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Vistodo alto

Umbesouromorto num caminho campestre.


Trêspares de perninhas dobradas sobre o ventre.
Aoinvésda desordem da morte — ordem e limpeza.
O horror da cena é moderado,
o âmbitoestritamente local, da tiririca à tnenta.
A tristeza não se transmite.
O céu está azul.

Para no«so so«ego, os anitnais não falecem,


morrem de uma morte por assitn dizer mais rasa,
perdendo — queremos crer ---— menos sentimento e mundo,
partindo a—-assim nos parccc — de uma cena menos trágica.
Suas alminhas dóceis não nos assombram à noite,
mantêm distância,
conhecem as boas maneiras.

E assirn esse besouro Inorto no caminho,


não pranteado, brilha ao sol.
Basta pensar nele a duração de um olhar:
parece que nada de importante lhe aconteceu.
O importante supostamente tem a ver conosco.
Com a nossa vida somente, só com nossa morte,
uma morte que goza de forçadaprecedência.

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jogos escolares

desdeas nove da manhã


o time amarelo enfrenta o time vermelho.
no teu tempo isso era educação física,
podia scr também recreio.
o telefone ainda não tocou,
tudo na mesma, nenhum e-mail.
a gritaria pela janela da cozinha
informa a vitória do time amarelo.
depois a casa se enche de silêncio.
e você sente pena do time vermelho,
mas é só mais tarde, depois do almoço,
que se compadece também do amarelo.
pena. éramos uma boa invenção

Elesamputaram
as tuas coxas dos meus quadris.
Para mim eles são sempre
médicos. Todos.
Eles nos separaram,
um do outro. Para mim eles são engenheiros.
Pena. Éramos uma boa invenção
de amar: um avião feito de homem e mulher,
asas e tudo:
nós nos elevamos um pouco do chão,
voamos um pouco.
Fotografia do meu pai aos 22 anos

Outubro. Aqui nesta cozinha abafada e estranha,


estudo o rosto jovem e constrangido do meu pai.
Rindo sem jeito, ele segura numa das mãos uma fieira
de percas amarelas espinhentas, na outra
uma garrafa de cerveja Carlsbad.

Vestindojeans e camiseta branca, apoia-se


no para-lama dianteiro de um Ford 1934.
Ele gostaria de posar confiante e enérgico para a posteridade,
com seu velho chapéu caído sobre a orelha.
A vida toda meu pai quis ser valente.

Mas os olhos o entregam, e as mãos,


que exibem hesitantes a fieira de peixes mortos
e a garrafa de cerveja. Pai, eu te amo, mas
como posso dizer obrigado, eu que também não sei
[controlar a bebida,
e nem sequer conheço os lugares bons para pescar?

25
O arranhão

Acordei com uma mancha de sangue


sobre meu olho. Um arranhão
bem no meio da minha testa.
Mas tenho dormido sozinho esses dias.
Por que diabos um homem ergueria a mão
contra si mesmo, ainda que dormindo?
E para perguntas desse tipo
que busco respostas nesta manhã.
Enquanto estudo meu rosto no vidro.

123
senhor,a alma que tu me deste

Senhor,a alma que Tu me deste


é fumaça
do perene incêndio das memórias do amor,
chegamosao mundo e já começamos a queimar
e é assim até que a fumaça como fumaça se esfume.
abelhas

se este país
nos trata
mal
é porque

não adianta
nunca se viu
uma abelha
aposentada

mesmo a rainha
é mutilada
levadapara longe
pelas operárias

20
Arapucas

Seguimos alegres e tristes


cheios de pensamentos
até o topo da cabeça

fechados de medo
próximos do mar
mas nunca o bastante

observando as coisas
afastarem-se de nós
como aves no inverno

chamando os peixes e as plantas


pelos nomes
que não têm

armando arapucas
onde os pássaros
caem cantando

36
Cinema

Encontramos na rua
uma fileira de cadeiras
de um velho cinema
levamos para casa
colocamosna varanda
passamostoda a tarde
bebendo e fumando
assistindo passar
um dia qualquer

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