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POSSIBILIDADES E LIMITES

DO TRABALHO
ENQUANTO PRINCÍPIO
EDUCATIVO
MARIA LAURA P. BARBOSA FRANCO
da Fundação Carlos Chagas e da PUC-SP

RESUMO SUMMARV

Este artigo pretende situar a participação dos educadores The article intends to point out the role of educators in
na definição de política para o 2.º Grau frente à elabora- the making of High School policies, having in view the
ção da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacio- current elaboration of Brazilian new general law regu-
nal (LDB). Discute a proposta fundamentada numa orga- lations on education (LDB). lts approach is based on a
nização pedagógica a partir do trabalho enquanto princípio .pedagogical organization having work as an educating prin-
educativo. Explicita os pressupostos teóricos que norteiam cipie, exposing its theoretical bases, its limitations and
essa proposta. Aponta seus limites e delineia suas possi- potentiality.
bilidades.

Cad. Pesq., São Paulo (68): 29-37, fevereiro 1989 29


A última reforma educacional brasileira a nível sores e representantes de entidades educacionais.
de 1.0 e 2.0 graus efetivou-se via promulgação da Todavia, esses contatos limitaram-se a encontros-~
Lei 5692, em 1971, que, sob a égide da democrati- realizados, em geral, na Universidade de Brasília-,~
zação do ensino foi gestada no auge do período de com objetivos didáticos, visando, apenas, fornec~
autoritarismo e repressão provocados pelo progres- informações acerca do que estava sendo decidido a
sivo fechamento do sistema com a tomada do poder nível da cúpula ministerial.
pelos militares em 1964. O trecho a seguir, extraído do Relatório do Gru-
O Brasil vivia sob a arbítrio de Atos Institucio- po de Trabalho, retrata o conceito de participação
nais, aplicados por decisão exclusiva dos Presiden- subjacente às estratégias utilizadas por esse grupo
tes da República e que conferiam amplos poderes para "envolver" a comunidade.
ao Executivo. Sob a proteção desses atos, foram de- • Para que a este caso (do Grupo de Trabalho)
cretadas inúmeras leis, como a Lei de Segurança Na- não faltassem as vozes dos professores e estudan-
cional, a Lei da Imprensa e a Lei da Greve. tes,, .promoveu o G. T. uma 'Semana de Educação'
Nessas condições jurídico-políticas, deu-se o na Faculdade de Educação da Universidade de Bra-
fenômeno que se costuma denominar • milagre bra- sília, durante a qual todos os seus membros fize-
sileiro" (1967-1973), período em que o país conhe- ram palestras sobre tópicos do documento em ela-
ceu uma grande expansão econômica. • Durante o boração, sempre seguidas de debates não raro ca-
período do dito 'milagre', o PIB expandiu-se à taxa lorosos. Ao final da semana os participantes apre-
média anual de 10,2% ( ... ) e o principal motivo des- sentaram conclusões como fruto de seus estudos.
se crescimento foi o rápido processo de industriali- Ao lado disso, em contatos periódicos com a im-
zação liderado pelo setor de bens de consumo du- prensa, representante credenciado do G. T. mantinha
ráveis, especialmente automóveis e eletrodomésti- a opinião pública nacional a par da marcha dos tra-
cos" (Furtado, 1985, p. 17). balhos, surgindo muitas vezes comentárlas a esta
Uma política ágil e vigorosâ de financiamento à notícia."
produção agrícola também contribuiu para o fortale- Hoje, quando se cogita a elaboração de uma no-
cimento de uma agricultura de exportação, latifun- va Lei de Diretrizes e Bases .da Educação Nacional
diária, para a qual não faltavam créditos, assistência (LDB), vivemos um momento político que -possibilita
técnica, facilidade de transporte e escoamento dos uma maior articulação e participação dos -educadores
produtos, armazenagem e subvenções. na definição de políticas educacionais.
Para a sustentação ideológica do novo modelo, Embora ainda precárias, tem havido mobilizações
expandiram-se os meios ·'de comunicação de massa. mais consistentes, especialmente através da presen-
Com a criação do crédito direto ao consumidor, os ça de entidades educacionais no Fórum Nacional da
lares brasileiros foram, gradativamente, • benefi- Educação e nos debates da Assembléia Nacional
ciando-se" da presença de aparelhos de televisão, Constituinte.
cujos programas e mensagens procuravam garantir, Apesar das marchas e contramarchas dessa As-
o· mais adequadamente possível, uma perfeita inte- sembléia e, apesar dos mecanismos conciliatórios
gração cultural entre o Brasil e os padrões estran- de que se valeu para responder aos interesses de
geiros, principalmente norte-americanos. diferentes segmentos sociais - o que nem sempre
Nesse clima de "euforia" expansionista, foi ve.io · ao encontro das expectativas dos educadores
votada pelo Congresso Nacional, em regime de ur- comprometidos .com os interesses dos grupos sociais
gência (40 dias), com a ameaça de o Executivo apro- majoritários -, consideramos importante continuar
vá-la pelo decurso de prazo, a Lei 5692/71. na luta e aproveitar as brechas de participação que
Em consonância com as características polí- estão se abrindo para a comunidade acadêmica e
ticas da época, essa lei • de gabinete" foi ela- para as entidades representativas de professores e
borada poi'•um grupo de trabalho (8 pessoas) insti- alunos.
tuído e designado por decreto presidencial e refe- Após os esforços empreendidos junto aos cons-
rendado pelo Ministro da Educação e Cultura. A esse tituintes no processo de votação das questões edu-
grupo cabia a tarefa de preparar um anteprojeto para cacionais, é preciso agora continuar incentivando a
discussão conjunta no Senado e na Câmara dos mobilização dos educadores e da sociedade em geral,
Deputados. Após a elaboração do anteprojeto, desig- com· vistas à formulação da nova LDB.
nou-se também uma comissão mista com represen- Entendemos que as leis não são apenas instru-
tantes do Senado e da Câmara para estudar seu mentos através dos quais o Estado regula os proces-
conteúdo, incorporar as emendas apresentadas por sos em marcha. Antes de se consagrarem ·em pará-
parlamentares e encaminhar sua votação em plená- grafos normativos, representam uma produção cole-
rio. Como registra Demerval Saviani, o documento tiva que, embora gestadas nos embates políticos, não
resultante dos trabalhos do Congresso Nacional foi podem prescindir de procedimentos de consulta a
encaminhado ao Presidente da República para apre- todos os que serão por elas afetados.
ciação e eventuais vetos e, finalmente, editado sob Por outro lado, apesar de seu aparente caráter
forma de lei no Diário Oficial da União (Saviani, de universalidade, as leis não ·são neutras e, em uma
1976). sociedade como a nossa, marcada pelas desigualda-
1: verdade que, entre 'a1.elaboração do antepro- des sociais, incorporam a tomada de posição .de seus
jeto e' a publicação da lei, foram contatados profes- elaboradores em relação às demandas sociais de di-

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ferentes,. e determinados grupos. Em nosso enten- mentado de uma forma satisfatória sua tese que cir-
der ,:;,essa tomada de posição deveria estar direcio- cunscreve o aparecimento do homem a uma perspec•
nada.,para a elaboração de um projeto educacional tiva material, não conseguiu oferecer explicações
capaz de viabilizar a real democratização do saber. convincentes para a diferença qualitativa entre a
Trata-se, pois, do enfrentamento de um duplo consciência humana e a consciência animal.
desafio: em primeiro lugar, é preciso buscar efeti- Seu enfoque evolucionista-natural é ultrapassa-
vos canais de participação, através dos quais a po- do pelo enfoque do desenvolvimento histórico-cultu-
pulação - esse parceiro sempre ausente - ouse ral do psiquismo humano, quando Marx introduz o
assumir seu direito de demandar, pressionar, cobrar conceito de atividade na teoria do conhecimento.
e fiscalizar; em segundo lugar, é necessário elabo- A atividade, em sua forma inicial e básica, é a ativi-
rar diretrizes e propostas que contribuam para im- dade prática pela qual os homens se· põem em con-
primir na lei máxima da educação a marca da expe- tato prático com os objetos do mundo circundante,
riência, da reflexão e do compromisso dos educa- experimentam a resistência desses objetos, atuam
dores com a definição da política educacional que ativamente sobre eles, ao mesmo tempo em que se
se aspira para o país. subordinam às suas propriedades objetivas.
Dentre a multiplicidade de propostas que já co- A prática concebida como base do conhecimen-
meçam a se esboçar, surge uma que, incrustada na to é o divisor de águas que delimita a diferença en-
discussão da relação que se estabelece entre edu- tre a teoria marxista e a teoria idealista, já que para
cação e trabalho, aponta para a formulação de uma essa última a atividade humana assume predomi-
proposta pedagógica para o ensino de 2.0 grau a nantemente um caráter abstrato, contemplativo e
partir do trabalho, visto como a diretriz organizado- especulativo.
ra mais ampla e tomado como princípio educativo. 1
Por outro lado, o próprio Marx foi enfático ao
A análise dos materiais produzidos em defesa
explicitar que a atividade humana não se reduz a
dessa proposta permite antever a necessidade de
uma categoria meramente pragmática ou funcional.
discutir, em primeiro lugar, a concepção de trabalho
Ela é, ao mesmo tempo, <teórico-prática. A constru~
que a fundamenta. Além disso, é preciso elucidar
ção do conhecimento (a nível teórico, a nível das
suas implicações, especialmente no que diz respeito
idéias) está intimamente vinculada à prática social
à hipótese de superação da fragmentação do 2.0
de seu produtor, isto é, não pode ser concebida
Grau, via ensino politécnico, visto como síntese su-
peradora tanto do academicismo clássico, quanto da como algo desvinculado da forma como os homens
se relacionam entre si e com a natureza para a pro-
profissionalização estreita e, finalmente, é necessá-
dução e reprodução de suas condições de subsis-
rio examinar suas decorrências de ordem prática.
tência. A produção de idéias, de representações, da
É o que vou tentar nos limites desse trabalho,
consciência, está diretamente entrelaçada com a ati-
concordando com Acácia Kuenzer, quando nos· alerta
vidade prática dos homens, enquanto asseguram as
que, apesar de correr o risco de expressar idéias
condições necessárias à sua existência. O ponto de
ainda provisórias, é importante pelo menos estimu-
lar o debate (Kuenzer, 1988). partida para essa produção são os homens em sua
atividade real, vivendo no coletivo das relações so-
ciais, historicamente determinadas, e produzindo a
realidade, ainda que esses mesmos homens não te-
CONCEPÇÃO DE TRABALHO ENQUANTO nham consciência de serem seus únicos produtores ..
PRINCIPIO EDUCATIVO
Sendo os homens, em sua atividade concreta, o
ponto de partida para a construção do conhecimento,
A concepção de trabalho enquanto princípio edu-
a ciência real,, a formação de conceitos, a aprendi-
cativo edifica-se a partir do conceito de atividade
teórico-prática e tem como horizonte o surgimento, zagem, o desenvolvimento da personalidade come-
formação e desenvolvimento da consciência humana. çam na vida real, na atividade prática. Portanto, a
A consciência, entendida como a característica verdadeira atividade ~ a praxis - é teórico-prática
fundamental que distingue os homens dos animais e, neste sentido, é relacional, é crítica, é educativa,
e que se manifesta na expressão do psiquismo hu- é transformadora, pois é teórica sem ser mera con-
mano (percepções, pensamento, linguagem, senti- templação - uma vez que é a teoria que guia a ação
mentos, necessidades etc.) tem sido objeto de mui- - e é prática sem ser mera aplicação da teoria -
tos estudos. Apesar de hoje ser considerada um uma vez que a prática é ·a própria ação guiada e
objeto de estudo da Psicologia, as primeiras investi- mediada pela teoria; teoria entendida aqui como uma
gações a seu respeito surgem entre os filósofos aquisição histórica construída e produzida na intera-
como um ramo da epistemologia, mas com forte co- ção que se estabelece entre os homens e o mundo.
notação teológica e religiosa, ao atribuir-lhe uma pro-
cedência mística com aspecto de alma divina.
O primeiro golpe contra as explicações religiosas, Com o risco de omitir nomes, citaria Acácia Kuenzer,
para a gênese da consciência humana, foi desfecha- Demerval Saviani e Maria Aparecida C. Franco como
do por Darwin (meados do século XIX) ao estipular educadores que já tiveram oportunidades de produzir
que o surgimento do psiquismo humano se dá atra- (em diferentes níveis de elaboração) textos que funda-
vé·s de ,uma evolução natural. Embora tenha funda- mentam e explicitam essa proposta.

Possibilidades e limites do trabalho . .. 31


No curso de desenvolvimento dessa prática, vão neste momento, falando da consciência humana nas
surgindo as tarefas cognitivas, se engendram e se primeiras etapas do desenvolvimento das comunida-
desenvolvem a percepção, o pensamento, a lingua- des primitivas (Leontiev, 1978).
gem e a consciência humana. É evidente que não se trata de negar todo o
A tese inicial do marxismo sobre a formação desenvolvimento tecnológico e a modernização dos
da consciência consiste em admitir que essa é uma meios de produção da atualidade e muito menos em-
forma qualitativamente superior do psiquismo. barcar na apologia romântica da exaltação do pas-
"Ainda que a consciência tenha uma larga pré- sado. Ciência e tecnologia não são apenas criação e
história na evolução do mundo animal, no homem experimentação de novas técnicas, processos e pro-
aparece pela primeira vez no processo em que foram dutos; são conquistas históricas que atuam na orga-
se estabelecendo o trabalho e as relações sociais. nização e desenvolvimento das forças produtivas e
Desde o início - afirmam Marx e Engels na Ideo- se constituem em precioso patrimônio cultural da
logia Alemã - a consciência é um produto social· humanidade.
(Marx e Engels, 1974, p. 40). A transformação do processo de trabalho, desde
Neste tripé - atividade, atividade laboral e sua base na tradição até sua base na ciência, não é
consciência - edifica-se a clássica caracterização apenas inevitável como também necessária para o
do trabalho enquanto processo de humanização. progresso e emancipação dos homens.
·o trabalho é, em primeiro lugar, um processo Assim, suponho, como diria Braverman, que
entre o homem e a natureza, um processo integrado "minhas opiniões não se inspiram pela nostalgia de
no qual o ser humano faculta, regula e controla a uma época que não mais pode voltar. Ao contrário,
sua forma material com a natureza através de sua estão dominadas pela nostalgia de uma época que
atividade ... Ao atuar sobre a natureza externa a si, ainda não existe, na qual, para o trabalhador, a sa-
modificando-a, o ser humano modifica simultanea- tisfação do ofício, originada do domínio consciente
mente sua própria natureza ... • (Marx, 1979, p. 118). e proposital do processo de trabalho, será combi-
O trabalho orienta-se para a produção, para a cria- nada com os prodígios da ciência e poder criativo
ção de um determinado produto, de um resultado da tecnologia, época em que todos estarão em con-
que já existia na representação do trabalhador. As- dições de se beneficiarem de algum modo dessa com-
sim ele é concomitantemente teórico e prático; é binação" (Braverman, 1980, p. 18).
uma atividade consciente e orientada para certos fins
Mesmo tendo como horizonte uma visão pros-
que aspira à realização de um resultado, o qual é
pectiva, é preciso levar em conta a realidade e con-
dado na representação do trabalhador antes de atuar siderar que, à medida que avança o desenvolvimen-
e que é regulado pela vontade de acordo com seu to científico e tecnológico, modificam-se substancial-
objetivo consciente (Leontiev, 1978). Na atividade do
mente as relações de produção, o que, por sua vez,
trabalho, forma-se a personalidade do indivíduo, de- reflete-se nas exigências de qualificação profissio-
senvolvem-se suas aptidões, forjam-se ºsuas repre-
nal e nos padrões educacionais demandados pelos
sentações sociais, refletem-se seus princípios ideo-
estudantes trabalhadores. Ou seja, a relação entre
lógicos e cristalizam-se suas atitudes frente à ação
educação e trabalho torna-se cada vez mais comple-
prática.
xa. Relação que, como é sobejamente conhecido,
Todavia, é preciso levar em conta que, se por tem sido objeto de estudo de muitos pesquisadores
um lado admitimos uma estreita vinculação entre a da área de Ciências Sociais, os quais, ao longo do
estrutura da atividade humana e as relações sociais tempo, têm enfrentado essa problemática a partir de
que a engendraram, por outro lado, quando se trata diferentes e controvertidos enfoques.
de discutir a formação da consciência (entendida
Hoje, nos contornos dessa relação, trata-se de
como característica exclusivamente humana), é pre-
procurar refletir sobre as possibilidades e os limites
ciso ter presente as condições concretas que demar-
de um projeto pedagógico para a escola de 2. 0 grau
cam historicamente os diferentes estágios dos modos
a partir do trabalho (enquanto princípio educativo)
de produção.
no contexto da sociedade brasileira, tendo como
A rigorosa observância desses elementos é que referência as relações de trabalho próprias do capi-
vai nos permitir avançar na discussão do trabalho talismo, a realidade concreta dos jovens que pro-
enquanto princípio educativo. Por isso, quando enca- curam o 2. 0 Grau e a dinâmica e direção do desen-
ramos a atividade laboral como o fundamento do pro- volvimento econômico e social que estão, em última
cesso de humanização e o substrato da formação de instância, condicionadas pela forma como essa so-
sua consciência, estamos nos referindo à consciên- ciedade se utiliza da ciência e da tecnologia.
cia humana nos primeiros estágios do desenvolvi-
mento da sociedade, quando os homens, já munidos
de instrumentos primitivos, travavam uma luta cole-
tiva com a natureza; quando efetuavam o trabalho POSSIBILIDADES E LIMITES
em comum e a propriedade dos meios de produção e
dos seus frutos era comum; quando, em conseqüên- A discussão acerca das possibilidades e dos
cia, a divisão social do trabalho, as relações de pro- limites de uma proposta pedagógica organizada a
priedade privada e a exploração do homem pelo ho- partir do trabalho como princípio educativo implica,
mem não se explicitava claramente. Isto é, estamos, em primeiro lugar, a explicitação de, pelo menos,

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dois sentidos que podem ser atribuídos ao conceito ção de "trabalho" no vazio. Ela está diretamente re-
de TRABALHO. lacionala à relação que se estabelece en-tre o traba-
Por um lado, o trabalho pode ser concebido como lhador e o produto de seu trabalho. Por isso, devem
a forma de ação originária e especificamente huma- ser levados em conta as condições concretas em que
na através da qual o homem age sobre a natureza, se dá essa relação, os estados subjetivos do traba-
transforma a ordem natural em ordem social, cria lhador, as condições gerais sob as quais se realiza o
e desenvolve a estrutura e as funções de seu psi- trabalho e, principalmente, o tipo de relações téc-
quismo, relaciona-se com outras pessoas, pensa, co- nicas e sociais que caracterizam diferentes modos
munica-se, descobre, enfim, produz sua própria cons- de produção.
ciência e todo um conjunto de saberes que lhe pos- "O trabalho realmente executado será afetado
sibilitarão viver em sociedade, transformar-se e por esse e muitos outros fatores, inclusive a organi-
transformá-la. Essa concepção de trabalho reitera zação do processo e as formas de supervisão dele,
colocações já expostas anteriormente e está direta- no caso de existirem" (Braverman, 1980, p. 50). Por-
mente vinculada ao conceito de atividade, vista esta tanto, a. aposta de que o trabalho incorpora um com-
última como o substrato fundamental do desenvolvi- ponente educativo (a ponto de ser eleito como a
mento humano. matriz organizadora do ensino de 2. 0 grau) precisa
Por outro lado, trabalho é o exercício de uma ser melhor dimensionada e analisada a partir de
função produtiva a favor da acumulação do capital. seus referenciais concretos.
Nessa perspectiva, a principal categoria de análise
do trabalho desloca-se de sua vinculação com a ati-
vidade humana e com o processo de humanização e A atividade humana: pressupostos e corolários
recai na análise que ele assume sob as relações
capitalistas de produção. "Isento das rígidas trilhas A análise da atividade, entendida como uma po-
ditadas pelo instinto nos animais, o trabalho hu- tencialidade transformadora exclusivamente humana,
mano torna-se indeterminado, e seus diversos de- permite recuperar, historicamente, a concepção do
terminantes constituem, daí por diante, produtos não trabalho como um componente que, ultrapassando a
da biologia, mas das complexas interações e rela- mera atividade instintiva dos animais, converteu-se
ções sociais, tecnologia e .sociedade" (Braverman, na força que criou a espécie humana e uma força
1980, p. 28). A produção capitalista exige intercâm- pela qual a humanidade criou o mundo que conhece:
bio de relações, mercadorias e dinheiro, mas sua mos. Assim, para o aprofundamento dessa análise é
diferença específica é a compra e venda da força de necessário entender a relação que se estabelece, nos
trabalho. O que o trabalhador vende e o que o capi- seres humanos (diferentemente do que nos animais),
talista compra não é uma quantidade contratada de entre a força motivadora do trabalho e o trabalho
trabalho, mas a força de trabalho contratada por em si mesmo.
um período de tempo. Ou seja, o entendimento da atividade humana;
.Desse ponto de vista, torna-se temerário enca- da ação prática dos homens pressupõe a análise 1'do
rar o trabalho como princípio educativo, pois o pro- motivo e da finalidade dessa ação. As ações huma-
cesso de trabalho é dominado e modelado pela nas não são atos isolados. São atos engendrados no
acumulação e expansão do capital e para a criação conjunto das relações sociais, impulsionados por
de um lucro. A essa finalidade todas as demais es- motivos específicos e orientados para uma finalida-
tão subordinadas, afetando, inclusive, as relações de consciente.
sociais mais amplas. Na base das necessidades dos indivíduos insta•
A única possibilidade de encarar o trabalho co- Iam-se os motivos de suas ações. As necessidades,
mo princípio educativo é associando-o à concepção porém, são, ao mesmo tempo, motivos da atividade
de atividade laboral vista como uma prioridade ina- e produtos desta. No decorrer da atividade, que é
lienável do indivíduo humano. dirigida para a satisfação das necessidades, as pri-
Mesmo assim, essa interpretação não é total- mitivas necessidades orgânicas modificam-se e con-
mente tranqüila e, como diz Acácia Kuenzer, "nes- vertem-se em novas necessidades. "Com o desen-
te cipoal de ambigüidades, é preciso mover-se com volvimento e a determinação das necessidades cultu-
alguma competência para que se possa definir um rais mais elevadas, modifica-se também a hierarquia
novo princípio educativo, a partir do que se define entre necessidade predominantes e subordinadas.
a função social da educação nos seus diversos ní- Isso é manifesto pela própria característica de irre-
veis; para tanto é preciso clarear certas questões" versibilidade implícita no conceito de necessidade"
(Kuenzer, 1988, p. 125). (Rubinstein, 1977, p. 62).
Em direção a um esclarecimento, vou iniciar re- A satisfação das necessidades básicas gera no-
tomando o conceito de atividade para que possamos vas necessidades mais elaboradas, porém não menos
balizar melhor as possibilidades e os limites do tra- fundamentais, pois são produzidas no conjunto das
balho enquanto princípio educativo. relações sociais concretas, apreendidas e reelabo-
Antes, porém, quero deixar bem claro que essa radas pelos componentes ativos do psiquismo huma-
discussão não pode ser enfrentada no abstrato ou no e objetivadas, ou seja, convertidas em autênticas
isoladamente. A possível característica educativa do necessidades humanas, e, portanto, orientadoras de
trabalho não pode ser explicada a partir da concep- novas ações.

Possibilidades e limites do trabalho . .. 33


Já vimos que a atividade humana é impulsiona- dução coletiva e nessa produção deve poder se .re-
da por motivos específicos (engendrados no proces- conhecer como um ser social pertencente· a ela, na
so de desenvolvimento da satisfação das necessi- medida em que a finalidade dessa produç~o está
dades) e direcionada a determinados fins. Vimos .direcionada para a satisfação coletiva -das, .necessi-
também que os motivos e as necessidades são cons- dades sociais.
truções reais e concretas engendradas no conjunto Surge, por isso, com o trabalho a ,aptidão, ca-
das relações sociais. racterística do ser humano, de agir baseado num
De que maneira o trabalho (circunscrito à con- amplo programa integrado pela articulação entre mo-
cepção de atividade humana) poderia ser considera- tivo e finalidade. "Isto é uma motivação mediata,
do um princípio educativo? de amplo alcance, diferindo da motivação de curto
Desde que houvesse compatibilidade entre os alcance que é característica do animal e de um ato
motivos que o impulsionam e a finalidade para a qual reativo e impulsivo, motivado por situações momen-
está dirigido. Isto é, o trabalho constitui-se em im- tâneas" (Leontiev, 1978, p. 37).
portante condição do desenvolvimento integral, cria- A particularidade conscientizadora da atividade
tivo e trapsformador da personalidade quando existe do trabalho, que foi gestada no ambiente social, de-
uma unidá~e integradora entre os motivos e os fins pende da correspondência entre o caráter objetivo e
que determinam suas realizações. social de sua gestação e a finalidade de seu proces-
O trabalho orienta-se para a produção, para a so, que deve ser a criação de um produto necessá-
criação de um determinado produto. rio ou útil para a sociedade e para o indivíduo que
1: certo que "a unidade entre concepção e exe- o criou. O trabalho é sempre a execução de uma
cução pode ser dissolvida. A concepção pode ainda determinada tarefa. Toda a atividade deve submeter-
continuar e governar a execução, mas a idéia con- se ao êxito de um resultado intencional e identifi-
cebida por uma pessoa pode ser executada por ou- cável com as necessidades pessoais. O trabalho re-
tra. A força do trabalho continua sendo a consciên- quer, portanto, o projeto e o controle para a sua
cia humana, pois a unidade entre as duas pode ser execução leva sempre implícitos determinados ,,de-
rompida no indivíduo, e restaurada no grupo, na ofi- veres e exige disciplina interna do trabalhador, o que
cina, na comunidade ou na sociedade como um to- não se efetua, primordialmente, à base da força de
do" (Braverman, 1980, p. 53). Essa recuperação, isto atração do próprio processo da atividade, mas por
é, essa integração de todo o processo de trabalho, um significativo resultado para o qual deve estar
desde o motivo que lhe deu origem até o produto dirigido.
que dele resulta, é o que possibilita a identificação "As diferentes etapas do processo do trabalho
do trabalhador no produto por ele produzido. são, de um modo geral, mais ou menos difíceis.
O trabalho, realizado no processo de produção Este processo de trabalho requer, conforme o caso,
(sob as duas formas ·manual· e ·intelectual"), im- tensão, esforço e superação não só dos obstáculos
prime-se no seu produto. "O que era movimento, externos, mas também dos internos. Por isso se. for-
atividade no trabalhador aparece agora, no produto, mam no trabalho a vontade e a atenção voluntáJlta,
como uma propriedade em repouso" (Leontiev, 1978, que se tornam indispensáveis para aquele. A aten-
p·. 35).. ção é necessária para que o homem possa se con-
O estudo do trabalho sob o ângulo da atividade centrar naquelas etapas do processo de trabalho que
humana (abstraindo-se seu conteúdo concreto) per- não sejam diretamente atrativas" (Rubinstein; 1977,
mite concluir que ·ele teria condições de ser edu- p. 81).
cativo apenas se. fosse, ao mesmo. tempo, uma ati- O fato de sentir o trabalho (o qual se torna
vidade impulsionada por motivos;· e necessidades consciência) como um dever que exige tensão, es-
construídas socialmente e direcionadas à satisfação forço e superação de obstáculos depende do con-
de necessidades sociais como finalidade direta dos teúdo social que encerra; isto é, de suas condiçõl!s
produtos do trabalho. • Na atividade do trabalho, que sociais objetivas. As condições objetivas de uma de-
se orienta para a criação de um objeto, encontram- terminada ordem social e das relações sociais que
se, de um lado, o objeto que representa a finalidade nela existem refletem-se sempre nas motivações da
da ação e, de outro, o motivo que impulsiona a ação" atividade do trabalho, porque o trabalho não só abar-
(Rubinstein, 1977, p. 81). ca as relações do indivíduo com as coisas, ou seja,
O fato de o trabalho estar s1:;1bmetido ao fator com o produto do trabalho, como também engloba
último, que é o resultado final, já mostra o caráter sempre as relações com as demais pessoas.
específico de suas motivações. · • Normalmente, o trabalho é a necessidade mais
O fim da atividade ou seu objetivo não está peremptória do homem. Trabalhar significa manifes-
implícito em si próprio, mas no seu produto. Dado tar-se numa atividade, transformar a intenção num
que nenhum indiVíduo pode produzir isoladamente fato, materializá-la em produtos materiais. Trabalhar
ps objetos para satisfazer suas necessidades, o mo- significa objetivar-se nos seus produtos de trabalho,
tivo da atividade humana já não é o produto. da pró- enriquecer e alargar sua própria existência, ser cria-
pria ativiclade, mas o produto da atividade social dor e primador" (Rubinstein, 1977, p. 82).
(BtJbjr1stein 1977). Não é, pois, essencial para o trabalho a técnica
D0, ponto de vista do trabalhador, o produto do do próprio trabalho, mas principalmente a atitude do
trabalho deve representar o resultado de uma pro- sujeito para com o trabalho. 1: precisamente nela que

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se encontram corretamente implicados os motivos dos processos produtivos, o que gera novos tipos
fundamentais da atividade humana. Essa relação sub- de atividade humana transferindo-a, cada vez mais,
jetiva do homem com o trabalho está condicionada .às máquinas. Todavia a possibilidade de superação
pelas relações sociais objetivas que se réfletem na desse tipo de alienação ocorre "quando o objeto
consciência humana. produzido pelo homem torna-se um objeto social (ou
humanidade objetiva) e quando o próprio homem,
identificando-se como um ser social, se torna um
Limites ser social e a sociedade se torna para ele, neste
objeto, um ser ( ... ) Ainda quando realizo um tra-
No modo de produção capitalista, embora o pro- balho científico, uma atividade que raramente posso
cesso de trabalho seja em geral um processo para conduzir em associação direta com outros homens,
criar valores úteis à sociedade, baseia-se na pro- efetuo .um ato social, porque humano. Não é só o
priedade privada e na competição. Nesse caso, as material ~a minha atividade - como a própria lín-
motivações individualistas e pessoais dominam a gua qu~ o, _pensador utiliza - que me é dado como
atividade do trabalho no sentido da competição e do um produto social. Minha própria existência é uma
progressó,'individ-ualr Os interesses e motivações fac atividade. spci~I. Por essa razão, o que eu próprio pro-
dividuais não desaparecem na sociedade socialista duzo o faço para a sociedade, e com a consciência
como é natural, porém a organização do trabalho ~ de_ agir como um ser social· (Marx, 1979, p. 118).
as relações entre o trabalhador e o produto estão A superação da alienação implícita num proces-
direcionadas aos interesses soei.ais e por isso trans- so de relações antagônicas é incompatível com o
formam-se radicalmente. modo de produção capitalista, já que seu resultado
Como diz Braverman, na produção capitalista a final do trabalho não está dirigido à produção e dis-
compra e venda da força de trabalho determina três tribuição eqüitativa, de bens sociais, pois assenta-se
condições básicas que podem ser generalizadas para na necessidade de geração de riquezas que são apro-
toda a sociedade. Em primeiro lugar, os trabalhadores priadas pela minoria detentora do capital, dos ins-
são sel)arados dos meios com os quais a produção trumentos e dos meios de produção. ·
é realizada, ·e só podem ter acesso a eles vendendo Como salienta Luiz Antonio Franco, no capitalis-
sua força ·de trabalho a outros. Em segundo, os tra- mo o trabalho consiste apenas em uma atividade
balhadores estão livres do constrições legais que os cujo significado, para o trabalhador, é o de ganhar o
impeçam de dispor de sua força de trabalho. Em pão de cada dia. Se o significado do trabalho foi re-
terceiro, o propósito do ernprego do trabalhador tor- duzido a "ganhar a vida" é porque não pode ser
na-se a expansãt> de unidades específicas de capital fonte de realização pessoal, de liberdade e de criati-
pertencentes aos empregadores que estão assim vidade. Marx já assinalara que o reino da liberdade
atuândo corno capitalistas (Braverman, 1980). só começa quando não existe mais obrigação de tra-
; Esse tipo' de relação do trabalhador com a balho imposta pela miséria ou pelas finalidades exte-
produção gera o qué Marx chama .de trabalho exte- riores; que o reino da liberdade só pode encontrl:lr-
flóí'i?ado, rio qual o homem se aliena a si mesmo por se fora da esfera da produção material propriamente
nãb ser o trabalho' dele mesmo, mas trabalho para dita. Isto porque, para Marx, o trabalho (quando si-
oütrern; é o trabalho estranho a si próprio. "Ten- nônimo de alienação) não passa de uma atividade
do: sido obrigados (porque as condições sociais não através da qual o trabalhador perde-se a si mesmo,
llie dão outra alternativa) a vender a força de traba- ou seja, nega sua própria vida. Com efeito, o capita-
lho '8 outro (ao empregador) os trabalhadores tam- lismo, desde seu início, procura, entre outras coisas,
bém entregam seu interesse no trabãlho, que foi ago- dividir minuciosamente o trabalho; racionalizar ao
ra 'alienado'". (Marx, 1979, p. 10). Neste processo de máximo a produção; mecanizar as tarefas; desquali-
relações de produção antagônicas, o problema de ob- ficar o trabalho da maioria da força de trabalho. Esse
ter a plena utiltdade da força de trabalho torna-se processo atinge não apenas as fábricas, mas igual-
exacerbado pelos interesses opostos daqueles para mente os escritórios, a agricultura e demais institui-
cujos propósitos o processo de trabalho é executa- ções (Franco, 1988).
do e daqueles que, por outro lado, o executam. Atinge, também, os alunos de 2. 0 Grau, cuja
Além dessa alienação decorrente da relação do maioria já trabalha e muitos outros buscam rapida-
trabalhacjor com a produção, a alienação aparece mente ingressar no mercado de trabalho.
também dentro da própria atividade produtiva. Isso Neste contexto cabe indagar: como encarar uma
é praticamente inevitável em qualquer sistema pro- escola organizada a partir do trabalho enquanto prin-
dutivo tendo em vista as atuais tendências que ca- cípio educativo para esses estudantes trabalhadores,
racterizam todas as esferas da prática social · decor- · especialmente para aqueles que freqüentam o perío-
rentes do avanço tecnológico e científico. Dentre do noturno após terem cumprido uma jornada de
essas tendências destacam-se: a união mais estreita trabalho de 8 a 10 horas em escritórios, bancos, lo-
entre ciência e tecnologia; a mudança das correlações jas comerciais, enfim, em serviços de administração
entre o ,homem e a técnica; sua liberação cada vez de rotina?
maior dep,fanções estritamente de execução; o cres- Entendo que isso seria possível a nível de uma
cimento da importância das funções de controle, su- reorganização curricular de. tal modo que os conteú-
pervisão· .e direção; e, finalmente, a automatização dos escolares se articulassem como totalidade signifi-

Possibilidades e limites do trabalho . .. 35


cativa (o que discutiremos adiante) e permitissem da utilização indiscriminada de qualquer atividade
sustentar uma proposta pedagógica voltada à capa- prática como condição explicativa da relação entre
citação do aluno para atuar na dinamicidade do real, ciência e produção. Especialmente, estamos discor-
enquanto sujeito histórico e produtivo. . dando da idéia de prover as escolas de 2. 0 grau "de
Por outro lado, a relação entre teoria e prática, oficinas práticas, organizadas preferencialmente co-
preconizada como forma metodológica nas propostas mo unidades socialmente produtivas· (Saviani, 1988,
defensoras do trabalho tomado como princípio edu- pág. 12).
cativo e visto como a diretriz mais ampla a partir da Mesmo admitindo que a escola consiga se orga-
qual se organizará o novo 2. 0 Grau, precisa ser re- nizar de maneira competente e planejar suas unida-
examinada. des produtivas (sob forma de oficinas) de modo a
Num primeiro nível, é indispensável entender a superar a dicotomia entre a motivação para o traba-
relação entre teoria e prática como processo através lho e a realização do trabalhador no produto, isso
do qual se constrói o conhecimento 2 • Mas, nesse ca- soaria extremamente falso. Os alunos do 2. 0 Grau
so estamos nos referindo à prática social, ou seja, já são trabalhadores em uma sociedade perpassada
à forma como os homens asseguram as condições pela divisão social e técnica do trabalho e marcada
necessárias à produção e reprodução de sua subsis- por relações alienantes, desmotivadoras e carentes
tência. São os homens reais, em sua atividade con- de significado.
creta, no trabalho, ponto de partida e ponto de che- Além disso, as oficinas socialmente produtivas
gada para a produção das idéias, representações e irão gerar produtos. Sendo assim, torna-se inevitável
da consciência. O conhecimento não se dá à margem impor a racionalidade e o ritmo de trabalho indis-
da prática social dos homens. Ela é antes de mais pensável à acumulação do capital. Ou seja, os inte-
nada o fundamento do pensamento mas, para a ver- resses ligados à aprendizagem acabam submetidos
dadeira apreensão do real, é preciso que o pensa- aos interesses do capital, como ocorre nas escolas
mento (que é teórico-prático) "trabalhe" o observá- técnicas agrícolas, em detrimento do desenvolvi-
vel e vá além dele, concretizando-o através da cons- mento integral dos alunos. Será necessário, então,
ciência que é ativa, não por dom sobrenatural, mas introduzir estratégias de participação dos trabalha-
porque abstrai e apreende o movimento existente na dores nos lucros; integração com a comunidade; re-
totalidade. lações humanas; cooperativas comunitárias, círculos
Sob essa perspectiva concordamos com Acácia de controle de qualidade etc ... como forma de aba-
Kuenzer quando diz: "é através da relação teoria/ far os conflitos, mostrar que os interesses são co-
prática que o homem modifica as circunstâncias hu- muns, que a escola-empresa é uma grande família,
manas (relações sociais, econômicas) e as circuns- e assim por diante (Franco, 1988).
tâncias materiais (natureza, instrumento de trabalho) A escola deverá ser organizada a partir de for-
estabelecendo controle sobre elas, ao mesmo tempo mas de gestão democrática (compreendida como fru-
que transforma a própria consciência, através de um to de participação coletiva) para que seja possível
processo educativo que se instala ao nível das rela- derivar um projeto pedagógico adequado às necessi-
ções sociais. Daí ser fundamental, para o ensino em dades dos alunos de 2. 0 Grau.
todos os níveis, a relação entre teoria e prática como
Porém, se essa forma de gestão for inspirada
forma metodológica, com vistas a instrumentalizar o
nas necessidades de funcionamento de unidades pro-
homem para construir e controlar as circunstâncias,
dutivas, estará se desviando de seus principais obje-
ao mesmo tempo em que se educa de modo perma-
tivos e, com certeza, se distanciando das reais ne-
nente e contínuo, de modo a produzir, acompanhar
cessidades dos jovens estudantes trabalhadores.
e controlar o processo de transformação da realida-
de" (Kuenzer, 1988, p. 62).
No entanto, tendo no horizonte o trabalho en-
Possibilidades
quanto princípio educativo, a concretização dessa
opção metodológica pode assumir características
As possibilidades de uma proposta que viabilize
bastante problemáticas.
a organização do 2. 0 Grau centrada no trabalho en-
A "prática• não deve significar uma aplicação quanto princípio educativo passam, em meu entender,
1inear e mecânica da "teoria", como se fosse pos- pela reestruturação curricular e pela seleção de
sível superar, no interior da escola, a divisão ideo- conteúdos.
lógica entre atividade intelectual e atividade manual
O mundo do trabalho deve estar articulado à
e como se bastasse proporcionar, aos alunos, o con-
escola, mas em sua dimensão real e concreta que
tato com laboratórios, oficinas, equipamentos para
tem significado para o aluno, por ser a expressão de
garantir a articulação entre ciência e processo pro-
suas condições de subsistência.
dutivo, entre teoria e prática. Não estamos negando
a importância de escolas bem construídas e bem
equipadas que, de um lado, se afastem de um aca-
2 Aspectos que já tivemos oportunidade de delinear ante-
demicismo livresco e, de outro, rejeitem propostas
riormente.
de um profissionalismo estreito ou de mero ades- 3 Aliás, muitos educadores já mostraram, com bastante
tramento em técnicas produtivas 3 • competência, o valor educativo da articulação entre co-
Estamos, sim, questionando o valor educativo nhecimentos teóricos e experimentação prática.

36 Cad. Pesq. (68) fevereiro 1989


O conteúdo objetivo do trabalho do aluno deve sociais mais amplas, através de conteúdos histó-
ser a pedra fundamental para o desvelamento: .das ricos críticos não tomados em si, mas à luz do
contradições que lhe são inerentes; para a análise· trabalho em questão;
dos processos básicos de cada área do trabalho no - a aquisição dos princípios científicos subjacentes
contexto do modelo econômico e político brasileiro; a cada forma tecnológica específica do processo
para a compreensão do desenvolvimento histórico de trabalho em discussão;
da humanidade e seu papel na produção da cultura, - a aquisição dos códigos e das formas de comuni-
da ciência e da tecnologia; e, finalmente, para o en- cação específicas de cada esfera produtiva;
tendimento de como a ciência e seus princípios se - a discussão das formas de participação na vida
articulam ao processo produtivo facilitando ou difi- social e política, a partir da participação no pro-
cultando o acesso dos trabalhores aos benefícios cesso produtivo" (Kuenzer, 1988, p. 140).
decorrentes das inovações tecnológicas. Os conteúdos que encontram ressonância na vi-
Essa é uma concepção radicalmente diferente vência do estudante trabalhador representam instru-
daquela que propõe um 2. 0 Grau profissionalizante mentos úteis para a compreensão de sua prática
centrado no adestramento de determinadas habilida- atual e importantes elementos para a revisão e trans-
des sem o conhecimento dessa habilidade, e, menos formação dessa prática.
ainda, das articulações dessa habilidade com o con- Nesse caso, o estudo impulsionado por um mo-
junto do processo produtivo (Saviani, 1988). Mas, tivo e orientado a uma finalidade consciente torna-se,
também, não implica o recurso às oficinas nas quais não apenas uma etapa que permeia o processo de
os alunos manipulem processos práticos básicos da formação do indivíduo, mas também uma modalida-
produção para compreender a relação entre ciência de de trabalho produtivo. Modalidade que o capacita
e produção, via transformação de objetos e instru- no e para o processo de trabalho, articulando conhe-
mentos pelo trabalho humano. cimentos relevantes com habilidades requeridas para
Instalando-se um procedimento como esse (em o desenvolvimento de sua consciência crític·a, via
unidades produtivas) dificilmente deixará de se re- apropriação ativa de conteúdos voltados à compreen-
produzir, na escola, a fragmentação, especialização são de sua condição de sujeito histórico produto e
e segmentação que ocorrem no processo produtivo. produtor de realidade.
A explicitação da articulação ciência-produção
numa perspectiva histórica e crítica é fundamental,
mas deve ter como parâmetros concretos a prática
social do estudante trabalhador com todas as inge-
rências conflitivas, antagônicas e decorrentes de de- REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
sigualdades sociais muito acentuadas.
Finalmente, há que se considerar, com Rubins-
tein, que o estudo em si próprio é uma atividade que, BRAVERMAN, H. Trabalho e capital monopolista. Rio de
pela sua natureza, muito se aproxima do trabalho. Janeiro, Zahar, 1980.
No estudo devem cumprir-se, tal como no trabalho, FRANCO, L. A. Educação e trabalho. Revista da ANDE. São
determinadas tarefas, e observar uma disciplina. Paulo, 7(13), 1988.
A atitude geral da personalidade no estudo é FURTADO, A. A crise energética mundial e o Brasil. Novos
Estudos CEBRAP, (11) jan. 1985.
uma atitude de trabalho.
KUENZER, A. O trabalho como princípio educativo. São
A finalidade principal.do estudo, à qual toda sua Paulo, Cortez, 1988.
organização social está adaptada, consiste na prepa- LEONTIEV, A. N. Actividad, conciencia y persona/idad.
ração para a atividade independente do trabalho. Por Buenos Aires, Ciencias dei Hombre, 1978.
isso, para o estudante que já é trabalhador, é muito MARX, K. Manuscritos econômicos e filosóficos. ln:
importante selecionar áreas de estudo significativas, FROMM, E. Conceito marxista do homem. Rio de Ja-
identificadas a partir de critérios históricos tendo no neiro, Zahar, 1979.
horizonte a função social que desempenham. MARX, K. & ENGELS, F. La ideologia a/emana. Barcelona,
As grandes áreas, identificadas a partir dos pro- Grijalbo, 1974.
cessos de trabalho considerados socialmente rele- RUBINSTEIN, S. L. Princípios de psicologia geral. Lisboa,
Estampa, 1977.
vantes, deverão abandonar suas características des-
SAVIANI, D. Análise crítica da organização escolar brasi-
motivadoras e desprovidas de significação, para "se- leira através das Leis 5.540/68 e 5.692/71. ln: GARCIA,
rem traduzidas em uma proposta curricular que via- W. (org.) Educação brasileira contemporânea: organi-
bilize: zação e funcionamento. São Paulo, MacGraw-Hill, 1976.
- a compreensão das relações sociais que dado - - . Contribuição à elaboração da nova LDB: um início
trabalho gera, em articulações com as relações de conversa. Revista da ANDE. São Paulo, 7(13), 1988.

Possibilidades e limites do trabalho ... 37

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