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Aprendizagem Musical Nao Formal em Grupo
Aprendizagem Musical Nao Formal em Grupo
CULTURAIS DIVERSOS
Além de tais abordagens, Elliot (Gainza, 1990) opina que existe um comportamento
básico da música por trás da diversidade de objetos, práticas, atitudes e efeitos com
que rotulamos a música e a experiência musical. Neste comportamento básico reside
a experiência musical universal.
Os grupos pesquisados
Observações
Nketia expõe sua própria experiência com música em diferentes partes do continente
africano e em especial entre etnias existentes em Ghana. Descreve aspectos comuns
às várias tradições africanas e aspectos específicos de culturas desta região. Observa
que na África as unidades políticas e territoriais não correspondem a unidades
culturais, havendo interação e superação de práticas nativas e de práticas oriundas de
outras culturas. Blacking descreve sua pesquisa entre os Vendas (África do Sul),
atentando para a música na sua relação com o contexto físico, social e lingüístico no
momento de sua realização - “in performance”. É de grande valia a análise da
autobiografia de Ssempeke, um músico africano.
Os índios Suyás (sociedade Jê) ocupam a região do Alto Xingú, no norte de Mato
Grosso. Foram estudados por Seeger durante 20 meses de pesquisa de campo, com o
objetivo de fazer uma “análise comparativa das sociedades humanas”(3), confrontando
práticas dos Suyás com as de outros índios da mesma região e com aspectos de nossa
própria sociedade, para verificar que, tendo práticas diferentes, “temos algo a
aprender com elas”(4), pois amplia-se nossa visão com a análise de manifestações
culturais de outros grupos e tornamo-nos conscientes de aspectos de nossa própria
sociedade sobre os quais pouco refletimos. Já os índios da aldeia Kamayurá foram
estudados por Rafael de Menezes Bastos, em pesquisa de campo entre os anos de
1969 e 1974.
A música é definida culturalmente e sua função precisa ser entendida na relação com
o contexto em que ocorre, e não como um fato isolado. Para os Kamayurás, a música
é tanto um recurso terapêutico, relacionado a drogas e reza (“kewere”), quanto
compreende uma prática musical por excelência, quer cantando, soprando ou fazendo
acompanhamentos musicais (Bastos, 1978). Entre os Suyás, tanto transmite valores
quanto gera prazer sem atentar para o significado das palavras.
Entre alguns grupos a relação executante platéia não tem limites precisos, estando
todos juntos no fazer musical e livres para entrar e sair, participando sem a presença
de especialistas ou encorajando os integrantes de um conjunto. Nas várias
manifestações urbanas e rurais a participação musical cabe a amadores. A passagem
da posição de “platéia” (ouvinte) para a de integrante do quadro dos músicos da
banda se dá pelo convívio com o instrumental e o repertório: familiares tocam juntos,
tanto na banda quanto na escola de samba como em grupos de Folia de Reis.
Reprodução e criação não estão distantes uma da outra. Costa sintetiza esta relação:
“No jogar versos dos cantadores repentistas, na ciranda ou no jongo, por exemplo,
não se busca a originalidade, mas a flexibilidade, a adequação do verso à situação em
que aparece e a fluência da criação (imitação?) dentro de cânones determinados”(9).
A ênfase na criação musical só não foi encontrada entre os integrantes das bandas
civis interioranas, para as quais as competências de seus músicos devem ser: 1.
executar seu instrumento, demonstrando domínio de relações rítmicas e sonoras,
melódicas e harmônicas; 2. ler a parte de seu instrumento, dominando os códigos da
escrita musical; 3. atuar na banda consciente da “postura do músico”(10).
O Mestre da Folia improvisa versos, orienta o canto coletivo, domina o texto, conhece
a estrutura básica das toadas e deve tocar viola.
Processos de Aprendizagem
À parte da explicação mágica dada pelos Suyás sobre a posse de atributos musicais, o
“interesse em aprender e boa memória”, além de experiência individual com práticas
cerimoniais(12), são condições para que uma pessoa se torne um “mérokinkandé”
(líder das cerimônias e orientador do canto). A aprendizagem pela experiência social,
segundo Nketia, parece ser o princípio básico da aprendizagem musical em toda a
África, onde “exposição a situações musicais e participação são enfatizadas mais que o
ensino formal”(13). A instrução sistemática institucionalizada atende somente os casos
muito restritos que requerem destreza ou conhecimento que não podem ser ganhos
informalmente.
Evidências destes períodos nos são dadas em diversos trabalhos de pesquisa. Lois
Anderson - citado por Nketia (1974) -, conta que a condição para alguém se tornar
flautista entre os Bagandas, no conjunto da corte, é estar entre os flautistas no
palácio dos 10 aos 12 anos de idade, até que toque bem o instrumento e “tenha
ouvido o conjunto por vários anos”(15), período de exposição e treino. Os integrantes
das bandas civis pesquisadas revelam que, antes de sua integração no conjunto,
estavam sempre “no meio da banda”, vendo e ouvindo(16). Este período de “imersão
completa e constante nos comportamentos criadores da comunidade” (17) é real nas
escolas de samba pesquisadas, e mencionadas no trabalho de Conde, e nas Folias de
Reis, após o que um ensino mais individualizado, tipo tutorial, ocorre. Entre os
Kamayurás, a certo momento um “homem mais velho, mais experiente, ensina
fazendo”(18). Na Folia de Reis, “o mestre é feito depois de longo aprendizado com
outro mestre”, diz João Graciano(19).
O desafio a executar o modelo ouvido, a reproduzir o que foi visto, está presente
também nas brincadeiras infantis, onde a imitação das estruturas rítmicas e sonoras
ouvidas dos adultos representa um jogo eficaz na aprendizagem da linguagem
musical.
Segundo Nketia: Cantores não estão conscientes das escalas na forma de materiais
melódicos abstratos como estão com relação às seqüências tonais nas melodias, pois
é o uso controlado das seqüências intervalares selecionadas que forma a base da
estrutura melódica(22).
Pode-se estabelecer uma relação idêntica na prática popular (de ouvido) de violão: há
consciência de processos harmônicos revelados nos encadeamentos escolhidos, mas
não há conhecimento dos mesmos enquanto constructos.
Ssempeke descreve sua crescente competência na área musical e diz: “uma vez
ouvida uma canção (melodia), eu era capaz de executá-la na flauta”, pois havia
desenvolvido a “habilidade de ouvir e lembrar melodias de memória” (25). Claro está
que Ssempeke havia desenvolvido a imagem sonora e gozava da audição interior do
som, graças à discriminação exata de suas qualidades e relações no todo.
Merriam cita Herskovits que, ao referir-se ao culto afro na Bahia, aponta a presença
de grupos de meninos onde houver tambores tocando, sempre “ouvindo, vendo,
aprendendo”(32). Esta ênfase sobre a prática e a crescente capacidade de ouvir e ver e
é fundamental na aprendizagem da música do gagaku, que não é feita através de
livros, mas “de cor, de ouvido (...) através dos músicos superiores da corte”(33).
Em Bali (Schaareman, 1980) e no Japão (Malm, 1959), a notação musical não traz a
indicação de todos os elementos a serem executados, cabendo tal complementação à
capacidade adquirida face à experiência acumulada, o que gera possibilidade de
variações sobre o mesmo material básico. Malm afirma: “notação no Japão tem sido
sempre fundamentalmente um suplemento aos métodos de ensino por audição e
como tal é freqüentemente muito vaga”(34).
De tanto ouvir e ver os flautistas de Lubiri, Ssempeke (1975) diz que seu pai passou a
tocar flauta. Foi imitando a canção que o pai tocava que seu irmão iniciou-se também
nessa prática, seguido pelo próprio Ssempeke, que registra de forma precisa e concisa
o processo vivenciado: “Eu comecei a juntar-me a ele em toda e qualquer canção que
tocasse. Seguia-o cuidadosamente. Ele tocava uma seção, e então eu tocava-a após
ele. Entre nós três - meu pai, meu irmão mais velho e eu - ninguém dizia ao outro em
palavras o que fazer”(37).
Seguiam-se por “ensaio-e-erro” - avaliando e eliminando respostas insatisfatórias,
sentindo-se “excessivamente alegres” quando conseguiam tocar(38). Qualquer
gravação que ouviam, tentavam tirá-la na flata. Oportunidades de tocar eram
encontradas freqüentemente entre amigos. Ao participar de conjuntos com outros
instrumentos, quando acabavam de tocar, Ssempeke apanhava um dos instrumentos
do grupo (“endongo”, por exemplo - lira de 8 cordas) e praticava, tentando repetir o
que ouvira daquele que a havia tocado. Finalizando, diz: “Eu trabalhava /.../ por mim
mesmo”(39), mas às vezes recebia orientação de alguém, mostrando como fazer as
coisas. Dependiam, no entanto, não de explicações com palavras, mas de seus
próprios olhos, ouvidos e memória. Entre os balineses, McPhee constata que na
aprendizagem musical o professor não explica nada, pois “não há nada a explicar”(40).
A imitação e a repetição apresentam-se como a base da aprendizagem musical. Entre
os Kamayurás, “aprendizes estão aprendendo, só imitando /.../ vão repetindo o
mestre /.../ toca, toca, toca: aí trabalhou toda a música”(41).
Tais recursos verbais funcionam como “verbal scores”(43) de ritmos musicais ou como
recursos mnemônicos para o ensino e memorização de ritmos para tambores. Bater as
mãos sobre o filho, reforçando em seu próprio corpo um ritmo a ser tocado, é recurso
usado pelos músicos de Chopi, segundo estudo de Tracey mencionado por Nketia(44).
Este procedimento também é encontrado entre os Akans, pesquisados por Nketia,
onde o mestre dos tambores, especialista, bate o ritmo no ombro da criança que
treina, para captar “o sentido motor envolvido”(45). Cudjoe, citado por Merriam (1964),
menciona procedimentos de ensino de ritmos entre os Ewe de Ghana: são percutidos
no próprio corpo do aluno pelo professor, repetidos oralmente ou no seu próprio
instrumento pelo aprendiiz.
Na banda, todos tocam mais de um instrumento: “Os mais novos entram para a
percussão, enquanto vão aprendendo a técnica de execução dos instrumentos de
sopro e a teoria musical. A passagem de um instrumento de sopro para outro se dá
quando é necessário `preencher a vaga'. /.../ Assim, larga-se o pistom e pega-se o
trombone de vara num curto período de adaptação”(47).
Outro aspecto relevante nesta análise é de que a reprodução e a criação estão lado a
lado na prática musical não-formal: repetir, imitar e criar se confundem. Na sociedade
em que se distinguem nitidamente os papéis de intérprete e de compositor, as
exigências da execução musical têm limitado a criação ao ato do intérprete,
sacrificando a criação como ato do compositor. Assim, a presença da criação no
contexto formal de ensino acaba por se reduzir às situações decorrentes da
necessidade de se avaliar a aplicação de conhecimentos obtidos.
Por último, as investigações feitas nos grupos culturais aqui mencionados podem
suscitar a reflexão sobre os critérios (absolutos e rígidos?) adotados na ordenação de
conteúdos por supostos graus de complexidade.
NOTAS
(1) Este artigo aponta para um dos capítulos da dissertação de mestrado da mesma
autora, intitulado “A Natureza da Aprendizagem Musical e suas Implicações
Curriculares”. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Educação, 1986.
(8) Em The music of Africa, Nketia mostra que um padrão rítmico em frases de 12
pulsos, ao invés de ser apresentado em agrupamento de 6 em 6 pulsos, ganha
irregularidade métrica em agrupamentos de 7+5 ou 5+7 pulsos, bem como em
agrupamentos alternando 3 e 2 pulsos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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KOELLREUTTER, H.J. Estética: reflexão estética em torno das artes oriental e ocidental
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Company, 1959.
NEVES, José M. & CONDE, C. Folias do Rio de Janeiro. RJ: Fundação Rio, 1981.
NKETIA, J.H. Kwabena. The music of Africa. New York: W.W. Norton & Company,
1974.
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SEEGER, Anthony. Os índios e nós: estudos sobre sociedades tribais brasileiras. RJ:
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SEEGER, Anthony. Música indígena: a arte vocal dos Suyá. São João del Rei: Tacape
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SEEGER, Charles. “Reflections upon a given topic: music in universal pespective”, in:
Ethnomusicology, 15/3, 1971, pp. 385-398.
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