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Hoje, no ensino da composição seja ele formal, seja informal , fala-se muito em
harmonia, orquestração, contraponto etc., mas pouco se fala daquilo que escapa das
explicações científicas e que justamente nos diferencia das ciências duras. São poucas,
senão raras, as disciplinas na grade curricular dos cursos de graduação em música que
abordam temáticas que encorajem o pensamento crítico, de caráter aberto. A criatividade
não é, portanto, estimulada, especialmente em cursos de graduação. Temos uma forte
ênfase no ensino das técnicas, na estratégia do ensino daquilo de que temos certeza. Há
pouco espaço para o experimental. Nesse sentido, temos um problema. Para Stockhausen,
por exemplo, a criatividade entende o novo e justamente o desconhecido como elementos
ca ali ado e e enciai pa a a con o: Uma pe oa c ia i a fica emp e
estimulada quando acontece algo e n o con eg e e plica [ ] (STOCKHAUSEN,
2000, p. 36). Podemos complementar dizendo que a criatividade depende também do
mutualismo entre intuição e razão, e é nesse sentido que proponho relacionar criatividade,
intuição e razão na música.
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1 Parte deste texto foi originalmente apresentado no Fórum de Pesquisa Científica em Arte Escola de Música
e Bela A e do Pa an (2012). Foi ampliado e e i ado pa a o p oje o O a Pala a ob e M ica .
Como compositor, estou constantemente buscando um diálogo inteligente entre
intuição e razão, um entendimento maleável, que reconsidere persistentemente suas
interconexões. Primeiramente, acredito que o processo de criação artístico centrado
apenas em intuição ou razão tende ao fracasso. Na verdade, obras baseadas puramente
em um desses dois polos são praticamente inexistentes: as composições sempre
apresentam essas duas características em diferentes níveis e proporções. Entretanto, o que
à primeira vista parecem ser dois conceitos opostos, são na verdade forças
complementares. Portanto, nossa simples divisão entre arte como aquilo que é flexível e
inexplicável e ciências exatas como uma disciplina rigorosa e precisa, vai por água
abaixo. É necessário enfatizar, em vista disso, a importância da mediação dessas duas
forças intuição e razão , pois é difícil imaginar algum processo criativo baseado
exclusivamente em uma ou outra apenas.
Apesar do conflito conceitual entre intuição e razão, é dessa dialética que emerge o
processo de criação artística. Historicamente falando, Jean-Jacques Nattiez conclui que
mesmo dois compositores tidos como radicais opostos em determinados períodos de suas
carreiras, como Cage no acaso em música (intuição) e Boulez no serialismo integral
(razão), devem parcialmente um ao outro o mérito de suas criações.
Quando Henry Cowell perguntou a Cage o que ele devia a Boulez, ele
eplico com pala a apa en emen e p eenden e : Bo le me
influenciou com se concei o de mobilidade . A im, de ce a fo ma,
Boulez deve o serialismo integral a Cage, e Cage o conceito de acaso a
Boulez?! (NATTIEZ, 1993, p. 15)
impo an e e cla ece , en e an o, e Cage emp e o o concei o de mobile
fo m da e c l a de Alexander Calder (1898-1976) para explicar seus conceitos de
mobilidade e, mais especificamente, do acaso na organização formal musical. Boulez, por
sua vez, mostra-se resistente à ideia de procedimentos aleatórios na música apesar de
ter feito uso desse conceito em peças como Domaines (1968-69) e Piano Sonata III
(1955-57). Ele afirmava que procedimentos puramente movidos pelo acaso tendiam a um
afastamento da expressividade e do controle humano. Boulez, que aparentemente se
referia a John Cage, disse:
Cage, por sua vez, ataca Boulez por este não reconhecer que, mesmo sendo um
vanguardista do serialismo, fez uso de procedimentos aleatórios em suas próprias
composições.
Após repetidamente ter dito que não se podia fazer aquilo que eu me
propus a fazer, Boulez descobriu aquele livro do Mallarmé. Era um
procedimento de acaso até o último detalhe. Comigo, o princípio tinha
que ser rejeitado de imediato; com Mallarmé tornou-se de repente
aceitável para ele. Agora Boulez estava promovendo o acaso, desde que
fosse o seu tipo de acaso. (Cage in NATTIEZ 1990, p. 18)
Com base nesse rápido exemplo das correspondências entre Boulez e Cage,
podemos perceber a complexidade da arte e do processo criativo, especialmente se
levarmos em conta sua essência orgânica e flexibilidade, quando se trata da interação
entre intuição e razão. É um conceito impossível de ser reduzido a uma fórmula só, pois,
justamente por ser flexível, aceita múltiplas verdades: Verdi, Stockhausen, Beatles,
Hermeto Pascoal e Rage Against the Machine, apenas para citar alguns exemplos. E é
justamente esse ponto que cria um atrito entre uma prática estritamente acadêmica e o
processo das artes. Em arte, aceitamos tanto a coexistência temporal quanto a coexistência
estilística. Podemos apreciar, por exemplo, Palestrina (1525-1594) e Steve Reich (1936)
sem nenhum empecilho evolutivo são quase 350 anos que separam esses dois artistas.
Adicionalmente, podemos também apreciar a música dos contemporâneos Boulez e Cage
sem restrições estilísticas. Ao contrário de algumas áreas de conhecimento, é sabido que
não buscamos por evolução em arte. Trabalhamos, portanto, sem a substituição, e
buscamo , como na pala a de Fe nando Pe oa, e capa e de [...] abe pen a com
a emo e e en i com o pen amen o; n o de eja m i o en o com a imagina o [...]
(PESSOA, 2006, p. 151).
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Por causa de sua natureza complexa, a criatividade não pode ser desconstruída em
um modelo único e imutável. Se analisarmos o repertório musical, perceberemos
diferentes compositores com diferentes tendências. Tenhamos um outro exemplo: Pierre
Boulez e Morton Feldman podem ser vistos também como opostos se consideradas suas
perspectivas de intuição e razão; o próprio Feldman concorda com esse posicionamento:
Bo le , e do o ee n o eo e a a e eja Bo le , e ma e di e em
um artigo que ele n o e in e e ado em como ma pe a oa, apena como foi fei a
(FELDMAN, 2000, p. 33). A arte diferentemente da ciência dura não lida com uma
verdade apenas. Verdade em arte não é adequação. Ela aceita tanto Feldman e Boulez
quanto, por exemplo, Mozart e Lachenmann, Matisse e Mondrian. Hoje, temos concertos
que intercalam obras de Bach e Boulez, Villa-Lobos e Almeida Prado. A arte transcende
o tempo e aceita múltiplas verdades, as verdades dentro de cada artista. É importante
afirmar que não estamos aqui em busca de um modelo ideal para as artes, e sim de uma
libertação da ideia de modelo, daquilo que muitas vezes é defendido em algumas
academias. Cada obra possui seu próprio mundo, seu próprio idioma, suas próprias regras.
Ela respeita apenas as leis do artista, as leis do indivíduo, as leis embutidas dentro de sua
essência. Cada obra artística apresenta uma perspectiva, uma verdade, ou, nas palavras
de Jean-Luc Godard, uma exceção:
Cultura é a regra. E arte a exceção. Todos falam a regra: cigarro,
computador, camisetas, TV, turismo, guerra. Ninguém fala a exceção.
Ela não é dita, é escrita: Flaubert, Dostoievski. É composta: Gershwin,
Mozart. É pintada: Cézanne, Vermeer. É filmada: Antonioni, Vigo. Ou
é vivida, e se torna a arte de viver: Srebenica, Mostar, Sarajevo. A regra
quer a morte da exceção. (GODARD, Je vous salue, Sarajevo)
A verdade na arte deve ser vista como algo existente em cada obra de arte sozinha,
i o , [...] cada ob a de e en ina o o in e como o i-la: o que interessa, o que não
in e e a, o ee em jogo (CZERNOWIN, 2008, p. 3). Um om n nca e e ado,
mas uma obra musical pode apresentar seus equívocos. Na ciência, se desejo saber a
massa de um objeto em gramas, existe uma resposta relativamente direta para isso. Porém
tal procedimento não faz sentido em se tratando de poéticas artísticas. Não há ideal
universal a ser alcançado em arte, então não deveríamos ter expectativas do que a arte
deveria ou não ser. Há apenas o ideal do artista e o ideal da obra de arte.
A seguir, a partir dos conceitos investigados, abordarei duas questões que sempre
gem na minha p ica compo icional: Q al a d a o de ma ideia m ical? e
Compo e con e a ... o papel da c ica no planejamen o p -composicional de uma
ob a .
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Qual é a duração de uma ideia musical? Como lidar com esse objeto temporal e
como interagir com ele? Em minha prática composicional, essas questões sempre me
motivaram a conhecer minha própria linguagem musical. Como me comunico? Como
acontecem meus dispositivos de coerência? Como finalizo ou questiono uma afirmação?
É claro que estou fazendo uma analogia à fala, no sentido linguístico. Mas, como
defendido por Adorno, a música empresta muitos elementos da linguagem falada.
Exemplifico essas indagações com minha pe a No de alinho i e de minha emo e
conf a (2011),2 para piano e live-electronics. Fiz, naturalmente, vários ensaios e
2 Todas as obras de minha autoria aqui apresentadas podem ser acessadas em: http://www.almeida-
ribeiro.com/
revisões até obter a versão definitiva. Consequentemente, a partitura final mostra diversas
mudanças em relação aos rascunhos iniciais, como novos compassos, a exclusão de outros
e, mais importante, a reorganização das ideias musicais. Como decidi isso tudo? Qual o
peso da intuição ou dos planejamentos pré-composicionais em minhas decisões? Difícil
mensurar, mas um fator que me permitiu um olhar diferente para a composição foi ter a
consciência da complexidade sônica e psicológica na música. Ou seja, compor tornou-se
mai m p oce o a eol gico e pode an cende a ealidade e a e pec a i a : o
compositor pode escavar e ir revelando suas intenções aos poucos, mas pode e deve
criar o seu próprio idioma, a sua própria rota. Isso não significa se desprender de
referências, mas sim criar resistências à voz interna; aquilo que impulsiona o movimento,
aquilo que comunica imobilidade, aquilo que desperta diálogo.
Durante o processo de criação dessa peça, dediquei parte do tempo de trabalho para
decidir a duração ideal entre duas articulações: um pizzicato (appoggiatura) seguido de
um trêmulo. Busquei executar esse gesto em diferentes dias, diferentes pianos e,
consequentemente, em diferentes salas; todas tentativas que renderam durações
diferentes, sensações diferentes. Nunca alcancei uma decisão ideal, porém foi exatamente
isso que me cativou. A grande diferença dessas tentativas, tecnicamente falando, foi o
tempo de ressonância entre os eventos, e esse parâmetro é praticamente impossível de
prever, pois depende de acústica, pianista, piano utilizado, para citar algumas das
variáveis. Apesar de haver uma ideia geral da obra, de um plano pré-composicional, a
escolha final foi intuitiva, mas tendo a consciência de que outras soluções eram possíveis.
Em outro trecho da obra, indaguei-me a respeito da quantidade de repetições de Ré # e de
um Fá# . Tentei sete repetições em uma primeira instância, e na segunda, seis. Qual a
gravidade, ou vantagem, de alterarem-se os valores para sete e oito, por exemplo? Dentro
do contexto dessa peça em específico, qual a diferença em se alterar o Fá # , na clave de
Fá, para um Sol natural? Claramente seria uma peça diferente, mas teria ela sua vitalidade
radicalmente alterada? Creio que não, até porque nesse caso a essência da peça está muito
mais relacionada com outros elementos, como timbre e gesto, do que com a escolha
específica das notas. É importante salientar que não considero o processo intuitivo
ilustrado nesses exemplos como algo aleatório, como um achismo, mas sim como um
processo cognitivo de assimilação de experiências previamente vivenciadas.
Em outra instância me io pa a a ofone Q in ana e , de 2007 , trabalhei
diretamente com o corpo do on . Foi j amen e no a o , na maleabilidade, na
possíveis distorções e elasticidades que encontrei as regras para essa peça. Para isso,
iniciei uma pesquisa a respeito dos multifônicos produzidos pelos diferentes saxofones e
busquei nos recursos da música eletrônica os meios para a (re)construção. Foi um estudo
técnico em que gravei diversos multifônicos e transcrevi o espectro dessas sonoridades
para o papel pautado. A duração dos sons e das pausas, porém, não foi definido por
nenhuma fórmula ou regra, mas sim por processos de decisão intuitivos: experimentei por
meio de um software de análise espectral a possibilidade de ouvir cada harmônico, com
diferentes durações e entonações. Contudo, um pensamento diferenciado foi necessário
para desenvolver essa ideia no domínio artístico. Foi necessário o desenvolvimento de
uma verdade, e isso extrapolava técnicas e formulações. Envolvia a criação de uma
linguagem, com suas próprias regras de articulação, de fraseado e de cadência. Parti do
entendimento geral de consonância em música: se o som que gera tudo vem de um
instrumento só, assumi que os parciais desse som tinham o potencial para oferecer
relações e estruturas harmoniosas. Orquestrei o trecho em questão em forma de texturas
criadas por sons que surgem com seus ataques mascarados pelos outros instrumentos, um
procedimento oriundo da música eletrônica. O resultado aponta que mesmo sons
classificados como dissonantes pelas teorias de contraponto e mesmo da acústica soam
como harmoniosos no contexto dessa peça volto a afirmar as palavras de Czernowin:
[...] cada ob a de e en ina o o in e como o i-la [...] (CZERNOWIN, 2008, p. 3).
Figura 1 Pirilampeios
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CZERNOWIN, Chaya. The other tiger. Search Journal for New Music and Culture.
Summer 2008, Issue 2. Disponível em: www.searchnewmusic.org/index2.html
FELDMAN, Morton. Give my regards to Eight Street - Collected writings of Morton
Feldman. Cambridge: Exact Change, 2000.
PESSOA, Fernando. O livro do desassossego. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.