Você está na página 1de 7

EDIÇÃO ESPECIAL ANIVERSÁRIO 10 ANOS

A R T E E C U LT U R A C O N T E M P O R Â N E A
JUL/AGO/SE T 2021 VOL. 10 N. 51

COMUNIDADES
Xapiri (2012), de Gisela Motta e Leandro Lima
Laymert Garcia dos Santos e Stella Senra
Bruce Albert

XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX

ANITA EKMAN MAHKU BROOK GARRU ANDREW MIGUEL CHIKAOKA ABEL RODRÍGUEZ
GÊ VIANA JAIDER ESBELL ALINE ROCHEDO PACHAMAMA LABÔ YOUNG GUSTAVO CABOCO
TERRITÓRIO

TERRA DE ARTE,
MEDITAÇÃO
E CONFLITOS: NO SUDESTE

MARABÁ DO PARÁ, O
POTENCIAL DE
UMA CIDADE
PARA ESCREVER
UMA CENA
PULSANTE,
MARISA MOKARZEL
MESMO QUE
INVADIDA POR
ADVERSIDADES E
AGRAVADA COM
O RETROCESSO
POLÍTICO
QUE AFETOU
A CULTURA
BRASILEIRA

Castanheiras de Eldorado dos Carajás (1999), monumento erguido por Dan Baron e
a comunidade local, com 19 troncos da árvore da castanha, no lugar do massacre de
trabalhadores rurais pela polícia em 1996

FOTO: CORTESIA GIL VIEIRA


NA BUSCA DE MINERAIS PARA QUE PUDESSE
ENERGIZAR SEU CORPO E PROSSEGUIR EM SUA
32 VIAGEM ESPIRITUAL, MARINA ABRAMOVIC POU- Projeto do Monumento Eldorado Memória (1996), 33
realizado por Oscar Niemeyer a pedido do Movimento
SOU EM MARABÁ. Em meio a blocos de quartzo,
Sem Terra (MST); o arquiteto e trabalhadores rurais
reclinou a cabeça sobre o cristal e deitou-se sobre ao lado do monumento, no Rio de Janeiro, em 1996; na
o banco de ferro para sentir o poder da alquimia página ao lado, reprodução da obra em parede do campus
vinda da terra, dos cristais. Ali, naquele campo da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará
magnético, realizou uma das versões de Waiting
for an Idea (1991). Abramovic esteve em Marabá
durante a Eco-92, integrando o projeto Arte Ama-
zonas, apresentado pelo Instituto Goethe de Bra-
sília. O projeto teve a participação de 27 artistas
do Brasil e de outros países e se propunha refletir,
no próprio território amazônico, as questões am-
bientais pelo viés da arte contemporânea.
No catálogo havia o texto Réquiem Tropical, do
antropólogo Darcy Ribeiro, que, a partir da sua
vivência na floresta, concluía que as imagens da
Amazônia tanto correspondiam ao “Inferno-Ver-
de como ao Paraíso-Terrenal”. E, quanto à ideia
de povoar a região, possuía visão crítica, afirman-
do que “o que se está fazendo não é instalar ali
as populações excedentes de outras áreas. É, isto
sim, entregar a Amazônia à especulação fundiá-
ria”. Situada entre dois rios, o Tocantins e o Ita-
caiúnas, Marabá é uma cidade marcada por forte
migração e atravessada por megaprojetos, gerida
por ciclos econômicos que envolvem a extra-
ção mineral, o extrativismo vegetal e o negócio
agropecuário. Seu programa de desenvolvimento
produz tanto riqueza como violência e conflitos
de terra. Numa luta desigual, quatro anos após o
Arte Amazonas, em 1996, ocorre o Massacre de
Eldorado do Carajás, quando, armados de pau e
pedra, os trabalhadores rurais se defendem da
polícia, que, no solo, deixa a mancha de sangue
dos 19 sem-terra assassinados. A tragédia acon-
teceu na Curva do S, local onde participantes do
Movimento Sem Terra (MST) se encontravam
acampados. O episódio nunca seria esquecido.
Naquele mesmo ano, o MST procura Oscar Nie-
meyer para a construção de um monumento às
vítimas de Eldorado do Carajás; e, de acordo com
o pesquisador Gil Vieira Costa, “em julho daquele
ano, o projeto já estava elaborado”. O Monumento
Eldorado Memória (1996), no entanto, logo sofreu
ameaças, e a sua destruição, esclarece Vieira, acon-
tece em um momento de tensão entre o MST e a
União Democrática Ruralista (UDR).

VOL. 10 / N. 51 JUL/AGO/SET 2021


FOTOS: REPRODUÇÃO; DOMINGOS PEIXOTO/AGÊNCIA O GLOBO; HALLEL/WIKIMEDIA COMMONS FOTO: MATHEUS BELÉM
34 35

À esq., o antigo Galpão das Artes de Marabá (GAM), criado em 1997 e hoje vazio;
abaixo, vista e detalhe da instalação Casa Temática: El Dorado (1996),
de Klinger Carvalho, que homenageia as vítimas do massacre de Carajás

dedicaram ao tema encontra-se Klinger Carvalho, que, ainda em 1996,


realiza em Belém a instalação Casa Temática: El Dorado, exposta no
Museu do Estado do Pará. Fazendo alusão às casas de taipa existentes
na região, constrói 19 túmulos-casas feitos de barro e cipó. Cada “casa”
recebe uma pequena placa de vidro manchada de sangue, identifica-
da apenas com a letra C e um número, correspondente a cada corpo
morto. A instalação depois se expande, ocupando a praça em frente ao
edifício do museu. Marcone Moreira também criou uma obra que se
reporta ao massacre, o díptico fotográfico Ausente Presença (2013), e
traz a junção de duas fotografias: uma, com as marcas de pés no barro,
sobrepostas por outros modelados em argila; a outra foto é da placa
com o nome dos 19 mortos que integra a obra de Don Baron e MST.
Em seu ensaio Necropolítica (2011), Achille Mbembe confirma que esse
tipo de soberania do poder político e econômico consiste em exercer o
ARTE E MEMÓRIA controle da mortalidade, em última instância definir quem deve viver
Em 1999, outra obra seria erguida no mesmo ou morrer. Os discursos promovidos por Klinger Carvalho e Marcone
local em que ocorreu o massacre. Desta vez de Moreira manifestam-se sobre as cruéis armadilhas que geram tantos
autoria do arte-educador Dan Baron Cohen, massacres e varrem do sistema da vida os que são considerados indese-
em parceria com integrantes do MST. O gaulês jados, sejam trabalhadores rurais, indígenas, negros ou os pertencentes
Dan Baron, residente em Marabá, é o idealiza- ao grupo LGBTQIA+. Na cena artística de Marabá existem organiza-
dor do projeto Rios de Encontro, que desen- ções que atuam interceptadas pelo sentimento de indignação, estabele-
volve, com a comunidade, ações colaborativas cendo parcerias com os movimentos sociais, criando redes de atuação.
de caráter socioeducativo. Castanheiras de El- É o caso do Galpão de Artes de Marabá (GAM), que surgiu com a ideia
dorado do Carajás (1999) foi erguida com 19 empreendedora de Mestre Botelho, orientando jovens aprendizes em
troncos da árvore da castanha, representativa direção a uma produção artística industrial. Antônio e Deíze Botelho,
da região e sujeita às queimadas, daí ter sido filhos do Mestre, em 1997, transformaram o espaço artístico-industrial
sugerida pelos trabalhadores como elemento no Galpão das Artes.
escultórico simbólico do massacre. No centro Atuando como importante agente articulador e mobilizador, o GAM
do monumento existe um tronco menor, no passa a operar com a comunidade artística em processos de discussão
qual há uma placa gravada com os nomes dos e reflexão, viabilizando não somente a criação da Associação dos Ar-
19 trabalhadores assassinados. tistas Visuais do Sul e Sudeste do Pará (Arma), mas também de outras
Arte e memória são permeadas pelo massacre associações. Antônio Botelho foi o primeiro presidente da Arma e,
de Eldorado do Carajás. Entre os artistas que se atualmente, Marcone Moreira ocupa a presidência.

VOL. 10 / N. 51 JUL/AGO/SET 2021


FOTOS: CORTESIA ACERVO GAM E ACERVO KLINGER CARVALHO
36 OS DISCURSOS 37

PROMOVIDOS POR
KLINGER CARVALHO
E MARCONE MOREIRA
MANIFESTAM-SE SOBRE
AS CRUÉIS ARMADILHAS
QUE GERAM TANTOS
MASSACRES E VARREM
DO SISTEMA DA VIDA OS
QUE SÃO CONSIDERADOS
INDESEJADOS

Acima, instalação de Antônio Botelho com tábuas de carne


das cozinheiras da comunidade Cabelo Seco;
à dir., Porteira (2013), de Marcone Moreira, ambas
em exposição no Ateliê 397, em São Paulo

PERFORMANCE FLUVIAL
O Programa Rede Nacional Funarte Artes Visuais, Tocantina complementa a denominação. A culminância da ação deu-
em 2013, selecionou o Projeto Carajás Visuais -se com a performance fluvial sobre o Rio Tocantins, em que barcos
Entre Rios e Redes, realizado pela empresa Tal- encenaram o movimento da Buiúna, a Cobra Grande. Além da estética
Ensaio Caos, da série Mil [Quase] Mortos (2018)
lentus Amazônia, coordenada por Deíze Botelho. adotada, havia o propósito de refletir sobre os possíveis impactos so-
O projeto previa o intercâmbio e a interlocução cioambientais que grandes projetos, como o da implantação da Hidro-
entre profissionais das artes visuais das regiões via Araguaia Tocantins ou da Hidrelétrica de Marabá, podem causar.
Norte e Sudeste do Brasil. Tinha como proposta a A mostra Onde o Rio Acaba teve como curadoras Camila Fialho, que
cooperação inter-regional entre Marabá e a cida- esteve em Marabá para conhecer os trabalhos dos artistas da região de
de de São Paulo. Foram pensadas e realizadas três Carajás, e Thaís Rivitti, representante do Ateliê 397. A exposição levou
ações: o I Encontro Cultural de Carajás Entre para São Paulo obras de artistas e ativistas culturais do sul e sudeste
Rios e Redes, que aconteceu em Marabá; a resi- paraenses. A intenção era colocar em pauta questões relevantes para a
dência artística de Mauricio Adinolfi (São Paulo), região, como a transformação do Rio Tocantins em hidrovia, visando o
em colaboração com Marcone Moreira, Antônio escoamento de minério. Os eixos curatoriais foram formados por três
Botelho e mais 30 barqueiros da Associação dos palavras-chave: rio, território e exploração. A abertura da exposição é
Barqueiros Marítimos de Marabá; e a exposição acionada, simbolicamente, pela Porteira (2013), obra concebida por
Onde o Rio Acaba, com artistas de Marabá, reali- Marcone Moreira. Nela estão presentes o ato restritivo de permitir ou
zada no Ateliê 397, em São Paulo. proibir entradas e saídas. O campo rural muitas vezes funciona como
BarcoR (2013) foi o nome dado por Adinolfi às território de conflitos de terra, como área de trabalho escravo, como solo
ações desenvolvidas com os barqueiros. Estética de queimadas, de crimes ambientais.

VOL. 10 / N. 51 JUL/AGO/SET 2021


FOTOS: CORTESIA ACERVO GAM FOTO: MATHEUS BELÉM
38 39

Ausente Presença (2013), díptico fotográfico de Marcone Moreira, com os nomes das 19 vítimas do massacre de Eldorado do Carajás

NOVAS TESSITURAS
Importante perceber a dinâmica das ações, as tra- de terra 11D. A intenção, revestida de humor e ironia, era de que a insta- do Xingu e Tucuruí. A primeira turma de artes da pesquisa, com download gratuito.
mas traçadas que reverberam em novas tessituras lação fosse premiada e as pedras entrassem para o acervo do Arte Pará. A Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará Cinthya Marques, fotógrafa, pesquisadora e, desde 2017, professora do
da vida. José Viana, que morou em Marabá, conhe- premiação não aconteceu. (Unifesspa) surge em 2014, e pode-se dizer que o curso de artes da Unifesspa, investiga a trajetória das artes visuais nas
ce a gaúcha Camila Fialho, que decide deixar São O projeto de salvaguarda ficou frustrado, mas não por muito tempo, pois curso está se transformando em polo importante regiões sul e sudeste do Pará. Um de seus projetos, O Nanquim de Ma-
Paulo e morar em Belém. Pouco depois, tornam-se Armando Queiroz, na época diretor do museu Casa das Onze Janelas, fez nessa rede de arte que se está constituindo. Gil rabá – Patrimônio e Memória na Arte de Augusto e Pedro Morbach, tem
parceiros e formam o Duo Raio Verde. A experiên- um gesto afetivo de acolhimento, viabilizando o sonho da dupla. Surgiu, Vieira e Alixa Santos estão presentes desde a cria- como propósito catalogar as obras desses dois artistas, representativos
cia vivida em Marabá os conduzirá à construção assim, a Exposição na Casa: Registro do Presente, concebida como regalo ção do curso. Vieira tem realizado pesquisas sobre de uma técnica que ficou conhecida como Nanquim Amazônico. Cin-
do S11D – Projeto de Salvaguardar Pedras, que saído de uma mineradora para ocupar salas expositivas e depois integrar a arte na Amazônia e dedicado muitos de seus thya ainda dá prosseguimento a mais três iniciativas, entre elas o Proje-
foi apresentado no Arte Pará de 2014. A ideia era o acervo de um museu. O gesto poético dos artistas e do diretor do mu- artigos a Marabá. Desenvolve o Projeto Arquivo to Fotográfico Ver-a-Cidade, que a Galeria de Arte Vitória Barros realiza
transformar uma pedra sem valor monetário em seu permitiu que as pedras fossem salvaguardadas. Digital de Artes e Culturas Visuais na Amazônia desde 2010. Inaugurada em 2002, a galeria tornou-se instituto em 2015.
obra museal, salvaguardada em um acervo. A pe- O sistema de arte que vem se estabelecendo em Marabá repercute em (ACVA), iniciado em 2021. O objetivo é promover Há quase 20 anos funciona como espaço independente, no qual prevale-
dra seria coletada no Complexo Industrial de Ca- outros municípios, como Canaã dos Carajás, Parauapebas, Paragomi- o acesso digital a diferentes coleções e acervos que ce “o espírito colaborativo da comunidade artística local”, de acordo com
rajás, na Serra Sul, mais especificamente na fatia nas, Eldorado do Carajás, Redenção, Conceição do Araguaia, São Félix estarão reunidos em uma mesma plataforma de o site do Instituto de Artes Vitória Barros (IAVB).

VOL. 10 / N. 51 JUL/AGO/SET 2021


FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA
40 41

TRINTA INTEGRANTES DA ASSOCIAÇÃO


DOS BARQUEIROS MARÍTIMOS DE MARABÁ
PARTICIPARAM DE PERFORMANCE DO ARTISTA
MAURICIO ADINOLFI SOBRE O RIO TOCANTINS

Pintura de barcos no projeto BarcoR (2013),


de Maurício Adinolfi

VALORES ÉTICOS E ESTÉTICOS


Estive em Marabá pela primeira vez em 2005 e, Uma rede de ações e pensamentos confirma a primeira impressão que
recentemente, fui convidada por Armando Quei- tive sobre o potencial de Marabá para escrever uma cena pulsante mes-
roz para assistir, virtualmente, à abertura do 6º mo que amalgamada a um terreno arenoso, invadido por adversidades.
Festival Internacional Amazônida de Cinema Todavia, algo da cena mudou: tanto o Galpão como a Associação dos
de Fronteira, que acontece em Marabá, sempre Artistas Visuais enfrentam um momento adverso, cujo primeiro impas-
em abril, em memória do massacre de Eldorado. se surgiu com o falecimento de Mestre Botelho. As dificuldades foram
O evento é colaborativo e tem como criador e agravadas com o retrocesso político que afetou a cultura brasileira,
curador o professor Evandro Medeiros. Gil Viei- comprometendo a realização de projetos, mas o importante para Deíze
ra participou da comissão do festival e Cinthya é que não afetou os pensamentos.
Marques foi curadora da exposição virtual Adeus, Os cristais muitas vezes se quebram, podendo não permitir mais a via-
Amazônia, do fotógrafo Miguel Chikaoka, que gem espiritual de Marina Abramovic, assim como o Réquiem Tropical
nos anos 1980/90 esteve no sul e sudeste do Pará, pode mais uma vez se fazer ouvir ao som da voz de Darcy Ribeiro:
acompanhando as lutas pela terra, registrando as Ensaio Lama, da série
invasões aos territórios indígenas e fotografando As florestas tropicais úmidas, com sua massa prodigiosa de vida vegetal Elementar (2017)

as consequências da exploração de minérios. e animal, habitada por povos [...] armados de um saber de experiência
Fiquei impactada com os discursos de abertura feita de um imenso gozo de viver e de uma alegria espantosa, vão se
do evento, proferidos por Evandro Medeiros e convertendo em obsolescências num mundo caduco, cego para a vida,
Ayala Ferreira, representante do MST. Por ter para o humano e para a beleza.
presenciado esses discursos e observado a po-
tência da programação, percebi que Marabá se Mesmo no atual mundo sombrio, demarcado por políticas assassinas.
abria à possibilidade de uma cena artística vigo- Mesmo que nos encontremos diante da ameaça da “queda do céu”, pre-
rosa, construída com valores éticos e estéticos vista por David Kopenawa, acredito que se possa reverter a cegueira e
muito próprios. praticar a beleza.

VOL. 10 / N. 51 JUL/AGO/SET 2021


FOTO: CORTESIA ACERVO GAM FOTOS: CORTESIA DA ARTISTA

Você também pode gostar