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Digitalização e Correção:
Dores Cunha
Miss Polly
Naquela manhã de junho, Miss Polly Harrington entrou na sua cozinha um pouco apressada.
Miss Polly nunca fazia movimentos precipitados; tinha mesmo muito orgulho dos seus modos
pausados. Mas hoje estava com pressa, muita pressa.
Nancy que lavava a loiça olhou para ela surpreendida. Trabalhava em casa de Miss Polly
apenas há dois meses mas já conhecia suficientemente a patroa para saber que ela nunca tinha
pressa.
— Nancy!
— Sim, senhora — respondeu Nancy alegremente, mas continuando a lavar a loiça.
— Nancy! — a voz de Miss Polly soava agora mais severa. — Quando eu falar contigo deves
parar de trabalhar e ouvir o que eu tenho para dizer.
Nancy ficou com um ar infeliz. Largou imediatamente o que estava a fazer, cabisbaixa.
— Sim, senhora — disse ela, virando-se apressadamente. — Continuei a trabalhar porque me
disse para despachar a loiça.
A patroa impacientava-se.
— Basta, não te pedi explicações. Só quero que prestes atenção.
— Sim, senhora. — titubeou Nancy, enquanto pensava como era difícil contentar aquela
mulher.
Nancy nunca tinha trabalhado fora de casa. A sua mãe, que era doente, enviuvou, vendo-se
desamparada com três filhos ainda crianças, para além de Nancy. Foi então obrigada a pôr a
jovem a trabalhar para ajudar ao sustento da casa. Ficou satisfeitíssima ao saber de um lugar na
cozinha do solar, no alto da colina. Nancy era de Corners, uma aldeia a 9 quilômetros dali. Antes
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de começar a trabalhar sabia apenas que Miss Polly Harrington era a dona do velho solar
Harrington e uma das pessoas mais ricas da cidade. Foi apenas há dois meses. Sabia agora que
Miss Polly era uma senhora de poucos sorrisos, sempre pronta a zangar-se se alguma faca caía ou
alguma porta batia.
— Quando acabares o trabalho da manhã, limpa o quartinho do sótão, ao cimo das escadas, e
fazes a cama de lavado. Tira de lá os caixotes e limpa-o.
— E onde ponho as coisas que lá estão?
— Na parte da frente do sótão — Miss Polly hesitou, continuando: — A minha sobrinha,
Miss Pollyanna Whittier vem viver comigo. Tem onze anos e vai dormir naquele quarto.
— Vamos cá ter uma menina, Miss Harrington? Que bom que vai ser! — exclamou Nancy
pensando na alegria que as suas irmãzinhas, em casa, transmitiam.
— Sim? Não tenho a certeza — disse Miss Polly secamente. — No entanto, tenciono fazer o
melhor que puder. Sou boa e conheço o meu dever.
Nancy corou que nem um tomate.
— Com certeza senhora, estava só a pensar como uma menina aqui lhe podia trazer um
pouco de alegria.
— Obrigada — disse a senhora com secura —, mas não vejo que haja alguma necessidade
disso.
— Mas, certamente que há de estar contente por a sua sobrinha vir para cá — atreveu-se
Nancy a dizer, achando que devia de algum modo preparar as boas vindas à orfãzinha que estava
prestes a chegar.
Miss Polly ergueu altivamente o queixo.
— É justamente por ter tido uma irmã suficientemente parva para casar e dar à luz uma
criança que não fazia falta nenhuma neste mundo já superpovoado, que não vejo por que razão
terei de ser eu a tomar conta dela. No entanto, como já disse, sei quais são os meus deveres. Vê
se limpas bem os cantos do quarto, Nancy! — terminou ela rudemente, deixando a cozinha.
— Sim, senhora — respondeu Nancy retomando o seu trabalho.
No seu quarto, Miss Polly pegou mais uma vez na carta que tinha recebido há dois dias da
longínqua cidade do oeste e que tanto a tinha surpreendido. A carta estava dirigida a “Miss Polly
Harrington, Bel dingsville, Vermont” e dizia o seguinte:
“Cara senhora,
Lamento informá-la de que o reverendo John Whittier morreu há duas semanas, deixando
uma menina com onze anos de idade. Não deixou praticamente nada para além de alguns livros
pois, como certamente sabe, era pastor nesta pequena paróquia e tinha um magro salário.
Suponho que ele era marido da sua falecida irmã. Antes de falecer, ele deu-me a entender que
o relacionamento entre as duas famílias não era o melhor. Pensou, no entanto, que, em atenção à
memória da sua irmã, talvez quisesse tomar conta da criança e educá-la no seio dos seus outros
parentes do este. É por isso que lhe estou a escrever.
Quando receber esta carta, a menina estará pronta a partir e se puder ficar com ela
agradecíamos que nos respondesse manifestando o seu acordo, visto que há um casal que seguirá em
breve para o este e que a pode levar até Boston, de onde ela poderá seguir de comboio para
Beldingsville. A senhora será então informada do comboio em que irá Pollyanna. Sem outro
assunto de momento, apresento os meus respeitosos cumprimentos.
Jeremia O. White”
Com um gesto brusco, Miss Polly dobrou a carta e meteu-a no envelope. No dia anterior
tinha respondido dizendo que ficava, naturalmente, com a criança. Era, para ela, uma situação
desagradável, mas sabia quais eram os seus deveres.
Estava agora sentada pensativamente com a carta nas mãos e as suas reflexões recuaram até à
sua irmã Jenny, a mãe da criança e até à época em que Jenny, com vinte anos, tinha teimado em
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casar com o jovem pastor, apesar da oposição da família. Havia um homem abastado que a
pretendia e a família preferia este ao pastor. Mas Jenny não cedera. O homem, embora tivesse
mais dinheiro, era mais velho, enquanto o pastor tinha apenas entusiasmo e ideais, bem como um
coração cheio de amor. Jenny tinha preferido estes atributos, muito naturalmente, aliás. Casou
então com o pastor e foi para o sul como esposa de missionário.
Pouco mais souberam dela. Miss Polly lembrava-se bem, apesar de ter apenas quinze anos.
Era a mais nova. A família pouco mais soube da esposa do missionário. Jenny tinha escrito algum
tempo depois, comunicando o nascimento do seu bebê Pollyanna, assim chamado em honra das
suas irmãs Polly e Anna. Tinha tido outros bebês que morreram. Foi a última vez que Jenny
escreveu e há alguns anos tinha chegado a notícia do seu falecimento através de uma carta
lacônica do próprio pastor, com origem numa cidadezinha do oeste.
Entretanto, o tempo não tinha parado para os moradores do solar da colina. Miss Polly,
com os olhos postos no vale, refletiu nas mudanças ocorridas durante aqueles 25 anos. Agora
tinha 40 anos e estava completamente só no mundo. O pai, a mãe e as irmãs, tinham todos
morrido. Desde há uns anos a esta parte, era ela a única dona dos milhares de dólares deixados
pelo pai. Algumas pessoas tinham abertamente lamentado a sua vida solitária, aconselhando-a a
cultivar amigos e companhias, mas ela rejeitou todos os conselhos. Não se sentia sozinha.
Gostava de estar assim. Gostava de tranqüilidade. E, agora...
Miss Polly ergueu-se de sobrolho franzido, refletindo. Claro que estava satisfeita,
considerava-se uma mulher de bem e não só conhecia o seu dever como também tinha suficiente
força de caráter para o cumprir.
Mas, Pollyanna! que nome tão ridículo!
No pequeno quarto do sótão, Nancy varria com vigor, prestando atenção especial aos cantos.
Por vezes, o vigor que punha no seu trabalho era mais para desabafar do que por zelo. Nancy,
apesar da sua submissão receosa à patroa, não era nenhuma santa.
— Só queria poder varrer os cantos da alma dela! — murmurou entre dentes, marcando bem
as sílabas com golpes de vassoura. — Bem precisavam de limpeza! Que idéia esta de pôr a criança
aqui em cima onde faz calor no verão e frio no inverno, com tantos quartos à escolha neste
casarão! Crianças que não fazem falta! Como pode ela dizer uma coisa destas?
Durante algum tempo trabalhou em silêncio. Tendo concluído o seu trabalho, olhou
tristemente para o quartinho quase nu.
— Bom já está, pelo menos da minha parte. Ao menos já não está sujo, embora pouco mais
haja. Pobre criança! Que belo lugar para pôr uma criança só e desamparada! — concluiu ela
saindo e fechando a porta com estrondo. — Ai, o que eu fiz! — exclamou, mordendo os lábios.
Logo de seguida pensou resolutamente:
— Não me ralo, espero que tenha ouvido a porta a bater!
No jardim, nessa tarde, Nancy dispôs de alguns minutos para conversar com o velho Tom
que há muitos anos tratava do jardim.
— Mr. Tom — começou Nancy, lançando um olhar rápido sobre o ombro para se certificar
de que não estava a ser observada — sabe que vem uma menina viver com Miss Polly?
— Quem? — perguntou o velhote endireitando-se com dificuldade.
— Uma menina. Vem viver com Miss Polly.
— Está a brincar! — disse o velhote descrente. Porque não me diz antes que o sol amanhã se
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A chegada de Pollyanna
E foi-se embora. Os preparativos de Miss Polly para a chegada da sua sobrinha Pollyanna
estavam completos.
Na cozinha, Nancy assentou com força o ferro de engomar e pensou com os seus botões:
“Cabelo claro, vestido vermelho e chapéu de palha!” É tudo o que ela sabe! Eu tinha vergonha se não
fosse eu própria esperar a minha única sobrinha que chegasse depois de ter atravessado um
continente inteiro!
No dia seguinte, Timothy e Nancy partiram na charrete para a estação. Timothy era filho
do velho Tom. Na cidade dizia-se que, se o velho Tom era o braço direito de Miss Polly, então
Timothy era o braço esquerdo. Era um bom rapaz e, além disso, bem parecido. Apesar de Nancy
estar há pouco tempo naquela casa, já eram bons amigos. Hoje, porém, Nancy estava demasiado
compenetrada na sua missão para conversar como de costume e foi quase em silêncio que se
dirigiram à estação para aguardar o comboio.
Repetia para si vezes sem conta: “Cabelo claro, vestido vermelho e chapéu de palha”. Não
conseguia deixar de interrogar-se sobre o gênero de criança que esta Pollyanna seria.
— Espero que seja calma e sensível e não deixe cair facas nem bata com as portas —
disse ela para Timothy.
— Se não for, sabe-se lá o que nos vai acontecer — resmungou Timothy. — Imagina
Miss Polly com uma criança barulhenta! Era o fim do mundo!
— Oh, Timothy, acho que ela fez mal em me mandar a mim — disse Nancy enquanto se
precipitava para um sítio onde pudesse observar os passageiros no apeadeiro.
Não demorou muito a que Nancy a visse. Era uma rapariguinha esguia com um vestido vermelho
e duas tranças que pendiam ao longo das costas. Sob o chapéu, uma carinha ansiosa olhava para a
esquerda e para a direita à procura de alguém.
Nancy identificou logo a criança, mas durante algum tempo não conseguiu controlar
suficientemente os joelhos trêmulos para se dirigir a ela. Finalmente, aproximou-se.
— É Miss Pollyanna?
Logo de seguida sentiu dois braços vestidos de vermelho à volta do pescoço.
— Oh, estou tão contente por a ver! — gritou-lhe uma voz ao ouvido. — Claro que sou
Pollyanna e estou tão contente por ter vindo esperar-me! Estava à espera disso.
— Estava? — interrogou Nancy, perguntando a si própria como Pollyanna poderia
conhecê—la. — Estava à minha espera? — repetiu enquanto tentava endireitar o chapéu.
— Sim, durante todo o tempo procurei imaginar a sua cara — gritava a menina em bicos
de pés, enquanto mirava a embaraçada Nancy dos pés à cabeça. — Agora, estou muito contente
por ser assim.
Nancy estava aliviada por Timothy ter vindo com ela. As palavras de Pollyanna tinham-na
confundido.
— Este é Timothy. Traz alguma mala?
— Sim, trago, tenho uma nova. As senhoras da caridade compraram-me uma, foi muito
simpático da parte delas. Trago uma coisa que o senhor Grey disse ser um cheque e devo
entregar-lho antes de ir buscar a minha mala. Mr. Grey é o marido de Mrs. Grey. São primos da
mulher do clérigo Carr. Viajei para este com eles, são simpatiquíssimos! Aqui está ele! — disse
ela, enquanto apresentava o cheque depois de revolver o saco.
Nancy respirou fundo. Depois olhou para Timothy. Os olhos de Timothy estavam
deliberadamente orientados para outro lado.
Finalmente partiram os três com a mala de Pollyanna na retaguarda e a própria Pollyanna
encolhida entre Nancy e Timothy. A rapariguinha falava ininterruptamente, fazia perguntas e
comentários, e Nancy tinha grande dificuldade em acompanhá- la.
— É longe daqui? Adoro andar de charrete, mas também estou desejosa de chegar. Que
linda rua! Eu sabia que ia ser bonito, o pai contou-me.
Parou então de falar com um soluço. Nancy olhou apreensivamente e viu que o queixo
dela tremia e os olhos estavam marejados de lágrimas. Mas num instante recompôs-se.
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— O pai contou-me tudo. Ah, é verdade! Tenho que lhe explicar. Trago este vestido
vermelho e não venho de negro porque não existia roupa negra nas coisas da última coleta. Só
havia um vestido de senhora que a mulher do clérigo disse que não era próprio para mim, além
de que estava gasto nos cotovelos e tinha nódoas brancas. Algumas das senhoras da caridade
queriam comprar-me um vestido negro e um chapéu, mas as outras acharam que o dinheiro devia
ir para o tapete vermelho que elas queriam comprar para a igreja. Mrs. White disse que estava
bem, pois de qualquer maneira ela não gostava de ver crianças de negro. Ela gostava de crianças,
claro, mas não vestidas de negro!
Pollyanna parou um pouco para respirar e Nancy conseguiu dizer:
— Vem muito bem!
— Ainda bem que acha isso. Era muito mais difícil estar contente vestida de negro.
— Contente! — disse Nancy surpreendida, aproveitando uma pausa.
— Sim, por o pai ter partido para o céu para ir ter com a mãe e os meus irmãos. Ele disse
que eu devia ficar feliz. Mas mesmo assim é um pouco difícil, mesmo vestida de vermelho,
porque eu precisava muito dele, principalmente depois da mãe e os irmãos terem ido para o céu.
Enquanto que eu não tinha mais ninguém a não ser as senhoras da caridade. Mas, agora tenho a
certeza de que será mais fácil porque a tenho a si, tia Polly. Estou tão feliz por a ter a si!
Os sentimentos de compaixão de Nancy em relação à rapariguinha transformaram-se em
sobressalto.
— Mas está enganada menina. Eu sou a Nancy. Não sou a sua tia Polly!
— Não é? — perguntou a criança quase desmaiando.
— Não, sou a Nancy. Nunca pensei que pudesse tomar-me por ela. Não somos nada
parecidas!
Timothy sorriu ligeiramente, mas Nancy estava demasiado perturbada para responder ao
seu olhar divertido.
— Mas quem é você? Não parece nada uma empregada!
Desta vez Timothy não conteve um riso.
— Sou Nancy, a empregada da sua tia. Faço tudo menos lavar a roupa. Isso é o trabalho
de Miss Durgin.
— Mas existe uma tia Polly? — perguntou a criança ansiosamente.
— Disso pode estar certa — disse Timothy.
Pollyanna ficou mais descansada.
— Ah, então está bem. — Seguiu-se um momento de silêncio, depois ela prosseguiu
alegremente. — Sabem? Apesar de tudo estou contente por ela não me ter vindo esperar porque,
assim, além de vos ter a vocês, ainda a vou conhecer a ela.
Nancy assoou-se. Timothy olhou para ela com um sorriso de admiração.
— Isso é muito simpático da sua parte. Não achas que deves agradecer à menina, Nancy?
— Estava a pensar nisso... Sim, é muita gentileza sua — titubeou Nancy.
Pollyanna fez um sinal de contentamento.
— Estou tão ansiosa por a ver. É a única família que me resta e durante muito tempo não
sabia que ela existia. Depois o pai disse-me que ela vivia numa casa grande e bonita no cimo de
uma colina.
— É verdade, e já a pode ver daqui — disse Nancy. — É aquela casa branca, grande com
as persianas verdes, em frente.
— Mas que bonita! E tem tantas árvores e relva à volta! Nunca vi tanta relva. A minha tia
Polly é rica, Nancy?
— Sim, Miss.
— Ainda bem. Deve ser ótimo ter muito dinheiro. Nunca conheci ninguém rico. Com
algum dinheiro, só conheci os White. Tinham tapetes em todas as salas e gelados ao domingo. A
tia Polly tem gelados ao domingo?
Nancy abanou a cabeça, enquanto cerrava os lábios e lançava um olhar a Timothy.
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— Não, Miss. Creio que a sua tia não gosta de gelados. Pelo menos nunca vi nenhum à
mesa.
No rosto de Pollyanna espelhou- se uma expressão triste.
— Mas que pena, não percebo como é que ela não gosta de gelados. Bom, de qualquer
maneira talvez seja preferível, porque os gelados em grande quantidade podem fazer dores de
barriga. Talvez a tia Polly tenha tapetes em casa?
— Sim, ela tem tapetes.
— Em todas as salas?
— Em quase todas — respondeu Nancy lembrando-se que o quartinho do sótão não
tinha tapete.
— Ainda bem, adoro tapetes! Nós não tínhamos quase nenhuns. Apenas dois pequenos e
que tinham duas nódoas de tinta. E quadros, gosta de quadros?
— Não sei — respondeu Nancy meio encabulada.
— Eu gosto. Nós não tínhamos quadros.
Só quando Timothy descarregou a mala é que Nancy teve uma oportunidade para lhe
segredar ao ouvido:
— Nunca mais fales em ir-te embora, Thimothy Durgin!
— Ir embora? Claro que não! — respondeu o jovem. — Agora vai ser muito mais
divertido com essa miúda a rondar por aí!
— Divertido! — repetiu Nancy indignada. — Acho que, para essa pobre criança, não vai
ser nada disso quando as duas tiverem que viver juntas. Acho que ela vai precisar de um refúgio.
E eu tenciono ser esse refúgio — disse ela, virando-se em seguida para Pollyanna e conduzindo-a
pelas escadas acima.
O quarto do sótão
Miss Polly Harrington não se levantou para ir ao encontro da sobrinha. Quando Nancy e
a menina entraram na sala, ela limitou-se a erguer os olhos do livro que estava a ler e a estender a
mão num gesto formal.
— Como estás, Pollyanna? — mas não teve tempo para continuar. Pollyanna tinha já
atravessado a sala a correr atirando-se para o colo da tia surpreendida.
— Oh, tia Polly, tia Polly! Estou tão contente por me ter deixado vir viver consigo —
disse ela soluçando. — Não imagina como é bom tê-la a si e à Nancy e tudo isto depois de ter
tido apenas a ajuda das senhoras da caridade!
— Acredito. Embora eu não tenha tido o prazer de conhecer as tuas senhoras da caridade
— respondeu Miss Polly rigidamente, tentando libertar-se dos dedos que a agarravam e dirigindo
um olhar severo a Nancy que se encontrava ainda à porta da sala. — Nancy, já chega. Podes ir.
Pollyanna, vê se te portas bem e se tens termos. Ainda não olhei bem para ti.
Pollyanna afastou-se um pouco, rindo nervosamente.
— Não, mas também eu não tenho muito para ver. Tenho que lhe explicar porque razão
trago este vestido vermelho.
— Isso não interessa — interrompeu Miss Polly rudemente. — Trazes alguma mala,
calculo?
— Sim, sim, tia Polly. As senhoras da caridade deram—me uma linda mala mas trago
pouca coisa. Vêm também uns livros do pai, pois a Mrs. White disse que eu devia conservá-los. O
pai...
— Pollyanna — interrompeu a tia de novo. — Há uma coisa que eu te quero dizer, já.
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chão sem tapetes e as janelas sem cortinados. Finalmente, pousou a vista na pequena mala que
ainda não há muito tempo estava naquele quartinho da longínqua casa do oeste. A seguir, deixou-
se cair de joelhos, tapando o rosto com as mãos.
Nancy encontrou-a nesta posição quando chegou, alguns minutos depois.
— Bem receava encontrá-la assim, pobre criança! — lamentou ela inclinando-se para o
chão e segurando a menina nos braços.
Pollyanna sacudiu a cabeça.
— Mas eu sou má, Nancy, sou muito má — soluçou ela. — Só não percebo porque é que
Deus e os anjos precisavam mais do meu pai do que eu.
— Claro que não — disse Nancy para a consolar.
— Oh Nancy! — no rosto de Pollyanna as lágrimas tinham secado, ao mesmo tempo em
que surgia uma expressão horrorizada.
Nancy procurou sorrir atrapalhada, enquanto enxugava os seus próprios olhos.
— Não era bem isso que eu queria dizer — tentou ela emendar. — Vamos abrir a mala e
arrumar os seus vestidos.
Ainda triste, Pollyanna foi buscar a chave.
— Mas não há aí grande coisa.
— Então fica tudo arrumado num instante — disse Nancy.
Pollyanna fez um grande sorriso.
— É isso! Posso ficar contente com isso, não posso? — gritou ela.
Nancy olhou espantada.
— Sim, claro — respondeu, um pouco confusa.
As mãos competentes de Nancy num instante retiraram da mala os livros, as roupas
interiores e os poucos vestidos sem graça de Pollyanna. Esta, sorrindo agora corajosamente,
começou, numa roda-viva, a pendurar os vestidos no armário, a empilhar os livros em cima da
mesa e a arrumar as roupas interiores nas gavetas.
— Tenho a certeza de que vai ser um quarto muito agradável, não acha?
Nancy não respondeu. Estava aparentemente muito ocupada com a cabeça metida na
mala. Pollyanna de pé, junto à cômoda, olhava um pouco desconsoladamente para as paredes
nuas.
— E, ainda bem que não há nenhum espelho, pois assim não vejo as minhas sardas.
Nancy fez um ruído estranho com a boca. Mas, quando Pollyanna se voltou, ela
continuava com a cabeça dentro da mala. Alguns minutos depois, junto a uma das janelas,
Pollyanna deu um grito de alegria, batendo as palmas.
— Oh Nancy, ainda não tinha visto. Olhe! Ali, aquelas árvores, as casas e aquele lindo
campanário da igreja e o rio a brilhar como um fio de prata. Com coisas tão bonitas para ver não
são precisos quadros nenhuns. Ainda bem que ela me deu este quarto!
Para grande surpresa de Pollyanna, Nancy desatou a chorar. A menina correu para ela.
— Nancy, o que foi? — depois, receosamente, perguntou: — Este não era o seu quarto,
pois não?
— O meu quarto? Não — exclamou Nancy com veemência, procurando refrear as
lágrimas. — A menina é como um lindo anjinho vindo do céu e que certas pessoas não merecem.
Oh, lá está ela a chamar! — Nancy correu para fora do quarto e desceu apressadamente as
escadas.
Agora sozinha, Pollyanna voltou para o seu “quadro”, como ela chamava à bela vista que
se desfrutava da janela. Passado um bocado tentou abrir a vidraça. Parecia-lhe que não ia
conseguir agüentar mais tempo aquele calor insuportável. Felizmente conseguiu abri-la. Mais um
esforço e a janela ficou completamente aberta. Pollyanna debruçou-se na janela e respirou aquele
ar fresco e puro.
Correu depois para a outra janela que, em breve, também cedeu aos seus dedos ansiosos.
Uma mosca passou-lhe debaixo do nariz, zumbindo pelo quarto. Depois entrou outra, e mais
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outra. Mas Pollyanna pouco se ralou. Tinha feito uma descoberta maravilhosa. Junto à janela uma
árvore enorme alargava os grandes ramos. Para Pollyanna pareciam braços estendidos que a
convidavam. Riu alto.
“Acho que consigo”, disse ela para si própria. Logo em seguida, trepou para o parapeito
da janela. Dali era fácil saltar para o ramo mais próximo. Depois, baloiçando como um macaco,
passou de ramo para ramo até atingir o mais baixo. O salto para o chão era, mesmo para
Pollyanna, habituada a trepar às árvores, um pouco assustador. No entanto, ela lá se decidiu,
sustendo a respiração, dependurada nos seus bracinhos e aterrando de gatas na relva macia.
Levantou-se e olhou ansiosamente em redor.
Estava nas traseiras da casa. Diante dela, estendia-se um jardim, onde trabalhava um
velhote curvado. Para lá do jardim um carreiro através de um campo aberto conduzia a um
morro no cimo do qual se erguia um pinheiro junto a um enorme rochedo. Para Pollyanna,
naquele momento, parecia existir apenas um lugar no mundo onde valia a pena estar: o alto
daquele grande rochedo.
Numa corrida e dando uma volta rápida, Pollyanna contornou o velhote curvado, abriu
caminho por entre as filas de plantas e, já um pouco ofegante, chegou ao carreiro que percorria o
campo aberto. Depois, com determinação, começou a trepar. Naquela altura, já começava a achar
o rochedo longe, embora parecesse tão perto visto da janela!
Quinze minutos mais tarde, o grande relógio do corredor do solar de Harrington bateu as
seis horas. Precisamente à última badalada, Nancy tocou o sino para jantar.
Passaram um, dois, três minutos. Miss Polly carrancuda batia com o pé no chão. Um
pouco desajeitadamente pôs-se de pé, percorreu o corredor e olhou para cima impaciente.
Durante um minuto, escutou atentamente. Depois, dirigiu-se para a sala de jantar.
— Nancy — disse ela decididamente logo que a criada apareceu — a minha sobrinha está
atrasada. Mas não quero que a chames — acrescentou apressadamente quando Nancy esboçou
um movimento no sentido da porta. — Eu disse-lhe a que horas era o jantar, agora tem que
sofrer as conseqüências. Pode começar imediatamente a aprender a ser pontual. Quando descer,
podes dar-lhe pão e leite na cozinha.
— Sim, senhora.
Logo que pôde, a seguir ao jantar, Nancy subiu precipitadamente as escadas para o sótão.
— Pão e leite. Francamente! Coitadinha, deve ter adormecido! — logo que abriu a porta
deu um grito de susto. — Onde está? Onde se terá metido? — perguntava ela enquanto
procurava dentro do armário, debaixo da cama e até dentro da mala e na bacia de água. Logo a
seguir, correu escada abaixo e foi ter com o velho Tom ao jardim.
— Mr. Tom, Mr. Tom, a menina desapareceu! Deve ter subido para o céu de onde veio,
pobre cordeirinho! E a tia que me disse para lhe dar pão e leite na cozinha. Neste momento deve
estar a comer o manjar dos anjos, garanto-lhe eu!
O velhote endireitou-se.
— Partiu? Para o céu? — repetiu ele com ar estupefato, olhando inconscientemente para
o céu azul onde já se punha o sol. — Bom, Nancy, parece-me que ela tentou realmente chegar
tão alto quanto pôde — disse ele apontando com o dedo retorcido para uma figurinha esguia que
se erguia no cimo do grande rochedo.
— Não. Se depender de mim ela não vai para o céu esta noite — declarou Nancy,
decididamente. — Se a senhora perguntar, diga-lhe que eu não me esqueci da loiça mas que fui
passear — disse ela dirigindo-se para o carreiro que conduzia ao campo aberto.
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O jogo de Pollyanna
— Mas que susto me pregou, Miss Pollyanna — gritou Nancy enquanto corria em
direção ao rochedo ao longo do qual Pollyanna tinha acabado de deslizar.
— Assustou-se? Ah, desculpe, mas não precisa de se preocupar comigo, Nancy. O pai e
as senhoras da caridade também se preocupavam, até que se convenceram de que eu voltava
sempre bem.
— Mas eu nem sabia que se tinha ido embora! — exclamou Nancy, enquanto agarrava na
mão da menina, apressando-se a descer o morro. — Não a vi sair, nem ninguém viu. Até parece
que voou do telhado.
— É verdade, quase que voei, desci pela árvore!
Nancy parou bruscamente.
— Desceu por onde?
— Desci pela árvore, junto à minha janela.
— Minha Nossa Senhora! — exclamou Nancy, recomeçando a correr. — Nem imagino o
que a sua tia dirá quando souber!
— Não faz mal, eu digo-lhe — prometeu a menina alegremente.
— Por favor, não lhe diga nada!
— Por que, não me diga que ela se preocupa com isso! — respondeu Pollyanna
imperturbável.
— Não... Sim. Não importa. Estou muito preocupada com o que ela possa dizer — disse
Nancy determinada a evitar que Pollyanna fosse repreendida. Mas é melhor despacharmo-nos,
tenho que lavar a loiça.
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Nancy.
Pollyanna disse que sim com a cabeça.
— Essa foi um pouco difícil ao princípio — admitiu ela. — Especialmente quando eu
estava tão só. Não me apetecia continuar a jogar e naquela altura estava à espera de coisas boas!
Lembrei-me, então, de como detestava ver as minhas sardas no espelho e vi aquela linda vista da
janela. Percebi logo que tinha descoberto coisas para ficar contente. Quando estamos à procura
de coisas boas para ficarmos contentes esquecemo-nos das outras. Como da boneca que eu
queria.
— Estou a perceber — respondeu Nancy, engolindo em seco.
— Mas normalmente não leva muito tempo. E muitas vezes já penso nelas quase sem
pensar. Habituei-me a fazer este jogo. Eu e o pai gostávamos muito dele. Se calhar agora vai ser
um pouco mais difícil porque eu não tenho ninguém com quem jogar. Talvez a tia Polly jogue
comigo — acrescentou ela pensativa.
— Minha Nossa Senhora! — murmurou Nancy entre dentes. Depois disse mais alto: —
Ouça, Miss Pollyanna, eu não sei se consigo jogar bem, mas se quiser posso tentar jogar consigo!
— Oh, Nancy! — exultou Pollyanna. — Isso é esplêndido, vamos divertir-nos imenso.
— Sim, talvez — condescendeu Nancy com algumas dúvidas. — Mas não deve depositar
grandes esperanças em mim. Nunca fui muito boa em jogos, mas vou fazer o possível. Há de ter
alguém com quem jogar — concluiu ela enquanto entravam as duas juntas na cozinha.
Pollyanna comeu o seu pão e bebeu o seu leite com muito apetite. Depois, por sugestão
de Nancy, dirigiu-se à sala de estar onde a tia estava sentada a ler. Miss Polly levantou os olhos
com firmeza.
— Já comeste o teu jantar, Pollyanna?
— Sim, tia Polly.
— Tenho muita pena de me ter visto obrigada a mandar-te para a cozinha comer pão e
leite.
— Não faz mal, estou muito contente com isso, tia Polly. Gosto muito de pão e leite e
também da Nancy. Não se preocupe.
A senhora endireitou-se mais na cadeira.
— Pollyanna, já devias estar na cama. Tiveste um dia muito fatigante. Amanhã temos que
fazer planos para a tua vida e ver que roupas é preciso comprar. A Nancy dar-te-á uma vela. Tem
cuidado com ela. O pequeno-almoço é às seis e meia, vê se estás cá em baixo a essa hora. Boa-
noite.
Com naturalidade, Pollyanna dirigiu-se à tia e deu-lhe um abraço afetuoso.
— Até aqui tem sido muito bom — disse ela feliz. — Tenho a certeza de que vou gostar
muito de viver consigo. Aliás já sabia isso antes de vir para cá. Boa-noite — disse alegremente
enquanto saía da sala.
“Mas que criança extraordinária”, pensou Miss Polly. “Ela está contente por eu a ter
castigado e diz que não devo estar preocupada com isso e que vai gostar de viver comigo! Ora
esta!”, exclamou Miss Polly de novo, enquanto retomava o livro.
Quinze minutos depois, no quarto do sótão, a menina soluçava com a cara metida nos
lençóis:
— Pai, que estás junto dos anjos, agora não consigo fazer o jogo. Não acredito que
conseguisses encontrar alguma coisa para estar contente se tivesses de dormir sozinho no escuro.
Se ao menos estivesse ao pé da Nancy ou da tia Polly, seria mais fácil!
Lá em baixo, na cozinha, Nancy procurava despachar o trabalho atrasado enquanto
murmurava:
— Se fazer aquele jogo disparatado é ficar contente por receber muletas quando se quer
bonecas ou ir para aquele rochedo à procura de um refúgio, então eu também sei jogar!
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Eram quase sete horas quando Pollyanna acordou no primeiro dia a seguir à sua chegada.
As janelas do seu quartinho davam para sul e para oeste, de modo que não conseguia ver o sol,
mas via o azul do céu que prenunciava um belo dia.
O quarto estava agora bastante frio e o ar entrava pelas frinchas. Lá fora, os pássaros
chilreavam alegremente e Pollyanna correu à janela para conversar com eles. Viu que lá embaixo,
no jardim, a sua tia já estava no meio das roseiras. Apressou-se a ir ter com ela.
Pollyanna correu escada abaixo, deixando as portas abertas. Atravessou depois o corredor
e saiu pela porta da frente em direção ao jardim. A tia Polly tratava de uma roseira, junto do
velhote, quando Pollyanna, cheia de alegria, se atirou a ela.
— Tia Polly, tia Polly, estou tão contente esta manhã, só por estar viva!
— Pollyanna! — admoestou a senhora com gravidade, endireitando-se tanto quanto
conseguia com aquele peso de trinta e tal quilos pendurado ao pescoço.
— É assim que costumas dar os bons-dias?
A menina largou-a e começou a saltitar.
— Não, só quando gosto muito das pessoas e não posso deixar de o fazer! Eu vi-a da
minha janela, tia Polly, e comecei a pensar que não era uma das senhoras da caridade, e que era de
fato a minha tia. E pareceu-me tão boa que tive que vir a correr dar-lhe um abraço!
O velhote curvado virou de repente as costas. Miss Polly tentou ficar carrancuda, mas
desta vez não teve tanto sucesso.
— Pollyanna tu... eu... Thomas, por hoje basta. Acho que compreendeu o que eu lhe disse
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sobre as roseiras — disse ela com ar sério. Depois voltou-se e afastou-se rapidamente.
— O senhor trabalha sempre no jardim? — perguntou Pollyanna interessadamente.
O homem voltou-se. Tinha os lábios crispados e parecia haver lágrimas nos olhos.
— Sim, Miss. Sou o velho Tom, o jardineiro — respondeu ele. Timidamente, como que
impelido por uma força irresistível, estendeu a mão trêmula e pousou-a, por momentos, no
cabelo claro da menina. — Parece-se tanto com a sua mãe! Eu conheci-a quando ela era ainda
mais pequena do que a menina. Nessa altura eu já trabalhava no jardim.
Pollyanna susteve a respiração.
— Trabalhava? Conheceu mesmo a minha mãe quando ela era ainda um anjinho da terra
e não um anjo dos céus? Oh, conte-me coisas dela! — pediu Pollyanna, saltando para o lado do
velhote.
Na casa soou uma campainha. Logo a seguir viu-se Nancy a sair pela porta das traseiras.
— Miss Pollyanna, esta campainha é a do pequeno- almoço — gritou ela, enquanto
puxava a menina para casa. — Quando toca às outras horas são as outras refeições. Mas tem
sempre que se despachar quando a ouvir, senão terá de se esforçar para encontrar alguma coisa
para ficar contente! — concluiu ela enxotando Pollyanna para dentro da casa como faria com
uma galinha fugida.
Durante os primeiros cinco minutos, o pequeno-almoço foi comido em silêncio. Depois,
Miss Polly seguindo com um olhar reprovador duas moscas que pousavam aqui e ali, sobre a
mesa, disse grave mente:
— Nancy, donde vieram estas moscas?
— Não sei, Miss Polly. Na cozinha não vi nenhuma.
Nancy estivera demasiado excitada para reparar nas janelas que Pollyana tinha deixado
abertas na tarde anterior.
— Se calhar as moscas são minhas, tia Polly — observou Pollyana amistosamente. —
Esta manhã havia muitas lá em cima.
Nancy abandonou precipitadamente a sala, levando consigo os pães quentes que trazia da
cozinha.
— São tuas? — perguntou a tia Polly. — Que queres dizer? De onde vieram?
— Devem ter vindo lá de fora, pelas janelas. Eu vi algumas entrar.
— Viste-as! Queres dizer que abriste as janelas que não têm mosquiteiros?
— Sim, realmente não tinha mosquiteiros, tia Polly.
Naquele momento, Nancy entrou de novo com os pães. Vinha com uma expressão muito
séria e estava corada.
— Nancy — disse a senhora gravemente — podes deixar aqui os pães e ir já ao quarto de
Miss Pollyanna fechar as janelas. Fecha também as portas. Depois de teres feito as tarefas da
manhã vai a todos os quartos com o mata-moscas. Vê tudo com cuidado, não deixes escapar
nenhuma.
Dirigindo-se à sobrinha disse:
— Pollyanna, já encomendei mosquiteiros para as janelas. É claro que eu sabia que as
janelas estavam a precisar. Mas parece-me que esqueceste do teu dever.
— O meu dever? — os olhos de Pollyanna abriam-se de espanto.
— Com certeza. Eu sei que está calor, mas considero que é teu dever manter as janelas
fechadas até chegarem as redes. As moscas não são só uma porcaria, como também são
incomodativas e perigosas para a saúde. Depois do pequeno-almoço vou dar-te um prospecto
para leres sobre este assunto.
— Para ler? Muito obrigado, tia Polly. Adoro ler!
A tia Polly inspirou fundo, com os lábios cerrados. Pollyanna ao ver a expressão séria da
tia mudou também a sua.
— Com certeza que peço desculpa por ter esquecido o meu dever, tia Polly —
desculpou-se ela timidamente. — Não volto a abrir as janelas.
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A tia não respondeu. Não voltou a falar até a refeição terminar. Depois, levantou-se,
dirigiu-se à enorme estante na sala de estar, retirou de lá um pequeno prospecto e atravessou de
novo a sala em direção à sobrinha.
— Eis o artigo de que te falei, Pollyanna. Quero que vás para o teu quarto imediatamente
e o leias. Daqui a meia hora vou lá para ver as tuas coisas.
Pollyanna com os olhos postos na imagem da cabeça de uma mosca ampliada, gritou
alegremente:
— Oh, muito obrigada, tia Polly!
No momento seguinte saiu saltitante da sala, atirando com a porta atrás de si.
Miss Polly fez-se carrancuda, hesitou, depois atravessou a sala e abriu a porta. Pollyanna,
no entanto, já tinha desaparecido, subindo rapidamente as escadas para o sótão.
Meia hora mais tarde, quando Miss Polly, com uma expressão muito séria, subiu as
escadas e entrou no quarto de Pollyanna, foi recebida com uma explosão de entusiasmo.
— Oh, tia Polly, nunca vi nada tão engraçado e interessante na minha vida. Ainda bem
que me deu isto para ler. Nunca pensei que as moscas pudessem transportar tantas coisas más nas
patas e...
— Já chega! — observou a tia Polly com um ar digno. — Pollyanna, traz as tuas roupas
para eu ver. Aquilo que não for apropriado para ti darei aos Sullivans.
Com evidente relutância, Pollyanna pôs de parte o prospecto e virou-se para o armário.
— Receio que ache as minhas roupas piores do que as senhoras da caridade achavam.
Elas disseram que eram uma vergonha. Mas nas coletas da missão só havia coisas para rapazes e
para pessoas mais velhas. Já alguma vez assistiu a uma coleta de roupas para os pobres, tia Polly?
Vendo a expressão chocada e zangada da tia, Pollyanna corrigiu imediatamente.
— Claro que não, tia Polly! Já me esquecia que as pessoas ricas não vão a essas coisas.
Mas sabe, aqui neste quarto, às vezes, esqueço- me que a senhora é rica.
Miss Polly ficou indignada, mas não pronunciou uma palavra. Pollyanna, sem consciência
do que tinha acabado de dizer, despachava-se com as roupas.
— Estava eu a dizer que não há nada de mal nas coletas de roupa para os pobres exceto
que não encontramos nunca aquilo de que estamos à espera, ainda que o saibamos de antemão.
Era nessas coletas que o pai tinha mais dificuldade em jogar o jogo e...
Pollyanna acabara de se lembrar que não se devia referir ao pai diante da tia. Voltou-se de
novo para dentro do armário e, apressadamente, retirou de lá os seus vestidinhos velhos.
— Não são nada bonitos e deviam ter sido pretos se não fosse por causa do tapete
vermelho para a igreja. Mas são tudo o que tenho.
Com as pontas dos dedos, Miss Polly mexeu naqueles trapos que não se adequavam nada
a Pollyanna. A seguir, muito sisuda, prestou atenção à roupa interior arrumada nas gavetas da
cômoda.
— Trouxe as melhores roupas que tinha — confessou Pollyanna ansiosamente. — As
senhoras da caridade compraram-me um conjunto completo. Mrs. Jones, que é a presidente, disse
às outras que se calhar, por causa disso, iam ter que caminhar toda a vida pelo chão nu das naves
da igreja. Mas não têm. Mr. White não tolera barulho. Fica cheio de nervos, diz a mulher dele.
Mas é rico e elas estão a contar que ele dê o dinheiro para o tapete, por causa dos nervos.
Miss Polly parecia não a ouvir. A inspeção às roupas interiores tinha terminado e ela
voltou-se para Pollyanna com uma certa brusquidão.
— Tens ido à escola, Pollyanna?
— Sim, tia Polly. Além disso o meu pai... quer dizer, em casa, também me ensinaram.
Miss Polly franziu o sobrolho.
— Muito bem. No outono vais recomeçar a escola aqui. Mr. Wall, o mestre-escola há de
determinar em que ano deverás ficar. Entretanto, quero ouvir-te ler alto meia hora, todos os dias.
— Adoro ler, mas se não me quiser ouvir, fico muito contente por ler para mim própria.
A sério, tia Polly. E nem preciso de fazer qualquer esforço para ficar contente porque o que eu
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gosto mais é de ler para mim mesma, por causa das grandes palavras.
— Não duvido — respondeu Miss Polly. — Estudaste música?
— Não muito. Não gosto da minha música. Mas gosto da música dos outros. Aprendi a
tocar um pouco de piano. Miss Grey, que toca na igreja, ensinou-me. Mas eu preferia deixar isso
de parte, tia Polly.
— Acredito — observou a tia Polly com as sobrancelhas ligeiramente levantadas. — No
entanto, penso que é meu dever dar-te uma instrução adequada, pelo menos em relação a alguns
rudimentos de música. E sabes, evidentemente, costurar?
— Sim, tia — respondeu Pollyanna. — As senhoras da caridade ensinaram-me isso, mas
foi muito difícil. Elas tinham opiniões contraditórias sobre a maneira de me ensinar.
— Não faz mal. Aqui não terás problemas desses. Eu própria te vou ensinar a costurar.
Calculo que não saibas cozinhar.
Pollyanna riu, subitamente.
— Elas começaram a ensinar-me este verão, mas não fomos longe. Estavam ainda mais
divididas sobre isso do que sobre a costura. Iam começar com o pão, mas todas o faziam de
modo diferente. Assim, depois de discutirem numa reunião, decidiram que eu iria um dia de
semana à cozinha de cada uma delas. Aprendi a fazer doce de chocolate e bolo de figo, quando
tive de parar.
— Doce de chocolate e bolo de figo! — troçou Miss Polly. — Em breve remediaremos
isso. — Fez uma pausa e depois continuou. — Às nove horas, todas as manhãs, vais ler alto para
mim, durante meia hora. Antes disso, deverás arrumar o teu quarto. Às quartas-feiras e aos
domingos à tarde, depois das nove e meia, irás para a cozinha aprender a cozinhar com a Nancy.
Nas outras manhãs, vais costurar comigo. À tarde, vais dedicar-te à música. Vou já procurar um
professor para ti — terminou ela decididamente, enquanto se levantava.
Pollyanna gritou desanimada.
— Mas, tia Polly, não me deixa tempo nenhum para viver!
— Para viver, menina?! Que queres dizer? Como se não vivesses durante todo o tempo!
— Sim, eu respiro durante todo o tempo em que estiver a fazer essas coisas, tia Polly,
mas não estarei a viver. Também se respira enquanto se dorme, mas não estamos a viver. Eu
quero dizer viver, fazer as coisas que gostamos de fazer: brincar ao ar livre, ler para mim própria,
subir pelos montes, conversar com Mr. Tom no jardim e com a Nancy, conhecer tudo sobre as
casas e as pessoas, e tudo o que há nas lindas ruas por onde ontem passei. É isso que eu chamo
viver, tia Polly. Respirar não é viver!
Miss Polly levantou a cabeça irritada.
— Pollyanna, és a criança mais extraordinária que eu já vi! Evidentemente que hás de ter
algum tempo para brincar. Mas se eu cumpro o meu dever zelando para que tu tenhas uma
instrução adequada e sejas tratada como deve ser, tu também deves estar disposta a cumprir o
teu, fazendo com que a dedicação e a instrução que te são oferecidas não sejam ingratamente
desperdiçadas.
Pollyanna olhava chocada para a tia.
— Oh, tia Polly, como se eu pudesse ser ingrata para consigo! Como, se eu a amo, e nem
sequer é uma das senhoras de caridade, é minha tia!
— Muito bem, então vê se não ages com ingratidão — vociferou Miss Polly, enquanto se
dirigia para a porta.
Já ia a meio da escada quando uma voz fraca e insegura chamou por ela:
— Por favor, tia Polly, não me chegou a dizer quais das minhas coisas queria dar.
A Tia Polly emitiu um suspiro de fastio que chegou aos ouvidos de Pollyanna.
— Esqueci-me de te dizer, Pollyanna. Thimoty, esta tarde, à uma e meia leva-nos à
cidade. Nenhuma dessas roupas é apropriada para a minha sobrinha vestir. Estaria, decerto,
muito longe de cumprir o meu dever se te deixasse aparecer em público com alguma delas.
Foi agora a vez de Pollyanna suspirar. Parecia-lhe que ia detestar aquela palavra: dever.
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— Tia Polly, por favor — disse ela em voz baixa — não será possível encarar com mais
alegria toda essa coisa do dever?
— O quê? — Miss Polly olhou para cima boquiaberta; depois, repentinamente, muito
corada, virou as costas, desceu as escadas muito zangada e disse: — Não sejas impertinente,
Pollyanna!
No seu quartinho do sótão, Pollyanna deixou-se cair num dos cadeirões. A existência
aparecia-lhe como um caminho interminável para o dever. “Não vejo o que houve de
impertinente no que eu disse” suspirou ela. “Só lhe estava a pedir para me dizer se não
encontrava nada que a satisfizesse em toda aquela questão do dever. “
Durante alguns minutos, Pollyanna manteve-se sentada em silêncio, com os olhos fixos
nas roupas estendidas na cama. Depois, vagarosamente, levantou-se e começou a pôr os vestidos
de parte.
— Não vejo nada para estar contente — disse ela alto — a menos que se deva ficar
contente quando o dever está cumprido! — e com isto deu uma gargalhada.
Os castigos e Pollyanna
À uma e meia, Thimoty conduziu Miss Polly e a sobrinha a quatro ou cinco das principais
lojas da cidade que ficavam a cerca de um quilometro do solar. A compra de um novo enxoval
para Pollyanna veio a verificar-se uma experiência excitante para todas as pessoas envolvidas.
Quando as compras acabaram, Miss Polly experimentou uma sensação de descontração
que uma pessoa sente quando finalmente encontra terreno firme, depois de uma caminhada
perigosa sobre a crosta fina de um vulcão. Os diversos empregados que atenderam as duas,
concluíram o seu trabalho com os rostos afogueados e bastantes histórias sobre Pollyanna para
contar aos amigos, durante o resto da semana. A própria Pollyanna ficou muito satisfeita e
radiante com tudo aquilo porque, como ela explicou a um dos empregados, “quando nunca se
teve mais nada para além das dádivas da caridade, é formidável entrar nas lojas e comprar roupas
novinhas que não precisam de ser remendadas ou postas de parte por não servirem. A visita às
lojas durou a tarde inteira. Depois foi o jantar e uma agradável conversa com o velho Tom, no
jardim, e outra com Nancy, no pátio das traseiras, depois de esta ter lavado a loiça e enquanto a
tia Polly visitava um vizinho.
O velho Tom contou a Pollyanna coisas maravilhosas sobre a mãe, que ela gostou muito
de ouvir e Nancy contou-lhe tudo sobre a sua pequena quinta a nove quilômetros dali, na aldeia
dos Cantos, onde vivia a mãe e os seus queridos irmãos. Ela prometeu também que, se Miss Polly
deixasse, Pollyanna podia ir visitá-los.
— E eles também têm bonitos nomes. Há de gostar dos nomes deles — disse Nancy. —
Chamam-se Algernon, Florabelle e Estelle. Não gosto nada do meu nome, Nancy!
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Não demorou muito até que a vida no solar Harrington entrasse mais ou menos na
ordem, embora não fosse exatamente a ordem que Miss Polly tinha inicialmente previsto.
Pollyanna costurava, praticava música, lia alto e aprendia a cozinhar. Tudo isto é verdade, mas
não dedicava a cada uma destas coisas tanto tempo quanto a tia planejara. Acabava por ter mais
tempo para “viver” como ela dizia, pois quase todas as tardes, das duas às seis da tarde dispunha
de tempo livre para fazer o que bem entendia desde que não fizesse certas coisas que a tia lhe
proibira.
Resta saber se Pollyanna dispunha de todo esse tempo livre para descanso dos seus
deveres ou se seria antes para descanso da própria tia. Surgiram muitas ocasiões, durante esses
dias de julho, em que a tia exclamou: “Que criança extraordinária!” E as leituras, bem como as
lições de costura, deixavam a tia perfeitamente exausta.
Nancy ia bem na cozinha. Não se cansava nada. Era por isso que gostava tanto das
quartas e sábados.
Nas vizinhanças do solar Harrington não havia crianças com que Pollyanna pudesse
brincar. Aliás, o solar encontrava-se nos arredores da cidade e embora existissem outras casas
próximas não moravam lá rapazes nem raparigas da idade de Pollyanna. Porém, isso não parecia
preocupá-la muito.
— Não, não me importo nada — explicava ela a Nancy — gosto muito de passear, ver as
ruas e as casas e observar as pessoas. Gosto muito das pessoas. Tu não gostas, Nancy?
— Não posso dizer que gosto de todas elas — respondeu Nancy.
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Quase todas as tardes Pollyanna dava um grande passeio e era nesses passeios que ela
encontrava frequentemente o “Homem”.
O Homem vestia normalmente um sobretudo e um chapéu alto de seda, duas coisas que
os homens normais nunca usam. Tinha a face escanhoada, muito pálida, e o cabelo que aparecia
pela parte de trás do chapéu era grisalho. Caminhava muito depressa e empertigado e estava
sempre sozinho, o que fazia pena a Pollyanna. Talvez tenha sido por isso que ela um dia lhe
falou.
— Como está, senhor? Que belo dia está hoje, não é verdade? — disse ela aproximando-
se dele.
O Homem deitou-lhe um olhar rápido e depois parou, na dúvida se seria com ele.
— Está a falar comigo? — perguntou ele com voz ríspida.
— Sim, senhor — respondeu Pollyanna. — Perguntei se não achava que estava um dia
bonito.
— Ah, sim, sim — respondeu ele laconicamente.
Pollyanna riu. Era um homem curioso, pensou ela. No dia seguinte viu-o de novo.
— Hoje não está tão bonito como ontem, mas mesmo assim está um dia bonito — disse
ela alegremente.
— Eh? Eh, oh! Hummm! — resmungou o Homem como já fizera da outra vez, e, mais
uma vez, Pollyanna riu alegremente.
Da terceira vez que Pollyanna o abordou da mesma forma, o Homem parou
abruptamente.
— Olha cá menina, quem és tu? Porque me falas todos os dias?
— Sou Pollyanna Whittier e achei que parecia muito solitário. Ainda bem que parou.
Agora estamos apresentados, eu é que não sei o seu nome.
— Mas que... — o Homem não acabou a frase e recomeçou a andar depressa.
Pollyanna olhou para ele desapontada.
— Talvez não me tivesse compreendido. Assim foi só meia apresentação. Não sei ainda o
nome dele — murmurava ela enquanto prosseguia o caminho.
Pollyanna levava hoje geléia de pé-de-vaca para Mrs. Snow. Miss Polly mandava sempre
alguma coisa todas as semanas a Mrs. Snow. Ela dizia que isso era seu dever, porque Mrs. Snow
era pobre e doente, e pertencia à mesma paróquia. Naturalmente que era o dever de todos os
membros da paróquia olhar por ela. Miss Polly costumava cumprir o seu dever em relação a Mrs.
Snow nas quintas-feiras à tarde. Não ia pessoalmente, mas mandava Nancy. Hoje Pollyanna tinha
pedido para ter esse privilégio e Nancy concedeu-lho imediatamente depois de ter pedido
autorização a Miss Polly.
— Ainda bem que me vi livre daquilo — declarou Nancy mais tarde a Pollyanna, em
privado. — Embora seja uma vergonha ter passado o trabalho para si, minha pobre cordeirinha!
— Mas eu gosto de ir lá, Nancy.
— Vai ver que não, depois de lá ter estado pela primeira vez.
— Mas por que não?
— Porque ninguém gosta. Se as pessoas não tivessem pena dela nunca ninguém lá punha
os pés. É insuportável, tenho pena da filha que tem de tratar dela.
— Mas por que, Nancy?
Nancy encolheu os ombros.
— Olhe, em palavras simples, o que acontece é que aos olhos de Mrs. Snow tudo o que
acontece está mal. Nem sequer os dias da semana estão bem para ela. Se for segunda-feira, diz
que preferia que fosse domingo, se lhe levar geléia, diz que lhe apetecia galinha, mas se lhe levar
galinha, diz que lhe apetecia outra coisa!
— Que mulher tão engraçada! — riu Pollyanna. Acho que vou gostar de visitá-la. Ela
deve ser diferente das outras pessoas e eu gosto muito de pessoas diferentes.
— Ah, lá isso é! É bastante diferente — concluiu Nancy.
24
Pollyanna refletia sobre esta conversa enquanto abria o portão da modesta casa da
senhora. Os olhos brilhavam-lhe ante a expectativa de conhecer esta “diferente” Mrs. Snow. Foi
uma rapariga pálida e de ar cansado que lhe abriu a porta.
— Como está? — cumprimentou Pollyanna educadamente. — Venho da parte de Miss
Polly Harrington e gostava de ver Mrs. Snow, por favor.
— Se assim quer, você é a primeira pessoa que diz que gostava de a ver — resmungou a
rapariga.
Mas Pollyanna não a ouviu. A rapariga já se tinha virado e conduziu-a para o quarto da
senhora. Já no quarto e depois da rapariga ter saído e fechado a porta, Pollyanna piscou os olhos
até se habituar à semiobscuridade que ali reinava. Viu então, a silhueta de uma mulher meio
sentada na cama. Pollyanna avançou logo para ela.
— Como está, Mrs. Snow? A tia Polly espera que se sinta melhor e mandou-lhe um boião
de geléia.
— O quê, geléia? — murmurou uma voz sumida. — Claro que estou muito agradecida,
mas hoje, estava a contar que me trouxessem caldo de carneiro.
Pollyanna franziu um pouco o sobrolho.
— Ah sim? Pensava que dizia que lhe apetecia galinha quando lhe traziam geléia — disse
ela.
— O quê? — respondeu a doente asperamente.
— Nada, nada — disfarçou Pollyanna apressadamente. — Não tem importância, mas a
Nancy disse que quando lhe trazíamos geléia dizia que lhe apetecia galinha e quando lhe traziam
galinha que lhe apetecia caldo de carneiro. Talvez tivesse sido assim da outra vez e Nancy
esqueceu-se.
A doente endireitou-se mais na cama, coisa pouco habitual nela, embora Pollyanna não
soubesse.
— Pois bem, Miss Impertinente, quem é você? — perguntou ela.
Pollyanna riu.
— Não é assim que me chamo, Mrs. Snow. E ainda bem que não! Isso seria pior do que
“Hephzibah”, não era? Chamo-me Pollyanna Whittier, sou sobrinha de Miss Polly Harrington e
vim viver com ela. É por isso que estou hoje aqui com a geléia.
Durante a primeira parte da frase, a doente sentou-se muito direita, manifestando muito
interesse, mas com a referência à geléia voltou a abater-se sobre a almofada.
— Muito bem, agradeço-lhe muito. A sua tia é muito simpática, mas esta manhã não
estou com apetite e estava-me a apetecer caldo de carneiro. — parou subitamente de falar depois
retomou o discurso bruscamente, mudando de assunto. — Não consegui pregar olho esta noite!
— Não me diga, isso gostava eu que me acontecesse! — suspirou Pollyanna, colocando a
geléia na mesa de cabeceira e sentando-se confortavelmente na cadeira mais próxima. —
Perdemos tanto tempo a dormir! Não acha?
— Perder tempo a dormir! — exclamou a senhora doente.
— Sim, é uma pena que não possamos também viver de noite.
A senhora voltou a endireitar-se na cama.
— Mas que menina espantosa! — exclamou ela. Olhe, vá até à janela e levante as cortinas
— ordenou ela. — Quero ver a sua cara!
Pollyanna levantou-se e riu divertida.
— Mas assim vai ver-me as sardas todas — disse ela enquanto se dirigia para a janela. —
E eu estava tão satisfeita por estar escuro e a senhora não as poder ver. Mas ainda bem que me
quer ver porque assim também a posso ver a si! Não me tinha dito que era tão bonita!
— Eu, bonita? — desabafou a mulher com amargura.
— Sim, não sabia? — perguntou Pollyanna.
— Não, não sabia — retorquiu Mrs. Snow secamente.
Tinha quarenta anos e desses, quinze tinha-os perdido a desejar coisas diferentes das que
25
tinha.
— Os seus olhos são grandes e negros e o seu cabelo é escuro e encaracolado — elogiou
Pollyanna. — Gosto muito de caracóis negros. Essa é uma das coisas que eu hei de ter quando
chegar ao céu. E tem duas manchinhas vermelhas na cara. É verdade, Mrs. Snow, a senhora é
muito bonita! Pensava que sabia, depois de se ter visto ao espelho.
— O espelho — suspirou a mulher doente voltando a abater-se sobre a almofada. —
Não me tenho visto muito ao espelho ultimamente. Você também não se preocuparia muito com
isso se tivesse de estar sempre deitada como eu!
— Não, claro que não — concordou Pollyanna com simpatia. — Mas deixe- me mostrar-
lhe — exclamou ela dirigindo-se à cômoda e trazendo um espelho pequeno.
Ao regressar à cama, parou olhando com olhar crítico para a senhora.
— Deixe-me só arranjar-lhe um pouco o cabelo, antes de lhe dar o espelho — propôs ela.
— Deixa-me arranjar-lhe o cabelo?
— Bom, se quer, está bem — condescendeu Mrs. Snow. — Mas não se agüenta!
— Obrigada, gosto muito de pentear as pessoas — exultou Pollyanna, pousando
cuidadosamente o espelho e indo buscar um pente. — Claro que não vou poder fazer grande
coisa, pois tenho pressa de que veja como é bonita; mas um dia desmancho-o todo e vai ver
como fica linda — exclamou ela enquanto a penteava.
Durante cinco minutos, Pollyanna fez o melhor que pôde. Entretanto, a mulher que se
esforçava por ficar carrancuda e troçava daquilo tudo, começava, apesar de tudo, a sentir-se um
bocadinho entusiasmada.
— Já está! — exclamou Pollyanna retirando uma rosa da jarra mais próxima e colocando-
a no cabelo negro, no ponto onde fazia melhor efeito. — Agora pode ver-se ao espelho! — e
segurou o espelho triunfantemente.
— Humm! — resmungou a doente enquanto observava a sua imagem de olhar severo. —
Gosto mais de rosas vermelhas do que cor-de-rosa, mas também não faz grande diferença, pois
até à noite murcha!
— Mas deve ficar contente por elas murcharem — riu Pollyanna — porque então pode
ter a alegria de receber mais. Gosto muito do seu cabelo arranjado assim — concluiu ela
satisfeita. — Não acha?
— Sim, talvez. Mas não vai durar muito porque tenho que me deitar.
— Claro que não e ainda bem — disse Pollyanna alegremente. — Assim posso arranjá-lo
de novo. De qualquer forma, acho que deve estar contente por o seu cabelo ser negro. O cabelo
negro fica muito melhor numa almofada do que o loiro, como o meu.
— Talvez, mas nunca gostei muito do cabelo preto; os cabelos brancos aparecem mais
cedo — retorquiu Mrs. Snow. Falava com irritação, mas continuava a segurar o espelho diante da
cara.
— Ah! Pois eu gosto muito de cabelo negro! Gostava muito que o meu fosse preto —
suspirou Pollyanna.
Mrs. Snow deixou cair o espelho e virou-se irritada.
— Não, não havia de gostar! Se estivesse no meu lugar não gostava. Nem havia de gostar
de outras coisas, se tivesse que estar sempre aqui deitada!
Pollyanna franziu o sobrolho, pensativa.
— Sim, realmente devia ser mais difícil!
— O quê?
— Arranjar coisas para ficar contente.
— Arranjar coisas para ficar contente, quando estamos deitadas o dia inteiro? Seria bem
difícil — retorquiu Mrs. Snow. — Se não acha, diga-me alguma coisa com que ficar contente!
Para grande surpresa de Mrs. Snow, Pollyanna correu e bateu as palmas.
— Essa é difícil! Tenho de me ir embora, mas vou pensar nisso durante todo o caminho
até a casa e talvez da próxima vez lhe diga. Adeus, gostei muito de a visitar! — disse enquanto se
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Na próxima vez em que Pollyanna viu o Homem, estava a chover. No entanto, ela
cumprimentou-o com um grande sorriso.
— Hoje o dia não está muito bonito. De qualquer modo, estou contente por não estar
sempre bonito!
Desta vez o Homem não resmungou nem virou a cabeça. Claro que Pollyanna concluiu
que ele não a tinha ouvido. Na próxima vez, que por acaso foi no dia a seguir, ela falou mais alto.
De qualquer modo ela entendia que era necessário fazê- lo pois o Homem estava a afastar-se com
as mãos atrás das costas e os olhos no chão. Aquela postura parecia inadequada a Pollyanna, face
ao sol esplendoroso e à limpidez do ar da manhã. Pollyanna fazia um dos seus passeios matinais.
— Como está o senhor? Ainda bem que já passou o dia de ontem, não acha?
O Homem parou bruscamente. Tinha uma expressão zangada.
— Olha, minha menina, vamos resolver isto de uma vez por todas. Eu tenho mais em
que pensar, para além do tempo que faz. Nem reparo se o sol está a brilhar ou não.
Pollyanna respondeu alegremente.
— Eu bem me parecia que não reparava, por isso é que lhe estou a dizer.
— O quê? — perguntou, olhando espantado.
— É por isso que eu lhe digo para reparar no sol a brilhar. Eu sabia que ficava mais
contente se parasse de pensar nas suas coisas. Se não repara no sol é porque não pára de pensar!
— Raios!... — praguejou o Homem com um gesto de impotência. Continuou a andar,
mas logo a seguir voltou-se ainda zangado.
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— Olha lá, porque é que não arranjas alguém da tua idade com quem conversar?
— Isso gostava eu, senhor, mas não há ninguém por aqui — respondeu ela. — Mas eu
também não me importo muito. Gosto das pessoas mais velhas, talvez até mais que os novos.
Estou habituada com as senhoras da caridade.
— Humm! As senhoras da caridade? Pensas que sou desses? — o Homem tentava
esboçar um sorriso, mas o resto da cara não deixava.
Pollyanna riu.
— Ah, não, senhor. Não se parece nada com as senhoras da caridade, mas decerto que é
tão bom como elas, talvez até melhor — acrescentou ela tentando ser educada. — Tenho a
certeza de que é muito melhor do que parece!
O Homem fez um ruído estranho com a garganta.
— Raios!!! — explodiu ele outra vez enquanto se voltava e continuava o caminho.
Da próxima vez que Pollyanna encontrou o Homem, os olhos dele fixaram diretamente
os dela com a franqueza que tornou o rosto dele agradável, pensou Pollyanna.
— Boa tarde — cumprimentou-a ele rigidamente. — Talvez seja melhor eu dizer que já
sei que o sol hoje está a brilhar.
— Mas não precisa de me dizer — respondeu Pollyanna alegremente. — Logo que eu o
vi, soube imediatamente que sabia.
— Ah, sim, sabia?
— Sim, senhor, vi nos seus olhos e fiquei logo a saber pelo seu sorriso.
— Humm! — resmungou o homem enquanto se afastava.
Depois disto, o Homem passou a falar sempre a Pollyanna e era ele quem
frequentemente falava primeiro, se bem que normalmente pouco mais dissesse do que “Boa
tarde”. No entanto, mesmo isso era uma grande surpresa para Nancy que calhou estar com
Pollyanna num dos dias em que eles se cruzaram.
— Fantástico, Miss Pollyanna! Esse homem cumprimentou-a?
— Sim, cumprimenta sempre, agora — respondeu Pollyanna com um sorriso.
— Cumprimenta sempre! Meu Deus! Sabe quem ele é? — perguntou Nancy.
Pollyanna fez-se séria e abanou a cabeça.
— Ele nunca me chegou a dizer. Eu apresentei-me, mas ele não.
Nancy abriu mais os olhos.
— Mas ele nunca fala com ninguém, há anos, creio eu. Exceto quando não tem outro
remédio, por questões de negócios e coisas assim. Chama-se John Pendleton. Vive sozinho no
grande casarão de Pendleton Hill. Nem sequer tem lá quem cozinhe para ele. As refeições vêm
do hotel três vezes por dia. Conheço a Sally Miner que é a criada dele. Ela diz que ele mal abre a
boca para dizer o que quer comer. Ela tem de adivinhar quase sempre o que lhe apetece e tem de
ser sempre qualquer coisa barata! Isso sabe ela, mesmo sem ele precisar de dizer.
Pollyanna respondeu, manifestando compreensão.
— Eu sei. Quando se é pobre, tem que se procurar apenas coisas baratas. O pai e eu
comíamos muitas vezes fora. Quase sempre comíamos feijão e pastéis de peixe. Costumávamos
dizer que tínhamos muita sorte em gostar de feijões. Dizíamos isso especialmente quando
estávamos a ver na mesa ao lado peru assado que era muito mais caro. O senhor Pendleton gosta
de feijões e pastéis de peixe?
— Sei lá se gosta. Mas ele não é pobre. Tem muitíssimo dinheiro que herdou do pai. Não
há ninguém na cidade tão rico como ele. Se quisesse, até podia comer notas de dólares que nem
dava por isso.
Pollyanna abanou a cabeça.
— Como se alguém pudesse comer notas de dólares sem dar por isso. Primeiro é preciso
mastigá-las!
— O que eu quero dizer é que ele é muito rico — respondeu Nancy impaciente. — Ele
não quer gastar o dinheiro. É só isso. É um sovina.
28
— Ah sim? Isso é muito bom, é negar-se a si próprio e carregar a sua cruz. Eu sei porque
o pai me disse.
Nancy abriu a boca como se estivesse para se zangar, mas ao ver o rosto alegre de
Pollyanna reparou numa coisa que a impediu de falar.
— Humm! — vociferou ela. E continuou: — Não deixa de ser curioso ele dispor-se a
falar consigo, Miss Pollyanna. Ele não fala com mais ninguém e vive sozinho naquele grande
casarão cheio de coisas luxuosas, como dizem. Alguns dizem que é maluco e há até quem diga
que tem um esqueleto no armário.
— Oh Nancy! — disse Pollyanna toda arrepiada. — Como pode ele guardar uma coisa
dessas? Acho que o deitava logo fora!
Nancy sorriu por Pollyanna ter tomado aquilo do esqueleto à letra. Mas, com uma ponta
de perversidade, absteve-se de corrigir o erro.
— E todos dizem que ele é muito misterioso — continuou ela. — Há alguns anos,
viajava muito para os países quentes como o Egito e o deserto do Saara.
— Ah, como missionário — respondeu Pollyanna. Nancy riu-se de modo estranho.
— Não diria isso, Miss Pollyanna. Quando regressa, escreve livros. Livros esquisitos
sobre coisas curiosas que encontra nos países por onde viaja. Mas nunca gasta o seu dinheiro
aqui, pelo menos em luxos.
— Claro que não, ele poupa para viajar por esses países — disse logo Pollyanna. — Mas é
um homem divertido e diferente, tal como Mrs. Snow. Só que ele é um diferente diferente.
— Sim, bem me parece — galhofou Nancy.
— Agora, estou ainda mais contente por ele me falar — disse Pollyanna toda contente.
Quando Pollyanna foi novamente visitar Mrs. Snow, encontrou a senhora com o quarto
às escuras, tal como da primeira vez.
— É a menina da Miss Polly, mãe — anunciou Milly com voz cansada.
Pollyanna ficou só com a inválida.
— Ah, é você? — perguntou uma voz hesitante da cama. — Lembro-me de si, penso que
todos se lembram depois de a terem conhecido. Gostava tanto que tivesse vindo ontem.
— Ah sim? Ainda bem que não passou muito tempo desde ontem — brincou Pollyanna,
aproximando-se mais e pousando um cesto que trazia numa cadeira. Mas que escuro, está aqui.
Não se vê nada! — disse ela dirigindo- se determinadamente para a janela e levantando os
cortinados. — Quero ver se arranjou o cabelo outra vez como eu fiz. Ah não! Mas não faz mal,
assim eu posso arranjá-lo, depois. Mas, agora, quero que veja o que lhe trouxe.
A mulher olhava para ela atentamente.
— Como se o aspecto fizesse alguma diferença em relação ao sabor — troçou ela,
enquanto, apesar de tudo, ia virando os olhos para o cesto. — Então, o que traz?
— Adivinhe. O que é que lhe apetecia? — Pollyanna recuou até ao cesto. O seu rosto
iluminava-se.
A mulher doente franziu o sobrolho.
— Não me lembro de nada que me apeteça. Afinal sabe tudo ao mesmo!
Pollyanna galhofou.
29
estar contente.
— Contente? Que quer dizer?
— Eu disse-lhe que ia pensar, não se lembra? Pediu-me para lhe dizer alguma coisa de
que pudesse estar contente, apesar de ter que estar deitada o dia inteiro.
— Ah isso! Já me lembro. Mas não pensei que levasse isso mais a sério do que eu.
— Sim, levei! — disse Pollyanna triunfantemente.
— E já descobri, mas foi difícil. Assim até é mais engraçado, quando é difícil. E levei isso
tão a sério que, durante um tempo, não pensei em mais nada, até que descobri.
— Descobriu? Então o que é? — perguntou Mrs. Snow com voz sarcástica, mas educada.
Pollyanna respirou fundo.
— Eu pensei que deveria estar muito contente por as outras pessoas não serem como a
senhora e não estarem deitadas e doentes da mesma maneira.
Mrs. Snow olhava zangada.
— Ah sim, realmente! — exclamou ela em tom pouco amistoso.
— E agora vou lhe ensinar o jogo — propôs Pollyanna confiante. — Vai gostar muito de
o jogar pois é difícil. E sendo difícil torna-se muito mais divertido! É assim: — e começou a
contar as histórias das coletas de caridade, das muletas e da boneca que nunca mais chegava.
Tinha acabado de contar a história quando Milly apareceu à porta.
— A sua tia está a chamá-la, Miss Pollyanna — disse ela com ar preocupado. —
Telefonou para casa dos Harlows e diz que tem que se despachar para a lição de música, antes do
anoitecer.
Pollyanna levantou-se com relutância.
— Está bem, eu despacho-me — e riu-se. — Acho que devo estar contente, afinal tenho
pernas para andar depressa. Não é verdade, Mrs. Snow?
Não houve resposta. Os olhos de Mrs. Snow estavam fechados. Mas Milly, cujos olhos
estavam bem abertos de surpresa, viu que no rosto dela havia lágrimas.
— Adeus — disse Pollyanna enquanto se dirigia para a porta. — É pena não ter tido
tempo para lhe arranjar o cabelo. Fica para a próxima vez!
Os dias do mês de julho iam passando. Para Pollyanna eram dias felizes. Dizia muitas
vezes à tia como era feliz ali. Ao que a tia costumava responder:
— Muito bem, Pollyanna. Estou satisfeita por estares feliz, mas espero que aproveites o
tempo, senão chego à conclusão de que não estou a cumprir o meu dever.
Normalmente, Pollyanna respondia à tia com um abraço e um beijo. Um procedimento
que quase sempre era desconcertante para Miss Polly. Um dia falou disso durante a lição de
costura.
— Então, a tia Polly acha que não chega eu ser feliz? — perguntou ela pensativamente.
— É verdade, Pollyanna.
— Então tenho também que aproveitar o tempo?
— Decerto.
— E o que significa aproveitar o tempo?
— É beneficiar, tirar partido e ficar com alguma coisa que se veja. Mas que criança
extraordinária que tu és!
— Então, e ser feliz não é beneficiar? — perguntou Pollyanna um pouco ansiosamente.
— Decerto que não.
— Então, acho que não vai gostar. Receio que nunca há de jogar o jogo, tia Polly.
— O jogo, que jogo?
— O que o meu pai. — Pollyanna levou logo a mão à boca. — Nada — emendou ela.
Miss Polly franziu o sobrolho.
— Por hoje já chega, Pollyanna — dando por concluída a lição de costura.
Foi nessa tarde que Pollyanna ao descer do seu quarto do sótão encontrou a tia nas
escadas.
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— Mas que bom, tia Polly! — gritou ela. — Vinha cá acima ver-me? Entre, adoro
companhia — disse, voltando a subir as escadas e abrindo a porta.
Miss Polly não tencionava ir ver a sobrinha. Ia procurar um certo xale de lã na arca que se
encontrava junto a uma das janelas do sótão. Mas, apanhada de surpresa, via-se agora no
quartinho de Pollyanna sentada numa das cadeiras. Como tantas vezes já acontecera desde que
Pollyanna tinha chegado, Miss Polly acabava por fazer coisas totalmente inesperadas e diferentes
das que tinha planeado fazer!
— Adoro companhia — disse Pollyanna de novo, movimentando-se como se estivesse a
receber alguém num palácio. — Especialmente desde que tenho este quarto só para mim. Claro
que sempre tive um quarto, mas era alugado e os quartos alugados não são bonitos como os
nossos quartos. E claro que este quarto é meu, não é?
— Sim, Pollyanna — murmurou Miss Polly, pensando vagamente nas razões que a
levavam a ficar ali sentada em vez de ir procurar o xale.
— E claro que eu agora gosto muito deste quarto, mesmo não tendo os tapetes, os
cortinados nem os quadros que eu gostaria
Pollyanna caiu em si e corou. Ia começar a mudar de conversa quando a tia a interrompeu
abruptamente.
— Que é isso, Pollyanna?
— Nada, tia Polly, a sério. Não era isto que eu queria dizer.
— Talvez não — respondeu Miss Polly friamente — mas acabaste por o dizer, portanto é
melhor acabares.
— Mas não era nada. Só que eu tinha planeado ter bonitos tapetes e cortinados com laços
e essas coisas. Mas claro que...
— Tinhas planeado? — interrompeu Miss Polly com voz severa.
Pollyanna corou ainda mais.
— Eu não tinha nada que os ter, tia Polly — desculpou-se ela. — Só que sempre desejei
essas coisas. Tínhamos dois tapetes, mas eram tão pequenos e um deles tinha nódoas de tinta e
buracos, e nunca tivemos quadros além dos dois que o pintou; quero dizer um deles, o melhor foi
vendido, o outro partiu-se. Se não fosse isso nunca teria feito planos sobre o lindo quarto que ia
ter quando aqui chegasse. Mas foi por pouco tempo. Fiquei logo contente por a cômoda não ter
espelho porque assim não via as minhas sardas e não há quadro mais bonito do que o que se
pode ver da janela. E a senhora tem sido tão boa para mim que...
Miss Polly levantou-se de repente. Estava muito vermelha.
— Já chega Pollyanna! — disse ela severamente.
Logo de seguida desceu as escadas e só lá em baixo se lembrou do que tinha ido fazer ao
sótão.
No dia seguinte, Miss Polly disse secamente a Nancy:
— Nancy, podes mudar as coisas de Miss Pollyanna para o quarto de baixo. Decidi que a
minha sobrinha passará a dormir ali, por agora.
— Sim, senhora — disse Nancy em voz alta. “Mas que bom!” pensou Nancy.
Foi logo ter com Pollyanna para lhe dar a boa notícia. Pollyanna nem queria acreditar.
— Isso é mesmo verdade?
— Bem pode acreditar — dizia Nancy, enquanto retirava as roupas do armário. — A
senhora disse-me para levar as suas coisas todas para o quarto de baixo e é isso que eu estou a
fazer, antes que mude de idéias e fique tudo na mesma.
Pollyanna nem parou para ouvir o resto da frase. Correndo o risco de se magoar, desceu
as escadas a correr, dois degraus de cada vez. Depois de bater com duas portas e fazer cair uma
cadeira, chegou finalmente junto da tia.
— Oh, tia Polly, tia Polly, muito obrigada. O quarto novo tem tudo, tapetes, cortinados e
três quadros! E as janelas têm a mesma vista! Oh, tia Polly, que bom!
— Muito bem, Pollyanna. Ainda bem que gostas da mudança. Mas se dás tanta
32
importância a essas coisas, espero que cuides bem delas. Por agora é tudo. Faz o favor de levantar
a cadeira e vê se não bates com as portas — disse Miss Polly com ar sério.
A sua expressão era ainda mais séria do que o costume, porque por uma razão
inexplicável sentiu-se tentada a gritar e Miss Polly não estava habituada a tentações dessas.
Pollyanna levantou a cadeira.
— Desculpe. É que eu acabei de saber do quarto e acho que a Senhora também batia
com as portas se... — Pollyanna fez uma pausa e olhou para a tia com um novo interesse. — Tia
Polly, nunca bateu com as portas?
— Penso que não, Pollyanna! — disse a tia chocada.
— Mas porquê, tia Polly? Que pena! — a expressão de Pollyanna revelava apenas
compaixão.
— Pena? — repetiu a tia demasiado espantada para dizer mais alguma coisa.
— Sim, já vê, se se sentisse com vontade de bater portas teria batido com elas e, se não o
fez, é porque nunca ficou contente com nada. Senão tê-las-ia batido. Não podia deixar de o fazer.
E tenho tanta pena de que nunca tenha estado contente com nada!
— Pollyanna! — rugiu a senhora.
Mas Pollyanna já se tinha ido embora e só ouviu dela o bater distante da porta das
escadas do sótão. Pollyanna tinha ido ajudar Nancy a trazer as coisas para baixo. Miss Polly na
sala de estar sentiu-se vagamente perturbada. Claro que já tinha ficado contente com algumas
coisas, pensou ela.
A apresentação de Jimmy
Chegou o mês de agosto. Este mês trouxe várias surpresas e algumas mudanças. No
entanto, nenhuma delas constituiu uma verdadeira surpresa para Nancy que desde a chegada de
Pollyanna tinha estado à espera de surpresas e mudanças.
Primeiro foi o gatinho.
Pollyanna encontrou um gatinho a miar desalmadamente, a alguma distância da estrada.
Depois de ter perguntado a toda a vizinhança, não encontrou o dono e trouxe-o para casa.
— Ainda bem que não encontrei o dono — disse ela à tia, muito satisfeita — porque quis
logo trazê-lo para casa. Adoro gatinhos. Já sabia que o ia deixar viver cá em casa.
Miss Polly olhou para o montinho de pêlo que se encolhia nos braços de Pollyanna e
disse:
— Que horror Pollyanna! Que animalzinho horroroso! E com certeza está doente e cheio
de pulgas!
— Eu sei, pobre coitadinho — lamentou Pollyanna com carinho olhando para os
olhinhos assustados do bicho. — E está a tremer de medo. É porque ainda não sabe que vamos
ficar com ele.
— Não, não vamos — retorquiu Miss Polly com ênfase.
— Pois vamos — reafirmou Pollyanna, não tendo compreendido as palavras da tia. —
Eu disse a toda a gente que íamos ficar com ele se não encontrássemos o dono. Eu sabia que ia
ficar contente e que ia ter pena deste gatinho abandonado!
Miss Polly abriu a boca, a tentar falar, mas em vão. Voltava a sentir aquele curioso
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Pollyanna sacudiu um pouco a cabeça. Ele não estava a ser simpático e ela não tinha
gostado que ele lhe chamasse palerma. No entanto, valia a pena insistir porque ele era diferente
dos mais velhos.
— Onde vivias antes?
— Nunca mais paras de fazer perguntas? — perguntou o rapaz impaciente.
— Tenho que fazer — respondeu Pollyanna calmamente — senão não consigo saber
nada acerca de ti. Se falasses mais, eu não perguntava tanto.
O rapaz deu uma risada. Era um riso forçado mas o rosto tornou-se simpático.
— Está bem, aí vai! Sou Jimmy Bean e tenho dez anos. Vim no ano passado viver para o
orfanato mas já tinham lá tantos miúdos que não havia espaço para mim. Por isso fui-me embora.
Vou viver para outro lado, mas ainda não encontrei lugar. Só queria um lar, um lar normal com
uma mãe. Ter um lar é ter uma família e eu não tenho uma família desde que o meu pai morreu.
Por isso, estou à procura. Já tentei em quatro casas mas não me quiseram, embora eu dissesse que
queria trabalhar. Era isso que querias saber? — a voz do rapaz esmorecera nas últimas duas
frases.
— Mas que pena! — disse Pollyanna cheia de compaixão. — E ninguém te quis? Eu sei
como te sentes porque depois de o meu pai morrer eu também não tive mais ninguém senão as
senhoras da caridade, até que a tia Polly disse que tomava conta de mim. — Pollyanna
interrompeu bruscamente. Tinha tido uma idéia maravilhosa. — Ah, já sei de um lugar para ti —
gritou ela. — A tia Polly há de ficar contigo, tenho a certeza! Não ficou ela comigo? E não ficou
também com o Fluffy e o Buffy quando eles não tinham ninguém que tomasse conta deles nem
para onde ir? E afinal não passam de bichos. Vem, eu sei que a tia Polly fica contigo! Não
imaginas como ela é boa e simpática!
O pequeno rosto de Jimmy Bean iluminou-se.
— Tens a certeza? Ela fica comigo? Eu posso trabalhar e sou muito forte! — disse ele
mostrando o seu bracito magro.
— É claro que sim! A minha tia Polly é a melhor senhora do mundo depois de a minha
mãe ter ido para o Céu. E há muitos quartos — continuou ela, saltitando e apalpando o braço
dele. — É um casarão enorme. Talvez — acrescentou ela um pouco ansiosamente enquanto se
apressava — talvez tenhas que dormir no quarto do sótão. Eu primeiro também lá dormia, mas
agora tem mosquiteiros e não faz tanto calor, além de que as moscas não podem entrar com
micróbios nas patas. Sabias disso? É muito giro! Talvez ela te deixe ler o livro se fores bonzinho
ou se te portares mal. Tu também tens sardas — disse ela com um olhar crítico. — Assim ficarás
contente por não haver nenhum espelho. E a vista daquela janela é mais bonita do que qualquer
quadro. Assim não te hás de importar de dormir naquele quarto, tenho a certeza — insistiu
Pollyanna, descobrindo que precisava do fôlego para outros fins que não o de falar.
— Mas que bom! — exclamou Jimmy Bean sem compreender muito bem, mas
satisfeitíssimo. E acrescentou: — Não sabia que era possível continuar a falar enquanto se corria!
— De qualquer maneira é melhor para ti — retorquiu ela — porque enquanto eu falo, tu
não tens de falar!
Quando chegaram a casa, Pollyanna conduziu o companheiro diretamente à presença da
tia, surpreendida.
— Oh, tia Polly — disse ela triunfante. — Veja só! Trouxe uma coisa muito mais bonita
que o Fluffy e o Buffy para a senhora criar. É um rapaz sério. Ele não se importa de dormir no
sótão ao princípio e diz que pode trabalhar, embora eu ache que vou precisar dele a maior parte
do tempo para brincar.
Miss Polly ficou branca como cal e depois vermelha como um pimentão. Não estava a
perceber muito bem, mas aquilo que entendeu bastou.
— Pollyanna, que significa isto? Quem é este rapazinho sujo? — perguntou ela
severamente.
“O rapazinho sujo” recuou um passo e olhou para a porta. Pollyanna procurou rir.
35
— Veja lá, esqueci-me de lhe dizer o nome dele! Sou tão esquecida como o Homem. E
também vem sujinho, não é? Está como o Fluffy e o Buffy quando aqui chegaram. Mas acho que
ele ficará melhor logo que se lavar, como eles. Chama-se Jimmy Bean, tia Polly.
— E o que faz ele aqui?
— Já lhe disse tia Polly! — os olhos de Pollyanna estavam enormes de surpresa. —
Trouxe—lho para si. Trouxe-o para casa, para ele viver aqui conosco. Ele quer um lar e uma
família. Contei-lhe como a senhora era boa para mim, para o Fluffy e para o Buffy e que eu sabia
que seria também boa para ele, porque é mais bonito que os bichinhos.
Miss Polly deixou-se cair na cadeira e ergueu a mão trêmula até à garganta. A impotência
habitual ameaçava mais uma vez apoderar-se dela. Porém, com um esforço visível, Miss Polly
endireitou-se de repente.
— Já chega, Pollyanna! Isto é a coisa mais absurda que tu fizeste até agora. Como se já
não bastasse trazeres para casa gatos e cães vadios, tens também de ir buscar rapazinhos pedintes
à rua!
O rapazito, dando dois passos firmes nas perninhas magras, pôs-se corajosamente diante
de Miss Polly.
— Não sou nenhum pedinte, minha senhora e não quero nada de si. Estava à procura de
trabalho para o meu sustento. Mas não tinha vindo à sua casa se esta menina não me tivesse dito
como a senhora era boazinha e que estava desejosa de tomar conta de mim. Portanto, vou-me
embora! — e dizendo isto, abandonou a sala com uma dignidade que teria parecido absurda se
não suscitasse pena.
— Oh, tia Polly! — lamentou Pollyanna. — E eu que pensava que ficava contente por o
ter aqui!
Miss Polly ergueu a mão com um gesto firme, impondo o silêncio. Os nervos de Miss
Polly tinham cedido. O que o rapaz tinha dito de “boa e simpática” ainda lhe soava aos ouvidos e
ela sentia que a habitual impotência estava quase a tomá-la. No entanto, num último assomo de
vontade conseguiu dizer:
— Pollyanna — gritou zangada — queres parar de utilizar essa palavra gasta, de
“contente”! É “contente” de manhã à noite. Dás comigo em doida!
Pollyanna ficou boquiaberta.
— Mas porquê, tia Polly? — murmurou ela. — Eu pensava que ia ficar contente. Oh! —
interrompeu ela levando a mão à boca e saindo a correr da sala.
Antes do rapaz chegar ao portão, Pollyanna alcançou-o.
— Jimmy Bean, peço-te imensa desculpa — disse ela pesarosa, agarrando-o.
— Desculpa nada! Não te culpo a ti — retorquiu o rapaz solenemente. — Mas não sou
nenhum pedinte! — acrescentou ele altivo.
— Claro que não! Mas não deves deitar as culpas à tia Polly. Se calhar foi por eu não te
ter apresentado bem e não lhe ter dito quem tu eras. Ela é realmente boa e simpática, sempre tem
sido, mas eu se calhar não me expliquei bem. Quem me dera arranjar um sítio para ti!
O rapaz encolheu os ombros e fez menção de se ir embora.
— Não faz mal. Hei de encontrar um lugar. Mas não sou nenhum pedinte.
Pollyanna tinha uma expressão muito triste. De repente o rosto iluminou-se-lhe.
— Já sei o que vou fazer! As senhoras da caridade vão reunir-se esta tarde, ouvi a tia Polly
dizer. Vou apresentar-lhes o teu caso. Era o que o pai fazia sempre que queria alguma coisa.
O rapaz virou-se desconfiado.
— O que é isso das senhoras da caridade?
Pollyanna olhou para ele reprovadoramente.
— Onde é que tu foste criado para não saber quem são as senhoras da caridade?
— Está bem, se não queres dizer não digas — resmungou o rapaz, virando-se e
afastando-se com indiferença.
Pollyanna correu logo para ele.
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— São muitas senhoras que se encontram, fazem costura e dão jantares para recolher
dinheiro e conversar. São muito simpáticas, pelo menos a maioria delas era, lá na minha terra.
Não conheço as senhoras daqui, mas elas são sempre boas. Esta tarde vou contar-lhes o teu caso.
O rapaz virou-se outra vez desconfiado.
— Nem penses nisso! Se calhar pensas que vou ficar por aqui para ouvir uma quantidade
de mulheres chamarem-me pedinte. Já basta uma!
— Mas não precisas de estar lá — argumentou Pollyanna rapidamente. — Eu vou
sozinha e digo-lhes.
— Vais?
— Sim, desta vez, conto-lhes bem as coisas — apressou-se Pollyanna a dizer, desejosa de
ver sinais de apaziguamento no rosto do rapaz. — E deve haver algumas que hão de gostar de te
dar um lar.
— E eu trabalho. Não te esqueças de dizer isso.
— Claro que não — prometeu Pollyanna satisfeita, convencida de que desta vez tinha
ganho. — Amanhã eu conto-te o que se passou.
— Onde?
— Na estrada onde nos encontramos hoje, perto da casa de Mrs. Snow.
— Está bem, estarei lá. Talvez seja melhor eu voltar para o orfanato só por esta noite. Eu
não lhes disse que não voltava, senão não me deixavam voltar. Embora ache que eles não se
importam nada se eu desaparecer. Não são como pessoas da família, não se preocupam nada!
— Eu sei — assentiu Pollyanna com olhar compreensivo. — Mas tenho a certeza de que
quando nos virmos amanhã te terei já arranjado um lar e gente amiga pronta a tomar conta de ti.
Adeus! — disse ela, voltando para casa.
Junto à janela da sala de estar, Miss Polly, que tinha estado a observar as duas crianças,
seguiu de sobrolho carregado o rapaz até ele desaparecer numa curva de estrada. Depois
suspirou, voltou-se e subiu as escadas com um ar de desânimo. Miss Polly não costumava ter essa
expressão. Nos seus ouvidos ainda ecoavam as palavras ditas pelo rapaz em tom de desespero:
“E a senhora que era tão boa e simpática”. No seu coração experimentava uma curiosa sensação de
desolação, como se tivesse perdido uma coisa.
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O almoço, ao meio dia, foi uma refeição silenciosa. Nesse dia era a reunião das senhoras
da caridade. Pollyanna ainda tentou falar, mas não conseguiu porque quatro vezes teve de se
interromper devido ao fato de ir quase a dizer “contente”, para grande atrapalhação sua. À quinta
vez, Miss Polly abanou a cabeça impacientemente.
— Se tens alguma coisa a dizer, diz. Se não o fizeres, nunca mais sossegas.
Pollyanna alegrou-se.
— Ah, muito obrigada. É muito difícil não pronunciar aquela palavra, joguei durante
tanto tempo aquele jogo.
— Jogaste o quê? — perguntou a tia Polly.
— Aquele jogo, o do pai... — Pollyanna interrompeu-se novamente com um incômodo
rubor nas faces, quando se viu de novo em terreno proibido.
A tia Polly franziu o sobrolho e não disse nada. Durante o resto da refeição não disseram
mais nada. Logo a seguir telefonou à mulher do pastor comunicando que não poderia estar
presente na reunião das senhoras da caridade, naquela tarde, devido a uma dor de cabeça.
Quando a tia Polly subiu para o seu quarto e fechou a porta, Pollyanna tentou ter pena da dor de
cabeça, mas não pôde deixar de se sentir contente por a tia não poder estar presente nessa tarde,
quando ela apresentasse o caso de Jimmy Bean às senhoras da caridade. Ela não se podia
esquecer que a tia Polly tinha chamado “pobre pedinte” a Jimmy Bean e não queria que lhe
voltasse a chamar isso diante das senhoras da caridade.
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Pollyanna sabia que as senhoras da caridade se reuniam às duas da tarde na capela, junto à
igreja, a pouco mais de meio quilômetro de casa. Planeou assim a sua partida de modo a chegar lá
um pouco antes das duas da tarde.
— Quero que lá estejam todas — disse ela para si própria — senão uma que chegue
atrasada pode ser a que esteja disposta a ficar com Jimmy Bean e para as senhoras da caridade
duas da tarde significa sempre três horas.
Calma e confiante, Pollyanna subiu os degraus da capela, abriu a porta e entrou no
vestíbulo. Da sala principal vinha uma algaraviada feminina. Com uma ligeira hesitação, Pollyanna
abriu a porta. As vozes acalmaram-se com alguma surpresa. Pollyanna avançou timidamente.
Agora que tinha chegado o momento, sentia-se muito envergonhada. Afinal estes rostos meio
estranhos não eram os das suas senhoras da caridade.
— Como estão as senhoras? — perguntou educadamente. — Eu sou Pollyanna Whittier,
creio que algumas das senhoras me conhecem, se bem que eu não as conheça a todas.
Agora, o silêncio era quase total. Algumas das senhoras não conheciam a sobrinha
extraordinária da sua colega embora quase todas tivessem ouvido falar dela. Naquele momento,
nenhuma delas encontrava nada para dizer.
— Vim aqui apresentar-vos um caso — balbuciou Pollyanna, após uns segundos,
utilizando inconscientemente a fraseologia do pai.
Ouviu-se um sussurro geral.
— Foi a tua tia que te mandou? — perguntou Mrs. Ford, esposa do pastor.
Pollyanna corou um pouco.
— Não, eu vim por vontade própria. Estou habituada às senhoras da caridade que me
criaram com o meu pai.
Uma delas riu histericamente e a mulher do pastor franziu o sobrolho.
— Sim, querida, o que é?
— É por causa de Jimmy Bean — suspirou Pollyanna. — Ele não tem nenhuma casa
para além do orfanato que está cheio e onde não o querem, pensa ele. Por isso quer uma família.
Quer alguém que seja uma família para ele, que tome conta dele. Tem dez anos e vai fazer onze.
Pensei que alguma das senhoras quisesse tomar conta dele.
— Pensou? — murmurou uma voz, quebrando a pausa de espanto que se seguiu às
palavras de Pollyanna.
Com olhos ansiosos, Pollyanna percorreu o círculo de rostos em torno dela.
— Ah, esqueci-me de dizer! Ele quer trabalhar — acrescentou ela ansiosamente.
O silêncio manteve-se. Depois, friamente uma ou duas das senhoras começaram a
interrogá-la. Algum tempo depois tinham a história completa e começaram a conversar umas
com as outras, animadamente, mas sem grande contentamento.
Pollyanna ouvia com ansiedade crescente. Algumas das coisas que diziam ela não
entendia. Passado um bocado, percebeu, no entanto, que nenhuma das mulheres estava disposta
a dar-lhe guarida embora cada uma delas parecesse pensar que algumas das outras pudessem ficar
com ele, dado que existiam várias que não tinham crianças pequenas em casa. Porém não havia
nenhuma que estivesse disposta a ficar com ele. A mulher do pastor sugeriu então que, em
conjunto, talvez pudessem assumir a responsabilidade do seu sustento e educação, enviando
menos dinheiro este ano para as crianças da longínqua Índia.
Muitas senhoras falaram então e algumas delas ao mesmo tempo, ainda mais alto e de
modo mais incomodativo do que antes. Diziam que a sociedade delas era famosa pelas ofertas
que fazia às missões na Índia e várias diziam que seria uma pena se este ano dessem menos
dinheiro. Pollyanna voltou a não entender muito bem o que estavam a dizer, mas parecia que o
importante era que o nome de uma sociedade rival não aparecesse no lugar delas, numa certa
lista, mas Pollyanna devia ter entendido mal! Era tudo muito confuso e pouco agradável, de
maneira que Pollyanna ficou satisfeita quando se viu de novo lá fora a respirar ar fresco. Mas, ao
mesmo tempo, estava muito triste porque sabia que lhe ia ser muito difícil dizer a Jimmy Bean,
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no dia seguinte, que as senhoras da caridade tinham decidido que era preferível enviar o dinheiro
para os meninos da Índia do que criar um menino da sua própria cidade e que a razão para isso
era o fato de não virem a ser “mencionadas em primeiro lugar na tal lista”, segundo tinha dito a
senhora alta de óculos.
Pollyanna pensava para si mesma que era, evidentemente, bom enviar dinheiro para os
países mais pobres e não queria que elas deixassem de o enviar, mas tinham agido como se os
meninos daqui não tivessem qualquer importância e só fossem dignos de cuidado os meninos dos
países distantes. Apesar de tudo, pensava que as senhoras deviam preferir ver crescer Jimmy Bean
a um simples relatório!
No bosque de Pendleton
Ao sair da capela, Pollyanna não se dirigiu para casa mas sim para Pendleton Hill. Tinha
sido um dia difícil embora fosse um dos seus dias livres, como ela designava os poucos dias em
que não havia costura nem cozinha. E Pollyanna achava que não havia nada melhor do que o
passeio através dos bosques de Pendleton. Subiu assim a colina de Pendleton, apesar do calor que
se fazia sentir.
— Só preciso de chegar a casa pelas quatro e meia — pensava ela — e será muito mais
agradável ir através dos bosques, mesmo que tenha de subir esta colina.
Aqueles bosques eram muito belos e hoje pareciam ainda mais agradáveis apesar de ela se
sentir triste com o que teria de dizer a Jimmy Bean no dia seguinte.
Subitamente, Pollyanna levantou a cabeça e pôs-se à escuta. A alguma distância, um cão
ladrava. Um pouco depois, o cão dirigiu-se a ela a correr, enquanto continuava a ladrar.
— Olá, cãozinho! — disse Pollyanna enquanto o acariciava e olhava para o carreiro, na
expectativa.
Ela já tinha visto o cão antes. Costumava acompanhar o Homem, Mr. John Pendleton.
Ela estava agora à espera que ele aparecesse. Olhou atentamente durante alguns minutos, mas ele
não apareceu. Depois desviou a atenção para o cão.
Este estava com um comportamento um pouco estranho. Continuava a ladrar como se
quisesse dar o alarme. Corria para trás e para a frente no carreiro. Parecia querer chamar a
atenção de Pollyanna para um caminho lateral, continuando a caminhar para trás e para diante,
enquanto ladrava.
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— Mas não é esse o caminho para casa — riu Pollyanna, mantendo-se no carreiro
principal.
O cãozinho manifestava-se muito excitado. Continuava a correr para trás e para diante
entre Pollyanna e o caminho lateral. Todo o seu comportamento era um apelo tão eloqüente que,
finalmente, Pollyanna compreendeu e seguiu-o. Um pouco mais à frente, Pollyanna percebeu a
razão daquele comportamento. O Homem jazia junto a um grande rochedo, a alguns metros do
carreiro secundário.
Um ramo seco estalou sob os pés de Pollyanna e o Homem virou a cabeça. Pollyanna
correu com um grito de surpresa.
— Mr. Pendleton! Está magoado?
— Magoado? Não, estou a dormir ao sol!— respondeu o Homem irritado. — Tenho a
perna magoada.
Com alguma dificuldade conseguiu levar a mão ao bolso das calças e tirou um molho de
chaves.
— Segue por aquele carreiro e dentro de cinco minutos estarás em minha casa. Com esta
chave entras pela porta lateral. Depois diriges-te à sala no fim do corredor e numa secretária
grande que se encontra no meio da sala está o telefone. Sabes utilizar um telefone?
— Sim senhor, uma vez quando a tia Polly...
— Não interessa agora a tia Polly — interrompeu o Homem abruptamente, tentando
mover-se um pouco.
— Tens de procurar o número do telefone do Dr. Thomas Chilton, numa lista que deve
estar lá.
— Sim senhor. A tia Polly também tem.
— Diz ao Dr. Chilton que John Pendleton está junto ao rochedo da águia, no bosque
Pendleton, com uma perna partida e diz-lhe que traga imediatamente dois homens e uma maca.
Ele saberá o que deve fazer. Diz-lhe para vir pelo carreiro que parte diante da casa.
— Uma perna partida? Oh, Mr. Pendleton, que horror! — exclamou Pollyanna. — Mas
ainda bem que vim. Não poderei...
— Sim, podes, mas agora não! Vai imediatamente, faz o que te peço e pára de falar —
resmungou o Homem quase a desmaiar.
Com um ligeiro soluço Pollyanna partiu a correr. Em breve tinha a casa à vista. Já a tinha
visto, mas nunca tão próximo. Sentia-se agora um pouco assustada com a imponência dos
grandes pilares de pedra cinzenta, as enormes varandas e a enorme entrada. Depois de uma breve
hesitação, correu através do relvado e torneou a casa para entrar pela porta lateral. Com alguma
dificuldade conseguiu, finalmente, abrir a porta.
Pollyanna respirou fundo. Apesar da pressa, hesitou um momento olhando receosamente
através do vestíbulo. Era a casa do John Pendleton, uma casa de mistério, onde não entrava
ninguém senão o dono; uma casa onde se abrigava algures um esqueleto.
Com um gritinho Pollyanna, sem olhar para os lados, correu apressadamente através da
entrada e abriu a porta para o corredor, dirigindo-se para a sala. Esta era tão grande e sombria, o
teto era de madeira escura, mas através da janela entrava uma réstia de sol que brincava na
proteção de latão da lareira. Pollyanna correu para a secretária, no meio da sala, onde se
encontrava o telefone. O livrinho dos telefones estava no chão. Mas Pollyanna conseguiu
encontrá-lo e percorreu as folhas até encontrar o nome do Dr. Chilton. Conseguiu finalmente a
ligação e transmitiu a mensagem ao médico que lhe fez algumas perguntas. Feito isto desligou e
respirou fundo de alívio.
Pollyanna olhou então em redor, apercebendo-se confusamente das tapeçarias, das
estantes cheias de livros que revestiam as paredes, das inúmeras portas fechadas que podiam
muito bem esconder um esqueleto e do pó.
Pollyanna saiu a correr através do corredor, em direção à grande porta talhada, ainda
semiaberta como ela a deixara. Para o Homem que jazia ferido tudo aquilo fora muito rápido.
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— Há certas coisas com as quais não se pode fazer o jogo e uma delas são os enterros.
Num enterro não há nada que nos possa dar contentamento.
Nancy retorquiu:
— Podemos ficar contentes por não ser o nosso enterro — observou ela.
Pollyanna não lhe deu atenção. Tinha começado a contar o acidente detalhadamente e
Nancy pôs-se a ouvir de boca aberta.
Conforme combinado, na tarde seguinte, Pollyanna foi ao encontro de Jimmy Bean.
Como se esperava, Jimmy manifestou o seu desapontamento pelo fato de as senhoras da caridade
preferirem um menino da Índia a ele próprio.
— Talvez seja natural — disse ele com um suspiro.
— As coisas que não conhecemos são sempre melhores do que as que conhecemos. Só
queria que alguém olhasse por mim dessa maneira. Não seria ótimo se alguém na Índia me
quisesse a mim?
Pollyanna bateu as palmas.
— É isso mesmo! Vou escrever às minhas senhoras da caridade! Elas não estão na Índia,
estão no Oeste, mas é muito longe e vai dar ao mesmo. Tenho a certeza de que ficam contigo,
pois estás bastante longe. E. não ficou a tia Polly comigo? — Pollyanna fez uma pausa. — Ouve
lá, achas que eu fui para a tia Polly como uma menina da Índia?
— Se calhar... és uma menina muito esquisita.
Tinha-se passado uma semana depois do acidente em Pendleton Hoods, quando
Pollyanna disse à tia, numa manhã:
— Tia Polly, importava-se que eu, esta semana, levasse a geléia de mão-de-vaca de Mrs.
Snow a outra pessoa? Tenho a certeza de que Mrs. Snow não lhe apetece isso desta vez.
— O que estás tu a preparar, Pollyanna? És uma criança extraordinária!
Pollyanna franziu a testa ansiosa.
— Por favor, tia Polly, que quer dizer extraordinária? Se somos extraordinários, não
podemos ser ordinários, não é?
— Não, tu não podes.
— Ah, então está bem! Estou contente por ser extraordinária — disse Pollyanna com um
sorriso nos lábios.
— Mas então, o que há com a geleia?
— Tenho a certeza de que a tia Polly não se importa. A perna partida dele não dura tanto
tempo como a invalidez permanentemente de Mrs. Snow e poderei continuar a visitá-la depois.
— Ele? Perna partida? De que estás tu a falar Pollyanna?
— Ah, esqueci-me de que não sabia. No dia em que partiu para Boston, encontrei-o no
bosque e tive que ir a casa dele telefonar para o médico; segurei-lhe na cabeça e tudo. Depois
vim-me embora e, desde então, não o vi mais. Mas quando Nancy fez a geléia para Mrs. Snow
esta semana, pensei que seria simpático se pudesse levá-la a ele em vez de a levar a ela, pelo
menos desta vez. Posso, tia Polly?
— Sim, creio que sim — condescendeu Miss Polly um pouco cansada. — Mas quem é
ele?
— É o Homem. Quero dizer, Mr. John Pendleton.
Miss Polly quase saltou da cadeira.
— John Pendleton!
— Sim, Nancy disse-me como ele se chamava. Talvez o conheça.
Miss Polly não respondeu. Em vez disso perguntou:
— Tu conhece-o?
Pollyanna disse que sim com a cabeça.
— Sim, ele agora fala-me sempre e sorri. Ele é antipático só por fora. Vou buscar a geléia.
Nancy já a deve ter pronta — concluiu Pollyanna a caminho da saída.
— Pollyanna, espera! — a voz de Miss Polly tornou-se subitamente muito grave. —
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Mudei de idéias. Prefiro que leves essa geléia a Mrs. Snow, como de costume. Por agora é tudo.
Podes ir-te embora.
Pollyanna ficou com uma expressão tristíssima.
— Mas, tia Polly, ela ainda vai ficar doente durante muito tempo. Ela pode continuar a
estar doente e a ter coisas mas ele tem só uma perna partida, não vai ficar muito tempo assim. Já
está assim há uma semana.
— Sim, eu sei. Tive conhecimento do acidente, mas não me interessa mandar geléia a
John Pendleton.
— Eu sei que ele é antipático, mas é só por fora — admitiu Pollyanna tristemente. —
Deve ser por isso que não gosta dele. Mas eu não lhe digo que foi mandado por si. Digo que fui
eu. Eu gosto dele, fico muito contente por lhe poder levar geléia.
Miss Polly começou de novo a abanar a cabeça. Depois, subitamente, parou e perguntou
com voz calma e cheia de curiosidade:
— Ele sabe quem tu és, Pollyanna?
— Penso que não. Eu disse-lhe o meu nome uma vez mas ele nunca me chama por ele.
— Ele sabe onde vives?
— Não, eu nunca lho disse.
— Então ele não sabe que és minha sobrinha?
— Não. Acho que não.
Por um momento fez-se silêncio. Miss Polly olhava para Pollyanna como se não a
estivesse a ver. A menina mostrava-se impaciente. Então, Miss Polly levantou-se.
— Muito bem, Pollyanna — disse ela finalmente com aquela voz esquisita que não
parecia nada dela: — Podes então levar a geléia a Mr. Pendleton como um presente teu. Mas que
fique bem claro que não sou eu que o mando. Vê se ele percebe isso!
— Sim, obrigada, tia Polly — exultou Pollyanna enquanto corria para a porta.
O doutor Chilton
A grande mansão parece muito diferente a Pollyanna nesta segunda visita à casa de Mr.
John Pendleton. As janelas estavam abertas, uma velhota pendurava as roupas no pátio traseiro e
a charrete do médico estava estacionada debaixo do alpendre. Tal como fizera da outra vez,
Pollyanna entrou pela porta lateral. Desta vez, tocou a campainha, pois não tinha os dedos
tolhidos com um montão de chaves.
Um cão, que já era seu conhecido, desceu os degraus para a receber, mas demorou um
pouco até que a mulher que pendurava a roupa lhe viesse abrir a porta.
— Por favor, eu trouxe um pouco de geléia para Mr. Pendleton — sorriu Pollyanna.
— Obrigada — disse a mulher estendendo a mão para o boião que se encontrava na mão
da menina. Quem devo dizer que a mandou?
Nesse momento, o médico que tinha entrado no hall ouviu as palavras da mulher e viu a
expressão desconsolada no rosto de Pollyanna. Aproximou-se.
— Ah! Geléia de mão-de-vaca? Isso é muito bom, talvez queira ver o nosso doente?
— Sim, sim! — disse logo Pollyanna.
A mulher, a um sinal de cabeça do médico abriu-lhe passagem com uma expressão de
surpresa estampada no rosto. Atrás do médico, um enfermeiro “de uma cidade próxima”
exclamou perturbado:
— Mas, Sr. Doutor, Mr. Pendleton não deu ordens para não deixar entrar ninguém?
— Sim — respondeu o médico indiferente. — Mas agora estou a dar outra ordem. Eu
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assumo a responsabilidade. Você não sabe que esta menina é melhor do que meia garrafa de
tônico. Se há alguma coisa ou alguém que pode pôr Mr. Pendleton bem humorado esta tarde, é
ela. É por isso que eu a mando entrar.
— Quem é ela?
Por breves momentos o médico hesitou.
— É sobrinha de uma das nossas mais conhecidas conterrâneas. Chama-se Pollyanna
Whittier. Ainda não conheço muito bem a senhorita, por enquanto, mas muitos dos meus
doentes conhecem-na e tenho muito prazer em o dizer!
O enfermeiro sorriu.
— Ah, sim? E quais são os ingredientes especiais desse tônico miraculoso?
O médico abanou a cabeça.
— Não sei. Tanto quanto me parece, trata-se de uma grande satisfação e contentamento
por tudo o que acontece ou vai acontecer. Estou constantemente a ouvir contar o que ela diz,
tanto quanto sei, “estar contente” é um elemento constante. Só gostava de poder receitá-la como
receito uma embalagem de comprimidos. Se bem que, se houvesse muitas como ela no mundo,
você e eu teríamos que arranjar outra maneira de ganhar a vida.
Entretanto, Pollyanna, de acordo com as instruções do médico, era conduzida ao quarto
de John Pendleton. Ao passar pela grande biblioteca a seguir ao hall, Pollyanna viu que tinha
havido grandes mudanças. As paredes forradas de estantes com livros e os cortinados escuros
eram os mesmos, mas estava tudo limpo e arrumado e não havia uma partícula de poeira à vista.
O livrinho dos telefones estava colocado no sítio certo e os latões de proteção da lareira tinham
sido polidos. Uma das misteriosas portas estava aberta e foi através dela que a criada a conduziu.
Pouco depois, Pollyanna encontrou-se num quarto suntuosamente mobiliado, enquanto a criada
dizia com voz assustada:
— Dá-me licença, senhor. Está aqui uma menina que lhe traz geléia. O médico disse para
ela entrar.
E Pollyanna ficou sozinha com o Homem, de aparência muito antipática, deitado de
costas na cama.
— Olhe cá, então eu não disse... Ah, és tu! — interrompeu ele quando Pollyanna avançou
em direção à cama.
— Sim, ainda bem que me deixaram entrar! Ao princípio, a empregada queria ficar com a
geléia e eu receava não o conseguir ver. Mas depois o médico chegou e disse que eu podia entrar.
Ainda bem que ele me deixou vir vê-lo.
No rosto do Homem os lábios pareceram esboçar um sorriso, mas o mais que saiu dali
foi um “Humm!”
— E eu trouxe-lhe alguma geléia — concluiu Pollyanna. — É geléia de mão-de-vaca.
Espero que goste.
— Acho que nunca comi.
O sorriso tinha desaparecido do rosto do Homem. Por breves instantes, Pollyanna
pareceu desapontada, mas logo se recompôs quando pousou o boião de geléia.
— Nunca comeu? Se nunca provou, não pode saber se gosta ou não, assim, sinto-me
contente que não tenha ainda provado. Se soubesse...
— Sim, sim, há uma coisa que eu sei, é que sou obrigado a estar aqui deitado de costas
neste momento e que vou estar aqui até ao dia do Juízo Final.
Pollyanna olhou para ele chocada.
— Oh, não, não vai ser até ao dia do Juízo Final, quando o anjo Gabriel tocar a sua
trompeta, a menos que ele a toque mais depressa do que nós pensamos. Claro que eu conheço a
Bíblia e lá se diz que pode chegar mais depressa do que nós pensamos, mas eu acho que não. Isto
é, eu aceito o que diz a Bíblia, mas não me parece que seja para breve e...
John Pendleton riu subitamente muito alto. O enfermeiro que entrava naquele momento
ouviu a risada e preferiu retirar-se com o ar de um cozinheiro assustado ao ver o perigo de uma
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corrente de ar dar cabo de um bolo semicozido e que fecha rapidamente a porta do forno.
— Não estás um pouco confusa? — perguntou John Pendleton a Pollyanna.
A menina riu.
— Talvez, mas o que eu quero dizer é que as pernas partidas não demoram mais tempo a
curar do que os inválidos permanentes como a Mrs. Snow. Por isso, não vai ficar assim até ao dia
do Juízo Final e acho que devia estar contente com isso.
— Ah, claro que estou — interrompeu o Homem incisivamente regressando à sua
amargura — e posso também estar contente com o resto: o enfermeiro, o médico e aquela
desajeitada mulher na cozinha!
— Claro que sim, pense só como seria mau se não os tivesse!
— O quê? — perguntou ele.
— O que eu digo é que seria muito pior se tivesse que estar deitado e não os tivesse a
eles!
— Como se não fosse isso que estivesse na base de tudo! — retorquiu o Homem. — É
por isso que eu estou aqui deitado! E está à espera que eu diga que estou contente porque uma
mulher maluca desarruma a casa toda e diz que está a arrumar, e um homem que a ajuda e diz
que é enfermeiro, para já não falar do médico que arranjou isto tudo, a contar que eu ainda por
cima lhes vá pagar!
Pollyanna fez uma expressão de simpatia.
— Sim, eu sei. Essa parte é muito desagradável, a questão do dinheiro. Durante este
tempo não está a poupar, não é?
— O quê?
— A poupar, a comprar feijões e bolos de peixe. Gosta de feijões ou prefere peru?
— Ouve lá menina, de que estás a falar? — Pollyanna sorriu radiante.
— Sobre o dinheiro que economiza para os países pobres. Eu descobri isso e foi também
por isso que fiquei a saber que Mr. Pendleton não era mau por dentro. A Nancy contou-me.
O Homem abriu a boca.
— A Nancy contou-te que eu poupava dinheiro. E quem é essa Nancy?
— A nossa Nancy. Ela trabalha para a tia Polly.
— Tia Polly? Quem é a tia Polly?
— É Miss Polly Harrington. Eu vivo com ela.
O Homem fez um movimento brusco.
— Miss Polly Harrington?! Vives com ela?
— Sim, sou sobrinha dela. Ela tomou conta de mim por causa da minha mãe que morreu
— prosseguiu Pollyanna em voz mais baixa. — Ela era irmã da minha mãe e depois de o pai ir ter
com ela e com os meus irmãos ao Céu, não havia mais ninguém que tomasse conta de mim para
além das senhoras da caridade e por isso ela ficou comigo.
O Homem não respondeu. O rosto dele estava tão pálido que Pollyanna ficou assustada.
Levantou-se apreensiva.
— Se calhar é melhor eu ir-me agora embora. Espero que goste da geléia.
O Homem virou a cabeça de repente e abriu os olhos. No fundo do seu olhar parecia
existir uma curiosa expressão de saudade em que Pollyanna reparou, maravilhando-a.
— Então tu és a sobrinha de Miss Polly Harrington — disse ele docemente.
— Sim, senhor. Se calhar conhece-a.
Os lábios de John Pendleton formaram um estranho sorriso.
— Ah sim, eu conheço-a. Mas foi Miss Polly Harrington que mandou esta geléia para
mim? — disse ele calmamente.
Pollyanna mostrou-se desconsolada.
— Não, senhor. Não foi ela. Ela disse que eu devia frisar isso bem para não pensar que
tinha sido ela a mandar. Mas eu...
— Eu já sabia — condescendeu o Homem, virando a cabeça para o outro lado. Pollyanna
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— Nancy franziu a testa pensativa. A menina estava a conseguir que ela jogasse este jogo
de “ficar contente” com muito sucesso. Além disso, estava a gostar muito de estudar os
problemas que a menina lhe apresentava.
— Já sei, deve ser o contrário daquilo que disse a Mrs. Snow.
— O contrário? — repetiu Pollyanna confundida.
— Sim, disse-lhe a ela que devia ficar contente por as outras pessoas não serem como ela
e não estarem doentes.
— Sim — respondeu Pollyanna. — E então?
— Pois, então o médico pode estar contente por não estar doente como os outros, como
os doentes que trata — concluiu Nancy triunfante.
Pollyanna franziu a testa outra vez.
— Sim — admitiu ela — claro que essa é uma maneira, mas não foi isso que eu disse e
acho que não gosto muito dessa maneira. É quase como se ele dissesse que ficava contente por
os outros estarem doentes. Tu, às vezes, jogas o jogo de uma maneira muito engraçada, Nancy —
disse ela enquanto se dirigia para casa.
Pollyanna encontrou a tia na sala.
— Quem era o senhor que te trouxe? — perguntoua senhora um pouco bruscamente.
— Foi o Dr. Chilton! Não o conhece?
— O Dr. Chilton! Que fazia ele aqui?
— Ele trouxe-me a casa. Eu dei a geléia a Mr. Pendleton e...
Miss Polly levantou a cabeça bruscamente.
— Mas ele não pensou que fui eu que a enviei?
— Não, tia Polly, eu disse-lhe que não tinha sido. — Miss Polly corou.
— Tu disseste-lhe que eu não mandei a geléia?
Pollyanna abriu muito os olhos com o tom admoestador da voz da sua tia.
— Mas foi isso que a tia Polly disse!
A tia Polly suspirou.
— O que eu disse foi que não era eu que a mandava e que devias certificar-te de que ele
não pensava que eu tinha mandado! O que é muito diferente de lhe dizer diretamente que eu não
mandava! — e dito isto, afastou-se zangada.
— Não percebo a diferença — disse Pollyanna suspirando enquanto se dirigia ao cabide
para pendurar o chapéu.
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Num dia chuvoso, cerca de uma semana depois da visita de Pollyanna a Mr. Pendleton,
Miss Polly foi a uma reunião do comitê das senhoras de caridade. Ao regressar às três da tarde,
trazia a face muito rosada e o cabelo desmanchado pelo vento, notando-se vários caracóis caídos
por o cabelo se ter desprendido. Pollyanna nunca tinha visto a tia assim.
— Oh, tia Polly também os tem — gritava ela dançando irrequieta em redor da tia,
quando ela entrou na sala.
— Tenho o quê, menina desatinada?
Pollyanna continuava a dançar em volta dela.
— Nunca tinha dado por isso! Será que as pessoas podem tê-los sem darem por isso?
Acha que eu também posso vir a ter? — gritava ela puxando com os dedos inquietos os seus
cabelos por cima das orelhas. — Mas não devem ser negros, se vier a tê-los.
— Que significa isto, Pollyanna? — perguntou a tia Polly tirando o chapéu e procurando
endireitar o cabelo.
— Não, por favor tia Polly! — pediu Pollyanna em tom apelativo. — Não os endireite! É
disso que eu estou a falar, desses lindos caracóis negros. Oh, tia Polly, são tão bonitos!
— Disparate! E o que foi isso de ir às senhoras de caridade, no outro dia, falar daquele
disparate sobre o rapazinho mendigo?
— Mas não é disparate nenhum. Não imagina como está bonita com o cabelo assim! Oh,
tia Polly, por favor, posso penteá-la como penteei a Mrs. Snow e pôr-lhe uma flor? Gostava
muito de a ver assim! Havia até de ficar muito mais bonita do que ela!
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— Pollyanna! — disse a tia Polly muito duramente e ainda mais porque as palavras de
Pollyanna lhe tinham despertado um estranho regozijo. Há quanto tempo ninguém se
preocupava em ver como lhe ficava o cabelo? E há quanto tempo ninguém lhe dizia que gostava
de a ver bonita? — Pollyanna, não respondeste! Porque foste falar com as senhoras da caridade?
— Eu não sabia que era disparatado até descobrir que elas preferiam ver o nome delas
em primeiro lugar numa lista do que ajudar o Jimmy. E assim está muito longe delas e pensei que
ele podia ser para elas o rapazinho da Índia delas, tal como... Tia Polly, eu para si fui a sua menina
da Índia? Tia Polly deixa-me pentear o seu cabelo, não deixa?
A Tia Polly levou a mão à garganta; sentia de novo aquela sensação estranha.
— Mas Pollyanna, fiquei tão envergonhada quando as senhoras me contaram esta tarde
como tinhas ido ter com elas! Eu...
Pollyanna começou a saltitar.
— Ainda não me disse que eu não podia penteá-la — gritou ela triunfalmente — por isso
acho que posso. Deixe-se estar onde está. Vou buscar um pente.
— Mas, Pollyanna, Pollyanna — protestou a tia Polly seguindo a menina e subindo as
escadas atrás dela.
— Ah, subiu também? Ainda é melhor! Já tenho o pente. Agora sente-se aqui. Estou tão
contente por me deixar penteá- la!
— Mas Pollyanna, eu...
Miss Polly não conseguiu concluir. Para sua surpresa encontrou-se sentada no banco
diante do toucador com o cabelo desmanchado sobre os ombros.
— Mas que lindo cabelo que tem e é muito mais abundante do que o de Mrs. Snow! Mas
claro, também precisa de ter mais cabelo porque está de boa saúde e pode ir a sítios onde as
pessoas a podem ver. Tenho a certeza de que as pessoas ficarão contentes por o ver. E ficarão
também surpreendidos porque o tem escondido há tanto tempo. Vou pô-la tão bonita que todos
gostarão muito de olhar para si!
— Pollyanna! — disse a tia um tanto chocada. Nem sei como te deixo fazer estes
disparates.
— Porquê, tia Polly? Pensava que ficava contente por as pessoas gostarem de olhar para
si! Não gosta de olhar para as coisas bonitas? Eu fico sempre muito mais contente quando olho
para as pessoas bonitas, porque quando olho para as outras tenho muita pena delas. Mas adoro
pentear as pessoas! Eu penteei muitas das senhoras de caridade, mas nenhuma delas tinha o
cabelo tão bonito como o seu. Ah, tia Polly, lembrei-me agora de uma coisa! Mas é segredo e não
posso dizer. O seu penteado está quase pronto. Vou deixá-la só por um momento mas tem de
me prometer não mexer nele até eu voltar. Não se esqueça! — concluiu ela enquanto saía do
quarto.
Miss Polly não disse nada, mas pensou que devia desfazer imediatamente esta palermice.
Nesse momento, Miss Polly olhou para si própria no espelho do toucador. Aquilo que viu fê-la
corar e quanto mais olhava mais corava. Viu um rosto que não era jovem, é verdade, mas que se
iluminava de excitação e surpresa. A face estava bonita de rosada. Os olhos cintilavam. O cabelo
negro e ainda úmido caía em ondas soltas sobre a fronte num penteado que lhe ficava muito
bem, com pequenos caracóis aqui e ali. Estava tão absorvida e surpreendida com o que via ao
espelho que se esqueceu da sua determinação em desmanchar o cabelo até que ouviu Pollyanna
entrar de novo no quarto. Antes de se poder mexer sentiu uma coisa sobre os olhos e que era
atada na nuca.
— Pollyanna, o que estás a fazer?
Pollyanna riu-se.
— É isso mesmo que eu não quero que saiba, tia Polly, e tinha medo que mexesse, por
isso atei um lenço. Agora esteja quieta. Só falta um minuto para poder ver.
— Mas, Pollyanna — disse Miss Polly endireitando-se sem ver nada. — Tenho que tirar
isto, o que estás a fazer? — protestou ela ao sentir uma coisa macia sobre os ombros.
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Pollyanna riu ainda mais. Com os dedos irrequietos ela cobria os ombros da tia com um
lindo xale amarelecido por ter estado muitos anos guardado, mas que ainda cheirava a água de
colônia. Pollyanna tinha encontrado o xale uma semana antes, quando Nancy arrumava o sótão e
tinha-se lembrado de que poderia muito bem pentear a tia tal como fizera com as senhoras de
caridade. Concluída a sua tarefa, Pollyanna apreciou o seu trabalho com um olhar aprovador, mas
viu que ainda faltava uma coisa. Conduziu então a tia até ao jardim.
— Pollyanna, o que fazes? Para onde me levas? — disse a tia Polly procurando
vagamente resistir. — Pollyanna não quero...
— Vamos só até ao solário. É só um minuto! Fica já pronta — acrescentou Pollyanna
deitando a mão a uma linda rosa vermelha e colocando-a no cabelo macio por cima da orelha
esquerda de Miss Polly. — Já está! — exultou ela desapertando o lenço e retirando-o. Oh, tia
Polly, agora tenho a certeza de que fica contente por eu a ter penteado!
Miss Polly um pouco confusa olhou em redor e dando um gritinho recolheu ao quarto a
correr. Pollyanna olhou na mesma direção que a tia e viu, através das janelas abertas do solário,
um cavalo e uma charrete que se aproximavam. Reconheceu imediatamente o homem que
segurava nas rédeas. Satisfeitíssima inclinou-se.
— Dr. Chilton, Dr. Chilton! Veio ver-me? Estou aqui.
— Sim — sorriu o médico com um tom de voz um pouco sério. — Importas-te de
descer?
No quarto, Pollyanna encontrou a tia muito corada e zangada tirando os alfinetes que
seguravam o xale.
— Pollyanna, como te atreves! — resmungou a tia. — Imagina, preparar-me desta
maneira e depois deixar que me vejam!
— Mas estava tão linda, tia Polly...
— Linda! — troçou a senhora pondo o xale de parte e remexendo no cabelo com os
dedos trêmulos.
— Oh, tia Polly, por favor deixe ficar o cabelo!
— Deixar assim? Como se eu pudesse!
— Estava tão bonita — disse Pollyanna quase soluçando enquanto saía do quarto.
Em baixo, Pollyanna encontrou o médico que esperava na sua charrete.
— Eu receitei-te a um doente e ele pediu-me para eu te vir buscar — anunciou o médico.
— Queres vir comigo?
— Quer que eu vá à farmácia? — perguntou Pollyanna na dúvida. — Eu costumava ir
quando as senhoras da caridade me pediam.
O médico abanou a cabeça com um sorriso.
— Não é bem isso. É Mr. John Pendleton. Ele gostava muito de te ver hoje, se puder ser.
Já parou de chover e eu levo-te lá. Vens? Trago-te de volta antes das seis.
— Gostava muito! — exclamou Pollyanna. Deixe-me ir pedir à tia Polly.
Passados momentos voltou, com o chapéu na mão, mas com uma expressão muito triste.
— A tua tia não te queria deixar ir? — perguntou o médico enquanto se afastavam.
— Não, ela queria era demais que eu me fosse embora.
—Queria que te fosses embora?
Pollyanna suspirou outra vez.
— Sim, acho que ela não me queria lá. Ela disse: “Sim, vai, vai depressa! Era melhor que já
tivesses ido”.
— Não era a tua tia que, há pouco, estava à janela do solário?
Pollyanna respirou fundo.
— Sim, foi esse o problema, creio eu. Eu penteei-a muito bem com um lindo xale que
encontrei lá em cima e pus-lhe uma rosa no cabelo. Estava muito linda. Não acha que estava?
O médico não respondeu logo. Quando falou, a voz era tão baixa que Pollyanna mal
podia ouvir as palavras.
52
Como um livro
Pendleton, eu no outro dia não quis ser desagradável quando disse que a tia Polly não lhe tinha
enviado a geléia.
Não houve resposta. John Pendleton já não ria. Olhava em frente com os olhos de quem
não estava a ver o que estava diante dele. Passado um tempo, deu um grande suspiro e voltou-se
para Pollyanna. Quando voltou a falar a voz transmitia a habitual irritação.
— Isso não interessa! Não te mandei chamar para me ouvires lamentar. Ouve! Na
biblioteca, a sala grande onde se encontra o telefone, que tu já conheces, está uma caixa numa
prateleira debaixo de um armário com portas de vidro, no canto próximo da lareira. Deverá lá
estar se aquela mulher trapalhona não a tiver “arrumado” noutro sítio! Podes trazê-la. É pesada,
mas penso que podes bem com ela.
— Ah, eu sou muito forte — declarou Pollyanna alegremente enquanto se punha de pé.
Num instante voltou com a caixa. Pollyanna passou então uma meia hora maravilhosa. A
caixa estava cheia de tesouros, curiosidades que John Pendleton tinha adquirido ao longo dos
vários anos de viagem e em relação a cada uma delas havia uma história engraçada, fosse acerca
de uma figura talhada da China ou de um ídolo de jade da Índia. Foi depois de ouvir a história
sobre o ídolo que Pollyanna murmurou tristemente:
— Se calhar era melhor ficar com um menino da Índia para educar, um que não
conhecesse Deus mais do que este ídolo, do que ficar com Jimmy Bean, um menino que sabe
muito bem que Deus está no céu. Não posso deixar de pensar que era muito melhor elas ficarem
com o Jimmy Bean, juntamente com os meninos da Índia.
John Pendleton parecia não ouvir. Os seus olhos estavam de novo fixos sem ver nada.
Mas logo se recompôs e pegou noutra curiosidade para falar.
A visita estava a ser muito agradável, mas antes que Pollyanna tivesse percebido, já
estavam a falar sobre outras coisas para além das curiosidades existentes naquela caixa. Estavam a
falar dela própria, de Nancy, da tia Polly e da sua vida quotidiana. Conversaram também sobre a
vida de Pollyanna no longínquo Oeste, quando estava com o pai.
Quando a menina estava quase a ir-se embora, o Homem disse numa voz que Pollyanna
nunca antes tinha ouvido:
— Minha menina, gostava muito que tu me viesses ver mais vezes. Vens? Eu estou muito
só e preciso de ti. E existe uma outra razão que te vou dizer. Primeiro, depois de eu ter sabido
quem tu eras, no outro dia, não te queria ver mais. Tu recordaste-me uma coisa que eu há muitos
anos tenho tentado esquecer. Assim, disse a mim próprio que não te queria voltar a ver e sempre
que o médico perguntava se eu não queria que ele te trouxesse outra vez, eu respondia que não.
Mas, passado um tempo, descobri que desejava tanto ver-te que o fato de não te ver me fazia
ainda recordar mais aquilo que eu queria esquecer. Assim gostava que viesses mais vezes. Vens,
minha menina?
— Sim, Mr. Pendleton — disse Pollyanna com os olhos radiantes de simpatia pela tristeza
do homem que estava deitado diante dela. — Eu gosto muito de cá vir!
— Muito obrigado — disse John Pendleton amavelmente.
Depois do jantar, nessa noite, Pollyanna sentada nas traseiras contou a Nancy tudo acerca
da caixa maravilhosa de Mr. John Pendleton e das curiosidades que ela continha.
— Imagine só, mostrou-lhe essas coisas todas e contou-lhe tantas histórias; ele que
costuma ser tão antipático e que nunca fala com ninguém!
— Mas ele não é antipático, Nancy, só por fora é que é. Não percebo porque é que toda a
gente pensa que ele é mau. Se o conhecessem não pensavam isso. Mas até a tia Polly não gosta
muito dele. Ela não queria enviar-lhe geléia e tinha medo que ele pensasse que tinha sido ela a
enviar!
— Devia ter razões para isso. O que me deixa espantada é como ele aceitou a Miss
Pollyanna, isto sem ofensa para si, é claro, mas ele não é o gênero de homem que costume
conversar com crianças.
Pollyanna sorriu contente.
54
— Ele aceitou-me, mas acho que nem sempre é assim. Hoje ele confessou-me que da
outra vez não me queria ver mais porque eu lhe lembrava uma coisa que ele queria esquecer. Mas
depois...
— O quê? — interrompeu Nancy excitada. — Ele disse-lhe que a menina o fazia
recordar uma coisa que queria esquecer?
— Sim. Mas depois.
— E o que era isso? — insistiu Nancy ansiosa.
— Ele não me contou. Só disse que era uma coisa.
— Que mistério! Deve ter sido por isso que ele a aceitou. Oh, Miss Pollyanna! Isso é
como num livro. Já li muitos. Todos eles tinham mistérios e coisas como essa. Cruzes canhoto!
Imagine só ter um livro vivo debaixo do seu nariz e não saber o que é! Conte-me tudo. Deve
haver uma amada! Não admira que ele a tenha aceite a si, não admira nada!
— Mas não foi isso. Ele não sabia quem eu era até ao dia em que eu lhe levei a geléia de
mão-de-vaca e tive que lhe explicar que não tinha sido a tia Polly que a tinha enviado e...
Nancy pôs-se de pé de repente e bateu as palmas.
— Miss Pollyanna, já sei, já sei! — exultou ela radiante. — Diga-me, responda-me com
franqueza — pediu ela excitada. — Foi depois de ele descobrir que a menina era sobrinha de
Miss Polly que ele disse que não a queria ver mais?
— Sim, eu contei-lhe aquilo da última vez que o vi e ele disse- me isso hoje.
— Bem me parecia — disse Nancy triunfante. — E Miss Polly disse que por ela não
mandava a geléia, não foi?
— Sim.
— E a menina disse-lhe isso?
— Sim, eu...
— E ele começou a agir de modo esquisito e ficou comovido depois de descobrir que a
menina era sobrinha dela, não foi?
— Sim, ele começou a comportar-se de modo um bocado estranho sobre a geléia —
admitiu Pollyanna pensativa.
Nancy deu um grande suspiro.
— Então tenho a certeza de que já percebi! Agora ouça isto: Mr. John Pendleton era o
noivo de Miss Polly Harrington — disse ela solenemente enquanto olhava receosamente por
cima do ombro.
— Não pode ser Nancy! Ela não gosta dele — objetou Pollyanna.
Nancy olhou para ela de modo trocista.
— Claro que não! A questão é essa!
Pollyanna continuava a olhar incrédula e Nancy, depois de respirar fundo outra vez,
preparou—se para lhe contar a história.
— É assim. Antes de a menina ter vindo, Mr. Tom contou-me que Miss Polly tinha tido
em tempos um namorado. Eu não acreditei. Era impossível, ela com um namorado! Mas Mr.
Tom disse-me que sim e que ele vivia nesta cidade. E agora já sei; claro que tem que ser Mr. John
Pendleton! Não tem ele um mistério na sua vida? Não se fecha naquele casarão sozinho sem falar
com ninguém? Não agiu ele de modo estranho quando descobriu que a menina era sobrinha de
Miss Polly? E não confessou que a menina lhe lembrava algo que queria esquecer? É claro que
era por causa de Miss Polly! Além disso, o fato de ela dizer que nunca lhe mandaria geléia. Está-se
mesmo a ver, não acha Miss Pollyanna?
— Oh! — exclamou Pollyanna perfeitamente surpreendida. — Mas Nancy, se eles se
amassem haviam de estar algum tempo juntos. Mas têm estado os dois sós durante todos estes
anos. Eles haviam de gostar de estar juntos!
Nancy olhou desdenhosamente.
— Acho que a menina não sabe muito sobre namorados. Ainda não tem idade suficiente.
Mas se há alguém no mundo que nunca faria uso do seu “jogo do contentamento” é um par de
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namorados zangados. É isso que eles são. Não é ele resmungão que se farta, normalmente? E não
é ela... — Nancy parou bruscamente lembrando-se a tempo com quem e sobre quem estava a
falar. — Seria uma bela coisa da sua parte se conseguisse juntá-los de novo. Mas seria um
espanto, Miss Pollyana. Não deve haver grandes probabilidades!
Pollyanna não respondeu, mas quando entrou em casa pouco tempo depois, trazia uma
expressão muito pensativa.
Os prismas
escutava, por vezes educadamente, por vezes irritado; mas frequentemente com um sorriso
estranho nos lábios que eram habitualmente sisudos. Ela falava à tia sobre Mr. Pendleton ou
melhor, tentava falar acerca dele. No entanto, normalmente Miss Polly não a escutava muito.
Encontrava quase sempre outra coisa para conversar. No entanto, ela também fazia isso
frequentemente quando Pollyanna falava de outras pessoas; do Dr. Chilton por exemplo.
Pollyanna atribuía isto ao fato do Dr. Chilton a ter visto no solário com a rosa no cabelo e o xaile
sobre os ombros. Com efeito, a tia parecia particularmente amargurada contra o Dr. Chilton,
como Pollyanna veio a descobrir um dia em que ficou de cama com uma grande gripe.
— Se não estiveres melhor à noite mando vir o médico — disse a tia Polly.
— Manda? Então farei para ficar pior, pois gostava muito que o Dr. Chilton viesse ver-
me!
Ficou surpreendida com a expressão do rosto da tia.
— Não será o Dr. Chilton, Pollyanna — disse Miss Polly gravemente. — O Dr. Chilton
não é o nosso médico de família. Se estiveres pior, mando vir o Dr. Warren.
Pollyanna não piorou e por isso não foi necessário chamar o Dr. Warren. Nessa noite, ela
disse à tia:
— Gosto muito do Dr. Warren, mas prefiro o Dr. Chilton e acho que ele ficaria magoado
se não o chamasse. Afinal ele não tem a culpa de a ter visto quando a penteei no outro dia, tia
Polly — concluiu ela tristonha.
— Basta, Pollyanna! Não quero discutir o Dr. Chilton — respondeu Miss Polly
rispidamente.
Por momentos, Pollyanna olhou para ela com o olhar triste, depois deu um grande
suspiro.
— Gosto muito de a ver com a face assim corada, tia Polly, mas gostava também muito
de lhe arranjar o cabelo se... por que é que não deixa, tia Polly? — mas a tia já se tinha ido
embora.
No fim do mês de agosto, quando Pollyanna visitava John Pendleton, de manhã cedo,
descobriu um reflexo do arco-íris na almofada dele e ficou deliciada.
— Olhe Mr. Pendleton é um arco-íris bebê, um arco-íris a sério! Veio visitá-lo! —
exclamou ela batendo as palmas. — Mas que bonito que é! Como terá entrado?
O Homem riu com pouca vontade. John Pendleton não estava muito bem disposto
naquela manhã.
— Deve ter entrado através do vidro do termômetro que se encontra na janela — disse
com ar cansado
— Mas é tão bonito Mr. Pendleton! E é o sol que faz isso? Se o termômetro fosse meu,
tinha-o pendurado ao sol o dia inteiro.
— O termômetro havia de servir para grande coisa! — disse o Homem rindo. — E como
achas que conseguirias saber a temperatura se o termômetro estivesse pendurado ao sol todo o
dia?
— Não me importava com isso — respondeu Pollyanna fascinada com as lindas cores do
arco-íris sobre a almofada. — Como se as pessoas se importassem se pudessem viver o tempo
todo num arco-íris!
O Homem riu. Observava com curiosidade o rosto embevecido de Pollyanna. De súbito
ocorreu-lhe um novo pensamento e tocou a campainha.
— Nora — chamou ele, quando a empregada já de idade apareceu à porta — traga-me
um desses candelabros que estão em cima da lareira na sala da frente.
— Sim, senhor — murmurou a mulher um pouco surpreendida.
Em breve estava de volta. Um tinir musical invadiu o quarto enquanto ela se dirigia para a
cama. Vinha dos prismas suspensos no antigo candelabro que ela segurava.
— Obrigado. Pode pousá-lo. Agora arranje um fio e prenda-o ao varão dos reposteiros,
naquela janela. Abra os cortinados e passe o fio de um lado ao outro da janela. É tudo, obrigado
57
Pollyanna entrou para a escola em setembro. Os exames preliminares revelaram que ela
estava bastante avançada para a sua idade e em breve encontrou-se numa classe de meninas e
meninos como ela.
Em certos aspectos a escola foi uma surpresa para Pollyanna e também em muitos
aspectos Pollyanna foi uma surpresa para a escola. Em breve, o relacionamento tornou-se o
melhor. Ela acabou por confessar à tia que, afinal, ir à escola era também viver, embora antes
duvidasse disso.
Apesar do entusiasmo pelas suas novas ocupações, Pollyanna não esqueceu os velhos
amigos. Ela agora não lhes podia dedicar tanto tempo, mas estava com eles sempre que lhe era
possível. De todos eles, John Pendleton era o mais insatisfeito. Num sábado à tarde ele falou-lhe
nisso.
— Olha Pollyanna, não gostavas de vir viver comigo? — perguntou ele um pouco
impacientemente. — Agora, quase não te vejo.
Pollyanna riu. Achava Mr. Pendleton muito engraçado.
— Pensava que não gostava de ter gente perto — disse ela.
Ele fez uma careta.
— Mas isso era antes de me teres ensinado aquele teu jogo. Agora estou contente por ter
partido uma perna! Já não me importo nada; em breve estarei bom e depois vamos ver quem
anda mais — concluiu ele agarrando numa das muletas e sacudindo-a divertidamente na direção
da menina.
59
baixa.
Pollyanna fez um sorriso rasgado.
— Claro que não! Como se eu não soubesse que havia de preferir ser o senhor a dizer!
John Pendleton deixou-se cair abatido na cadeira.
— Então, o que se passa? — perguntou o médico um minuto depois, ao apalpar o pulso
do seu doente que batia aceleradamente.
Um sorriso estranho dançava nos lábios de John Pendleton.
— Foi uma dose excessiva do seu tônico, creio eu — disse, rindo, ao reparar que o
médico seguia a figurinha de Pollyanna que se afastava.
O mais surpreendente
soubesse.
— Ela?
— Sim, a tia Polly. É claro que ele preferia ser ele próprio a dizer-lhe em vez de ser eu.
Os namorados são assim.
— Os namorados? — ao dizer esta palavra o cavalo parou bruscamente como se a mão
que segurava as rédeas as tivesse puxado com força.
— Sim, a história é essa. Eu não sabia, até que Nancy me contou. Ela disse que a tia Polly
tinha tido um namorado aqui há anos, mas que eles se zangaram. Primeiro, ela não sabia quem
era, mas acabamos por descobrir. É Mr. Pendleton.
O médico descontraiu-se um pouco. A mão que segurava as rédeas caiu abandonada no
colo.
— Oh! Não sabia — disse ele calmamente.
Pollyanna continuou. Entretanto já estavam próximos do solar Harrington.
— Sim, eu estou tão contente. Mr. Pendleton pediu-me para ir viver com ele, mas claro
que não posso deixar a tia Polly assim, depois de ela ter sido tão boa para mim. Depois contou-
me tudo sobre a mulher que sempre desejou e descobriu que a queria agora. E eu fiquei tão
contente! Porque, é claro que se ele quiser fazer agora as pazes ficará tudo bem e a tia Polly e eu
iremos as duas viver para lá ou então virá ele viver conosco. Claro que a tia Polly ainda não sabe
e ainda não combinamos bem as coisas, portanto, penso que é por causa disso que ele quer ver-
me esta tarde.
O médico estava sentado muito direito. No rosto desenhava-se um sorriso estranho.
— Sim, posso bem imaginar que é isso que Mr. John Pendleton quer — disse ele quando
fazia o cavalo parar diante da entrada.
— A tia Polly está ali à janela — gritou Pollyanna. Mas um segundo depois acrescentou:
— Afinal não está, mas pareceu-me tê-la visto!
— Não, ela já não está lá — disse o médico. O sorriso tinha lhe desaparecido dos lábios.
Pollyanna encontrou um John Pendleton nervoso à espera dela, naquela tarde.
— Pollyanna — começou ele de imediato — durante toda a noite procurei decifrar tudo
aquilo que me disseste ontem sobre eu querer a tia Polly durante estes anos todos. Que querias tu
dizer com isso?
— Porque em tempos foram namorados e eu estava tão contente por o senhor ainda
sentir o mesmo.
— Namorados! A tua tia e eu?
Perante a surpresa manifesta na voz do Homem, Pollyanna abriu muito os olhos.
— Foi isso que Nancy disse!
O Homem deu uma risada.
— Ah sim! Receio ter de te dizer que essa Nancy não sabe nada de nada.
— Então não namoraram? — perguntou Pollyanna aflita.
— Nunca!
— Então as coisas não são todas como num livro?
Não houve resposta. O Homem tinha o olhar fixo na janela.
— Mas que pena! Estava tudo a correr tão bem — disse Pollyanna quase a soluçar. — Eu
estava tão contente por vir para cá com a tia Polly.
— E agora já não queres vir? — perguntou o Homem sem virar a cabeça.
— Claro que não! Eu pertenço à tia Polly.
O Homem virou-se quase furioso.
— Antes de tu lhe pertenceres, Pollyanna, tu pertencias à tua mãe. E foi a tua mãe que eu
há muitos anos quis.
— A minha mãe?
— Sim. Não tencionava dizer-te, mas talvez seja melhor assim.
John Pendleton tinha ficado muito pálido. Falava com manifesta dificuldade. Pollyanna,
62
assustada, com os olhos e a boca muito abertos, olhava para ele fixamente.
— Eu amava muito a tua mãe, mas ela não me amava e algum tempo depois partiu com o
teu pai. Só então percebi quanto gostava dela. Parecia que o mundo inteiro se desfazia entre os
meus dedos e... não interessa! Durante muitos anos fui um velho antipático e rabugento, embora
ainda nem tenha feito sessenta anos. Até que um dia, tal como um dos prismas de que gostas
tanto, tu apareceste a dançar na minha vida, e com a tua alegria desfizeste o meu velho mundo
em cinzas. Passado um tempo descobri quem tu eras e pensei que nunca mais te queria ver. Não
queria que me lembrasses a tua mãe. Mas... Já sabes o resto. Estava sempre a desejar que me
viesses visitar, e agora quero-te ter sempre comigo. Pollyanna, vens viver comigo?
— Mas, Mr. Pendleton, há a tia Polly...
Os olhos de Pollyanna ficaram marejados de lágrimas. O homem fez um gesto
impaciente.
— Então e eu? Como queres que eu possa ficar contente com as coisas sem ti? Foi só
depois de tu chegares que comecei a ficar meio contente por viver. Mas se te tivesse comigo,
ficaria muito contente com tudo e procuraria também fazer-te contente a ti. Não haveria nada
que tu desejasses que eu não satisfizesse logo. Todo o meu dinheiro, até o último cêntimo seria
para te tornar feliz.
Pollyanna olhou escandalizada.
— Mr. Pendleton, como se eu o pudesse deixar gastar comigo todo o dinheiro que
poupou para os países pobres!
O Homem ficou vermelho. Ia começar a falar, mas Pollyanna continuou:
— Além disso, uma pessoa com tanto dinheiro como o senhor não precisa de alguém que
o faça ficar contente com as coisas. Dando coisas às outras pessoas pode fazê-las felizes, de tal
maneira que o senhor mesmo não pode deixar de ficar feliz! Pense só nesses prismas que deu a
Mrs. Snow e a mim e na moeda de ouro que deu a Nancy no dia dos anos e...
— Sim, mas isso não interessa — interrompeu o Homem. Ele estava agora muito corado,
e não admira, porque não era por dar coisas aos outros que John Pendleton tinha sido conhecido
no passado. — Isso é tudo um disparate. Eu não dei quase nada a ninguém e aquilo que dei foi
por tua causa. Foste tu que deste essas coisas e não eu! E isso só vem demonstrar ainda mais
como eu preciso de ti — disse ele procurando adoçar o tom da sua voz. — Se eu alguma vez
jogar o “jogo do contentamento” terás de ser tu a jogá-lo comigo.
A menina franziu a testa.
— A tia Polly tem sido tão boa para mim... —começou ela, mas foi interrompida
bruscamente por ele.
Aquela velha irritação tinha voltado a transparecer-lhe no rosto. A impaciência de quem
não suportava qualquer contrariedade tinha feito parte da natureza de John Pendleton há
demasiado tempo para que a conseguisse conter.
— Claro que ela tem sido boa para ti! Mas não te quer nem metade de como eu te quero
— contra-argumentou ele.
— Mas Mr. Pendleton, ela está tão contente por ter...
— Contente! — interrompeu o Homem perdendo completamente a paciência. — Tenho
a certeza que Miss Polly não sabe ficar contente com nada! Ela faz apenas o seu dever. É uma
mulher muito cumpridora dos seus deveres e eu já tive a experiência do seu “dever”. Reconheço
que nos últimos quinze ou vinte anos não fomos propriamente grandes amigos, mas eu conheço-
a. Todos a conhecem e ela não é do gênero de ficar “contente” com nada. Ela não é capaz.
Quanto a vires viver comigo, pergunta-lhe e verás se ela não te deixa. E, minha querida menina,
eu quero-te tanto! — concluiu ele quase a chorar.
Pollyanna levantou-se com um longo suspiro.
— Está bem, vou perguntar-lhe — disse pensativamente. — Não é que eu não gostasse
de vir viver consigo, Mr. Pendleton.. — mas não concluiu a frase. Houve um momento de
silêncio e depois acrescentou: — De qualquer modo estou satisfeita por não lhe ter dito ontem,
63
— Sim, significa ficar preocupada e ficar preocupada é horrível. Que mais pode
significar?
Nancy abanou a cabeça.
— Vou dizer-lhe o que significa. Significa que ela está finalmente a ficar humana como
toda a gente e que a sua única preocupação já não é só cumprir o seu dever.
— Mas por que, Nancy? — perguntou escandalizada Pollyanna. — A tia Polly cumpre
sempre o seu dever. Ela é uma mulher muito cumpridora! — Pollyanna repetia
inconscientemente as palavras de John Pendleton pronunciadas há meia hora.
Nancy deu um risinho.
— Lá isso é verdade, ela sempre foi muito cumpridora. Mas agora é mais do que isso,
desde que a menina chegou.
A expressão de Pollyanna alterou-se, manifestando preocupação.
— Era isso que te ia perguntar, Nancy. Achas que a tia Polly gosta de me ter com ela?
Achas que ela se importava se eu deixasse de viver com ela?
Nancy olhou de relance para o rosto atento da menina. Há muito que receava aquela
pergunta. Tinha pensado como deveria responder honestamente sem magoar Pollyanna. Mas,
agora que as suas suspeitas se tinham confirmado, depois da tia Polly a ter mandado com o
chapéu de chuva, Nancy recebeu a pergunta de braços abertos. Estava certa de que podia
tranqüilizar o coração sequioso de carinho daquela menina.
— Se ela gosta de a ter aqui? Ela havia de sentir muito a sua falta se a perdesse agora —
disse Nancy indignadamente. — Então não me mandou ela a correr com o chapéu de chuva logo
que viu umas nuvenzinhas? Não me mandou mudar as suas coisas todas para o andar de baixo
para o bonito quarto que a menina queria? Quando eu me lembro que ao princípio detestava tê-la
cá em casa... — Nancy começou a tossir e conteve-se mesmo a tempo. — E não é só isso. Há
outras pequenas coisas que mostram que a menina a amoleceu, como o gato, o cão, a maneira
como ela fala comigo e muitas outras coisas. É impossível dizer como ela havia de sentir a sua
falta se cá não estivesse — concluiu Nancy com entusiasmo, como que a ocultar uma idéia
perigosa que tinha admitido antes.
Mas, mesmo assim, ela não estava bem preparada para a alegria súbita que iluminou o
rosto de Pollyanna.
— Oh, Nancy, estou tão contente! Não imaginas como estou contente por a tia Polly me
querer!
“Era impossível eu deixá-la agora!” pensou Pollyanna quando subia as escadas para o
quarto, pouco depois. “Eu sempre soube que queria viver com a tia Polly, mas não sabia até que
ponto queria que a tia Polly quisesse viver comigo”.
Não seria fácil comunicar a John Pendleton a sua decisão. Gostava muito de John
Pendleton e tinha muita pena dele porque ele parecia ter pena de si próprio. Tinha também pena
da vida solitária que o tinha tornado tão infeliz e magoava-a o fato de saber que tinha sido por
causa da mãe que ele tinha passado aqueles anos todos angustiado. Imaginou como seria aquele
grande casarão cinzento quando o seu dono estivesse restabelecido, com os salões silenciosos e
tudo desarrumado. Doía-lhe o coração por causa da solidão dele. Bem gostava que ele
encontrasse alguém. Naquele momento deu um salto, pondo-se de pé e dando um gritinho de
alegria com a idéia que lhe tinha vindo à cabeça.
Logo que pôde correu a casa de John Pendleton e em breve encontrava-se na grande
biblioteca, sentada junto dele e do cãozinho fiel deitado a seus pés.
— Então, Pollyanna, vais jogar “o jogo do contentamento” comigo até ao fim da minha
vida? — perguntou ele docemente.
— Oh, sim! — gritou Pollyanna. — Eu pensei na melhor coisa que podia fazer e...
— Contigo? — perguntou John Pendleton começando a manifestar preocupação.
— Não, mas...
— Pollyanna, não me vais dizer que não! — interrompeu ele com a voz cheia de emoção.
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— Talvez pense que um rapazinho simpático não é melhor do que o velho esqueleto que
tem guardado algures, mas eu acho que sim, acho que é melhor!
— Um esqueleto?
— Sim, a Nancy disse que tinha um esqueleto guardado num armário algures.
— Ah, isso... — o Homem desatou a rir.
Ria com tanta vontade que Pollyanna começou a chorar de nervosismo. Ao aperceber-se
disso, John Pendleton sentou-se direito e a sua expressão tornou-se séria.
— Pollyanna, se calhar tens razão, mais razão do que pensas — disse ele docemente. —
Com efeito, eu sei que um rapazinho simpático seria muito melhor do que o esqueleto que tenho
guardado no armário. Só que nem sempre estamos dispostos a fazer a troca. Preferimos ficar
agarrados aos nossos esqueletos. No entanto conta-me lá mais um pouco acerca desse teu rapaz.
E Pollyanna contou-lhe.
O riso talvez tivesse aliviado a atmosfera ou então talvez a tragédia de Jimmy Bean, tal
como Pollyanna a contou, tivesse tocado aquele coração já semi amolecido. De qualquer modo,
quando Pollyanna regressou a casa nessa noite já trazia consigo um convite para Jimmy Bean, que
deveria visitar o casarão com Pollyanna no próximo sábado à tarde.
— Estou tão contente! Tenho a certeza de que gostará dele! — dissera ao despedir-se. —
Desejo tanto que Jimmy Bean tenha um lugar, com uma família que se preocupe com ele.
Sermões e lenha
Na tarde em que Pollyanna falou a John Pendleton de Jimmy Bean, o reverendo Paul
Ford percorria os bosques de Pendleton na esperança de que a beleza fulgurante da natureza de
Deus acalmasse o tumulto que os seus filhos tinham provocado.
O reverendo Paul Ford estava muito magoado. Mês após mês, desde há um ano, as
condições na sua paróquia tinham piorado cada vez mais, até que, presentemente, para onde quer
que se virasse, encontrava apenas discussões, maldizência, escândalo e inveja. Tinha procurado
evitar aquilo, falando com as pessoas, predicando, mas era ignorado. Além disso, rezava
fervorosamente na esperança das coisas melhorarem. Porém, chegara à conclusão de que nada
melhorara, antes pelo contrário.
Dois dos seus clérigos tinham se zangado por uma questão sem importância; três das suas
colaboradoras mais enérgicas da organização de caridade tinham se afastado por causa das más
línguas que tinham provocado escândalo. Havia depois divergências sobre as preferências dadas
ao solista do coro. E para cúmulo, o responsável e dois dos professores da catequese tinham se
demitido. Esta fora a gota de água que fizera transbordar o vaso e o pastor desanimado resolvera
ir para o bosque rezar e meditar.
Era preciso fazer alguma coisa, pensava o pastor. Todo o trabalho da paróquia estava
parado. Cada vez menos gente freqüentava as atividades religiosas. Os poucos colaboradores que
restavam degladiavam-se entre si. Por causa de tudo isto, o reverendo Paul Ford sofria muito. Era
preciso fazer alguma coisa, mas o quê? O reverendo tirou do bolso as notas que tinha feito para o
sermão do próximo domingo. E começou então a ensaiá-lo aos gritos com voz irada. Até os
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pássaros e os esquilos tinham fugido deixando tudo em silêncio. O reverendo dobrou de novo as
notas e meteu-as no bolso.
Começou então a rezar. Estava ele nisto, quando Pollyanna, que regressava a casa depois
de ter estado no solar de Pendleton, o encontrou. Correu para ele com um gritinho.
— Oh, Mr. Ford! Partiu alguma perna?
O reverendo deixou cair as mãos e olhou para ela tentando sorrir.
— Não, menina, não! Estou só a descansar.
— Ah, ainda bem. É que Mr. Pendleton, quando o encontrei, tinha partido uma perna.
Mas ele estava deitado no chão e o senhor está sentado.
— Sim, estou sentado e não parti nada que os médicos possam curar.
Estas últimas palavras foram ditas em voz muito baixa, mas Pollyanna ouviu-as. Os olhos
dela brilharam de simpatia.
— Eu sei o que quer dizer, está preocupado com alguma coisa. O pai costumava sentir-se
assim muitas vezes. Quase todos os pastores se sentem, frequentemente, assim. Eles são sujeitos
a tantas exigências e solicitações!
O reverendo virou—se para ela surpreendido.
— O teu pai era pastor?
— Sim, não sabia? Pensava que toda a gente sabia. Ele casou com a irmã da tia Polly, que
era a minha mãe.
— Ah, estou a perceber. Sabes, eu estou aqui há poucos anos e não conheço as histórias
de todas as famílias.
— Sim, senhor — sorriu Pollyanna.
Fez-se um grande silêncio. O reverendo que continuava sentado junto a uma árvore
pareceu ter se esquecido da presença de Pollyanna. Tirou alguns papéis dos bolsos e desdobrou-
os, mas não estava a olhar para eles. Em vez disso tinha o olhar fixo numa folha caída, a alguma
distância. Pollyanna sentiu uma certa pena dele.
— Está um lindo dia — começou ela, esperançosa.
Por um breve instante não houve resposta, depois o reverendo olhou para cima.
— O quê? Ah sim, está um lindo dia.
— Não faz frio nenhum, embora estejamos em outubro — observou Pollyanna ainda
mais esperançosa. — Mr. Pendleton tem uma lareira, mas diz que não precisa dela. É só para ver.
Eu gosto muito de ficar a olhar para a lareira, não gosta?
Desta vez não houve resposta, embora Pollyanna aguardasse pacientemente antes de
tentar de novo.
— Gosta de ser pastor?
O reverendo Paul Ford desta vez olhou logo para ela.
— Se eu gosto? Mas que pergunta estranha! Porque perguntas isso, minha menina?
— Nada. Pelo modo como olhava. Fez-me lembrar o meu pai. Ele costumava ter esse ar,
às vezes.
— Ah, sim? — a voz do reverendo era educada, mas tinha voltado a fixar os olhos na
folha caída.
— Sim e eu costumava perguntar-lhe se gostava de ser pastor, tal como lhe perguntei
agora a si.
O homem sorriu tristemente.
— E o que é que ele dizia?
— Claro que ele dizia sempre que sim, mas dizia também que não continuaria a ser pastor
nem mais um minuto se não fosse por causa dos “textos de júbilo”.
— Os quê?
— Era assim que o pai costumava chamar-lhes — disse ela a rir. — É claro que a Bíblia
não lhe chama assim, mas são todos aqueles que servem para animar e reconfortar as pessoas:
Uma vez quando o pai se sentiu muito triste contou-os. Havia oitocentos textos desses.
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— Oitocentos?
— Sim, textos que dizem às pessoas para ficarem contentes, para se alegrarem. Era a
esses que o pai chamava “textos de júbilo”.
— Então o teu pai gostava desses “textos de júbilo” — murmurou ele.
— Sim — reafirmou Pollyanna enfaticamente. Ele dizia que se sentia logo melhor
quando os contava. Dizia que se Deus se deu ao incômodo de nos dizer oitocentas vezes para
ficarmos contentes e alegres era porque queria que nós também o disséssemos uns aos outros. E
o pai sentiu-se envergonhado por não o ter feito mais vezes. Depois disso, esses textos davam-
lhe tanto conforto quando as coisas corriam mal, quando, por exemplo, as senhoras da caridade
se zangavam umas com as outras por não concordarem com alguma coisa. E foram também
esses textos que o fizeram pensar naquele jogo que começou a fazer comigo a propósito das
muletas. Ele disse-me que tinham sido os textos de júbilo que lhe tinham ensinado o jogo.
— E como era o jogo? — perguntou o reverendo.
— O jogo consiste em encontrar sempre alguma coisa que nos faça estar contentes.
Como disse, começou comigo a propósito das muletas.
Mais uma vez, Pollyanna contou a história dela e desta vez o reverendo escutou-a muito
atento, com olhos meigos.
Um pouco depois, Pollyanna e o reverendo desceram a colina de mãos dadas. Pollyanna
estava radiante, gostava imenso de conversar. O reverendo queria saber tantas coisas sobre o
jogo, sobre o pai dela e sobre a sua antiga casa. Na base da colina, separaram-se. Pollyanna
continuou por uma estrada e o reverendo por outra.
Nessa noite, o reverendo Paul Ford sentou-se no seu escritório a refletir. Sobre a
secretária estavam algumas páginas soltas com as notas do seu sermão. Diante dele tinha outra
folha em branco onde tencionava escrever o sermão. Porém, o reverendo não estava a pensar no
que tinha escrito nem naquilo que tencionava escrever. A sua imaginação estava muito longe
numa pequena cidade do oeste com um reverendo missionário pobre, doente, preocupado e
quase só no mundo, mas que se debruçava sobre a Bíblia para descobrir quantas vezes Deus lhe
dizia para se alegrar e ficar contente.
Passado um tempo, com um longo suspiro, o reverendo Paul Ford ergueu-se, regressou
da longínqua cidade do oeste e preparou as folhas de papel para escrever.
“ Mateus 23 13, 14 e 23” escreveu ele. Depois, com um gesto de impaciência deixou cair
a caneta e agarrou numa revista deixada por sua mulher na secretária, alguns minutos antes. Os
seus olhos cansados percorriam os vários parágrafos até que as seguintes palavras lhe prenderam
a atenção:
Um dia, um pai disse ao filho, depois de ter sabido que ele se tinha recusado a ir buscar lenha para a
mãe: “Tom, estou certo de que hás de ficar muito contente por ir buscar alguma lenha para a tua mãe”. E, sem
dizer palavra, Tom foi. Por quê? Apenas porque o pai lhe manifestou diretamente que contava que ele fizesse as
coisas corretamente. Suponham que ele dizia “Tom, soube o que tu disseste à tua mãe esta manhã e envergonho-me
de ti. Vai buscar lenha imediatamente!” Garanto-vos que a caixa de lenha continuaria vazia.
O reverendo continuou a ler, uma palavra aqui uma linha ali, um parágrafo acolá:
O que os homens e as mulheres precisam é de encorajamento. As suas capacidades de resistência naturais
devem ser fortalecidas e não enfraquecidas. Em vez de acusar permanentemente uma pessoa pelos seus erros fala-lhe
antes das suas virtudes. Procure encorajá-la a abandonar os seus maus hábitos. Faça apelo às melhores qualidades,
à verdadeira personalidade que saberá usar e vencer. A influência de uma personalidade cheia de esperança e de
beleza, sempre disposta a ajudar, é contagiosa e pode revolucionar uma cidade inteira. As pessoas irradiam aquilo
que vai no seu espírito e nos seus corações. Se uma pessoa se sente boa e simpática, os seus vizinhos também se
sentirão assim. Mas se ele rabujar e criticar, os vizinhos retribuirão na mesma moeda e ainda com maior
intensidade. Se olhar para o que está mal, já à espera de o encontrar, é isso que obterá. Mas quando tiver a certeza
de que o que vai encontrar será bom, é isso também que encontrará. Diga ao seu filho Tom que sabe que ele há de
ficar contente por ir buscar lenha. Depois observe-o atenta e interessadamente!
O reverendo pôs a folha de parte e levantou a cabeça. No momento seguinte estava de pé
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e percorria o quarto de um lado para o outro, para a frente e para trás. Passado um pouco,
respirou fundo e sentou-se novamente à secretária.
— Meu Deus, ajudai-me! Vou dizer a todos os meus Toms que tenho a certeza de que
eles ficarão contentes por ir buscar lenha! Hei de distribuir-lhes tarefas e incutir-lhes tanta alegria
para as realizar que nem terão tempo de olhar para as caixas de lenha dos vizinhos!
O reverendo começou então a escrever o seu sermão do princípio.
O sermão do reverendo Paul Ford no domingo seguinte foi um verdadeiro apelo a tudo o
que cada homem, cada mulher e cada criança tinha de melhor e um dos textos citados da Bíblia
fazia parte dos oitocentos que Pollyanna tinha referido.
O acidente
A pedido de Mrs. Snow, Pollyanna foi um dia ao consultório do Dr. Chilton pedir a
receita de um remédio que ela precisava. Pollyanna nunca tinha estado antes no consultório do
Dr. Chilton.
— Nunca tinha vindo à sua casa! É aqui que mora, não é? — perguntou ela olhando com
curiosidade em volta.
O médico sorriu um pouco tristemente.
— Sim, é verdade — respondeu ele enquanto passava a receita. — Mas não é bem um lar
Pollyanna, são só quartos e salas e isso não chega para fazer um lar.
Pollyanna fez que sim com a cabeça. Os seus olhos irradiavam compreensão e simpatia.
— Eu sei, é preciso a presença de uma mulher e de uma criança para fazer um lar —
disse ela.
— O quê?
— Foi Mr. Pendleton que me disse. Por que não arranja uma mulher, Dr. Chilton? Ou
talvez queira ficar com Jimmy Bean se Mr. Pendleton afinal não quiser.
O Dr. Chilton riu um pouco constrangido.
— Então, Mr. Pendleton diz que é preciso uma mulher para fazer um lar? — perguntou
ele evasivamente.
— Sim, ele também diz que o sítio onde mora é apenas uma casa. Por que não arranja,
Dr. Chilton?
— Por que não, o quê? — o médico voltara a sentar-se à secretária.
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— Por que não arranja uma mulher. Ah, já me esquecia — disse Pollyanna um pouco
ruborizada. Acho que devo dizer-lho. Não era da tia Polly que Mr. Pendleton gostava, portanto,
nós não vamos viver para lá. No outro dia foi isso que eu lhe disse, mas tinha me enganado.
Espero que não tenha contado a ninguém — concluiu ela com uma expressão de ansiedade.
— Não, não contei a ninguém, Pollyanna — respondeu o médico, de modo um tanto
estranho.
— Ah, ainda bem — exclamou Pollyanna aliviada.
— Sabe, o senhor foi a única pessoa a quem eu contei e pareceu-me que Mr. Pendleton
ficou um tanto ou quanto divertido quando lhe disse que tinha contado a si.
— Ficou? — perguntou o médico fazendo por aparentar uma certa indiferença.
— É claro que ele não gostaria que mais pessoas soubessem, dado que não era verdade.
Mas por que não arranja uma mulher, Dr. Chilton?
Houve um instante de silêncio. Depois com um ar muito sério o médico disse:
— Isso não acontece sempre quando nós queremos, minha menina.
Pollyanna fez uma expressão pensativa.
— Estava convencida de que o senhor conseguiria facilmente — disse ela em tom de
lisonja.
— Obrigado — riu o médico com as sobrancelhas levantadas. Depois continuou com o
mesmo ar sério: — Receio que algumas senhoras mais velhas do que tu não pensem da mesma
maneira. Pelo menos não se têm demonstrado tão interessadas — observou ele.
Pollyanna franziu de novo a testa. Depois abriu os olhos com surpresa.
— Não me diga que já tentou casar com uma senhora, como Mr. Pendleton, e não
conseguiu porque ela não quis?
O médico pôs-se em pé de repente.
— Pollyanna, isso agora pouco interessa. Não te preocupes com os problemas das outras
pessoas. Vai levar o nome do remédio a Mrs. Snow. Há mais alguma coisa?
Pollyanna disse que não com a cabeça.
— Não, obrigada — murmurou ela enquanto se voltava para a porta. A meio caminho da
saída, voltou-se com uma expressão alegre e disse: — Ainda bem que não foi pela minha mãe que
esteve apaixonado!
Foi no último dia de outubro que o acidente ocorreu. Pollyanna que se dirigia
apressadamente para casa depois da escola, atravessou a rua a uma distância aparentemente
segura de um carro que se aproximava. O que aconteceu ninguém conseguiu explicar bem. Eram
cinco da tarde; Pollyanna foi levada inconsciente para o seu quarto. A tia Polly muito pálida e
Nancy muito chorosa tiraram-lhe as roupas e meteram-na na cama. O Dr. Warren foi chamado
de urgência.
Nancy chorava sem parar no ombro do velho Tom enquanto dizia:
— Agora é que se vê como Miss Polly gosta da sobrinha. Não é o dever que a atormenta.
— Ela está muito mal? — perguntou o velhote.
— Ela parecia morta, mas Miss Polly disse que não estava; e ela deve saber porque esteve
com a cabeça encostada ao peito da menina e ouviu o coração a bater! Ela tem um pequeno corte
na cabeça. Mas não parece muito mal, diz Miss Polly. Mas ela receia que a menina esteja ferida
interiormente.
Mesmo após a visita do médico, pouco mais havia a dizer. Parecia não haver ossos
partidos e o golpe não tinha muito mau aspecto, mas o médico tinha um ar muito sério e abanava
vagarosamente a cabeça dizendo que só com o tempo se poderia saber.
Depois de ele se ter ido embora, Miss Polly estava ainda mais desanimada do que antes. A
menina ainda não tinha recobrado a consciência, mas de momento parecia estar a dormir bem.
Mandaram chamar uma enfermeira que deveria chegar nessa noite. Só na manhã seguinte é que
Pollyanna abriu os olhos e compreendeu onde estava.
— Que aconteceu, tia Polly? Por que não me consigo levantar? — lamentou-se ela
71
John Pendleton
Afinal Pollyanna não pôde ir à escola no dia a seguir, nem depois. Porém, a menina não
se deu bem conta disso, exceto quando, por um breve período de perfeita consciência, fez várias
perguntas. Só uma semana depois começou a ficar perfeitamente consciente, quando a febre
cedeu e as dores diminuíram. Tiveram então que lhe contar tudo o que se tinha passado.
— Então, não estou doente, o que eu estou é ferida. Estou contente com isso.
— Contente, Pollyanna? — perguntou a tia que estava sentada na cama dela.
— Sim, é muito melhor ter as pernas partidas como aconteceu a Mr. Pendleton do que
ficar inválido para sempre como Mrs. Snow. Uma perna partida cura-se, mas os inválidos
permanentes, não.
Miss Polly levantou-se de repente e dirigiu-se para o toucador, do outro lado do quarto.
Começou a mexer nos objetos como se não soubesse bem o que estava a fazer, o que contrastava
com a sua habitual determinação. Estava muito pálida.
Na cama, Pollyanna estava deitada, olhando para os reflexos do arco-íris no teto que eram
produzidos pelos prismas pendurados na janela.
— Também estou contente por não ter varicela — murmurou ela. — Isso é pior do que
sardas. Estou também contente por não ter tosse convulsa; já tive isso e é horrível. Também
estou contente por não ter apendicite, nem bexigas porque as bexigas pegam- se e então não a
deixavam estar aqui.
— Parece que estás contente com muitas coisas — disse a tia, quase soluçando.
Pollyanna riu baixinho.
72
— É verdade, estive todo o tempo a pensar nessas coisas enquanto olhava para o arco-
íris. Adoro o arco-—íris. Estou tão contente por Mr. Pendleton me ter dado aqueles prismas! E
também estou contente com outras coisas que ainda não disse. Eu ainda não sei bem, mas acho
que estou contente por estar ferida.
— Pollyanna!
Pollyanna riu outra vez baixinho. Dirigiu o seu olhar luminoso para a tia.
— Sabe o que é tia, desde que eu fui ferida que me tem chamado muitas vezes de
“querida” e antes não o fazia. Adoro ser chamada “querida” pelas pessoas da minha família.
Algumas das senhoras da caridade chamavam-me isso e claro que era muito agradável, mas não
tão bom como por uma pessoa da minha família como a tia. Estou tão contente por ser minha
tia!
A tia Polly não respondeu. Tinha levado a mão à garganta outra vez para conter um
soluço. Tinha os olhos marejados de lágrimas. Virou-se e saiu apressadamente do quarto pela
mesma porta por onde tinha acabado de entrar a enfermeira.
Foi nessa tarde que Nancy foi ter a correr com o velho Tom que limpava os arreios no
estábulo.
— Mr. Tom, adivinhe o que aconteceu. Não consegue adivinhar, pode ter a certeza, nem
em mil anos.
— Então nem vale a pena tentar, pois não vivo muito tempo; é melhor seres tu a dizeres-
me, Nancy.
— Então ouça: sabe quem está no hall de entrada com a senhora? Sabe?
O velho Tom abanava a cabeça.
— É John Pendleton!
— Estás a brincar rapariga.
— Que eu seja ceguinha se não é verdade! Pois ele falou à senhora com toda a
naturalidade!
— E porque não havia de falar? — perguntou o homem um pouco agressivo.
Nancy olhou-o com uma expressão trocista.
— Como se não soubesse melhor do que eu!
— O quê?
— Não precisa de se armar em inocente — respondeu ela já meio indignada.
— Que queres tu dizer com isso?
Nancy aproximou-se mais do velhote.
— Ouça, então não foi você que me levou a pensar que Miss Polly tinha tido um
namorado?
Com um gesto de indiferença o velho Tom voltou-lhe as costas e continuou a trabalhar.
— Não sei o que queres dizer com todos esses disparates.
Nancy riu-se.
— Pois eu convenci-me de que ele e Miss Polly tinham sido noivos.
—Mr. Pendleton? — disse o velho Tom endireitando-se.
— Sim. Agora já sei que não era ele. Ele esteve apaixonado sim, mas pela mãe de
Pollyanna e foi por isso que ele... mas isso não interessa. — acrescentou apressadamente,
lembrando-se a tempo que tinha prometido a Pollyanna não contar nada sobre o desejo de Mr.
Pendleton em ela ir viver com ele. — Eu perguntei a várias pessoas sobre ele e descobri que ele e
Miss Polly não se falam e que ela o detesta desde que correram rumores sobre eles quando ela
tinha dezoito ou vinte anos.
— Sim, eu lembro-me — respondeu o velho Tom. — Foi três ou quatro anos depois de
Miss Jenny o ter recusado e partido com o pastor. Miss Polly sabia do caso e tinha pena dele, por
isso tentou ser simpática. Talvez se tenha excedido um pouco, pois odiava o padre que lhe tinha
levado a irmã. Mas depois começaram a comentar, dizendo que ela andava atrás dele.
— Ela, atrás de um homem? — perguntou Nancy.
73
— É verdade parece impossível, mas foi o que disseram e realmente não faz muito
sentido. Depois, apareceu o verdadeiro namorado dela e vieram os problemas com ele. Depois,
fechou-se como uma ostra e nunca mais deu troco a ninguém. O coração dela pareceu ter se
tornado mais duro que pedra.
— Sim, eu sei. Já tinha ouvido falar disso, foi por isso que fiquei tão surpreendida quando
o vi à porta. Ele, com quem ela já não falava há tantos anos! Mas deixei-o entrar e fui anunciá-lo.
— O que disse ela? — o velho Tom conteve a respiração.
— Primeiro não disse nada. Ficou tão quieta que pensei que não tinha ouvido. Ia repetir
quando ela disse calmamente: “Diga a Mr. Pendleton que eu desço já”. Fui logo dizer-lhe e depois vim
aqui ter consigo — concluiu Nancy olhando outra vez para a casa por cima do ombro.
— Hum! — resmungou o velho Tom voltando ao trabalho.
Na circunspecta sala de visitas do solar Harrington, Mr. John Pendleton não esperou
muito até ouvir os passos silenciosos de Miss Polly. Quando se levantou, ela cumprimentou-o
com um aceno de cabeça. A sua expressão era fria e reservada.
— Vim saber de Pollyanna — começou ele de imediato com uma ligeira precipitação.
— Muito obrigada. Ela está na mesma — disse Miss Polly.
— E não me diz como ela está? — desta vez a voz dele não se manteve tão firme.
A expressão da senhora foi atravessada por um espasmo de dor.
— Não sei. Bem gostaria de saber.
— Não sabe?
— Não.
— Mas, e o médico?
— O Dr. Warren também não sabe. Está em correspondência com um especialista de
Nova Iorque. Preparam uma consulta para breve.
— Mas, que ferimentos é que ela teve?
— Um ligeiro corte na cabeça, uma ou duas esfoladelas e, o mais grave, um traumatismo
na coluna que parece ser a causa da total paralisia dos membros inferiores.
O homem soltou um grito abafado. Fez-se um breve silêncio. Logo a seguir perguntou
ansioso:
— E Pollyanna, como aceita ela isto?
— Ainda não se apercebeu bem do estado atual das coisas. E eu não posso dizer-lhe!
— Mas, ela deve saber alguma coisa!
Miss Polly levou subitamente a mão ao pescoço naquele gesto que, ultimamente, se tinha
tornado tão comum nela.
— Oh sim. Ela sabe que não se pode mexer, mas pensa que tem as pernas partidas. Diz
que está contente por ter as pernas partidas como o senhor, pois é melhor do que ficar inválida
para toda a vida como Mrs. Snow, pois as pernas partidas ficam boas enquanto que no outro
caso, não. Diz aquilo constantemente e eu não sei o que fazer!
Através das lágrimas que tinha nos próprios olhos, o homem viu a face da senhora
crispada de emoção. E, involuntariamente, os seus pensamentos recuaram à altura em que,
quando ele fez a derradeira tentativa para ela ir viver com ele, Pollyanna lhe disse: “Ah, eu nunca
poderia deixar a tia Polly agora!”
Foi este pensamento que o fez perguntar muito delicadamente logo que conseguiu
controlar a voz:
— A senhora sabe, Miss Harrington, eu fiz tudo para levar Pollyanna a ir viver comigo.
— Consigo! Pollyanna!
O homem retraiu-se um pouco perante o tom de voz dela e a sua própria voz tornou-se
de novo fria e impessoal quando voltou a falar.
— Sim. Eu queria adotá-la, legalmente, compreende. Queria torná- la minha herdeira.
A senhora, sentada na cadeira defronte dele, descontraiu-se um pouco. Pensou como essa
adoção representaria para Pollyanna um futuro brilhante e pensou se Pollyanna teria idade
74
suficiente e se seria suficientemente interesseira para se deixar tentar pela posição e pelo dinheiro
deste homem.
— Eu gosto muito, muito de Pollyanna — continuou o homem. — Gosto muito dela,
tanto por ela própria como pela mãe. Eu estava pronto a dar a Pollyanna o amor que tenho
guardado há vinte e cinco anos.
— Amor — Miss Polly lembrou-se de repente das razões porque tinha ficado com aquela
criança e lembrou-se também das palavras de Pollyanna pronunciadas nessa mesma manhã:
“Adoro ser chamada de querida pelas pessoas da minha família”!
E foi a esta menina sedenta de afeto que Pendleton tinha oferecido um amor guardado há
vinte e cinco anos e ela era suficientemente madura para se deixar tentar pelo amor! Com o
coração apertado, Miss Polly dava-se conta disto. E, ainda angustiada, compreendeu outra coisa: a
aridez e tristeza que seria o seu próprio futuro sem Pollyanna.
— E então? — perguntou ela.
O homem apercebendo-se do esforço de autocontrole que se refletia na aspereza da voz
da senhora, sorriu tristemente.
— Mas ela não quis vir — respondeu ele.
— Por quê?
— Ela não seria capaz de a deixar. Disse que a senhora tinha sido muito boa para ela. Ela
quis ficar consigo e disse que pensava que a senhora queria que ela ficasse — concluiu ele
enquanto se levantava.
Ele não olhou em direção de Miss Polly. Virou a cara resolutamente em direção à porta,
mas ouviu uns ligeiros passos ao seu lado e viu que ela lhe estendia a mão.
— Quando o especialista chegar, informo-o logo — disse ela com voz insegura. —
Adeus, muito obrigada por ter vindo. Pollyanna ficará contente.
Um jogo de espera
No dia a seguir à visita de John Pendleton, Miss Polly começou a preparar Pollyanna para
a visita do especialista.
— Pollyanna, minha querida — começou ela docemente — decidimos que um outro
médico para além do Dr. Warren devia ver-te. Um outro médico talvez nos possa dizer a maneira
de tu melhorares mais depressa.
O rosto de Pollyanna iluminou-se.
— O Dr. Chilton! Ah, tia Polly, gostava tanto que o Dr. Chilton me viesse ver! Receava
que não quisesse por ele a ter visto no outro dia no solário. Foi por isso que eu não disse nada.
Mas estou tão contente que a tia queira que ele me venha ver!
A tia Polly ficou primeiro branca, depois vermelha e depois, de novo branca.
— Não, querida! — disse ela procurando falar com naturalidade e alegria. — Eu não me
referia ao Dr. Chilton. É um médico novo, um médico muito famoso de Nova Iorque que sabe
muito de ferimentos como os que tu sofreste.
Pollyanna baixou a cara.
— Não acredito que ele saiba metade do que sabe o Dr. Chilton.
— Ah sim, ele sabe, tenho a certeza, querida.
— Mas foi o Dr. Chilton que assistiu a Mr. Pendleton quando ele partiu a perna. Se não
se importar eu gostava que o Dr. Chilton me viesse visitar!
Miss Polly ficou embaraçada. Por momentos, não disse nada, depois, respondeu
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O Dr. Meed, o especialista, chegou finalmente, uma semana depois da data inicialmente
combinada. Era um homem alto, de ombros largos, olhos cinzentos simpáticos e um sorriso
alegre. Pollyanna gostou logo dele e disse-lhe isso.
— Parece-se mesmo com o meu médico.
— Com o seu médico? — o Dr. Meed olhou surpreendido para o Dr. Warren que falava
com a enfermeira a alguns metros. O Dr. Warren era um homem pequeno de olhos castanhos e
com barbicha.
— Ah, esse não é o meu médico — sorriu Pollyanna adivinhando o que ele estava a
pensar. — O Dr. Warren é o médico da tia Polly. O meu médico é o Dr. Chilton.
— Ah! — disse o Dr. Meed com um sorriso um pouco estranho, olhando para Miss Polly
que se tinha retirado apressadamente com a face ruborizada.
— Sabe, eu quis ter comigo o Dr. Chilton durante todo o tempo, mas a tia Polly
preferiu—o a si. Ela disse que sabia mais do que o Dr. Chilton sobre pernas partidas. E se isso é
verdade, devo ficar contente com isso. É verdade?
O rosto do médico foi rapidamente atravessado por uma expressão estranha que
Pollyanna não conseguiu interpretar.
— Só o tempo o pode dizer, minha menina — disse ele com doçura. Depois virou a cara
séria para o Dr. Warren que se tinha chegado para junto da cama.
Mais tarde, todos disseram que tinha sido o gato. Com efeito, se o Fluffy não tivesse
78
empurrado a porta com o nariz, esta não teria ficado entreaberta e Pollyanna não teria ouvido as
palavras da tia.
No hall, os dois médicos, a enfermeira e Miss Polly estavam a falar de Pollyanna. No
quarto de Pollyanna, Fluffy tinha acabado de saltar para a cama ronronando e através da porta
entreaberta ouviu-se a exclamação angustiada da tia Polly.
— Isso não, Doutor! Não me diga que a menina nunca mais poderá andar!
Então, foi a grande confusão. Primeiro, do quarto, ouviu-se o grito aterrorizado de “tia
Polly, tia Polly!” A tia viu a porta aberta e compreendeu que a sobrinha tinha ouvido as suas
palavras. Deu um gemido e desmaiou pela primeira vez na sua vida.
A enfermeira exclamou alarmada: “Ela ouviu!” e correu para a porta entreaberta. Os dois
médicos ficaram com Miss Polly. O Dr. Meed amparou Miss Polly quando esta ia cair. O Dr.
Warren estava ali ao lado, sem saber o que fazer. Só quando Pollyanna gritou de novo e a
enfermeira fechou a porta é que os dois homens, olhando desesperadamente um para o outro,
compreenderam a necessidade de fazer com que a senhora acordasse de novo.
No quarto de Pollyanna, a enfermeira encontrou um gato cinzento deitado na cama a
ronronar.
— Miss Hunt, por favor, eu quero a tia Polly. Quero-a já, por favor!
A enfermeira fechou a porta e aproximou-se dela apressadamente. Estava muito pálida.
— Ela não pode vir já, querida. Ela vem daqui a pouco. O que é? Não posso saber?
Pollyanna disse que não com a cabeça.
— Quero saber o que ela acabou de dizer. Ouviu-a? Quero a tia Polly. Ela disse uma
coisa importante. Quero que ela diga que não é verdade!
A enfermeira tentou falar, mas não conseguiu. Algo visível no seu rosto fazia com que
Pollyanna ficasse ainda mais aflita.
— Miss Hunt, a senhora ouviu o que ela disse? Então é verdade! Ah não, não pode ser!
Não pode ser verdade que eu nunca mais possa voltar a andar, nem a correr!
— Não, talvez não. Talvez o médico não saiba bem e esteja enganado. Ainda pode
acontecer muita coisa.
— Mas a tia Polly disse que ele sabia! Ela disse que ele sabia mais do que qualquer outra
pessoa sobre pernas no meu estado!
— Sim, eu sei, querida, mas todos os médicos às vezes se enganam. Não pense mais nisso
por agora.
Pollyanna sacudiu-a.
— Mas, eu não posso deixar de pensar nisso. Como é que eu agora vou à escola, como
vou visitar Mr. Pendleton e Mrs. Snow, e outras pessoas? — e começou a soluçar. — Se eu não
posso andar mais, como vou conseguir ficar contente com alguma coisa?
Miss Hunt não conhecia o jogo, mas sabia que a sua doente precisava de ser acalmada
imediatamente. A enfermeira deu-lhe um calmante e disse:
— As coisas às vezes não são tão más como parecem.
— Eu sei, o pai também costumava dizer isso — disse Pollyanna chorando. — Ele dizia
que havia sempre alguma coisa pior. Não vejo nada que possa ser pior que isto. Você vê?
Miss Hunt não respondeu.
79
Duas visitas
Miss Polly, que não se tinha esquecido da promessa de informar Mr. John Pendleton logo
que tivesse informações concretas do médico, mandou Nancy avisá-lo. Antes, Nancy teria ficado
muito contente com esta oportunidade extraordinária de ir à casa misteriosa de Mr. Pendleton.
Mas hoje ela estava tão triste que não se conseguia alegrar com nada. Durante os minutos que
teve de aguardar pela chegada de Mr. John Pendleton, ela mal olhou em redor.
— Eu sou a Nancy, senhor — disse ela respeitosamente em resposta à interrogação
espelhada no olhar dele. — Miss Harrington mandou-me vir trazer-lhe informações sobre Miss
Pollyanna.
— E então?
— As notícias não são boas, Mr. Pendleton.
— Não quer dizer...
— Sim, senhor. Ela nunca mais pode voltar a andar.
Fez-se silêncio absoluto. Depois com a voz sacudida pela emoção o homem disse:
— Pobre menina! Pobre menina!
Nancy olhou para ele, mas baixou logo o olhar. Ela nunca imaginaria que aquele sujeito
antipático e sério pudesse ficar assim. Em voz baixa e pouco firme ele falou de novo:
— Mas que crueldade, nunca mais poder dançar ao sol! A minha linda menina dos
prismas!
Fez-se outra vez silêncio e depois de repente o homem perguntou:
80
Pouco depois da segunda visita de John Pendleton, apareceu Milly Snow. Milly nunca
tinha estado no solar Harrington. Estava corada e parecia muito embaraçada quando Miss Polly
entrou na sala.
— Vim saber da menina.
— É muito simpático da sua parte. Mas ela está na mesma. Como está a sua mãe? —
perguntou Miss Polly com ar cansado.
— É isso que lhe venho dizer. Vinha pedir-lhe para dizer a Miss Pollyanna que estamos
muito tristes por ela não poder voltar a andar depois de tudo o que fez por nós, pela minha mãe,
ensinando-lhe a jogar aquele jogo e tudo isso, e ficamos muito tristes ao saber que ela não
conseguia jogá-lo agora. Compreendo que agora, não consiga, nas condições em que está! Mas
quando nos lembramos de todas as coisas que nos disse, pensamos que se ela soubesse o que fez
por nós, isso podia ajudar no caso dela, com o jogo, porque ela poderia ficar contente, pelo
menos um pouco contente.
Milly parou de falar desamparada parecendo esperar que Miss Polly falasse. Miss Polly
escutava educadamente mas um pouco confusa. Só tinha compreendido metade do que a rapariga
dissera. Não conseguia perceber bem aquele discurso incoerente e sem lógica. Foi então que
disse:
— Acho que não estou a perceber bem, Milly. Que quer que eu diga à minha sobrinha?
— Queria que lhe fizesse compreender o que ela fez por nós. Queria que ela soubesse
como a minha mãe está diferente e eu também. Eu também tenho tentado jogar o jogo, um
83
pouco.
Miss Polly franziu a testa. Quis perguntar o que Milly queria dizer com isso do “jogo”,
mas não teve tempo. Milly já se preparava para ir embora.
— Sabe, antes nada estava bem para a minha mãe. Ela queria sempre coisas diferentes e
também não a podemos levar a mal, dadas às circunstâncias. Mas, agora, ela até me deixa levantar
as persianas e interessa-se pelas coisas. Interessa-se pela sua aparência, pela camisa de dormir e
tudo isso. E começou até a fazer malha para mantas de bebês, para vender nas feiras e para os
hospitais. E está tão interessada e tão contente por saber que o pode fazer! E tudo isso é
resultado da ação de Miss Pollyanna, porque ela disse à mãe que devia estar contente por ter
braços e mãos. E isso fez com que a mãe pensasse em fazer alguma coisa com os braços e com as
mãos. Assim, começou a tricotar. E nem imagina como o quarto agora está diferente, com todas
aquelas cores vermelhas, azuis e amarelas, e os prismas nas janelas que ela lhe deu. Agora, até dá
gosto entrar lá. Antes estava tão escuro e triste e a minha mãe estava sempre tão infeliz que eu até
receava lá entrar. Assim; pedia-lhe para dizer a Miss Pollyanna que estamos muito contentes por
lhe devermos esta felicidade e que pensamos que se ela soubesse como nós estamos contentes
isso a podia tornar um pouco mais contente. É tudo — disse Milly suspirando e levantando-se
apressadamente. — É capaz de lhe dizer?
— Com certeza que sim — murmurou Miss Polly pensando se conseguiria transmitir
tudo aquilo que a rapariga acabara de lhe dizer.
Estas visitas de John Pendleton e de Milly Snow foram apenas as primeiras de muitas e as
pessoas dei xavam sempre mensagens. Mensagens tão curiosas, que Miss Polly estava cada vez
mais intrigada.
Um dia apareceu a viúva Benton. Miss Polly conhecia-a bem, embora nunca se tivessem
falado. Era conhecida como sendo a mulherzinha mais triste da cidade, trajando sempre de
negro. No entanto, hoje, Mrs. Benton trazia um laço azul pálido na garganta embora se vissem
lágrimas nos olhos. Falou da sua tristeza pelo acidente e depois perguntou se podia ver Pollyanna.
Miss Polly abanou a cabeça.
— Lamento, mas ela ainda não pode ver ninguém. Talvez mais tarde.
Mrs. Benton enxugou os olhos, levantou-se e preparou-se para ir embora. Mas, quando já
estava quase na porta de saída voltou atrás apressadamente.
— Miss Harrington, talvez lhe possa transmitir uma mensagem.
— Com certeza, Mrs. Benton. Terei todo o prazer.
A mulher hesitou ainda até que disse:
— É capaz de lhe dizer, por favor, que eu pus isto — disse ela apontando para o laço
azul na garganta. Depois, perante o olhar de surpresa mal contida de Miss Polly, acrescentou: —
A menina tentou durante tanto tempo fazer com que eu usasse alguma cor que eu pensei que ela
havia de ficar contente por eu ter começado. Se disser a Pollyanna ela há de compreender. — E
saiu, fechando a porta atrás de si.
Um pouco mais tarde, veio uma outra viúva. Esta ainda vestia de preto. Miss Polly não a
conhecia. A senhora disse que se chamava Mrs. Tardell.
— Para si sou uma desconhecida — começou ela logo. — Mas não sou uma estranha
para a sua sobrinha Pollyanna. Estive no hotel durante todo o verão e todos os dias dava grandes
passeios por causa da minha saúde. Foi num desses passeios que conheci a sua sobrinha, uma
menina tão amorosa! Gostava de explicar-lhe o que ela significa para mim. Quando cá cheguei eu
era muito infeliz e a sua carinha alegre lembrava-me a minha filhinha que perdi há anos. Fiquei
tão chocada quando soube do acidente e que ela nunca mais poderia tornar a andar e por ela já
não conseguir ficar contente! Tinha que vir cá visitá-la.
— É muito simpático da sua parte — murmurou Miss Polly.
— Gostava que lhe transmitisse uma mensagem minha. É possível?
— Com certeza.
— Diga-lhe por favor que a Mrs. Tardell agora está contente. Eu sei que lhe parece
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estranho e que não compreende bem. Vai me desculpar, mas eu prefiro não explicar. A sua
sobrinha sabe o que eu quero dizer e eu senti que tinha que lhe vir dizer isto. Muito obrigado e
desculpe se houve alguma indelicadeza da minha parte. — Dizendo isto a senhora foi-se embora.
Miss Polly, completamente confundida apressou-se a subir as escadas até ao quarto de
Pollyanna.
— Pollyanna, conheces uma Mrs. Tardell?
— Ah sim, gosto muito de Mrs. Tardell. É uma pessoa doente e muito triste que está
hospedada no hotel. Além disso, faz grandes passeios. Costumávamos ir as duas passear.
— Pois olha, querida, ela acabou de vir cá visitar-te. Deixou uma mensagem para ti, mas
não quis dizer o que significava. Pediu-me para te dizer que agora está muito contente.
Pollyanna bateu as palmas.
— Ela disse isso? Oh, fico tão contente!
— Mas, Pollyanna, o que queria ela dizer com isso?
— Bom, é o jogo e... — Pollyanna calou-se logo levando os dedos aos lábios.
— Mas que jogo?
— Não tem importância, tia Polly. É que eu não posso contar a menos que fale de outras
coisas que não estou autorizada.
Miss Polly ia quase perguntar-lhe o que eram essas coisas, mas o embaraço espelhado no
rosto da menina impediu-a de continuar.
Pouco tempo depois da visita de Mrs. Tardell, a curiosidade de Miss Polly atingiu o ponto
máximo. Foi a visita de uma certa mulher ainda jovem, cheia de pó de arroz e com o cabelo
anormalmente louro. Usava saltos muito altos e muita bijuteria barata. Miss Polly conhecia muito
bem esta mulher pela reputação que tinha e ficou, por isso, desagradavelmente surpreendida ao
vê-la de visita ao solar Harrington. Miss Polly não lhe estendeu a mão. Ao entrar na sala, até se
retraiu.
A mulher levantou-se de imediato. Tinha os olhos muito vermelhos como se tivesse
estado a chorar. Com um ar de semidesafio perguntou se podia ver, por um momento, a menina
Pollyanna.
Miss Polly disse que não. Começou por dizê-lo com um ar muito sério, mas algo nos
olhos suplicantes da mulher, fizeram com que acrescentasse educadamente uma explicação,
dizendo que ninguém estava autorizado a ver Pollyanna.
A mulher hesitou, depois falou um pouco bruscamente. O queixo continuava
ligeiramente levantado como numa expressão de desafio.
— Chamo-me Mrs. Payson. Calculo que tenha ouvido falar de mim; a maioria das
pessoas de bem na cidade já ouviu e talvez muitas das coisas que tenha ouvido não sejam
verdade. Mas isso não interessa. Foi por causa da menina que eu vim. Tive conhecimento do
acidente e fiquei completamente destroçada. A semana passada soube que ela não podia voltar a
andar e bem gostava de lhe poder dar as minhas duas pernas. Ela podia fazer mais bem com elas
numa hora do que eu em cem anos. Mas isso não interessa.
Fez uma pausa e tentou aclarar a voz, mas quando voltou a falar a voz continuava
constrangida.
— Talvez não saiba, mas dei-me bastante com a sua menina. Vivemos na estrada de
Pendleton Hill e ela costumava passar lá muitas vezes. Entrava e brincava com os meus filhos e
conversava comigo e com o meu marido, quando ele estava em casa. Parecia gostar de nós. Claro
que não sabia que as outras pessoas normalmente não conversavam com gente como nós. Talvez
se falassem mais, Miss Harrington, não houvesse tantos como nós — acrescentou ela com
amargura. — Seja como for, vinha muitas vezes e fez-nos muito bem. Este ano tivemos muitas
dificuldades. Estávamos tristes e desanimados, tanto eu como o meu homem. Estávamos prontos
para tudo. Estávamos a pensar separar-nos e deixar as crianças. Depois aconteceu o acidente e
soubemos que a sua menina nunca mais podia andar. Começamos então a pensar como ela
costumava chegar e sentar-se à nossa porta, brincar com as crianças, rir e ficar contente. Ela
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estava sempre a ficar contente com alguma coisa e um dia explicou-me o jogo e tentou
convencer-me a jogá-lo. Ouvimos agora dizer que ela está muito triste porque não consegue jogá-
lo mais, pois não tem nada que lhe dê contentamento. É por isso que eu vim cá hoje; assim talvez
ela fique um pouco contente por nossa causa, pois decidimos manter-nos juntos e jogar o jogo.
Eu sei que há de ficar contente porque ela costumava sentir-se triste com as coisas que às vezes
dizíamos. Como o jogo nos vai ajudar, ainda não sei bem, mas talvez ajude. De qualquer forma,
vamos tentar. É capaz de lhe dizer?
— Sim, eu digo-lhe — prometeu Miss Polly um pouco abatida. Depois num súbito
impulso, avançou e estendeu a mão à mulher. — Muito obrigada por ter vindo, Mrs. Payson —
disse ela com simplicidade.
O queixo erguido em ar de desafio descaiu. Os lábios da mulher tremeram visivelmente.
Murmurou alguma coisa incoerentemente. Mrs. Payson apertou a mão estendida, e foi-se embora.
Mal a porta se fechou, Miss Polly foi ter com Nancy à cozinha.
— Nancy!
Miss Polly falava com decisão. Aquela série de visitas desconcertantes e confusas nos
últimos dias, que tinham culminado com esta última experiência da tarde, tinham-lhe posto os
nervos em franja. Desde o acidente de Pollyanna que Nancy não ouvia a patroa falar com tanta
seriedade.
— Nancy, és capaz de me dizer de que se trata este “jogo” absurdo de que toda a cidade
fala? E dizes-me, por favor, o que tem a minha sobrinha a ver com isso? Por que é que toda a
gente, desde Milly Snow a Mrs. Tom Payson, pedem para eu lhe dizer que estão a “jogá-lo”?
Tanto quanto me parece, metade da cidade está a usar lacinhos azuis, a deixar de discutir ou a
aprender a gostar de qualquer coisa de que nunca gostaram antes. E tudo por causa de Pollyanna.
Tentei perguntar à menina, mas parece que não consigo grande coisa e não quero incomodá-la
agora. Mas, pelo que ouvi ela dizer-te na noite passada, creio que também és uma dessas pessoas.
Agora quero que me contes o que significa tudo isto.
Para surpresa de Miss Polly, Nancy desatou a chorar.
— Isso significa que desde junho passado essa querida menina tem feito tudo para que
toda a cidade fique contente e agora toda a gente está a tentar retribuir fazendo com que ela
também fique contente.
— Contente com o quê?
— Contente, só contente; o jogo é esse.
Miss Polly já batia o pé.
— Continuo a não perceber, Nancy. Que jogo?
Nancy ergueu o queixo. Enfrentou a patroa e olhou-a diretamente nos olhos.
— Eu vou contar-lhe, senhora. É um jogo que o pai de Miss Pollyanna lhe ensinou a
jogar. Ela recebeu um par de muletas uma vez numa coleta quando queria uma boneca e chorou
muito como qualquer criança faria. Parece que foi então que o pai lhe ensinou que havia sempre
alguma coisa com que nos alegrar e que ela devia ficar contente por ter recebido aquelas muletas.
— Contente por causa das muletas?! — exclamou Miss Polly chocada ao pensar nas
perninhas paralisadas da menina.
— Sim, senhora. Foi isso que eu disse e Miss Pollyanna disse que também ela o dissera,
na altura. Mas, ele explicou-lhe como ela podia ficar contente: devia ficar contente por não
precisar das muletas.
— Oh! — gritou Miss Polly.
— E depois disso fez daquilo um jogo constante, descobrindo sempre alguma coisa para
estar contente. Dizia que também o sabia jogar e que não se importava muito por não ter
recebido a boneca porque estava muito contente por não precisar das muletas. Chamavam-lhe o
“jogo do contentamento”. É esse o jogo senhora, e ela tem-no jogado sempre, desde então.
— Mas, como... como... — gaguejou Miss Polly.
— Não imagina como o jogo funciona bem, senhora — reafirmou Nancy quase com a
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convicção de Pollyanna. — Não imagina como ela me tem feito bem, à minha mãe e à minha
família. Lá em casa. Ela já lá foi visitá-los por duas vezes, comigo. A mim também me tem dado
muito contentamento, por causa de muitas coisas. Tudo se torna mais fácil. Por exemplo, eu já
não me importo de me chamar “Nancy” porque ela me explicou que eu devia estar contente por
não me chamar “Hephzibah”. E há também as segundas-feiras de manhã que eu costumava
detestar tanto. Ela conseguiu que eu ficasse contente por ser segunda-feira de manhã.
— Contente, às segundas-feiras de manhã?
Nancy riu.
— Eu sei que parece estranho, senhora. Mas deixe-me explicar-lhe. A menina disse-me
que eu devia estar contente por ser segunda-feira de manhã, mais do que qualquer outro dia da
semana, porque assim faltava uma semana inteira antes de ter outra! E ajudou-me muito senhora.
Pelo menos farto-me de rir cada vez que penso nisso!
— Mas porque é que ela não me ensinou a mim o jogo? — perguntou Miss Polly. —
Porque faz ela tanto mistério cada vez que eu lhe pergunto?
Nancy hesitou.
— Desculpe senhora, mas a senhora disse-lhe para ela não falar do pai e assim ela não
podia contar-lhe. Era um jogo do pai, está a ver...
Miss Polly mordeu o lábio.
— Ela quis lhe explicar o jogo, ao princípio — continuou Nancy insegura. — Ela queria
que toda a gente o jogasse com ela. Foi por isso que eu comecei a jogá-lo.
— E os outros todos?
— Agora toda a gente o conhece. Por aquilo que eu ouço, onde quer que vá. Ela contou a
muita gente e os outros contaram a outras pessoas. Além disso, ela estava sempre a sorrir e era
tão simpática para todos que eles não podiam deixar de se interessar. Agora que ela está doente e
toda a gente se sente triste, especialmente ao saberem como ela se sente mal por não conseguir
descobrir maneira de ficar contente. E assim, vêm todos os dias para lhe dizer como ela lhes
trouxe contentamento, esperando que isso a possa ajudar. É que ela sempre quis que toda a gente
jogasse o jogo com ela.
— Pois bem, eu sei de mais alguém que vai passar a jogá-lo também agora — disse Miss
Polly enquanto se virava para sair da cozinha. Atrás dela, Nancy ficou embasbacada.
— Agora sou capaz de acreditar seja no que for — murmurou para si própria.
Um pouco depois, no quarto de Pollyanna, a enfermeira deixou Miss Polly e Pollyanna
sozinhas.
— Hoje tiveste mais uma visita, minha querida — anunciou Miss Polly com uma voz que
tentava, em vão, manter firme. — Lembras- te de Mrs. Payson?
— Mrs. Payson? Sim, Lembro-me muito bem! Ela vive no caminho para a casa de Mr.
Pendleton e tem a bebê mais bonita que eu já vi e também um rapazinho com quase cinco anos.
Ela e o marido são muito simpáticos, mas parece que não conseguem ser simpáticos um para o
outro. Discutem muito. São pobres e passam dificuldades. Mas apesar de serem tão pobres ela
veste roupas muito bonitas às vezes e tem anéis muito lindos, mas diz que tem um anel a mais e
que o vai deitar fora e pedir o divórcio. O que é o divórcio, tia Polly? Receio que não seja muito
bom porque se obtivesse o divórcio não viveria ali mais e que Mr. Payson se iria embora e se
calhar levava também os filhos.
— Afinal já não se vão separar — apressou-se a tia Polly a dizer. — Vão manter-se
juntos.
— Ah, fico tão contente! Então eles hão de ficar ali para eu os poder ver quando me
puder levantar! Ah, tia Polly, esqueço-me que as minhas pernas já não podem andar mais e que
nunca mais me pderei levantar para ir ver Mr. Pendleton.
— Talvez te possas vir a levantar. Mas ouve lá. Ainda não te contei tudo o que Mrs.
Payson disse. Ela pediu-me para te dizer que eles vão continuar juntos e vão jogar o tal jogo
como tu lhes ensinaste.
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Entretanto, chegaram os curtos dias de inverno. Mas, para Pollyanna, não eram curtos.
Eram longos e por vezes cheios de dor. No entanto, Pollyanna procurava estar contente. Agora
que a tia Polly estava a jogar o jogo, ela tinha também que o jogar.
Agora, Pollyanna, tal como Mrs. Snow, tricotava lindas malhas em cores vivas e isso era
motivo para que ela, tal como Mrs. Snow, ficasse muito contente por ainda ter braços e mãos.
De vez em quando, Pollyanna já podia receber visitas e traziam-lhe sempre coisas novas
em que ela pudesse pensar.
John Pendleton já a tinha visitado uma vez e Jimmy Bean também lá tinha estado por
duas vezes. John Pendleton tinha lhe contado como Jimmy se estava a portar bem e como ele
próprio se sentia bem na companhia do miúdo. Jimmy contou-lhe o belo lar que agora tinha e
como Mr. Pendleton fazia uma boa família. Ambos manifestaram a Pollyanna a sua gratidão.
Pollyanna confiou então à tia:
— Isto faz com que eu me sinta ainda mais contente por ter tido as minhas pernas.
O inverno passou e chegou a primavera. Apesar do tratamento, Pollyanna pouco
melhorou. Parecia que as previsões mais pessimistas do Dr. Meed se estavam a se realizar e que
Pollyanna nunca mais poderia voltar a andar.
Toda a cidade procurava manter-se informada sobre Pollyanna e uma pessoa em especial
estava excepcionalmente impaciente. Foi assim que Mr. John Pendleton recebeu num domingo a
visita do Dr. Thomas Chilton.
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— Pendleton, vim aqui visitá-lo porque você melhor do que qualquer outra pessoa da
cidade tem conhecimento das minhas relações com Miss Polly Harrington.
John Pendleton manifestou uma expressão de surpresa, pois apesar de saber alguma coisa
sobre a relação em tempos existente entre Polly Harrington e Thomas Chilton, há quinze anos
que o assunto não era referido entre eles.
— Sim — disse ele tentando fazer com que a sua voz manifestasse simpatia e não
curiosidade.
— Pendleton, eu quero ver aquela criança. Quero examiná-la, tenho que examiná-la.
— Então e por que não há de examiná-la?
— Não posso! Sabe muito bem que eu não entro naquela casa há mais de quinze anos. A
dona daquela casa disse-me que a próxima vez que me pedisse para entrar eu deveria interpretar
isso como se me estivesse a pedir desculpa e que seria tudo como dantes, o que significava que
casava comigo. Assim, não imagina que ela me possa chamar, pois não?
— Mas podia lá ir sem ser convidado?
O médico franziu a testa.
— Isso é difícil, tenho algum orgulho.
— Mas se está tão ansioso, não pode engolir o seu orgulho e esquecer a discussão.
— Esquecer a discussão! — interrompeu o médico violentamente. — Não estou a falar
desse tipo de orgulho. No que se refere a isso eu era capaz até de lá ir de joelhos. Trata-se do meu
orgulho profissional. É um caso de doença e eu sou médico. Não posso chegar lá e dizer “aqui
estou eu, aceitem-me como vosso médico”.
— Chilton, qual foi a discussão? — perguntou Pendleton.
O médico fez um gesto de impaciência.
— A discussão? Foi uma discussão de namorados um disparate qualquer sobre o
tamanho de uma sala ou a profundidade de um rio; sem qualquer significado se compararmos
com os anos de infelicidade que se seguiram! A discussão não teve qualquer importância! No que
me diz respeito, estou disposto a esquecê-la completamente. Pendleton, tenho que ver aquela
criança! É um caso de vida ou de morte. Acredito honestamente que Pollyanna tem nove
hipóteses em dez de voltar a andar de novo!
O médico pronunciou estas palavras bem alto e com muita clareza. Foi assim que Jimmy
Bean que ia a passar do lado de fora da janela ouviu o que ele disse.
— Andar! Pollyanna! — dizia John Pendleton. — Que quer dizer com isso?
— Significa que, tanto quanto eu sei daquilo que me dizem, o caso dela é muito
semelhante ao que um colega meu curou. Há anos que ele se especializou nesta área. Tenho me
mantido em contacto com ele e estudei também a questão. E daquilo que tenho ouvido... mas
preciso de ver a menina!
John Pendleton endireitou-se na cadeira.
— Você tem que a ver, homem! Não pode ir através do Dr. Warren?
O outro abanou a cabeça.
— Receio que não. Warren tem sido muito decente. Ele disse-me que tinha sugerido a
Miss Harrington uma consulta comigo mas que ela tinha recusado e ele não se atreve a pedir-lhe
outra vez, mesmo sabendo do meu desejo em ver a criança. Ultimamente, alguns dos seus
melhores doentes passaram para mim e isso ainda me constrange mais. Mas tenho que ver aquela
criança! Imagine o que isso poderá significar para ela!
— Temos que fazer com que ela lhe peça para lá ir! — disse Pendleton.
— Como?
— Não sei.
— Você não sabe, nem ninguém sabe. Ela é demasiado orgulhosa e está demasiado
zangada comigo para mo pedir. Depois do que disse, há anos, isso teria também outro
significado. Mas quando penso naquela criança condenada a ficar paralítica para toda a vida, que
nas minhas mãos tenho uma hipótese de cura e que só não posso agir por uma questão de
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— Bom, eu vou começar por dizer que o Dr. Chilton veio visitar Mr. Pendleton e que
eles estavam a conversar na biblioteca. Compreende isso?
— Sim, Jimmy — a voz de Miss Polly soou um pouco sumida.
— Bem, a janela estava aberta e eu estava a arranjar um canteiro quando os ouvi
conversar.
— Oh, Jimmy! A escutar?
— Eu não tive culpa, não estava a escutar de propósito. Mas ainda bem que ouvi e há de
compreender quando eu lhe explicar. Há de perceber porque é que isso pode fazer com que
Pollyanna volte a andar!
— Jimmy, o que quer isso dizer? — Miss Polly inclinava- se ansiosamente para a frente.
— É isso que eu lhe estou a tentar dizer. O Dr. Chilton conhece um médico que talvez
possa curar Pollyanna e fazer com que ela volte a andar, mas não pode ter a certeza sem a ver
primeiro e está ansioso por vê-la. Mas disse a Mr. Pendleton que a senhora não o deixava entrar.
Miss Polly ficou muito corada.
— Mas Jimmy, eu não posso! Isto é, eu não sabia! — Miss Polly torcia os dedos
nervosamente.
— Sim, é por isso que eu venho aqui dizer-lhe para que saiba — afirmou Jimmy ansioso.
— Eles dizem, que por uma certa razão que eu não compreendi bem, a senhora não deixava o
Dr. Chilton entrar aqui em casa e que tinha dito isso ao Dr. Warren. E que o Dr. Chilton não
podia vir cá por iniciativa própria sem a senhora lho pedir, por causa do seu orgulho profissional.
E eles estavam a pensar em alguém que lhe pudesse explicar, mas não sabiam como. E eu estava
do lado de fora da janela e pensei para comigo: “Pois então, vou eu! Vou explicar à senhora”. A
senhora percebeu?
— Sim. Mas Jimmy, esse médico, quem é ele? O que já fez ele? Eles têm a certeza de que
podem fazer com que Pollyanna volte a andar?
— Eu não sei quem ele é. Não disseram. O Dr. Chilton conhece-o e ele já curou uma
outra pessoa como a Pollyanna. Mas não era com esse médico que eles estavam preocupados. Era
com a senhora que eles estavam preocupados, porque não deixa o Dr. Chilton visitá-la. Diga-me,
a senhora deixa-o vir ver a Pollyanna, não deixa? Agora que compreendeu tudo?
Miss Polly virava a cabeça de um lado para o outro. Estava um pouco ofegante e pareceu-
lhe que ela estava quase a chorar. Mas não chegou a chorar. Passado um minuto disse quase a
gaguejar:
— Sim. eu deixo o Dr. Chilton. Vê-la. Agora vai a correr para casa, Jimmy! Tenho que
falar com o Dr. Warren. Ele está lá em cima.
Um pouco depois o Dr. Warren ficou surpreendido ao encontrar Miss Polly muito
agitada e corada no hall. Ficou ainda mais surpreendido ao ouvir a senhora dizer um pouco
atrapalhada:
— Dr. Warren, em tempos pediu-me para autorizar que o Dr. Chilton viesse ver
Pollyanna e eu recusei. Entretanto, reconsiderei. Estava muito interessada em que o senhor
convocasse o Dr. Chilton. É capaz de lho ir pedir imediatamente, por favor? Muito obrigada.
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Um novo tio
Da próxima vez que o Dr. Warren entrou no quarto, enquanto Pollyanna estava deitada
observando os reflexos do arco-íris no teto, um homem alto e de ombros largos seguia
imediatamente atrás dele.
— Dr. Chilton! Oh, Dr. Chilton, que contente eu estou por o ver! — gritou Pollyanna.
Naquele quarto, ao ouvir este grito de alegria, mais de um par de olhos ficaram inundados de
lágrimas. — Mas claro, se a tia Polly não quer...
— Está tudo bem minha querida, não faz mal — atalhou logo Miss Polly agitada,
aproximando-se da cama. — Eu disse ao Dr. Chilton que queria que ele te observasse com o Dr.
Warren, esta manhã.
— Ah, pediu-lhe então a ele para vir — murmurou Pollyanna cheia de contentamento.
— Sim querida, eu pedi-lhe. Isto é... — mas já era tarde de mais.
A alegria que tinha de repente enchido os olhos do Dr. Chilton era inequívoca e Miss
Polly tinha percebido. Muito corada virou-se e deixou apressadamente o quarto. Junto à janela, a
enfermeira e o Dr. Warren falavam muito sérios. O Dr. Chilton estendeu as duas mãos a
Pollyanna.
— Minha menina, acho que uma das coisas que podem dar mais contentamento a alguém
foi o que fizeste hoje — disse ele com a voz trêmula de emoção.
Ao crepúsculo, uma tia Polly maravilhosamente diferente, chegou-se para junto de
Pollyanna. A enfermeira estava a jantar. As duas estavam sozinhas no quarto.
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— Pollyanna, minha querida, vais ser a primeira pessoa a saber. Um dia, vais ter o Dr.
Chilton como tio. E foste tu que conseguiste isso tudo. Oh, Pollyanna, estou tão contente! Estou
tão contente, minha querida!
Pollyanna começou a bater as palmas, mas parou.
— Tia Polly, era a senhora que ele queria há tantos anos? Tenho a certeza que sim! E era
isso que ele queria dizer quando disse que eu, hoje, tinha conseguido dar o maior contentamento
da minha vida. Estou tão contente! Estou tão contente que agora já nem me importo com as
minhas pernas!
A tia Polly conteve um soluço de choro.
— Talvez, algum dia, querida...
Mas a tia Polly não concluiu. Não se atreveu, ainda, a contar as grandes esperanças que o
Dr. Chilton lhe tinha transmitido. Mas disse o seguinte que soou maravilhosamente aos ouvidos
de Pollyanna:
— Pollyanna, para a semana vais fazer uma viagem. Vamos transportar-te
confortavelmente até um grande médico que tem uma grande clínica a muitos quilômetros daqui
e que se dedica especialmente a pessoas com a tua doença. É um grande amigo do Dr. Chilton e
vamos ver o que ele pode fazer por ti!
Já consigo andar! Hoje caminhei desde a cama até à janela. Foram seis passos. Como é
bom estar outra vez de pé! Os médicos e enfermeiras estavam todos ali a assistir. Uma senhora da
enfermaria ao lado, que andou pela primeira vez há uma semana, espreitava também à porta e
outra que tem esperanças de poder voltar a andar para o mês que vem, foi convidada para a festa.
Até Tilly, a mulher da limpeza olhava através da janela e dizia: “Linda menina!” quando
conseguia deixar de chorar. Não percebo porque é que eles choravam. Eu só me apetecia cantar e
gritar! Imaginem só, posso andar, posso andar!
Não dou por mal empregue os dez meses que aqui passei e também não perdi o vosso
casamento. A tia Polly foi muito querida em vir casar-se mesmo ao lado da minha cama para eu
poder assistir. A tia lembra-se sempre das coisas que me dão maior contentamento.
Eles dizem que em breve poderei ir para casa. Quem me dera poder ir a andar até aí:
Tenho a impressão de que nunca mais quero andar de carro. Vai ser tão bom andar. Estou tão
contente! Estou tão contente por tudo. Agora até estou contente por durante um tempo não ter tido
as minhas pernas, pois só agora lhes dou o verdadeiro valor. Amanhã vou andar oito passos.
Muitos, muitos beijos
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Pollyana.
FIM
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de
facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a
oportunidade de conhecerem novas obras.
Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer
recebê-lo em nosso grupo.