Você está na página 1de 86

1

Exame da Crítica da Razão Prática


Mário Ferreira dos Santos
O tema fundamental desta obra famosa de Kant é a da liberdade, dedicando-se ao
esforço de evitar a antinomia que oferece esse conceito, quando examinado pela razão pura.
Resolvido esse problema, facilmente serão todos os outros que examinou em suas obras
anteriores. Escreve Kant que “o conceito de liberdade nos é assegurado por uma lei
apodítica (necessária) da razão prática, forma a “clé de voute” de todo edifício do sistema
da :Razão Pura, e todos os outros conceitos (os de Deus e da imortalidade), que, enquanto
puras idéias, são seu apoio na razão especulativa, ligam-se a esse conceito e recebem com
ele e por ele a consistência e a realidade objetiva que lhe faltam"”(Prefácio).
“Como é sempre o conhecimento da Razão Pura que serve de princípio ao uso
prático, a divisão geral da Crítica da Razão Prática deverá estar de acordo com a da Crítica
da Razão Especulativa”. São as seguintes:
1) A analítica, que estuda os princípios da Razão ou a idéia do Bem;
2) A Dialética que trata do conceito do Bem elevado ao absoluto;
3) A Metodologia, cujo objeto é pesquisar “o conjunto dos meios a serem
empregados para abrir às leis da Razão pura prática um acesso à alma humana”.
É na Analítica que Kant concluirá da objetividade do Bem à realidade objetiva do
livre-arbítrio. Na Dialética concluirá, partindo do conceito objetivo do Soberano Bem a
existência de Deus e a imortalidade da alma.
Analítica da Razão Prática1
Três são os pontos de estudo desta parte da obras:
1) Os princípios;
2) O objeto;
3) Os móveis da Razão prática.
Quando uma regra é válida apenas para mim é uma simples máxima; quando é válida
para todo ser raciocinante e livre é um princípio.
Exemplifica Kant: a regra pela qual estabeleço que não suportarei impunemente
nenhuma ofensa não tem valor universal. E´, portanto, uma máxima, porque seu valor é
apenas subjetivo. Indica essa regra que é ela necessária para atingir um fim, cujo fim posso

1
O Autor não corrigiu esta parte.
2

não querê-lo. Está, portanto, essa regra subordinada a uma condição. É, pois, um
imperativo condicional ou hipotético.
Contudo, a regra de nunca mentir é uma condição necessária para atingir um fim. Ela
me é imposta em qualquer caso, é uma ordem incondicional, um princípio, porque
universal, é um imperativo categórico.
A lei moral não pode ser determinada a priori senão pela sua forma (a obrigação e a
universalidade) e não por sua matéria (o Bem).
Esta doutrina de Kant merecerá nossa crítica oportunamente.
O que dá a existência à lei moral é o seu caráter racional. E essa existência é
independente de todo objeto exterior. A objetividade da lei moral não se funda nos objetos
da experiência e não precisa ser deduzida como os conceitos da razão especulativa que
necessitam fundar-se nos objetos da experiência. As minhas ações racionais em seu
princípio têm por matéria os fenômenos, por isso a lei moral pode referir-se ao mundo dos
fenômenos.
Podemos, por isso, aplicar aos nossos atos as categorias, com auxílio das quais
conhecemos os objetos sensíveis.
Temos assim a diferenciação que se dá entre nossos atos segundo a quantidade, e
serão máximas particulares ou princípios universais. Sob a relação da qualidade diferem no
ordenar a ação ou a emissão ou a exceção.
Podem ser relativas a uma pessoa ou a uma relação recíproca entre diversas pessoas.
E segundo a modalidade podem nos impulsionar a coisas lícitas ou ilícitas, a cumprir
deveres perfeitos ou imperfeitos.
É um grave problema a aplicação da lei moral, que é um fato de razão, um númeno,
aos atos que são fenômenos. A ação de uma causa que atua num mundo inteligível, num
mundo transcendental, exercer ação sobre o mundo das coisas reguladas segundo o tempo e
o espaço é um problema que se afigura porque nos levaria a perguntar se há um tipo moral
dos fenômenos. Kant responde pela afirmativa: a compreensão de um mundo que um
homem raciocinante possa querer fazer parte dele, pois não gostaria – responde – de fazer
parte de um mundo em que reinasse a mentira e em que os homens só procurassem
satisfazer seus interesses pessoais. Tal mundo é contrário ao tipo moral da natureza. Daí a
forma kantiana que pode servir de critério para julgar cada um de nossos atos: “Atua de tal
3

modo que possas querer fazer parte de um mundo em que cada um agirá como tu” e esta
regra funda-se na anterior “A regra de nossos deve poder ser erigida em lei universal”.
Aquela regra porém é superior de certo modo a esta por considerar apenas os efeitos
produzidos por nossas vontades, pondo de lado o mundo.
Entre os excessos do empirismo que olha apenas os efeitos de nossos atos e não as
suas leis e o do misticismo, que apenas visualiza o Bem, sem considerar o mundo e os
homens, essa regra constitui o verdadeiro meio termo entre tais extremos. Mas o valor de
nossos atos depende dos móveis que me fizeram agir.
“O caráter essencial de toda determinação moral é que a vontade seja determinada
unicamente pela lei moral... sem o concurso de atrativos sensíveis”.
São o amor ao próprio bem estar e a presunção os únicos móveis sensíveis que
destroem o valor moral de um ato. A lei moral é dura em relação ao amor do bem estar e
sobretudo o é contra a presunção que ela humilha, sobretudo ao nos mostrar que a estima de
nós mesmos não tem nenhuma razão de ser, salvo quando fundada na obediência ou na
submissão aos mandamentos absolutos da razão prática.
Devemos cumprir a lei moral não apenas pelo prazer que nos causa o Bem, mas
sobretudo pela consciência de dependência à autoridade moral. Esse respeito é o
reconhecimento de alguma coisa superior a nós. É por não querermos pagar o tributo de
nosso respeito aos outros homens que nos leva a criticá-los, sobretudo quando nos sentimos
pequenos e imperfeitos ante a imponente majestade dos que nos superam. “Se gostamos de
rebaixá-la até ao ponto de uma inclinação familiar, se nos esforçamos em transformar num
preceito de interesse bem entendido, não é por nos livrar desse terrível preceito que nos
lembra tão severamente nossa própria indignidade.
Contudo junto ao respeito e a pena que nos causa a prática de tais atos, há um gozo
verdadeiro que é o da admiração, que nos eleva acima de nós mesmos, perdendo de vista
nossa frágil natureza.
Não devemos substituir o dever moral pelo simples amor do Bem. Tal não é
verdadeira máxima moral, a que nos convém a nós homens. Não procedamos como
soldados que querem por orgulho pôr-se acima da idéia do dever e pretendam agir por seu
próprio impulso sem necessidade de nenhuma ordem. Só a Deus cabe atuar, realizar o Bem
por amor, porque só ele possui a santidade. Ao homem só pode caber a virtude. Se nos é
4

ordenado o amor a Deus e ao próximo, não se trata de um amor sensível, mas de um amor
prático. Amar a Deus é obedecê-lo; amar ao próximo é cumprir seus deveres para com ele.
Por se submeter à lei e por sua liberdade que o homem é uma pessoa, título sagrado e
inviolável como o é a lei moral da qual faz parte. Deve o homem ser considerado pelo
homem como um fim e não como um meio. Deve respeitar a mim mesmo como devo
respeitar os outros. Nada é mais de temer ao homem moral do que a prática de um ato baixo
que o humilhe ante si mesmo, porque não pode suportar ante seus próprios olhos a
indignidade de sua vida”.
Uma máxima não pode ser conhecida a priori, porque só a experiência me pode
mostrar sua conveniência ou não. A Razão pura só pode estabelecer regras a priori, válidas
para todo ser raciocinante e livre.
A vontade é uma faculdade de desejar, mas de um desejar superior, pois só a idéia do
Bem universal pode determiná-la, enquanto a faculdade de desejar inferior é determinada
apenas pelos móveis empíricos, pela idéia de felicidade.
Salienta Kant seu espanto em verificar que não fizeram os filósofos a distinção entre
esses dois modos de desejar, o superior e o inferior. Um busca os prazeres intelectuais, o
outro o prazer dos sentidos. Mas o prazer intelectual, por puro que seja, é apenas um
motivo empírico. “Dar os prazeres do espírito por móveis diferentes dos móveis que vêm
dos sentidos... é fazer como esses ignorantes que, tentando fazer metafísica, subtilizam a
matéria a ponto de se empolgarem numa vertigem, e crêem que assim constróem a idéia de
um ser espiritual e contudo extenso. Se se admite com Epicuro que a virtude só determina a
vontade pelo prazer que ela promete, não sentem o direito de acusar aqueles que tomam
esse prazer como semelhante aos dos sentidos”. “O princípio da felicidade pessoal, seja
qual o for o uso que dele faça o entendimento e a razão, não poderia conter outros
princípios de determinação para a vontade que os que são próprios à faculdade de desejar
inferior; por conseguinte, ou não há faculdade de desejar superior, ou a razão pura deve
poder ser prática por si só, quer dizer, sem supor qualquer sentimento,... nenhuma
representação do agradável ou do desagradável, ela deve determinar a vontade pela única
forma da regra prática”.
Devem os princípios absolutos da razão, por pertencerem à razão pura e não à
experiência quatro caracteres principais, que são os seguintes:
5

1) A universalidade, ou seja uma validez para todos, para todas as vontades, sem
oposição. Uma regra como “busca teu interesse” seria uma máxima não válida
porque poderia por em risco os interesses dos outros. Não, porém, esta regras:
“Atua de tal modo que a máxima de tua vontade possa sempre ser considerada
como um princípio de legislação universal”.
2) A autonomia. Autonomia é a capacidade de ordenar independentemente de outro,
ou seja por si mesmo. As leis da razão devem ser autônomas, independentes da
natureza dos objetos desejados e da natureza dos meus desejos. Do contrário,
como poderia ser universal? Uma vontade que se regula desse modo é uma
vontade livre. E como se poderia chegar à liberdade, concebê-la, se apenas
houvesse uma lei da natureza a regular os nossos atos?
A minha liberdade é provada pela razão, corroborada pela experiência que tenho. Se
eu disser a um homem: “Renuncia ao teu desejo, ou serás enforcado imediatamente”, é
natural que se abstenha de um ato por temor da morte, pois o motivo mais forte impedirá a
ação do mais fraco. Mas se se lhe disser: “Presta um falso testemunho ou serás morto
imediatamente”, revela a nossa consciência que qualquer homem é livre para resistir a uma
tal ameaça. Essa independência dos móveis sensíveis que se revela na nossa vontade
testemunha e atesta a sua liberdade. É ela que constitui a sua autonomia. Se a nossa vontade
segue a lei da natureza, segue uma lei que não é a sua, uma lei heteronoma. Mas seguir a lei
feita para nós é seguir uma lei autônoma.
Essa lei se nos liberta também nos domina, porque nos leva a dominar nossos
impulsos e nossas tendências. Estamos, portanto, ante ela numa relação de dependência. De
nossa submissão ou de nossa revolta é que decorre o mérito ou o demérito de nossa atitude.
Confundir a lei moral com o sentido moral ou seja o prazer ou o desgosto que nos causam
nossas ações seria esquecer essa relação de dependência.
O prazer da boa consciência e o remorso supõem a idéia da obrigação moral e,
consequentemente, não poderiam ser o fundamento dessa obrigação.
Pode-se concluir, dizendo que o que em definitiva distingue os princípios da razão
das máximas do interesse e da prudência é saber sempre o que se deve fazer. Muitas coisas,
só após longas experiências, sabemos se nos são vantajosas ou não. Contudo, pode-se
sempre cumprir com o nosso dever porque basta o nosso querer para tanto. Ao contrário,
6

nem sempre podemos fazer o que a experiência nos revela como agradável ou
desagradável.
Além daqueles dois caracteres: a universalidade e a autonomia pertencem ainda à lei
moral:
3) a possibilidade de ser sempre conhecida;
4) a possibilidade de ser sempre praticada.
Tais caracteres não são notados nas leis empíricas, como se verificam nas máximas:
“segue teus instintos físicos” (Epicuro), ou “segue teus instintos morais” (Hutcheson).
Cita ainda Kant outros dois princípios que forjam propostos, como o de Wolf
“Realiza em ti a perfeição”, que é uma máxima dos estóicos e “conforma-te à vontade de
Deus” de Crusius.
Repele essas regras como princípios, porque a primeira tem de admitir a existência de
Deus, pois, sem ele, como admitir a existência da perfeição e a segunda por que sem saber a
existência de Deus nada podemos saber quanto à sua vontade. Esses princípios são
materiais e não formais, diz Kant, porque põem a regra de nossas ações num objeto exterior
e não na forma de nosso conceito moral, ou seja numa idéia de uma legislação universal e
aplicada a toda vontade universal.
A liberdade é um númeno que tem realidade objetiva. Errava Hume quando afirmava
que não conhecíamos nenhuma causa. A minha liberdade é causa de meus atos. É da
objetividade e da realidade, portanto, da liberdade, que decorrem outros conceitos
transcendentais e a idéias da razão. Mas é mister que haja entre esses conceitos e essas
idéias uma relação necessária com a liberdade.
Provada a liberdade, resta determinar seu objeto e seus móveis.
O objeto do desejo inferior é o agradável que nem sempre pode ser atingido; o objeto
do desejo superior é o Bem que pode ser atingido porque reside apenas na intenção.
O Bem é bom por si mesmo, é, portanto, um fim absoluto; o agradável é bom para
nós, em relação a nós, tem, pois, um fim relativo.
Mostra-nos Kant que em várias línguas há apenas uma mesma palavra para indicar
essas idéias que se distinguem, como o termo bonum, em latim. Contudo, no alemão essa
dificuldade não existe, porque Guta trata-se do bem moral e Wohl do bem físico, como
Bose do mal moral e Weh do mal físico.
7

“Poder-se-ia perfeitamente rir do estóico que exclamava no meio dos mais vivos
sofrimentos: Dor, podes me tormentar, eu não afirmarei nunca que sejas um mal. Ele tinha
contudo razão. O que sentia era um mal físico (Ubel), e seus gritos o atestavam; mas por
que havia ele concedido que fosse um mal absoluto Bose? Com efeito, a dor não diminuía
de modo algum o valor de sua pessoa; ela não diminuía nada mais que seu bem estar. Uma
só mentira que tivesse a acusar-se teria sido suficiente para abater seu orgulho; mas a dor
não era para ele mais que uma ocasião de a fazer a parecer”. (Analítica, cap. II).
Se não houvesse no homem a distinção entre o bem físico e o bem moral o homem
não se distinguiria dos animais cujo único fim é o agradável. O objeto próprio do homem é
o Bem absoluto, o Bem moral.
Kant não se satisfaz apenas em distinguir o bem moral do bem físico; procura ainda o
que constitui a essência de ambos. Para ele o Bem nada mais é que a submissão à obrigação
da lei moral. Não é por ser boa que uma coisa é obrigatória, mas por ser obrigatória é que é
boa. E por que é o homem ante seus olhos o fim da vida moral? Porque “é ele o sujeito da
lei moral e por conseqüência do que é santo em si e do que apenas pode dar a alguma coisa
o caráter de santo”.
A moral de Kant é uma moral de liberdade, mas também de submissão e de
dependência. Não há contudo aí contradição. Porque é a liberdade que se submete
voluntariamente ao cumprimento do dever.
Tomada essa posição a idéia de Deus se impõe. E é daí que Kant empreende a
demonstração da existência de Deus.
Ao contrário da Crítica da Razão Pura, os princípios da razão prática não decorrem
dos conceitos, são os conceitos que decorrem dos princípios, conhecidos de antemão.
Assim o conceito de bem e de mal se deduzem dos princípios da ação moral. Os princípios
precedem aos conceitos. A estética moral só pode sobrevir do estudo do conceito moral, por
isso na Analítica estuda Kant em primeiro lugar os princípios, depois o objeto da lei moral
e, finalmente, os móveis da vontade, subdivididos em motivos egoístas, sensíveis e os
verdadeiramente morais.
Por isso a razão prática segue o método racional, meramente dedutivo e segue do
mais geral para o mais particular.
8

O silogismo da razão prática parte da lei geral, do qual o ato conforme ou não a lei é a
menor. “Aquele que se pode convencer da verdade das proposições contidas na Analítica
deve amar essas comparações; pois elas fazem justamente esperar poder um dia aperceber a
unidade da razão pura integralmente (da razão teórica e da razão prática) e tudo derivar de
um só princípio, o que é a inevitável necessidade da razão humana, a qual não encontra
uma integral satisfação senão numa unidade perfeitamente sistemática de seus
conhecimentos”.
Todo edifício da moral kantiana funda-se assim na liberdade. Mas como admitir a sua
possibilidade? Nossos atos psicológicos dão-se no tempo e tudo quanto se dá no tempo é
determinado por uma causa anterior, o que exclui a liberdade. Mas liberdade não é pura
espontaneidade, como o julgara Leibnitz.
Kant procura resolver o problema de outro modo. A fatalidade reina no mundo dos
fenômenos e rege nossos atos como fenômenos, pois eles se realizam no tempo. Mas a
minha liberdade e a minha razão atuam fora do tempo, por isso não podem ser determinada
por um fenômeno. Desse modo, supondo que conheçamos “todos os móveis que podem
determinar um ato, poderíamos calcular a conduta futura de um homem com certeza igual
ao de um eclipse da lua ou do sol continuando a chamá-lo livre”. Esta doutrina é, para Kant,
a única que pode salvar a liberdade. Pois, “se a minha liberdade estivesse no tempo e se os
fenômenos acontecem no tempo fossem alguma coisa de real, todos esses fenômenos e
entre eles a minha liberdade seriam determinadas pela vontade de Deus. Neste caso Deus e
a liberdade seriam incompatíveis, quando, ao contrário, a liberdade e a lei moral supõem
Deus. A demonstração de tais afirmativas ele a fará na Dialética da Razão Prática.
Dialética da Razão Prática
Tem a razão prática um ideal, o soberano bem, cuja objetividade pode ser
demonstrada ou não. Contudo, antes de empreender a demonstração, cabe saber que se
entende por soberano bem. A resposta de Kant é que é o acordo perfeito da virtude e da
felicidade. Não se deve praticar o bem moral em vista da felicidade, porque então o motivo
destruiria todo mérito da vontade. O que é justo e portanto bom é que a felicidade decorre
do estado moral da vontade.
9

Se a virtude e a felicidade fossem idênticas a afirmação de sua união decorreria de um


juízo analítico. Assim, erradamente, faziam-no os estóicos e os epicúreos, que punham a
virtude apenas na busca da felicidade.
Ao contrário eles “se limitam mutamente e se combatem no mesmo sujeito”. Como
uma não é efeito da outra, só podemos afirmá-la por um juízo sintético.
A dificuldade de alcançar esse juízo decorre da antinomia em que nos encontramos;
ou a felicidade (o desejo da felicidade) é causa da minha virtude, e então não é ela virtude,
porque é interessada, ou é a virtude que é causa da felicidade. E tal não pode ser porque
minha felicidade depende das leis da natureza e não das minhas intenções. De qualquer
forma, em ambos casos, a união da virtude e da felicidade é impossível de ser demonstrada.
Mas essa antinomia é apenas aparente. O desejo de felicidade não é de modo algum
causa da virtude. Quanto à Segunda ela só é falsa no mundo dos fenômenos. Na verdade,
pelo efeito das leis físicas do universo, nem sempre a felicidade decorre da virtude, mas,
“por meio de um autor inteligível do mundo” é que pode ser estabelecida e mantida essa
união.
A prática da virtude causa o sentimento de satisfação., Mas essa satisfação é
puramente intelectual e não sensível. Na verdade não realiza a felicidade perfeita, porque o
homem virtuoso é um campo de luta de contrários que o impelem a praticar atos opostos
aos da virtude que ele precisa combater. Neste caso, a virtude por si só, não podendo
realizar a felicidade, não realiza o soberano Bem. Para que tal suceda, é mister um poder
superior. E este poder é Deus. Deus, por isso, existe. Provou-se acaso que existe o soberano
Bem? Se não existe, se forma apenas um ideal, neste caso Deus pode ser posto em dúvida
já que se torna apenas necessário para realizar esse soberano Be,
Mas Kant retruca que esse argumento não procede, porque não se pode por em dúvida
o Soberano Bem, e consequentemente aquele que é causa dele, sem que se duvide
simultaneamente da lei moral. Pois o Soberano Bem faz parte da lei moral, pois somos
obrigados a realizá-lo, não certamente ao buscar a felicidade, mas aos nos esforçarmos em
nos tornarmos dignos ao dominar nossos ímpetos que se opõem à lei moral. Colocar meus
ímpetos dentro da linha de contuda moral e da minha razão é o fim ao qual tendo. E como
poderia tender a tal sem a esperança de consegui-lo? E como Ter essa esperança, sem
admitir uma outra vida. A lei moral não pode orientar-se para uma quimera. Portanto, a lei
10

moral implica a imortalidade da alma, implica Deus, sem o qual não poderia realizar por
mim mesmo o Soberano Bem que me ordenado querer realizar.
Essa prova da existência de Deus, realiza simultaneamente a prova da sua perfeição.
Se apenas me fundasse nas obras da natureza, chegaria apenas a concluir que Deus é bom e
poderoso, não porém que ele é a infinita perfeição. Mas considerando que ele realiza o
soberano Bem, encontro na análise desse conceito a perfeição absoluta. E concluo mais
ainda: concluo a sua Personalidade, porque a pessoa consiste na vontade e o soberano Bem
é a lei e a vontade. Deduzo a onisciência porque reparte em proporção exata a virtude nos
corações humanos; deduzo a eternidade, porque Justiça deve existir sempre. Conclui Kant
que por tais raciocínios conclui não apenas que Deus existe, mas também que é capaz de
realizar “um conceito perfeitamente determinado desse ser perfeito”.
O que fora problemático na Crítica da Razão Pura passa a ser demonstrado agora na
Crítica da Razão Prática: a existência de Deus e a imortalidade da alma. Só os atributos
morais de Deus podemos demonstrar. Os outros atributos metafísicos se nos escapam. Não
é a ciência, mas a fé que nos demonstra –a em suam a existência de Deus.
Metodologia da Razão Prática
Basta apenas a visão da virtude pura para impulsionar o coração humano, conclui
Kant.
Pedagogicamente, aconselha que o melhor meio de ensinar essas lições às crianças
consiste em faze-las apreciar os fatos da história e aconselhá-las a julgar os atos humanos
segundo o valor dos motivos que tinham, se interesseiros ou de fins elevados.
É mister despertar na criança o respeito pela lei e o amor à lei, bem como a admiração
pela lei moral, despertando nos jovens um intenso amor. “Duas coisas enchem a alma de
uma admiração e de um respeito sempre renascentes e que crescem à medida que o
pensamento a eles retorne constantemente e a eles se aplica com cuidado: O céu estrelado
acima de nós e a lei moral dentro de nós”.
Se na Crítica da Razão Pura conclui Kant que é impossível ao homem provar um
juízo sintético a priori, na Crítica da Razão Prática conclui como legítima a proposição: o
homem é obrigado a obedecer a lei da razão.
Estamos aqui em face de um juízo sintético a priori.
11

A idéia do Bem leva à idéia do Belo e consequentemente à idéia de destinação e de


finalidade, que estão compreendidas naquelas. E este é o objeto da sua famosa Crítica do
Juízo, que passaremos a expor.
Crítica Final
Depois da crítica que fez da razão pura e da impossibilidade de demonstrar ela os
juízos sintéticos a priori que anuncia, as conclusões a que chega Kant em sua Crítica da
Razão Prática deixam perplexos o seu leitor e sobretudo aquele que estuda a sua obra.
Afirma a existência do Bem e a de uma lei moral. Como conseqüência conclui a
existência de um legislador aplicando, assim, simplesmente o princípio de causalidade, que
antes negara seu valor. A afirmação da existência da vontade de um ser perfeito é a
afirmação, além da causalidade, da substância. Afirma a existência de seres fora do mundo
sensível, mas de seres absolutos, cuja absolutuidade antes negara. Se o princípio de
causalidade não é fundado por que não existir uma lei sem legislador, uma perfeição
absoluta sem o ser perfeito? Admitir a necessidade da causa pela postulação do efeito é
admitir o princípio de causalidade. Em suma, Kant termina por afirmar o valor da
metafísica que ele havia anulado.
Do cepticismo da :Crítica da Razão Pura cai no dogmatismo da Crítica da Razão
Prática.
Conclui Kant que o Bem reside na conformidade de uma vontade a uma lei que
ordena. Mas esse Bem é o do homem, não o que se poderia atribuir a Deus, que não pode
ser obrigado por uma lei.
Análise da Crítica do Juízo
Do mundo da natureza nada conhecemos senão as representações eu construímos e
que é regida por leis imprescritíveis e fatais. Nada sabemos sobre a sua essência, sobre a
sua origem e, pelo pensamento, desconhecemos seu autor, pois não saímos da cadeia dos
fenômenos.
Mas diferente é o que se dá com o mundo da liberdade, que nos é revelado pela lei
moral. E como esta nos é dado pela nossa mente, não saímos também dela, já que suas leis
são as próprias leis da nossa razão. E por elas alcançamos a Deus, sem o qual a moral não
teria sentido e seria uma impossibilidade.
12

O mundo dos fenômenos é o objeto da razão especulativa. E esta perde seu valor ao
querer afirmar a realidade do mesmo. Já o mundo da liberdade é o mundo da razão prática
cuja realidade é revelada pelo mandamento indubitável da lei moral. Este é o resultado que
chega em sua Crítica da Razão Prática.
Mas que propõe realizar Kant em sua Crítica do Juízo?
Há em nós um juízo reflexivo sobre o Belo e sobre o conceito de finalidade.
Essa faculdade é intermediária entre a razão especulativa e a razão prática. É nas
coisas que compõem o objeto da razão especulativa, as coisas do mundo, que encontramos
o Belo que tem uma analogia com o Bem, participando, assim, do mundo inteligível. A
própria idéia de finalidade é uma forma da noção de Ordem. O mundo sensível nos revela
uma conveniência e uma harmonia (Bem).
Essas três faculdades são faculdades de conhecer a priori, pois as outras não
pertencem ao estudo das Críticas.
A razão pura tem a faculdade de conhecer os princípios puros, os princípios a priori
que entram como formas do conhecimento sensível. O conhecimento dos objetos sensíveis
pertence à psicologia. Também a faculdade de querer não é a razão prática. Esta é
propriamente a faculdade que concebe princípios a priori imprescindíveis para servirem de
regra à faculdade de querer.
Também o juízo não é a faculdade de perceber o belo, porque a percepção pertence à
faculdade de sentir, mas a faculdade de conceber princípios a priori que constituem
princípios racionais na percepção do Belo, no exercício dessa faculdade de sentir. Não se
deve confundir este com a mera sensibilidade, o prazer que essa nos possa dar, mas o prazer
intelectual, racional, que decorre da harmonia que capta o nosso espírito nos objetos supra-
sensíveis, que é o sentimento do Belo. “Tem por si mesmo o juízo princípios a priori? São
tais princípios constitutivos ou simplesmente reguladores? Dá ele a priori uma regra ao
sentimento do prazer ou do desprazer, como um meio termo entre a faculdade de conhecer
e a faculdade de querer (da mesma forma que o entendimento prescreve a priori leis à
primeira, e a razão à segunda)? Eis do que se ocupa a Crítica do Juízo”, escreve Kant no
prefácio desta obra.
Distingue Kant o juízo determinante de o juízo de reflexão. Ao entendimento
pertencem os juízos determinantes, que consistem na aplicação das categorias aos objetos,
13

porque só por meio dessas determinações pode o nosso espírito formar uma idéia de um
objeto. Exemplifica com o juízo um fenômeno tem uma causa que é um determinante, pois
sem a categoria de causa a um fenômeno não posso formar dele nenhuma idéia. Conhecido
um objeto por meio de um juízo determinante, a reflexão nos faz descobrir entre a natureza
de um objeto e a do nosso espírito uma misteriosa harmonia, cuja afirmação é um juízo que
nada acrescenta nem retira da natureza do objeto. Tal juízo de reflexão não é um juízo
determinante, pois a idéia que formávamos das propriedades e da essência do objeto
permanece a mesma que antes da reflexão. Essa reflexão afirma apenas o prazer que nos
causa a harmonia percebida ou pressentida entre as leis do nosso pensamento e as leis da
natureza.
Tanto o juízo determinante como o juízo de reflexão nos fazem conceber o particular
como contido no geral, com a diferença, porém, que através de o determinante o geral, a lei,
o princípio, a regra, nos é dado antes que o espírito capta o particular que pertence a essa
regra. Deste modo, o princípio de causalidade nos é dado antes do fenômeno ao captar a
intuição do fenômeno a esse princípio que chegamos a formular o juízo determinante:
“Todo fenômeno tem uma causa”. Já o mesmo não se verifica com o juízo de reflexão, pois
este me dá o particular de antemão e, depois, pela reflexão, relacionamos esse fato
particular a uma lei geral. Percebemos primeiramente o fenômeno e depois procuramos
qual a sua colocação na ordem do mundo. Enquanto os juízos determinantes precedem aos
fenômenos, os de reflexão (embora também a priori) sucedem à experiência e a completam
conexionando pelo pensamento as intuições a uma idéia diretriz, a uma razão de ser. Assim
formula Kant essa idéia diretriz do juízo de reflexão: “Considerar a natureza segundo uma
unidade tal como a estabeleceria um entendimento, se a natureza fosse realmente o efeito
de uma causa inteligente”. É a idéia de finalidade um princípio regulador de juízo e isso se
dá em virtude de nosso espírito que procura a unidade na variedade. “Esse conceito
transcendental de uma finalidade da natureza não é nem um conceito da natureza nem um
conceito de liberdade; pois não atribui nada ao objeto (à natureza); nada mais faz que
representar a única maneira que devemos proceder em nossa reflexão sobre os objetos da
natureza, para chegar a uma experiência perfeitamente ligada em todas as suas partes”. A
reflexão tem como finalidade resolver “esse grande problema que está a priori em nosso
14

entendimento: com as percepções dadas por uma natureza que contém uma variedade
infinita de lei empíricas fazer um sistema coerente”.
“Sem esta unidade que supomos na natureza, o raciocínio por analogia seria
impossível”. Ora, a analogia é o fundamento de todas as classificações que estabelecemos
para conexionar entre si as leis da natureza ou se suas diferentes partes, que se tornaria a
ciência, se o juízo de reflexão não desse uma regra e uma direção às pesquisas do físico e
do naturalista?”
Atribui assim Kant ao juízo de finalidade a mesma função que atribuía às idéias
transcendentais na Crítica da Razão Pura.
São de duas espécie os juízos de finalidade, que são os juízos de finalidade
propriamente ditos ou teleológicos e os juízos estéticos.
Quando um objeto nos agrada sem preocupação de sua destinação, a harmonia que
nos arrebata, que nos agrada, não é a harmonia das partes desse objeto entre elas, mas a
harmonia que existe entre a forma e a natureza de nossas faculdades, há, então, um
sentimento do Belo, um juízo estético. Se se der o contrário, o juízo será teleológico.
Com esses dois juízos intelectualizamos a natureza, pois tanto o Belo como a Ordem
são noções a priori, noções racionais. Por meditarmos sobre a Ordem na natureza,
acostumamo-nos a amar a Ordem absoluta, que se torna uma lei de todas as forças de nossa
alma quando nos aparece como regra não só de nossos juízos mas de nossas vontades.
Estuda Kant esses dois juízos na Crítica do Juízo em duas partes que ele subdivide,
cada, em três: a Analítica, a Dialética e a Metodologia.
Analítica do Belo
“Para decidir se uma coisa é bela ou não, não relacionamos sua representação ao seu
objeto e em vista de um conhecimento, mas ao sujeito e ao sentimento de prazer ou de
desagrado, por meio da imaginação... O juízo de gosto não é pois um juízo de
conhecimento; nem é tampouco por conseqüência lógico, mas estético. É, pois, um juízo
sensível, por pertencer à sensibilidade ou dele depender. É pois um juízo estético um juízo
puramente subjetivo, não fundando-se nas representações dos objetos, mas em sua relação
ao sentimento de prazer ou de desagrado, relação que designa nada do objeto, mas
simplesmente o estado no qual se encontra o sujeito afetado pela representação”.
15

Pelo entendimento representamos um objeto, mas o juízo de gosto diz apenas a


maneira como as minhas faculdades são afetadas por ele e nada sobre a sua natureza.
Não estuda Kant na Analítica quais as características do Belo no objeto, mas quais os
caracteres do prazer que o Belo produz. Sempre interessa a Kant em suas Críticas o exame
das condições subjetivas do nosso conhecimento. Na Crítica do Juízo prossegue na mesma
orientação, interessando-se pelas relações do Belo e do Bem, a harmonia dos princípios do
juízo com os princípios da lei moral. A objetividade que dará a eles virá a seu tempo.
Subdivide-se a Analítica em Analítica do Belo e Analítica do Sublime.
Há uma analogia entre ambos, mas o Belo relaciona-se mais à sensibilidade, enquanto
o Sublime mais à razão.
O prazer, que produz o Belo, além de racional, é sensível, e distingue-se todos os
outros gozos por quatro caracteres principais que lhe emprestam um papel superiormente
elevado em relação a todos os outros fenômenos da sensibilidade. É um sentimento de
natureza superior e que só pode existir num ser racional e moral.
1)O primeiro caráter do Belo é produzir uma satisfação pura (isenta) de todo
interesse.
Podemos achar belo um edifício sem o menor desejo de possui-lo. Nem o interesse
dos sentidos, nem o interesse moral entram como elementos do juízo de gosto, porque não
julgarei do belo de uma coisa por ter sido ela construída por um homem indigno ou nobre.
“!Um juízo sobre a beleza no qual se mistura o mais leve interesse é parcial e não é um
puro juízo de gosto”.
O belo não é o agradável. Um objeto agradável deseja possui-lo, dele gozar, enquanto
um objeto belo deseja apenas contemplá-lo. O agradável é objeto de desejo, enquanto o
Belo é apenas objeto de uma aprovação e o único desejo que nos anima é aprová-lo. Não é
também o útil, o Belo. O útil é desejado em função de um fim, enquanto o belo o ama em si
mesmo, sem preocupação em saber para o que serve.
Nem tampouco o Belo é idêntico ao Bem, porque nos interessa, e muito, tudo o que é
moralmente bom. Seria reduzir o Bem identificá-lo com o Belo, seria como identificar a
elegância dos costumes com a virtude, a polidez com a benevolência.
2)O caráter do desinteresse e de impessoalidade dá aos juízos de gosto o direito ao
assentimento universal.
16

São os nossos prazeres e os nossos interesses que são variáveis. O Belo sentimento do
Belo, embora universal, não está ligado a nenhum dos conceitos do entendimento. Ao
julgar belo um objeto nada afirmo em relação à quantidade, à realidade, à negação, à
causalidade, à necessidade ou à contingência.
Pergunta Kant como um juízo sem conceito poderia ser universal. Simplesmente
porque as leis subjetivas do pensamento são as mesmas em todos os homens. O que difere
são os fenômenos subjetivos da sensibilidade. Dependendo o juízo do Belo das leis do
nosso pensamento, Kant explica do seguinte modo: ao percepção de um objeto belo põe em
funcionamento ao mesmo tempo a nossa imaginação e o nosso entendimento. A primeira
reúne os elementos da intuição, enquanto a Segunda dá a unidade a essa intuição composta
de partes diversas. E como o entendimento, para conceber essa unidade, não está sujeito a
nenhum conceito determinado, sente-se livre, joga livremente com a imaginação, que é a
mais livre das nossas faculdades, parecendo-lhe seguir sem constrangimentos a sua direção
agradável e fácil ao mesmo tempo que razoável. A consciência desse jogo produz um
sentimento de prazer que é o juízo do Belo. É esse estado de espírito um fenômeno
subjetivo sem dúvida, mas pode-se afirmar “que deve poder ser universalmente partilhado”,
graças às leis universais do espírito entre as quais estão as que regulam a imaginação e o
entendimento. Daí surge a segunda definição do Belo: “O Belo é o que agrada
universalmente sem conceito”.
3)Não tem o juízo de gosto um fim determinado que se refira a um sujeito pensante,
nenhuma finalidade subjetiva.
Ademais não implica o conhecimento da destinação do objeto belo, ou seja a
finalidade objetiva.
Mas o Belo implica uma finalidade, mas indeterminado, distinta da finalidade
objetiva e da finalidade subjetiva determinada. O Belo, em suma, encerra a forma da
finalidade mas sem a matéria.
Para Kant a forma é a disposição geral do espírito a perceber as coisas e a matéria é o
objeto particular percebido.
Ao perceber o Belo não percebemos uma relação particular, determinado, que possa
Ter o objeto com a nossa utilidade. Nessa relação consiste a finalidade subjetiva
determinada. Nem percebemos tampouco a aptidão das partes do objeto a uma certa
17

destinação, que constituiria a finalidade objetiva. Contudo, percebemos uma certa


harmonia. Mas de que é essa harmonia não sabemos, ou como diz Kant o artista ignora.
Mas o filósofo responde: é uma harmonia entre as tendências gerais da imaginação e as
tendências do entendimento, ou seja uma harmonia entre as formas de nossas diversas
faculdades intelectuais. Há um não sei que que capta o nosso entendimento que está em
relação com sua própria natureza na representação captada pela imaginação. Essa
adequação é uma finalidade, mas formal e não material. Porque ela é invariável segundo a
natureza particular dos objetos belos. A terceira definição é a seguinte: “o belo é a forma da
finalidade de um objeto enquanto ela é nele percebida sem representação de fim.
O objeto belo é aquele que parece Ter sido feito não com o fim de ser útil a tal ou
qual fim nem corresponder a um certo tipo original de perfeição intrínseca, mas com o
intuito de nos agradar sem que nos seja fácil compreender a razão desse prazer. Ao ver um
edifício um poderá dizer que viu o edifício, mas o arquiteto poderá admirar a solidez da
construção, o primeiro ouviu do ponto de vista da finalidade subjetiva, o segundo da
finalidade objetiva. Outros poderão vê-lo sobre o aspecto da sua beleza, e em todos pode
haver um juízo do belo, mas o artista captará a significação das suas linhas, da sua
simbólica e só ele experimentará o sentimento do belo.
4)A universalidade dos juízos de gosto supõe a sua necessidade. Essa necessidade só
pode decorrer do sentido do belo que é comum a todos os homens inerente a forma do
nosso espírito, daí construir ele a quarta definição: o belo é o que reconhecido sem
conceito, como o objeto de uma satisfação necessária.
As quatro definições que Kant nos deu corresponde as quatro categorias pois a
ausência de interesse é uma qualidade, a universalidade se relaciona a quantidade, a
finalidade a relação e a necessidade a modalidade.
Reconhece Kant que há diversidade de gostos, mas esta decorre de procurarem uns
nos objetos a beleza aderente e outros a beleza livre.
Uma casa mal construída pode agradar aos olhos e ser por isso elogiada embora possa
ser despreciada por não convir a habitação.
As quatro definições do belo podem ser resumidas numa: “o belo é o que oferece
necessariamente em todos os homens uma satisfação fundada unicamente sobre o livre jogo
da imaginação e do entendimento. Kant nos explica em que consiste este livre jogo entre a
18

imaginação e o entendimento. A imaginação de que ele fala não é a reprodutora, que é uma
faculdade ligada as leis gerais da memória e da associação das idéias cujas operações não
tem nenhuma liberdade. A imaginação de que ele fala é a produtora, criadora que é causa
livre das formas arbitrárias de intuições possíveis. A harmonia livre dessas duas faculdades
supõe o capricho sem desordem e a ordem sem simetria matemática. A simetria de uma
planta tem uma razão de utilidade, não uma razão de gosto e a beleza que dela resulta é
apenas uma beleza aderente e não uma beleza livre, a natureza realiza a beleza livre sem
admitir a desordem nem a simetria, o canto dos pássaros que não podemos relacionar a
nenhuma regra musical nos agrada por sua liberdade. Sem a liberdade que a nossa
imaginação encontra, na mobilidade e diversidade das coisas, desapareceriam o sentimento
do belo, mas sem a harmonia, a liberdade de imaginação produziria apenas monstros.
Portanto a produção do problema do belo está no acordo do entendimento com a
imaginação. Só nessa acordância, há harmonia com liberdade.
Analítica do sublime
Assim como o belo, é o sublime objeto de um juízo de reflexão. Também é este juízo
a priori e não supõe conceito, contudo não se deve confundir com o sentimento do belo
com o do sublime apesar das analogias que apresentam.
Enquanto o espetáculo do belo nos faz perceber uma linha de harmonia entre o
entendimento e a imaginação, do sublime nasce do desacordo dessas faculdades e da
violência sofrida pela nossa imaginação pelo vago tanger do infinito. O oceano, a
tempestade, fazem nascer em nós o sentimento do sublime porque nos faz em pensar no
infinito. As coisas que nos apontam o infinito são sublimes. Enquanto o belo reside numa
forma, o sublime é procurado nos objetos cuja forma nos escapa e cujos limites não podem
ser atingidos pela nossa imaginação. A satisfação do belo “contém o sentimento duma
excitação direta das forças vitais, e por essa razão não é incompatível com os encantos que
atraem a sensibilidade. Enquanto que a satisfação produzida no sentimento do sublime é um
prazer que não se produz senão indiretamente, quer dizer que é excitado apenas pelo
sentimento de uma suspensão momentânea das forças vitais e da efusão que dela
decorrem... também o sentimento do sublime é incompatível com toda espécie de encanto e
como o espírito dele não se sente apenas atraído pelo objeto, mas também repelido, esta
satisfação é menos um prazer positivo do que um sentimento de admiração e de respeito”.
19

No sublime há uma violência feita a imaginação e ao entendimento. Este é a


faculdade do finito, e há nele uma harmonia entre a razão, que é a faculdade do infinito, e
os objetos que incitam a imaginação a ultrapassar os limites do seu próprio império ou seja
o mundo dos fenômenos. Daí haver no sentimento do sublime simultaneamente um prazer e
uma mágoa. A mágoa nasce da desproporção sentida pela imaginação entre a grandeza
estética e a grandeza racional. O prazer surge da acordância entre dois juízos e do mesmo
espírito em que um afirma a minha impotência de pela imaginação sair do mundo sensível e
o outro me afirma a existência de um mundo supra sensível que embora inimaginável é
contudo concebido.
A consciência de minha impotência em imaginar é a consciência de conceber alguma
realidade além do que eu imagino. Porque sofro ao ver as coisas do mundo sensível senão
por ter consciência de que não posso delas me libertar.
Deste modo o sublime me revela a realidade do infinito ao mesmo tempo o
sofrimento que experimento por não poder penetrar nele por meio das minhas faculdades.
Pode o sublime ser produzido pelo espetáculo de uma grandeza inimaginável e temos o
sublime matemático ou pelo poder que parece querer esmigalhar-me e eis o sublime
dinâmico. Chamamos sublime as coisas que ultrapassam a nossa intuição e nos faz pensar
no mundo supra-sensível “o sublime é o que não pode ser concebido sem revelar uma
qualidade de espírito que ultrapassa toda a medida dos sentidos”.
“A natureza só é julgada sublime não quando ela é terrível, mas quando ela leva a
força que somos a considerar esta potência da natureza como não tendo nenhum império
sobre nossa personalidade desde que se trata de nossos princípios supremos”.
Pode-se aplicar ao Sublime a terceira definição do Belo. As outras convêm também
ao Sublime, mas em sentido diferente. Como o sentimento do Belo, o do Sublime é
desinteressado, é universal, embora sem conceito, é necessário. Mas enquanto o Belo é ao
mesmo tempo independente de todo interesse sensível e todo interesse moral, o Sublime
não é estranho ao interesse moral, enquanto é totalmente estranho ao interesse sensível,
pois lhe é contrário e o violenta.
Enquanto o Belo é ao mesmo tempo independente de todo conceito do entendimento
e de toda idéia da razão, o Sublime é apenas independente dos conceitos, não, porém, das
idéias, pois ele faz nascer a idéia do supra-sensível.
20

Se o sentimento do Belo é comum a todos os indivíduos, o do Sublime apenas é capaz


de se tornar tal, pois é mais próprio dos que tem um sentimento moral mais desenvolvido.
O homem vulgar vê nos espetáculos sublimes apenas o perigo, sente a violência e não a
superioridade da natureza sobre a razão. Contudo, a educação não nos fará capazes de sentir
o sublime se não tivermos aptidão para ele. Há, portanto, um sentido comum do Sublime e,
portanto, os juízos do sublime podem pretender o assentimento de todos os homens, como
os juízos do Belo.
Pretende a escola sensualista que tais sentimento são apenas fenômenos fisiológicos,
em que o sentimento do Belo produz um relaxamento das fibras do corpo enquanto o
Sublime uma tensão dos nervos. Se fossem tais sentimentos empíricos, afirma Kant, como
poderiam os homens se entenderem quando falam do Belo e do Sublime, quando a variança
seria imensa. A acordância entre a imaginação e entendimento é submetida às mesmas leis
em todos os homens.
Teoria das Belas-Artes
A arte, segundo Kant, tem a finalidade de realizar o Belo e não propriamente o
Sublime. Contudo é na Analítica do Sublime onde Kant vai estudar as Belas-Artes.
Inicia por fazer uma distinção entre as artes liberais e as artes mecânicas. Estas tem
um fim útil ou agradável, enquanto aquelas tendem para a produção do Belo. A arte tem seu
fim em si mesmo
A escola sensualista do séc. XVIII reduzia a arte a uma imitação da natureza. Kant
não segue essa orientação. Para ele a arte é uma criação do gênio e não uma imitação. É
“mister” que a obra de arte não traia a forma da escola e não a lembre, de qualquer maneira
que a regra esteja sob os olhos do artista e que ela encante as faculdades do seu espírito.
Os objetos sublimes são aqueles nos quais não podemos alcançar a forma, porque nos
ultrapassam. Mas é a forma a essência da obra de arte.
Que é o gênio para Kant? Não basta Ter gosto e imaginação para Ter gênio; é mister
Ter alma, sentir um impulso do espírito para o infinito. Essa tendência do espírito é, para
ele, “nada mais que a faculdade de exibição de idéias estéticas”. Entende por idéias
estéticas “as representações da imaginação que fazem pensar muito, sem que nenhuma
palavra possa perfeitamente expressar o sobre o qual se pensa”. Pode-se empregar o termo
idéia para tais representações porque elas tendem a nos fazer ultrapassar o mundo sensível e
21

chama-se estéticos porque o artista não é capaz de expressá-las senão empregando uma
forma acessível aos sentidos. Assim o artista representa os seres que não pertencem ao
mundo sensível, com elementos destes, dando-lhe atributos e perfeições que não possui o
mundo real, modo a nos fazer pensar pela visão do sensível as coisas supra-sensíveis. Os
raios que os poetas põem nas mãos da Divindade, nos faz pensar na potência infinita que
não poderia nenhuma imagem representar. Por meio de uma forma nos faz sentir o que não
tem forma. E a grandeza genial do artista está precisamente em saber usar meios capazes de
nos provocar a intuição do que ultrapassa os nossos sentidos.
Contudo as artes, embora tenham em comum o que devem expressar pela forma,
diferem pela diversidade das formas que empregam para expressão da idéia. Uns expressam
pela palavra, outros pelas atitudes, outros sons. Temos, assim, três espécies de arte: a arte
falante, a arte figurativa e a arte do jogo das sensações.
A arte falante é a mais nobre, na qual se realiza o melhor acordo entre o entendimento
e a imaginação, cujo acordo consiste na eloquência que dá à severa razão uma forma que
encanta a imaginação, e na poesia que dá aos jogos da imaginação uma forma regular capaz
de satisfazer a razão. A arte do jogo das sensações como a música, é ao contrário, a última,
porque se nos comove mais que a arte figurativa e mais que a arte falante dirige-se contudo
mais à sensibilidade e a inteligência. Entre elas está a arte figurativa (as artes figurativas).
Há ainda as artes agradáveis, meros jogos do espírito, que Kant coloca em última lugar,
embora sem desprezá-las, pois a arte de fazer rir pode revelar um verdadeiro talento
cômico. E prefere esta à dos sonhadores “que quebram a cabeça”, a dos gênios “que
quebram o pescoço” e dos romancistas sentimentais “que partem o coração”.
Dialética do Juízo Estético
Para Kant, Dialética é a discussão de uma idéia considerada como absoluta. O Belo é
absoluto r revela-o a sua universalidade. Neste caso, há lugar para uma dialética do Juízo
Estético.
Sendo o absoluto um ser transcendental há razões iguais tanto para afirmar como para
negar a sua existência, ou seja cabe-lhe uma antinomia.
E esta é que apresenta o Juízo estético:
Tese: O juízo de gosto não se funda sobre conceitos.
Antítese: I juízo de gosto é universal, não precisando, pois, fundar-se em conceitos.
22

Contudo é possível a solução dessa antinomia. O juízo de gosto não se funda em


conceitos, ou seja em categorias, mas se funda sobre um conceito indeterminado e esse
conceitos é o seguinte: o do substratum supra sensível dos fenômenos.
O objeto que nos é capaz de fazer sentir, ou dar surgimento ao vago sentimento do
supra-sensível é chamado belo. Termina a dialética pelo nome das relações entre o belo e o
bem.
O sentimento do belo nos faz conceber vagamente o supra-sensível através das
representações materiais adivinhamos, reconhecemos o que permanece além da nossa
sensibilidade. As formas que nos fazem pensar os objetos invisíveis são belas. Alcançar o
supra-sensível por intermédio do sensível é a função do belo que nos permite gozar das
coisas do mundo inteligível.
O belo para Kant é portanto o símbolo do bem. Que entende Kant por símbolo? Nós
não possuímos intuição do supra-sensível, dos números. Mas há um meio de nosso
entendimento e nossa imaginação entrar embora vagamente em comunicação com o mundo
superior. Esse caminho é o símbolo que é uma representação sensível que embora não
habituada a uma idéia da razão nos faz pensar nessa idéia graças a analogia que existe entre
as reflexões provocadas por esta representação e aquelas que podemos fazer sobre a idéia.
Podemos desconhecer as leis do espírito que nos leva a buscar em toda parte a analogia
entre o mundo sensível e o supra-sensível. No entanto os últimos raios do sol poente nos
faz pensar na calma que experimenta o homem virtuoso no momento da morte. Kant cita
esta passagem de um poeta: “a luz do sol jorrava como jorra a calma no seio da virtude”,
graças a essas analogias podemos captar as idéias da razão por meio do símbolo. O símbolo
corresponde a razão, mais ou menos como o esquema corresponde ao entendimento. Há
uma espécie de conhecimento intuitivo do mundo inteligível. Conhecemos Deus não em si
mesmo, mas por meio do símbolo, por analogia, que nosso pensamento capta entre seu ser
inteligível e objetos da nossa intuição sensível.
Deste modo se vê que o belo é o símbolo do bem, pois a visão do belo nos pensar no
bem. As analogias que há entre ambos são as seguintes: como o bem o belo agrada por si
mesmo, e agrada imediatamente, independentemente de todo interesse. E por ser o belo
símbolo do bem que pode ele pretender o assentimento universal. E aí está o segredo do seu
caráter absoluto, ao sentido comum do gosto que existe em todos os homens, pois em todos
23

os seres dotados de razão esta se compra nas analogias que a elevam acima dos sentidos “é
o inteligível que o gosto tem em vista... é para ele que conspiram nossas faculdades
superiores de conhecer”. Deste modo o belo é um símbolo da razão e está submetido as leis
desta. O gosto é autônomo seria heterônimo se a sua regra fosse extraída da experiência
“eis porque a verdadeira propedêutica do gosto é o desenvolvimento das idéias morais e a
cultura do sentimento moral; pois é somente sob a condição que a sensibilidade esteja
adequada ao sentimento que o verdadeiro gosto pode receber uma forma determinada e
imutável”.
Analítica do juízo teleológico
Na crítica do juízo estético Kant analisou o belo que reside na forma da finalidade.
Na crítica do juízo eleológico propõe-se a estudar a finalidade quanto a sua matéria, ou
seja, a harmonia existente entre as partes componentes de uma coisa. Assim como o
entendimento concebe a natureza como produto de uma causalidade mecânica, a razão
prática concebe-a como de uma causalidade livre de uma vontade. O juízo que empreste a
causalidade mecânica do universo enfim livremente escolhido, participa tanto do
entendimento como da razão. Deste modo a finalidade é um conceito leve entre o de
natureza e o de liberdade. Há finalidade quando há apropriação intencional e que esta seja a
contingente, não explicada portanto nem pela necessidade matemática, nem pela
necessidade mecânica. Uma máquina nos revela a intencionalidade na disposição de suas
peças. É fácil reconhecer a finalidade nas obras de arte, não porém nos produtos da
natureza. Impõe-se um critério que nos permita distinguir a causalidade intencional da
causalidade mecânica, e este critério é a reciprocidade da causa e do efeito. Numa árvore
esta reciprocidade é evidente porque ela é causa e efeito de si mesma, pois cada uma das
partes conserva e é conservada pelas outras.
Essa finalidade é própria dos seres organizados. Contudo observa Kant que na
matéria inorgânica há certas disposições que indicam um fim proposto pela natureza, mas
este fim é um meio em vista de um fim superior, a vida doa seres organizados. É o que se
chama finalidade exterior. Há ainda nos organismos uma finalidade interna que consiste na
que tem cada uma das suas partes dirigidas para as outras partes. ‘Um ser organizado é pois
muito mais do que uma simples máquina; ele é dotado, além da força motriz de uma virtude
formatriz”. Conclui Kant que a crença na finalidade da natureza viva é necessária universal
24

consequentemente subjetiva. Se a finalidade estivesse na natureza, o espírito não a


descobriria a priori e ele só a capta a posteriori nos objetos. Este argumento de Kant
realmente é surpreendente, inconcebível, porque não explica a razão pela qual a ordem não
pode ser realizada fora do nosso espírito.
Se a ordem é uma exigência do nosso espírito, como compreender que somos capazes
de perceber a desordem nas coisas, neste caso teríamos a ordem em tudo. É verdade que
Kant recusa a objetividade, a idéia das causas finais apenas provisoriamente, pois considera
esta idéia de utilidade moral, sem a qual não poderíamos suportar as coisas desagradáveis e
é ela que nos ajuda a visualizar o lado bom das coisas, é o que vamos examinar na
metodologia.
Dialética do juízo teteológico
Há aqui também uma antinomia.
Tese – Toda a produção de coisas materiais e de suas formas deve ser julgada
possível pelas leis mecânicas. Este princípio é o que fundamenta a física em todas as
ciências da natureza.
Antítese – Algumas produções da natureza (seres organizados) não podem ser
julgados possíveis apenas pelas leis de mecânica. Foi o que se verificou na analítica.
Kant resolve a antinomia da seguinte maneira: nem a tese nem a antítese são
princípios subjetivos, mas simples máximas subjetivas, princípios reguladores.
A tese é uma lei do entendimento, uma lei do juízo determinante, antítese é uma lei
do juízo de reflexão. Quanto a realidade das coisas amas podem ser falsas, tomadas em sua
forma absoluta, exclusiva. É possível que mecanismo e finalidade se reconciliem e que seja
um só e mesmo princípio real, tenham uma mesma causa, embora pareçam distintos aos
nossos olhos. É possível que a necessidade física e a causalidade inteligente sejam em si
mesmas idênticas. Por acaso não se nos escapa a realidade das coisas? Ademais supor
assim nos evitaria as graves dificuldades a que nos leva a hipótese contrária os sistemas
filosóficos tem tido dificuldade na explicação da natureza, porque tem considerado o
mecanismo e a finalidade objetivamente distinto, Epicuro por considerar apenas a
causalidade mecânica e excluir a ausência de finalidade caiu na concepção do acaso, que
não é um princípio mecânico. Spinoza impressionado com a unidade e a harmonia reinante
na natureza supôs a unidade da substância em todos os seres, explicação absolutamente
25

insuficiente porque a unidade ontológica, a unidade da substância não é a mesma coisa


senão a unidade de plano, de conveniência, que nosso espírito encontra na natureza. Outros
têm apelado para o hilozoismo, para uma natureza viva e são refutados pela inércia da
matéria. Finalmente há uma quarta maneira de conceber o mundo que admite que a unidade
e a harmonia do mesmo é devido a uma inteligência distinta dela, um Criador que deu uma
direção a certas forças mecânicas e calculou com toda precisão própria de uma sabedoria
infinita os efeitos e as combinações as resultantes dessas forças. Eis uma hipótese sublime
que não apresenta as contradições dos outros sistemas, mas é uma concepção
transcendental, que só se justificaria se fosse demonstrado que o mecanismo é insuficiente
para a explicação da formação do mundo. “É absolutamente certo que não podemos
aprender a conhecer nada de maneira suficiente e com maior razão nos explicar os seres
organizados... por princípios puramente mecânicos da natureza; é absurdo para os homens,
tentar qualquer coisa de semelhante e esperar que um dia algum novo Newton venha
explicar a produção de um fio de erva pelas leis naturais as quais nenhum designo presidiu.
Quem sabe se talvez uma inteligência mais perfeita do que a nossa venha conceber esta
explicação mecânica que hoje nos parece impossível, que possa mostrar que o mecanismo e
a finalidade se confundem numa mesma explicação.
A distinção do mecanismo e da finalidade supõe o contingente e o necessário, mostra
Kant e consequentemente também o possível e o real. Ora, o possível e o real são conceitos
da modalidade, formas, portanto, do nosso espírito e uma mente que captasse por intuição o
mecanismo e a finalidade não faria distinção a esses dois pontos de vista subjetivos do
entendimento humano. E qual, pois, o fundamento dessa distinção ante nós, quando não há
na realidade fora de nós?
A essência de tais fenômenos é um número, que nos é desconhecido, um substrato
que ultrapassa os nossos meios cognoscitivos. Essa é a razão da harmonia das leis da
natureza, harmonia que chamamos finalidade, que não será nada mais que o efeito de uma
causa eficiente. Se conhecêssemos tais leis, compreenderíamos que essa ordem é inerente
ao mundo.
Termina Kant por afirmar: "o princípio comum de onde derivam de um lado o
princípio mecânico e de outro o princípio teleológico sendo supra-sensível, nos é
impossível Ter dele o menor conceito determinado e afirmativo”.
26

Metodologia do Juízo teleológico


“É permitido ao arqueólogo da natureza servir-se dos vestígios ainda subsistentes de
suas mais antigas produções, para procurar, em todo o mecanismo que conhece e que
suspeita, o princípio dessa grande família de criaturas... ele pode fazer sair do seio da terra,
que é por sua vez saída do caos (como um grande animal), criaturas nas quais o são
encontradas um pouco de finalidade, mas que produzem outras por sua vez, melhor
apropriadas em lugar de seu nascimento e de suas relações recíprocas, até o momento em
que essa matriz se envelhece, se ossifica, e limita seus partos a espécies que não devem
mais degenerar, e onde subsiste a variedade daquelas que ela produziu, como se essa
potência formadora e fecunda fosse enfim satisfeita. Mas é mister sempre, em definitiva,
atribuir a essa mãe universal uma organização que tenha por fim todas essas criaturas”.
Há realmente na natureza o sinal de uma finalidade, como se vê na transmissão dos
caracteres benéficos ao interesse da espécie que são transmitidos de pais e filhos, e não,
propriamente, aqueles secundários que variam segundo os indivíduos. Que lei rege essa
seleção realizada pela natureza? Um mero acidente é impossível. A univorsidade revela
uma lei e essa não pode ser uma mera lei mecânica. Poder-se-ia alegar com os exemplos de
monstruosidade, exceções que surgem na hereditariedade, mas esta sempre se manifesta em
aspectos secundários e a sua excepcionalidade não desvia a presença de uma lei. À ciência
cabe estudar tais fatos e explicá-los e as doutrinas diversas que tem surgido para explicá-los
não têm sido satisfatórias. Kant as examina, pelo menos aquelas que conhecia. Examina
com cuidado a doutrina da epigênese que recusa aceitar que os seres vivos encerram desde
o princípio seus semelhantes no estado de germes já formados. Esta doutrina supõe apenas
que a matéria orgânica tem uma tendência a formar seres vivos. Desse modo, Deus teria
criado apenas o primeiro indivíduo e a faculdade de perpetuar a sua espécie, cabendo às
forças da natureza realizar o resto. Por admitir este sistema as causas segundas, abre ele um
vasto campo às pesquisas dos que deseja conhecer as leis da natureza e é por isso preferida
por Kant. Contudo resta demonstrar ou pelo menos explicar esse maravilhoso poder que
tem a natureza de se reproduzir. Se cabe à matéria um poder de certo modo criador, se é ela
um artista. Exige este um princípio inteligente. De qualquer modo é mister recorrer a Deus,
pois como explicar uma inteligência numa força cega como é a da natureza? Construir uma
máquina capaz de criar outras inteligentemente, revela um poder superior do criador da
27

máquina. Kant cita um trecho de Blumenbach, que reproduzimos, em favor da doutrina da


epigênese: “Se a matéria bruta se tivesse formado a si mesmo originariamente segundo leis
mecânicas, se a vida tivesse podido sair da natureza morta, e a matéria tivesse podido tomar
espontaneamente a forma de uma finalidade que se conserva a sai mesma, é o que
Blumbach considera um juízo absurdo”. Não se pode explicar essa ação da natureza sem as
causas finais.
Desse modo a natureza revela que é um sistema de fins, porque não podemos explicá-
la senão pela ação de uma causa inteligente. Se as partes que compõem os seres vivos,
organizados, tem por fim o conjunto, a vida desse ser tem por fim a utilidade de um ser
superior. Para que os vegetais? Para servir de alimento aos animais. E para que os animais?
Para servir ao homem. E o homem por sua vez? Tem naturalmente um fim mais elevado. É
a lei moral, que a lei suprema do homem. É para cumprir a lei moral que todo o universo
foi realizado. Tudo, em suma, foi feito para o homem. Contudo nem todas as coisas foram
feitas para o bem do homem, pois há muitas que lhe são prejudiciais. Os obstáculos servem
para experimentar a nossa coragem e dão à nossa liberdade ocasião de se elevar na luta.
“Se pois as coisas deste mundo, enquanto seres condicionais, exigem uma causa
suprema agindo segundo fins, o homem é a meta final da criação: senão a cadeia dos fins,
subordinados uns aos outros, não teria princípio; e é somente no homem considerado como
sujeito da moralidade, que se encontra essa legislação incondicional, relativamente aos fins,
que o tornam o único capaz de ser meta final à qual toda a natureza deve ser
teleologicamente subordinada”.
Uma inteligência presidiu a ordem física e a prova teleológica vem corroborar aprova
físio-teleológica exposta em Crítica da :Razão Pura.
A ordem moral supõe um autor que possui em si a plenitude do Be,. Um Deus
perfeito, e a perfeição supõe a unidade, já que a potência pode ser repartida não, porém, a
perfeição. Esse Deus é Todo-Poderoso para poder proporcionar uma vida futura na qual a
felicidade seja dada a quem o merece. Tem de ser um ante eterno e imenso e sobretudo um
Deus bom, mas também terrível. É o Deus do cristianismo que além de tudo é amor e ao
qual se erguem os altares.
“Os seres honestos devem merecer ser felizes, a natureza, que não se interessa por
essa consideração, os expõe, como os outros animais da terra, a todos os males, até que um
28

vasto túmulo os arrebata e os repila, eles que podiam crer que a meta final da criação, no
abismo da matéria cega de onde eram saídos. Assim esse homem de bem deveria
abandonar, como absolutamente impossível, essa meta que tinha e que devia ter em vista do
cumprimento de leis morais; ou... precisaria que no fim prático, quer dizer para se fazer um
conceito ao mesmos da possibilidade da meta final que lhe é prescrito, reconhece a
existência de uma causa moral do mundo, quer dizer Deus.”
Conclui que nosso conhecimento sobre Deus reduz-se ao que nos foi mostrado na
Crítica da Razão Prática, ou seja só sabemos sobre Deus os atributos morais que tem e não
os atributos metafísicos, como seja o da sua existência fora do espaço, a sua inteligência
intuitiva, que nada mais são que hipóteses cuja realidade não podemos afirmar.
E esses atributos morais o são apenas em analogia aos nossos atributos. A fé convém
melhor aqui que o conhecimento. Se nos magoa não poder nossa razão penetrar mais longe,
lembremo-nos que “a sabedoria impenetrável pela qual existimos não é menos digna de
veneração pelo que ela nos recusou do que pelo que ela nos deu em partilha”.
O homem, pela razão especulativa, conhece os fenômenos e as idéias absolutas
incondicionais são os princípios reguladores da experiência. Pela razão prática o homem
conhece a Ordem como independente dos fenômenos. Finalmente, pelo raciocínio de
reflexão capta a ordem nos fenômenos, nos objetos materiais. Essa faculdade intermédia
entre o mundo dos sentidos e o mundo da razão apresenta dois graus: um próximo ao
mundo sensível e outro próximo ao mundo racional. Quando a ordem se manifesta nas
coisas sensíveis é mais sensível que inteligível, e temos então o juízo estético; quando se
a]manifesta numa intenção num desígnio, é mais inteligível que sensível e temos o juízo
teleológico. Pelo juízo estético captamos a harmonia entre nossas faculdades e o que realiza
essa harmonia é o Belo. Pelo juízo teleológico percebemos a harmonia que há entre as
partes do objeto e entre este e o fim a que se destina.
A beleza, portanto, não reside no objeto, mas no nosso espírito. O objeto é apenas
uma causa ocasional que provoca a acordância entre nossa imaginação e o nosso
entendimento. Para tal é mister que haja no objeto a variedade que agrade a imaginação e a
unidade que agrada ao entendimento.
O juízo do Belo é, pois, subjetivo. O Belo é o símbolo do Bem, um símbolo que nos
faz pensar por analogia a alguma idéia. Por sua vez o juízo do Belo tem suas analogias com
29

o juízo moral. É desinteressado, porque o bem vem da satisfação das nossas faculdades
intelectuais e não da satisfação dos nossos sentidos. O Belo revela a harmonia pois realiza a
harmonia em nossas faculdades e essa harmonia nos lembra a que deve haver entre nossa
vontade e a lei moral. A lei moral é pois a razão de ser do juízo estético. Deve haver uma
intenção na natureza para produzir o Belo, pois se o bem moral é o fim de toda coisa e se a
natureza nada faz senão para nos preparar a concebê-lo, não teria ela posto nas coisas o que
constitui o símbolo do Bem.
Reconhece Kant no Belo um caráter simbólico do Bem. Reconhece assim na natureza
uma finalidade que ele anteriormente combatido. Nesse caso o Bem não é mais subjetivo,
mas objetivo e que as coisas têm a aptidão de produzir em nós o sentimento estético.
Desse modo a arte tem como finalidade exibir as idéias estéticas, ou seja produzir
representações que nos apontem as coisas inteligíveis. Por isso a grandeza da arte e o seu
fim moral.
E é Sublime o que nos faz antever o infinito, tornando-o de certo modo inteligível.
Kant afasta-se aqui do cepticismo que o dominou. Se o homem nada sabe de Deus
pela razão especulativa, sabe pela razão Prática que ele é bom, perfeito, eternamente
perfeito. Mas esse conhecimento não é ciência, mas fé. Uma fé prática.
Kant mantém contudo sua posição quanto à Metafísica; esta não é apta a dar ao
homem o conhecimento a que ele aspira: conhecer Deus.
Quanto à validez dessa posição, já a refutamos em nossa crítica à sua Crítica da
Razão Pura, para onde remetemos o leitor.
Crítica da Crítica do Juízo
Só há ciência onde os juízos se tornam universalmente válidos e onde os postulados
são demonstrados apoditicamente. Onde reina a opinião, onde as asserções são várias e o
postular desordenado, a confusão nas idéias e nos propósitos é a mais vária e a ciência,
propriamente dita, se ausenta totalmente. O observarmos o espetáculo das idéias modernas,
o ambiente vário, tumultuário e disperso das teses estéticas, a variância nas opiniões nos
demonstram, de modo claro e definitivo, que se palmilha um terreno de confusão e de
desordem científicas.
Mas esse espetáculo ainda não é o que nos escandaliza. O que realmente provoca
escândalo é a submissão da inteligência humana sofisticamente servir de instrumento para
30

defesa das idéias mais arbitrárias, mais infundadas e prestar-se aos mais entusiásticos
discursos em defesa das idéias mais abstrusas e mais inconseqüentes. E alcança tal ponto a
desordem e até certo ponto a prostituição da inteligência que muitos preferem em vez de
argumentação sólida na exposição de suas doutrinas, impô-las pela força e pela violência
não trepidando até chegar à liquidação pura e simples de seus adversários, buscando uma
unanimidade falsa e imposta, como se vê no terreno das relações sociais, no campo da
política que alcança essa monstruosidade que é a negação da própria inteligência que é o
totalitarismo seja de que cor ou matiz que se apresente.
Pretendeu Kant com a sua Crítica do Juízo oferecer uma solução, embora não
definitiva, mas pelo menos altamente elogiável, dentro de uma ordem de idéias e de
argumentos, fundada nas suas doutrinas, que servissem de ponto de partida para a
especulação estética e evitasse o que não pode evitar, a desordem das opiniões e o ridículo
espetáculo das mais desencontradas doutrinas estéticas que brilham intermitentemente,
como fogos fátuos, por entre os cadáveres de tantas doutrinas, que jazem no campo de
batalha das maiores excrescências que a inteligência humana já foi capaz de criar.
Kant considerou entendimento a capacidade de conceber categorias e de formar
juízos determinantes ao aplicá-las à experiência. Chamou de razão a faculdade de pensar o
Ideal, o Infinito, noção cuja objetividade só pode ser demonstrada pela lei moral. O juízo de
reflexão é o meio para alcançar duas noções, o do Belo e a de finalidade, noções aplicáveis
à experiência, que, contudo, pode realizar-se em elas, porque as precede. Elas só surgem no
objeto concebido pelo entendimento.
Há fundamento em considerar o entendimento como distinto da razão, e se há que
espécie de distinção se pode atribuir-lhes? Ora, o entendimento implica sempre a razão nas
suas operações. Portanto...
O tema do Belo, com exceção de Platão e Santo Agostinho, ficara entregue às
especulações empíricas por parte dos filósofos. Kant realmente abre um novo caminho para
a Estética. Não se preocupa com os fenômenos psicológicos que o Belo provoca, mas busca
o seu conteúdo. Mas, na verdade, é impossível um estudo devido do Belo sem considerar os
efeitos psicológicos que uma obra bela provoca em seu espectador.
Kant nega o belo-em-si para afirmar apenas o belo que só existe para o espírito
humano como um símbolo do Bem. É o que se depreende de suas definições que nada nos
31

dizem do Belo mas apenas do Belo em nós. A distinção que faz entre o Belo e o Sublime é
realmente extraordinária, pois ninguém, até então, realizara uma exposição tão profunda e
segura de tal tema.
O Sublime existe apenas em nós. Mas o argumento de Kant é de que só existe em nós
porque o Sublime é o Infinito e este não existe na natureza. Realmente a natureza não pode
ser infinita, mas ela tem uma analogia com a infinitude.
Que há algo do belo nos objetos é evidente porque há objetos que têm o poder de
despertar em muitos as emoções que a beleza provoca.
O Belo é o esplendor do Bem. E dizia Platão que pudéssemos perceber o Bem com os
olhos ele nos excitaria os mais maravilhosos amores que pode viver um ser racional. Se há
um ser capaz de contemplar o Bem esse ser contemplará também o Belo em toda a sua
pujança.
Os argumentos de Kant em favor da finalidade podem ser contestados, como o tem
sido. Mas a contestação feita não os destruiu. Tudo na natureza aponta uma finalidade.
Deve-se, contudo, compreender que o conceito de finalidade em Kant é um tanto especioso
e melhor diríamos um tanto vulgar. Kant desconhecia os melhores trabalhos sobre o
princípio de finalidade que já haviam realizado os escolásticos, de modo que se prendia a
certas maneiras muito comuns de considerar a finalidade. Ora, o conceito de finalidade, de
fim é intrínseco ao conceito de ato, de agir e de ação. O nada não pode ser meta de uma
atuação, porque um agir que tendesse para o nada nada realizaria. Há sempre um terminus
adquem para onde tende o agir e esse termo é um fim próximo ou remoto da ação. Toda
ação realiza-se em algo, ou melhor todo agir tende para algo. Esse algo é sempre
proporcionado ao agente e já traz em si formalmente algo da natureza do agente, pelo
menos analogamente. O agir tende in(intende) para algo que é o seu fim próximo ou
remoto. Negar a finalidade é negar a própria operação do agente. A Filosofia Concreta
coloca a finalidade sob bases ontológicas e seguras. Não é difícil, depois, distinguir as
diversas maneiras de ser da finalidade.
Palavras finais
É inegável a influência que exerceu a filosofia de Kant na filosofia posterior alemã e
também em todo o desenvolvimento da filosofia européia até nossos dias. Basta que
32

rememoremos os nomes de Fichte, Schelling, Jacobi, Hegel, Schopenhauer, para citar


apenas os mais famosos, para que a nossa asserção seja perfeitamente justificada.
Com exceção apenas de Schopenhauer, que levou o cepticismo kantiano às suas
últimas conseqüências, alcançando o niilismo, todos os outros recuaram e dispuseram-se a
criticar a obra do pensador de Koenigsberg com um vigor e uma pujança inegáveis. É
verdade que muitos dos argumentos contra o kantismo, que não só foram formulados pelos
autores acima citados, mas também por outros de todos os quadrantes da filosofia, há,
contudo, alguns que por seu caráter específico, pois são correspondentes às diversas
posições tomadas pelos filósofos acima, nós não compendiamos na parte crítica que
fizemos à obra kantiana. É precisamente sobre esses argumentos que desejam os agora
tratar, na medida em que são úteis para melhor desenvolvimento de nossas idéias e na
proporção que oferecem elementos para um exame mais em profundidade da doutrina
crítica.
Uma das primeiras perguntas que podem desde logo surgir é como é possível explicar
que filósofos que tiveram seus pontos de partida nas mesmas premissas de Kant chegaram a
conclusões completamente inversas. Não há aí nenhuma contradição, pois de premissas
verdadeiras pode-se tirar conclusões falsas, como se vê na Lógica. Mas o que na verdade há
é que as premissas de Kant não eram verdadeiras, mas sim falsas. O sistema kantiano
destrói a si mesmo se levado com rigor lógico a análise das premissas e das conclusões. A
sua obra está eivada de incoerências, de contradições e deficiências de tal monta que
arruinam totalmente suas pretensões. Não se pode, contudo, negar que o poder de sugestão
que oferece a mentes desprevenidas é enorme e é o que nos explica porque encontrou tantos
seguidores e pode exercer tão grande influência sobretudo numa época de transições como
é a nossa, em face das promessas de destruição dos valores filosóficos do passado que a sua
obra prometia.
Além dos argumentos que oferecemos que reúnem o que mais seguro se tem
apresentado em oposição ao pensamento kantiano, é mister não esquecer os outros que
Herbart, Jacobi e Hegel ofereceram, que passaremos, por sua vez, a compendiar. Uma tese
cara a Kant é a de que todo o nosso conhecimento é subjetivo. Ora essa afirmativa levou à
pergunta se não havia elementos fundamentais objetivos em favor do conhecimento. Se o
homem não conhece nada mais que suas idéias como pode Ter ele qualquer conhecimento
33

de um mundo transcendental, como pode ele investigar algo sobre esse mundo, que pode
ser um puro nada. Por outro lado como seria possível assegurar a existência do mundo
exterior se toda nossa experiência se fundamenta apenas em formas subjetivas e todo
fundamento do conhecimento que parte da experiência é meramente subjetivo?
Kant fez esforços consideráveis para escapar do solipsismo de Berkeley, mas na
verdade não conseguiu, senão através das afirmações da Crítica da Razão Prática que
podem muito bem valer por uma concessão em face do pensamento dominante que não se
atreveu a combater definitivamente, como a censura seu mais perfeito continuador que é
Schopenhauer. Fichte, por exemplo, em face dos argumentos kantianos e sentindo-se
impotente para desfaze-los, prefere aceitar fideistamente a existência do não-eu, elementos
apenas de fé.
Schelling para salvar a realidade do mundo exterior identifica a natureza com o nosso
espírito. Deste modo natureza e espírito são apenas duas manifestações de uma mesma
substância, o Absoluto.
Sigamos, contudo, uma ordem. Logo que Kant expôs suas doutrinas teve diversos
discípulos que adotaram as suas idéias sem reservas, como Reinhold, Mellin, Beck,
enquanto outra parte de seus discípulos opôs-lhe tenaz resistência e os quais concluíram
que o pensamento kantiano levado às últimas conseqüências teria de desembocar no
ceticismo e daí no niilismo, o que aliás se deu com Schopenhauer. Entre os discípulos que
se opuseram às suas idéias, podemos salientar Schulze e Maimon. O primeiro em seu
Aenisedemus afirma que Kant não pode acreditar na existência do mundo exterior, pois se
só conhecemos os fenômenos e os númenos nos são desconhecidos, sob que fundamento
podemos afirmar que existam? Podem perfeitamente não existir e reduzir-se toda realidade
apenas aos fenômenos. Maimon vai mais longe. Chega a negar até as leis do sujeito
pensante. Recusa a Kant o direito de afirmar que o tempo e o espaço sejam formas de nossa
sensibilidade e que os conceitos a priori tenham legitimidade em sua aplicação à
experiência. Esses discípulos levaram o pensamento de Kant até às suas últimas
conseqüências e mostraram que um pensamento coerente, fundado nas premissas do mestre
de Koenigsberg não poderia chegar a outras conseqüências que as que eles apontavam.
Jacobi pôs-se, contudo, a combater os fundamentos do pensamento kantiano. Não só se pôs
34

a combater o idealismo transcendental de Kant, como o idealismo céptico de Hume e o


idealismo panteísta de Schelling.
A realidade em que se funda Jacobi é a conseqüência psicológica. A consciência
moral que Kant nada mais é que a consciência psicológica. Essas faculdades são idênticas.
Kant se separou por uma abstração. Nós temos em nós um sentido íntimo do Verdadeiro,
um sentimento invencível e indiscutível, tão sagrado como o sentido do Bem. Acusa Kant
de ter desconhecido as leis do espírito humano. É desconhecer a natureza do espírito
afirmar o sujeito pensante e pôr em dúvida a realidade da verdade pensada, afirmar a
sensação e duvidar da realidade do objeto sentido. É num mesmo fato de consciência que
captamos o sujeito que sente e o objeto sentido, o sujeito que pensa e o objeto pensado.
Separar o sujeito do objeto é um abstracionismo inaceitável. Afirma Jacobi, atacando assim
a tese fundamental do pensamento de Kant, que o conhecimento do objeto precede a idéia.
Os objetos são distintos e anteriores à idéia que deles formamos. A atividade e a
causalidade são fatos de consciência e não abstrações. Na causalidade não há uma relação
de sucessão, mas de simultaneidade. Sem a idéia e causa toda experiência é impossível,
afirma Jacobi. As coisas só nos são conhecidas pela resistência que elas nos oferecem, pelo
jecto que se coloca ob, a nós, o que nos revela a dupla causalidade, a das coisas e a nossa.
As objeções de Jacobi a Kant podem ser resumidas da seguinte forma, como o foram
por Desdouits:
1) Kant procurou as leis do espírito nas suas idéias e não nos juízos, esquecendo que
o juízo ou a afirmação precede a idéia ou concepção abstrata da coisa. Daí
sobrevem a sua pergunta se temos o direito de afirmar a realidade, a objetividade
de nossas idéias; não viu que esse direito provem de que antes de formar por
abstração a idéia do objeto, nós o percebemos e o conhecemos de antemão o
objeto como real.
2) Kant não vai até negar a fé natural, pois afirma a existência do mundo; mas é uma
inconseqüência, pois declara ao mesmo tempo que nossas percepções não atingem
a realidade.
3) Kant não viu no ser, a causa, a sucessão, a extensão senão como categorias
abstratas do entendimento ou formas da sensibilidade. Não notou que antes de
reduzir essas noções ao estado de abstrações, eu comecei por perceber em mim
35

uma causa real, uma sucessão real e, n resistência do objeto a mim, uma extensão
real.
4) A razão não é uma faculdade destinada a conceber um ideal imaginativo; ele tem
um objeto real, a saber Deus, que eu percebo num fato de consciência, no fato da
minha contingência e da dependência em que estou de Deus.
Os argumentos de Jacobi são realmente concludentes. Pode-se, contudo, objetar-se
que a sua identificação de razão e consciência é contestável.
Mas o que vale no pensamento de Jacobi sobretudo é que a minha contingência supõe
analiticamente a necessidade de um Ser Supremo. Podemos não perceber Deus, nem
poderia ele ser objeto de percepção, mas a dependência que dele estamos é que justifica a
nossa existência. É o mesmo argumento de Jacobi quanto ao espaço, pois se não
percebemos o espaço, percebemos ao menos que os corpos estão no espaço.
Imensamente importante é, porém, a crítica de Hegel ao pensamento kantiano. O
ponto de partida é a objetividade da razão, que Hegel procura demonstrar. “Um dos pontos
fundamentais da filosofia crítica é que antes de se elevar ao conhecimento de Deus e da
essência das coisas, é preciso investigar se nossa faculdade de conhecer pode nos conduzir
a ele... Este ponto de vista pareceu pleno de justificação, e excitou a admiração... e afastou
o espírito do objeto do conhecimento, para encerrá-lo no estudo de si mesmo e dos
elementos formais do pensamento. Ora, toda pesquisa relativa ao conhecimento não pode
ser feita senão conhecendo; levar suas pesquisas sobre esse pretenso instrumento do
conhecimento, é conhecer. Ora, querer conhecer antes de conhecer é tão absurdo como a
sábia precaução desse aluno que queria aprender a nadar antes de arriscar nágua”.
Como saber o alcance de nosso conhecimento senão pela análise do mesmo
conhecimento por meio do próprio conhecimento. O argumento de Hegel é o mesmo que o
de Jacobi, mas vai além.
Que são idéias puramente subjetivas? Hegel inicia por negar, porque uma idéia
subjetiva é uma idéia que não é conforme com a verdade. Mas a verdade só o é pelo
pensamento que a concebe, por conseguinte toda idéia é conforme com a verdade, pois é a
idéia que faz a verdade. Pode haver, contudo, erros, mas os elementos componentes do erro
são verdadeiros, como a montanha de ouro, pode não ser verdadeiro, mas montanha e ouro
o são. Contudo não é assim que procede Hegel, porque afirma ele que na essência das
36

coisas reside a contradição, daí defender ele as antinomias de Kant que são verdadeiras para
Hegel. Como não nos interessa senão a doutrina kantiana, deixamos de discutir esta posição
de Hegel.
Nosso conhecimento, segundo Kant, é limitado às coisas finitas. Mas, responde
Hegel, conhecer um limite não é Ter alguma noção do que lhe fica além? Não se sente uma
falta, um limite senão quando se vai além desse limite; o conhecimento não é limitado e
imperfeito senão se compara com a ciência universal e perfeita. Designar um objeto como
finito e limitado é fornecer a prova da presença real do infinito e do ilimitado, pois não se
pode assinalar um limite senão quando trazemos na consciência o ilimitado.
Herbart nos mostra que o erro principal de Kant consistiu em iniciar suas pesquisas
pela crítica de nossas faculdades. Uma tal crítica é impossível, pois nossas faculdades não
podem julgar sobre si mesmas.
Schopenhauer, verdadeiro discípulo de Kant, leva sua doutrina às últimas
conseqüências. O mundo é apenas representação e vontade. Mas vontade não é senão uma
força fatal da natureza que ela, no homem, identifica com o instinto, com o princípio vital
dos animais e plantas. Proclama o ateísmo e nega as teses da Crítica da Razão Prática para
blasfemar contra Deus e afirmar que “tudo é mal”, a vida é um mal e tudo o que a perpetua
e a favorece é um mal. O bem só poderia ser o total aniquilamento.
Do cepticismo metafísico cai no cepticismo moral. Era a conseqüência final do
pensamento de Kant. Quem pode negar a influência do pensamento em todas as concepções
modernas do materialismo, do pragmatismo, do positivismo, do cepticismo, do niilismo, do
desesperismo moderno?
O mundo já está saciado de descrença. Mas não pode, é verdade, voltar à pureza da
crença antiga, ingênua, mas profunda. A certeza não nos será mais devolvida senão sob a
forma de uma demonstração rigorosa. À fé tem de corresponder agora a ciência. Não há em
nossa afirmação menoscabo à fé, mas apenas a captação de uma evidência. Para que os
homens retornem à certeza é mister que provas robustas e universalmente válidas sejam
apresentadas. No roteiro das idéias filosóficas chegamos agora ao ponto decisivo. Todas as
possibilidades especulativas já foram experimentadas. Não nos resta mais investigar o meio
do caminho já percorrido. Queremos agora um porto seguro. E este só nos pode ser dado
através de um filosofar sobre bases apodíticas, sobre argumentos universalmente válidos. E
37

esse filosofar é o que realizamos com a filosofia concreta. Dia ainda virá em que se há de
compreender que era a única saída que nos restava, e também a única possibilidade que
oferecia condições fundamentalmente seguras.
A divisão entre fenômenos percebidos pelos sentidos, e noumenos, concebidos pela
razão torna-se o ponto de partida da sua filosofia da Crítica da Razão Pura. Os fenômenos
não nos permitem conhecer a essência das coisas. A sensação é a matéria da percepção e a
forma é a relação sob a qual consideramos, com o intuito de coordenar, as percepções de
nossos sentidos. Essa forma “é apenas na realidade, o esboço (esquema), a determinação da
figura e das qualidades do objeto; ela é apenas uma lei inerente à natureza do nosso
espírito, segundo a qual coordenamos as impressões fornecidas pela sensibilidade”. São o
tempo e o espaço essa forma, a relação que concebemos entre os objetos para coordená-los.
O espírito não pode conceber os fenômenos senão sucessivos e justapostos uns aos outros.
A sucessividade e a simultaneidade dos fenômenos geram os conceitos de tempo e espaço
que só têm uma existência ideal e não real-real. São intuições puras, são condições a priori,
porque puro é sinônimo de priori, ou seja anteriores a toda experiência, a toda intuição
sensível. São verdadeiros, porém, mas de uma verdade relativa, condições simples de
conhecimento sensível. Para admitir a verdade da intuição sensível é imprescindível aceitar
o tempo e o espaço, condições de todos os fenômenos.
Mas a percepção só nos faz conhecer as coisas segundo elas nos aparecem e não
como elas o são. A natureza tem uma realidade inacessível aos nossos meios de conhecer e
diferente dos fenômenos, do que se manifesta aos nossos sentidos. Desse modo julgava ele
evitar o idealismo de que seria fatalmente acusado. Kant negava o que sentíamos para
afirmar a realidade do que não sentíamos. A sua doutrina era, assim, paradoxal para muitos.
Mas Kant procura uma solução e para alcançá-la havia que estabelecer um método. E
esse método é o crítico, a análise das intuições puras, das idéias a priori. Essa ciência
analítica quer ele construi-la com a sua Crítica da Razão Pura. Não podia, contudo, Kant
evitar o cepticismo, embora não desejasse cair em suas malhas, quando partia da tomada de
posição que consistia em pôr em dúvida a veracidade da razão. Sem dúvida era patente a
influência de Hume, apesar de ter querido combatê-lo. Kant caia vencido ante o seu
antagonista e acontecia com ele o que é freqüente na história do pensamento humano: o
vencedor terminar por adquirir os hábitos do vencido e continuar até a obra do que julgava
38

Ter destruído. Na verdade, Kant sofria do preconceito dominante em sua época: o horror à
metafísica. Sua Crítica da Razão Prática, como veremos, era o fundamento possível de uma
demonstração da existência de Deus, no qual se examinar a prova ontológica (por nós
examinada em “O Homem perante o Infinito” renovava-o pelo conceito do possível, pois se
não existir um ser necessário nada teria sido possível, o que para ele, então, era uma prova
concludente.
Do que existe se conclui que há uma causa suficiente para produzir o mundo, do
contrário, como poderia este ter surgido? E como a série dos possíveis nos revela graus de
perfeição, a primeira causa teria de ser fatalmente a mais perfeita de todas, ou seja
infinitamente perfeita. O exame dessa prova é por nós feita oportunamente.
Mas essa confiança de Kant não durou muito, pois em 1766 publicou “Sonhos de um
visionário explicados pelos sonhos da metafísica”, em cuja obra renuncia elevar-se acima
do mundo material e proclama que a razão está fadada a permanecer num mundo quimérico
e imaginário. Além da nossa experiência sensível está um mundo para o qual não estamos
suficientemente preparados com meios de conhecimento. Mas, em Kant, o metafísico não
cansa de impulsioná-lo e ele mesmo confessa: ”A metafísica da qual meu destino me fez
amoroso... oferece suas duas vantagens. A primeira consiste em responder às questões que
propõe o espírito humano quando busca por meio da razão as qualidades ocultas das coisas;
infelizmente, o resultado engana muitas vezes o espírito. A segunda vantagem da metafísica
consiste em nos mostrar se a questão de que se trata dirige-se ao que se pode saber, e qual é
sua relação com a experiência sobre a qual devem se apoiar nossos juízos. Neste sentido, a
metafísica é a ciência dos limites da razão humana, e como um pequeno país tem sempre
suas fronteiras, e que é preferível conhecer a garantir suas posses do que aventurar-se a
fazer conquistas incertas, esta vantagem é a mais precisa e a que aprendemos estimar mais
tarde” (da obra citada, 2a. parte, cap. II).
Estas palavras não são de um desesperado, mas de quem ainda admite a possibilidade
de conseguir alguma coisa.
O cepticismo de Kant vai ter sua expressão acabada em Crítica da Razão Pura.
Contudo, já em “De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis”, tese realizada
em 1770, era céptico quanto ao conhecimento do mundo sensível e o tempo e o espaço já
39

surgiam como simples formas da sensibilidade, o, na obra anterior, eram apresentados


como reais, com existência absoluta.
Na Crítica da Razão Pura o espaço não é mais um ser necessários para que se dêem os
fenômenos, mas uma idéia necessária, indispensável, sem a qual é impossível pensar os
representativos desse período procuraram pôr no ridículo as verdades até então aceitas, não
eximindo dessa atividade Descartes e Leibnitz. Em todas as épocas há sempre filósofos que
lutam contra as verdades aceitas apresentando objeções que muitas vezes são renovadas
embora algumas se revistam de aparente novidade. Os sofistas sempre existiram e é
possível que sempre existirão e não é de admirar que nalguns momentos a vitória se
coloque do lado do erro bem como a verdade não possua defensores a altura do seu valor.
Na época de Kant o filósofo que gozava de grande celebridade era Wolf, usava este
de linguagem escolástica para expressar uma metafísica sombria e confusa. Kant, que fora
seu discípulo julgava que a escolástica exposta por Wolf fosse realmente o pensamento
mais fiel do processo filosófico medieval.
Neste período os materialistas estavam em ascensão enquanto o espiritualismo
representado por filósofos menores não encontrava homens a altura das suas finalidades,
pois apelava-se mais ao sentimento do que a razão.
Dos filósofos que mais influência exerceram sobre Kant tem que destacar-se Hume,
um dialético poderoso, que buscou por todos os meios derruir o princípio de causalidade,
reduzindo-se a uma simples relação experimental, a de sucessão, um dos sofismas mais
sérios que a filosofia conhece e que exerceu grande poder de sugestão a muitos filósofos
menores. O intuito de Hume era destruir a base fundamental dos argumentos em favor da
existência de Deus que haviam sido usados até então pelos medievalistas. Desde que se
destruísse o laço que ligava os fenômenos era impossível alcançar-se a Deus. Tende Hume
a levar a filosofia a apenas interessar-se pelos fenômenos que se davam no tempo e no
espaço, fazendo subsistir apenas puros fenômenos e sensações que não podem representar
nenhum objeto e idéias.
É pois inegável que o cepticismo de Kant sofria influência do seu século. De início
acreditava firmemente que se podia alcançar a metafísica através da especulação da razão.
Em seu “Tratado da Evidência nas ciências metafísicas” afirmava ser possível alcançar a
verdade, embora a certeza fosse difícil de ser atingida. Propunha que em vez de partir-se de
40

definições, iniciasse-se pela análise de um juízo até alcançar-se a noção metafísica,


decompô-la, após, graças a um minucioso exame até atingir a uma lista de axiomas cuja
comparação daria verdadeiros axiomas que seriam, afinal, o fundamento de uma filosofia
científica.
Examinava as provas a priori da existência de Deus, como o fez em seu “Do 2
....................................................................................................................................
Sabem todos que a filosofia de Kant trouxe novos argumentos em favor do
cepticismo. A refutação deste se fazia apenas por meio dos princípios da razão. Ora,
destruídos tais princípios pelo cepticismo, toda crítica estaria condenada ao malogro.
Na verdade, porém, não se pode considerar Kant um céptico no sentido pirrônico do
termo, pois ele não rejeita em absoluto todo e qualquer princípio, pois os afirma, como
veremos. E é fundado em tais princípios por ele aceitos e fundamentados que muitos
partem para refutar a própria doutrina de Kant.
Em sua Crítica da Razão Pura, como veremos, conclui pela subjetividade das idéias
da razão, o que ele fundamenta como uma conseqüência do fato psicológico, ou seja a
universalidade de nossas idéias, e sua necessidade a priori, ou seja, independentemente da
experiência.
E é precisamente demonstrando que a universalidade e a necessidade das idéias
implicam a objetividade e que, o por ele chamado subjetivo na verdade é relativo
condicional, e que as nossas idéias são absolutas incondicionais eternas a metafísica
idealista e céptica de Kant derrui-se completamente.
Kant aceita o princípio de contradição, o qual implica para ele todos os outros
axiomas da razão. Ora, muitos dos seus adversários alegam que desde o momento que se
admite uma só das proposições da razão é preciso admitir todas, pois elas estão ligadas
entre si por laços indissolúveis como manejaram tais argumentos os que se opõem a
posição de Kant será matéria da qual oportunamente trataremos.
Dizem alguns com muito fundamento que o cepticismo de Kant não é uma doutrina,
mas um método, nesse caso teria um meio e não um fim. É contudo verdade que certas
passagens da Crítica da Razão Pura nos levam a concluir que Kant adota um cepticismo

2
O manuscrito apresenta uma falha no texto.
41

absoluto, mas noutras nota-se que se afasta ele dessa posição para tomar uma que põe em
xeque o seu cepticismo.
Afirmam outros que Kant aproveitou-se do cepticismo apenas com o intuito de
sacrificar a metafísica em benefício da moral. Mas esta afirmativa é improcedente porque
em outras obras notamos que ele crê na possibilidade de alcançar a verdade por meio da
razão especulativa tendo contudo renunciado a esse fim em face do progresso que o
cepticismo alcançava nos dias de sua vida. Caracteriza o século dezoito o cepticismo e os
homens mais .........................................procurar alcançar com a mais honestidade o
pensamento que se deseja expor, evitando tanto quanto humanamente é possível a ignoratio
elenchi, a falsificação, amoeda falsa que tanto mal tem provocado para a filosofia e que é
um dos fatores mais poderosos do estado de confusão em que jaz atualmente o pensamento
filosófico no mundo, na verdade, hoje, num momento de refluxo ante a preponderância de
verdadeiras mediocridades que ocupam as cátedras alcançam ao mundo as idéias mais
abstrusas e a falsificação mais vergonhosa e indecorosa que já assistiu a história do
pensamento humano.
Não se pode negar, no tocante ao famoso filósofo de Koenigsberg, que as suas três
críticas (Crítica da Razão Pura, Crítica da Razão Prática e a Crítica do Juízo) têm sido as
obras sobre as quais mais se têm demorado os estudiosos, sem que por essa nossa
afirmação, queiramos menosprezar outros trabalhos seus, sobre os quais dedicaremos muito
de nosso tempo, pois são imprescindíveis para se obter uma visão nítida do seu
pensamento.
Não é de admirar que o leitor da obra de Kant encontra-se perplexo ante as suas
doutrinas quando assiste de um lado espiritualistas afirmarem que em sua obra estão os
mais sólidos fundamentos e as provas mais irretorquíveis em favor da sua posição e, de
outro lado, panteístas e positivistas afirmam que é nessa mesma obra que encontram os
mais sólidos argumentos em favor também da sua posição.
Ponto de partida da filosofia kantiana
A realidade do mundo está para Kant no mundo das idéias, nos noumenos ( de Nous,
em grego, espírito) e a natureza, o mundo fenômeno ( de phaos, luz, do que aparece) não é
mais que a sua manifestação sensível.
42

Parte, assim, da distinção entre fenômenos e noumenos. Deste modo se compreende


que o positivo, valorizando apenas os primeiros, considere que toda investigação deve
dirigir-se apenas aqueles e que é inútil toda pesquisa em torno dos segundos, visto Ter Kant
demonstrado que são eles inacessíveis ao conhecimento humano. O positivismo atualizando
apenas o fenômeno, tomou da doutrina kantiana, o aspecto negativo. Para essa posição
filosófica o conhecimento dos fenômenos, a sua sucessão, a sua natureza, as suas
correlações constituem o verdadeiro campo da ciência, considerando inútil, quimérico e
improducente a pesquisa em torno da natureza dos noumenos, que permanecem sendo
apenas o campo de atividade da metafísica e da religião. Desse modo o positivismo
modifica totalmente a definição clássica da filosofia. Esta que tinha por objeto a pesquisa
das primeiras e últimas causas das coisas passa a orientar-se em não mais procur...............
Apesar dos muitos erros que se encontram sua filosofia, inegavelmente Kant foi dos
filósofos modernos o que maior influência exerceu no século dezenove e ainda neste, e sua
obra é um manancial constante de sugestões para a filosofia de nossos dias, ora para
aproveitar-se dos seus postulados, ao fundar outros novos, ora para combate-los nem
sempre com a justiça e o exame que merecem.
Contudo, ninguém pode discutir o valor eminente de tão grande filósofo, mesmo
aqueles que se colocam em campo oposto aos das suas idéias. Se Kant pode ser acusado de
menosprezar os estudos medievalistas e de desconhecer a obra dos mais insignes escritores
desse período extraordinário da filosofia, nem por isso pode-se negar a pujança de sua
cerebração e a grandeza insofismável de sua obra filosófica.
Em vez de uma entrega incondicional à sua filosofia ou do desprezo sistemático de
sua obra, dever-se-ia, palmilhando com cuidado o que realizou, examinar-se sua obra, sem
paixão e sem pomadas prévias de posição, à luz dos mais seguros postulados da filosofia,
para não só aquilatar o seu valor como, sobretudo, fazer-lhe justiça na exposição mais fiel
quão possível, e sobretudo honesta, do seu pensamento.
Este livro que ora damos à publicidade tem apenas uma finalidade: oferecer ao leitor
bem intencionado os meios suficientes e fundamentais para o exame mais detido de sua
obra, pois é mister dar ao leitor os meios mais capazes de uma visão sintética do seu
pensamento para que possa, depois, analisar com segurança suas obras capitais e estar
assim apto a formular um juízo seguro da posição filosófica que ele ofereceu, sem cair nos
43

parcialismos que tanto mal têm feito à filosofia, setor onde, mais que em qualquer outro,
tanto se tem falsificado o pensamento humano, apresentando falsamente os fundamentos de
uma cosmovisão, tornando-a, assim, fácil para que com alguns golpes simples se possa
reduzir ao absurdo o que nem sempre está dele eivado.
Não somos partidários da filosofia de Kant nem seus adversários. Nossa posição
filosófica já foi bastas vezes descritas. A filosofia concreta que é a nossa, que procuramos
dar corpo e nitidez, não nos permite tomadas prévias de posição e nos livra, desde logo, de
todo sectarismo. É para nós da dignidade do filósofo examinar com isenção de ânimo e com
justiça o pensamento alheios e proclamação da vitória da razão prática sobre a razão
teórica. Em seu século o pensamento cínico dominava muitas inteligências que
proclamavam o primado dos instintos. É inegável que Rousseau exerceu grande influência
sobre ele. E este, para quem a inteligência era também instinto, proclama haver no homem
um instinto divino que se opunha aos instintos meramente animais, sem deixar de ser tão
natural quanto estes. O sentimento moral era mais poderoso e impelia o homem à crença na
divindade. Se a razão especulativa era pobre e falha para alcançar a divindade, não o era a
razão prática. À impotência da especulação teórica seguia-se a salvação pelo poder da razão
prática. Mas, na verdade, o intuito de Kant malogrou, apesar dos seus intuitos, porque foi a
Crítica da Razão Pura que influiu em seus discípulos e seguidores, foi ela que ofereceu
frutos ao filosofar, e esses frutos foram os sistemas panteístas, idealistas, cépticos e
positivistas que surgiram após ele.
Passemos, pois, a expor em suas linhas gerais, com a crítica que se faz mister, as três
obras mais famosas do pensador de Koenigsberg, seguindo a sua sucessão cronológica.
Um ponto importante a ser examinado é o que se entende por metafísica. É mister, de
antemão, dizer-se o que se pensava na época de Kant sobre o conceito de metafísica e o que
ele, sobretudo, julgava ser metafísico, para finalmente, estabelecer-se o verdadeiro conceito
dessa disciplina. Da análise desse conceito, historicamente, feito, poder-se-á compreender
nitidamente o que levou Kant às atitudes tomadas, sobretudo numa época em que o termo
“metafísico” era pejorativo e soava até como uma palavra de escândalo e de irrisão.
44

Crítica da Razão Pura


Análise
Examinando o progresso que se verificava já na ciência, inicia Kant assinalando que
o mesmo, contudo, não tem verificado quanto à metafísica, cujos resultados continuam
duvidosos e a verdade ainda tão distante quanto estivera.
É ele que escreve: “Houve um tempo em que ela foi a rainha das ciências. Se
tomamos a intenção pelo fato, é mister convir que a grande importância de seu objeto bem
lhe merecia esse título; mas o espírito de nosso século, alcançando o desprezo, levou-a ao
abandono, à aversão, reduzindo-a a lamentar-se como Hécula:
“Modo maxima rerum
Tot generis natisque potens...
Nunc trahor exsul, inops (1)...”
Realmente esse era o estado em que se encontrava a metafísica na época de Kant,
como salientamos em páginas anteriores. As tentativas feitas para resolver a problemática e
as aporias correspondentes, que a metafísica oferecia, pareciam Ter malogrado, não
alcançando as metas desejadas. Era esse o preconceito da época, em face do refluxo que se
verificava na escolástica, e em que se julgava como realmente verdadeiro que todo o
passado havia malogrado definitivamente. Contudo, não se pode negar que no tempo de
Kant os filósofos tanto da Igreja como fora dela não estavam à altura dos que haviam
antecedido, onde a obra de gigantes do porte de Santo Agostinho, Santo Anselmo, São
Boaventura, Duns Scot e Suarez estavam quase totalmente esquecida, ou seguida por
filósofos expositores de menor porte.
Contudo Kant perguntava:
“Para que proclamar a indiferença pelas buscas cujo objeto não é indiferente à
natureza humana? Também tais pretendidos indiferentes... não querem de antemão pensar
sobre qualquer coisa, já que recaem inevitavelmente nas proposições metafísicas pelas
quais, contudo, professam um tão grande desprezo.
Talvez todo o erro estivesse no seguir as vias já percorridas. Mas, acaso, não haverá
outra via, mais segura, melhor condizente aos termos desejados?
45

É mister descobrir essa via. E como consegui-lo, sem realizar uma análise através das
outras ciências, para perscrutar nessa quais providências empregaram para conseguir esse
bom caminho, essa via, em suma, seu método.
Basta que se olhe o que obteve Aristóteles com a lógica, o que obtiveram Tales e
Pitágoras com a matemática. Também era inegável a segurança que obtivera a ciência
graças aos trabalhos de Bacon. Essas ciências revelam uma estrutura rigorosa em que as
demonstrações podem ser apoditicamente realizadas, sem necessidade de uma busca
infrene, de uma especulação constante, revertendo dos resultados aos antecedentes,
constantemente e sujeitas a depararem inesperadamente com contradições e aporias
insolúveis. E por que tal se dá com essas ciências e não se dá com a metafísica? Colocada
essa pergunta, Kant responde: o que caracteriza tais ciências é que elas não procuram saber
o que são os objetos em si mesmo, mas c]sim como o são em nossa mente, no nosso
pensamento. Aí está a razão da exatidão de tais ciências. A lógica, por exemplo, seu objeto
é apenas: expor completamente e demonstrar estritamente as regras formais de todo
pensamento”.
Ele não tende a demonstrar nem a conhecer o que se dá real e entitativamente nos
objetos, mas apenas o que se dá em nosso pensamento. Esta crítica de Kant é, contudo,
falsa sob vários aspectos como teremos ocasião de demonstrar oportunamente, quando
façamos a crítica de sua crítica.
Do mesmo modo que a lógica, também a matemática não se dedica ao exame do que
são as coisas corpóreas, mas apenas, por meio de axiomas, que se fundam nas leis
primitivas de nosso espírito, o que o mesmo afirma das coisas.
Quando Tales afirmava que não interessa saber se existiam círculos ou quadrados,
mas sim quais as propriedades dos círculos e quadrados que lhes dá o nosso espírito, pelas
leis necessárias do nosso espírito. Desse modo as leis matemáticas não são leis das coisas,
mas leis do nosso espírito e a evidência geométrica apenas se funda numa exigência do
nosso espírito.
Também assim são as leis da ciência; leis que nosso espírito atribui às coisas. Não se
alegue que a experimentação o comprova, porque esta nada mais é que o processo “pelo
qual a razão vê que o que ela mesma produz fundada em suas próprias percepções”.
46

É o espírito humano guiado por uma idéia a priori, segundo a qual ele concebe
inclusive a experiência científica. É o espírito humano que coloca as perguntas e é ele que
as responde, segundo, sempre, uma idéia a priori. É nosso espírito que dá a forma aos fatos
da natureza e, na verdade, o cientista nada mais faz que classificar e ordenar o mundo
segundo a natureza não deste, mas de seu próprio espírito, dando ao mundo as leis que
previamente já estão contidas no nosso pensamento. Bacon não fez outra coisa, afirma
Kant. Mas essa afirmação é improcedente, porque Bacon inaugura o método que parte da
observação e da experimentação, pelo qual nossas idéias são submetidas à natureza e não
esta às nossas idéias. É o que veremos oportunamente.
Para obter na metafísica a mesma exatidão, propõe Kant, porque não aplicamos o
mesmo método que empregamos naquelas ciências? “Experimentemos se não seremos mais
felizes no exame dos problemas metafísicos supondo que devem ele regularem-se segundo
o nosso conhecimento”.
Esse método é próprio da metafísica, porque esta ciência estabelece as idéias a priori
que penetram em nossos conhecimentos. Ora, uma idéia a priori não vem do objeto mas do
sujeito. Se viesse do objeto seria uma idéia a posteriori. Aquela, portanto, vem do sujeito
pensante. A faculdade pela qual se conhece alguma coisa antes da experiência, que
estabelece as leis segundo as quais se pensa e segundo as quais é regulada a experiência é a
razão pura, tomando esse termo puro no sentido de a priori, do independente de toda
experiência. Dessa forma conclui Kant que nosso espírito apenas conhece dos objetos o que
constitui as formas gerais do nosso pensar. E por ser essencialmente subjetiva é que toda
concepção metafísica é pura, a priori, independente, portanto, da experiência.,
Eis aqui o fundamento principal e todo cepticismo transcendental de Kant. Ele
instaura o abismo entre o conhecimento e o mundo conhecido, entre o cognoscens e o
cognitum. Instaurado o abismo Kant tentará em vão vadeá-lo. A sua concepção não oferece
nenhuma solução senão levar avante sua crítica, que, afinal, será aniquilada pela análise
que, com segurança, se fará de sua obra, como veremos na crítica concreta à crítica
kantiana, sem que se deixe de considerar o papel importante que ele representa na filosofia
e também a conveniência que há de estudá-lo, pois, realmente, realizou obra monumental
que exerce influência sobre muitos espíritos e tem dado frutos ácidos que precisam ser
destruídos em benefício da própria filosofia.
47

Distingue ele as noções a priori de duas maneiras: 1)temos conceitos que aplicamos
aos objetos como o são os de substância, causa, efeito, etc.; 2)idéias às quais nada
corresponde no mundo da experiência, como sejam o de absoluto, o de :Deus.
Não temos nenhuma garantia de que os atributos que são dados às coisas existam
realmente nelas. Não sabemos se realmente são substâncias, causas, etc. É nosso espírito
que lhes empresta tais atributos não a nossa experiência. Não encontramos nenhuma prova
de que nossas idéias correspondam realmente às coisas quanto à sua realidade. O infinito
existe em nosso pensamento, e talvez só nele exista, sem que nada possamos afirmar de
certo quanto a si mesmo, nem se realmente existe fora de nossa mente. Dessa forma admite
Kant que possamos pensar em nada, sem qualquer conteúdo, um pensamento de nada, cujo
único conteúdo é uma ilusão nossa.
Uma conclusão é inevitável da postulação kantiana:
Sabemos apenas que pensamos e como pensamos, nada, porém, do que sejam as
coisas fora do nosso pensamento.
A posição de Kant é irremediavelmente céptica. Mas procura evitá0la. E como o faz?
Da seguinte maneira:
Não sabemos o que as coisas são em si mesmas, mas estamos certos que elas existem,
embora não sejam como nos aparecem.
Nosso pensamento conclui que há alguma coisa de real, mas desconhecida.
Não temos, fora da nossa experiência, mais alguma para verificar a objetividade, em
suma, a realidade das coisas que são por nós pensadas.
Como conseqüência dessa posição, Kant termina por postular, quer queira quer não
que:
Não há possibilidade de fundamentar a metafísica que está ipso facto negada.
É o que ele conclui. No campo da filosofia especulativa, a metafísica não encontra
mais fundamentos. Contudo, encontra-os no campo da filosofia moral.
A razão é impotente para alcançar a Deus, tanto para afirmar a sua existência como
para negá-la. A posição aqui é agnóstica. E como decorrência dessa impossibilidade os
postulados da filosofia moral, fundada na razão prática, sobre a existência de Deus não
podem ser afirmados nem negados, pois não há validez nem para a firmação nem para a
48

negação. Desse modo, quer ele mostrar que nem a posição teísta nem a ateísta encontram
fundamentos suficientes.
E desse modo justifica ele sua posição: a razão é mais uma inimiga que uma auxiliar
das crenças morais e religiosas. Como ela se cinge a conceber os entes dentro do tempo e
do espaço, não pode ela nos revelar o eterno e infinito. Para a razão é impossível alcançar o
ser absoluto, eterno e infinito, como lhe é impossível alcançar a liberdade, pois ordenando o
mundo segundo suas leis este é regido pela necessidade.
Se a razão especulativa é impotente para alcançar o que está além do mundo do
tempo e do espaço, a crença num ser independente deles é contudo algo que se dá, algo que
os homens têm.
Considera Kant transcendental tudo quanto ultrapassa a experiência. A razão sendo
impotente para alcançar o que fica além da experiência, o que é transcendental é, portanto,
desconhecido para ela. Também emprega Kant esse termo para expressar algumas vezes o
que é subjetivo e nesse caso quando fala de idéias transcendentais refere-se a forma do
nosso espírito, pois que, para eles, essas formas são a priori, independentes, portanto, da
experiência.
A razão não pode alcançar aos transcendentais no primeiro sentido.
Consequentemente teístas e ateus e panteístas não encontram na razão provas suficientes
para afirmar ou negar a existência de Deus. Erra, contudo, Kant, como ainda veremos,
quando for oportuno. Como negar a fé que anima os corações humanos. Ele não a nega,
mas apenas que a razão seja capaz de dar uma certeza. Todas as demonstrações racionais da
existência de Deus malograram, afirma ele. Contudo, há em nós algo que impulsiona à
crença, à convicção da imortalidade de nossa alma, a certeza, pois, de uma vida futura. O
dever prova a nossa liberdade e o universo pela ordem que revela aponta a uma inteligência
criadora. Termina, então, por concluir que essa fé é mais sólida que a certeza adquirida
através das demonstrações e que, ademais, resiste melhor às controvérsias filosóficas
porque se funda em nossos mais profundos sentimentos.
São esses os postulados que ele apresenta no prefácio que fez a 2a. edição de “Crítica
da Razão Pura” e também, em parte, no prefácio da primeira edição. Temos aí esboçada a
intenção da obra de Kant e o roteiro traçado de que irá procurar demonstrar no decorrer de
sua obra tão famosa.
49

E assim prossegue ele:


O principal intuído de sua obra consiste em desejar provar quanto às idéias a priori
que há juízos sintéticos a priori.
Seus pontos de partida são:
1)que há idéias a priori;
2)que não tendo essas idéias objetos próprios não constituem elas conhecimentos.
É ele quem escreve:
“Embora comecem nossos conhecimentos com a experiência, nem todos procedem
dela”, já que nunca dá “seus juízos como estritamente universais... pois há nos
conhecimentos humanos juízos necessários, universais, e por conseguinte, juízos puros a
priori (pág.34).
Ora, Hume havia procurado demonstrar que os juízos matemáticos e o princípio de
causalidade, que é um princípio de necessidades absoluta, provinham se uma associação
habitual entre as nossas percepções. Mas esse simples fato, como o demonstra Kant, por ser
contingente não prova que tal princípio seja contingente. Se o captamos contingentemente,
pois poderíamos não captá-lo, tal não quer dizer que seja ele contingente, tomado em si
mesmo. Poderíamos aproveitar uma tese da filosofia concreta para corroborar a crítica de
Kant: o anterior tem prioridade de certa ordem ao posterior, pois, necessariamente, se
dizemos que algo é anterior, dizemos necessariamente que tem prioridade a outro, que lhe é
posterior. Contudo, poderíamos jamais ter alcançado esse enunciado, pois poderia o homem
não alcançá-lo. É contingente esse saber humano, enquanto saber do homem não, porém,
contingente o enunciado do axioma. O fato de ser contingente o nosso conhecimento não
implica que o conteúdo do mesmo seja contingente. Aí é que está o erro de Hume que Kant
aponta.
Se à experiência não se pode atribuir juízos necessários, pode-se, contudo, concluir
que ela seria impossível a não ser por meio deles. Kant conclui depois de argumentar da
seguinte maneira: como seria possível dar a experiência uma certeza se todas as regras da
qual ela procede fossem apenas empíricas. É ele quem pergunta: como seria inteligível a
experiência sem noções a priori. Como a experiência nos poderia conceder alguma coisa
sem a noção de espaço e de substância? Que poder-se afirmar ou negar sem tais idéias? São
essas noções a priori indispensáveis à experiência, pois são a fonte dos juízos que
50

formulamos sobre os resultados da experiência. Há idéias que a experiência jamais nos


oferece, pois não poderemos deles Ter uma intuição sensível, como Deus, a alma, a
imortalidade, que são objetos que pertencem à Razão Pura, inconstatáveis pela experiência.
Mas há fundamentos sólidos sobre os quais se possam apoiar tais conceitos? Ora, tais
fundamentos são a priori, pois não se fundam nem são revelados pela experiência, mas
antecedem-na. E surge aqui para Kant um problema que exige uma solução; ou seja: os
juízos que a razão constrói sobre tais princípios estão de acordo com a natureza das coisas
ou apenas de acordo com a natureza do nosso espírito?
Ora tal pergunta não era inédita na filosofia, pois o homem já a formulara todas às
vexes que especulava sobre o próprio conhecimento. A incidência constante de erros de
apreciação e de ilusões e erros não poderia permitir que depositasse em seus meios de
conhecimento toda a confiança. Ao contrário, sobretudo nos períodos de decadência, a
duvida assalta ao ser humano para interrogá-la, exigentemente, sobre o valor dos seus
conhecimentos.
Para Kant esta pergunta ponta o problema fundamental da metafísica. E é sobre ela
que pretende dedicar seu maior e mais completo exame.
Mas, para colocá-lo é mister usar conceitos que a razão tem construído. E como
poderia a razão duvidar de si mesma, de sua própria veracidade senão usando a si mesma?
É o que sucede com o cepticismo e todas as variantes que o mesmo apresenta: o círculo
vicioso de onde o cepticismo não pode sair.
Confiantes cegamente no valor dos juízos a priori empreenderam os filósofos longas
especulações sobre os mais variados terrenos sem contudo terem meditado devidamente
sobre os princípios desses juízos. E se, prossegue Kant voltar atrás algumas vezes é porque
a experiência contradiz suas afirmativas: “A rápida pomba, quando com o vôo rápido e
livre rompe o ar do qual ela sente a resistência, poderia acreditar que voaria melhor no
vácuo. É assim que Platão, desdenhando o mundo sensível que mantém a razão em seus
limites tão estreitos, aventura-se, por ela, sobre as asas das idéias, no espaço vazio do
entendimento puro. Ele não percebe que não progride apesar de seus esforços, pois lhe
falta um ponto de apoio necessário para sustentar-se. Este pondo de apoio da razão são
juízos a priori. Para Kant o filósofo não tem procurado discutir o valor de tais juízos que
são o ponto de apoio de toda sua especulação, mas que na verdade é um ponto móvel e
51

sobre o qual não pode ele apoiar-se devidamente para reaprender a pesquisa nas regiões
ideais, o problema portanto que se apresenta é o de investigar o valor desses juízos,
examinar sua origem e buscar sua validez ou não. Traça assim, Kant, um programa que
orientará a sua famosa crítica. Neste como em muitos outros pontos as afirmações do
famoso filósofo estão eivadas de uma improcedência capital. É um erro julgar que antes
dele este problema não tivesse surgido exigente de uma solução aos olhos dos filósofos de
valor. Desconhecia Kant muito do processo filosófico que o antecedeu e é uma ingenuidade
imperdoável no filósofo julgar, e sem fundamento que os filósofos não tivessem suspeitado
do valor das construções eidético-noético e não tivessem examinado a procedência ou não
dos nossos juízos mais sólidos. A nítida distinção entre o juízo lógico e o juízo ontológico
evitava uma série de erros. Se realmente o filósofo se cingisse apenas a especulação lógica
poderia ele cair em erros, pois nem sempre somos suficientemente aptos a uma análise
cuidados das conceituações e das operações lógicas. Assim sabemos que há verdades
lógicas sem que esta verdade implique uma verdade ontológica e ôntica. O juízo Deus
existe é um juízo logicamente verdadeiro porque o conceito de Deus implica o predicado da
existência, pois Deus não poderia ser não existente. Ontologicamente é verdadeiro porque o
logos da divindade implica necessariamente a existência pois sem existir não haveria
divindade, sem que a existência seja a razão de ser da divindade. Contudo onticamente não
se provou ainda que realmente a divindade existe ou seja que existe a divindade. Da
verdade lógica e da verdade ontológica não se pode imediatamente concluir a verdade
ôntica. Ora isto sabiam-no os antigos. A validez lógica e ontológica dos princípios cujos
juízos servem de fundamento a especulação filosófica não era suficiente senão lhes
assistissem fundamentos ônticos, cuja pesquisa é realmente de grande valor para o filosofar
genuinamente concreto. Kant julgava que a validez dos juízos fundamentais era apenas a
dada pela sua logicidade e ontologicidade. Daí empreender ele sua obra, esta crítica cujo
valor é imenso na filosofia e merece meditação e estudo, mas também o cuidado em evitar
o erro parcial do qual ele incorreu, qual seja o de julgar que toda e qualquer filosofia não se
tenha debruçado a investigar a validez desse juízo. É o que mostraremos no decorrer desta
crítica que fazemos à crítica kantiana.
Os juízos a priori são por Kant classificados em analíticos ou sintéticos. Analíticos
são aqueles em que o atributo está implicado na própria idéia do sujeito e sintéticos aqueles
52

em que o atributo acrescenta uma idéia nova àquela que o sujeito expressa. Os juízos
matemáticos, os metafísicos e alguns juízos da física em geral são ao mesmo tempo
sintéticos e a priori como por exemplo este que ele cita: em toda mutação, a quantidade de
matéria permanece invariavelmente a mesma. Este duplo caráter é que o leva a pôr sobre a
mesa o problema da verdade objetiva de tais juízos. Os juízos analíticos têm a sua
legitimidade demonstrada pela impossibilidade de supô-los falsos sem admitir uma
proposição contraditória, sim porque sendo o atributo implicado na idéia do sujeito a sua
negação implicaria a contradição, pois estaríamos numa relação de privação e de posse.
Os que são conjuntamente a priori e sintéticos escapam a toda demonstração
experimental e não trazem em si mesmos a prova de sua legitimidade. E o fundamento está
no seguinte: como poderíamos afirmar a priori um certo atributo a um sujeito que poderia
estar privado dele sem que tal privação incidisse em contradição.
No exame, por exemplo do juízo físico, citado por Kant, dentro dos quadros da
filosofia concreta e análise de processaria seguindo as regras fundamentais do nossos
filosofar. Para a filosofia concreta, que é a nossa, nenhum juízo é fundamental enquanto
não estiver revestido da apoditicidade concreta. Ora, a apoditicidade que desejamos é
aquela que implica a necessidade. É a impossibilidade de ser de outro modo senão ao que é
enunciado pelo mesmo juízo. Ora, no juízo em questão, a quantidade sendo um acidente da
matéria a sua invariância não é necessária. Não se poderia dizer que necessariamente em
toda a mutação a quantidade de matéria permanece invariavelmente a mesma. O que é
necessário a ser um é o que pertence à sua essência. A quantidade sendo um acidente não é
da essência de uma coisa. Não se pode afirmar que a essência da matéria da matéria é a
quantidade. O juízo citado por não ter apoditicidade desejada é aplicado a priori pelas
razões seguintes: não conhecemos (ou não conhecíamos no tempo de Kant) nenhuma
manifestação da matéria que não fosse quantitativa. A quantitatividade poderia ser dada,
como o foi pela física, como uma propriedade da matéria. Consequentemente onde há
matéria há quantidade, pelo menos. O que muda é o sujeito da mutação e como este é
material sua mutação se dá conservando a quantidade. Que esta permaneça a mesma, sem
diminuição é o que a experiência verificava através das observações físicas.
Sendo a quantidade uma propriedade da matéria e permanecendo esta, permaneceria
aquela, porque, na mutação, o que mudava era a forma que a matéria tinha, não esta que
53

permanecia sendo matéria, permanecendo, portanto, sua quantidade. Assim, na alteração


qualitativa, um ser poderia perder sua cor para adquirir outra, sem deixar de ser o que é; na
mutação substancial, poderia deixar de ser o que formalmente era para ser formalmente
outra coisa, mas a matéria permanecia sendo matéria, conservando a quantidade invariável.
Para que essa lei dada a priori e a posteriori se tornasse uma lei apodítica, segundo a
filosofia concreta, é mister demonstrar-se (e não se esqueça que se exige a demonstração),
que a quantidade é essencial à matéria.
A análise kantiana tem seu fundamento, pois nesses juízos verifica-se que o predicado
pode ser recusado ao sujeito sem incidir em contradição, pois poderíamos recusar à matéria
a quantidade sem que a matéria deixasse de ser matéria, ou seja a recusa da quantidade à
matéria não implica necessariamente a aniquilação da mesma.
Ora, tais juízos são possíveis. Os fundamentos da matemática são de tal espécie que
provam haver juízos sintéticos a priori. É verdade que Hume os nega, embora reconheça
que somente o princípio de causalidade possui esse duplo caráter. Mas este é produto de
uma ilusão. No entanto, bastaria que se meditasse sobre os juízos matemáticos para que ele
verificasse a procedência, pois são a priori e não podem ser reduzidos a proposições
meramente analíticas. O exemplo que Kant oferece é o seguinte: “A linha reta é o menor
caminho de um ponto a outro”. O sujeito, linha reta, tem uma qualidade simples a retitude
que é da sua natureza a priori. O predicado que se lhe atribui é uma quantidade a brevidade,
que não está contida na primeira, que lhe é acrescentada, o que caracteriza o juízo sintético.
Demonstraremos mais adiante que os juízos analíticos implicam juízos sintéticos, o
que por ora não fazemos para que melhor penetremos no clima da obra kantiana.
Temos, então, caracterizada o objeto da Crítica da Razão Pura. Esta ciência dedica-se
ao estudo da origem e do valor dos juízos sintéticos a priori.
E como ela se dedica ao estudos dos conceitos transcendentais tomou também o nome
de Crítica transcendental. Os conceitos transcendentais são aqueles que transcendem
(ultrapassam) a experiência. O fim dessa ciência não é discutir o valor dos sistemas
filosóficos, mas o valor da faculdade que é apta a conceber os sistemas.
Como toda ciência tem uma parte teórica e uma parte prática, a Crítica da Razão Pura
inclui uma teoria elementar da razão pura e a uma metodologia desta. Assim como a
primeira se dedica ao exame da natureza e do valor dos nossos juízos a priori, a segunda se
54

dedica a procurar o método que deve ser seguido para atingir essa finalidade, que, para
Kant só é conhecido graças ao conhecimento da lei moral, como ainda veremos.
A teoria elementar da razão pura se divide em estética transcendental e em lógica
transcendental. As duas fontes do nosso conhecimento, diz Kant, são a sensibilidade e o
entendimento. Os objetos nos são dados pela sensibilidade e são pensados ou concebidos
pelo entendimento. A sensibilidade não pode como também não o pode o entendimento
sobreviver sem os princípios a priori; o estudo desses princípios puros necessários ao
conhecimento empírico é o objeto da estética transcendental; o estudo dos princípios puros
necessários aos juízos e às concepções do entendimento constitui a lógica transcendental.
Por sua vez a lógica transcendental se subdividirá em analítica e dialética.
A analítica enumerará tanto os conceitos como os juízos a priori, e concluirá que a
sua legitimidade está na proporção de sua adequação aos objetos da experiência. A
dialética, por sua vez, examinará as idéias que não tem essa correspondência no mundo
sensível, tais como os conceitos de absoluto, de infinito, de perfeição, concluindo, afinal,
pela impossibilidade de afirmar a objetividade fundada apenas na especulação filosófica.
Estabelecida essa classificação da obra de Kant, podemos agora estudar cada parte em
especial, deixando nossa crítica para os lugares que melhor se corresponderem.
Análise da Estética Transcendental
No exame dos fenômenos verifica-se desde logo que estes são sucessivos e os objetos
são extensos. Nenhuma experiência dos fenômenos seria possível sem duas noções a priori:
a do tempo (sucessão) e a do espaço (extensão). Ora tais idéias não provém da experiência
porque não captamos o tempo puro nem o espaço puro, pois não há intuição sensível
fenomênica de nenhum dos dois. Não provêm eles da experiência, pois são representações
necessárias da experiência, pois sem elas essa seria impossível. Ora, a experiência só nos dá
o contingente. Podemos, acrescenta ele, conceber o espaço vazio de objetos, e também não
se dado eles no tempo, mas tanto como espaço como o tempo não podemos supor como
aniquilados.
Toda representação apresenta duas facetas: a matéria e a forma. A matéria é o que
varia segundo os objetos representados e a forma o que é invariável.
Os fenômenos são a matéria da sensibilidade e estes são percebidos ou no espaço ou
no tempo ou em ambos. O espaço e o tempo são, portanto, invariáveis. Consequentemente
55

são a forma do conhecimento sensível. Deste modo o tempo é a forma do sentido interno e
o espaço a forma do sentido externo.
As representações que fazemos do tempo e do espaço são por Kant chamadas de
intuições puras. São mais intuições que idéias, porque correspondem às coisas que
conhecemos e são puras porque não vêm da experiência e são, ao contrário, imprescindíveis
para que se dê esta.
Servem elas para que já se possa analisar a possibilidade dos juízos sintéticos a priori.
É a intuição do tempo e a do espaço que permite a ligação do atributo ao sujeito. São essas
intuições que permitem dar unidade ao conjunto diverso das impressões sensíveis,
permitindo fazer a síntese, dando-lhe a unidade sem a qual seria impossível o
conhecimento. A linha reta é o caminho mais curto entre dois pontos, nos é dado pela
intuição do espaço e pela intuição do tempo nos é possível conceber o laço de necessidade
entre o fenômeno e a sua causa. E por serem essas intuições que dão validez aos juízos a
validez destes relativamente às coisas colocadas no espaço e no tempo é dado por essas
intuições.
A posição de Kant não evita o cepticismo, porque leva fatalmente a negar a validez
desejada a toda e qualquer idéia que não tenha fundamento nessas intuições, como a idéia
de Deus. Podemos pensar sobre o absoluto e sobre o infinito mas sem lhe creditar qualquer
validez, pois essa só é dada por tais intuições. Mas Kant conclui que do mesmo modo que é
impossível afirmar a validez da existência do ser infinito também não é válida a sua
negação. Quanto ao tempo e ao espaço eles, em si mesmo não são nada, apenas formas
puras de nossa sensibilidade que não têm nenhuma realidade fora de nosso pensamento.
São, em suma, noções meramente subjetivas.
E como conclui Kant pela negação do tempo de realidade em si e do espaço? Pelo
simples fato de que necessariamente percebemos as coisas no tempo e no espaço, pois se
eles existissem realmente nós só poderíamos conhece-los pela experiência. Kant transforma
assim a experiência no único critério da verdade, sem contudo prove-lo, o que é uma falha
lamentável da sua doutrina.
Prossegue afirmando que as idéias que temos são contingentes. No entanto, as de
tempo e espaço são necessárias. Elas não vêm de alguma coisa exterior, mas da natureza do
56

nosso pensamento, sem Ter qualquer correspondência fora do nosso pensamento. Uma
outra espécie de inteligência que não a nossa poderia ver os objetos fora do espaço.
E continuando em sua análise diz que se o tempo e o espaço fossem algo real fora da
nossa mente seriam ambos infinitos. E como poderiam ser ambos infinitos se em ambos há
carência de ser, porque o tempo, em si mesmo, é nada, como o espaço em si mesmo seria
nada. Se são substanciais como poderiam conter os seres?
Se são infinitos abarcarão todas as coisas e até Deus estaria submetido às leis da
duração, o que é contrário ao caráter de sbsolutuidade do ser supremo.
Kant nega que possamos conhecer a priori uma relação entre realidades contingentes,
cujo conhecimento é dado a posteriori. No entanto, na matemática vê-se que não é assim,
porque três árvores mais seis árvores são necessariamente seis árvores.
Aceita a objetividade do tempo e do espaço as contradições são inevitáveis. Por isso
só há um caminho a seguir: reconhecer que não passam de simples formas do nosso
conhecimento sensível.
Mas se não existe o tempo, nada há de sucessivo, podem objetar. E tal afirmação
levaria a negar até o sujeito pensante, porque o especular da inteligência obedece a uma
sucessão, os pensamentos são sucessivos. Se o espaço é nada, nada há no espaço e o mundo
exterior como existiria? Berkeley concluiu afinal que o mundo exterior é uma idéia pura e
nada mais. Mas Kant responde a essas objeções. O eu, como sujeito pensante está no tempo
como fenômeno, como ele a aparece a si mesmo, mas tal como é pode existir fora do
tempo.” Se eu mesmo pudesse me perceber ou ser percebido por um outro ser sem essa
condição da sensibilidade” (que é o tempo) as mesmas determinações que representamos
atualmente como mutações, dariam um conhecimento no qual a representação do tempo, e
por conseguinte também a da mutação, não haveria lugar.
O tempo pertence à percepção que o sujeito (o eu) tem de si mesmo e não ao eu como
objeto. O eu sujeito percebe no tempo o eu objeto que não está no tempo.
Essa é a resposta de Kant. Ele prossegue: se a idealidade do tempo não implica a
negação do eu, a idealidade do espaço não implica a negação do mundo exterior. Pelo
simples fato de os objetos não estarem no espaço realmente não se conclui que eles não
existam, mas somente que eles não são como eles nos parecem ser. Para que eles me
apareçam diferentes do que na realidade são é mister que existam realmente, pois é mister
57

que haja alguma coisa real para que surja uma aparência falsa. Já aqui nessa resposta Kant
subentende o princípio de causalidade ao qual depois ele pretende tirar todo valor objetivo.
Desse modo Kant afasta-se da posição de Berkeley e conclui ele por afirmar que a sua
posição é a única que nos evita de cair totalmente no idealismo. Se o tempo e o espaço têm
uma realidade objetiva, o mundo estaria contido neles como um conteúdo num continente.
E se quisermos objetivar o espaço teremos que concebê-lo como um vazio de tudo, um
nada afinal, negando-lhe assim qualquer conteúdo real. “Não podemos – prossegue ele –
admoestar Berkeley de ter reduzido os corpos a uma pura aparência. Nossa própria
existência, se ela dependessem assim da realidade subsistente em si de um não-ser, tal
como tempo, não seria tanto como ele, senão uma vã aparência”. Ora isso seria um absurdo
insustentável.
Acredita Kant que a negação da objetividade do espaço e do tempo não levam ao
cepticismo. Ao contrário, liberta o eu e o mundo da dúvida que poderia surgir. Uma
doutrina que dá o tempo e o espaço como fundamentos da objetividade do eu e do mundo é
que levaria a situações insustentáveis. Reconhecer que o tempo e o espaço não são reais
objetivamente põem-nos ao abrigo das contradições inevitáveis
Os axiomas da intuição e as antecipações da percepção são princípios matemáticos,
enquanto as analogias e os postulados são princípios dinâmico a priori, ou sejam os
princípios de onde decorrem da física pura.
Os axiomas da intuição são reduzidos a esse princípio único: “Todos os fenômenos
são, quanto à sua intuição, quantidades extensivas”.
Uma quantidade extensiva é “ a na qual a representação das partes precede
necessariamente à do todo e a torna possível”. Assim a linha é precedida pela atividade do
espírito em pôr os pontos sucessivamente. O mesmo se dá quanto à extensão: “Eu não
penso senão na progressão sucessiva de um instante a outro, e daí resulta, afinal, por meio
de todas as partes do tempo e de sua adição, uma quantidade de tempo determinado”.
Consequentemente, sendo todo objeto necessariamente percebido no tempo e no espaço
terá que, além também de ser captado em sua duração e extensão, como quantidade
extensiva que é apreendida pela síntese sucessiva de parte a parte. “É sobre esta síntese
sucessiva da imaginação produtiva na criação das figuras que se funda a geometria com
seus axiomas"” Concluindo, Kant que os objetos não podem aparecer de outro modo que
58

não seja a ordem em que a nossa imaginação reúne as diversas intuições. Ora, como as
construções geométricas resultam das mesmas leis da nossa imaginação, as matemáticas,
por que expressam apenas essas leis do pensamento, são elas aplicáveis à experiência e esta
de modo algum poderá desmenti-las.
Toda essa argumentação de Kant não é satisfatória e logo veremos que o que tem de
verdade é apenas parcial.
Chamava ele de antecipações da percepção os juízos que construímos a priori sobre
as nossas percepções. Antes de experimentar uma sensação sabemos de antemão que ela
tem uma quantidade intensiva. A quantidade intensiva é para Kant aquela que é capaz de
aumento ou de diminuição. Toda sensação é mais ou menos forte, manifesta uma gradação
que pode ser medida e que nada tem em comum com a extensão que é composta de partes
justapostas, enquanto a intensidade é em si mesma. A sensação que um objeto composto de
partes produz em mim é um todo simples e indivisível. Contudo, se não pode aumentar ou
diminuir por adição ou subtração, pode contudo enfraquecer-se até desvanecer-se.
Kant examina a diferença entre a extensão e a intensidade, mostrado que a
imaginação para figurar uma extensão começa por representar as partes e chega à
concepção do todo apenas pela adição, enquanto uma sensação pode ser percebida com
uma intensidade qualquer antes de haver passado para os graus inferiores. Reduzida até
zero a intensidade de uma sensação essa se desvanece totalmente para o sujeito. Mas a
aniquilação da sensação não implica ainda a não existência de algum objeto no mundo
exterior nem que o espaço seja vazio. Na ausência da sensação não sabemos se há objetos,
o que mostra que o conhecimento do mundo exterior depende da intensidade das sensações
e não da extensão das intuições. Kant considera este princípio a lei de toda experiência e é
uma verdadeira antecipação, porque o grau de intensidade de uma sensação é dada apenas
pela experiência, mas a gradação (a gradatividade) de que é susceptível toda sensação é
conhecida a priori.
As antecipações da percepção nos fazem conhecer a priori a intensidade das
sensações, mas há ainda necessidade de algo que se relacione, que se conexione para que se
tornem um conhecimento.
Três são os princípios a priori que realizam essa relação entre os fenômenos, relação
exigida pelo nosso espírito. Kant denomina-as de analogias da experiência.
59

Princípio de substância
1a. analogia – A substância é permanente em toda vicissitude fenomenal, e sua
quantidade não aumenta nem diminui na natureza.
2a. analogia –Princípio de :Causalidade – “Todas as mutações sucedem seguindo a lei
de ligação de causa e efeito”. (É a relação de sucessão).
3a. analogia – “Todas as substâncias, enquanto podem elas ser percebidas ao mesmo
tempo no espaço, estão numa relação recíproca universal”.
Antes de examinarmos essas analogias convém que saibamos porque Kant as chamou
assim. O termo analogia, em grego, significa relação, proporção, como é usado pelos
geômetras. Na Filosofia é tomado como síntese de semelhança e de diferença. Assim, ao
conhecer a relação entre um efeito e sua causa, posso estabelecer analogicamente a relação
entre um efeito diverso e sua causa que também deve ser, sob certo aspecto, diversa, mas
proporcionada ao efeito, como este é proporcionado à causa. A analogia serve de método
para o exame da experiência e seria impossível a especulação filosófica e sobretudo o
conhecimento científico se não a usássemos como método para pesquisar.
Para Kant elas não vêm da experiência. São elas, contudo, que permitem tornar a
experiência possível, pois que semelas a experiência daria apenas fenômenos isolados e
seria impossível coordenar os fenômenos, dando-lhes uma ordem. Ora, o espírito humano é
essencialmente sintético e é de sua natureza apreender um fenômeno no tempo, o que leva a
relacioná-los no tempo.
O tempo apresenta-se apenas sob três modos: permanência, sucessão e
simultaneidade. Consequentemente há apenas três analogias: 1)a que concebe a substância
na permanência; 2)mostra-nos a causalidade na sucessão; 3)afirma a reciprocidade dos
fenômenos simultâneos.
Sem esses três princípios: substância permanente, causa e reciprocidade não
poderíamos construir nenhum juízo dinâmico sobre a natureza.
Se concebemos a mutação sem a permanência, como essa se daria num instante só
perceberíamos as coisas em seu acabar, a sensação se daria num tempo zero, ou, em outras
palavras, não haveria sensação nenhuma, o que é contrário às leis do espírito humano. Para
conhecer no tempo é necessário algo que dure, um substractum permanente, uma substância
que perdura por entre a variância dos acidentes. A permanência da substância é evidente
60

por entre as mutações que são observáveis. Tudo se transforma e nada perece, mas apenas
se mutaciona. “Tirai o peso da cinza do peso da madeira e tereis o peso da fumaça”, diz
Kant.
Também seria ininteligível a seqüência dos fenômenos sem o princípio da
causalidade. Esse princípio, expõe Kant, é a afirmação de uma regra que determina e
explica a sucessão. Como poderia correlacionar os fenômenos se não considerar a produção
de uns pelos outros. O princípio de substância apenas me daria uma visão indeterminada,
sem explicar porque o fenômeno B sucede ao A. A determinação de um fenômeno posterior
por um fenômeno anterior se considerado como um mero acaso tornaria os fenômenos
ininteligíveis. Ora os fenômenos apenas me dão a sucessão e não a razão dessa sucessão.
Consequentemente, essa razão é dada a priori.
Contudo, a causalidade oferece a Kant uma dificuldade, porque entre causa e efeito
há uma simultaneidade. Kant explica da seguinte maneira, graças a uma distinção. É mister
distinguir a ordem do tempo do curso do tempo. A causa é anterior na ordem do tempo,
embora não o seja no curso do tempo, pois pode haver simultaneidade entre a causa que
produz o efeito e este.
A causalidade está ligada à noção de ação, de força e, consequentemente, à noção de
substância. E é na substância que se deve procurar o princípio de toda causa: “As ações são
sempre o primeiro fundamento de toda vicissitude dos fenômenos, e não pode, por
conseguinte, encontrar-se em nenhum sujeito que muda em si mesmo”. Portanto, “o último
sujeito (do que muda) é o permanente, como substratum de toda vicissitude, quer dizer, a
substância”.
Toda causa supõe uma substância. É este o criterium empírico da realidade da
substância, mas da “substância como fenômeno”, apressa-se ele em anotar, pois mais
adiante, na Dialética Transcendental, procurará afirmar com ênfase que nada nos autoriza a
afirmar uma causa primeira, uma substância supra-sensível para explicar os fenômenos
sensíveis.
É a idéia da força que liga o princípio da substância ao princípio da causalidade, o
que conexiona não alguns fenômenos, mas todos os fenômenos coexistentes. Desse modo o
princípio de reciprocidade decorre dos dois primeira, é uma conseqüência deles, o que
permite conceber a natureza como um todo. É pelo princípio de reciprocidade que os
61

fenômenos me aparecem ligados no mesmo tempo, enquanto pelo princípio de causalidade


me aparecem apenas ligados no tempo.
Sem este princípio seria falha a experiência, pois para perceber é mister perceber as
coisas como compostas. Mas a composição não é apenas uma mera justaposição das partes
no espaço. Essas partes têm uma relação dinâmica, sem a qual seria impossível concebê-las
em sua mutualidade. Mas essa relação dinâmica não é dada pela percepção, que nos dá
apenas os objetos. Portanto, a unidade é dada a priori, o laço que une as coisas e as suas
leis. Sem essa unidade seria impossível o conhecimentos dinâmico.
Trata Kant a seguir dos postulados do pensamento empírico, que são as definições da
possibilidade, da existência e da necessidade. Assim como as analogias são necessárias à
experiência, também o são os postulados. Observa-se o seguinte:
1)que se admite a priori certos fenômenos como possíveis;
2)reconhece-se que há princípios a partir dos quais podemos a priori distinguir a
simples possibilidade de a realidade;
3)que se pode estabelecer a priori certas relações necessárias entre os fenômenos e as
formas do nosso pensamento.
Esses princípios são três:
1)É possível tudo que se conforma com as condições formais da experiência, ou seja
tudo quanto pode ser representado por uma intuição e assumido por um esquema a um
conceito.
2)É real o que se liga às condições materiais da experiência, ou seja o que pode ser
objeto de uma sensação.
3)Existe necessariamente o que, conexionado com o real, é determinado segundo as
condições gerais da experiência. A necessidade de um fenômeno resulta da realidade de
outro, ao qual está ligado pela lei da causalidade.
Deste modo, a possibilidade, a realidade, a necessidade são limitadas à
filosoficamente demonstrar a sua existência, pois nosso conhecimento não consegue ir além
dos limites da experiência.
São três as idéias transcendentais da razão especulativa. Essas idéias são o princípio
primeiro de todo raciocínio, o fundamento indemonstrável de todas as demonstrações (as
maiores de todas as maiores possíveis).
62

Há apenas três formas de silogismos; três maneiras de alcançar a uma proposição


condicionada, a uma maior que é dela a condição; o silogismo categórico, o silogismo
hipotético e o silogismo disjuntivo.
O silogismo categórico afirma que o atributo é inerente à substância;
O silogismo hipotético afirma que sendo dada a causa é dado o efeito, permitindo, por
sua vez, que, do efeito se remonte a causa que é a condição daquele;
O silogismo disjuntivo afirma a diversidade das partes de um todo, e ao mesmo
tempo sua relação com o todo.
Daí surgem três idéias:
1) a de substância absoluta, que serve de fundamento a toda e qualquer outra
substância e consequentemente a todo e qualquer juízo, a todo silogismo
categórico;
2) a idéia da série total das condições e por conseguinte de uma causa primeira, que
é fundamento de todas as causas supostas nos silogismos hipotéticos, que Kant
chama de “idéia de uma suposição que não supõe mais nada “;
3) a idéia de um ser que reuna em si tudo quanto há de real nos objetos diversos e
dos quais dependem todas as suas relações, incluso as recíprocas. Essa é a idéia
do ser perfeito, ao qual nada falta. Esse absoluto da síntese do diverso
corresponde à categoria de comunidade, como as idéias precedentes
correspondem à categoria de substância e a de causa.
A idéia de substância absoluta implica a de substância simples, por ser ela
incondicionada, já que uma substância composta dependeria de outros.
É a idéia do eu a primeira idéia de um sujeito simples. É a primeira das idéias
transcendentais, de uma substância absoluta. A idéia da série total das condições dos
fenômenos é a idéia de natureza, que é conjunto de todas as causas e de todos os efeitos. A
idéia do ser perfeito é por sua vez a idéia de Deus. Esta idéia é necessária porque não se
pode conceber nada que não tenha um atributo e nenhum atributo é concebível senão em
Deus.
Mas, porque o sujeito absoluto (o eu) é transcendental? Porque a experiência série
inferior careceria de um fundamento. Esse primeiro fundamento é incondicionado. O juízo
63

que conclui pela proposição fundamental, do incondicionado, não é um juízo analítico, mas
sintético.
Como para Kant os juízos sintéticos a priori não são válidos senão em relação à
experiência, não se pode concluir a realidade objetiva do incondicionado, da causa
primeira. A idéia do absoluto não é imanente ao objeto do conhecimento, mas
transcendente, e funda-se na natureza do sujeito pensante.
Conclui Kant que essa necessidade que revela a razão em conceber o absoluto surge
de uma imposição de economia, por um lado, e por outro pela impossibilidade de uma
regressão in infinitum. Para ele é uma das nossas ilusões, ilusão que teve Platão, que
reduziu nossa razão a esses princípios, como o de Aristóteles foi o reduzir a inteligência
apenas aos conceitos do entendimento.
Mas reconhece haver alguma verdade nesses dois sistemas. E comenta deste modo:
“Platão notou muito bem que nossa faculdade de pensar experimenta uma necessidade mais
elevada que a de descascar os fenômenos segundo a unidade sintética para poder lê-los
como experiência, e que nossa razão se eleva naturalmente a conhecimentos, tão altos para
que um objeto dado pela experiência possa jamais lhes convir, mas que, contudo, tem sua
realidade e não são puras ficções”. Mas se não são puras ficções nem por isso têm um
objeto real, pois comenta e prossegue sempre negando-lhes realidade. A nossa experiência
só nos pode oferecer regras relativas, mutáveis, ambíguas. E exemplifica com o homem
virtuoso, que podemos considerar mais ou menos virtuoso sem jamais ter a noção clara e
definitiva do que seja o virtuoso em sua absolutuidade, ou seja o arquétipo do homem
virtuoso, segundo o qual poderia conformar a sua conduta. Contudo, reconhece, que se
pode, aqui, realizar a imitação desse ideal por um progresso indefinido de perfeição.
Examina a atitude dos que mofaram de Platão por desejar confiar o governo do
Estado a um rei filósofo, um rei que participa das idéias (formas), mas sem razão, porque a
conduta do rei deve conformar-se, na prática, ao ideal de justiça e aos princípios filosóficos
da legislação.
Sendo a idéia do bem a regra de nossas ações são os arquétipos das coisas que nos
explicam a natureza. Por isso Platão considerava-os as próprias causas das coisas. Mas,
afirma Kant, o espírito humano é impotente para provar a existência de tais arquétipos, e
consequentemente é prudente não tentar fi.........
64

As noções de tempo e de espaço, que são dadas a priori, são necessárias à percepção;
as de quantidade, qualidade, relação e modalidade são necessárias a todos os juízos. Mas só
são possíveis essas noções, que são relativas, de serem concebidas em relação com o
absoluto ou o infinito, pois sem a idéia da unidade absoluta é impossível o conceito de
quantidade, como sem a idéia de perfeição é impossível a de qualidade. Por sua vez o juízo
de causalidade implica uma causa primeira e a possibilidade, a contingência das coisas
finitas, é impossível de ser alcançada sem a idéia de um ser necessário, incondicionado.
É a razão a faculdade que concebe essas idéias de absoluto, de infinito e de
incondicionado.
Sem os conceitos do entendimento é impossível compreender os dados da sensação,
como sem os princípios da razão é impossível compreender os conceitos do entendimento.
Assim como o entendimento reduz a diversidade de percepções à unidade da idéia
geral, a razão reduz as idéias gerais à idéia universal.
O entendimento é a faculdade das regras; a razão a faculdade dos princípios.
A idéia de infinito contém todas as quantidades e todas as qualidades. As idéias
absolutamente universais abarcam a totalidade dos conceitos possíveis. Por isso, para Kant,
a razão é a faculdade da unidade das leis do entendimento fundada em princípios.
A razão tem, assim, duas funções: um uso lógico e um uso puro.
O uso lógico é o raciocínio, que de uma verdade geral deduz uma proposição
particular.
E o raciocínio consiste, pois, em estabelecer uma relação entre o condicionado e sua
condição, porque a proposição particular é condicionada, enquanto a proposição geral é a
condição.
Sendo a proposição geral condição (major na linguagem lógica) em relação à
conclusão, ela decorre, por sua vez, de uma maior mais geral e assim sucessivamente, de
uma proposição universal, que é por sua vez incondicionada e consequentemente
necessária.
Deste modo, o raciocínio é uma progressão reversível através de proposições gerais
até alcançar o princípio, ou seja até alcançar uma verdade necessária. Deste modo todo uso
da lógica implica o absoluto, sem o qual toda...........
mundo sensível?
65

Também a doutrina de Leibnitz sobre o tempo e o espaço é fundada numa anfibolia


dos conceitos de modalidade. Para o entendimento o conceito de um corpo só é possível
num espaço necessário. Daí concluir ele que é o espaço é uma condição necessária entre as
realidades, enquanto na verdade nada mais é que uma relação entre nossas percepções e não
entre os objetos percebidos.
Conclui Kant que, na verdade, não sabemos o que são as coisas nem pela percepção
que apenas nos mostra os fenômenos e não o objeto, nem pelo conceito que nada mais é
que uma forma do entendimento e não a expressão da essência das coisas. O que apenas
sabemos é que há objetos fora do eu e os conceitos revelam que há um sujeito pensante,
esse eu. Podemos saber que o mundo existe e que o sujeito existe, sem nada mais sabermos
o que esse mundo é nem o que é esse sujeito.
E assim como é parco nosso conhecimento do mundo da nossa experiência sensível,
mais parco ainda será o do mundo das coisas supra-sensíveis, o mundo do absoluto.
A razão especulativa é impotente para provar a existência ou a não existência da
alma, da liberdade, de Deus. Mas será assim também a razão prática? Do mesmo modo que
é impossível provar que esse conceito do absoluto corresponde a uma realidade, também é
impossível provar que não corresponde a nenhuma. E essa impotência é o objeto da sua
Dialética Transcendental, como veremos..........
como é o caso de Deus.
Quando de um objeto real dizemos apenas o que contém o seu conceito, pretendendo
assim conhece-lo, praticamos uma anfibolia. Impõe-se, assim, para evitar tais erros,
recorrer à reflexão transcendental. A reflexão é o ato do espírito pelo qual captamos as
relações dos conceitos entre si. Se há uma relação de conveniência ou de desconveniência
estamos na reflexão lógica. Mas se tratamos de comparar a origem dos conceitos e buscar
qual a faculdade que no-los dá, ao examinar se tal noção provém da sensibilidade ou do
entendimento, estamos na reflexão transcendental.
A reflexão transcendental permite-nos evitar que consideremos as relações lógicas
como relações reais. A relação lógica está submetida à ordem do nosso entendimento. Só a
percepção que nos dá a sensibilidade poderá provar a existência. Assim dois triângulos são
dois para a sensibilidade, embora, enquanto triângulos, sejam um só para o entendimento.
66

Enquanto dois conceitos contraditórios se excluem, as contradições podem suceder


nas coisas, como sucede a oposição.
Pelo entendimento a parte antecede ao todo, mas, na experiência sensível, é o
contrário. Do mesmo modo a matéria antecede às forma no entendimento, não, porém na
experiência sensível.
Daí fazer ele a crítica de Locke e de Leibnitz. O primeiro sensualiza os objetos do
entendimento, enquanto o segundo intelectualiza a natureza, pois Leibnitz julga suas leis e
os objetos por sua idéia e não por sua experiência. Acusa-o de anfibolia. O famoso
princípio dos indiscerníveis proposto por ele é insustentável. Leibnitz afirma que se dois
objetos tivessem absolutamente os mesmos atributos eles não se distinguiriam e seriam um
só. No entanto, esquece que poderiam Ter uma situação diferente no espaço, apressa-se
Kant em afirmar. O princípio dos indiscerníveis é correspondente ao conceito de
quantidade, enquanto seu otimismo funda-se no conceito de qualidade. Conclui Leibnitz,
pelo fato de não se excluírem os conceitos qualitativos opostos, que todas as perfeições
estão reunidas num ser real, que é Deus. Como o conceito de Deus exclui o de mal, a
realidade de Deus e a do mal não podem ser admitidas simultaneamente. E porque Deus
existe, o mal não existe (este é o otimismo de Leibnitz). É por uma anfibolia dos conceitos
de relação, de substância, de causa e de reciprocidade que Leibnitz termina por construir a
sua concepção das mônadas. No entendimento o simples antecede ao composto. Mas como
afirmá-lo também quanto ao da experiência externa, pois a “simples consciência de minha
existência prova a existência de objetos fora de mim”.
As modificações que experimenta o nosso eu são representações. Mas, para que haja
representações é mister que algo seja representando. Não se alegue com as alucinações e o
delírio, porque estes se dão com a composição de representações já experimentadas,
fundadas em objetos reais. Se nada existisse fora de mim, seria impossível perceber
qualquer coisa.
Kant teme cair no idealismo. Seu esforço é imenso. Ele afirma com energia a
existência de um mundo exterior. E por que existe e por que os fatos se conexionam
necessariamente, há leis. Sem essas leis a natureza nos seria ininteligível. Essas leis
reduzem-se a duas: a causalidade e a continuidade (In mundo non datur casus, fatum,
hiatus, saltus).
67

Os fenômenos não são dados ao acaso, sem ligação, porque do contrário como
conceber o mundo? E como concebê-lo se houvesse o vazio já que o vazio não pode ser
percebido? O mundo para ser concebido é mister que seja encadeado numa seqüência de
causas e efeitos. Sem essa concepção seria impossível a concepção do mundo. Sem esses
princípios seria impossível o conhecimento e a legitimidade da experiência prova a dos
princípios do entendimento. Por isso são eles aplicados apenas aos objetos do mundo
sensível. É o que ele concluirá mais adiante.
Percebemos a realidade das coisas como fenômenos. Mas, em si mesmas, como são
elas? O que elas são em si mesmas escapa-se à nossa percepção. O que são em si mesmas é
apenas objeto de pensamento. E como o termo nous, em grego, significa espírito, noumeno
é o conteúdo de um pensamento, não de uma percepção. Serão os objetos em si mesmos
realmente substancias e haverá realmente causas. Ora, o númeno (noumeno) não é objeto
de percepção e só aplicamos as leis aos objetos da percepção. Só podemos ter do númeno
uma intuição intelectual e só o que sabemos dele é que escapa aos limites do nosso
conhecimento.
Distingue Kant o númeno negativo de o númeno positivo. Os objetos sensíveis são
númenos negativos dois quais afirmamos sua existência sem nada saber de seus atributos
reais. Os objetos supra-sensíveis são númenos positivos, porque em seu conceito implicam-
se atributos determinados. Contudo, não podemos provar que existam, porque seu conceito
não corresponde a nenhuma intuição.
Do número negativo nada podemos dizer senão que é; enquanto de númeno positivo
podemos dizer tudo sem poder dizer, no entanto, que existe experiência. A possibilidade
nada mais é que a possibilidade física, a existência é a realidade material e a necessidade é
a determinação física.
É possível todo objeto cujo conceito não é contraditório. Há contudo coisas
impossíveis sem serem contraditórias. Kant exemplifica com a impossibilidade de duas
retas encerrarem um espaço. Tal é impossível, porque repugna às leis de nossa intuição.
Deste modo para afirmar que uma coisa é possível basta que se acorde com as leis do
entendimento e com as da sensibilidade. Esta segunda condição não se pode realizar nos
objetos que escapam à nossa intuição. Será isso suficiente razão para considerá-los
impossíveis? A resposta que dá é que não é impossível, mas ignoramos quais possam ser as
68

condições de sua possibilidade. A não contradição apenas pode determinar a possibilidade


de um pensamento, não, porém, a sua existência. O fato de algo não ser contraditório não é
razão suficiente para afirmar a sua existência. Em linhas gerais este pensamento é
verdadeiro. Contudo, nos estudos teológicos alcança-se a um ponto que toda possibilidade é
necessariamente existente. Admitida a existência do Ser Supremo tudo quanto é possível
nele e por ele é nele e por ele necessariamente existente, porque, do contrário, seria uma
possibilidade que lhe escaparia. A possibilidade não pode ser um mero nada. É uma
entidade menor, fraca, sem dúvida, mas é alguma coisa. Se não está nele seria um ser, uma
entidade que lhe escaparia, o que levaria ao pluralismo. No processo filosófico, vê-se, como
o mostramos por nossa dialética concreta, que há afirmações inevitáveis em face de teses já
demonstradas. Há conclusões que decorrem necessariamente da apoditicidade de certas
teses. No tocante às coisas sensíveis a possibilidade não afirma necessariamente a
existência, mas apenas a possibilidade. No tocante, porém, às coisas divinas, aceita a
existência do Ser Supremo único e fonte e origem de todas as coisas a possibilidade é de
certo modo necessariamente existente nele. É o que mostramos em nossa “Filosofia
:Concreta”.
A possibilidade de uma coisa é provada pela possibilidade de sua intuição, mas a
realidade é provada pela sensação, segundo Kant. Mas a sensação vai além, pois ademais
de provar a realidade prova ainda a da causa que a produz.
É esse postulado pelo qual concluímos a realidade da causa que é fundamento da
crença no mundo exterior. Kant analisa o pensamento de ;Descartes e mostra que este não
admitia outra certeza que a experiência interna. Mas conclui que admitir a certeza da
experiência interna é afirmar a certeza da experiência apenas nos oferece os fenômenos do
que não a sua substância. Também é transcendental a idéia da natureza porque a
experiência apenas nos dá a conhecer parte dos fenômenos e não a totalidade.
Essas três idéias são os objetos de três ciências: a psicologia transcendental (o eu), a
cosmologia transcendental (o mundo, o cosmos) e a teologia transcendental (Deus).
Por serem transcendentais essas ciências não podem provar a realidade dos seus
objetos.
É um paralogismo, afirma, que do eu experimental concluamos a existência de um
simples, de uma substância espiritual.
69

E chama de antinomias da Razão pura as contradições que inevitavelmente caímos


quando desejamos realizar a natureza, a série total dos fenômenos.
Quando afirmamos que Deus é o princípio de todas as coisas nós personificamos um
simples ideal de razão pura.
Daí a divisão do segundo livro da Dialética em três capítulos:
1)paralogismo transcendental;
2)antinomias;
3)ideal da razão pura.
Os quais passaremos a tratar.
..........................
como Aristóteles já o mostrara uma substância é portadora da qualidade e a ausência
total de qualidades é afirmar apenas o nada. Perder algumas qualidades não seria ainda a
perda total da substância. Se há perda de alguma ainda não provaria Kant que há perda de
todas. Ademais a perda de consciência não prova ainda a inexistência da substância
consciente, como a perda de um conhecimento não prova ainda a extinção do cognoscente.
A argumentação de Kant é falha e ainda demonstraremos mais adiante que é insustentável
quando procedamos a nossa crítica à crítica da razão pura.
........................
As antinomias da Cosmologia Transcendental
A série total dos fenômenos existentes realmente (que para Kant é a natureza que
nada mais é que a totalidade dos fenômenos e suas condições) leva fatalmente a
contradições inevitáveis, que ele chama de antinomias, que são quatro, correspondentes às
categorias da quantidade, da qualidade, da relação e da modalidade.
1a. antinomia
Tese: É necessário, por um lado, que o mundo tenha tido um começo, e que tenha
limites.
Razões téticas: Se o mundo é eterno (Kant emprega o termo eterno no sentido do que
tem durado sempre) uma série infinito (em número, portanto) já teria atualmente decorrido.
Ora, tal é absurdo porque uma série de tal espécie não poderia Ter atualmente terminado e
como tal não se deu tem ainda que percorrer o que é contraditório à sua infinitude, pois
haveria um infinito a parte ante e, neste momento, tal infinito ainda poderia Ter um
70

acrescentamento, o que leva ao absurdo. Se fosse infinito no espaço, a soma de suas partes,
que são finitas, formariam um número infinito, o que é impossível, pois jamais a soma de
coisas finitas poderia dar uma totalidade infinita. Tais razões apoiam a tese.
Razões antitéticas: Contudo é impossível que o mundo tenha tido um começo e que
tenha limites no espaço. Se começou, houve antes um tempo vazio. Ora, um tempo vazio
não encerra coisa alguma que possa determinar algo a surgir, o que leva consequentemente
a concluir que não pode surgir em tais condições. Se o mundo, por sua vez, tem limites, é
ele limitado por um espaço vazio. Ora, um espaço vazio é um puro nada, o que é por sua
vez contraditório. Consequentemente o mundo é eterno e infinito, o que comprova a
antítese.
2a.antinomia
TESE: O mundo é composto de partes simples.
Razões téticas: A composição nada mais é que a relação acidental das substâncias,
portanto implica, necessariamente, a simplicidade como elementar.
Razões antitéticas: Partes simples não ocupariam nenhum espaço, pois do contrário
teriam partes. E coisas não especiais não poderiam formar uma extensão. Deste modo é
impossível que o mundo seja composto de partes simples.
3a.antinomia
TESE: É necessário admitir uma causalidade livre para explicar a causalidade natural.
Razões téticas: Se todas as causas fossem determinadas por outros que as antecedem
e não houvesse uma primeira livre que as determinasse não haveria começo algum o que é
contraditório.
Razões antitéticas: também é contraditório, contudo, que uma causa possa agir sem
ser determinada a tal por um fenômeno anterior. O que leva a concluir que não há causa
primeira, causa livre. Ademais uma causa livre perturbaria a ordem das leis da natureza.
4a. antinomia
TESE: Para explicar o universo é mister supor um Ser necessário, distinto daquele, e
que não faz parte dele.
Razões téticas: A série dos fenômenos naturais é contingente e todo condicionado
exige por condição um primeiro incondicionado.
71

Razões antitéticas: Contudo, é impossível existir no mundo um ser necessário, como


é impossível existir fora do mundo e que seja a sua causa. E as razões são as seguintes: um
ser necessário não podia fazer parte do mundo, que é contingente. Se está fora do mundo,
está fora do tempo. E se tal se dá não poderia agir no tempo e consequentemente não
poderia produzir o mundo que está no tempo.
E comenta porque o termo sujeito tem na maior uma significação diferente do que
tem na menor, pois na maior significa uma coisa em geral, capaz de atributos enquanto, na
menor, significa o ato de pensar, consequentemente a conclusão é deduzida per sophiam
figurae distionia.
(Não sabemos que filosofia de envergadura usaria tal silogismo, tão elementar em seu
erro que qualquer estudante de lógica evitaria. Nenhum lógico, que realmente merecesse tal
nome, diria a maior: todo sujeito é uma substância, porque sujeito, em lógica, é apenas o
que é apto a receber um atributo (positivo sem dúvida), mas, substância é o que é portador
de acidentes, ou seja, o que perdura enquanto lhe acontece alguma coisa. Se sujeito é
tomado logicamente, substancia seria tomado apenas no sentido lógico-gramatical e não no
sentido ôntico, de algo existencial. Na menor, o que pensa realiza uma ação e como poderia
realizar uma ação o que não é em ato? O silogismo seria diferente: tudo quanto é em ato
existe; ora, pensar é um ato, logo, quem pensa existe. A maior se provaria porque existir é
estar fora de suas causas, no exercício de seu ser. Pensar é exercer uma ação, é estar no
exercício de seu ser, fora de suas causas. Neste caso, o silogismo já não seria sofístico, pelo
menos não poderia lhe ser atribuído o sofisma que lhe aponta Kant).
Afirma a seguir Kant que não há nenhuma prova especulativa em favor da
imortalidade do eu, porque essa prova seria deduzida do silogismo sofístico. Acusa
Mendelssohn de um erro na prova da imortalidade da alma, porque seu argumento é o
seguinte: “o que é simples não pode ser decomposto”, portanto não pode perecer por
decomposição. Mas se não pode deperecer de tal modo, por deperecer por extinção.
Mendelssohn tenta demonstrar que uma substância simples não pode perecer nem por
decomposição nem por extinção. E a razão que apresenta é a seguinte: para que algo pereça
por extinção teria que perder gradualmente suas partes. Sendo simples não tem partes para
perder. Mas esquece Mendelssohn que a alma tem qualidades e que ela poderia perdê-las
gradativamente até desvanecer-se completamente a consciência e por conseguinte o eu, já
72

que não é talvez nada mais que a consciência de mim mesmo. Conclui, afinal, que não se
pode nem provar especulativamente a imortalidade da alma nem que ela pereça com o
corpo. Só o poderá fazer a razão prática, como o mostrará mais adiante.
(Que o eu seja apenas consciência de si mesmo é uma afirmativa de Kant que não
resiste à análise. Consciência de si mesmo é a auto-reflexão e a auto-intuição. Para que algo
tenha consciência de si mesmo é preciso que seja algo. Ademais a perda de qualidade é
apenas uma alteração e não uma mutação substancial)
Do paralogismo transcendental
Sabemos que pensamentos e que nosso pensamento é um (tem unidade). Todo
pensamento supõe a capacidade, a faculdade de pensar. Atribuímos a esse eu atributos que
lhe pertencem sinteticamente, não analiticamente. Ora, os juízos sintéticos são
paralogismos para Kant, e consequentemente sofísticos porque nos faltam as intuições. Que
nossa alma seja uma substância, seja simples e permaneça unitária são afirmações que
fazem os filósofos, mas são afirmações a priori que correspondem às categorias de relação,
de qualidade, de quantidade e de modalidade. Ora, tal aspectos retira-lhes a legitimidade e,
na verdade, nada podemos afirmar do eu.
Critica Kant a Descartes por ter extraído a existência do cogito como se ergo sum
estivesse contido naquele. O pensamento é apenas a síntese da diversidade dos fenômenos.
Do meu pensamento posso apenas concluir que tenho consciência de minha faculdade
sintética. Para concluir que é uma substância seria mister uma intuição do eu e tal é
impossível porque é o eu a condição das intuições e, portanto, precede a todas. Que é o eu,
em suma? “um sujeito transcendental do pensamento = xn, inacessível ao pensamento.
Nem tampouco se pode demonstrar a simplicidade do eu, como não se pode provar a sua
substancialidade.
Concluir da unidade do pensamento a unidade do sujeito seria concluir de uma
unidade lógica uma unidade real. (Na verdade, esquece-se Kant que o pensamento se tem
unidade lógica não é apenas uma unidade lógica, mas alguma coisa e não um mero nada).
Prossegue ainda pondo em dúvida que possam existir substância simples, de que tratará
mais adiante. Identidade da faculdade de pensar por si só não é uma prova da identidade e
da permanência da minha pessoa. E o demonstra afirmando que uma função pode ser
73

permanente e sempre idêntica a si mesma sem que o sujeito dessa função seja idêntico.
(Mas, poder-se-ia perguntar se Kant acreditaria que seu eu fosse apenas uma função).
Ademais qual é a certeza de que meu eu mantém relações com os objetos
exteriores, com o meu corpo? Quem sabe se essa relação é contingente ou é apenas o
resultado da lei necessária de todo pensamento?
Se se provasse que o cogito implica uma substância e que esta é simples e
permanente, ter-se-ia, então, o conhecimento de um noumeno, de uma coisa em si, sem a
necessidade de uma intuição sensível. Mas todas as demonstrações são sofísticas e se
reduzem a este silogismo que ele constrói: “Todo sujeito é uma substância; ora, o que pensa
é um sujeito; logo, o que pensa é uma substância”.
Arquitetônica da Razão Pura
Pode-se também descobrir o laço que correlaciona todos os nossos conhecimentos
a uma ciência única da qual todas as outras são ramos.
A fonte comum de todos nossos conhecimentos é a razão e o fim comum de todas
as coisas é o fim supremo da razão. A ciência primitiva fundamental é pois a ciência da
razão que é a filosofia e é ela que dá unidade a todos os nossos conhecimentos considerados
do ângulo dos fins.
Considerar todas as coisas assim é apontar-lhes leis. Nós conhecemos apenas dois
objetos: a natureza e a liberdade. Há uma ordem que é que corresponde ao estudo das leis
físicas, e uma ordem que deve ser que corresponde ao estudo das leis morais. A física deve
chamar-se metafísica da natureza e o estudo das leis morais de metafísica dos costumes. A
metafísica da natureza subdivide-se em filosofia transcendental e fisiologia racional, que é
a física. A primeira estuda as leis do sujeito pensante e a Segunda examina os objetos.
Como há certos objetos que são apenas pensados pela razão a fisiologia racional se
subdivide em fisiologia imanente e fisiologia transcendente. A primeira considera os
objetos da experiência e compreende a física racional e a psicologia racional estas ciências
apenas tratam do que sabemos a priori sobre os objetos sensíveis. Kant também a chama de
física pura e de psicologia pura.
A física transcendente subdivide-se em cosmologia que trata da natureza
considerado como ser real, como substratum transcendental dos fenômenos e Teologia que
74

busca a causa primeira do mundo. Com exceção da metafísica dos costumes todas estas
ciências reduzem-se a conhecer simples conceitos dos objetos e não objetos reais.
A metafísica “serve de fundamento a possibilidade de certas ciências e ao uso de
todas”.
A prova moral demonstra ser onipotente, pois é preciso saber tudo para apreciar o
valor de todos os atos humanos e todo poder para recompensá-los no seu justo valor.
Demonstra ademais um Deus único, pois “como encontraríamos, nas vontades diferentes,
uma perfeita unidade de intenções e de fins,... uma causa capaz de produzir efeitos sempre
de acordo com a lei moral”.
Reconhecido Deus como autor da harmonia no mundo moral é reconhecido como
autor no mundo da natureza, pois a harmonia do universo não poderia ser senão o efeito de
sua sabedoria, de sua bondade e do seu poder. Tudo tem portanto um fim na natureza. Há
verdadeiramente no mundo um sistema de fins subordinados uns aos outros e todos
subordinados a um fim superior, a possibilidade da existência terrestre de um ser indicado
para praticar a lei moral. Desse modo a física se liga a teologia e o mundo da natureza e o
da graça são feitos um para o outro encontrando ele sua unidade num supremo desígnio e é
a consideração dessa unidade o fio condutor de nossas pesquisas sobre a natureza ao
mesmo tempo que ela são santificadas.
História da Razão Pura
Em face da Metafísica os filósofos dividiram-se em duas escolas. Uns como
Epicuro negaram esta ciência e só admitiram as idéias provindas dos sentidos, são os
sensualistas. Outros como Platão conceberam que as idéias construídas pela razão tem um
objeto real e consideraram a metafísica como a ciência dos seres, quando na verdade ela
nada mais é do que a ciência das formas da razão, são os intelectualistas. Entre os
intelectualistas distinguem-se os noologistas que relacionaram a razão como faculdade a
priori as noções supra sensíveis e os empiristas como Aristóteles que por uma estranha
inconseqüência derivam-nas dos sentidos ao mesmo tempo que reconhecem que elas
ultrapassam os mesmos. Se todas nossas idéias vem da experiência é inútil pretender
demonstrar a existência de Deus e a imortalidade. No entanto, Aristóteles tentou provar.
Estas duas escolas revelam que uma não soube usar a metafísica enquanto a outra dela
abusou. Há assim dois métodos, um naturalista e um científico. O primeiro é uma
75

verdadeira misologia, o método científico é ora dogmático como em Wolf, ora céptico
como em Hume. Entre estes dois excessos resta um caminho: o método crítico. Para Kant o
único que pode levar depois de vinte séculos a um bom resultado “satisfazer
completamente a razão humana numa matéria em que ela constantemente se ocupou com
ardor até aqui, mas também sempre inutilmente"
Cânone da Razão Pura
Do abismo céptico em que Kant nos colocou até aqui, vai surgir uma luz.
Reconhece Kant que tem a razão uma tendência irresistível para o infinito, um
ímpeto para alcançar uma verdade transcendental, para sair dos limites da experiência. Esse
ímpeto seria inútil, e contrariaria a própria natureza se não houvesse um meio de vencer as
nossas limitações. Se a razão pura é importante para alcançá-lo precisamos ver se o
podemos pela razão prática, “pois de outro modo, a que causa se deveria relacionar este
desejo, que não podemos abafar, de por em algum lugar o pé firme além da experiência? A
razão presente coisas que tem para ela um grande interesse; ela entra no caminho da
especulação para aproximar-se mais perto desses objetos, mas eles se afastam. Sem dúvida
ela tem de esperar melhor êxito no único caminho que lhe resta, o do uso prático.
“É prático tudo que é possível pela liberdade”. Ora é certo que há coisas práticas,
coisas que podem e devem ser feitas; portanto o homem é livre. Pela minha liberdade
posso tentar alcançar a felicidade. Este é um fim empírico mas também concebo um fim
racional que consiste não apenas em ser feliz, mas em tornar-me digno de ser. Este fim é
obrigatório, incondicionado, pois posso renunciar a felicidade, não porém a virtude. E
contudo é incondicionado este número que eu chamo a lei moral, o qual pode e deve Ter
uma influência sobre o mundo sensível, pois deve determinar meus atos que pertence ao
mundo dos fenômenos. Sinto a presença real do bem ao sentir a obrigação, ao sofrer a
ordem que ele me impõe. Como posso, pois, duvidar da sua realidade objetiva? Se o bem
existe é mister que haja uma adequação perfeita entre a virtude e a felicidade, pois um
desacordo contínuo entre estas duas coisas seria uma desordem absoluta, a negação
absoluta do bem. Ora essa acordância não existe nessa via; portanto há uma outra. Essa
acordância só pode ser realizada por uma potência infinitamente perfeita que ordena
segundo leis morais e demonstrada a existência dessa potência devo reconhece-la como
causa do mundo, portanto, Deus e uma vida a vir são suposições inseparáveis da obrigação
76

que nos impõe a razão. Substitui assim Kant a prova especulativa por uma prova prática
que afirma ele pode determinar melhor os atributos de Deus. O argumento das causas finais
elevam-nos ao pensamento de uma causa inteligente do mundo, mas não prova que seja
única nem onipotente. a existência de Deus e a imortalidade como possíveis. Que sejam
logicamente possíveis de serem concebidas, tal não implica a possibilidade real embora a
impossibilidade lógica implique a impossibilidade real. Portanto é igualmente possível
provar que Deus é possível como provar que ele é impossível. Prova subsidiárias são
insuficientes porque se Deus explica a ordem e a harmonia do mundo não explica a
desordem nem o mal moral; se a alma explica a unidade do pensamento não explica a união
da alma e do corpo. Estas hipóteses explicam apenas uma parte dos fatos. Poder-se-ia
admitir a verdade de uma hipótese quando a hipótese é contraditória e absurda? Diz Kant
que também há aí uma ilusão, pois com exceção da geometria, duas proposições
contraditórias podem ser igualmente verdadeiras ou igualmente falsas. Exemplifica ele com
as antinomias em que o absurdo de uma hipótese não acarreta a verdade da hipótese
contraditória. E se o mesmo não se dá com a geometria é porque esta ciência funda-se nas
relações de nosso pensamento com ela mesma. Fora da Matemática a prova apagógica (a
prova pelo absurdo) é contestável.
Conclusão final é que não podemos afirmar nem a realidade nem a possibilidade
de coisa alguma.
Inegavelmente Kant é um céptico, contudo não se deve confundi-lo com um
céptico comum, pois procura demonstrar sua posição ao negar as verdades da razão
especulativa. Pretende substituir os antigos processos por novos como se vê na razão
prática já distinta da razão pura. Na Metodologia propõe ele questões que exigem um
exame especial. Divide esta parte da obra em Disciplina da Razão Pura., Cânone da Razão
Pura, Arquitetônica da Razão Pura e finalmente História da Razão Pura.
Examinemos a primeira
Afirma Kant que o conhecimento pelas idéias é impossível porque lhe falta a
matéria, a metodologia tem que se aplicar apenas a forma.
Na Analítica afirmou que não temos o direito de raciocinar sobre coisas que
ultrapassam a experiência. Reconhece que há uma exceção nas matemáticas, pois estas
podem dar demonstrações concludentes que ultrapassam os limites da experiência. A
77

filosofia, contudo não pode oferecer o mesmo caminho e essa diferença surge de que os
nossos conceitos na Matemática aplicam-se as intuições, não a intuições propriamente
sensíveis, mas a intuição pura do espaço e do tempo. Fora da matemática os conceitos da
razão são vazios de intuições puras e também de intuições sensíveis. Por isso é impossível
na filosofia um juízo sintético a priori. Ademais para raciocinar são exigíveis axiomas,
demonstrações, e este método só o pode ser empregado na matemática. Um geômetra pode
definir um conceito porque ele o constrói, na verdade ele não define um triângulo, mas o
processo de seu espírito ao construir um triângulo. Como não há em sua figura senão aquilo
que ele pôs ao construir, ele pode definir por todos os seus caracteres, e a sua definição é
portanto completa e perfeita. O mesmo já não acontece com a filosofia, cujos conceitos
merecem definições vagas e incertas. Também é impossível na filosofia axiomas. Um
axioma é um juízo sintético a priori e que supõe portanto uma intuição pura do tempo e do
espaço. Deste modo só há axioma na matemática. Sem axiomas e sem definições é
impossível demonstrações. A filosofia não tem matemas (proposições demonstráveis), mas
apenas dogmas (proposições sintéticas por conceitos e sem intuições que não tem valor
apodítico). Por isso na filosofia se pode demonstrar com a mesma força teses contrárias,
como não se demonstra a existência de Deus também não se demonstra o ateísmo e o
panteísmo. Pergunta-se se poderia a filosofia fundar o esquema do conhecimento do
mundo. Sem ela, só conheceríamos fatos isolados, leis isoladas. A idéia de uma inteligência
ordenadora é o esquema que nos dirige ao estudo dos seres organizados, pois é somente
pela admissão de um fim que podemos e buscamos a função dos órgãos.
Desde o momento que esquecemos que tais idéias são apenas princípios
reguladores e os transformamos em princípios constitutivos deixamos de procurar o exame
dos fatos, pois consideramos ter alcançado o fim de nossas pesquisas. Essa afirmativa de
Kant é contudo desmentida pela atuação dos estudiosos como Newton, que, embora crendo
em Deus, não desinteressou-se pela pesquisa científica.
As idéias da alma e a de Deus nada têm de contraditório, enquanto a idéia da
natureza leva a antinomias das quais só nos salvamos negando a fenomenalidade do mundo.
Conclui, contudo, que é impossível afirmar ou negar a existência da alma e de
Deus e que tais idéias são úteis como reguladoras de nossos conhecimentos e, finalmente,
que há mais verossimilitude em favor da retidão da nossa razão que em favor de sua
78

falsidade. É uma presunção, a qual passa a examinar em sua obra na Metodologia, que
resume a Crítica da Razão Prática.
Solução oferecida por Kant ao problema das antinomias
Essas são as conseqüências a que chega a nossa razão ao tentar especular sobre a
origem do mundo. Mas há possibilidade de conciliação entre as teses e antíteses e Kant
propõe uma solução. A posição tética é própria do dogmatismo e da moral que a
fundamenta com a fé, enquanto “que a ascensão perpétua e sem fim do condicionado à
condição, ela permanece sempre com um pé no ar e não pode encontrar nenhuma
satisfação”. O empirismo sustenta a posição antitética, que encontra base na ciência, pois
aceitada a série como ilimitada impulsiona a pesquisa constante da natureza.
Para Kant, ambas posições são úteis uma à moral e a outra à ciência. Contudo de
onde surgem as contradições? Estas surgem, segundo Kant, de um erro de raciocínio
consistente em se haver tomado os fenômenos como númenos.
Desaparecem as contradições desde o momento em que se destrói essa anfibologia.
Vejamos a maneira como Kant examina a primeira antinomia.
O mundo é o conjunto dos fenômenos. Mas as leis dos fenômenos nada mais são
que leis do nosso pensamento. E essas leis não nos permitem que permaneçamos na
concepção sucessiva do mundo. Além de um tempo e de um espaço quaisquer concebemos
sempre algum fenômeno, um objeto material. Consequentemente não é finita a nossa
concepção do mundo. Neste caso, a antítese é verdadeira se entendemos o mundo, como
devemos fazê-lo, do modo que realmente o fazemos. Nossa mente, por sua vez, nunca
atinge o infinito, a eternidade, a imensidade. Portanto, não nos é possível conceber o
universo como infinito, o que tomado por esse lado, torna verdadeira a tese.
Tomados em si os fenômenos são nada. Não são, portanto, nem finitos nem
infinitos. Mas regredindo nosso espírito à origem das coisas e em direção aos seus limites, é
indefinida, não sendo, portanto, em si mesma, nem finita nem infinita.
Desse modo a tese e a antítese não são contraditórias. Ambas são verdadeiras e a
antinomia é apenas aparente. Se os fenômenos fossem reais seriam ou finitos ou infinitos. O
indefinido só existe na ordem do pensamento.
A solução da segunda antinomia obedece à mesma ordem. A ordem dos
fenômenos não é composta de partes simples, nem tampouco é divisível ao infinito. E tal
79

decorre porque em si mesmos são nada. Mas a regressão de nosso pensamento do composto
ao simples, a divisão mental das partes da matéria é sem limite. Nossa mente não alcança
ao simples, o que torna a antítese verdadeira. A divisão, contudo, tende ao infinito sem
alcançá-la e nesse sentido a tese é verdadeira.
Na verdade, a soma das partes do mundo existe apenas em nosso pensamento e seu
número é igual ao das nossas divisões mentais. E como o nosso pensamento não pode
atingir o infinito nem deter-se no finito, o número de nossas divisões mentais é indefinido.
Consequentemente não há contradição entre a tese e a antítese. A divisão só pode deter-se
no simples, mas, na verdade, não atinge nunca o simples. E essa é a razão porque as duas
proposições são verdadeiras e se conciliam. Seria absurda essa solução se os fenômenos
fossem alguma coisa, porque então o elemento simples que procuramos constantemente
existiria antes da composição e com mais razão ainda antes da decomposição. No
pensamento, a divisão pode preceder ao elemento. Mas o ponto de partida é o composto e o
simples é apenas o ponto de chegada, que é apenas ideal e jamais atingível.
Nas suas primeiras antinomias são verdadeiras tanto a tese como a antinomia. Mas
apenas segundo um ponto de vista, porque segundo outro são ambas falsas. São falsas se
consideradas como asserções relativas à natureza das coisas, verdadeiras se reduzidas a
simples asserções obedientes apenas às nossas leis do pensamento.
Quanto às duas outras antinomias a solução é diferente. As teses são proposições
dos espiritualistas, enquanto as antíteses o são dos empiristas. As primeiras são verdadeiras
no mundo dos númenos enquanto as segunda são verdadeiras no mundo dos fenômenos.
As duas primeiras antinomias têm por objeto relações matemáticas, pois na ligação
matemática das séries de fenômenos, não se trata senão de uma condição que faz parte, ela
mesma, da série. Deste modo o começo dos fenômenos é um fenômeno, como o elemento
simples ou não-simples da matéria faz parte dessa matéria. Se, pois, os fenômenos são
nada, o primeiro fenômeno é tão irreal como os subsequentes e o elemento simples é tão
irreal como o composto.
Quanto, porém, ao Ser Necessário, como causa do mundo sucede o inverso. Ele
pode existir sem ser fenômeno, e “como ser inteligível fora da série dos fenômenos”.
Deste modo a razão pode ser a causa de uma ação e consequentemente não
constitui ela um fenômeno que venha a preencher um intervalo de tempo entre essa ação e a
80

ação que a precedeu imediatamente. Vê-se desse modo que o incondicionado proposto aos
fenômenos não perturba a série. Não quebra a cadeia porque não é ele o anel dessa cadeia.
Deste modo os fenômenos podem encadear-se indefinidamente segundo leis necessárias
sem que a causa inteligível esteja submetida a essa determinação. Assim o que se produz
no tempo é efeito determinado necessariamente pelo fenômeno interior o que torna
verdadeira a antítese, mas a causa inteligível de tais fenômenos, estando fora do tempo, não
está submetida a essa lei, o que torna a tese também verdadeira. Assim a razão que supõe
uma causa livre é justificada e por sua vez o entendimento que supõe uma série infinita de
causas segundas não contradiz a razão. A liberdade entendida e concebida pelo
entendimento como o impossível só existe onde o entendimento não pode penetrar que é o
mundo dos números. Surge aqui uma pergunta: pode o fenômeno ter uma causa em algo
que não é fenômeno? Responde Kant que a razão experiência interna o demonstra porque a
razão e a causa inteligível impõe os deveres imperativos sendo ela portanto causa das
nossas ações. Não sendo ela no tempo determina-nos a agir no tempo. O ato é possível
pelas condições físicas que o precede “mas estas condições não concerne a determinação do
livre arbítrio, elas não se referem senão visualizam seu efeito no fenômeno. Por numerosas
que possam ser as razões físicas que me levam a querer, por numerosos que possam ser os
motivos sensíveis, não podem eles produzir o dever, mas um querer sempre condicionado
ao qual o dever, proclamado pela razão, opõe uma medida e um termo, uma defesa, uma
proibição e uma autoridade”.
Há assim para Kant duas casualidades: uma segundo a natureza, outra segundo a
liberdade. A razão é a causa inteligível dos meus atos livres o que demonstra que eles tem
sua causa no mundo dos fenômenos, pois “o homem é um fenômeno”. “Não há nenhuma
quaisquer condições que determinem o homem segundo o caráter empírico que não esteja
compreendida na série dos efeitos naturais, que não seja causada por um fenômeno anterior.
Mas não se pode dizer a razão senão antes do estado na qual ela determina o arbítrio, ou um
outro estado precede no qual este mesmo estado é determinado”. Em suma os atos humanos
são determinados enquanto fenômenos, ou seja, enquanto os percebemos no tempo e no
espaço, mas são livres enquanto referidos a razão, a lei moral. O ato realizado pelo homem
é um fato, pois tem lugar no tempo e é determinado por um fato anterior, como por
exemplo uma mentira que é determinada pela má educação, pela leviandade, pela falta de
81

sentimento de honra, mas essa mentira é uma violação das leis da razão, e como tal é um
ato inteligível. A razão poderia determinar o homem a não mentir. Portanto ela é uma causa
livre da sua mentira. Por esse ponto de vista, nossos atos tem uma causa fora do mundo e
independente da determinação física. E esta causa livre coexistente da determinação de
nossos atos como fenômenos constitui a liberdade transcendental. E essa liberdade é real
porque nossa razão prática nos obriga a aceitá-la já que ela não existe no mundo sensível.
Reconhece Kant que é difícil compreendermos como nossos atos podem Ter duas causas:
uma livre que nos torna livres e outra não livre que nos impede de ser livres, mas o absurdo
desaparece quando considerando essa segunda causa é um fenômeno? E como tal não tem
nenhuma realidade. Ora uma determinação fenomenal sendo consequentemente ilusória não
é incompatível com a liberdade real. Para resolver a quarta antinomia basta considerar pelo
mundo dos fenômenos que é o que se dá no tempo tudo é condicionado, mas fora do tempo
pode existir um ser necessário “as duas proposições contraditórias podem ser ambas
verdadeiras ao mesmo tempo sob diferentes aspectos, de tal forma que todas as coisas do
mundo sensível sejam absolutamente contingentes e não tenham senão uma existência
empiricamente condicionada, embora haja também para toda série uma condição não
empírica, quer dizer, um ser incondicionalmente ou absolutamente necessário. Este ser
enquanto condição inteligível, não faria parte da série como um de seus anéis (Nem sequer
como o mais elevado).
Assim não há no mundo sensível uma necessidade incondicionada, “não há
nenhum membro da série das condições em que não se deva sempre esperar e procurar tão
longe quanto possível a condição empírica, mas não se deve negar por isso que toda série
não possa ter sua razão de ser num ser inteligível que consequentemente é livre de toda
condição empírica, e contém ao contrário o princípio da possibilidade dos fenômenos”. A
contradição é portanto aparente, já que se pode explicar por um lado os fenômenos por uma
causa necessária e admitir por outro lado que a série total de suas causas é contingente. Os
fenômenos só existem no nosso pensamento e a impossibilidade do nosso espírito alcançar
ao infinito na regressão das causas contingentes é apenas uma lei do nosso espírito. Nessa
regressão, a nossa razão não pode que um fenômeno contigente passando para outro
anterior também contingente alcançar o ser necessário, o que dá validez a antítese.
82

Ao tentar solucionar as antinomias, chega Kant a concluir que é possível a causa


primeira do Ser necessário. Contudo, relega-a para o númeno, mundo onde apenas podemos
construir juízos de probabilidade. A existência do Ser necessário é, assim, para ele
problemática apara a razão especulativa, porque só podemos concluir de um conceito a sua
existência se podemos acrescentar ao que é concebido pelo entendimento a percepção pela
experiência, o que, afirma, não temos do Ser Necessário, pois essa idéia coloca-se acima de
toda experiência tornando-se impossível uma intuição sensível da mesma, pois não seria o
ser necessário se fosse capaz de ser apreendido por uma intuição sensível. É necessário
apenas ao pensamento. Contudo, mesmo inexistente tem este ideal um valor prático. “A
razão humana contém desses ideais, que não têm como os de Platão uma virtude criadora,
mas que têm, contudo, uma verdade prática e servem de fundamento à possibilidade de
certas ações” (as ações morais, no caso). Embora não existente fora do pensamento é
adequada ao conceito da perfeita sabedoria: “Tais idéias dão uma unidade de medida
indispensável à razão que tem necessidade do conceito do que é perfeito para poder
apreciar o grau ou o defeito da imperfeição”.
Inegavelmente, concorda, que a idéia de imperfeição implica a perfeição. Mas
dessa implica necessária dos conceitos não conclui a sua existência, a sua objetividade. E
como age então em nosso espírito? Surge por uma necessidade da natureza do nosso
espírito.
A especulação metafísica não pode concluir pela realidade desse ideal fora da
nossa mente. Atribuímos a esse ideal a posse de todos os atributos possíveis positivos e não
os negativos. Consequentemente, tudo quanto existe possui algum dos atributos de Deus.
Nenhum possível pode ser concebido por nós sem ele, como não podemos conceber
nenhuma coisa extensa sem o espaço. Deus é concebido como plenitude de ser e ao mesmo
tempo como único, pessoal. Sua perfeição não está repartida em outros seres, porque então
nenhum seria perfeito e uma soma de seres imperfeitos não realizaria uma perfeição.
Deus é simples, pois não é composto de partes, pois se o fosse cada parte
constituiria a possibilidade de sua existência, o que é contraditório, pois é ele a condição de
toda possibilidade. A tese panteísta é falsa porque faz de Deus uma soma das qualidades
das partes. Os atributos de Deus são infinitos e os seres finitos deles participam
imperfeitamente. É Deus a totalidade das perfeições possíveis, mas essas não são
83

partilhadas pelas coisas, mas apenas imitadas por estas, por uma espécie de assimilação
imperfeita. “O real não contém nada mais que o simplesmente possível. Cem escudos reais
não contém absolutamente nada mais que cem escudos possíveis”. Portanto, não é
necessário que esse ser, que é o fundamento da possibilidade das coisas, que seja ele real
para que as mesmas coisas possam existir. Não podemos provar nada mais que Deus é
apenas uma concepção simples do nosso espírito. E isso decorre da necessidade de explicar
o condicionado pela incondicionado, porque não encontramos este, por mais que o
procuremos, nas coisas imperfeitas. Impõe-se, assim, o ser perfeito. Ora, os fenômenos só
existem em nosso pensamento, afirma Kant, por conseguinte sua condição não tem mais
realidade que esses mesmos pensamentos. Numa série, conclui-se por um princípio da
mesma. Mas se a série não existe, não existe também o primeiro elo. A conclusão a que
chega é que Deus é necessário ao nosso pensamento, não, porém, que sua existência seja a
condição das coisas. E tanto é assim, que os filósofos procuram incessantemente
demonstrar a sua existência. Todas essas demonstrações reduzem-se a três. Ou parte-se da
experiência para alcançar-se o Ser Necessário, ou do simples conceito da sua existência. Se
se parte do simples conceito, temos o argumento ontológico. Se se parte de uma experiência
indeterminada (da existência do mundo), temos o argumento a contingentia mundi; se se
parte de uma experiência determinada, como das qualidades e da harmonia do mundo,
temos de inferir a existência de uma inteligência que a produziu, e temos a prova
fisicoteológica ou prova das causas finais.
Todas essas provas são para ele insuficientes, porque todas elas consistem em
afastar-se da experiência para fundar-se na razão, em seus conceitos, que para Kant são sem
valor.
Passa Kant a discutir as provas e inicia pela análise da prova ontológica de Santo
Anselmo. Este conclui da idéia do perfeito a sua existência. Se lhe faltasse a existência,
faltar-lhe-ia uma perfeição e não seria perfeito, pois haveria contradição dizer-se: o ser
perfeito não existe. Ora, uma proposição negativa só é contraditória se a proposição
afirmativa correspondente é analítica. Mas a proposição o ser perfeito existe é sintética,
pois o predicado existência não está incluso no sujeito perfeição. E mesmo que pudéssemos
reduzir a um argumento analítico a existência de Deus não estaria demonstrada. Assim da
proposição “o triângulo tem três ângulos” não se pode concluir a sua existência. Um ser
84

perfeito existe é uma proposição que, na qual a causa primeira de todas as coisas, causa
inteligente e suprema, soberana providência. E quando for provada, se é possível provar a
sua existência, já sabemos de antemão como será. A prova moral evita-nos cair no
antropomorfismo e nas más concepções sobre a natureza de Deus.
Diz Kant que “todas as nossas faculdades devem Ter sua razão de ser; elas devem
estar apropriadas a um fim”. Por não poder nosso espírito alcançar o termo de suas buscas
sobre o contingente, estabelece ele a idéia de absoluto. As idéias têm por efeito dar a
unidade aos conceitos do entendimento, como os conceitos dão a unidade aos
conhecimentos experimentais. Não são eles constitutivos ao conhecimento, mas apenas
reguladores, e dirigem o espírito para certo vim, que nada mais é que a concepção da
ciência como uma, considerando todos os nossos conhecimentos como decorrentes de uma
unidade. Nossos conhecimentos são assim sistematizados, encadeando uns conhecimentos
em outros. Mas esse laço que os une pode ser imaginário. Contudo, na verdade, é a
condição da unidade de nosso conhecimento. Exemplifica Kant com o seguinte:
suponhamos diversas linhas que convergem sobre o horizonte. Não sabemos se essas linhas
vão além dos limites da nossa visão, mas, pelo pensamento, concebemos um foco
imaginário. Esse foco imaginário é a idéia e as linhas os nossos conhecimentos. Essa idéia é
a do Absoluto, para onde convergem todas as outras e, por isso, as ciências tornam-se a
ciência. Sem esse plano único, que coordena todos os conhecimentos dispersos, não haveria
uma ciência da natureza.
Essa a razão porque centralizamos os conhecimentos dispersos numa unidade,
representamos os diversos gêneros como ligados entre si por transições insensíveis, e
concluímos que há na natureza uma continuidade de formas. Mas essa lei da continuidade
só existe no nosso espírito e não na natureza, como o afirmou Leibnitz, pois se essa
continuidade fosse real, haveria entre duas espécies vizinhas não apenas alguns
intermediários mas uma infinidade de intermediários.
Deste modo, a idéia representa um papel análogo ao que o esquema tem em nossos
conhecimentos sensíveis. O esquema não é uma imagem determinada, mas a representação
de um processo geral, um método para representar a diversidade sob a unidade. A idéia não
é um conceito, mas um método geral para dar unidade aos conceitos. “É uma regra, um
princípio da unidade sistemática em todo uso intelectual”. Assim a idéia de substância
85

simples é o esquema do conhecimento psicológico. A idéia da natureza concebida como um


único objeto é o esquema ...................................
....................retiramos o sujeito ser perfeito a existência desaparece. Portanto, Deus
existe se Deus existe. Poder-se-ia argumentar que há sujeitos absolutamente necessários aos
quais é impossível afirmar que não existem. Entre tais sujeitos está Deus. Neste caso,
afirma Kant, supõe-se o que se busca provar: a necessidade da existência de Deus. Alegam
outros que é contraditório afirmar a não existência de um ser necessário. Responde Kant
que tal afirma funda-se em admitir que tal ser é possível. E como podemos saber que é
possível? Logicamente, está certo. Mas implica a possibilidade lógica uma possibilidade de
existência. Por tais razões é impossível provar a priori a existência de Deus. Só a
experiência permite, por um juízo sintético, ajuntar o atributo de existência a alma coisa.
Foi por essa razão que os filósofos procuraram fundar na experiência as provas da
existência de Deus. Examina ele tais provas, enunciando a prova cosmológica da seguinte
maneira: “Se alguma coisa existe, um ser absolutamente necessário deve existir; ora, existe
alguma coisa; portanto, há um ser necessário, cujo ser é perfeito”, mas esse argumento
reduz-se ao primeiro, embora pareça ser fundado na experiência. Como se pode concluir
que o ser necessário seja perfeito? É preciso afirmar a priori a identidade de ambos
conceitos, o que é retornar à prova ontológica, por Kant condenada.
Concluir dos seres contingentes a existência de um ser necessário é recorrer ao
princípio de causalidade, que só é válido no mundo sensível. Como se pode saber se o
mundo tem realmente uma causa? Também é improcedente a prova das causas finais. Partir
das coisas da experiência para Deus é realizar um raciocínio transcendental, portanto sem
valor. A existência do mundo poderia quanto muito afirmar que tem ele um construtor,
poderosíssimo, não porém que seja perfeito. Se assim se procede cai-se, outra vez, na prova
ontológica.
Concluindo pela ineficiência dessas provas, afirma “que toda procura especulativa
da razão, no tocante à teologia, é de nenhum valor quanto à natureza interna dessa ciência,
e, consequentemente, se não se coloca de início as leis morais, para delas servirmo-nos
como de um fio condutor, não se pode alcançar nenhuma teologia natural”.
Contudo, apesar de serem as provas especulativas sem valor, elas servem para
fundar a prova moral. E esta consiste no seguinte: se não sabemos o que Deus é pelas
86

provas especulativas, podemos saber, contudo, o que ele é se ele existe. A prova moral já
nos mostra o que deve ser este ente perfeito, que será.............
Contudo não sendo as leis do entendimento as da verdade, é possível, como o
afirma a tese que os fenômenos tenham uma causa primeira real desde que ela só exista no
mundo inteligível e que não tenha ela sobre os fenômenos senão uma causalidade
inteligível ou seja que ela só atua sobre aqueles não no tempo e no espaço, onde parece que
aqueles estão, mas que realmente não estão.
...

Você também pode gostar