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O ARQUÉTIPO DA SOMBRA NA

POLARIZAÇÃO POLÍTICA BRASILEIRA


O ARQUÉTIPO DA SOMBRA NA
POLARIZAÇÃO POLÍTICA BRASILEIRA
Deborah Celentano

Brasília, 2019
O arquétipo da sombra na polarização política
brasileira
©Instituto Brasileiro de Pesquisa e Análise de Dados, 2018.
Todos os direitos reservados.

Editor
Max Stabile

Revisão ortográfica e gramatical


André Luis Gomes Moreira

Diagramação
Toni Moraes

Capa
Luda Lima

Catalogação na Publicação (CIP)

C3920 Celentano, Deborah, 1986 –


O arquétipo da sombra na polarização política brasileira / Deborah
Celentano – Brasília: Editora IBPAD, 2018.
100p.; 18cm

ISBN: 978-85-54230-03-6
1. Psicologia junguiana; 2. Pensamento Político Brasileiro; 3. Persona e
Sombra; 4.Polarização política; 5. Psicopolítica.
1. Título
CDD: 100
CDU: 159.9

Editora IBPAD
Brasília (DF).
www.ibpad.com.br
contato@ibpad.com.br
+55 (61) 4042 2018
Para criar um inimigo
Comece com uma tela em branco
e delineie, num contorno geral, as formas
de homens, mulheres e crianças.
Mergulhe fundo no poço inconsciente de
sua própria sombra reprimida
com um pincel largo e
salpique os estranhos com o matiz sinistro da sombra.

Trace sobre o rosto do inimigo


a avidez, o ódio e a negligência que você não ousa
assumir como seus.

Obscureça a doce individualidade de cada rosto.

Apague todos os traços de mil amores, esperanças


e medos que brincam pelo caleidoscópio de
cada coração finito.

Retorça o sorriso até que ele forme um arco


descendente de crueldade.

Arranque a carne dos ossos até que só reste


o esqueleto abstrato da morte.

Exagere as feições para que o homem se metamorfoseie


em besta, verme, inseto.

Preencha o fundo com figuras malignas


de antigos sonhos — diabos,
demônios e guerreiros do mal.

Quando a sua estátua do inimigo estiver completa


você será capaz de matar sem sentir culpa,
trucidar sem sentir vergonha.

A coisa que você destruiu tornou-se apenas


um inimigo de Deus, um estorvo
à sagrada dialética da História.
S. Keen (1991)
Sumário

Prefácio: a democracia e sua sombra..................................11


Introdução......................................................................................15
1. Conceitos junguianos chave para entender a polari-
zação política: complexo, persona e sombra..................25
1.1 Complexos ...........................................................................25
1.2. O revelado e o oculto nas relações com outros: per-
sona e sombra................................................................................29
2. Velha ética e nova ética ou a psicologia do bode
expiatório e a psicologia profunda....................................33
2.1. A velha ética ou a psicologia do bode expiatório....33
2.2. Psicologia profunda e nova ética.................................37
3. Por que involuímos em termos de manifestação
política? A polarização política brasileira e a infanti-
lização do eleitor brasileiro à espera de um messias
político.............................................................................................45
3.1 As manifestações juninas de 2013 versus as manifes-
tações pró e anti-impeachment de 2015 e 2016..................45
3.2. Do movimento social caleidoscópico à polarização
política: o processo de criação do inimigo e a mente do
homo hostilis..................................................................................55
3.3 A infantilização do pensamento político: a espera de
um messias político que resolveria todos os problemas da
nação.................................................................................................60
Considerações finais..................................................................69
Posfácio............................................................................................79
Referências.....................................................................................83
Anexos..............................................................................................85
11

Prefácio

A democracia e sua sombra


Domenico Uhng Hur1

É com grande satisfação que apresento a obra


O Arquétipo da sombra na polarização política
brasileira da cientista política Deborah Celen-
tano. Neste livro instigante, a autora busca ana-
lisar um fenômeno contemporâneo de extrema
relevância, a polarização política no Brasil, a par-
tir de um enfoque teórico potente: a Psicologia
Analítica de Carl Gustav Jung. A autora trans-
passa os muros das disciplinaridades, cruzando
as fronteiras de sua formação, para articular o
olhar da Ciência Política com a Psicologia Ana-
lítica junguiana, num autêntico exercício psico-
político.
Essa postura interdisciplinar para a análise
dos fenômenos psicossociais é bastante corajosa
1 Psicólogo, Mestre e Doutor em Psicologia Social pela Uni-
versidade de São Paulo, com estágio doutoral na Universitat
Autònoma de Barcelona e pós-doutoral na Universidad de
Santiago de Compostela (Espanha). Professor de Graduação
e Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de
Goiás. Secretário de Pesquisas da Asociación Ibero-latino-
americana de Psicología Política. Bolsista de Produtividade
em Pesquisa (PQ-2) do CNPq.
12

e ambiciosa, visto que grande parte dos campos


de saberes ainda preferem transitar dentro de
suas próprias disciplinas. Entretanto Deborah
Celentano prefere percorrer a riqueza da inter-
disciplinaridade, nas contribuições que os sabe-
res heterogêneos propiciam para uma leitura
mais complexa do fenômeno. Neste sentido, ana-
lisa o fenômeno da polarização política através
de conceitos junguianos, tais como: Complexo,
Projeção, Sombra e Persona. A autora oferece
assim um enfoque original para tratar dos fenô-
menos coletivos, demonstrando a potência dos
ensinamentos de Jung para uma analítica do
contemporâneo. E vale ressaltar que preenche
uma lacuna metodológica na Psicologia Política
brasileira, pois são raríssimos, ou quase inexis-
tentes, os trabalhos da área que utilizam o marco
teórico junguiano para a reflexão dos fenômenos
psicopolíticos.
Deborah não apenas demonstra bom domínio
sobre os conceitos junguianos, como os aplica
de forma muito eficaz à leitura de seu problema
de investigação, na realização do diagnóstico do
presente. Neste caso, a projeção da sombra no
grupo antagonista ocupa lugar central para a
compreensão do fenômeno da polarização polí-
tica. A sombra que cada um carrega, e que se não
é defrontada e analisada, pode ser depositada
nesse outro, que de diferente, passa a ser imagi-
13

nado e concebido como um inimigo: torna-se o


bode expiatório, a vítima sacrificial que deve ser
eliminada, para que o mal, imaginariamente, seja
expiado.
Deste modo o cenário político passa a ser o
lugar de conflitos numa lógica dicotômica e
maniqueísta. A democracia que deveria ser o
lugar do debate e da heterogeneidade para a ges-
tão da vida e do coletivo, passa a ser o lugar de
conflitos e disputas entre dois polos incomuni-
cáveis. Não seria então a polarização política a
própria sombra da democracia? Ou melhor, não
seria o sintoma resultante da democracia não
se deparar e lidar com sua sombra, de insistir e
idealizar apenas a sua persona, de uma suposta
relação positiva de cidadãos com direitos iguais?
O campo de análise de Deborah é muito atual
e relevante. Perpassa as manifestações de junho
de 2013, as mobilizações pró e contrárias ao
impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff
em 2015 e 2016 e a adesão intensificada ao dis-
curso populista de Jair Bolsonaro. Demonstra
que estamos num momento de enclave, no qual
a negação e não tratamento da sombra chegaram
a tal magnitude, que vemos os fenômenos mais
irracionais e contraditórios no cenário político
atual. Portanto, possivelmente o êxito de Bolso-
naro seja a maior expressão da Democracia não
lidar com sua sombra e do triunfo das forças rea-
14

tivas de abolição, e não das forças de convivência


e solidariedade.
Em toda sua narrativa Deborah Celentano
também expressa um comprometimento éti-
co-político, no qual busca pensar soluções ao
espectro polarizado que enfrentamos, para a
assunção de um pensamento caleidoscópico, ou
seja, sair das lógicas binárias e redutoras, para
uma lógica da multiplicidade, que acolha as dife-
renças. Dessa forma, parabenizo a autora e faço
um convite ao leitor para ingressar nessa jornada
e refletir sobre sua própria sombra, seja do ponto
de vista individual e/ou coletivo-social, para que
juntos consigamos criar alternativas frente a este
cenário de polarização social e política que aco-
mete o país.
15

Introdução1

A política brasileira recentemente tem apre-


sentado momentos polêmicos de polarização
e animosidade entre grupos diversos que se
fecham em seus clusters e se identificam entre si
como o bem, a verdade, o certo, a luz. Podemos
reconhecer a polarização política como pano de
fundo a partir do qual se realçam alguns fatos
que merecem atenção. Inicialmente, o próprio
resultado das eleições presidenciais de 2014 que
demonstra uma margem bastante apertada entre
os dois candidatos em tela2, conforme esclarece a
tabela a seguir, sendo considerada a menor dife-
rença de votos em uma eleição de segundo turno,
desde a redemocratização (3,4 milhões).

1 Este livro foi desenvolvido e ampliado a partir de um


trabalho de conclusão de curso de Pós-Graduação Lato
Sensu com Especialização Profissional em Psicologia
Junguiana aprovado pelo Instituto Junguiano de Ensino e
Pesquisa (IJEP), da Faculdade de Ciências da Saúde de São
Paulo (FACIS) no ano de 2017.
2 Sobre o resultado das eleições presidenciais de 2014 ver
anexo 1.
16

Resultado do 2° turno da eleição presidencial brasileira


de 2014.

%Votos
Candidatos Votos
Válidos
DILMA VANA ROUSSEFF (PT) 54.501.118 51,64

AÉCIO NEVES DA CUNHA (PSDB) 51.041.155 48,36

Fonte: Tribunal Superior Eleitoral (TSE).


Outros desdobramentos posteriores tornaram
essa polarização mais marcada, o que foi visto ao
longo do processo de impedimento da ex-presi-
dente Dilma Roussef. Nesse contexto, cabe desta-
car as nuances das manifestações populares que
sofreram uma forte involução, do ponto de vista
das características que marcam as manifestações
populares. Essa involução será abordada no ter-
ceiro capítulo deste livro, onde se desenvolve um
comparativo entre as manifestações juninas de
2013 e as manifestações pró ou anti-impeach-
ment de 2015 e 2016, demonstrando uma reto-
mada ao pensamento maniqueísta que marcou
fortemente o século XX.
Tal guinada de cenário de polarização que
se iniciou nas eleições de 2014 ganhou tônus
no processo pró/anti-impeachment e tornou-se
ainda mais marcante durante a corrida presi-
dencial de 2018, caindo em um nível de intensa
mobilização afetiva. Essa mobilização afetiva foi
agravada pelo fenômeno das fake news, voltadas
17

justamente para apelar para o campo dos afetos,


sucumbindo o indivíduo pensante cada vez mais
para o entorpecimento da projeção da sombra
no outro, ficando cada vez mais à deriva de uma
lucidez ancorada em fatos reais.
Uma vez que o ambiente político e social se
estabeleceu nesse espectro dicotômico, busca-se
no presente estudo aqui contemplado fazer um
paralelo entre esse contexto histórico, político
e social com aspectos da psicologia junguiana,
como os conceitos de projeção, sombra e per-
sona.
Nesse sentido, objetiva-se neste livro enten-
der como a polarização política vivida na atua-
lidade brasileira pode ser lida à luz da psicologia
junguiana. Analisar o contexto político à luz da
psicologia junguiana amplia o alcance de enten-
dimento de processos psíquicos vividos no pen-
samento político na atualidade. O presente tema
da polarização política relacionado ao arcabouço
da psicologia analítica junguiana, chama a aten-
ção para o fenômeno das projeções extremas no
campo do pensamento político, quem sabe tra-
zendo para o nível da consciência de algumas
pessoas uma ponderação crítica sobre essa lógica
de pensamento maniqueísta. Desse modo, esse
estudo, pode promover uma ampliação do espec-
tro polarizado para o que será aqui denominado
18

de pensamento caleidoscópico, além de contribuir


para o amadurecimento do pensamento político
de cidadãos que permanecem imersos em uma
capacidade analítica que não os empodera obje-
tivamente e subjetivamente.

Um complexo torna-se patológico


“apenas quando pensamos não possuí
-lo.”3 Porque é então que ele nos possui.
Assim tudo indica que a falta de consci-
ência da pessoa em relação a seus com-
plexos favorece a tendência deles de
tomar-se fontes de perturbação patoló-
gica. (WHITMONT, 1990, p. 63)

Trazer para a consciência que a leitura política


da realidade pode estar muito ligada a projeções
psíquicas – que envolvem complexos pessoais
dos indivíduos – pode libertar o indivíduo para
uma ampliação de consciência e para um empo-
deramento diante de uma “realidade mais real”,
menos dicotômica, menos parecida com as nar-
rativas infantis e rasas de desenhos animados, do
tipo maniqueísta mocinhos versus bandidos. De
acordo com Whitmont (1990, p. 53): “Enquanto
essa identidade inconsciente com um impulso ou
ímpeto persistir, não haverá qualquer possibili-
3 JUNG, C. G. The Practice of Psychotherapy , par. 179.
apud WHITMONT, 1990, p. 63.
19

dade de escolha, já que agimos como marionetes


incapazes, e nunca sabemos quais os fios que nos
fizeram mexer”.
O objetivo da presente investigação aqui apre-
sentada é entender qual o diálogo entre o pensa-
mento político brasileiro atual, no que se refere
à polarização, e aspectos da abordagem analítica
da psicologia junguiana. Em que sentido pode-
mos ampliar a consciência sobre um fenômeno
de leitura maniqueísta da realidade que tem-se
tornado cada vez mais comum? Quais as contri-
buições que a psicologia junguiana pode oferecer
frente a um típico pensamento maniqueísta que
tem-se apresentado como pano de fundo de pro-
cessos políticos e sociais?
Este estudo parte do pressuposto de que have-
ria algum nível de projeção da sombra no outro
partido, que não aquele que o indivíduo tem mais
afinidade, construindo uma lógica maniqueísta
de pensamento. Essa lógica de raciocínio afasta
o sujeito de uma análise política minimamente
objetiva do contexto em que ele está inserido. O
indivíduo envolto em uma lógica maniqueísta
pensa a política nacional como os desenhos
animados, projetando mocinhos e bandidos.
Nesse cenário, é interessante notar que, na pola-
rização atual, ambos extremos sofrem desse
mesmo tipo de comportamento psíquico. Os
conteúdos de realidade são distorcidos para se
20

encaixar em argumentações extremamente dico-


tômicas. Não há, nesse cenário, uma ponderação
de fundo objetivo e o pensamento infantil e raso
das díades incorpora tudo que se vê, se lê e se
escuta sobre política.
Segundo Whitmont, a projeção é um estado
original que não oferece escolha:

Os complexos portanto operam não


apenas como conjuntos de tendên-
cias e impulsos interiores, mas tam-
bém como expectativas, esperanças
e medos concernentes ao compor-
tamento externo das pessoas e dos
objetos. Filosoficamente falando, já
que toda a nossa percepção ocorre
em termos de nossas predisposi-
ções psicológicas, podemos con-
siderar todas as percepções como
projeções sobre o objeto, a “coisa
em si mesma”, mas, em nosso uso
clínico, limitamos o emprego da
palavra àquelas situações nas quais
a percepção da realidade é distor-
cida pelo poder irresistível de um
complexo ou arquétipo constelado
(WHITMONT, 1990, p. 55, grifo
nosso).
21

Em uma linguagem figurada, é como se o


indivíduo enxergasse dois pontos: preto ou
branco. Se o que ele optou é o preto, tudo que é
preto é bom, e o que é branco é ruim; não impor-
tando mais a realidade objetiva em si. Nessa linha
de pensamento, o que optou por ver preto e o que
optou por ver branco têm ideias extremamente
opostas e ambos esqueceram da infinita escala de
cinza que há entre eles.
Nessa perda das noções objetivas da realidade
política, alguns cidadãos passam a personificar
o bem de um lado e o mal de outro. Nesse jogo
dicotômico, começam a atuar fortes ilusões. O
indivíduo passa a acreditar que aqueles que per-
sonificam o lado do bem podem resolver tudo, ou
se não há o que personifica o bem atualmente o
indivíduo se põe à espera de um messias político,
aquele que virá nas próximas eleições e resolverá
todos os problemas. É interessante notar que não
importa que haja alguns mecanismos estruturais
sistêmicos e que a mudança de um partido A por
um partido B ou C no Executivo nacional não
tem o poder de mudar tudo. Nesse tipo de lógica,
a simples mudança de um ator político poderia
mudar, como em um passe de mágica, tudo que
se passa nas várias esferas inter e intragoverna-
mentais, independentemente dos aspectos sis-
têmicos que permaneceriam. Essa projeção do
messias político, o salvador da pátria, que irá
22

resolver todos os problemas da nação como em


um passe de mágica, também está ligada à infan-
tilização do pensamento político. Esse aspecto
será mais profundamente tratado no terceiro
capítulo, em que se discorre sobre o puer político,
uma infantilização que é dependente da trajetória
do processo de cidadania/estadania no Brasil.
Segundo Jung (2008, p. 22): “A consequên-
cia da projeção é um isolamento do sujeito em
relação ao mundo exterior, pois ao invés de uma
relação real o que existe é uma relação ilusória.
As projeções transformam o mundo externo
na concepção própria, (...).” E ainda (op cit):
“Quanto mais projeções se interpõem entre o
sujeito e o mundo exterior, tanto mais difícil se
torna para o eu perceber suas ilusões.”.
Este livro está organizado em três capítulos,
como se segue:
Capítulo I: trata de conceitos junguianos
chave para entender a polarização política: com-
plexo, persona e sombra;Capítulo II: após a base
conceitual apresentada no capítulo um, adentra-
remos ao que seria a Velha Ética e a Nova Ética.
Aqui já há uma apreensão dos conceitos apresen-
tados anteriormente em uma perspectiva socia-
lizante; Capítulo III: Já trabalhadas as bases con-
ceituas e teóricas, adentraremos ao fenômeno da
polarização política em si. Neste capítulo, será
23

apresentado um comparativo entre as manifes-


tações juninas de 2013 e as manifestações pró ou
anti-impeachment de 2015 e 2016. Neste capí-
tulo serão aplicados elementos da psicologia
junguiana à questão da polarização política e
também haverá uma seção para tratar da infan-
tilização do pensamento político no processo de
construção da cidadania no Brasil.
25

1. Conceitos junguianos chave para


entender a polarização política: com-
plexo, persona e sombra

Este primeiro capítulo traz os conceitos fun-


damentais da psicologia junguiana para o enten-
dimento posterior do pensamento político pola-
rizado. Na seção 1.1, será definido o que são
complexos e esclarecido como eles atuam auto-
nomamente, quando mobilizados, por meio de
projeções. O núcleo central do complexo é um
arquétipo. Nesta obra aqui apresentada, iremos
focar no arquétipo da Sombra, mas para tanto é
necessário estudar o seu contraponto: a Persona.
Ambos conceitos serão apresentados na seção
1.2.

1.1 Complexos

A palavra complexo denota o elemento estru-


tural básico da psique objetiva (WHITMONT,
1990, p. 52).
Segundo a psicologia junguiana, os seres
humanos desenvolvem complexos ao longo da
vida, em seu processo de socialização:
26

No começo da vida, a personalidade é


uma simples unidade indiferenciada.
Amorfa e mais potencial do que real,
ela constitui um todo. Iniciado o pro-
cesso de desenvolvimento, essa tota-
lidade diferencia-se e separa-se em
várias partes. Nasce a consciência do
ego e, ao crescer deixa para trás boa
parte da totalidade de si mesmo no
que é agora o “inconsciente”. O incons-
ciente, por sua vez, é estruturado como
grupos materiais em torno de imagos,
internalizações e experiências traumá-
ticas para formar as subpersonalidades,
os complexos. (STEIN, 2006, p. 98).

A partir de algum momento do processo de


socialização, é como se o complexo passasse a
atuar e o indivíduo fosse tomado pelo complexo,
não conseguindo pensar de uma forma cons-
cientemente objetiva, o que se constituiria em
uma ausência de diferenciação entre projeções e
fatos objetivos da realidade:

Como opera o próprio complexo e


qual á a sua estrutura? Jung descreve
isso da seguinte maneira: “Ele apa-
rece como uma formação autônoma
que se impõe sobre o consciente. Do
consciente poderíamos dizer que é a
27

nossa própria existência psíquica, mas


o complexo tem sua própria existência
psíquica, independentemente de nós.
Esta afirmação parece formular os fatos
observáveis de maneira completa. Se
submetermos esse caso a um teste de
associação, logo descobriremos que o
homem não é o senhor na sua própria
casa. Suas reações serão retardadas,
alteradas, eliminadas ou substituídas
por intrusos autônomos1.” (WHIT-
MONT, 1990, p. 58)

A autonomia do complexo dependerá das


conexões maiores ou menores que mantenha
com a totalidade da organização psíquica. Por
isso, verifica-se em seu comportamento graus
muito variados de independência:

Alguns repousam tranquilamente mer-


gulhados na profundeza do incons-
ciente e mal se fazem notar; outros
agem como verdadeiros perturbadores
da economia psíquica; outros já rom-
peram caminho até o consciente mas,
resistem a deixarem-se assimilar e per-
manecem mais ou menos independen-

1 JUNG, C. G. Vol. 11. Psychology and Religion: West


and East. 1958. apud WHITMONT, 1990, p. 58.
28

tes, funcionando segundo suas leis pró-


prias2. (SILVEIRA, 1997, p. 30-31)

Silveira (1997) destaca que a tomada de cons-


ciência do complexo apenas no plano intelectual
muito pouco modificará sua influência nociva.
Para que se dê a assimilação de um complexo,
será necessário, junto à sua compreensão em
termos intelectuais, que os afetos nele conden-
sados sejam ab-reagidos. Isto é, que se exteriori-
zem através de descargas emocionais. A autora
destaca ainda (op cit, p. 32): “Nós pretendemos
funcionar só com a cabeça. Por isso discorre-
mos inteligentemente sobre nossos complexos,
mas eles continuam bem encravados na textura
inconsciente-corpo, produzindo sintomas somá-
ticos e psíquicos totalmente irracionais”.
Segundo Whitmont (1990) o elemento central
do complexo é o arquétipo. Para Jung (2008, p.
20): “Empiricamente, os arquétipos que se carac-
terizam mais nitidamente são aqueles que mais
frequentemente e intensamente influenciam ou
perturbam o eu. São eles a sombra, a anima e o
animus.”. A investigação apresentada neste livro
tem por foco o arquétipo da sombra.

2 JACOB, Jolande. Complex Archetype Symbol in the


Psychology of C.G. Jung. Princton University Press: 1959.
apud SILVEIRA, 1997, pp. 30-31.
29

1.2. O revelado e o oculto nas relações com


outros: persona e sombra

A sombra é a imagem de nós próprios que


desliza em nossa esteira quando caminhamos em
direção à luz. A persona, seu oposto, é o nome
inspirado pelo termo romano para designar a
máscara de um ator. É o rosto que usamos para
o encontro com o mundo social que nos cerca. A
persona é a pessoa que passamos a ser em resul-
tado dos processos de aculturação, educação e
adaptação aos nossos meios físico e social.

A persona significa a pessoa-tal-como


-apresentada, não a pessoa-como-real.
A persona é um construto psicológico
e social adotado para um fim especí-
fico. Jung escolheu-o para a sua teoria
psicológica porque se relaciona com o
desempenho de papéis na sociedade.
Ele estava interessado em apurar como
as pessoas chegam a desempenhar
determinados papéis, a adotar atitudes
coletivas convencionais e a representar
estereótipos sociais e culturais, em vez
de assumirem e viverem sua própria
unicidade. (STEIN, 2006, p. 102)
30

Quanto à sombra, o seu conteúdo específico


pode mudar, dependendo das atitudes e do grau
de defensividade do ego. De um modo geral, a
sombra possui uma qualidade imoral ou, pelo
menos, pouco recomendável, contendo carac-
terísticas da natureza de uma pessoa que são
contrárias aos costumes e convenções morais da
sociedade.
Todo ego tem uma sombra. Isso é inevitável.
Ao adaptar-se e enfrentar-se com o mundo, o
ego, de um modo inteiramente involuntário,
emprega a sombra para executar operações desa-
gradáveis que ele não poderia realizar sem cair
num conflito moral. Sem conhecimento do ego,
essas atividades protetoras e autônomas são leva-
das a efeito no escuro.

Se a trajetória das vontades, preferên-


cias e intenções do ego for seguida
com suficiente profundidade, chega-se
às regiões da escuridão e da frialdade
onde se torna evidente que o ego tem
capacidade, em sua sombra, para ser
extremamente egoísta, obstinado,
insensível e dominador. Aí, uma pessoa
é puramente egoísta e decidida a satis-
fazer a todo custo os desejos pessoais de
poder e de prazer. Esse núcleo de trevas
no âmago do ego é a própria definição
31

da maldade humana. (STEIN, 2006, p.


99)

Se traços da sombra se tornam, em certa


medida, conscientes e integrados, uma pessoa é
muito diferente do indivíduo comum. A maio-
ria das pessoas não sabe que é tão egocêntrica e
egoísta quanto na realidade é, e quer aparentar
ser altruísta e ter o total domínio de seus apetites
e prazeres. A tendência das pessoas é, antes, a de
esconder tais traços dos outros e de si mesmas
por trás de uma fachada que as mostre atencio-
sas, ponderadas, empáticas, refletidas e benévo-
las. O que o ego quer na sombra, entretanto, não
é necessariamente mal em si e de si e, com frequ-
ência, a sombra, uma vez enfrentada, não é tão
perversa quanto se imaginou.
A sombra não é diretamente experi-
mentada pelo ego. Sendo inconsciente, é pro-
jetada em outros. Quando uma pessoa se sente
tremendamente irritada por outra que se mani-
festa ser realmente egoísta, por exemplo, essa
reação é usualmente um sinal de que está sendo
projetado um elemento inconsciente da sombra.
Naturalmente, a outra pessoa tem que apresentar
um “gancho” para a projeção da sombra e, assim,
existe sempre uma mistura entre percepção e
projeção em tais reações emocionais fortes.
32

A integração da sombra constitui um


problema psicológico e moral extremamente
espinhoso. Se uma pessoa rechaça completa-
mente a sombra, a vida é correta, mas terrivel-
mente incompleta. Ao abrir-se para a experiência
da sombra, entretanto, uma pessoa fica man-
chada de imoralidade, mas alcança um maior
grau de totalidade.
33

2. Velha ética e nova ética ou a psico-


logia do bode expiatório e a psicolo-
gia profunda

Após a base conceitual apresentada no capí-


tulo 1, adentraremos ao que seria a Velha Ética
e a Nova Ética. Aqui já há uma apreensão dos
conceitos apresentados anteriormente em uma
perspectiva socializante1.
Na seção 2.1, serão apresentadas carac-
terísticas da Velha Ética, a qual deveria caminhar
para a Nova Ética, reflexão que será contemplada
na seção 2.2.

2.1. A velha ética ou a psicologia do bode


expiatório

A Velha Ética está ligada à incapacidade de


reconhecimento daquilo que é considerado O
Mal na própria natureza psíquica, o que gera essa
1 Este capítulo é baseado na aula de Maria da Glória
G. de Miranda, em sua apostila – disponibilizada na
área do aluno do site do IJEP em 13.10.2016 – “Psico-
logia profunda e Nova Ética; O Arquétipo do Curador
Ferido; O Arquétipo do Inválido” e na obra “Psicolo-
gia Profunda e Nova Ética”, de Erich Neumann (1991).
34

transferência para a sombra e consequente pro-


jeção no outro. O Mal é um arquétipo que nos
constitui, mas que, na modernidade, é reprimido
e negado, por isso se apresenta de modo proje-
tado em situações, pessoas, partidos, outros paí-
ses, etc.
A Velha Ética tem como características: i) a
absolutização de valores que são “devidos” (os
deveres); ii) personagens de santo, messias, sábio,
nobre, bom, herói, sóbrio; iii) o Bem como valor
absoluto que determina o comportamento; iv) o
ideal de perfeição; e v) a negação do negativo.
Os métodos psíquicos fundamentais da Velha
Ética são a supressão e a repressão. A supressão
diz respeito ao desligamento realizado pelo ego
de todos os traços e tendências da personalidade
que não correspondem ao valor ético. Disciplina
e ascese. É uma ação consciente do ego, havendo
sacrifício e aceitação do sofrimento. Contudo,
ainda assim, os conteúdos excluídos mantêm-
se vinculados ao ego. De outro lado, a repressão
seria a forma mais frequente da velha ética impor
seus valores. Os conteúdos excluídos tornam-se
inconscientes e não se vinculam mais ao ego.
Funcionam independentes dele, levando uma
vida autônoma e fatal para o indivíduo e para o
coletivo. Esses conteúdos interferem na consci-
ência e no aparecimento de sintomas.
35

Tudo o que ameaça o equilíbrio coletivo é


convertido em tabu e proibido. O acordo com
os valores do coletivo é a linha diretiva ética do
indivíduo no grupo, e a consciência tenta pro-
duzir esse acordo. Resultado disso é a formação
de dois sistemas psíquicos na personalidade: Per-
sona e Sombra (tratadas na seção 1.2 deste livro).
Na Velha Ética ocorrem duas reações (fatais) à
situação psíquica criada pela consciência:

a) O ego identifica-se com os valores


éticos: identificação do ego com a per-
sona e repressão da sombra. Assim, o
ego sente que possui uma “boa cons-
ciência” e é portador da luz moral do
mundo dos valores. Ocorre, então, uma
inflação perigosa, pois a consciência
é ofuscada por um conteúdo incons-
ciente, é possuída por ele e então fica
limitada, presa por uma ideia fixa. A
inflação é uma condição psicológica
causada pela inundação de um conte-
údo maior, mais forte e cheio de ener-
gia do que a consciência e, como con-
sequência, acontece uma espécie de
possessão. Tudo o que foi reprimido,
suprido e ignorado é exatamente o que
fará fracassar toda a unilateralidade.
Ocorre uma Hybris – ego inflado iden-
tificado com o Self –, pois é como se o
36

indivíduo deixasse de ser criatura-li-


mitada e passasse a acreditar que é um
criador ilimitado. Ele perde seus limites
e sente-se um deus;
b) O ego reprime o lado da sombra:
esta é a base da identificação pessoal
do ego com os valores coletivos, atra-
vés da persona. Nossa impossibilidade
de identificação do ego pessoal com o
suprapessoal é a experiência viva no
sofrimento do homem.

A Velha Ética é dualista: luz-trevas, Deus-


Diabo, bem-mal. Ela divide o homem, o mundo
e a divindade em duas partes, uma é superior e a
outra é inferior. A realidade do homem ociden-
tal ainda é determinada por essa divisão em duas
partes e pelo conflito de opostos. Sendo assim, a
figura principal dessa ética é o herói, identificado
com o princípio da luz. Porém, a treva reprimida,
suprimida e vencida, sempre volta a se levantar.
O mundo, a natureza e a alma são o palco de um
inesgotável renascimento do mal.
O que foi reprimido passa a ser projetado, é
“o estranho fora” e não o que deveria ser: “o pró-
prio interno”. Nesse contexto aparece a figura do
bode expiatório. O mal não é reconhecido como
mal pessoal e passa a ser experimentado como
estranho, sendo projetado nos estrangeiros, nas
37

minorias, nos marginalizados. O papel que estes


representam é importante para a economia psí-
quica, porque a sombra não reconhecida pela
consciência é situada fora dela e eliminada. A
sombra é ameaçadora para a velha ética porque
contradiz a imaginação do ego de se identificar
totalmente com os valores.
A evolução da ética e a evolução da consci-
ência acham-se unidas estreitamente entre si,
não podendo se entender uma sem a outra. A
Velha Ética é responsável pela negação da som-
bra, e, consequentemente, pela divisão e cisão.
O esforço para integrar o negado, o dividido e o
cindido inaugura a possibilidade da Nova Ética.

2.2. Psicologia profunda e nova ética

O homem moderno, ao adoecer ou entrar


em conflito, necessita, nos moldes da psicologia
profunda, descobrir camadas desconhecidas da
personalidade e conscientizá-las. O desenvolvi-
mento desse homem começa com o problema
moral e sua reorientação, que se realiza na assi-
milação da sombra e na reelaboração da persona.
Nesse encontro com sua sombra, a velha ima-
gem idealizada do ego desmorona, reconhe-
cendo-se a ambiguidade e pluralidade da própria
natureza, assumindo o seu mal. Mas o problema
38

do mal tem raízes mais profundas: as fontes do


mal. A distinção entre o mal individual e o mal
geral constitui peça essencial de autoconheci-
mento no processo de individuação. Isso exige
esforços tremendos da personalidade. Com o
fortalecimento do ego e do aspecto escuro que
se impõe, essas posições contrárias acarretam
uma divisão na personalidade do indivíduo e do
grupo. Dessa forma, a problemática da sombra
e do conflito moral vem ao encontro do ego de
forma camuflada, mas avassaladora: a sombra se
impõe como sintoma ou complexo.
Para a Nova Ética, somente aquele que assu-
miu o problema de sua sombra, que se conscien-
tizou do seu próprio lado negativo pode agir eti-
camente. A personalidade total é necessária para
o comportamento ético da nova ética. Ela não
considera apenas a situação ética do indivíduo
sobre ele mesmo, mas também a atitude indivi-
dual sobre o coletivo. Não é somente uma ética
parcial de consciência, mas considera também os
efeitos da atitude consciente sobre o inconsciente
e vice-versa. Assim, a personalidade total é res-
ponsabilizada e não somente o ego como centro
da consciência. Ela exige uma intuição maior e
uma participação conjunta do ego e da sombra,
pelo menos da sombra individual. O indivíduo
deve elaborar sua problemática básica moral
39

antes de estar em condições de representar um


fator coletivo:

A nova ética repousa sobre a conscien-


tização das forças positivas e negati-
vas da estrutura humana e sobre a sua
inserção consciente na vida do indiví-
duo e da comunidade. A sombra, que
é mister assumir, é o forasteiro da vida.
Ela é a forma individual que o lado
escuro da humanidade assume em
mim e por mim como parte de minha
personalidade.
O meu lado da sombra é parte e repre-
sentante do lado da sombra da huma-
nidade em geral, e quando minha
sombra é associal e cobiçosa, cruel e
má, pobre e miserável, quando ela se
me apresenta como mendigo, como
negro e como fera, está por detrás da
reconciliação com ela a reconciliação
com a irmã escura da humanidade em
geral, e à medida que a assume e nela a
mim mesmo, assumo com ela também
toda a parte da humanidade que como
minha sombra é “o meu próximo”.
O amor ao próximo de Jesus de Nazaré
toma-se aí amor ao próximo como o
malfeitor e a sombra. Em sua limita-
ção a uma figura pessoal interior, ele
parece ser uma forma paradoxal de
40

“amor próprio”, em contraste com o


amor do Nazareno que abstrai de si.
Mas somente o amor à sombra e sua
assunção constitui psicologicamente
a base para um comportamento ético
realizável também para com o tu que se
acha fora de nós. (NEUMANN, 1991,
p. 73-74)

A Nova Ética quer assumir os conteúdos


inconscientes e para integrá-los à consciência
precisa reelaborá-los, faz-se então necessária
uma reintegração.
A tarefa essencial da Nova Ética é conseguir
alcançar uma síntese dos opostos, uma integra-
ção das partes dissociadas e inimigas no sistema
de vida do indivíduo. Ela almeja a união dos
contrários em uma estrutura unitária, não mais
divisão, diferenciação, separação e cisão. Assim,
ela produz a globalidade, a totalidade da per-
sonalidade. O ego passa a ser responsável pela
aliança dos povos.
A atenção da Nova Ética não está em ser bom,
mas na autonomia do indivíduo, em ele estar
são, produtivo e que não seja psiquicamente
“infeccioso”2. A integração das “forças negativas”
presentes passa a ser feita conscientemente. A
2 A negação do negativo leva à psicologia do bode
expiatório, que seria um tipo de “infecção”.
41

personalidade, sua autonomia e integridade no


sentido da Nova Ética é a base de processos cria-
tivos, produtivos de valores.
Autonomia ética ou ética total significa cuidar
por si e conscientemente da economia de sua
sombra. O mal assim conscientizado e assumido
pelo ego apresenta-se como tarefa. O mal incons-
ciente sempre acarreta danos, e o mal conscienti-
zado apresenta-se ao indivíduo como um conte-
údo a ser incorporado na vida e na formação da
personalidade.
A “voz” exige que o mal seja reconhecido e que
se assumam os conflitos internos e externos que
daí surgem. Assumir o mal não significa sempre
um agir externo. Perceber uma imagem interna
não significa reagir a ela, nem atuá-la no mundo.
Na nova ética, o indivíduo necessita assumir
corajosamente a parte do mal que lhe cabe e ela-
borá-lo; assumir aquilo que ele é e ter a coragem
moral de querer não ser melhor do que ele é. Na
Nova Ética, a pessoa precisa ser levada em consi-
deração: as diversidades na consciência e na per-
sonalidade ligam-se aos diferentes graus éticos
de responsabilidade.
A Nova Ética não está interessada na punição.
A necessidade é de elaborar o mal, tomando-o
em suas próprias mãos autonomamente. A cons-
cientização passa a ser um compromisso ético. A
42

verdade refere-se à relação real entre o ego e o


inconsciente. A consciência é estabelecida como
instância para controlar e produzir a relação
de totalidade do psíquico: “A repressão do mal,
sempre acompanhada por auto-supravalorização
inflacionalística, é má, ainda quando parte de
uma ‘boa intenção’ ou de uma ‘boa vontade’.” (op
cit, p. 92).
O ego tem participação importante no pro-
cesso, mas não detém a última decisão. Ao assu-
mir o mal, o homem moderno assume o mundo e
a si próprio na perigosa natureza dupla que cabe
a ambos. É uma afirmação da totalidade humana
que engloba tanto o consciente como o incons-
ciente, e o centro não é o eu (centro da consciên-
cia), e sim o si-mesmo (centro do psíquico).
O processo de individuação é muito impor-
tante na psicologia profunda, e esse processo, por
envolver a estabilização da personalidade, é fun-
damental para a Nova Ética. A orientação pelo
si-mesmo exige um processo duradouro de auto-
questionamento e autocontrole. Ela é feita pelo
ego, mas de modo que ele permita que conteúdos
que faltam à consciência e que são necessários à
totalidade possam surgir revigorados do incons-
ciente. Isso permite o processo de compensação,
onde uma falsa postura da consciência possa
ser “corrigida” por um sonho, por exemplo. A
43

compensação é uma manifestação direta da tota-


lidade e relacionada ao si-mesmo. Ocorre uma
liberação dos opostos. É um estar no mundo
revigorado e aprofundado.
A Nova Ética, ao mesmo tempo que é um
movimento individual, gera impactos coletivos:

A nova ética é, por um lado, uma ética


individual, uma ética de individuação.
Contém a tarefa, singular para cada
indivíduo e resultante da singulari-
dade de sua situação, de haver-se ade-
quadamente com os seus problemas
morais específicos, tais como resultam
de sua constituição psico-física e de
seu destino. O outro aspecto, ao menos
igualmente importante da nova ética,
porém, é precisamente o significado
coletivo da individuação exigida por
ela. O que chamamos de fortalecimento
da estrutura psíquica é, (...), de enorme
importância para o coletivo. (op cit, p.
105, grifo nosso)

O indivíduo, ao elaborar seu mal, sempre ela-


bora também uma parcela do mal coletivo: “O
indivíduo assume parte da carga do coletivo em
sua própria responsabilidade e desenvenena e
integra este mal com o seu próprio trabalho de
44

transformação interna.” (op cit, p. 106). O indiví-


duo torna-se assim corresponsável, partícipe dos
processos coletivos de transformação, ao invés
de empurrar o seu mal para o outro, como ocorre
na psicologia do bode expiatório.
Agora que já nos familiarizamos com con-
ceitos da psicologia junguiana como sombra,
persona, complexos, projeções e como estes estão
intrinsecamente ligados a formas coletivas de
pensar – a Velha Ética e a Nova Ética – vamos
passar aos elementos políticos, a fim de aplicar o
arcabouço conceitual e teórico à conjuntura polí-
tica brasileira atual.
45

3. Por que involuímos em termos de


manifestação política? A polarização
política brasileira e a infantilização
do eleitor brasileiro à espera de um
messias político

Neste capítulo, trataremos na primeira seção


sobre as características das manifestações popu-
lares recentes no Brasil, para demonstrar como
sofreram uma forte involução, no sentido de
uma retomada ao pensamento maniqueísta que
marcou fortemente o século XX.
Na sequência, na seção 3.2, trataremos sobre
polarização política em si: o processo de criação
do inimigo e a mente do homo hostilis.
Na seção 3.3, trataremos da infantilização do
pensamento político: a espera de um messias
político que resolveria todos os problemas da
nação.

3.1 As manifestações juninas de 2013 versus


as manifestações pró e anti-impeachment
de 2015 e 2016

No livro “Redes de indignação e esperança:


movimentos sociais na era da internet”, Castells
46

(2013) traz um estudo de características em


comum que ele pode constatar ao observar movi-
mentos como a Revolução de Jasmim, na Tunísia
(2010), a Revolução egípcia (2011), Os Indignados
na Espanha (2011) e o movimento Occupy Wall
Street (2011).
O autor levantou um rol de características que
marcam essas manifestações populares no século
XXI em diferentes culturas, e o mais interessante,
quando estava finalizando o seu livro, estoura-
ram as manifestações juninas de 2013 no Brasil,
nas quais se apresentavam as mesmas caracte-
rísticas. Isso o impeliu a escrever um posfácio
incluindo o Brasil:

Aconteceu também no Brasil. Sem que


ninguém percebesse. Sem líderes. Sem
partidos nem sindicatos em sua organi-
zação. Sem apoio da mídia. Espontane-
amente. Um grito de indignação contra
o aumento do preço dos transportes
que se difundiu pelas redes sociais e foi
se transformando no projeto de espe-
rança de uma vida melhor, por meio da
ocupação das ruas em manifestações
que reuniram multidões em mais de
350 cidades. (CASTELLS, 2013, p. 178,
grifo nosso)
47

Conforme o grifo destacado no trecho, esta


é uma característica de todos os movimentos
sociais supracitados: tratam-se de movimen-
tos sem liderança, não pela falta de líderes em
potencial, mas pela profunda e espontânea des-
confiança dos participantes do movimento em
relação a qualquer forma de delegação de poder
(intermediação).
Essa característica essencial dos movimentos
observados resulta diretamente de uma de suas
causas: a rejeição dos representantes políticos
pelos representados, depois que se sentiram tra-
ídos e manipulados em sua experiência com a
política instituída.
Essa realidade de desconfiança em relação à
intermediação estaria perpassando vários cam-
pos, como o político e o religioso; assim como
a não adesão a cartilhas fechadas e à ortodoxia
cega. Por isso, esses movimentos têm em comum
o fato de não serem programáticos. Uma das
grandes dificuldades da presidente Dilma Rous-
sef na época era identificar os interlocutores das
manifestações, quais seriam os líderes e qual a
pauta da manifestação. Em uma mesma mani-
festação, conviviam demandas as mais diversas e,
muitas vezes, até contraditórias umas em relação
às outras. Segundo Castells, essa característica
de não serem programáticos demonstra tanto a
48

força – um amplo poder de atração multidirecio-


nal – quanto a fraqueza – a não instrumentali-
dade – desses movimentos.
Outras características que as manifestações
do século XXI supracitadas apresentaram em
comum foram:

a) As redes que se mobilizam são hori-


zontais, multimodais, tanto na inter-
net quanto no espaço urbano, e criam
companheirismo. A horizontalidade das
redes favorece a cooperação e a solida-
riedade, ao mesmo tempo que reduz a
necessidade de liderança formal.
b) Os movimentos sociais que se criam
a partir dessa mobilização são profun-
damente autorreflexivos. Em termos de
gênese, esses movimentos são ampla-
mente espontâneos em sua origem,
geralmente desencadeados por uma
centelha de indignação. A indignação
passa a pesar mais que o medo de se
manifestar, ou pesa mais que permane-
cer na zona de conforto. E, assim, pas-
sa-se da indignação à esperança. Essa
mudança se constela no que o autor
chama de espaço da autonomia, onde
os cidadãos “mobil-lizados” em rede
passam a ocupar o espaço público.
49

c) Por estarem nesse ínterim entre


indignação e esperança, esses movi-
mentos se situariam em um tempo
atemporal: um tempo emergente, alter-
nativo, constituído de um híbrido do
agora com o para sempre.

Sobre essa tomada de consciência no processo


entre indignação e esperança, temos que:

A mudança social resulta da ação


comunicativa que envolve a conexão
entre redes de redes neurais dos cére-
bros humanos estimuladas por sinais
de um ambiente comunicacional for-
mado por redes de comunicação. A
tecnologia e a morfologia dessas redes
de comunicação dão forma ao processo
de mobilização e, assim, de mudança
social, ao mesmo tempo como pro-
cesso e como resultado. (CASTELLS,
2013, p. 158, grifo nosso)

Segundo o autor em tela, o que esses movi-


mentos sociais em rede estariam propondo em
sua prática seria uma nova utopia no cerne da
cultura da sociedade em rede: a utopia da auto-
nomia do sujeito em relação às instituições da
sociedade.
50

Esses movimentos sociais comungam de uma


cultura específica, a cultura da autonomia, a
matriz cultural básica das sociedades contem-
porâneas. Nesse ponto, o autor faz referência ao
conceito junguiano de individuação, porém sem
citar ou se referir à psicologia junguiana ao longo
de sua obra:

Nos bastidores desse processo de


mudança social está a transformação
cultural de nossas sociedades. Tentei
documentar em outros textos o fato
de que as características básicas dessa
transformação cultural se referem à
emergência de um novo conjunto de
valores definidos como individua-
ção e autonomia, (...). Individuação
é a tendência cultural que enfatiza os
projetos do indivíduo como supremo
princípio orientador de seu compor-
tamento. Individuação não é indivi-
dualismo, pois o projeto do indivíduo
pode ser adaptado à ação coletiva e a
ideias comuns, como preservar o meio
ambiente ou criar uma comunidade,
enquanto o individualismo faz do bem
-estar do indivíduo o principal objetivo
de seu projeto particular. (CASTELLS,
2013, p. 167-168, grifo nosso)
51

Esses movimentos sociais em rede seriam


novos tipos de movimento democrático – de movi-
mentos que estão reconstruindo a esfera pública
no espaço de autonomia, constituído na interação
entre localidades e redes da internet e reconsti-
tuindo a confiança como alicerce da interação
humana.
O autor conclui que:

De forma confusa, raivosa e otimista,


foi surgindo por sua vez essa consci-
ência de milhares de pessoas que eram
ao mesmo tempo indivíduos e um
coletivo, pois estavam – e estão – sem-
pre conectadas, conectadas em rede e
enredadas na rua, mão na mão, tuítes
a tuítes, post a post, imagem a ima-
gem. Um mundo de virtualidade real
e realidade multimodal, um mundo
novo que já não é novo, mas que as
gerações mais jovens veem como seu.
Um mundo que a gerontocracia domi-
nante não entende, não conhece e que
não lhe interessa, por ela encarado com
suspeita quando seus próprios filhos
e netos se comunicam pela internet,
entre si e com o mundo, e ela sente que
está perdendo o controle. (CASTELLS,
2013, p. 179-180)
52

O que marcou as manifestações de junho de


2013 foi, portanto, a horizontalidade (não inter-
mediação) e a indignação fragmentada, no sen-
tido de se voltar para vários aspectos políticos. O
que marcou foi a confluência de várias demandas
convivendo em um mesmo espaço plural, muitas
vezes propostas até contraditórias, mas convi-
vendo em um espaço de tolerância e de diversi-
dade.
Esse contexto revela-se muito diferente do que
foram as manifestações de 2015 e 2016. Ali estava
muito claro o símbolo da polarização: a neces-
sidade de se colocar um muro na Esplanada1,
separando os que eram pró dos que eram con-
tra o impeachment. As “cortinas de ferro” típicas
do século XX, da era das polarizações ideológi-
cas, figuravam em um contexto político e social
que recém experimentara manifestar-se de uma
forma plural e democrática.
De volta ao “contexto muro”, os brasileiros
vivenciaram dias de profunda imersão na expe-
riência de constelação de complexos em ambien-
tes de trabalho, salas de aula e plataformas vir-
tuais. Luz versus sombra, coxinhas e mortadelas,
o bem e o mal, mocinhos e bandidos, ... Era
difícil sair ileso às discussões e optar por estar
em cima do muro. O clima era de real polariza-
1 É possível ver essas diferenças pelas imagens apresenta-
das nos anexos 3 e 4.
53

ção e todos queriam posicionar uns aos outros


em algum dos dois lados do muro, para saber se
estavam conversando com um “amigo” ou com
um “inimigo”. E assim passamos por um período
de “caça às bruxas” que se intensificou na corrida
presidencial de 2018. Mas o que está mais apa-
rente, cada vez mais, é que a parte sombria das
organizações políticas não está em partido A, ou
em partido B. Está no sistema político como um
todo. Assim como está em todos nós. O sistema
político representa o simulacro da vida humana
em sociedade. E não há nada de estranho que
nele se reproduzam todas as sombras que exis-
tem na nossa sociedade, uma vez que a represen-
tação representa o que se tem para representar.
Mas nessa mesma esteira de análise de con-
texto em que se pode observar novas perspec-
tivas de consideração da sombra de forma mais
caleidoscópica no sistema político como um
todo, envolvendo todos os partidos, ainda vemos
ranços da tentativa de enquadrar a dicotomia;
a polarização rasa do tipo pensamento infantil
“mocinhos versus bandidos”; “ursinhos carinho-
sos verus coração gelado e malvado”. Esse tipo de
pensamento polarizado vai conviver com o tipo
que chamamos aqui de caleidoscópico.
No tipo polarizado, continuaremos a encon-
trar aquelas nuances de luz e sombra que vão
54

projetar a luz nos operadores da Lava Jato – a


própria apresentação de Deltan Dallagnol colo-
cando Lula no centro do sistema que ele deno-
mina de propinocracia é bastante enviesada nesse
mesmo sentido2 – por exemplo, ou na ministra
do STF, Cármen Lúcia, como espécies de messias
políticos que vão salvar a pátria de toda a som-
bra: “Estes sim seriam personagens da luz, 100%
corretos”. Mais recentemente, na corrida pre-
sidencial de 2018, esse jogo de luz e sombra foi
atualizado e temos o candidato Bolsonaro - reve-
renciado como “mito” por seus seguidores – que
se declara antissistema, no sentido de combater
todo o mal e defender os “cidadãos de bem”, mui-
tas vezes empunhando uma arma fictícia ou ver-
dadeira. O contexto de polarização do processo
de impeachment sofreu uma escalada de projeção
do mal no outro que se torna cada vez mais pato-
lógico, chegando a colocar em risco os direitos
de minorias e grupos historicamente marginali-
zados.

2 Sobre esta apresentação ver anexo 2.


55

3.2. Do movimento social caleidoscópico à


polarização política: o processo de criação
do inimigo e a mente do homo hostilis

A partir da seção 3.1 podemos notar que,
seguido um fenômeno de manifestação popular
característico do século XXI, involuímos para as
características marcantes do século XX, em um
movimento pendular. Para alguns autores que
estudam pensamento político, esta caraterística
da tendência à retomada ao pensamento polari-
zado marca a história das sociedades de várias
maneiras e em vários tempos:

Em termos de país, de raça, de religião


ou de qualquer outra identidade cole-
tiva, podemos observar que a criação
do inimigo é realizada em proporções
míticas, dramáticas e muitas vezes trá-
gicas. Guerras, cruzadas e persegui-
ções constituem o terrível patrimônio
dessa forma da sombra humana, que
é, até certo ponto, um legado da nossa
herança tribal instintiva. As maiores
crueldades na história da humanidade
foram praticadas em nome de causas
virtuosas, quando as sombras de nações
inteiras se projetaram sobre a face de
um inimigo; e, assim, um grupo “dife-
rente” pode ser transformado em ini-
56

migo, em bode expiatório ou em infiel.


(ZWEIG; ABRAMS, 1991, p. 217)

Já vimos no Capítulo 2 – Velha Ética e Nova
Ética ou a psicologia do bode expiatório e a psi-
cologia profunda – que o Mal presente na men-
talidade coletiva quando não integrado individu-
almente recai no tema da sombra projetada no
tecido social e político da humanidade. No ensaio
“O criador de inimigos”, Keen (1991) descreve o
processo de criação do inimigo e explora a mente
daquele a quem chama homo hostilis, o “homem
hostil”. O homo hostilis é incuravelmente dualista,
um maniqueísta moralista:

Geração após geração, encontramos


desculpas para odiar e desumanizar uns
aos outros e sempre nos justificamos
com a retórica política que nos parece
mais amadurecida. E nos recusamos a
admitir o óbvio. Nós, seres humanos,
somos Homo hostilis (“homem hostil”),
a espécie hostil, o animal que fabrica
inimigos. Somos levados a fabricar
um inimigo como um bode expiatório
para carregar o fardo da inimizade que
reprimimos. Do resíduo inconsciente
da nossa hostilidade, criamos um alvo;
dos nossos demônios particulares, con-
juramos um inimigo público. E, mais
57

que tudo, talvez as guerras em que nos


envolvemos sejam rituais compulsivos,
dramas da sombra nos quais continu-
amente tentamos matar aquelas partes
de nós mesmos que negamos e despre-
zamos. (KEEN, 1991, p. 220)

O homo hostilis cria no pensamento político


polarizado uma simbiose hostil, um sistema inte-
grado que garantiria que nenhum dos polos teria
que se confrontar com sua própria sombra:

“(...) a pessoa ou nação paranoica criará


um sistema de ilusão compartilhado,
uma paranoia à deux. O “sistema de
inimigo” envolve um processo de dois
ou mais inimigos que lançam seu lixo
psicológico (inconsciente) no quintal
uns dos outros. Atribuímos a eles tudo
aquilo que desprezamos em nós mes-
mos. E vice-versa. Já que esse processo
de projeção inconsciente da sombra é
universal, os inimigos “precisam” um
do outro para se livrar das toxinas psi-
cológicas acumuladas e reprimidas.
Formamos um laço de ódio, uma “sim-
biose hostil”, um sistema integrado que
garante que nenhum de nós será con-
frontado com a sua própria sombra.
(KEEN, 1991, p 222-223)
58

Um exemplo clássico desse sistema de sim-


biose hostil garantidor do não enfrentamento
recíproco da sombra foi o conflito da Guerra Fria
entre a U.R.S.S. e os Estados Unidos: um precisa
do outro como alvo de transferências grupais. O
analista junguiano Jerome Bernstein (1991) exa-
minou a natureza das projeções da sombra que
os norte-americanos, os soviéticos e seus respec-
tivos governos lançaram um sobre o outro:

Cada lado acreditava que o sistema


político do outro era a raiz de todas
as injustiças sociais e de todo o mal
que existe no mundo. Como resul-
tado, cada um deles comprometeu-se
ideologicamente a eliminar o sistema
sócio-político do outro. Esse ponto de
vista colocou-os num conflito imediato
com sua auto-imagem de defensores da
paz mundial e da liberdade, já que cada
lado fazia uso de táticas de subversão e
violência para provocar a extinção do
sistema do outro — onde quer que exis-
tisse. (BERNSTEIN, 1991, p. 237)

Segundo o autor, o arquétipo da sombra era a


mais ativa, explosiva e perigosa energia psíquica
operante entre as duas superpotências. A dinâ-
mica da sombra pode crescer ou minguar, mas
59

nunca desaparecerá. Ela sempre ressurge sob


alguma outra forma, ou um novo alvo, por qual-
quer um desses países ou por ambos.
Desse modo, a dinâmica da sombra na sim-
biose hostil seria parte constituinte do pensa-
mento político, ora mais presente, ora menos
presente no tecido social e político. No Brasil
não seria diferente, vivemos tempos em que essa
dinâmica estava minguada, cresceu sobrema-
neira durante o processo de impleachment da
presidente Dilma Roussef, permaneceu de forma
latente como pano de fundo do governo Temer,
e ressurgiu com muita força, em uma onda arra-
sadora trazida por um candidato extremista que
se apresentou nestas eleições presidenciais, com
forte adesão popular, grande parte desta adesão
por um público anti-petista, já funcionando em
uma dinâmica de sombra.
Sobre este último ponto – eleições presiden-
ciais – será apresentado na próxima sessão deste
capítulo, como esse meandro político envolve
expectativas e uma capacidade de análise extre-
mamente infantis e rasas. O movimento de saída
do pensamento polarizado e a ampliação para
uma leitura mais caleidoscópica da realidade,
para ser realmente empoderador, poderia ser
acompanhado também por uma saída sistêmica
da condição do que aqui denominaremos de
60

eleitor puer. Essas ideias serão tratadas na seção


seguinte.

3.3 A infantilização do pensamento político:


a espera de um messias político que resol-
veria todos os problemas da nação

Alguns anos já se passaram desde a redemo-


cratização brasileira, e aquele entusiasmo inicial
de que a abertura democrática e o direito de ele-
ger nossos prefeitos, governadores e presidente
da República seriam garantias de liberdade, de
participação, de segurança, de desenvolvimento,
de emprego, de justiça social ficou para trás.
Enfrentamos um cenário de sensações bastante
diversas quando o tema é política no Brasil. Há
uma imensa relação que se faz entre a política e
a politicagem (forma corrupta de praticar a polí-
tica).
Para entender um pouco mais a dinâmica do
pensamento político brasileiro hoje, teríamos
que compreender como se deu a trajetória da
cidadania no Brasil.
Para começar, vamos entender que conceito é
esse que chamamos cidadania.
A cidadania é um conceito que engloba várias
dimensões de direitos: os direitos civis, políticos
e sociais.
61

Os direitos civis são os mais básicos, são


chamados também de direitos de primeira
geração, primeiros garantidores de uma vida
em sociedade. São também conhecidos como
direitos negativos e ligados às liberdades
individuais. Dentre eles, podemos citar: o direito
à vida, à propriedade, à garantia de ir e vir, de
manifestar o pensamento, de acesso à justiça, à
justiça independente, entre outros.
Os direitos políticos se referem à participação
do cidadão no governo da sociedade: direito de
votar, de ser votado, de organizar partidos, de um
parlamento livre e representativo, entre outros.
Quanto aos direitos sociais, temos que:

Se os direitos civis garantem a vida


em sociedade, se os direitos políticos
garantem a participação no governo
da sociedade, os direitos sociais garan-
tem a participação na riqueza cole-
tiva. Eles incluem o direito à educa-
ção, ao trabalho, ao salário justo, à
saúde, à aposentadoria. A garantia de
sua vigência depende da existência de
uma eficiente máquina administrativa
do Poder Executivo. (…) Os direitos
sociais permitem às sociedades politi-
camente organizadas reduzir os exces-
sos de desigualdade produzidos pelo
62

capitalismo e garantir um mínimo de


bem-estar para todos. A ideia central
em que se baseiam é a da justiça social.
(CARVALHO, 2004, p. 10)

O autor que desenvolveu a distinção entre as


várias dimensões da cidadania, Thomas Mar-
shall, sugeriu também que ela, a cidadania, se
desenvolveu na Inglaterra com muita lentidão.
Primeiro vieram os direitos civis, no século
XVIII. Depois, no século XIX, surgiram os
direitos políticos. Finalmente, os direitos sociais
foram conquistados no século XX. Segundo ele,
não se trata de uma sequência apenas cronoló-
gica: ela é também lógica. Foi com base no exer-
cício dos direitos civis, nas liberdades civis, que
os ingleses reivindicaram o direito de votar, de
participar do governo de seu país. A participa-
ção permitiu a eleição de operários e a criação do
Partido Trabalhista, que foram os responsáveis
pela introdução dos direitos sociais.
O percurso inglês foi apenas um entre outros.
A França, a Alemanha, os Estados Unidos, cada
país seguiu seu próprio caminho. O Brasil não
é exceção. Se compararmos com a Inglaterra, a
sequência dos direitos no Brasil foi invertida.
63

A cronologia e a lógica da sequência


descrita por Marshall foram invertidas
no Brasil. Aqui, primeiro vieram os
direitos sociais, implantados em perí-
odo de supressão dos direitos políticos
e de redução dos direitos civis por um
ditador que se tornou popular. Depois
vieram os direitos políticos, de maneira
também bizarra. A maior expansão do
direito do voto deu-se em outro perí-
odo ditatorial, em que os órgãos de
representação política foram transfor-
mados em peça decorativa do regime.
Finalmente, ainda hoje muitos direitos
civis, a base da sequência de Marshall,
continuam inacessíveis à maioria da
população. A pirâmide dos direitos foi
colocada de cabeça para baixo. (CAR-
VALHO, 2004, p. 219-220)

Qual a consequência dessa pirâmide invertida


dos direitos no Brasil?

Uma consequência importante é a


excessiva valorização do Poder Exe-
cutivo. Se os direitos sociais foram
implantados em períodos ditatoriais,
em que o Legislativo ou estava fechado
ou era apenas decorativo, cria-se a ima-
gem, para o grosso da população, da
64

centralidade do Executivo. O governo


aparece como o ramo mais importante
do poder (…). (CARVALHO, 2004:
221).

Nessa perspectiva, como os direitos sociais


“caíram no colo”, criou-se uma espécie de cultura
política em que se espera que “as coisas sejam
resolvidas de cima pra baixo”. Cria-se uma pas-
sividade e a espera de que a realidade seja resol-
vida, sem a perspectiva daquele que espera de
que ele também faz parte do processo político. O
processo político seria deslocado somente para
o externo e para uma espera de que alguém irá
fazer o que tem que ser feito. O cidadão nesse
sentido fica desempoderado, como uma criança
que depende de um adulto para fazer por ela na
vida em sociedade.
Assim, as expectativas ficam centralizadas no
Executivo nacional: “Ligada à preferência pelo
Executivo está a busca por um messias polí-
tico, por um salvador da pátria.” (CARVALHO,
2004, p. 221). Nesse sentido, há uma valorização
muito maior das eleições do Executivo nacional
em detrimento às eleições das outras esferas
federais e dos Legislativos. Há também um
desconhecimento/desinteresse/desinformação
do funcionamento inter e intragovernamental,
de modo que todos os problemas do país pas-
65

sam a ser projetados na figura da(o) presidente.


Problemas que seriam da alçada de outras esferas
federais ou de outro ramo de Poder são sempre
relacionados com o Executivo Federal, criando-
se uma análise de contexto desconectada da rea-
lidade.
Essa cultura de valorização do Executivo e
com alto teor de passividade do cidadão frente
o Estado cria o que o autor chama de “estada-
nia”, em contraste com a cidadania: “A inversão
da sequência dos direitos reforçou entre nós a
supremacia do Estado. Se há algo importante
a fazer em termos de consolidação democrá-
tica, é reforçar a organização da sociedade para
dar embasamento social ao político, isto é, para
democratizar o poder.” (CARVALHO, 2004, p.
227).
A partir dessa leitura, vemos que o pensa-
mento político é extremamente influenciado por
aspectos do desenvolvimento da cidadania. E que
uma cidadania plena depende de uma mudança
interna de perspectiva dos próprios brasileiros.
Em vez de esperar por um messias político que
virá nas próximas eleições, o pensamento polí-
tico brasileiro pode inverter essa lógica de passi-
vidade frente a pessoas – como em um complexo
materno ou paterno, via conceito de estadania - e
pleitear autonomamente seus direitos de cidada-
66

nia frente às instituições que já preveem canais


de acesso autônomo e democrático de participa-
ção política.
Essa posição de passividade da estadania lem-
bra um pouco a posição do puer na linha de Jung
e von Franz:

(...), von Franz acompanha Jung ao


identificar o puer como o arquétipo da
criança e em conceber este arquétipo
como possuidor de duas naturezas. Por
um lado, ele é renovação da vida; por
outro, é a sombra de infantilidade que
todos nós carregamos. Esta infantili-
dade deve ser sacrificada, pois ela sem-
pre nos puxa para trás, nos mantendo
dependentes, preguiçosos, fugindo dos
problemas e das responsabilidades da
vida, (...). (BERNARDI, 2008, p 31,
grifo nosso)

A espera de que as coisas sejam resolvidas de


“cima para baixo”, sem a perspectiva daquele que
espera de que ele também faz parte do processo
político parece-se com essa sombra de infantili-
dade ligada à fuga dos problemas e responsabi-
lidades da vida em sociedade. O cidadão puer,
desempoderado, fica à mercê do adulto/messias/
ser de luz que fará por ele na vida em sociedade.
67

Essa posição traz “ganhos” no sentido de manu-


tenção do indivíduo em sua zona de conforto, a
sua não implicação em ser corresponsável pelos
desígnios sociais. E, além de tudo, é uma posição
que é mantenedora do status quo.
Se eu não faço nada, e só espero que seja feito,
enquanto eu espero, tudo se mantém exatamente
como está. Então o indivíduo que não se pensa
partícipe dos processos, que se abstém para se
colocar em uma posição de passividade, ele está
contribuindo para que tudo permaneça exata-
mente como está. Essa omissão do eleitor puer
que pensa a política de quatro em quatro anos,
nas eleições presidenciais, traz consigo a ideia de
que a simples mudança de um ator político pode-
ria mudar como em um passe de mágica tudo o
que se passa nas várias esferas inter e intragover-
namentais, independentemente dos aspectos sis-
têmicos que permaneceriam. Dentre os aspectos
sistêmicos que permaneceriam está a sua própria
posição de puer político aeternus.
69

Considerações finais

Ao longo deste livro vimos como a polariza-


ção política vivida na atualidade brasileira pode
ser lida à luz da psicologia junguiana, através de
conceitos como complexo, projeções, sombra e
persona (Capítulo 1), a Velha Ética (Capítulo 2),
a criação do inimigo pelo homo hostilis e a sim-
biose hostil garantidora do não enfrentamento
recíproco da sombra (Seção 3.2). E, por último,
ampliamos um pouco mais para além da pola-
rização em si, olhando para o pensamento polí-
tico brasileiro de uma forma mais abrangente,
trazendo a perspectiva do puer político aeternus
(Seção 3.3).
Vimos que sombra e persona são um par
clássico de opostos, figurando na psique como
polaridades do ego. Uma vez que a tarefa central
do desenvolvimento psicológico é a integração,
e a totalidade é o valor supremo, como integrar
persona e sombra nos pensamentos polarizados?
Segundo Stein (2006), as pessoas mudam com
terapia e no decorrer do seu desenvolvimento
vital. A persona, como um instrumento de adap-
tação, tem grande potencial para mudança. Pode
tornar-se cada vez mais flexível, dado que o ego
está disposto a modificar antigos padrões.
70

Do ponto de vista sistêmico, como mudar esse


padrão de pensamento polarizado? Seria possível
um mecanismo social para desempenhar uma
ampla função transcendente capaz de transformá
-lo em caleidoscópico? Alguma política pública
nesse sentido seria possível? Seria interessante
para as autoridades governamentais implemen-
tar políticas públicas de amadurecimento e con-
sequente empoderamento do pensamento polí-
tico para os cidadãos? Que essas inquietações
possam nortear algumas reflexões mais amplas e
que o simples exercício reflexivo nesse sentido já
nos traga um giro caleidoscópico.
Segundo Keen (1991, p. 221):

Os heróis e líderes pacifistas do nosso


tempo serão aqueles homens e mulhe-
res com coragem para mergulhar nas
trevas no fundo da psique pessoal e
coletiva, e enfrentar o inimigo interior.
As psicologias de profundidade nos
presentearam com a inegável sabedoria
de que o inimigo é construído a partir
de aspectos reprimidos do self. Por-
tanto, o mandamento radical “Ama a
teus inimigos como a ti mesmo” indica
o caminho tanto para o autoconheci-
mento como para a paz. Na verdade,
amamos ou odiamos nossos inimigos
na mesma medida em que amamos ou
71

odiamos a nós mesmos. Na imagem do


inimigo, encontraremos o espelho no
qual podemos ver a nossa própria face
com a máxima clareza.

Vimos no Capítulo 2 – Velha Ética e Nova


Ética ou a psicologia do bode expiatório e a psi-
cologia profunda – que o Mal presente na menta-
lidade coletiva, quando não integrado individu-
almente, recai no tema da sombra projetada no
tecido social e político da humanidade.
Ao longo do livro, vimos que o processo de
polarização que se iniciou nas eleições presiden-
ciais de 2014, a qual apresentou a menor dife-
rença de votos em uma eleição de segundo turno,
desde a redemocratização, tornou-se ainda mais
marcada ao longo do processo de impedimento
da ex-presidente Dilma Roussef.
Ali estava muito claro o símbolo da polari-
zação: a necessidade de se colocar um muro na
Esplanada, separando os que eram pró dos que
eram contra o impeachment. As “cortinas de
ferro” típicas do século XX, da era das polari-
zações ideológicas, figuravam em um contexto
político e social que recém experimentara mani-
festar-se de uma forma plural e democrática em
2013.
72

De volta ao “contexto muro”, os brasileiros


vivenciaram dias de profunda imersão na dinâ-
mica de projeção cruzada da simbiose hostil: luz
versus sombra, coxinhas e mortadelas, o bem e o
mal, mocinhos e bandidos, ...
A polarização permaneceu de forma latente
como pano de fundo do governo Temer e ressur-
giu com muita força, em uma onda arrasadora
trazida por um candidato extremista que se apre-
sentou nestas eleições presidenciais, com forte
adesão popular, grande parte dessa adesão por
um público antipetista, já funcionando em uma
dinâmica de sombra.
A projeção de sombra do movimento antipe-
tista foi agravada pelo fenômeno das fake news,
voltadas justamente para apelar para o campo
dos afetos, sucumbindo o indivíduo pensante
cada vez mais para o entorpecimento da proje-
ção da sombra no outro, ficando cada vez mais
à deriva de uma lucidez ancorada em fatos reais.
Nesse sentido, o contexto de polarização polí-
tica do processo de impeachment – representado
imageticamente pelo muro na Esplanada – em
seu jogo de luz e sombra – sofreu uma escalada
de projeção do mal no outro que se torna cada vez
mais patológico, chegando a colocar em risco os
direitos de minorias e de grupos historicamente
marginalizados.
73

Dessa forma, temos uma nova atualização da


simbiose hostil, uma nova dança das projeções
cruzadas, que agora não se encontra mais den-
tro de parâmetros já conhecidos ao longo desses
trinta anos de Constituição. Não é o contexto
corriqueiro de disputa presidencial no segundo
turno entre PT versus PSDB.
Na atual corrida presidencial, vemos que o
homo hostilis de Keen (1991) – incuravelmente
dualista, um maniqueísta moralista – é conste-
lado em uma via de escolha presidencial com
forte adesão do eleitorado que já se encontrava
estruturalmente à espera de um messias político,
um salvador da pátria (conforme vimos na seção
3.3).
O que se vê no movimento de apoio a Bolso-
naro, daqueles que se dizem “homens de bem”, é
justamente a concretização da Velha Ética. Nesse
contexto aparece a figura do bode expiatório. O
mal não é reconhecido como mal pessoal e passa
a ser experimentado como estranho, sendo pro-
jetado nos estrangeiros, nas minorias, nos mar-
ginalizados, no PT. A sombra não reconhecida
pela consciência é situada fora dela. A sombra é
ameaçadora para a velha ética porque contradiz
a imaginação do ego de se identificar totalmente
com os valores.
74

Para a Nova Ética, somente aquele que assu-


miu o problema de sua sombra, que se conscien-
tizou do seu próprio lado negativo, pode agir eti-
camente. A personalidade total é necessária para
o comportamento ético da nova ética.
Por que a homossexualidade incomoda parte
dos conservadores que apoiam Bolsonaro? Por-
que transita por conteúdos não integrados inter-
namente por eles. Se o que está fora ameaça é
porque não está bem trabalhado dentro. Não há
interlocução com aqueles conteúdos sombrios,
porque não dialogam com o regime de verdade
do ego.
A Nova Ética quer assumir os conteúdos
inconscientes e, para integrá-los à consciência
precisa reelaborá-los, faz-se então necessária
uma reintegração. A tarefa essencial da Nova
Ética é conseguir alcançar uma síntese dos
opostos, uma integração das partes dissociadas
e inimigas no sistema de vida do indivíduo. Ela
almeja a união dos contrários em uma estrutura
unitária, não mais divisão, diferenciação, sepa-
ração e cisão. Assim, ela produz a globalidade,
a totalidade da personalidade. O ego passa a ser
responsável pela aliança dos povos.
A atenção da Nova Ética não está em ser bom,
mas na autonomia do indivíduo, em ele estar
são, e que não seja psiquicamente “infeccioso”,
75

que não negue o negativo. O que vemos no


movimento bolsonarista são inúmeras pessoas
“saindo do armário” no sentido de revelarem
seus conteúdos sombrios ainda não conscientes,
agindo inconscientemente de forma infecciosa e
nociva para a sociedade.
Ações opressoras – como a da polícia no caso
de Verônica Bolina, ou o assassinato de Marielle
Franco – passam a ser reforçadas e legitimadas
quando o discurso do bode expiatório é propa-
gado pelo próprio futuro presidente da Repú-
blica.
Na nova ética, o indivíduo necessita assumir
corajosamente a parte do mal que lhe cabe e ela-
borá-lo; assumir aquilo que ele é e ter a coragem
moral de querer não ser melhor do que ele é. Na
Nova Ética, a pessoa precisa ser levada em consi-
deração: as diversidades na consciência e na per-
sonalidade ligam-se aos diferentes graus éticos
de responsabilidade.
A Nova Ética não está interessada na punição.
A necessidade é de elaborar o mal, tomando-o
em suas próprias mãos autonomamente. A cons-
cientização passa a ser um compromisso ético. A
verdade refere-se à relação real entre o ego e o
inconsciente. A consciência é estabelecida como
instância para controlar e produzir a relação
de totalidade do psíquico: “A repressão do mal,
76

sempre acompanhada por auto-supravaloriza-


ção inflacionalística, é má, ainda quando parte
de uma ‘boa intenção’ ou de uma ‘boa vontade’.”
(NEUMANN, 1991, p. 92).
Através do encontro interno com a própria
Sombra, ocorre uma liberação dos opostos. É o
giro caleidoscópico que falamos aqui. É um estar
no mundo revigorado e aprofundado. O indiví-
duo torna-se assim corresponsável, partícipe dos
processos coletivos de transformação, ao invés
de empurrar o seu mal para o outro, como ocorre
na psicologia do bode expiatório.
Estamos vivendo na atualidade uma nova sim-
biose hostil, envolvidos nas garras do arquétipo
da sombra, grupos se entrechocam na dança das
projeções cruzadas; só que agora esta dança se dá
em novo terreno, com movimentos que podem
transgredir a maleabilidade da malha institucio-
nal e cair, de fato, na barbárie. Nenhum dos lados
da polarização está isento, tanto a ação quanto a
reação, tanto a posição quanto a futura oposição
têm de estar atentos à importância do giro calei-
doscópico para sua própria lucidez e integração
da diversidade em sua totalidade. Como vimos:

(...) a pessoa ou nação paranoica


criará um sistema de ilusão com-
partilhado, uma paranoia à deux.
77

O “sistema de inimigo” envolve


um processo de dois ou mais ini-
migos que lançam seu lixo psicoló-
gico (inconsciente) no quintal uns
dos outros. Atribuímos a eles tudo
aquilo que desprezamos em nós
mesmos. E vice-versa. Já que esse
processo de projeção inconsciente
da sombra é universal, os inimigos
“precisam” um do outro para se
livrar das toxinas psicológicas acu-
muladas e reprimidas. Formamos
um laço de ódio, uma “simbiose
hostil”, um sistema integrado que
garante que nenhum de nós será
confrontado com a sua própria
sombra. (KEEN, 1991, p. 222-223)
79

Posfácio
Waldemar Magaldi Filho1

A leitura deste livro proporciona a ampliação


do contexto de polarização política que o Brasil e
o mundo estão sofrendo. As causas são multifa-
toriais, porque os complexos coletivos, que estão
constelados, abrangem muitos arquétipos e mirí-
ades de imagens com enorme antagonismo entre
elas. Jung, nos seus estudos a respeito do desen-
volvimento da personalidade e evolução da cons-
ciência humana, brilhantemente, em seu livro:
“Resposta a Jó”, nos apresenta a hipótese de que
toda expressão violenta, territorialista, vaidosa,
autoritarista, machista, tirana e cruel, descrita no
antigo testamento, após o confronto de Javé com
Jó, possibilitou o despertar da alteridade divina,
onde Javé, ou Deus, evolutivamente, precisou
encarnar como Cristo, anunciando o início da
desconstrução do patriarcado dominante, para
iniciar o surgimento da alteridade, onde a hie-
rarquia dará lugar à sinarquia, a exclusão à inclu-
são igualitária e o ódio ao amor ágape. Como
sabemos, diante das crises, principalmente esta
que está trazendo mudança de paradigma, seria
1 Fundador e analista junguiano didata do IJEP – Instituto
Junguiano de Ensino e Pesquisa.  
80

inevitável o surgimento das defesas extremistas


e, neste caso, o sistema dominante está reagindo
violentamente para não abrir mão do patriar-
cado vigente, com seu poder excludente e hie-
rarquizante, do territorialismo e dos muros. Ati-
vando muito mais medo e todos os mecanismos
de defesa possíveis!
Somado a esse medo do novo sistema que está
por vir, temos toda a cultura do imediatismo
e do consumismo hedônico, onde as relações
são liquidas, porque os sujeitos estão vazios de
sentimentos. Precisamos compreender como as
potencialidades arquetípicas de Ares e Atena,
deuses gregos que nasceram sem a semente do
seu gênero sexual, e seus desdobramentos/epíte-
tos: Phobos, Terror, Discórdia, Harmonia, Fúrias
e Vingança, interagiram e ainda interagem em
nós, levando aos extremos do temor aterrori-
zante da tirania e do fascismo ao ódio da corrup-
ção, como se estes elementos não fizessem parte
de nós mesmos. Ou seja, projetamos nos outros
o que mais incomoda em nós, com intenção de
destruí-los. Por isso, estimular reflexões epis-
temologicamente coerentes, para surgir o con-
fronto com a sombra e o terceiro elemento não
dado, a função transcendente, na sua dimensão
simbólica, metafórica e não literal é a saída cria-
tiva. Só assim poderemos reconhecer e aceitar a
sabedoria do Self, tanto para os rumos macro-
81

politicos, quanto nas relações micropoliticas,


agora que a sombra, os complexos e os valores
ideológicos, ficaram expostos. Precisamos seguir
adiante com fé, amor e atenção crítica! Sem per-
der nosso sonho de liberdade, igualdade e frater-
nidade e muita serenidade para lidar com todos
os complexos que estão constelados.
83

Referências

BEMSTEIN, Jerome S. “O espelho EUA-URSS”.


In: ZWEIG, Connie; ABRAMS, Jeremiah (orgs).
Ao Encontro da Sombra. São Paulo: Cultrix,
1991.

BERNARDI, Carlos. “Senex-et-puer: esboço da


psicologia de um arquétipo”. In: MONTEIRO,
D. M. R. (org.) Puer – senex: dinâmicas relacio-
nais. Petrópolis: Vozes, 2008.

CARVALHO. José Murilo de. Cidadania no Bra-


sil: O longo Caminho. Rio de Janeiro: Civiliza-
ção Brasileira, 2009.

CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e espe-


rança: movimentos sociais na era da internet.
Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

JUNG, Carl Gustav. AION Estudos sobre o sim-


bolismo do si-mesmo. Petrópolis: Vozes, 2008.

KEEN, Sam. “O criador de inimigos”. In:


ZWEIG, Connie; ABRAMS, Jeremiah (orgs). Ao
Encontro da Sombra. São Paulo: Cultrix, 1991.

NEUMANN, Erich. Psicologia Profunda e Nova


Ética, São Paulo, Edições Paulinas, 1991
84

SILVEIRA, Nise da. Jung. 16ª ed. rev. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1997.

STEIN, Murray. Jung: o mapa da alma: uma


introdução. 5ª ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

WHITMONT, Edward C. A busca do símbolo:


conceitos básicos de psicologia analítica. São
Paulo: Cultrix, 1990.

ZWEIG, Connie e ABRAMS, Jeremiah (orgs)


Ao Encontro da Sombra. São Paulo: Cultrix,
1991.
ANEXOS
87

Anexo 1 – Eleição apertada de Dilma


e Aécio

Dilma é reeleita na disputa mais apertada


da história; PT ganha 4º mandato

Do UOL, em São Paulo, 26/10/201420h30. Atuali-


zada 28/10/201419h30

Pedro Ladeira/Folhapress

Com a vitória de Dilma Rousseff, o PT chega


ao 4° mandato seguido no governo federal

Após uma campanha de intensa polarização no


segundo turno, a presidente Dilma Rousseff (PT)
foi reeleita neste domingo (26) e impediu a
virada do senador mineiro Aécio Neves, candi-
dato do PSDB - nunca um candidato que ficou
em segundo lugar no primeiro turno foi eleito
presidente do Brasil.
88

Com 100% das urnas apuradas, Dilma obteve


51,64% dos votos e Aécio, 48,36%. A diferença
de votos era de 3,4 milhões. Essa foi a menor
diferença de votos em um segundo turno desde a
redemocratização.
Antes disso, a disputa mais apertada foi em
1989, quando Fernando Collor de Mello (então
no PRN) venceu Luiz Inácio Lula da Silva (PT)
por 4 milhões de votos. Na época, Collor teve
53,03% contra 46,97% de Lula.
Nas outras eleições presidenciais decididas
em duas etapas, a diferença entre o vencedor e o
segundo colocado foi maior. Em 2002, Lula teve
19,4 milhões de votos a mais do que José Serra
(PSDB). Quatro anos depois, Lula foi reeleito
com uma margem ainda maior: 20,7 milhões de
votos a mais do que Geraldo Alckmin (PSDB). Já
na última eleição, a diferença voltou a se estreitar,
e Dilma bateu Serra por 12 milhões de votos.

Fonte: https://eleicoes.uol.com.br/2014/noti-
cias/2014/10/26/dilma-cresce-na-reta-final-e
-reeleita-e-emplaca-quarto-mandato-do-pt.htm.
Acesso em 09.03.2017.
89

Anexo 2 – Apresentação de Deltan


Dallagnol

Apresentação do MPF para explicar denún-


cia contra Lula vira piada na internet
Uso do programa Power Point gerou memes
nas redes sociais

O Estado de S.Paulo
14 Setembro 2016 | 18h44

Se tudo na internet rende memes,  não seria


diferente com a denúncia contra o ex-presidente
Lula na Lava Jato, apresentada nesta quarta-feira,
14. Só que desta vez o que fez sucesso nas redes
sociais foi a apresentação no programa Power-
Point feita pelos procuradores do Ministério
Público para apresentar as acusações.
Cheio de gráficos, setas e palavras cortadas, o
documento foi alvo de várias montagens entre os
internautas.  
O comoção foi tanta que o Movimento Brasil
Livre já começou a vender uma camiseta repro-
duzindo o anagrama apresentado durante a
entrevista coletiva.  Batizada de “Lula centro da
treta”, a peça reproduz um slide apresentado pelo
procurador Deltan Dallagnol.  Na peça, o nome
90

de Lula é circundado por expressões como”pe-


trolão e propinocracia”, “maior beneficiado”,
“enriquecimento ilícito”, “perpetuação criminosa
no poder”, “mensalão” e “José Dirceu”.
No início da noite, a palavra “PowerPoint”
estava entre os assuntos mais comentados do
Twitter. Confira:
91
92
93

Fonte: http://politica.estadao.com.br/noticias/
geral,apresentacao-do-mpf-para-explicar-
denuncia-contra-lula-vira-piada-na-inter-
net,10000076037. Acesso em 09.03.2017.
95

Anexo 3 – Manifestações de junho de


2013
97

Anexo 4 – Manifestações pró e contra


o impeachment (2015 e 2016)
Este livro foi composto com as fontes Minion Pro e
Myriad Pro para a Editora IBPAD.
Brasília, janeiro de 2019

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