor Jonas Madureira: “Tomás utiliza essa teoria da subalternação das ciências para fundamentar a teologia como ciência subalternada. Por isso, de acordo com Tomás, a teologia (doutrina sagrada) é uma ciência descritiva, i.e., descreve apenas o fato (o quê). Para explicá-lo, a teologia tem que se fundamentar em outra ciência (subalternante), uma ciência capaz de dar os fundamentos explicativos das causas. Nesse caso, a ciência subalternante da teologia é a ciência do próprio Deus (conhecimento que somente Deus possui) e dos bem-aventurados (conhecimento daqueles ‘que contemplam a Deus face a face’)” (MADUREIRA, Tomás de Aquino e Duns Scotus: sobre a possibilidade da teologia como ciência, s/p.). 6. SCHAEFFER, A morte da razão, p. 16. 7. Somos informados sobre alguns detalhes do surgimento dessa questão tão importante na cultura ocidental. Na verdade, a questão entre natureza e graça foi uma crise no percurso teológico ocidental. Segundo Michel Villey: “Paris continuava, contudo, sendo o coração dos estudos teológicos. Ali surgiu uma crise. Sigério de Brabante e Boécio de Dácia deixaram-se subjugar pelas teses do ‘Comentador’ (Averróis), ameaçadoras para a fé cristã, com o risco de professar o sistema da ‘dupla verdade’: uma para a Razão natural, outra imposta aos cristãos pela Revelação. O poder espiritual percebe o perigo dessas doutrinas; elas arruínam a crença no Deus criador, assim como em nossa liberdade, sem a qual não há moral. Eis que Tomás de Aquino é enviado a Paris por seus superiores (1269); vai refutar os erros dos averroístas, sem nenhuma concessão à facção contrária, dos detratores da filosofia. Bastará restabelecer a verdadeira doutrina de Aristóteles, travestida por Averróis, sobretudo os textos autênticos. Não existe ‘dupla verdade’. Posição saudável e equilibrada que teve pouco sucesso na Faculdade Parisiense de teologia. Várias teses de Tomás de Aquino serão condenadas, de cambulhada com as dos averroístas, pouquíssimos anos depois da sua morte, pelo bispo Etinne Tempier; 74 - Ortodoxia Integral | Pedro Lucas Dulci
logo depois em Oxford” (VILLEY, Questões de Tomás de Aquino sobre
direito e política, p. 10). 8. AQUINO, Compêndio de teologia, p. 93. Na verdade, todo o seu raciocínio está impregnado por um dualismo grego de matéria e forma, sustentando que a matéria é corruptível e afetada pela queda, enquanto as faculdades do espírito (responsáveis pela forma e entendimento do mundo) não são. Em suas próprias palavras: “é necessário que a inteligência, com a qual o homem compreende, seja incorruptível, pois cada coisa age segundo o seu ser. Ora, a inteligência tem um tipo de operação que não age pelo corpo [...] donde segue que opera por si mesma, sendo, portanto uma substância que subsiste no seu ser. [...] Consequentemente, a inteligência através da qual o homem compreende é incorruptível” (AQUINO, Compêndio de teologia, p. 93). 9. DOOYEWEERD, No crepúsculo do pensamento ocidental, p. 181. 10. Quanto a essa questão, ninguém é melhor do que Dooyeweerd para nos explicar que: “essa é a razão por que a teologia, em seu sentido científico, necessita de um fundamento filosófico. Pois apenas a filosofia pode fornecer um insight teórico sobre a estrutura interna e a coerência mútua dos diferentes aspectos ou modos da experiência humana. A única pergunta a se fazer é se esses fundamentos filosóficos estão sujeitos ao motivo básico religioso bíblico ou a motivos básicos religiosos não bíblicos originados de uma apostasia completa ou parcial. Os móvitos básicos apóstatas certamente redundam no emaranhamento do pensamento filosófico ao absolutista aspectos especiais, de forma que um insight sobre sua estrutura e coerência real com os outros é excluída em princípio. É uma vã ilusão imaginar que tais visões filosóficas possam se tornar inofensivas ao serem acomodadas de uma forma externa à doutrina eclesiástica à qual o teólogo adere” (DOOYEWEERD, No crepúsculo do pensamento ocidental, p. 219). 11. DOOYEWEERD, No crepúsculo do pensamento ocidental, p. 220. 12. AQUINO, Súmula contra os gentios, p. 64. 13. SCHAEFFER, A morte da razão, p. 12. 14. AQUINO, Súmula contra os gentios, p. 63. 15. FOUCAULT, A Hermenêutica do sujeito, p. 22. 16. Em seu projeto de fundamentação de todo o conhecimento, René Descartes começa a duvidar de tudo aquilo que não estava sob bases Ortodoxia Integral | Pedro Lucas Dulci - 75
sólidas do conhecimento, inclusive sobre si mesmo: “não conheço
bastante claramente o que sou, eu que estou certo que de que sou; de sorte que doravante é preciso que eu atente com todo cuidado, para não tomar imprudentemente alguma outra coisa por mim,e assim para não equivocar-me neste conhecimento” (DESCARTES, Meditações metafísicas, p. 24). Nesse processo de buscar uma característica indubitável sobre o que ele era, o filósofo chegou a seguinte conclusão: “mas o que eu sou, portanto? Uma coisa que pensa. Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente” (DESCARTES, Meditações metafísicas, p. 27). Será, portanto a partir de uma percepção totalmente racionalista de si mesmo que Descartes procurará, não apenas fundamentar todo o conhecimento verdadeiro, como também a própria existência de Deus. Contudo, não é o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó. Trata-se do deus dos filósofos, ou ainda, “a ideia de Deus” (DESCARTES, Meditações metafísicas, p. 39). Não mais uma pessoa que se relaciona comigo e com você, mas tão somente uma ideia ou o um conceito, foi no que a modernidade transformou Deus. 17. É importante mostrar que, o próprio Kant deu testemunho da fragilidade do seu próprio projeto filosófico de determinar o terreno mínimo do uso adequado da razão. Após estabelecer as bases de seu projeto, ele abre um parêntesis para dizer que, a revelia deste procedimento, “a Metafísica é, contudo real como disposição natural (metaphysica naturalis). Com efeito, sem ser movida pela mera vaidade da erudição, mas impelida pela sua própria necessidade, a razão humana progride irresistivelmente até perguntas que não podem ser respondidas por nenhum uso da razão na experiência nem por princípios daí tomados emprestados, e assim alguma metafísica sempre existiu e continuará a existir realmente em todos os homens, tão logo a razão se estenda neles até a especulação (KANT, Crítica da razão pura, B 21). Martin Heidegger irá sustenta a mesma posição: “enquanto o homem permanecer animal rationale é ele animal metaphysicum. Enquanto o homem se compreender como animal racional, pertence a metafísica, na palavra de Kant, à natureza do homem” (HEIDEGGER, Que é metafísica?, p. 245). Em tudo isso, percebemos como o projeto filosófico moderno é, por princípio, insuficiente para determinar o real ponto de partida do conhecimento e das convicções do ser humano. 76 - Ortodoxia Integral | Pedro Lucas Dulci
Por essa razão que a tradição filosófica inspirada na reforma protestante,
em especial no agostiniano-calvinismo, mostra-se como uma abordagem muito mais adequada a respeito do tema, uma vez que compreende que: “a impulsão religiosa inata do coração humano de transcender a si mesmo em busca de descanso na origem divina” apenas demonstra que: “o verdadeiro conhecimento de Deus e de nós mesmos ultrapassa todo o pensamento teórico” (DOOYEWEERD, No crepúsculo do pensamento ocidental, p. 203 e 183). 18. AQUINO, Súmula contra os gentios, p. 64. 19. SCHAEFFER, A morte da razão, p. 18. 20. Quanto a isto, Dooyeweerd explica: “o dualismo interno causado no ponto de partida central do pensamento grego por esses dois motivos opostos [matéria e forma, física e metafísica, natureza e graça] fez surgir uma visão dicotômica da natureza humana como composta de um corpo material perecível e uma alma racional, imortal. [...] A função lógica do pensamento teórico foi considerada como completamente independente do corpo material, uma vez que é direcionada para as formas eternas do ser devendo, consequentemente, ser da mesma natureza dessas formas imperecíveis. Desse modo, a tese de que a função lógica do ato teórico de pensamento seria independente do corpo material tornou-se um argumento recorrente na prova metafísica da imortalidade da alma racional” (DOOYEWEERD, No crepúsculo do pensamento ocidental, p. 232-234).