Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
2006
www.pasosonline.org
Resumo: Este artigo é uma reflexão sobre a importância da política cultural enquanto política pública
emancipatória e autonomista. Como exercício crítico enfoca-se o modelo clássico de preservação de
objetos e coleções – expresso na equação museu-monumento-patrimônio – em diálogo com as novas
formas de subjetividade contemporânea. Através de uma nova etnologia regional identifica-se o surgi-
mento de novos objetos e coleções marginais, que subvertem a lógica cultural burguesa. Novos museus e
novos lugares da memória convidam ao desafio de repensar novas perspectivas e vertentes para a patri-
monialização e a promoção cultural e étnica da sociedade brasileira e latino-americana.
Abstract: This article is a reflection about the importance of the cultural politic while autonomist and
emancipates public politic. Propose as critic exercise squander the classic model the preservation of the
objects and collections – show in the equation museum-monument-patrimony – dialoging with the news
forms of the contemporary subjectivity. The new regional ethnology identify the emerging of the news
objects and outsiders collections, that subverting the bourgeoisie cultural logic. News museums and the
news memory places invite at the challenge of the reflect news perspectives and slopes to the cultural
and ethnic heritage promotion in the Latin-American and Brazilian society.
†
• Prof. Adjunto em Antropologia da Universidade Federal do Maranhão (DEPSAN). Doutorado em Ciências So-
ciais (PUC/SP-2001). Coord. do Grupo de Pesquisa Patrimônio e Memória (GPPM). E-mail: alex@ufama.br
Usos Culturais dos Acervos Patrimoniais e Contudo, desta vez, estes museus (ou Cen-
Museológicos tros/Casas de Cultura) são para os turistas
nacionais e estrangeiros, isto é, para os
Que significa um ‘patrimônio da outros, que visitam as nossas cidades turís-
humanidade’, quando ele mesmo não ticas5.
funciona como patrimônio local, munici- A realidade museológica em São Luís é
pal, regional? (Menezes, 1996: 98). limitada ao convencionalismo, como se pode
imaginar. O que merece alguma atenção
Introduzindo o tema central desta re- são as transformações que vêm ocorrendo
flexão, desejamos enfatizar aspectos que se num contexto de espetacularização dos
revelam cada vez mais significativos num símbolos e signos culturais locais, usados
ambiente efervescente e que sofre na atua- como mercadorias pela indústria turística e
lidade um intenso investimento econômico hoteleira incipiente e voraz. O artesanato e
e político-cultural. Trata-se do setor terciá- o folclore regional vêm sofrendo o mesmo
rio da economia local de São Luís do Ma- impacto. Promovendo a produção de uma
ranhão2. Nossa atenção aqui recai sobre os nova série de reproduções de imagens e
“usos culturais” dos acervos patrimoniais e objetos de cultura regional, os signos da
museológicos – especialmente os etnográfi- identidade local recebem um tratamento
cos e os folclóricos – agenciados pela indús- mais moderno. Trata-se na verdade de uma
tria turística e hoteleira recentemente im- re-leitura tecnologicamente sofisticada e de
plantada nesta parte do País. No sentido de uma apropriação dos signos e símbolos cul-
propor uma reflexão etnológica sobre estes turais – tanto os bens culturais populares
fenômenos, escolhemos caracterizar suma- marginais6 como os integrados ao Panteão
riamente o modelo clássico de preservação Tradicional Maranhense7.
de objetos e coleções representado na No que tange mais diretamente ao Cen-
equação museu-monumento-patrimônio3. tro Histórico da capital, temos alguns mu-
Este modelo, aqui caricaturado grosso mo- seus tradicionais como o Museu Histórico e
do, é o que tem predominado, mesmo de Artístico, o Museu de Artes Sacras, o Mu-
maneira precária, na museologia provin- seu de Artes Visuais, Centros de Folclore e
ciana do Maranhão. As características des- Arte Popular, entre outros. Todavia, estes
te modo de fazer e conceber museus são lugares da memória sacralizada funcionam
bem conhecidos de todos nós, mas é inte- de forma precária e sem regularidade na
ressante sublinhar alguns pontos para que produção de novas exposições ou pesquisa
possamos vislumbrar as alternativas possí- propriamente dita. Mais recentemente sur-
veis a este modelo, que se esgota a cada dia. giram a Casa do Maranhão, o Museu Histó-
Em poucas palavras, trata-se de um proce- rico Natural, Arqueológico e Paleontológico,
dimento museológico conhecido, o qual a além de novos lugares de comercialização
população em geral resume numa frase de artesanato e especiarias regionais, como
simples: o museu é “um depósito de coisas o Mercado das Artes. Todos seguem o mo-
velhas”. delo referido reproduzindo a mesma con-
Como é sabido de todos, não temos na cepção museológica. Contudo, deve-se res-
América Latina uma cultura museológica saltar que estes novos estabelecimentos
nos mesmos moldes que nos países da Eu- incorporam novas linguagens, mais sofisti-
ropa e da América do Norte. Nestas nações cadas, usando de suportes tecnológicos para
os museus fazem parte do cotidiano das um processo efetivo de espetacularização
pessoas, estão integrados aos sistemas edu- dos recursos turísticos dessa região do País.
cativo, recreativo, moral e econômico. Entre
nós raramente vemos algo semelhante ou Desafio do Investimento Museológico nas
que tenha tal alcance social4. Subjetividades Populares
Desponta como novidade na repetição do
esquema de percepção museu-monumento- É nesse contexto que propomos algumas
patrimônio, o surgimento de novos lugares interrogações concernentes ao campo do
onde se guardam objetos e coisas da cultu- patrimônio e da museologia contemporâ-
ra, da culinária, do artesanato e do folclore. neos. Numa pletora de significantes cultu-
rais plurais, excesso transbordante de refe- tísticas da realidade social. E como foi colo-
renciais étnicos diversificados, pergunto: cado por Davallon e Carrier, em texto in-
como ainda pode se manter hegemônica a formativo sobre as novas práticas museoló-
subjetividade dominante? Será possível gicas possíveis, existe a chance de uma
imaginar novas formas de gestão cultural nova trilha, muito mais interessante e es-
em que as subjetividades marginais possam timulante:
escapar da lógica cultural burguesa? Por Do ponto de vista dos princípios, conclui-
quê num país com tamanha diversidade se que a museologia popular não está diri-
cultural e étnica, as formas de expressão gida aos objetos a conservar ou a exibir a
dos seus diferentes grupos formadores não um público, mas sim aos sujeitos sociais10
são objeto efetivo de um investimento cole- (Jeudy, 1990: 31).
tivo nas memórias sociais plurais?
Na primeira tentativa de responder a Museologia Etnológica Regional Não-
estas perguntas vamos às fontes e aos clás- Exótica
sicos da sociologia e antropologia brasilei-
ra8, neles encontramos as análises clássicas O ponto crítico desta reflexão se funda
da mestiçagem e do sincretismo cultural na possibilidade futura de uma museolo-
brasileiro. O que tem implicado um cruel gia dirigida aos sujeitos sociais. Pensa-
apagamento e esquecimento das singulari- mento que emerge inspirado numa nova
dades e particularidades culturais da reali- etnologia não-exótica e não-colonialista
dade brasileira e latino-americana. Pode se (Jeudy, 1990). Um novo modo de pensar
dizer que os clássicos têm se limitado a museus em que as mentalidades, as ma-
descrever as estratégias da “ideologia do neiras de sentir e de agir – para além
branqueamento”. Entretanto, estes cânones dos objetos, coleções e edifícios – tornam-
não têm conseguido responder as interro- se foco de uma investigação museológica
gações mais profundas do dilema social e patrimonialista criativa e transforma-
brasileiro. O problema é bem mais com- dora. Pois, a conservação e a preservação
plexo, pois emerge num contexto contem- natural e cultural só adquirem sentido
porâneo novo e mutante chamado globali- no cumprimento de uma integração, isto
zação. é, da inserção concreta do sistema de
No que se refere mais propriamente a museus no contexto econômico e sócio-
pesquisa dos patrimônios e dos acervos cultural mais amplo.
museológicos, somam-se, àquelas indagaç- Percebemos que o museu tradicional
ões anteriores, outras, ainda mais instigan- perde cada vez mais seu significado polí-
tes: de que maneira o social pode ser objeto tico habitual e eventual. Transforma-se
de museologia? Quais são as formas reno- gradualmente, sob o impacto da globali-
vadoras possíveis à museologia dominante? zação atual, num centro onde se exprime
Podemos falar de uma museologia popular a dinâmica social de grupos que traba-
alternativa, capaz de dar conta de um tra- lham sobre a identidade, a filiação e a
balho coletivo de investimento nas memó- legitimidade, utilizando a memória e o
rias sociais e naturais9 dos grupos popula- passado como “motores” de tal reflexão.
res negligenciados pela museologia tradi- Objeto cultural polimorfo, o social po-
cional? É viável propor uma nova gestão de se prestar então a todas as manipula-
política do teatro das memórias sociais re- ções de sentido (Jeudy,1990: 32).
gionais e nacionais? Como pensar num in- Como exemplo de um trabalho social
vestimento coletivo nos sujeitos sociais a de gestão do patrimônio numa lógica não
margem da lógica cultural burguesa? clássica, temos o Écomusée de la Maison
Vislumbramos como campo de reflexão du Fier-Monde de Montreal no Canadá:
emergente neste domínio o surgimento de Esse ecomuseu foi implantado no
uma nova etnologia regional que investigue bairro centro-sul, um dos bairros mais
as transformações locais dos paradigmas pobres da metrópole, e sua intenção é
globais de ação cultural. Através de um fazer da preservação do patrimônio um
trajeto interpretativo e crítico, que passa instrumento de educação e de ação cole-
pela antropologia simbólica contemporânea, tiva, criando assim um espaço que servi-
se pode ir para além das constatações esta- ria de lugar de encontro para reuniões de
todo tipo. Portanto não se trata mais da ção patrimonial e museológica radical,
cultura técnica, nem de uma conservação isto é, uma nova paidea, uma nova peda-
museográfica de objetos ou de documen- gogia das viagens pelo país e pelo mun-
tos. Pesquisa e exposições são realizadas do:
a partir de uma tentativa de tornar atual Essa pedagogia parte muito natural-
e viva a história do bairro. Esforços de mente da cultura vivida, isto é, do con-
animação cultural preparam e prolon- junto de conceitos, atos e acontecimentos
gam as exposições construídas com habi- da vida cotidiana, e num marco tridi-
tantes do bairro que, na sua maioria, são mensional, isto é, o espaço, o tempo e o
operários (Jeudy, 1990: 33). contexto social. A ação cultural acha-se
O referido ecomuseu, como se pode voltada para problemas reais de traba-
perceber, apresenta-se como um centro lho, habitação, lazer, família, vida grupal
de interpretação da vida, da cultura e da etc., e deve enfocar também os problemas
tecnologia operárias: algo sem preceden- existenciais (Binette apud Jeudy, 1990:
tes no contexto regional maranhense. 34).
Esse eco-museu canadense passa a ser
uma espécie de centro “motor”11, que se Novos Patrimônios e Novos Museus
quer “museologia comunitária” e que se
propõe uma missão. Para os autores des- Das nossas pesquisas em São Luís do
te projeto, é preciso pôr fim a ideologia Maranhão percebemos que amadurecem
segundo a qual existe uma cultura uni- cada vez com maior intensidade novos
versal, que agrupa a todos sem frontei- pontos de referência cultural coletivos.
ras de classe ou cultura 12. É um projeto Apesar de vivermos um contexto político
militante, engajado, que não esconde e econômico nacional e latino-americano
suas ambições de uma revalorização das muito complexo; novas esperanças têm
culturas de classes sociais subalternas e se sedimentado no campo das políticas
dominadas, opondo-se a museologia bur- culturais desde a Constituição Federal
guesa passiva e consumista. de 1988 (Corrêa, 2003). Em lugar de
Vê-se então que o social é com isso to- morrerem nos seus cantos abandonados
talmente investido aí, tornando-se o ob- com suas lembranças pessoais, suas ale-
jeto absoluto das ações culturais. O cha- grias e tristezas, os habitantes de bair-
mado ecomuseu preocupar-se-á doravan- ros urbanos e rurais, vizinhanças de
te com o bem-estar dos residentes, mora- parques e de monumentos, de terreiros e
dores e habitantes. Preocupar-se-á com a de vilas, etc., começam a partilhar suas
vizinhança e com os pontos de referência memórias e a assumir as relações que
coletivos, e não mais com o futuro de um estas possam ter com o tempo presente.
“novo” turismo cultural ansioso por com- As ruínas da sociabilidade estão postas
preender as transformações de um bair- como novas apostas coletivas – aquelas
ro, ou sítio histórico, expressão de uma “velhas e amareladas cartas” – e dessa
vã curiosidade. Não é que este novo tipo redistribuição caleidoscópica ao infinito
de prática e empreendimento seja finca- nasce a troca comunitária museal em
do num princípio “romântico” ou “utópico que se pretende abolir a alienação siste-
anti-capitalista”, que nega a mercadoria- mática (Jeudy, 1990).
turismo, mas, pelo contrário, por que Trata-se, sem dúvida, de um desafio
acredita que o próprio turismo há de se lançado contra essa negação e esse es-
transformar num produto de qualidade magamento produzido pela cultura bur-
nova, no qual as viagens ganham sentido guesa dominante. O programa é de longa
como viagens de aventura, de fruição data: difícil e repleto de idas e vindas.
quase filosófica: viagens de troca simbó- Muitos começos e re-começos irão se re-
lica que não sejam fruto da ansiedade petir, muitas alegrias e frustrações vão
consumista vazia e niilista. O turismo se revezar: nem todas as sementes,
cultural não pode ser uma pílula exótica mesmo que boas, germinam. O certo é
para aplacar o tédio da padronização que o reconhecimento dessa força latente
sufocante das contemporâneas ditas pós- de uma vida social reencantada não tem
modernas. Daí defendermos uma educa- mais fim, e, quem sabe, poderão continu-