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O compositor planeja, a música ri...

Considerações acerca de intuição e razão na criação musical1


por Felipe de Almeida Ribeiro

O compo i o planeja, a m ica i ma c leb e f a e do compo i o norte-


americano Morton Feldman (FELDMAN, 2000, p. 111), famoso por seu bom humor.
Apesar de cômica, essa crítica ataca, essencialmente, aquele excesso de confiança que
nós, compositores, muitas vezes depositamos nos planejamentos pré-composicionais. Ela
aponta, a meu ver, uma necessidade crítica do compositor de buscar um equilíbrio na
relação intuição-razão dentro do processo criativo musical.

Hoje, no ensino da composição seja ele formal, seja informal , fala-se muito em
harmonia, orquestração, contraponto etc., mas pouco se fala daquilo que escapa das
explicações científicas e que justamente nos diferencia das ciências duras. São poucas,
senão raras, as disciplinas na grade curricular dos cursos de graduação em música que
abordam temáticas que encorajem o pensamento crítico, de caráter aberto. A criatividade
não é, portanto, estimulada, especialmente em cursos de graduação. Temos uma forte
ênfase no ensino das técnicas, na estratégia do ensino daquilo de que temos certeza. Há
pouco espaço para o experimental. Nesse sentido, temos um problema. Para Stockhausen,
por exemplo, a criatividade entende o novo e justamente o desconhecido como elementos
ca ali ado e e enciai pa a a con o: Uma pe oa c ia i a fica emp e
estimulada quando acontece algo e n o con eg e e plica [ ] (STOCKHAUSEN,
2000, p. 36). Podemos complementar dizendo que a criatividade depende também do
mutualismo entre intuição e razão, e é nesse sentido que proponho relacionar criatividade,
intuição e razão na música.

***

1 Parte deste texto foi originalmente apresentado no Fórum de Pesquisa Científica em Arte Escola de Música
e Bela A e do Pa an (2012). Foi ampliado e e i ado pa a o p oje o O a Pala a ob e M ica .
Como compositor, estou constantemente buscando um diálogo inteligente entre
intuição e razão, um entendimento maleável, que reconsidere persistentemente suas
interconexões. Primeiramente, acredito que o processo de criação artístico centrado
apenas em intuição ou razão tende ao fracasso. Na verdade, obras baseadas puramente
em um desses dois polos são praticamente inexistentes: as composições sempre
apresentam essas duas características em diferentes níveis e proporções. Entretanto, o que
à primeira vista parecem ser dois conceitos opostos, são na verdade forças
complementares. Portanto, nossa simples divisão entre arte como aquilo que é flexível e
inexplicável e ciências exatas como uma disciplina rigorosa e precisa, vai por água
abaixo. É necessário enfatizar, em vista disso, a importância da mediação dessas duas
forças intuição e razão , pois é difícil imaginar algum processo criativo baseado
exclusivamente em uma ou outra apenas.

Ge almen e, o e a pe oa pop la men e efe em como me e o cl ico


da música faz alusão, mesmo que inconscientemente, à dicotomia intuição-razão. Por
exemplo: para muitos, Karlheinz Stockhausen, Ludwig van Beethoven ou Heitor Villa-
Lobos são marcos na história da música. Podemos pensar neles como indivíduos que
buscaram desenvolver a tensão entre intuição e razão dentro de suas próprias linguagens
musicais. Entendo que seja um engano identificá-los como ícones na história da música
apenas porque utilizaram certos artifícios em determinadas obras, como a aplicação da
série Fibonacci na estruturação formal, o uso de um jet-whistle como articulação exótica
ou mesmo uma fuga dupla como sinônimo de destreza intelectual. Antes disso, considero
esses personagens como compositores únicos porque alcançaram um grau de
autenticidade no entendimento dessas técnicas por meio de suas próprias impressões.
Parece-me que muitos os reconhecem mais pelas suas conquistas técnicas do que pelas
suas capacidades espirituais e intelectuais. Temos medo de reconhecê-los por aquilo que
não conseguimos explicar, como diria Stockhausen.

Na academia musical, estudantes são apresentados a algumas dessas técnicas como


modelos e estratégias composicionais: técnicas de execução e produção sonora, formas
musicais, escalas sintéticas, estilos contrapontísticos etc. Faz parte do processo de
aprendizagem, em determinado momento, sintetizar ou até quebrar esses paradigmas,
para então desenvolverem uma perspectiva nova e, quem sabe, própria. É nesse momento
que o indivíduo cria o seu próprio entendimento diante d e determinadas técnicas, sua
própria impressão, seu estilo. Nasce uma linguagem própria, um esperanto.

Analisemos, por exemplo, um grupo de jazz. Mesmo que o repertório escolhido dê


abertura à improvisação, em vários momentos os instrumentistas fazem uso de
procedimentos metodológicos: forma, instrumentação, digitação, percepção, escalas,
cadências, progressões etc. Temos aqui um exemplo de um ambiente altamente
imaginativo, intuitivo, mas profundamente enraizado em teorias e técnicas. Imaginemos
agora uma situação oposta: solicitar a alguém, sem treinamento musical, que componha
um concerto grosso barroco. Esse indivíduo não terá, provavelmente, as habilidades
técnicas e intelectuais necessárias para completar essa tarefa. Entretanto, isso não
significa que essa pessoa não seja criativa, ou, mais especificamente, que não possua
pensamentos musicais intuitivos.

Nessa mesma linha de pensamento, reforço que música puramente baseada em


razão é inexistente. Em algum estágio, alguém deverá tomar decisões baseadas em algum
tipo de arbitrariedade ou procedimento aleatório o que não define necessariamente
intuição. Lejaren Hiller (1924-1994), po e emplo, comp o lan o em 1956 a
Illiac Suite, a primeira peça musical composta por um computador por meio de
procedimentos de inteligência artificial. Por mais lógicas que sejam as decisões
composicionais tomadas pela máquina (sistema binário), há por trás disso uma série de
algoritmos criados pelo compositor (programador) que acaba denunciando uma
determinada estética minimalista, serialista, roqueira ou outra qualquer.

Apesar do conflito conceitual entre intuição e razão, é dessa dialética que emerge o
processo de criação artística. Historicamente falando, Jean-Jacques Nattiez conclui que
mesmo dois compositores tidos como radicais opostos em determinados períodos de suas
carreiras, como Cage no acaso em música (intuição) e Boulez no serialismo integral
(razão), devem parcialmente um ao outro o mérito de suas criações.

Quando Henry Cowell perguntou a Cage o que ele devia a Boulez, ele
eplico com pala a apa en emen e p eenden e : Bo le me
influenciou com se concei o de mobilidade . A im, de ce a fo ma,
Boulez deve o serialismo integral a Cage, e Cage o conceito de acaso a
Boulez?! (NATTIEZ, 1993, p. 15)
impo an e e cla ece , en e an o, e Cage emp e o o concei o de mobile
fo m da e c l a de Alexander Calder (1898-1976) para explicar seus conceitos de
mobilidade e, mais especificamente, do acaso na organização formal musical. Boulez, por
sua vez, mostra-se resistente à ideia de procedimentos aleatórios na música apesar de
ter feito uso desse conceito em peças como Domaines (1968-69) e Piano Sonata III
(1955-57). Ele afirmava que procedimentos puramente movidos pelo acaso tendiam a um
afastamento da expressividade e do controle humano. Boulez, que aparentemente se
referia a John Cage, disse:

No momento, compositores contemporâneos parecem constantemente


preocupados, para não dizer obcecados, pelo acaso... A mais elementar
forma de transformação pelo acaso caminha junto com uma filosofia
influenciada pelo orientalismo, que aborda uma fraqueza básica das
técnicas de composição... Esse experimento com o acaso eu chamo de
descuido. (Boulez in NATTIEZ, 1990, p. 18)

Cage, por sua vez, ataca Boulez por este não reconhecer que, mesmo sendo um
vanguardista do serialismo, fez uso de procedimentos aleatórios em suas próprias
composições.

Após repetidamente ter dito que não se podia fazer aquilo que eu me
propus a fazer, Boulez descobriu aquele livro do Mallarmé. Era um
procedimento de acaso até o último detalhe. Comigo, o princípio tinha
que ser rejeitado de imediato; com Mallarmé tornou-se de repente
aceitável para ele. Agora Boulez estava promovendo o acaso, desde que
fosse o seu tipo de acaso. (Cage in NATTIEZ 1990, p. 18)

Com base nesse rápido exemplo das correspondências entre Boulez e Cage,
podemos perceber a complexidade da arte e do processo criativo, especialmente se
levarmos em conta sua essência orgânica e flexibilidade, quando se trata da interação
entre intuição e razão. É um conceito impossível de ser reduzido a uma fórmula só, pois,
justamente por ser flexível, aceita múltiplas verdades: Verdi, Stockhausen, Beatles,
Hermeto Pascoal e Rage Against the Machine, apenas para citar alguns exemplos. E é
justamente esse ponto que cria um atrito entre uma prática estritamente acadêmica e o
processo das artes. Em arte, aceitamos tanto a coexistência temporal quanto a coexistência
estilística. Podemos apreciar, por exemplo, Palestrina (1525-1594) e Steve Reich (1936)
sem nenhum empecilho evolutivo são quase 350 anos que separam esses dois artistas.
Adicionalmente, podemos também apreciar a música dos contemporâneos Boulez e Cage
sem restrições estilísticas. Ao contrário de algumas áreas de conhecimento, é sabido que
não buscamos por evolução em arte. Trabalhamos, portanto, sem a substituição, e
buscamo , como na pala a de Fe nando Pe oa, e capa e de [...] abe pen a com
a emo e e en i com o pen amen o; n o de eja m i o en o com a imagina o [...]
(PESSOA, 2006, p. 151).

***

Por causa de sua natureza complexa, a criatividade não pode ser desconstruída em
um modelo único e imutável. Se analisarmos o repertório musical, perceberemos
diferentes compositores com diferentes tendências. Tenhamos um outro exemplo: Pierre
Boulez e Morton Feldman podem ser vistos também como opostos se consideradas suas
perspectivas de intuição e razão; o próprio Feldman concorda com esse posicionamento:
Bo le , e do o ee n o eo e a a e eja Bo le , e ma e di e em
um artigo que ele n o e in e e ado em como ma pe a oa, apena como foi fei a
(FELDMAN, 2000, p. 33). A arte diferentemente da ciência dura não lida com uma
verdade apenas. Verdade em arte não é adequação. Ela aceita tanto Feldman e Boulez
quanto, por exemplo, Mozart e Lachenmann, Matisse e Mondrian. Hoje, temos concertos
que intercalam obras de Bach e Boulez, Villa-Lobos e Almeida Prado. A arte transcende
o tempo e aceita múltiplas verdades, as verdades dentro de cada artista. É importante
afirmar que não estamos aqui em busca de um modelo ideal para as artes, e sim de uma
libertação da ideia de modelo, daquilo que muitas vezes é defendido em algumas
academias. Cada obra possui seu próprio mundo, seu próprio idioma, suas próprias regras.
Ela respeita apenas as leis do artista, as leis do indivíduo, as leis embutidas dentro de sua
essência. Cada obra artística apresenta uma perspectiva, uma verdade, ou, nas palavras
de Jean-Luc Godard, uma exceção:
Cultura é a regra. E arte a exceção. Todos falam a regra: cigarro,
computador, camisetas, TV, turismo, guerra. Ninguém fala a exceção.
Ela não é dita, é escrita: Flaubert, Dostoievski. É composta: Gershwin,
Mozart. É pintada: Cézanne, Vermeer. É filmada: Antonioni, Vigo. Ou
é vivida, e se torna a arte de viver: Srebenica, Mostar, Sarajevo. A regra
quer a morte da exceção. (GODARD, Je vous salue, Sarajevo)

A verdade na arte deve ser vista como algo existente em cada obra de arte sozinha,
i o , [...] cada ob a de e en ina o o in e como o i-la: o que interessa, o que não
in e e a, o ee em jogo (CZERNOWIN, 2008, p. 3). Um om n nca e e ado,
mas uma obra musical pode apresentar seus equívocos. Na ciência, se desejo saber a
massa de um objeto em gramas, existe uma resposta relativamente direta para isso. Porém
tal procedimento não faz sentido em se tratando de poéticas artísticas. Não há ideal
universal a ser alcançado em arte, então não deveríamos ter expectativas do que a arte
deveria ou não ser. Há apenas o ideal do artista e o ideal da obra de arte.

A seguir, a partir dos conceitos investigados, abordarei duas questões que sempre
gem na minha p ica compo icional: Q al a d a o de ma ideia m ical? e
Compo e con e a ... o papel da c ica no planejamen o p -composicional de uma
ob a .

***

Qual é a duração de uma ideia musical? Como lidar com esse objeto temporal e
como interagir com ele? Em minha prática composicional, essas questões sempre me
motivaram a conhecer minha própria linguagem musical. Como me comunico? Como
acontecem meus dispositivos de coerência? Como finalizo ou questiono uma afirmação?
É claro que estou fazendo uma analogia à fala, no sentido linguístico. Mas, como
defendido por Adorno, a música empresta muitos elementos da linguagem falada.
Exemplifico essas indagações com minha pe a No de alinho i e de minha emo e
conf a (2011),2 para piano e live-electronics. Fiz, naturalmente, vários ensaios e

2 Todas as obras de minha autoria aqui apresentadas podem ser acessadas em: http://www.almeida-
ribeiro.com/
revisões até obter a versão definitiva. Consequentemente, a partitura final mostra diversas
mudanças em relação aos rascunhos iniciais, como novos compassos, a exclusão de outros
e, mais importante, a reorganização das ideias musicais. Como decidi isso tudo? Qual o
peso da intuição ou dos planejamentos pré-composicionais em minhas decisões? Difícil
mensurar, mas um fator que me permitiu um olhar diferente para a composição foi ter a
consciência da complexidade sônica e psicológica na música. Ou seja, compor tornou-se
mai m p oce o a eol gico e pode an cende a ealidade e a e pec a i a : o
compositor pode escavar e ir revelando suas intenções aos poucos, mas pode e deve
criar o seu próprio idioma, a sua própria rota. Isso não significa se desprender de
referências, mas sim criar resistências à voz interna; aquilo que impulsiona o movimento,
aquilo que comunica imobilidade, aquilo que desperta diálogo.

Durante o processo de criação dessa peça, dediquei parte do tempo de trabalho para
decidir a duração ideal entre duas articulações: um pizzicato (appoggiatura) seguido de
um trêmulo. Busquei executar esse gesto em diferentes dias, diferentes pianos e,
consequentemente, em diferentes salas; todas tentativas que renderam durações
diferentes, sensações diferentes. Nunca alcancei uma decisão ideal, porém foi exatamente
isso que me cativou. A grande diferença dessas tentativas, tecnicamente falando, foi o
tempo de ressonância entre os eventos, e esse parâmetro é praticamente impossível de
prever, pois depende de acústica, pianista, piano utilizado, para citar algumas das
variáveis. Apesar de haver uma ideia geral da obra, de um plano pré-composicional, a
escolha final foi intuitiva, mas tendo a consciência de que outras soluções eram possíveis.
Em outro trecho da obra, indaguei-me a respeito da quantidade de repetições de Ré # e de
um Fá# . Tentei sete repetições em uma primeira instância, e na segunda, seis. Qual a
gravidade, ou vantagem, de alterarem-se os valores para sete e oito, por exemplo? Dentro
do contexto dessa peça em específico, qual a diferença em se alterar o Fá # , na clave de
Fá, para um Sol natural? Claramente seria uma peça diferente, mas teria ela sua vitalidade
radicalmente alterada? Creio que não, até porque nesse caso a essência da peça está muito
mais relacionada com outros elementos, como timbre e gesto, do que com a escolha
específica das notas. É importante salientar que não considero o processo intuitivo
ilustrado nesses exemplos como algo aleatório, como um achismo, mas sim como um
processo cognitivo de assimilação de experiências previamente vivenciadas.
Em outra instância me io pa a a ofone Q in ana e , de 2007 , trabalhei
diretamente com o corpo do on . Foi j amen e no a o , na maleabilidade, na
possíveis distorções e elasticidades que encontrei as regras para essa peça. Para isso,
iniciei uma pesquisa a respeito dos multifônicos produzidos pelos diferentes saxofones e
busquei nos recursos da música eletrônica os meios para a (re)construção. Foi um estudo
técnico em que gravei diversos multifônicos e transcrevi o espectro dessas sonoridades
para o papel pautado. A duração dos sons e das pausas, porém, não foi definido por
nenhuma fórmula ou regra, mas sim por processos de decisão intuitivos: experimentei por
meio de um software de análise espectral a possibilidade de ouvir cada harmônico, com
diferentes durações e entonações. Contudo, um pensamento diferenciado foi necessário
para desenvolver essa ideia no domínio artístico. Foi necessário o desenvolvimento de
uma verdade, e isso extrapolava técnicas e formulações. Envolvia a criação de uma
linguagem, com suas próprias regras de articulação, de fraseado e de cadência. Parti do
entendimento geral de consonância em música: se o som que gera tudo vem de um
instrumento só, assumi que os parciais desse som tinham o potencial para oferecer
relações e estruturas harmoniosas. Orquestrei o trecho em questão em forma de texturas
criadas por sons que surgem com seus ataques mascarados pelos outros instrumentos, um
procedimento oriundo da música eletrônica. O resultado aponta que mesmo sons
classificados como dissonantes pelas teorias de contraponto e mesmo da acústica soam
como harmoniosos no contexto dessa peça volto a afirmar as palavras de Czernowin:
[...] cada ob a de e en ina o o in e como o i-la [...] (CZERNOWIN, 2008, p. 3).

Se considerarmos que nossa intuição é altamente baseada em experiências


sensoriais prévias, então criatividade no sentido mais profundo é limitada. Entendo a
relação entre intuição e experiência como ponto crucial para o processo criativo artístico.
Porém o aspecto mais perigoso da intuição, em minha música pelo menos, é a tendência
a repetir ideias e gestos por meio de permutações, sem ter a intenção de buscar uma
repetição significativa, como na música de Salvatore Sciarrino ou Steve Reich. Ser
repetitivo difere de trabalhar com a repetição. Adicionalmente, intuição, como um 'curto
circuito' de experiências vivenciadas, é muitas vezes manifestada por meio da
improvisação, ou seja, pelo ato de permutar as experiências previamente adquiridas.
***

Uma vez o plano pré-composicional pronto, ponho-me a compor. Essa é uma


realidade comum para nós, compositores: planejar e executar. Mas, como o próprio
Feldman nos adverte, é preciso contestar. Na maior parte da minha obra, eu raramente
trabalho com um plano pré-composicional 'hermético', pois o compor é um processo
transformante e gera planejamentos diferentes daquele do rascunho inicial. Um exemplo
di o minha ob a Pi ilampeio (2008), pa a ep e o (Fig a 1).

Figura 1 Pirilampeios

Essa obra reclama planejamentos pré-composicionais claros, justamente com o


intuito de fazer emergir sensações. O trecho acima ilustra bem meu entendimento entre
intuição e razão. A sonoridade criada entre o clarinete e a flauta, por exemplo, não foi
previamente vivenciada auditivamente por mim, sendo portanto uma experiência não
assimilada. A escolha das notas esteve confinada a um espectro obtido pelos parciais
superiores de uma certa série harmônica de um som analisado. O simples fato de se obter
essa série de notas não aponta, a priori, um pensamento musical. Aponta um
procedimento técnico. O pensamento reinante foi o de extrair uma textura: acreditar que
do planejamento desse trecho poderia emergir a possibilidade de criar uma textura em
que o soprano ora apresentasse o clarinete, ora a flauta, confundindo propositalmente o
ouvinte. O meu objetivo foi criar um universo caótico e ao mesmo tempo controlado, em
que não se percebesse com clareza duas linhas melódicas, mas sim uma textura, um
emaranhado. Esse procedimento envolveu questões de orquestração não tradicionais, pois
buscou justamente evitar a clareza de percepção de cada voz, ao contrário da tradição
dessa disciplina. Essa foi a verdade m ical p opo a: man ea a ie de no a
escolhidas dentro do formato da textura imaginada. Trata-se não apenas de planejar a
textura, mas de criar gatilhos para fazer emergir a textura. É diferente; a segunda é mais
arriscada, pois ela cria regras para a construção da sonoridade, e não simplesmente
apresenta a sonoridade como um bloco imóvel, de fácil difusão, mas assim mesmo mais
opaco.

***

Acredito que compor é muitas vezes sinônimo de autoconhecimento e considero


minhas composições mais coerentes quando eu respeito a cadeia de acontecimentos acima
descrita. De maneira geral, eu passo mais tempo revisando o que compus do que com o
próprio ato de criação inicial. É um processo arqueológico, psicológico, de descoberta,
construção e desconstrução. Talvez, para mim, a essência genuína da criação artística
esteja mais associada com os rascunhos finais. Nesse caso, criar é na verdade construir-
de cob i . Como di ia M io Q in ana: p eci o e c e e m poema ia e e pa a
e d a imp e o de e foi e c i o pela p imei a e (QUINTANA, 2006).

Tendo isso em mente, minhas revisões acabam sendo praticamente processos de


identificação, classificação, modificação e muitas vezes de eliminação de elementos. Na
verdade, elas são similares a processos de reorganização, em que a dialética entre intuição
e razão é sempre ativa. Como previamente discutido, os objetivos da arte e da ciência não
são os mesmos. Não há uma verdade única em arte. Sendo assim, a arte aceita múltiplas
verdades. Fernando Pessoa fala sobre essa abertura, mas num sentido mais aberto, como
imperfei o: Sabemo bem e oda a ob a em e e impe fei a [...]. Ma impe fei o
é tudo, nem há poente tão belo que o não pudesse ser mais, ou brisa leve que nos dê sono
que não pudesse dar-no m ono mai calmo ainda (PESSOA, 2006, p. 41). E e
pensamento encontra ressonância em muitas outras manifestações artísticas (e políticas),
como na ideia de e o como nece idade de L igi Nono.
Por estar ciente desse aspecto de abertura em arte, acredito que cada composição
permita múltiplos caminhos para diferentes finalizações. Stockhausen falou certa vez
sobre criatividade em uma de suas experiências com Theodor Adorno na escola de
Darmstadt. Essa citação é muito importante, por ilustrar bem a complexa simbiose entre
intuição e razão, pois mesmo um intelectual com muito treinamento musical, filosófico e
estético como Adorno não conseguiu aceitar certas verdades:

Na edição de 1951 do Darmstadt Summer School para música nova,


[Karel] Goeyvaerts e eu tocamos sua sonata para piano. [...] A peça foi
violentamente atacada por Theodor Adorno. [...] Ele criticou essa peça
de Goeyvaerts, dizendo que era absurda [...]. Adorno não a entendia de
maneira alguma. Ele disse, não há trabalho motívico. Então eu levantei
[...] e defendi esta peça [...]. Eu disse, mas Professor, v ocê está
procurando por uma galinha em uma pintura abstrata. [...] Mesmo
Adorno tendo sido aluno de Alban Berg e tendo composto muito, e
embora quisesse ter sido conhecido como um compositor mais do que
como filósofo, basicamente ele não era uma pessoa criativa. Uma
pessoa criativa está sempre empolgada quando algo acontece que não
possa explicar, algo misterioso ou miraculoso. (STOCKHAUSEN,
2000, p. 36)

Feldman, porém, acreditava em uma visão um pouco diferenciada. O seu conceito


de composição estava mais fadado ao conceito de consciência que de abertura, recepção.
Ele ac edi a a e compo en ol e abe a no a ce a no momen o ce o com o
instrumento ce o (FELDMAN, 2000, p. 160). Indo mai a f ndo ne e pen amen o,
Pauline Oliveros (1932-2016) comple a: N o ba a apena e ec a a no a ce a no
empo ce o da manei a ce a; de emo amb m e a con ci ncia ce a (OLIVEROS
apud LUCIER, 1995, p. 8). Trata-se da percepção certa; é daí que surge o conceito de
deep listening de Oliveros. Nesses casos, consciência é referente aos processos de
transferência de ideias ao papel, da transferência de fenômenos tridimensionais a planos
bidimensionais. Essa consciência representa, talvez, uma boa síntese das ideias até aqui
colocadas. No entanto, consciência no fazer artístico aceita e é alimentada pelas
experiências, intuições, planejamentos, assim como pelos tropeços, acasos, incertezas,
detritos, resíduos, impe fei e
REFERÊNCIAS

O compositor planeja, a música ri – Considerações acerca de intuição e razão na


criação musical – Felipe de Almeida Ribeiro

CZERNOWIN, Chaya. The other tiger. Search Journal for New Music and Culture.
Summer 2008, Issue 2. Disponível em: www.searchnewmusic.org/index2.html
FELDMAN, Morton. Give my regards to Eight Street - Collected writings of Morton
Feldman. Cambridge: Exact Change, 2000.

GODARD, Jean-Luc. Je vous salue, Sarajevo. Périphéria: France 1993.

NATTIEZ, Jean-Jacques. The Boulez-Cage Correspondence. Cambridge: Cambridge


University Press, 1993.

OLIVEROS in LUCIER, Alvin. Reflections - interviews, scores, writings. Köln:


MusikTexte, 1995.

PESSOA, Fernando. O livro do desassossego. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

QUINTANA, Mário. Caderno H. 1ª edição Editora Globo. 2006.

STOCKHAUSEN, Karlheinz. Stockhausen on Music. Robin Maconie (ed.).


Marion Boyars Publishers Ltd, 2000.

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