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BRASILIEN MEIN GOETHE.

DE – LOGIN DE PT

Francisco Dalcol

A POLITIZAÇÃO DA ARTE: UMA


EXIGÊNCIA DE BENJAMIN QUE
PERMANECE
Por Francisco Dalcol

Tendemos a procurar nas manifestações artísticas de cada momento histórico os modos


como refletem a sociedade em que se inscrevem. Refletem como espelhamento não só
do poder hegemônico e dos valores ou crenças dominantes, mas também como
questionamento das contradições do que está instituído em favor de outra coisa. A
diferença está nas maneiras como a arte se reenvia a essa mesma sociedade, quer
como veículo de conservação, quer como potencialidade de ruptura. Assim, poderíamos
também identificar duas operações em concorrência na articulação entre arte e política −
a estetização do político e a  politização da arte.

Se a distinção faz sentido, ao menos em termos teóricos e operatórios, a política da arte


manifesta-se com a perigosa liberdade que a arte reserva. Perigosa no sentido da
possibilidade emancipatória de um devir que a liberdade artística enseja ao se fundar em
uma autonomia própria à arte, porque livre de determinações ou desígnios. Um exercício
de liberdade que forças conservadoras têm historicamente identificado e buscado
neutralizar, o que nos devolve à estetização da consensualidade política e à sua
oposição pela política intrínseca às possibilidades transformadoras da arte.

É algo assim a compreensão que Walter Benjamin empresta ao final de seu A obra de
arte na época de sua reprodutibilidade técnica[i], quando afirma que o fascismo faz
deixar as massas alcançarem sua expressão em lugar de permitir que conquistem o que
é de direito. Benjamin, como sabemos, encerra seu texto depositando na politização da
arte um poder de reação e mudança.

“Faça-se arte, pereça o mundo”, diz o fascismo, e espera a satisfação


artística da percepção sensorial transformada pela técnica, tal como
Marinetti confessa, da guerra. Isso é evidentemente a consumação da
arte pela arte. A humanidade, que outrora, em Homero, foi um objeto de
espetáculo para os deuses olímpicos, tornou-se agora objeto de
espetáculo para si mesma. Sua autoalienação atingiu um grau que lhe
permite vivenciar sua própria destruição como um gozo estético de
primeira ordem. Essa é a situação da estetização da política que o
fascismo pratica. O comunismo responde-lhe com a politização da arte.[ii]

Esse desfecho guarda certa atualidade se lido hoje, diante da nova ascensão e do
acirramento de discursos e comportamentos ultraconservadores. Enquanto a Europa
divide-se diante dos refluxos imigratórios e da crise financeira global que são
consequências do seu próprio imperialismo político e econômico, o mundo não
eurocêntrico sucumbe ao recrudescimento dos traumas, das cicatrizes e das mazelas
pós-coloniais que se acirram em momentos de instabilidade como os de agora.

No caso do Brasil, a população vive uma crise generalizada que se seguiu ao golpe
parlamentar que derrubou a presidência[iii] de um governo eleito pelo voto popular.
Como anotou o ensaísta brasileiro Francisco Bosco, “a histeria generalizada transformou
o sonho da democracia direta no pesadelo da regressão autoritária”.[iv] E, na guerra
cultural promovida por setores reacionários que disseminam a ideologia do sentimento
de ódio, o campo da arte passou a ser fortemente atacado, com casos[v] em que foram
perigosamente feridas as garantias da liberdade de expressão, abrindo um precedente
para a validação da censura moral no campo da cultura.

Tais ataques à arte são orquestrações de grupos organizados que procuram manipular a
opinião pública alimentando as redes sociais com fatos inventados, campanhas de
boicote e convocações a atos violentos. Essa estratégia de feroz intimidação é orientada
por uma antiga tática tendenciosa e oportunista: aquela que se aproveita da arte com o
interesse de identificar nela um inimigo comum e, com isso, arregimentar uma massa
insuflada pela ode à intolerância e ao desprezo pelas diferenças. Os efeitos foram
sentidos na medida em que a arte se mostrou um alvo fácil e oportuno, conforme
apontou o crítico e historiador da arte brasileiro Sérgio Bruno Martins: “conveniente
também por reforçar a oposição destes grupos em relação tanto aos círculos intelectuais
progressistas (que consomem arte) quanto às tradicionais elites financeiras (que
consomem e patrocinam obras de arte)”.[vi] Diante da gravidade dos fatos que tiveram
como alvo as artes no Brasil em 2017 e 2018, comentaristas chegaram a lembrar da
“arte degenerada”[vii], a peça de propaganda política que o nazismo empreendeu em
sua perseguição contra a arte moderna.

***

Portanto, quando hoje falamos em pós-verdade, fake news e disseminação do ódio


político, estamos mobilizando expressões que revivem gestos já manifestados em
tempos como os de Benjamin, mas que se têm intensificado pela compressão das
coordenadas de espaço e tempo e pela difusão das tecnologias de comunicação, sendo
as mídias sociais o mais impactante fenômeno. A questão é que, quando Benjamin
compreendeu a barbárie que se erguia no entreguerras do século XX, a estetização do
político pelo fascismo teria seu antídoto no radical postulado de mudança das relações
de propriedade e trabalho pelo comunismo. O problema político endereçava-se, então, à
consciência de classe e à revolução enquanto práxis. E, em termos de arte, à sua
politização.

Mas o que ocorreria agora, em um momento no qual o comunismo não é mais uma
alternativa, ao menos vigente, e a arte parece ter suas estratégias e operações já
desgastadas pela repetição, quando não neutralizadas por sua condição
institucionalizada e mercantilizada? As questões enfatizam-se frente à reacendida
mobilização do termo “fascista” no debate contemporâneo, diante de práticas e
discursos facilmente qualificados como tais. Discutindo a atualidade do termo, o filósofo
brasileiro Vladimir Safatle argumenta que três características fundamentais permanecem
definindo o fascismo na contemporaneidade.

 
Primeiro, ele é um culto explícito da ordem baseada na violência de
Estado e em práticas autoritárias de governo. Segundo, ele permite a
circulação desimpedida do desprezo social por grupos vulneráveis e
fragilizados. O ocupante desses grupos pode variar de acordo com
situações históricas específicas. Já foram os judeus, mas podem também
ser os homossexuais, os árabes, os índios, entre tantos outros. Por fim,
ele procura constituir coesão social através de um uso paranoico do
nacionalismo, da defesa da fronteira, do território e da identidade a eixo
fundamental do embate político.[viii]

Ou seja, são os sentidos mais arraigados do fascismo que se manifestam, dinamizando-


se em forças de adesão à ojeriza por aquilo e aqueles que são diferentes. Esse tipo de
subjetivação política − em torno de valores como protecionismo, separatismo e
isolacionismo − sedimenta o processo de despolitização do comum, no qual o senso de
comunidade dá lugar à individualidade de massa. Uma massa que novamente se
manifesta compacta e reativa, como argumentava Benjamin já na década de 1930 em
seu referido texto, em uma nota de rodapé:

 
Nessa massa, de fato, o momento emocional (…) é determinante. (…)
Porém, (…) com suas reações imediatas, (…) carrega inteiramente um
traço de pânico − seja ao darem expressão ao entusiasmo pela guerra, ao
ódio contra os judeus ou ao impulso de autoconservação.[ix]

É esse traço que caracteriza aqueles que aderem à turba do ódio ao responder de
maneira instintiva e pouco esclarecida à manipulação dos chamamentos via redes
sociais. Os frágeis e falaciosos argumentos dos ataques deixam claro que não se trata
de uma discussão sobre arte, mas de uma violência simbólica por parte daqueles que
buscam usar a arte para fazer prevalecer uma visão de mundo intransigente às
diferenças que pontuam a coletividade. E que, portanto, não estão interessados na
experiência do diverso que a arte proporciona, mas sim em abusar da arte com o
objetivo de impor padrões de valores morais, o que não é outra coisa senão
autoritarismo.

***

Com A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, Benjamin não apenas
introduziu conceitos novos na teoria da arte diante das mudanças das condições de
produção e circulação, como também os formulou como “inutilizáveis para os objetivos
do fascismo”.[x] No estágio da reprodução técnica que testemunhava, Benjamin
percebia as condições e os meios para a “formulação das exigências revolucionárias na
política da arte”, o que dependeria da apropriação dos aparatos pelos sujeitos e do seu
uso em favor do coletivo.

É interessante notar que, também na década de 1930, Mário Pedrosa publicava um texto
com abordagem semelhante sobre a politização da arte. A principal diferença é que o
crítico brasileiro atém-se mais às relações entre a classe do artista e o conteúdo de sua
obra do que às possibilidades a partir da apropriação e do uso dos meios técnicos.
Todavia, Pedrosa aponta ainda um caráter revolucionário da arte, o qual encontra na
“arte proletária” das gravuras de Käthe Kollwitz. Ao discorrer extensamente sobre o
estágio da arte moderna e a produção da artista alemã, Pedrosa afirma:

 
Em nossos dias, a arte só poderá ser restaurada na sua dignidade antiga
e representar uma função social, embora talvez com prejuízo de sua
pureza estética, se se opuser aos valores admitidos.[xi]

Quando Benjamin e Pedrosa escreveram seus textos, era possível estabelecer


diferenças entre uma imagem resultado da primeira técnica, a mão, ou da segunda
técnica, a máquina de reprodução em série. Hoje, a distinção também é possível, mas
será que ainda faz sentido? A pergunta aprofunda-se com as transformações, em termos
virtuais, da própria técnica e dos aparatos. Entre o decréscimo do analógico e o domínio
do digital, estamos imersos em uma proliferação intermitente de imagens e textos que
resultam de associações e programações de códigos binários que praticamente
equivalem textos e imagens como efeito de virtualidades. Se a reprodução técnica em
Benjamin antes demarcava a separação entre o que se entendia por original e cópia, o
regime virtual e projetual que agora se impõe alterou o estatuto da imagem a ponto de
tornar menos importante qualquer fronteira que separa as imagens de um tipo e de
outro.

As alterações reverberam ainda na construção histórica do sujeito que observa. De


receptores, passamos também a produtores. Não só de imagens, mas de conteúdos.
Um receptor-produtor de imagens-textuais e textos-visuais que, de algum modo,
apropria-se do aparato. Mas com que finalidade e consequências em termos políticos?
São emancipatórios os fins do sujeito que se apropria? É no sentido da politização da
arte que o artista dispõe do meio técnico?

Assim, voltamos à confrontação que estabeleci no começo deste ensaio. A estetização


da política e a politização da arte em Benjamin têm sido discutidas por autores
contemporâneos, como é caso de Jacques Rancière, para quem há sempre uma
dimensão estética na política, assim como no exercício das formas de poder.

 
A estética e a política são maneiras de organizar o sensível: de dar a
entender, de dar a ver, de construir a visibilidade e a inteligibilidade dos
acontecimentos. Para mim, é um dado permanente. É diferente da ideia
benjaminiana de que o exercício do poder teria se estetizado num
momento específico. Benjamin é sensível às formas e manifestações do
Terceiro Reich, mas é preciso dizer que o poder sempre funcionou com
manifestações espetaculares, seja na Grécia clássica, seja nas
monarquias modernas.[xii]

Se a estetização parece inerente à política e ao exercício do poder, pode a arte encontrar


a sua politização potencialmente emancipadora? Nos termos de Rancière, arte e política
têm a ver por estabelecer linhas de separação e partilha. Portanto, é na divisão e no
conflito entre objetos e sujeitos que ocorrem as operações que reelaboram a experiência
comum do sensível. Ao opor um mundo comum ao outro, criando novas relações e
situações, o artista é aquele em condições de intervir e reformular determinada forma
pré-estabelecida, consensual e hegemônica da sensibilidade coletiva. A importância
dessas reconfigurações está em projetar novos modos de sentir e subjetivar.
Compreender essa política da arte passa por reconhecer que o seu potencial de
renovação das sensibilidades deve-se à possibilidade de imaginar além do já visto e
sabido e de experimentar a liberdade do desconhecido, desde que sempre aberto à
diferença.[xiii]

Se assim for, uma exigência crítica que Benjamin destina à arte ainda permanece −
novamente como alerta: a necessidade de sua politização em resposta aos abusos da
estetização.

* FRANCISCO DALCOL
Crítico de arte, pesquisador, jornalista e curador independente. Doutorando em
Teoria, Crítica e História da Arte (UFRGS). Membro da Associação Internacional de
Críticos de Arte (AICA). Vive e trabalha em Porto Alegre, sul do Brasil.

Notas e referências

[i] BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Porto
Alegre: Zouk, 2012. Essa tradução, de Francisco De Ambrosis Pinheiro Machado, dá
conta da segunda versão alemã do ensaio. Segundo anota o tradutor, trata-se do texto
no qual Benjamin “trabalhou entre dezembro de 1935 e final de janeiro de 1936, e que foi
a primeira considerada por ele como pronta para publicação. (…) A segunda versão
resultou de uma revisão e ampliação considerável da primeira (escrita entre outubro e
dezembro de 1935), já levando em conta algumas questões suscitadas Horkheimer e
Theodor Adorno” (p. 3-4).

[ii] Idem, ibidem, p. 123.

[iii] A economista Dilma Rousseff, candidata do Partido dos Trabalhadores (PT), duas
vezes eleita presidente, sucedendo o metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011).
Dilma exerceu o cargo de 2011 até seu afastamento por um processo
de impeachment em 2016.

[iv] Francisco Bosco, “Junho de 13 foi de sonho democrático a pesadelo autoritário”.


Folha de São Paulo, 3 de junho de 2018. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/06/junho-de-13-foi-de-sonho-
democratico-a-pesadelo-autoritario-diz-bosco.shtml>.

[v] Alguns dos principais casos foram: 1) o fechamento da exposição Queermuseu pelo
Santander Cultural em Porto Alegre após uma campanha do Movimento Brasil Livre
(MBL) incitando o ódio às obras de Adriana Varejão, Bia Leite e Fernando Baril, sob o
tendencioso argumento de fazerem apologia, respectivamente, à zoofilia, à pedofilia e à
profanação; 2) ataques da mesma ordem ao 35º Panorama da Arte Brasileira por conta
da performance “La Bête”, de Wagner Schwartz, pedindo o fechamento do Museu de
Arte de São Paulo (MAM-SP); 3) o veto do prefeito do Rio de Janeiro e do pastor Marcelo
Crivella à remontagem da exposição Queermuseu no Museu de Arte do Rio (MAR); 4) a
opção inicial do Museu de Arte de São Paulo (MASP) pela classificação restritiva de 18
anos para a exposição Histórias da Sexualidade; 5) o ataque com pichação ao painel do
artista Rafael Augustaitiz, no muro do Goethe Institut em Porto Alegre, que mostrava
uma cabeça em uma bandeja com traços que remetem à representação de Jesus Cristo,
subsequente à campanha virtual alimentada pelo Centro Dom Bosco em nome da
“ofensa à fé e aos valores cristãos”.

[vi] MARTINS, Sérgio Bruno. “A hora das instituições”. Revista Jacarandá − A Journal of
Brazilian Art and beyond, Special Edition − Brazilian Art Under Attack, n. 6, 2018, p. 17-
24. Disponível em: <http://www.jacarandamagazine.com/>.

[vii]“Entartete Kunst”, em alemão. Refiro-me também à exposição de 1937 promovida


pelo partido nazista como propaganda política com o objetivo de colocar a opinião
pública contra a arte moderna.

[viii] Vladimir Safatle, “Um fascista mora ao lado”. Folha de S. Paulo, 3 de março de
2017. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2017/03/1863080-um-fascista-
mora-ao-lado.shtml>.

[ix] Walter Benjamin, op. cit., p. 78-84. Trata-se da nota do autor de número XII.

[x] Idem, ibidem, p. 11.

[xi] Mário Pedrosa, “As tendências sociais da arte e Käthe Kollwitz”, p. 35. In: MAMMÌ,
Lorenzo (org.). Mário Pedrosa − Arte ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2015, p. 27-49.
Conferência pronunciada no Clube dos Artistas Modernos de São Paulo, em 16 de junho
de 1933, sob o título “Käthe Kollwitz e o seu modo vermelho de perceber a vida”.
Publicada em capítulos, já com o título atual, no cotidiano O Homem Livre, n. 6-9 (2, 8,
14 e 17 de julho de 1933).

[xii] RANCIÈRE, Jacques. “A associação entre arte e política”. Revista CULT, n. 139, 30
de março de 2010.

[xiii] Este parágrafo deve muito à reflexão que desenvolvi em outra ocasião. DALCOL,
Francisco Dalcol. “Crítica dissensual: estética e densidade conceitual frente ao
julgamento ético da intencionalidade artística”. Revista Poiésis, n. 28, p. 147-160,
dezembro de 2016,. Disponível em: <https://ufrgs.academia.edu/FranciscoDalcol>.

AUTOR

Crítico de arte, pesquisador, jornalista e curador independente. Doutorando em Teoria,


Crítica e História da Arte (UFRGS). Membro da Associação Internacional de Críticos de
Arte (AICA). Vive e trabalha em Porto Alegre, sul do Brasil.

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