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Fé para enfrentar a vida e os nossos temporais

Por Iranildo Eloi


17/03/20
Dois textos como referencia para nortear nossa reflexão:

 Marcos 4: 35-41 (NVI)


 Mateus 14:22-32 (NVI)

Introdução:
Ambos os textos que escolhi como referenciais a fim de nortear nossa reflexão, descrevem duas
narrativas distintas, uma pintada por Mateus e outra por Marcos. Até então, Jesus é apresentado
operando milagres de cura física. Agora o mostram agindo na natureza. Aqui ele exerce seu poder
manipulando as leis da natureza ao acalmar tempestades.

Na literatura bíblica tempestades, temporais, tormentas são frequentemente mencionados sempre em


tom negativo e ameaçador:

 No livro de Jonas, uma impetuosa tempestade açoitou violentamente o barco levando os tripulantes
ao desespero – Jn. 1.4,5
 O capítulo 27 de Atos do Apóstolos descreve um cenário semelhante : o navio em que estava Paulo e
os demais tripulantes (presos) foi violentamente atingido por um vento contrário chamado
Euroaquilão, vento Sul que levou-os ao naufrágio – At. 27.17
 Os evangelhos registram dois episódios em que os discípulos são acoitados por tempestades –
Mateus 14.22-32, e Marcos 4.35-41

Três personagens centrais compõem o cenário narrativo de ambos os textos: Jesus, os discípulos, e uma
enorme tormenta.

Eis um convite

Um convite para um olhar para além da simples narrativa informativa, descritiva, climática. Um convite
para olharmos para essas duas tempestades como metáforas – metáforas para as nossas adversidades,
contratempos, intempéries, percalços, reveses.

Tempestade como uma metáfora para a dura realidade que nosso país, o mundo está passando.

O que há de comum nas tempestades da Bíblia e em nossas tempestades?

Elas são surpreendentes. Inesperadas. Elas não mandam avisos. Tudo é calmaria. Derrepente, a
tempestade nos surpreende. Um diagnóstico fatal. Uma crise conjugal. Uma notícia terrível. Quando
menos se imagina, a tempestade chega e nosso mundo desaba.

Elas são impetuosas. Marcos escreve que se levantou “um grande temporal de vento, e as ondas se
lançavam sobre o barco, de forma que esse ia se enchendo de água” (Mc. 4.37). A edição Paulinas,
tradução de Pedro Carlos Cipollini, traduz: “arremetia o barco”. A idéia é de uma ação violenta.

Elas são inadministráveis. Elas fogem à nossa capacidade de administrar, pois são maiores que nossas
forças. Os discípulos empreenderam todos os recursos, todos os meios possíveis, mas sem êxito. Há
revezes, adversidades que nos deixa com um amargo sentimento de impotência, de inabilidade, de
incapacidade de resolver, de decidir, de admisnitrar.

Os temporais revelam nossa impotência, fragigilidade

Elas são inevitáveis. Quer gostemos ou não. Quer nos preparemos para elas ou não. Quer creiamos nelas
ou não. Cedo ou mais tarde os temporais chegam. Inevitavelmente

Transição:

Já que os temporais são inevitáveis, o que é preciso para enfrentar a vida e os temporais quando eles
chegarem com ímpeto sobre nós?

O que fazer quando nosso mundo desaba?

Quando todas as saídas jazerem fechadas?

Quando todas as possibilidades se esgotarem?

Quando a vida doer?

Quando o amar da existência se encapelar raivosamente?

Quando o mal parecer ter vencido?

Quando a oração não fizer sentido algum

Quando Deus parecer distante, escondido ( o deus absconditus de Lutero)?

Quando estivermos na encruzilhada entre o desespero e o suicido (Woody Alen)?

Quando tudo falhar?

Logo lembrei do poema José do Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1942

E agora, José?
             A festa acabou,
             a luz apagou,
             o povo sumiu,
             a noite esfriou,
             e agora, José?
             e agora, você?
            você que faz versos,
             que ama, protesta?
             e agora, José?

[...]a noite esfriou,


O dia não veio,
O bonde não não veio,
O riso não veio,
Não veio a utopia,
E tudo acabou
E tudo fugiu
E tudo mofou,
E agora, José?
Com a chave na mão
Quer abrir a porta
Não existe porta;
Quer morrer no mar,
Mas o mar secou
Quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

O José do poema Drummond é pseudônimo de todos nós. Em algum momento da vida nos tornamos o
personagem desse poema. Para todos nós um dia a festa acaba, a luz apaga, o povo some, a noite esfria,
e vida grita “e agora José? E agora, Iranildo? E agora, Moisés? E agora, Antonio? E agora, Maria? E
agora?... e agora, José? E agora China, EUA, Espanha, Itália?

O que fazer José (substitua o nome José pelo seu) quando a tempestade chegar?

Algumas idéias a partir dos nossos textos

1. É preciso lembrar que não somos excepcionais


Marcos 4.36 (NVI): “Deixando a multidão, eles o levaram no barco, assim como estava. Outros barcos
também o acompanhavam”

Achei preciosa essa informação de Marcos: “outros barcos também o acompanhavam”. Nas mesmas
águas que navegavam o barco dos discípulos de Jesus, navegam outros barcos também. O mesmo
temporal que atingiu os demais barcos atingiu o barco dos discípulos.
Quem eram os tripulantes desses outros barcos? Não sabemos. Mas não eram discípulos. Não faziam
parte do colégio discipular de Jesus.

Quando a tempestade chegou atingiu todos os barcos. No mesmo mar navega o barco do santo e do
pecador, do que crer e do que não crer. E ambos os barcos são fustigados com impetuosidade pela fúria
das adversidades.

Portanto, baixe a bola. Você e eu não somos excepcionais. Não existem privilégios que nos isentem das
adversidades, dos temporais e das lutas do viver humano.

Nas tempestades, lembre que você não é o único que sofre. Há “outros barcos” também que estão sendo
acoitados como o seu. Tendemos olhar para as nossas crises mais agudas de forma agocentrica. Porque
sofremos? Sofremos porque não existem excepcionalidades.

Nos últimos dias frente à realidade da epidemia que tem assolado o mundo, tenho lido postagens de
crentes que pensam que são excepcionais, e por isso pensam estarem imunes à contaminação de vírus
(Coronavirus). Citam e invocam o Salmo 91.10 como mantra de proteção:

“Nenhum mal te sucederá. Nenhuma praga chegará a tua tenda”

Duas possibilidades: Ou Deus mentiu, ou nós estamos fazendo uma leitura equivocada, uma
hermenêutica meia-boca. Como Deus não mente, estamos lendo mau o texto.
É o que diz Salomão no Eclesiastes 9:2:

“Todos partilham um destino comum: o justo e o ímpio, o bom e o mau, o puro e o impuro, o que
oferece sacrifícios e o que não os oferece. O que acontece com o homem bom, acontece com o
pecador; o que acontece com quem faz juramentos, acontece com quem teme fazê-los”.

Foi o que disse Jesus em Mateus 5:45:

“Pois ele faz raiar o sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos”

Precisamos entender isso porque muitas vezes achamos que se formos fiéis a Deus, temos um seguro
com cobertura total contra as intempéries da vida.

Precisamos acabar com a idéia de um deus discriminatório, provinciano, paroquial; um deus da patota,
do meu partido, da minha turma, do meu barco, mas que permite os demais barcos naufragarem. Um
Deus discriminatório, parcial.

O jornais noticiaram recentemente: Príncipe Charles testou positivo para COVID 19.

Não creio num deus pinça alguns para premiar com milagres pontuais, mas deixa o restante a ver navios.
Não faz sentido a lógica dos bingos e das loterias nos espaços religiosos – onde, para cada um sortudo,
sobram milhões de azarados.

Os ventos contrários, a adversidade mais cruel não faz acepção e não tem privilegiados – a parábola dos
dois fundamentos

Mateus 7:24-27(NVI):
24
"Portanto, quem ouve estas minhas palavras e as pratica é como um homem prudente que
construiu a sua casa sobre a rocha.
25
Caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela não
caiu, porque tinha seus alicerces na rocha.
26
Mas quem ouve estas minhas palavras e não as pratica é como um insensato que construiu a sua
casa sobre a areia.
27
Caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela caiu.
E foi grande a sua queda".

Sobre ambas as casa sopraram os ventos. Sem distinção. A diferença entre uma e outro não foram os
ventos, mas os alicerces sobre os quais foram construídas. A questão chave tem a ver com o modo como
encaramos as tempestades. Se com dignidade, ou com indignidade

Transição:
O que fazer quando a vida se impuser, inclemente; quando os temporais chegarem com fúria sobre a vida
e o viver?

2. Não perverta, distorça a imagem de quem Deus é


Mateus 14.26: “Quando o viram andando sobre o mar, ficaram aterrorizados e disseram: ‘É um
fantasma!’ E gritaram de medo”
Note que a tempestade atingiu-os tão radicalmente, a ponto de transformar Jesus num fantasma. Um ser
fantasmagórico que infunde terror e medo. Percepção distorcida. Imagem pervertida. Um Deus
irreconhecível.

“Aterrorizados”
“Gritaram de medo”

Os teólogos pós-guerra diziam que depois do Holocausto Nazista, dos fornos de cremação de Auschwitz,
não era mais possível pensar em Deus como pensava o judaísmo anterior as duas grandes guerras
mundiais. “Como que um Deus bom e poderoso pode permitir tamanha crueldade?” Deus então, foi
convertido num deus do medo, do terror, da angustia, do vazio. Um deus caricaturado.

Um deus fantasma que infunde terror em suas criaturas amedrontadas. Um deus punitivo, iracundo,
vingativo, ameaçador.

Os temporais têm o poder de perverter nossa visão de quem Deus é. A tragédia é capaz de converter o a
imagem do Deus de amor num fantasma que amedronta, que infunde terror.

Quando as tempestades chegarem, o dia mau se impuser com força sobre sua vida, fique com a
revelação bíblica de Deus é bom

A poética hebraica dos Salmos nos lembra essa verdade inspiradora:

Salmos 34.8:
“Provem, e vejam que o Senhor é bom. Como é feliz o homem que nele se refugia”

Salmos 100.5:
“Pois o Senhor é bom e o seu amor leal é eterno; a sua fidelidade permanece por todas as
gerações”

Salmos 145.9:
“O Senhor é bom para todos; sua compaixão alcança todas as suas criaturas”

Precisamos guardar isso – Deus é bom. De Deus não vem coisas ruins. Tudo de bom que existe no
universo veio das mãos de Deus. Esse deve ser o sinalizador de minhas expectações quando eu tiver
passando por tribulação. Quando eu tiver passando por lutas, tenho que ter esse alicerce em baixo,
sustentando minha vida pra eu suportar as lutas - Deus é bom. Não importa o que está me acontecendo –
Deus é bom. Não importa quais sejam as circunstancias ao meu redor – Deus é bom. Não importa como
estão as marés, não importa o quanto devastador estão sendo os temporais, não importa quão aguda
está sendo minhas dores – Deus é bom.

Deu é bom. Isso significa que não existe perversidade no caráter de Deus. A Bíblia diz nas palavras do
próprio Deus: “Bem sei eu os pensamentos que tenho a vosso respeito, diz o Senhor; pensamentos de paz,
e não de mal, para vos dar o fim que esperais” (Jr. 29:11).

“Deus é bom, em todo tempo, o tempo todo, Deus é bom” (Canção dos negros da aldeia de Kulumani –
sul da África)

Portanto, cuidado para as suas adversidades não alterar, perverter, distorcer sua percepção de Deus.
Lembre-se as circunstâncias não alteram quem Deus é. “Deus é bom, todo tempo Deus é bom”
3. É preciso coragem existencial
Mateus 14.27: “Mas Jesus imediatamente lhes disse: ‘coragem! Sou eu. Não tenham medo!’”.

A ordem de Jesus para os discípulos fustigados pela tempestade foi: Coragem!!! “Não sejam covardes!”

Coragem é a virtude de agir apesar do medo, da intimidação, da adversidade. O contrario de coragem é


covardia.

A única maneira de enfrentar o caos, a tragédia, é com coragem!!”

O que é preciso para enfrentarmos nossos temporais? Coragem!! Para viver nesse tempo têm de ser
pessoas que entendem que a coragem é a única maneira digna de se enfrentar os diagnósticos e
prognósticos mais sombrios. A indolência, a morbidez, a covardia, a apatia, a derrota sem luta são
indignos.

O poeta cantou:

Sonhar mais um sonho impossível

Lutar quando é fácil perder

Vencer o inimigo invencível

Negar quando a regra é ceder

O sonho impossível só pode ser sonhado com coragem. O inimigo invencível só pode ser vencido com
coragem. As lutas só podem ser lutadas com coragem.

Está aqui um bom conceito de fé. Fé como coragem existencial.

Ésquilo – viveu entre 525-456 a.C. na antiga Grécia ( soldado e dramaturgo da Grécia antiga,
considerado o “pai da tragédia”, escreveu: “ Toma coragem: o ápice da desventura não durará muito
tempo

“Coragem é manter a classe sob pressão” (Jhonh Kennedy)

“Coragem é a resistência ao medo, domínio do medo, mas jamais ausência do medo” (Mark Twain)

Mas preferimos uma fé viciada em intervenções mágicas que transforma Deus no gênio da lâmpada – um
Deus tapa-buraco, resolve tudo.

É preciso lembrar que o papel de Deus não é tornar nossa vida mais fácil, fazer nossas dificuldades
desapareceram, ou cuidar delas por nós.

Meu amigo Pr. Laelson Mendonsa escreve que: “A fé nos proporciona coragem para enfrentar o presente
com confiança, e o futuro com esperança”
3. É preciso uma fé que nos der serenidade, mesmo na tormenta
Marcos 4.38: “Jesus estava na popa, dormindo com a cabeça sobre um travesseiro”

Não precisamos de uma fé que acalme as tempestades, precisamos de uma fé que nos ajude e que nos
ensine a dormir, mesmo na tempestade.

O que me fascina nesse relato bíblico não é Jesus acalmar o vento, porque pra Jesus acalmar o vento era
coisa simples. O que me fascina aqui foi a capacidade que ele teve de dormir no meio de uma
tempestade.

Nós não precisamos e eu não quero uma fé que só tem valor quando ela acalma os ventos, eu quero uma
fé que me dê a capacidade de dormir, ter paz mesmo no meio da tempestade. A paz que Jesus oferece
não é ausência de problemas,. A paz que Cristo não é cessação de dificuldades.

O verdadeiro milagre aqui não é acalmar a tempestade. O verdadeiro milagre aqui é dormir no meio da
tempestade.

Em outras palavras:

 A verdadeira fé não é aquela que põe fim a guerra, a verdadeira fé é aquela nos possibilita ter paz
mesmo na guerra.
 A verdadeira fé não é aquela que nos isentem das lutas e problemas, mas aquela que nos permite
continuar firmes mesmo nas lutas e problemas.
 A verdadeira fé aquela que nos dar condições mesmo em meio as crises e vicissitudes de botar a
cabeça no travesseiro e dormir em paz.

O salmista no Salmo 4:8 trata desse assunto. Ele diz assim:


“Em paz me deito e logo pego no sono, pois só tu, Senhor, me fazes viver em segurança”

Qual é o grande problema das pessoas hoje? O grande problema das pessoas hoje é que elas só
conseguem dormir quando tudo está perfeito, quando todas as variantes estão sob controle. No entanto,
podemos dormir porque o projeto de deus não depende de como estar o mar, se revolto, se violento, se
ameaçador, não importa. O projeto de Deus depende única e exclusivamente daquilo que ele quer
realizar na minha vida.

Como diz Ed Rena Kivitz:


“Eu não quero aquele poder de Jesus para acalmar o mar, eu quero é aquele travesseiro
dele”.

4. É preciso uma fé que, ao invés de transformar as circunstâncias, transforme


nosso coração

Mateus 14: 27: “Mas Jesus imediatamente lhes disse: ‘coragem! Sou eu. Não tenham
medo!”.
Aqui está o conceito mais bonito de fé. Fé que põe em ordem meu mundo interior, mesmo que o mundo
exterior esteja um caos.
Notem que a primeira palavra de Jesus não foi aos ventos raivosos, mas aos corações turbulentos dos
discípulos. Antes de acalmar a tempestade, ele acalmou o coração dos discípulos. Antes de trazer
calmaria ao mundo exterior, ele trouxe serenidade ao coração dos discípulos.

A tempestade que estava no coração dos discípulos era maior que a tempestade que balança o barco, por
isso Jesus diz: “Não temais!”

Não adiante mudar o cenário externo, se o coração está em erupção, em tormenta.

Nesse momento de desespero, de angustia, de medo, de incertezas, Jesus nos diz através de sua palavra:
“tenham paz!” “Sossegai”

O hino 578 da Harpa cristã – “Sossegai!”


— Ó Mestre! O mar se revolta:
As ondas nos dão pavor:
O céu se reveste de trevas:
Não temos um Salvador!
Não se te dá que morramos?
Podes assim dormir.
Se a cada momento nos vemos,
Sim, prestes a submergir?

Coro
— “As ondas atendem ao meu mandar:
Sossegai!
Seja o encapelado mar
A ira dos homens, o gênio do mal:
Tais águas não podem a nau tragar,
Que leva o Senhor, Rei do Céu e mar,
Pois todos ouvem o meu mandar:
Sossegai! — sossegai!
Convosco estou para vos salvar:
Sim, sossegai!”

— Mestre, na minha tristeza


Estou quase a sucumbir:
A dor que perturba minha alma,
Oh! Peço-te, vem banir!
De ondas do mal que me encobrem,
Quem me fará sair?
Pereço, sem ti, oh! meu Mestre!
Vem logo, vem me acudir!

— Mestre, chegou a bonança,


Em paz eis o céu e o mar!
O meu coração goza calma
Que não poderá findar.
Fica comigo, oh! meu Mestre,
Dono da Terra e Céu,
E assim chegarei bem seguro
Ao porto, destino meu.

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