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ISBN 978-85-423-0060-4 m

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ENSAIOS SOBRE
AAUTOFICÇÃO
Esta coletânea reúne ensaios de críticos e escritores franceses
consagrados sobre a autoficção - neologismo criado por Serge
Doubrovsky para definir o pacto de leitura de seu livro Fils, em
1977 - , que já constitui uma categoria conceituai corrente em
nosso campo terminológico teórico-analítico. O que se p reten-
de é apresent ar ao leitor brasileiro tanto a história e a recepção
quanto as diferentes tentativas de teorização e a controvérsia
em torno dessa noção, com o fim de repensá-la em nosso con-
texto e buscar respostas para a seguinte pergunta: entre nós,
autoficção seria o nome de quê?
Jovita Maria Gerheim Noronha
Organizadora

ENSAIOS SOBRE
AAUTOFICÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
RE ITOR Clélio Campolina Diniz
VICE-REITORA Rocksane de Carvalho Norton
Jovita Maria Gerheim Noronha
E DITORA UFMG Maria Inês Coimbra Guedes
DIRETOR Wander Melo Miranda
Tradução
VICE-DIRETOR Roberto Alexandre do Carmo Said

CONSELHO EDITORIAL
Wander Melo Miranda (PRESIDENTE)
Ana Maria Caetano de Faria
Danielle Cardoso de Menezes
Flavio d e Lemos Carsalade
Heloisa Maria Murgel Starling
Márcio Gomes Soares Belo Horizonte
Maria Helena Damasceno e Silva Megale
Editora UFMG
Roberto Alexandre do Carmo Said
2014

'
© 2014, Os autores
© 2014, Editora UFMG
SUMÁRIO
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização
escrita do Editor.

E59Pn Ensaios sobre a autoficção / Jovita Maria Gerheim Noronha


organizadora; tradução [de] Jovita Maria Gerheim Noronha, Maria
Inês Coimbra Guedes. - Belo Horizonte : Editora UFMG, 2014.
245 p. : il - (Babel)
ISBN: 978-85-423-0060-4

l. Autobiografia - Coletânea. 2. Ficção autobiográfica - Coletânea. APRESENTAÇÃO


3. Eu em literatura - Coletânea. 4. Ensaios franceses - Coletânea. Jovita Maria Gerheim Noronha 7
5. Literatura - Coletânea. I. Noronha, Jovita Maria Gerheim. II.
Guedes, Maria Inês Coimbra. III. Série.
AUTOFICÇÕES & CIA.
CDD: 809.935.92
CDU: 82-94
Peça em cinco atos
Philippe Lejeune 21
Elaborada pela DITTI - Setor de Tratamento da Informação
Biblioteca Universitária da UFMG
TIPOLOGIA DA AUTOFICÇÃO
Vincent Colonna 39

COORDENAÇÃO EDITORIAL Michel Gannam


ASSISTÊNCIA EDITORIAL Eliane Sousa e Euclídia Macedo AUTOFICÇÃO: UM MAU GÊNERO?
CooRDENAÇÃO DE TEXTOS Maria do Carmo Leite Ribeiro 67
Jacques Lecarme
REVISÃO DE PROVAS Bárbara Dantas e Thaís Duarte Silva
PROJETO GRÁFICO Cássio Ribeiro, a partir do projeto de Marcelo Belico
FORMATAÇÃO E CAPA Letícia Ferreira O ÚLTIMO EU
PRODUÇÃO GRÁFICA Warren Marilac
Serge Doubrovsky 111

A QUANTAS ANDA A REFLEXÃO


EDITORA UFMG
Av. Antônio Carlos, 6.627 J CAD II / Bloco III SOBRE A AUTOFICÇÃO?
Campus Pampulha J 3 1270-901 1 Belo Horizonte/MG Jean -Louis Jeannelle 127
Tel: + 55 31 3409-4650 J Fax:+ 55 31 3409-4768
www.editoraufmg.com.br J editora@ufmg.br
APROVA DO REFERENCIAL
Philippe Vilain 163
APRESENTAÇÃO
AUTOFICÇÃO É O NOME DE QU~?
Philippe Gasparini 181

ENTREVISTA A ANNIE PIBAROT


DOIS EUS EM CONFRONTO
Philippe Lejeune
Philippe Vilain 223

SOBRE OS AUTORES 243


Quando, em 1977, o escritor e crítico francês Serge
Doubrovsky forjou o termo "autoficção" para definir o
pacto de leitura de seu livro, Fils, talvez tenha pensado à
semelhança de Rousseau, autor que reivindica como sua
mais importante referência: "tomo uma resolução de que
jamais houve exemplo e cuja execução não terá imitador."
Mas, se o tivesse afirmado, assim como o autor das Confis-
sões, muito teria se enganado.
No que diz respeito a seus antecessores, certos críti-
cos, dentre os quais o próprio Doubrovsky, estimam que
o neologismo veio nomear uma prática que, de fato, já
existia. Quanto à sua sucessão, a palavra se encontra hoje
dicionarizada na França (dicionários Larousse e Robert)
e cada vez mais se propaga além das fronteiras desse país
para definir práticas de autoescrita, como se constata

7
nos devolve as definições que lhe atribuímos",2 como pro-
atualmente entre nós. E essa disseminação é operada em
põe Philippe Gasparini, em seu artigo presente neste livro.
três esferas: os escritores que se apropriam do termo para
definir suas próprias obras; o mundo acadêmico, no qual a Philippe Lejeune foi o primeiro a estabelecer, em 1992,
investigação sobre essa categoria conceituai toma corpo em a trajetória da autoficção, na abertura do colóquio Autofic-
eventos e comunicações, em teses, dissertações e artigos; tions & cie, realizado na Universidade de Nanterre. Lejeune
lança mão da metáfora de uma peça em cinco atos, desta-
a mídia especializada, que mobiliza o termo em entrevis-
cando, de maneira bem-humorada, cinco datas. O primeiro
tas e resenhas. Além disso, a etiqueta "autoficção" não se
ato, "1973", encena a elaboração do conhecido quadro de
restringe mais ao campo da literatura, estendendo-se às
Lejeune que explicita o conceito de "pacto autobiográfico",
outras artes. Mas o que se percebe é que não há de fato
cuja casa vazia combinando homonímia entre autor e perso-
consenso nem entre os críticos, nem entre os escritores
nagem e pacto romanesco dará margem a Doubrovsky para
que a praticam, que são, aliás, com frequência, agentes
forjar a noção de autoficção. O segundo ato, "1977", evoca
duplos. Vale lembrar, nesse sentido, as considerações de
Silviano Santiago de que "a autoficção não é forma simples o diálogo crítico de Doubrovsky com o quadro de Lejeune,
nem gênero adequadamente codificado pela crítica mais a publicação de Fils e de textos em que o conceito, então es-
treitamente vinculado à psicanálise, começa a ser teorizado.
recente". 1 De fato, tanto a fortuna crítica da autoficção,
O terceiro ato, "1984", lembra o trabalho de ampliação do
quanto sua apropriação pelos autores para designar suas
termo por Jacques Lecarme, que transporta a noção para
obras deixam antes a impressão de um debate vertiginoso,
à maneira de Pirandello. outros textos, afrouxando a definição doubrovskiana. O
Esta coletânea pretende, através de ensaios de críticos quarto ato, "1989", explica como a tese de VincentColonna
e escritores franceses consagrados, apresentar ao leitor estende a definição de Doubrovsky e dá ao termo ficção
um sentido "amplo abrangendo tanto o ficcional (a forma
brasileiro um panorama da história da autoficção e de
literária), quanto o fictício (a invenção mesma do conteú-
sua recepção na França e trazer as tentativas de teorização
do)". O quinto ato, "1991-1992", coloca em cena o próprio
e a controvérsia em torno da categoria, para alimentar,
colóquio Autofictions & cie, sua organização e realização. O
dentro de nosso contexto, a reflexão e o debate sobre essa
texto de Lejeune antecipa as questões e divergências que se
"palavra-narrativa", "palavra-teste, palavra-espelho, que

APRESENTAÇÃO 9
8 Jovita Maria Gerheim Noronha
revelarão mais tarde na discussão sobre o conceito e em sua é de que a autoficção não se restringiria a um período em
apropriação: "Mas seria de fato um gênero? Como poderia que, como quer Doubrovsky, "a relação do sujeito consigo
ela englobar sob um mesmo nome os que prometem dizer mesmo mudou", mas englobaria um conjunto bem mais
toda a verdade (como Doubrovsky) e os que se entregam amplo de textos de outras épocas e áreas geográficas, daí a
livremente à invenção?", se pergunta o autor. ideia de" extensão máxima" de seu campo, que será sugerida
O segundo artigo que compõe este volume apresenta as e discutida por Jacques Lecarme.
definições propostas por Vincent Colonna, em sua tipo- O ensaio de Lecarme, também apresentado no Colóquio
logia, extraídas de seu livro de 2004, no qual ele revisita a de Nanterre de 1992, deve sua importância ao fato de ter
tese mencionada por Lejeune para conceber uma "teoria II inaugurado, como assinala Doubrovsky, a "soma impres-
da autoficção", abandonando a narratologia e dando mais sionante de estudos" sobre a autoficção e, n esse sentido,
ênfase à História, às obras e a seus efeitos. Colonna cria resgata os elementos principais da recepção imediata da
o termo "autofabulação" para designar uma prática, um noção. Reconhecendo nas críticas ao modelo autoficcional
procedimento, que remontaria, segundo ele, ao início de doubrovskiano a persistência da tradicional recusa do gê-
nossa era, com a obra de Luciano de Samósata, Uma histó- nero autobiográfico, a "viva hostilidade contra uma familia
ria verdadeira. A seu ver, o modelo doubroviskiano seria de textos", Lecarme toma a defesa da autoficção - que de-
apenas uma das manifestações da autoficção, a "autoficção nomina "autobiografia desenfreada" - tal como é praticada
biográfica", que ele chega a considerar, em carta a Jean-Louis por Doubrovsky e, antes dele, por outros autores. Ele chama
Jeannelle, como "o renascimento mascarado do bom e velho a atenção para um aspecto importante da obra de Doubro-
romance autobiográfico" e distingue de outras estratégias vsky: o fato de que, depois de Fils e dos textos teóricos sobre
de "autofabulação": a autoficção fantástica, em que o autor o conceito, "a autoficção deixou de se opor à autobiografia,
inventa para si uma vida; a autoficção especular, em que o para se tornar senão um sinônimo, p elo menos uma variante
escritor, através de um "procedimento refletor", se torna um ou um ardil". Lecarme se opõe dessa forma à concepção
dos personagens de sua narrativa fictícia; a autoficção intru- extensa da autoficção, proposta por Vincent Colonna, em
siva (autoral), em que um narrador-autor se manifesta, sem seu trabalho de doutorado, e às críticas do orientador da
participar da intriga como personagem. Assim, a hipótese tese, Gérard Genette, que considera, em 1991, esse modelo

1O Jovita Maria Gerheim Noronha APRESENTAÇÃO 11


- sem de fato citar o autor de Fils - como "autobiografias da concepção expandida de Colonna, que Doubrovsky con-
envergonhadas". Para Lecarme, trata-se, ao contrário, de sidera como "uma possibilidade, [mas] um caso particular
"exercícios de ambiguidade que dão lugar a uma irredutível desviante do sentido primeiro". Segundo o autor de Fils,
ambivalência", e constituem uma "população nômade de "isso não poderia de modo algum constituir a natureza e a
textos", sobre os quais não caberia à poética "assistida pela essência da autoficção. A palavra, em seu uso corrente, re-
história literária exerc [er] uma função profilática". O autor mete sempre à existência real de um autor". De outro lado,
estabelece, em sua argumentação, uma distinção entre a Doubrovsky insiste na elaboração ficcional da narrativa, na
concepção de Doubrovsky e a "extensão máxima" dada à criação de "um pacto oximórico". Como já sustentou por
noção por Colonna, para concluir que "nessa extensão do diversas vezes, trata-se de narrativas, nas quais "a matéria é -,
termo, pouco resta de 'auto' e surge algo que faz a ficção estritamente autobiográfica e a maneira, estritamente ficcio- '
transbordar para todo lado e que poderia ser a literatura". nal",3 de uma ficção "confirmada pela própria escrita que se Í
O argumento de Lecarme se harmoniza com a autoanálise inventa como mimese, na qual a abolição de toda e qualquer 1
crítica empreendida por Serge Doubrovsky, em "O último sintaxe substitui, por fragmentos de frases, entrecortadas de
eu" - título que remete ao livro que estava escrevendo na- vazios, a ordem da narração autobiográfica". Percebe-se, to- -
quele momento - Un homme de passage [Um homem de davia, em sua proposta, que o ficcional não é compreendido
passagem], publicado em 2011 -, segundo ele, "o último como fictício, como pura invenção, mas como mobilização r ,(
de [sua] obra romanescà'. Partindo da leitura do fragmento de estratégias narrativas tomadas de empréstimo ao roman- \ 1'
inicial, Doubrovsky revisita o conceito criado 40 anos antes, ce moderno e contemporâneo: "a autoficção, para mim, não J
explicitando-o através de uma postura que já se tornou, para mente, não disfarça, mas enuncia e denuncia na forma que \
ele, costumeira: a imbricação do crítico e do escritor. O autor escolheu para si: 'Ficção de acontecimentos e fatos es~rita-
reafirma, de um lado, a importância da presença do nome .mente reais."'4 No trecho de Un homme de passage, analisado
próprio - assim como Lecarme e, antes dele, Lejeune - , da pelo autor, a preparação das malas por ocasião da sua volta
"homonímia autor-narrador-personagem [que] dá ao tex- definitiva para a França depois da aposentadoria e o reen-
to um estatuto que o inscreve no pacto autobiográfico" e, contro com objetos pessoais, alguns esquecidos, propiciam
também, o aspecto referencial de suas obras - o que o afasta a evocação de reminiscências de períodos diversos de sua

12 Jovita Maria Gerheim Noronha APRESE NTAÇÃO 13


vida. O fluxo de consciência toma o lugar daquela narração ponto onde a deixara Lejeune. O autor se diz, no entanto,
que segue a ordem da biografia, para colocar em cena um obrigado a adotar outra estruturação para essa história, uma
"vivido [que] se conta vivendo", criando um texto no qual vez que o modelo dramatúrgico "perfeitamente ordenado"
"a enunciação e o enunciado não estão separados por um já não daria conta da trajetória subsequente da noção, que
necessário intervalo, mas são simultâneos", buscando tra-} se assemelha, antes, a "uma novela de episódios pululantes,
<luzir uma mudança entre a percepção que se tinha de si e ricos em reviravoltas e cujos heróis são escoltados por uma
a que se tem hoje. A autoficção é assim, para ele, "a forma multidão de personagens secundários". O modelo da novela
pós-moderna da autobiografia", mas bem diferente de certas enfatiza um ponto essencial de sua argumentação: para
obras classificadas como autoficções, em que um persona- ele, a autoficção vem sendo vítima de certa "falta de rigor
gem alter ego do autor protagoniza aventuras inventadas e conceitua!". Jeannelle levanta assim "algumas dificuldades
se move num mundo ficcional bem separado do mundo da que [a autoficção] suscita", ou seja, entraves teóricos que
vida. Como aponta Philippe Gasparini, embora, de início, estão em jogo nesse debate, tais como a indecidibilidade, a
Doubrovsky tivesse "provavelmente em mente aquela acep- questão das denominações genéricas, a problemática imbri-
ção, bem ampla, da palavra 'fiction', nos Estados Unidos", cação das instâncias do discurso e, ponto importante para
ele explicitará melhor, mais tarde, seu emprego a partir pensar a noção e entender as diversas concepções que dela
da etimologia: "o verbo latino fingere significava de fato resultam, as diferentes acepções do próprio termo ficção.
'afeiçoar, fabricar, modelar'. O fictor era alguém que dava Essa questão atravessa de forma sutil o ensaio autocrí-
feição: o oleiro, o escultor e, depois, por extensão, o poeta, tico de Philippe Vilain. Para ele, a fidelidade não estaria
o autor." Em outras palavras, como já sustentava Lejeune na retranscrição do vivido, mas na transposição do que foi
em 1992, "essa ambiguidade do contrato de leitura traduz sentido: "escrevo em primeira pessoa uma história a partir
a ambiguidade de seu projeto: veracidade da informação, de um fato real, verificável ( ... ) mas uma história transposta,
liberdade da escrita". à qual dou um prolongamento romanesco possível, um alar-
O sentido que se dá à noção de ficção é também uma das gamento poético sem me nomear, mas sob a caução de meu
problemáticas teóricas que Jean-Louis Jeannelle discute em sobrenome:' O escritor se fundamenta pela primeira vez no
seu ensaio que retoma, em 2006, a história da autoficção no método da crítica genética para pensar sua obra e se propõe

14 Jovita Maria Gerheim Noronha APRES ENTAÇÃO 15


a ir buscar, na leitura dos manuscritos de três de seus livros problema da recepção, levantado por Philippe Lejeune - a
- Eétreinte [O abraço], La derniere année [O último ano] e ambiguidade pretendida funcionaria na leitura ou o leitor
Eété à Dresde [O verão em Dresde] -, "a prova do referen- acaba escolhendo um único pacto? -,. para sugerir que a es-
cial", ou seja, "como [s]eus textos autoficcionais apreendem tratégia da ambivalência acaba por se inscrever "na tradição
o referencial e como, em contrapartida, esse referencial é ex- do romance autobiográfico". Gasparini mostra como o termo
perimentado ou dá provas de sua existência em um processo "fugiu ao controle de seu criador", através de dois movimen-
de autoficcionamento". Mas, embora afirme se inscrever em tos distintos: um alargamento de seu campo genérico e uma
uma escola do eu diferente da de Doubrovsky - que o autor apropriação da categoria que a desviou, dando-lhe um sentido
de Fils denomina "quase-autoficção" -, a postura de Vilain bem diferente: "é preciso constatar que'autoficção' se tornou,
não representa de fato o abandono completo do vivido, mas hoje, o nome de todos os tipos de textos em primeira pessoa.
uma via oblíqua para sua encenação que leva, sobretudo, Funcionando como um 'arquigênero', ele subsume todo o
em conta o sentimento experimentado que vai interferir no 'espaço autobiográfico': passado e contemporâneo, narrativo
tratamento da rememoração: e discursivo, com ou sem contrato de verdade." O autor su-
gere que é preciso levar em conta as particularidades de cada
A factualidade da lembrança se revela insuficiente para a obra e postula uma limitação do termo a certos textos: "aos
autoficção, ( ... ) não se trata mais simplesmente de procurar essa textos que desenvolvem, em pleno conhecimento de causa, a
(
lembrança atrás de si, no antetexto, mas também diante de si, tendência natural a se ficcionalizar, própria à narrativa de si."
no texto e na própria escrita, tanto na retrospecção quanto na Esta coletânea se encerra com uma entrevista, na qual se
prospecção que acompanha a busca inventiva da escrita, pois a confrontam duas formas de expressão do eu, a autoficção
lembrança é aqui fonte autoestimulante de recriação. e a autobiografia ou não ficção, representadas, respectiva-
mente, por Philippe Vilain e Philippe Lejeune. Os autores
respondem às perguntas de Annie Pibarot sobre a especi-
Para Philippe Gasparini, "falta ainda entrar em entendi-
ficidade da escrita do eu, as acusações de narcisismo e falta
mento" sobre o conceito de autoficção a começar pelo signi-
de pudor dirigidas a essa literatura, a questão do leitor, as
ficado que lhe é atribuído: "se é o nome atual de um gênero
razões e modos de se autonarrar. Em acordo com Vilain,
\ ou o nome de um gênero atual." Ele discute igualmente o

16 Jovita Maria Gerheim Noronha APRESENTAÇÃO 17


para quem a ideia de que "uma descrição fiel do vivido ( ... ) de suas relações, pois gravitam em um mesmo campo que é
parece impossível", Lejeune explicita a distinção entre essas o imenso território das escritas de si. É o que parece sugerir
duas posturas da seguinte forma: Serge Doubrovsky, ao analisar o episódio inicial de seu "O
último eu", Un homme de passage, transformando o gesto
Há pessoas que se resignam a essa impossibilidade - você, de acúmulo e triagem de suas roupas em metáfora esclare-
Philippe Vilain, e Serge Doubrovsky - e há pessoas que não se cedora de seu projeto de autoescrita:
resignam; os que não se resignam parecem naifs para os primeiros.
Pertenço à categoria dos naifs. As duas posições são constitutiva- Nada esquecer ou perder, obsessão materna, não esquecer
mente antinômicas. Nossa vida é um imaginário, um imaginário uma mãe perdida. Obsessão também permanente desse Julien que
que evolui, se questiona, esse imaginário é a realidade do que nunca joga fora nenhuma roupa velha, nem aquelas que já não usa
vivemos. A meu ver, uma escrita autobiográfica que visa à lucidez há muito tempo e cuja triagem lhe é imposta por sua mudança de-
vai tentar fixar esse imaginário da forma mais nítida possível, mas, finitiva para a França. Esse acúmulo de camisas, pulôveres, blazers
por outro lado, posso me colocar no sentido do vento e minha es- e outras roupas de década em década, sem razão, sem nenhuma
crita vai prolongar esse movimento de construção imaginária. Há, ordem a não ser preservar a qualquer preço, seria minha forma
portanto, escritas que escolhem ir contra o vento para observá-lo, perversa de diário íntimo, que sempre recusei no plano literário?
e outras que acompanham e amplificam seu movimento. Fica-se
forçosamente numa dessas posições, mas é claro que nenhuma É também essa abertura que a presente coletânea preten-
delas é "verdadeirà'. de oferecer ao leitor, num momento em que a autoficção já
constitui uma categoria conceitua! corrente em nosso cam-
Esse "confronto" entre as duas posturas nos permite ir po terminológico teórico-analítico, tendência que nos leva
além da ideia da autoficção apenas como uma forma nova forçosamente a buscar respostas para a seguinte questão:
que vem se contrapor à velha para invalidá-la e abre cami- entre nós, autoficção seria o nome de quê?
nho para pensar as diferentes configurações de autoexpres-
são não simplesmente como forças opostas que se anulam, Jovita Maria Gerheim Noronha
mas como forças que só podem ser compreendidas a partir

18 Jovita Maria Gerheim Noronha APRESENTAÇÃO 19


··~-
Notas
1 Cf. seu texto "Meditação sobre o ofício de criar'; Aletria, v. 18, jul./dez. 2008,
AUTOFICÇÕES & CIA.
disponível em <http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publicacoes_pgs/Ale- Peça em cinco atos
tria%2018/ l 8-Silviano%20Santiago.pdf>.
2 Cf. V Colonna, C'estl'histoire d'un mot-récit ... , em C. Burgelin, 1. Grell, R.-Y. 1

Roche (org.), Autofiction(s), Colloque de Cerisy, Lyon, PUL, 2010, p. 397-415.


Nesse artigo, o autor considera a ficção como uma "palavra-narrativa, palavra
rica em aventuras virtuais, grávida de narrativas futuras e de lembranças es- Philippe Lejeune
quecidas, descobrindo espaços fabulosos, ressuscitando genealogias apagadas''. 1

3 Entrevista disponível em <http://www.lepoiht.fr/grands-entretiens/serge-dou-


1
brovsky-ecrire-sur-soi-c-est-ecrire-sur-les-autres-22-02-2011-1298292_326.
php>.
4 Entrevista concedida a Philippe Vilain, Défense de narcisse, Paris, Grasset, Ato 1, 1973
2005, p. 219.
1 A cena é ambientada no pequeno salon carré do pacto
autobiográfico.1 Philippe Lejeune transforma o matagal da
literatura do eu em jardim à francesa. Fica meditando diante
de um quadro de dupla entrada que cruza dois elementos
do compromisso que pode assumir um autor: a declaração
quanto ao gênero praticado (romance/nada/autobiografia)
1
e o nome que dá ao personagem principal (diferente do seu/
nenhum/seu próprio nome). Nove casas. Três casos muito li
1 li
claros de autobiografia, três casos muito claros de romance.
1
1
No centro, uma casa indeterminada, e por fim um resíduo: li
duas casas contraditórias. Lejeune pega seu lápis cinza e as
colore, como se fechasse com tijolos as janelas das casas que
vão ser demolidas para evitar invasores. Fica meditando
diante de seu quadro, com curiosidade e escrúpulo: .
,1

21
20 iovita Maria Gerheim Noronha
As soluções que decretei como impossíveis seriam mesmo im - subitamente ligou seu texto crítico e o que eu estava escrevendo
possíveis? ... O herói de um romance declarado como tal poderia senão às cegas, pelo menos na penumbra. [Carta a Philippe Le-
ter o mesmo nome que o autor? Nada impediria que a coisa exis- jeune, novembro 1977]
tisse e seria talvez uma contradição interna que produziria efeitos
interessantes. Mas, na prática, nenhum exemplo vem à mente . .. Em seu "romance" intitulado Fils, Serge Doubrovsky
dará a seu personagem seu próprio nome. Essa ambiguidade
Então aquela casa cega ficaria vazia ... Ele fica pensando do contrato de leitura traduz a ambiguidade de seu projeto:
no livro de Mamice Sachs, Le sabbat [O sabá] (1946), mas veracidade da informação, liberdade da escrita. Ele explode
acaba concluindo, talvez com razão, que o subtítulo romance os tijolos que lacram a janela e fmca sua bandeira: Fils é
era de responsabilidade do editor ... Então a casa cega fica batizado "autoficção".2 A palavra não serve de subtítulo
mesmo vazia. Todos nós temos nossas cegueiras .. . genérico (a indicação será "romance"), mas é proposta na
quarta capa do livro:

Ato li, 1977


Ficção, de acontecimentos e de fatos estritamente reais; se
Acreditando que a casa estava vazia, já que a janelas
preferirem, autoficção, por ter-se confiado a linguagem de uma
foram lacradas, aparece um invasor. Serge Doubrovsky,
aventura à aventura da linguagem, avessa ao bom comportamento,
que está escrevendo um texto de éaráter pessoal e estatuto
avessa à sintaxe do romance, tradicional ou novo. Encontros,Jils
indeciso, reconhece naquela casa cega sua própria indecisão
de palavras, aliterações, assonâncias, dissonâncias, escrita de antes
e decide ocupar o espaço:
ou de depois da literatura, concreta, como se diz da música. Ou
ainda, autofricção, pacientemente onanista, que espera conseguir
Lembro-me que, ao ler seu estudo na revista Poétique, marquei
agora compartilhar seu prazer.
aquele trecho ... Estava então em plena redação e aquilo me dizia
respeito, me atingiu em cheio. Mesmo agora, ainda não estou
A palavra aparece então num contexto lúdico: uma
certo do estatuto teórico de meu empreendimento, não me cabe
palavra-valise, que jorrou da efervescência da escrita, ime-
decidir, mas fiquei com muita vontade de preencher aquela "casà'
diatamente retransformada. Serve tanto para exemplificar
que sua análise deixara vazia, e foi um verdadeiro desejo que
o modo do livro quanto para designar seu gênero.

AUTOFICÇÕES & CIA. 23


22 Philippe Lejeune
Mas no fundo? ... Depois da publicação, Serge Doubro- Mas esse mapeamento histórico, praticado de forma tão
vsky vai refletir sobre o estatuto teórico de sua empreitada, ampla, afrouxa a definição bem p recisa oriunda do quadro
vai para a rua ver como sua bandeira está tremulando na de Philippe Lejeune e retomada por Serge Doubrovsky.
janela e publica dois estudos de autoteorização que darão Pouco a pouco, ela vai englobando todas as tentativas
legitimidade à palavra - "L 'initiative aux maux. Écrire sa intermediárias entre a autobiografia claramente declarada
psychanalyse" [A iniciativa aos males. Escrever sua psicaná- como tal e a ficção não autobiográfica. Dispositivos textuais,
lise]3 e "Autobiographie/vérité/psychanalyse" [Autobiogra- estratégias pessoais bastante diferentes entre si, reunidos por
fia/verdade/psicanálise], publicados em 1979 e 1980. E, além certa ambiguidade genérica. "Autoficção", por metonímia,
disso, um gênero é como se fosse um hábito: só começa na torna-se a capital de um país bem vasto.
segunda vez. Em 1982, seu livro Un amour de soi 4 retomará Será que o editor de Universalia teve medo do neolo-
o mesmo dispositivo de Fils ... gismo? Ou teve escrúpulos de ordem teórica? Seja por que
motivo for, ele substituiu o título proposto por Jacques
Ato Ili, 1984 Lecarme, Autoficção, por outro mais clássico: Ficção roma-
Um oficial de justiça vem verificar as condições do imó- nesca e autobiográfica.

vel: a janela tinha sido lacrada por erro! De fato, o local é


habitado ... Tem até muita gente morando lá. A bandeira, Ato IV, 1989
garbosa, permanece no lugar e começa-se a fazer a lista Um concorrente se estabelece do outro lado da rua! Com
daqueles escritores que, assim como Monsieur Jourdain, o a mesma placa! Mas a loja vende outra mercadoria .. . Um
burguês fidalgo da peça de Moliere, faziam autoficção sem jovem pesquisador, Vincent Colonna, retoma a partir da ori-
saber que faziam. gem o problema levantado pela casa cega. No que tange ao
Jacques Lecarme escreve um verbete para a Encyclo- nome próprio, nenhum problema. No que tange à ficção, ele
predia universalis demonstrando que a casa não estava dá à palavra, com muita legitimidade, um sentido completo
vazia (Céline! Malraux! e outros ... ) e, sobretudo, que ficara e amplo abrangendo tanto o ficcional (a forma literária)
prodigiosamente lotada a partir do início dos anos de 1970. qua·n to o fictício (a invenção mesma do conteúdo). O mais
(Modiano, Barthes, Gary, Sollers etc.)

24 Phi li ppe Lejeune AUTO FICÇÕES & CIA. 25


perturbador é que ele reutiliza, com uma nova definição, a gênero? Como poderia ela englobar sob um mesmo nome
palavra inventada por Doubrovsky. os que prometem dizer toda a verdade (como Doubrovsky)
A partir de agora, essa investigação sobre a autoficção dis- e os que se entregam livremente à invenção?
põe de referências preciosas. São elas um terminus techniçus e A tese de Vincent Colonna, o r ientada por Gérard
uma primeira definição: uma autoficção é uma obra literária Genette, foi defendida em 1989 e permanece inédita. Seu
através da qual um escritor inventa para si uma personali- título: L'autofiction. Essai sur la fictionalisation de sai en
dade e uma existência, embora conservando sua identidade littérature [A autoficção. Ensaio sobre a ficcionalização de
real (seu nome verdadeiro). Embora intuitiva, essa definição si em literatura].5
possibilita desenhar os contornos de uma extensa classe, de
um rico conjunto de textos: uma região literária parece dessa Ato V, 1991-1992
forma emergir do limbo da leitura. Trata-se também de um Serge Doubrovsky deseja organizar um colóquio sobre a
novo rosto e uma nova coerência que parecem adquirir certas autoficção. O grupo "Narrativas de vida" de N anterre tenta
obras, de toda uma teoria de escritores considerados "mitô- justamente encontrar um tema para seu próximo colóquio.
manos", de Restif à Gombrowicz, cujas fabulações íntimas Negócio fechado! .. . Será organizado um evento com o
passam subitamente a ter valor literário. É, por fim, um meio objetivo de ver com clareza essa pequena aventura teórica
de cotejar obras nunca ou raramente vistas como próximas. que coincide com as pesquisas atuais de outras disciplinas: a )
O que podem ter em comum A divina comédia e a trilogia poética - Gérard Genette acaba de publicar Fiction et diction ~
alemã de Céline, Moravagine e Em busca do tempo perdido, [Ficção e dicção] -, a filosofia em Temps et récit [Tempo e ri
Siegfried et le limousin [Siegfried e o limusina], Cosmos, o
Quichote e Aziyadé? Essas obras compartilham, entretanto,
narrativa] de Paul Ricreur, que desenvolve a ideia de con-)
figuração e de identidade narrativa; pesquisas no exterior,
a propriedade de serem fictícias e de inscrever seus autores como a de Paul John Eakin em particular; inquietações
no mundo imaginário que lhes é próprio. também, como a de Olivier Mongin, que diagnostica no
A investigação de Colonna se estende à literatura mun- sufixo auto um vírus que mata a ficção ...
dial e ao passado mais longínquo para mostrar a evidência de As reuniões preparatórias do grupo serão animadís-
uma prática insuspeitada pelos leitores. Mas seria de fato um simas. É um bom tema, justamente por não representar

26 Philippe Lejeun e AUTO FICÇÕ ES & CIA. 27


unanimidade. Seria possível pensar partindo de uma palavra François Nourrissier aceitaram escrever algumas páginas
como essa? Há os que acreditam na autoficção e os que acerca de sua relação com essa noção problemática.
não acreditam. Os que sabem o que é, e os que não fazem a A fün de deixar aberto o debate, escolhemos empregar,
menor ideia do que seja. Os que gostam e os que detestam. em nosso título, o plural: "Autofictions & Cie." [Auto ficções
Os que mudam de definição a cada reunião ... & Cia.], ecoando amigavelmente a coleção "Fictions & Cie."
É como se a palavra "autoficção" fosse um catalisador. [Ficções & Cia.], da Editora Seuil, dirigida por Denis Roche.
Ou uma partícula traçante, cuja trajetória revela as linhas de E vocês poderão ler, à guisa de epígrafe, um florilégio de
força de um campo antes de se esvanecer. Talvez não exista variações que, de Léon Bloy a François Nourissier, atestam
realmente um "gênero" que corresponda a essa palavra, mas a realidade das questões através das quais a palavra "auto-
no rastro deixado por sua passagem, nossos problemas se ficção" vai nos levar. . .
esclarecem, nossas diferenças se exprimem.
Questões contemporâneas: tentaremos estender a re- Variações
flexão a outras literaturas ... Queríamos também, saindo
Léon Bloy
da literatura, refletir sobre a exposição do corpo próprio e
da imagem de si no cinema (Boris Lehman, por exemplo) Fala-se muito em literatura vivida, em livros vividos. A
ou no teatro (Philippe Caubere), mas isso ficará para outro maioria dos romancistas contemporâneos nos dá assim seus
colóquio ... Ou fazer uma incursão no país das "escritas casinhos amorosos para farejarmos. Quero me convencer
brutas": foi o que fizemos. de que esse barbarismo acabará caindo no ridículo.
O colóquio aconteceu em Nanterre, nos dias 20 e 21 de Mas, se as pessoas gostam tanto disso, existe algum livro,
novembro de 1992. Em seus anais, o leitor acompanhará eu pergunto, algum romance moderno, alguma autobio-
grafia matizada de ficção, que seja mais vivida do que Les
nossas explorações. Foi infelizmente impossível registrar
chants de Maldoror [Os cantos de Maldoror]?
a mesa redonda fmal, última cena de nosso Ato 5, que, em
torno de Serge Doubrovsky, reuniu Annie Ernaux, François "Le cabanon de Prométhée. Sur Lautréamont"
N ourrissier e Alain Robbe-Grillet. Mas Annie Ernaux e (1890), publicado mais tarde em Belluaires et porchers (1905).

28 Philippe Lejeune AUTOFICÇÕES & CIA. 29


f

André Malraux
André Gide
Tenho de recusar tudo o que eu poderia escrever para Embora quase não tivesse bebido, estava bêbado daque-
me explicar, me desculpar, me defender. Imagino sempre la mentira, daquele calor, do universo fictício que estava
prefácios assim para L 'immoraliste [O imoralista], Les faux- criando. Quando dizia que se mataria, não acreditava em si
mesmo; mas já que ela acreditava, ele entrava num mundo
-monnayeurs [Os moedeiras falsos], La symphonie pastorale
em que a verdade não mais existia. Não era nem verdadeiro
[A sinfonia pastoral], sobretudo um no qual eu exporia o
nem falso, mas vivido. E já que nem seu passado que acaba-
que entendo por objetividade romanesca, estabeleceria dois
va de inventar, nem o gesto elementar e supostamente tão
tipos de romance, ou ao menos duas maneiras de olhar e
próximo no qual se fundamentava sua relação com aquela
pintar a vida que, em certos romances (Whuthering Heights,
mulher não existiam, nada existia. O mundo cessara de pe-
os de Dostoievski), se reúnem. Uma maneira exterior, e que
sar sobre ele. Libertado, passara a viver apenas no universo
é chamada comumente de objetiva, que vê primeiramente o
romanesco que acabava de criar, seguro do laço que toda
gesto de outrem ou o acontecimento e o interpreta. A outra
piedade humana estabelece diante da morte.
que se dedica primeiramente às emoções, aos pensamentos
e se arrisca a permanecer impotente para pintar algo que La condition humaine (1933), Folio, p. 247.
não tenha sido primeiro sentido pelo autor. Sua riqueza e
complexidade, o antagonismo de suas múltiplas possibilida- Drieu la Rochelle
des vão possibilitar uma maior diversidade de suas criações. Minha obra romanesca é falha ( ... ) Mas, refletindo me-
Mas é dele que tudo emana. Ele é o único responsável pela lhor, usando de mais habilidade e cuidado, eu poderia ter
verdade que revela, o único juiz. Todo o céu, todo o inferno encontrado uma forma mais condizente com meu pouco
de seus personagens estão nele. Ele não pinta ele próprio, fôlego, com meu apego ao real tal qual. Algo entre o diário
mas poderia ter-se tornado o que pinta, se não tivesse se e as memórias. Como tantos outros franceses. Falhei nis-
tornado ele mesmo. É para poder escrever Hamlet que so por outra razão: a falta de coragem moral. Poderia ter
Shakeaspeare não se deixou transformar em Otelo. substituído a falta de dons pela sinceridade, indo fundo na
8 de fevereiro de 1927 confissão.
Journal 1889-1939, Gallimard, Pléiade, p. 829.

AUTO FICÇÕ ES & CIA. 31


30 Philippe Lejeune
Ou será que poderia ter encontrado formas de trans- Através de procedimentos estilísticos ou tipográficos
posição que não eliminassem a acuidade da confissão? (talvez os dois conjugados?), distinção imediatamente per-
S.erá que foi falta de coragem? Ou simplesmente preguiça, ceptível entre o que foi ou é vivido - e o que é inventado.
leviandade? Penso tão pouco no que escrevo ...
26 de setembro de 1966
8 de outubro de 1939 Journal 1922-1989, Gallimard, 1992, p. 614.
Journal 1939-1945, Gallimard, 1991, p. 90.
Roland Barthes
Céline Tudo isso deve ser considerado como dito por um perso-
nagem de romance - ou antes, por vários. Pois o imaginário,
Isso vai dar um romance de mais ou menos 500 pá-
matéria fatal do romance e labirinto dos redentes nos quais
ginas .. .
se perde aquele que fala de si mesmo, o imaginário é assu-
[Sobre D'un château à làutre] mido por várias máscaras (personae), escalonadas segundo
Carta a Roger Nimier, 25 de fevereiro de 1957. a profundidade do palco (e no entanto nenhuma pessoa
por detrás). O livro não escolhe, funciona por alternância,
Michel leiris caminha por lufadas de imaginário simples e de acessos
críticos, mas os próprios acessos são sempre apenas efeitos
Um livro que não seria nem diário íntimo nem obra
de repercussão: não há imaginário mais puro do que a crítica
acabada, nem narrativa autobiográfica nem obra de ima-
(de si). A substância desse livro, afinal, é, pois totalmente
ginação, nem prosa nem poesia, mas tudo isso ao mesmo
romanesca. A intrusão, no discurso ensaístico, de uma ter-
tempo. Livro concebido de maneira a poder constituir um
ceira pessoa que não remete, entretanto, a nenhuma criatura
todo autônomo a qualquer momento que (pela morte,
fictícia, marca a necessidade de remodelar os gêneros: que
entenda-se) seja interrompido. Livro, portanto, delibera-
o ensaio confesse que é quase um romance: um romance
damente estabelecido como obra eventualmente póstuma
sem nomes próprios.
e perpétuo work in progress.
Roland Barthes par Roland Barthes,
Seuil, 1975,p. 123-124.

32 Philippe Lejeune AUTOFICÇÕ ES & CIA. 33


Patrick Modiano Marguerite Duras
O que é um "livreto de família"? É o documento oficial Não se sabe quando as coisas estão presentes na vida.
que liga todo ser humano à sociedade na qual ele veio ao Isso nos escapa. Você me disse outro dia que a vida sem-
mundo. Nele, estão consignados, com a secura administra- pre parecia como se fosse dublada. É exatamente o que
tiva que conhecemos, uma série de datas e de nomes: pais, sinto: minha vida é um filme dublado, mal montado, mal
casamento, filhos e, se for o caso, mortos. Patrick Modiano interpretado, mal ajustado, um erro, em suma. Um policial
explode esse contexto administrativo através de um livro sem assassinato, sem tiras nem vítimas, sem assunto, nada.
no qual a autobiografia mais exata se mistura às lembranças Poderia ser um verdadeiro filme nessas condições e não é,
imaginárias. é falso. Vai saber o que seria preciso para que não o fosse.
Quarta capa de Livret de famille, La vie matérielle, P.O.L., p. 139.
Galli.mard, 1977.
François Nourrissier
Serge Doubrovsky
Precisei, para escrever alguns romances, desenvolver
Para o autobiógrafo, como para qualquer escritor, nada, artimanhas e despender uma energia incrível. Só eu sei
nem mesmo sua própria vida, existe antes de seu texto; mas - como meus próximos, talvez, que também sofreram as
a vida de seu texto é sua vida dentro de seu texto. Para qual- consequências tumultuosas - a batalha, por vezes cômica,
quer escritor - mas talvez de modo menos consciente do sempre extenuante, que travei contra os sentimentos de
que para o autobiógrafo (se ele tiver feito análise)-, o movi-
impotência e inutilidade. Na maior parte das vezes, conse-
mento e a própria forma da escrita são a única inscrição de
gui me safar amalgamando confidências e invenção até não
si possível, o verdadeiro "vestígio", indelével e arbitrário, ao
saber mais onde estava a confissão e onde estava o romance.
mesmo tempo inteiramente fabricado e autenticamente fiel.
Aconteceu-me até de usar a primeira pessoa e a aparência
''L'initiative aux maux", da confissão para dar a uma narrativa aquele frêmito inse-
Cahiers Confrontation, n. l, 1979, p. 105.
parável da autobiografia (frêmito do estilo e excitação malsã

34 Philippe Lejeune AUTOFICÇÕES & CIA. 35


do leitor), que controlo melhor, sempre soube disso, do que Editions Tristram, no qual propõe uma "segunda teorià' da autoficção e uma
tipologia que o leitor encontrará em artigo presente nesta coletânea. (N.T.)
qualquer outra forma de expressão.
Bratislava, Grasset, 1990, p. 32-33.
Referências para os cinco atos
(Este texto foi publicado em S. Doubrovsky, 1. P. Lejeune, Le pacte autobiographique, em Poétique, n. 14, 1973 (artigo
publicado em 1975 no volume Le pacte autobiographique, Seuil); Le pacte
J. Lecarme, P. Lejeune, Autofictions & Cie., autobiographique (bis) e Autobiographie, roman et nom propre, em
RITM, n. 6, Publidix, 1993, p. 5-16. Título Moi aussi, Seuil, 1986; Qu'est-ce quine va pas?, em Entre l'histoire et le
original: "Autofictions & Cie. Piece en cinq roman: la littérature personnelle, Université Libre de Bruxelles, Centre
d'études canadiennes, 1993.
actes")
2. S. Doubrovsky, Fils, Ed. Galilée, 1977; L'initiative aux maux. Écrire sa
psychanalyse, Cahiers Confrontation, n. 1, Printemps, 1979; Autobio-
graphie/vérité/psychanalise, L'esprit créateur, XX, n. 3, Automne, 1980
Notas (artigo publicado também em Autobiographiques, P.U.F., 1988); Un
amour de sai, Hachette, Roman, 1982; Le livre brisé, Roman, Grasset, 1989.
1 O autor faz alusão ao salon carré [salão quadrado] do Museu do Louvre. (N.T.)
3. J. Lecarme, Fiction romanesque et autobiographie, Universalia, 1984,
2 O titulo também cria um efeito de ambiguidade, pois a palavra fils em francês,
p. 417-418; J. Lecarme, B. Vercier, Premieres personnes, Le débat, n . 54,
em sua forma escrita, pode significar tanto "filho" quanto "fios''. (N.T.)
mars/avril 1989.
' O título de Doubrovsky remete à conhecida frase de Stéphane Mallarmé, em
"Crise de verso" (1945) : "L'reuvre pure implique la disparition élocutoire du 4. V. Colonna, L'autofiction. Essai sur la ficcionalisation de soi en littéra-
poete, qui cede l'initiative aux mots" [A obra pura implica o desaparecimento ture, Doctorat de l'E.H.E.S.S. sous la direction de Gérard Genette, 1989.
elocutório do poeta, que cede a iniciativa às palavras] . Entretanto, Doubrovsky,
5. P. J. Eakin, Fictions in Autobiography: Studies in the Art ofSelf-Inven-
fazendo um jogo de palavras, utiliza o termo "maux" [males], homófono de
tion, Princeton University Press, 1985; Touching the World: Reference
"mots" [palavras] . (N.T.) in Autobiography, Princeton University Press, 1992; G. Genette, Fiction
4 O titulo, Um amor de si, faz ecoar Un amour de Swann [Um amor de Swann], et diction, Seuil, 1991; O. Mongin, Identité et littérature: la France en
segunda parte do primeiro volume de Em busca do tempo perdido, de Marcel mal de fiction, Le Monde, 3 juillet 1992; P. Ricceur, Temps et récit, Seuil,
Proust. A própria trama do livro de Doubrovsky repete a aventura do perso- 1983-1985, 3 volumes.
nagem de Proust, Swann, que teria passado anos apaixonado "por uma mulher
que não lhe agradava, que não fazia seu tipo". (N.T.)

5 Quatorze anos depois de sua tese, Vincent Colonna publica Autofiction & autres
mythomanies littéraires [Autoficção & outras mitomanias literárias], Mayenne:

36 Philippe Lejeun e AUTOFICÇÕES & CIA. 37


TIPOLOGIA DA AUTOFICÇÃO

Vincent Colonna

Aautoficção fantástica
Definição - O escritor está no centro do texto como em uma
autobiografia (é o herói), mas transfigura sua existência e
sua identidade, em uma história irreal, indiferente à veros-
similhança. O duplo ali projetado se torna um personagem
fora do comum, perfeito herói de ficção, que ninguém teria
a ideia de associar diretamente a uma imagem do autor.
Diferentemente da postura biográfica, esta não se limita a
acomodar a existência, mas vai, antes, inventá-la; a distância
entre a vida e o escrito é irredutível, a confusão impossível,
a ficção de si total.
A aproximação com a pintura é esclarecedora. No Re-
nascimento, há um tipo de retrato chamado in figura no
qual o pintor se insere na tela, emprestando seus traços
a uma figura religiosa ou histórica. O dublê do pintor se
destaca frequentemente por seu olhar que foge do espaço do

39
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quadro, voltado para o espectador. Dürer pintou a si mesmo , tête-à-tête que nunca aconteceu. Em direção bem diferen-
sob a figura do Salvador, em um Cristo ultrajado de 1493, te, como Van Gogh, e também Rembrandt, que nisso foi
que podemos comparar a um autorretrato do mesmo ano. insuperável, Frida Kahlo e Lucian Freud, que levaram sua
Filippino Lippi e Masaccio figuram nos afrescos da capela nudez mortificada ao mais alto grau, pintores praticaram
Brancacci, como espectadores assistindo aos Atos de Pedro. 1 uma forma ascética de autorretrato, mais empenhados em
Segundo a tradição, em seu quadro Davi com a cabeça de desvelar de maneira clínica as corrupções de seus próprios
Golias, Caravaggio teria desenhado seus próprios traços rostos e corpos do que preocupados com a busca de seme-
para animar o rosto decapitado de Golias. Os exemplos po- lhança. Há, no entanto, uma distância entre essas licenças
deriam ser multiplicados: em 1568, em seu Vidas dos mais I pictóricas (vejam a liberdade gráfica do Autorretrato com
excelentes pintores, Vasari já contava 80 pintores presentes, caveira, 1972, de Picasso) e uma representação de si situada
em um mundo mítico ou lendário. A autoficção fantástica
sob essa forma in figura, em seus afrescos ou retábulos. Os f
modernos continuaram explorando o procedimento com a difere assim da fabulação biográfica, da mesma maneira
predileção, ao que parece de inspiração luterana, por uma que a representação in figura se distingue do autorretrato,
transfiguração em Cristo: é o que se observa em Samuel tradicional ou ascético.
Palmer e Gauguin. Em Ensor, Dalí, Roy Lichtenstein ou Curiosamente, uma das primeiras fotografias, e a primeira
David Hockney, o gesto visa materializar a fantasmagoria e ficção da história da fotografia, utiliza a encenação in figu-
a mitologia pessoal: como O autorretrato mole com toucinho ra: é o célebre autorretrato O afogado (1840) de Hippolyte
assado (1941), no qual Dalí pintou seu "soft self portrait" Bayard, que o mostra quase nu, enrolado em um lençol, o
e uma variação sobre o motivo do relógio mole; como o corpo muito branco apoiado em uma banqueta, com um
hábil Autorretrato de 1978, no qual o rosto de Lichtenstein rosto sorridente de criança doente e, à sua direita, um grande
aparece através de um espelho que reflete a famosa trama, chapéu romântico. Ele queria protestar, dessa maneira, contra
)\marca de fabricação desse pintor da Pop Art; ou ainda, a a falta de reconhecimento oficial de sua invenção que, no
v-i
t' \gravura de Hockney, O artista e seu modelo (1974), que entanto, tinha uma técnica de fixação das imagens superior à
W mostra Hockney e Picasso sentados frente a frente, o pri- de Daguerre. Além do tema pessoal e da razão técnica dessa
meiro nu e o segundo olhando para um croqui, em um pose, a escolha é intrigante. Por que Bayard não optou por um

40 Vincent Colonna TIPOLOG IA DA AUTOF ICÇÃO 41


retrato mais realista? Ou por uma ficção visual dissociada de fantástica: ele adquire um modo de ser suplementar, fabu-
sua identidade? Como na história do romance, a autoficção loso, como o unicórnio, os heróis mitológicos ou a noção
está presente no começo da fotografia, antes do autorretrato de infinito. Seria possível escrever páginas e páginas sobre a
em sentido estrito. metafísica desse fenômeno vertiginoso, refinando à vontade
A coisificação do autor - Na autofabulação fantástica, o intervalo abissal que separa o estatuto ontológico de um
o efeito literário obtido, a exploração "xamanística" do escritor de ficções de si do estatuto de um escritor conven-
inumano é totalmente estranha à tradição autobiográfica: cional. Na prática, o imaginário, esse monarca caprichoso
o leitor experimenta com o escritor um "devir-ficcional", que governa a leitura e uma parte do reino humano, parece
um estado de despersonalização, mas também de expansão insensível a essas distinções. Seu primeiro movimento seria
e nomadismo do Eu. Esse efeito xamanístico parece mais antes esmagá-los, "condensá-los" como dizia Freud, pelo
intenso, mesmo se outros efeitos de leitura são possíveis, fato de o legendário (a ficção) mais reunir do que separar
como evoca o jovem Niestzsche, em sua descrição da em- os dois perfis. Constata-se que o escritor avança sempre
briaguez dionisíaca: acompanhado de uma lenda, dourada ou negra, instável
e polimorfa; lenda que constitui o sésamo de sua existên -

Assim como agora os animais falam e a terra dá leite e mel, eia na memória dos homens. Um personagem de autor
do interior do homem também soa algo de sobrenatural: ele se fabulado e a imagem mais ou menos magnificante de um
sente como um deus, ele próprio caminha agora tão extasiado e escritor são, para a faculdade de imaginar, duas entidades
enlevado, como vira em sonho os deuses caminharem. O homem igualmente fictícias, duas identidades de contorno instável
não é mais artista, tornou-se obra de arte ... 1
que existem apenas na proporção de sua capacidade para
produzir emoções e sonhos. Sua eficácia imaginária não é,
certamente, a mesma, mas tendo a crer que todos os escri-
Esse processo de reificação artística, através do qual o
tores de renome nos vêm à mente, além de seu estatuto de
escritor não é mais apenas uma pessoa, mas também objeto
"descrição definida" (eles designam seus escritos como uma
estético é aquele destino estranho sobre o qual Gombrowicz
etiqueta), como papéis quase míticos, suscitando a mesma
se interrogava em seu diário. Legitimamente, é o que acon-
mistura de investimento e afetos que os heróis de romance.
tece ao escritor que se autofabula em um trecho de literatura

TIPOLOGIA DA AUTOF ICÇÃO 43


42 Vincent Colonna
glória conquistada aos 25 anos, que, no entanto, se suicida
Em outras palavras, uma ontologia formal que tentasse con-
ao fim do romance, como de "uma criatura que se alimenta
ceitualizar o efeito reificante da autoficção fantástica, com o
de seu próprio coração".
objetivo de esclarecer suas consequências paradoxais sobre
Reconhecemos nessa categoria a tendência que é a mais
a função de autor, talvez tenha interesse, mas um interesse
difundida e, ao mesmo tempo, a mais controversa da auto-
mais filosófico que literário.
ficção, aquela que, periodicamente, é acusada de mistifica-
( ...)
ção e contra a qual se apela à indignação pública. É verdade
que ela exaspera até mesmo os críticos mais informados,
Aautoficção biográfica que acabam por confundi-la com a tradição autobiográfica
Definição - O escritor continua sendo o herói de sua histó- seguida por Gide e Leiris ou com a literatura de testemunho
ria, o pivô em torno do qual a matéria narrativa se ordena, e que, atualmente, se ouve com frequência absurdos segundo
mas fabula sua existência a partir de dados reais, permanece os quais autoficção e autobiografia são sinônimos. Também
mais próximo da verossimilhança e atribui a seu texto uma é verdade que essa orientação literária é típica dos grandes
verdade ao menos subjetiva ou até mais que isso. Alguns narcisistas, em geral horripilante enquanto o autor está vivo
contemporâneos (Doubrovsky, Angot) reivindicam uma e funciona melhor post mortem, mesmo que sem garantia do
verdade literal e afirmam verificar datas, fatos e nomes. resultado. Céline, que conhecia bem a questão e conhecia a
Outros abandonam a realidade fenoménica (o personagem é sua história literária como homem da arte (é preciso lê-lo
um bebê que tem o sobrenome do pai do autor), mas perma- comentando Proust e explicando o que Le temps retrouvé
necem plausíveis, evitam o fantástico; fazem de modo que o [O tempo redescoberto] deve a Histoire de ma vie [História
leitor compreenda que se trata de um "mentir-verdadeiro", de minha vida] de Georges Sand), clamava: "A posteridade?
de uma distorção a serviço da veracidade (em romance de Você está brincando? Primeiro é preciso morrer. Depois a
1964, com esse título, Aragon desmontou algumas engre- gente vê. Vivo, você não vale nada. Você só começa a ser
1
nagens de tal mecanismo criativo). Um núcleo narrativo degustado, quando está sendo comido pelos vermes."
elementar é exibido como verídico e como eixo do livro, Como a subjetividade substituiu a sinceridade - Graças ao
tendo como modelo alguns precedentes históricos: aos 75 mecanismo do "mentir-verdadeiro", o autor modela sua
anos, Goethe ainda falava de seu herói W erther, pedestal da

TIPOLOGIA DA AUTO FICÇÃO 45


44 Vincent Colonna
imagem literária e a esculpe com uma liberdade que a litera- Após o romantismo, um princípio de subjetividade ab-
tura íntima, ligada ao postulado de sinceridade estabelecido soluta se generalizou pouco a pouco na escrita e na recepção
por Rousseau e prolongado por Leiris, não permitia. Raros dos textos romanescos: é o paradoxo de Jean Cocteau em
são os falsários (Da Ponte? Maurice Thorez?) ou memorialis- Opéra [Ópera] (1927): "Eu sou uma mentira que sempre
tas dotados da mesma mitomania serena de Chateaubriand: diz a verdade"; a fórmula de Denis Roche em Louve basse
suas Mémoires d'outre-tombe [Memórias de além-túmulo] [Loba baixa] (1976): "Não precisam tentar descobrir, o livro
(1850) são famosas tanto por suas mentiras quanto pelo es- fala de mim. É romance." Levando bem longe o uso dessas
tilo cativante (como a famosa descrição do Mississipi, intei- misturas contraditórias, fazendo variar a pessoa gramati-
ramente inventada a partir de relatos de viajantes). A noção cal de seu narrador e o grau de trap.sposição, Christopher
plástica de autoficção, em sua acepção mais corrente e mais Isherwood deu uma justificativa inevitável a essa prática
vaga, marca talvez uma evolução significativa da escrita de si, ambígua: "Tudo o que se inventa sobre si mesmo faz parte
através da qual o procedimento autobiográfico se transforma do mito pessoal e, consequentemente, é verdadeiro." ( Chris-
em operação de geometria variável, cuja exatidão e precisão topher et son monde) [Christopher e sua espécie] {1976). Em
não são mais virtudes teologais. Com a opção autobiográfica contrapartida, o efeito antecipado sobre o leitor permanece
pura que permanece, o autor pode doravante redigir sua o mesmo da literatura autobiográfica em sentido estrito:
vida ou um episódio, romanceando mais ou menos, sem reparação de si, empatia, simpatia, admiração, exaltação,
que o grau de romanceação tenha grande importância. Essa edificação ou ambivalência.
fórmula, na qual a veracidade se apaga diante da expressão, (...)
existia há muito tempo a título de poesia, modo de escrita Nome próprio - Para certos críticos, a grande originali-
em que muitas são as liberdades possíveis: a Vita nuova de dade da autoficção estaria na revelação do nome próprio;
Dante, a poesia narrativa de Byron, as Méditations poétiques no romance autobiográfico, os nomes estariam cifrados
[Meditações poéticas] de Lamartine quase não são mais ou esquivados, principalmente o do autor. De maneira, às
lidas, mas moldaram gerações de leitores, na época em que vezes, muito transparente: o nome René (1802) é o segundo
a forma versificada sabia conquistar o público. nome de batismo de François-René de Chateaubriand e,
nessa confissão, o crítico Albert Thibaudet identificava o

46 Vincent Co lonna TIPOLOGIA DA AUTOFICÇÃO 47


aparecimento na história literária do "pequeno romance homem ilustre, acrescentou a seu primeiro herói, em todas
autobiográfico com nome". David Copperfield (1849-1850) as reedições do Culte du moi, o nome "Philippe": o leitor
narra a infância infeliz de um personagem epônimo, cujas não podia mais amalgamar esse personagem extremista ao
iniciais invertidas são as do autor Charles Dickens. Em deputado conservador que se recusava a votar a favor de
sua trilogia de inspiração autobiográfica publicada de 1879 recursos para construir uma estátua de Rousseau. É o que
a 1886: L'enfant [A criança], Le bachelier [O bacharel] e se chama virar a casaca; mudar de sinceridade, diziam os
L'insurgé [O insurreto], Jules Valles deu suas iniciais a seu mais indulgentes, quando Barres era "o príncipe da juven-
duplo Jacques Vingtras. É verdade que, frequentemente, tude", iniciando Proust em Veneza ou Aragon na primazia
a associação personagem-autor era consequência de uma absoluta do estilo.
omissão: entre 1888 e 1901, o jovem Maurice Barres publicou Com a autoficção biográfica, segundo a vulgata domi-
uma trilogia egotista navegando entre o ensaio e o romance, nante, a esquiva ou a codificação são abandonadas, os nomes
intitulada Le culte du moi [O culto do eu]. Nesses textos, o são dados, nomes e sobrenomes, do autor e o dos outros,
herói associai e meio anarquista é anônimo, o que signi- como nas obras de Marc-Édouard Nabe ou Guillaume
ficava, segundo as convenções da época, um personagem Dustan. Em L'inceste [O incesto] (1999), Christine Angot
próximo do autor. Barres era então um escritor irreverente, chega mesmo a misturar nome disfarçado e nome real para
que atacava sem hesitar gurus da época: seu retrato irônico uma mesma pessoa (a mulher que foi sua amante durante
de Ernest Renan, paródia da visita ao grande escritor, Huit três meses) e a citar, longamente e por provocação, as reco-
jours chez M. Renan [Oito dias na casa do senhor Renan] mendações do conselho jurídico da editora, que a convidava
(1888), ainda merece ser lido. Ao envelhecer, tendo desco- a apagar todos os nomes reais da narrativa a fim de evitar
berto que tinha uma sensibilidade de conservador, anteci- processos por difamação, atentado à vida privada etc. Nesse
pando paradoxalmente o nacional-socialismo, tornou-se o caso, não houve nenhuma consequência, mas, às vezes, a
signatário de Colette Baudoche (1909) e do ciclo patriótico publicação acarreta processos memoráveis (casos Rezvani,
dos Bastions de l'Est [Bastiões do Leste], sem contar sua Lanzmann, Doubrovsky, Laurens et c.). Com situações
qualidade de acadêmico e homem político influente. Como cômicas em que o feitiço vira contra o feiticeiro, quando
seus primeiros escritos interferiam em seu estatuto de o fabulador indiscreto se vê, por sua vez, ele próprio ou

48 Vin cent Colonna TIPOLOG IA DA AUTO FICÇÃO 49


alguém próximo a ele, envolvido em uma ficção (Lanzmann pelos habitantes de Florença). A verdadeira novidade de
denunciando Rezvani, Doubrovsky contra o sobrinho Marc nossa época está na supervalorização cultural do proce-
W eitzmann e seu romance Chaos [Caos] que, dentre outras dimento: esse é o fato indiscutível. Antes, na consciência
mistificações, afirmava que a palavra autoficção era uma literária, o nome não era um marcador valorizado, o critério
invenção do romancista americano Jerzy Kosinsky). O livro por excelência. Esse passado já se tornou história e é difícil
não é mais aquele grande cemitério onde, sobre a maioria falar de um momento histórico sem documentação. Mas a
dos túmulos, se leem apenas nomes apagados, como escre- lembrança de algumas revistas dos anos de 1945-1950 en-
via Proust ao término da Recherche [Em busca do tempo contradas em sebos me leva a pensar que se debatia menos
perdido]; é uma quermesse onde os vivos deambulam com a questão do nome próprio do que a da legitimidade (já) do
um crachá indicando sua identidade - e, às vezes, se engal- romance pessoal, como se o gênero tivesse ainda sobrevida
fmham como em filmes burlescos. suficiente para não ser redescoberto e redefinido a partir de
Na realidade, a novidade do procedimento é discutível, um critério onomástico. Preferia-se criticar Henry Miller
pois no pós-guerra, o romance autobiográfico era frequente- ou Céline pela incapacidade de escrever um romance roma-
mente nominal. Céline, Henry Miller, Romain Gary, David nesco, Cendrars era taxado de genial mitômano. Causava
Rousset, Jean Genet ou Blaise Cendrars praticaram oro- espanto que Genet fabricasse um lirismo moderno sem
manesco pessoal, conservando os nomes autênticos, assim modelo, unicamente com suas experiências suspeitas, cuja
como seus nomes de escritor. (Céline foi processado pelos autenticidade ainda não era discutida, mas, ao contrário,
"von Leiden", citados em Nord [Norte] e, em 1964, uma parecia evidente por suas confidências provocantes, diários
edição "definitiva" foi publicada, na qual todos os nomes sensacionalistas e pelo monumental estudo biacrítico de
próprios tinham sido substituídos.) Antes deles, escritores Sartre - que não verificou nada e acreditou piamente em
como Colette, Breton, Aragon, Hesse, Loti, Nerval, Restif, tudo o que o rapsodo ("tecedor de canções" em grego) do
Viau, Pisan ou Dante, haviam agido da mesma maneira, com Journal du voleur [Diário de um ladrão] contava embelezan-
relação a seu nome e aos dos outros (Lamartine criticava A do. Foi o que possibilitou, como declarou Bataille, a investi-
divina comédia por seu lado mundano florentino, pois, no gação mais aventurosa empreendida por um filósofo sobre o
poema, figuram muitos nomes identificáveis unicamente problema do Mal, mas talvez não a melhor monografia sobre

50 Vincent Co lonna TIPOLOGIA DA AUTOF ICÇÃO 51


Jean Genet. Pois o seu]ournal du voleur, mais narrativa do antiga, na qual as pessoas envolvidas se reconhecem e que
que diário do cotidiano, não conserva nada da sinceridade os outros leem como uma ficção, nem mais nem menos.
1
exacerbada dos grandes modelos do gênero, como Amiel ( ...)
ou Gide; nele pode-se ler, entre outras advertências:"(. .. )
que minha vida deve ser lenda, isto é, legível e sua leitura Aautoficção especular
1 j
dar vida a alguma emoção nova que chamo poesia. Não sou Definição - Baseada em um reflexo do autor ~u ~o li~ro
mais nada, além de um pretexto." dentro do livro, essa tendência da fabulação de si nao deixa 1
Volto para um terreno mais seguro, sobre a atenção nova de lembrar a metáfora do espelho. O realismo do texto e sua
e talvez excessiva à inscrição do nome próprio do autor no verossimilhança se tornam, no caso, elemento secundário,
romance. Essa recepção sem precedentes que engendrou a e O autor não está mais necessariamente no centro do li-
necessidade da palavra "autofi.cção" certamente tem a ver vro; ele pode ser apenas uma silhueta; o importante~é que
com o grande movimento social no qual se misturam juri- se coloque em algum canto da obra, que reflete entao sua
dismo e individualismo, cuja manifestação mais visível é a presença como se fosse um espelho. Até a e_ra dos co~pu-
ascensão da "extimidade" dos últimos anos do século XX. tadores, 0 espelho foi uma imagem da escnta em açao, de
Trata-se da tão falada onda de desvelamento da intimidade sua maquinaria e emoções, e também de sua vertigem: o
que é, ao mesmo tempo, fabricada e refletida pela televisão, termo especular parecia então indicado para designar essa
o mundo político, os costumes, a vida privada e profissional
postura refletora. . , .
- da qual ainda não se cansou de falar. Será uma revolução Em pintura, para continuar o paralelismo, e preciso pen-
literária? Para que fosse, seria preciso que o planeta tivesse sar no procedimento do "quadro dentro do quadro:', no qual
se transformado de fato em uma aldeia, ideia que não passa pintor se representa em um ângulo da tela, mmtas _vezes
0
de fantasia da publicidade. Na verdade, todos os nomes diante de um cavalete e de pincel na mão, como se estivesse
exibidos nessas narrativas romanceadas, exceto o autor e pintando a cena que contemplamos. As meninas (1656) de
os personagens públicos, remetem, para o leitor comum, Velásquez é um exemplo frequentemente comentado dessa
a desconhecidos. O efeito produzido não difere, portanto, tradição pictórica, que abrange desde o monumental_O ate-
de um romance (ou peça de teatro) à clé, fórmula literária lier do pintor, de Courbet até certos quadros de Matisse ou

TIPOLOGIA DA AUTOFICÇÃO 53
52 Vincent Colonna
Picasso, tradição, em princípio, distinta daquela do autorre- por uma primavera imprevista, o escritor pode se tornar
trato dito autônomo - assim como a fabulação especular se personagem, o personagem escritor, o leitor pode se ver no
diferencia da autoficção autobiográfica. Em L'reil et l'esprit meio do complô maquinado pela ficção, transformado em
[O olho e o espírito] (1964), pequeno texto sugestivo sobre sujeito da história, como Calvino demonstrou de maneira
pintura, Maurice Merleau-Ponty associa essa tradição do surpreendente em seu romance Se um viajante numa noite
retrato do pintor pintando à presença de um espelho dentro de inverno (1979).
do quadro; os dois proclamam a reversibilidade do vidente ( ... )
e do visível, da essência e da existência, do imaginário e do Afirmei que a autoficção sempre tinha algo de especular:
real; "uma universal magia que transforma as coisas em es- ao por em circulação seu nome, nas páginas de um livro do
petáculos, os espetáculos em coisas, eu em outrem e outrem qual já é o signatário, o escritor provoca, quer queira quer
em mim". Essa reversibilidade é, às vezes, expressamente não, um fenômeno de duplicação, um reflexo do livro sobre
o objeto da representação, como no autorretrato de 1646, ele mesmo ou uma demonstração do ato criativo que o fez
no qual Johannes Gumpp se expõe de costas, ao passo que nascer. Em contrapartida, e essa é outra diferença entre as
dois reflexos simétricos de seu rosto, sobre um espelho e duas figuras, uma mise en abyme não invoca necessaria-
sobre sua tela, o enquadram e olham para o espectador. No mente a fabulação de si: Hamlet contém, como se sabe, uma
primeiro plano do quadro, mergulhados em semiobscurida- pequena peça encenada no castelo de Elseneur, mas a re-
de, paralelos aos dois reflexos do rosto do pintor, um gato transcrição dessa performance teatral não põe Shakespeare
e um cachorro se espreitam e estão prestes a se dilacerar em cena, nem faz parte da lista das obras do dramaturgo
mutuamente, como se a metamorfose do vidente e do visível elisabetano. Ao passo que L'impromptu de Versailles [O
não fosse possível sem violência. improviso de Versailles] de Moliere, peça singular, na qual
Mas com ou sem o motivo do espelho, violenta ou a tradição do teatro dentro do teatro encontra a metalepse,
pacífica, essa reversibilidade é a lição capital de todos os põe em cena um chefe de trupe de nome Moliere que im-
procedimentos refletores, qualquer que seja a escala, o dis- provisa um espetáculo para o rei: o improviso anunciado
positivo ou o campo artístico. Ela cochila no fundo das obras pelo título.
literárias e, sem aviso prévio, sua hibernação é interrompida

54 Vincent Co lonna TIPOLOGIA DA AUTOF ICÇÃO 55


Nas melhores dessas realizações, é a duplicidade da Balzac, egotista em Stendhal ou irônica em Mérimée, faz par-
literatura, o artifício dessas figuras que se expõe. A ficção te da euforia de um certo romance clássico, pré-flaubertiano:
literária se mostra então não como espaço de ilusão (uma nele, a narração é alerta e alegre, como antes do pecado
velha crítica), mas como laboratório onde os mecanismos original. Mas a partir de Flaubert e James, a literatura ro-
são desmontados e apresentados ao leitor com o fim de lhe manesca se construiu com base na ocultação progressiva da
proporcionar o prazer de descobri-los. instância narrativa, se empenhou em dissociar o escritor de
( ... ) sua "voz", em preconizar um ideal estético de apagamento e
impassibilidade do autor, para fazer do romance uma cena
Aautoficção intrusiva (autoral} imaginária cujo maestro estaria ausente. Nabokov é a grande
exceção desse movimento de refluxo, talvez por sua cultura
Definição - Nessa postura, se pudermos considerá-la de fato
russa, na qual a redescoberta de Tristan Shandy nos anos de
como tal, a transformação do escritor não acontece através
1920, pelos formalistas, foi um acontecimento.
de um personagem, seu intérprete não pertence à intriga
Os parágrafos que abrem Le pere Goriot [O pai Goriot]
propriamente dita. O avatar do escritor é um recitante, um
(1835) são uma ilustração clássica da intrusão do autor no
contador ou comentador, enfim um "narrador-autor" à
romance:
margem da intriga. É por isso que essa postura não figura
na obra de Luciano de Samósata: ela supõe um romance
A senhora Vauquer, Conflans de solteira, é uma velha senhora,
"em terceira pessoa", com um enunciador exterior à trama.
que há quarenta anos, mantém em Paris uma pensão burguesa
Nessa "intrusão do autor'',2 o narrador faz longos discursos
estabelecida na rua Neuve-Sainte-Genevieve, entre o quartier
enfadonhos dirigidos ao leitor, garante a veracidade de fatos
latin e o f aubourg Saint-Marceau ( ... ) Todavia, em 1819, época
relatados ou os contradiz, relaciona dois episódios ou se
em que começa esse drama, se encontrava na pensão uma pobre
perde em digressões, criando assim uma voz solitária e sem
jovem ( ... ) É assim que você dirá, você que segura esse livro em
corpo, paralela à história.
suas mãos brancas, você que se afunda numa poltrona macia,
Essa voz, mais ou menos intrusiva, brincalhona em
pensando: "Talvez esse livro me divirta:' Após a leitura dos secretos
Scarron, tirânica em Jacques le fataliste [Jacques, o fatalista],
infortúnios do Pai Goriot, você vai jantar com apetite atribuindo
espiritual em Fielding, sentenciosa em Scott, digressiva em

56 Vincent Colonna TIPOLOGIA DA AUTOFICÇÃO 57


a sua insensibilidade ao autor, a quem vai chamar de exagerado instala um outro romance, um romance difuso, em alguns
e acusar de fazer poesia. Ah! Pois, saiba: esse drama não é nem momentos quase secreto, reservado aos leitores filólogos,
ficção, nem romance. All is true, ele é tão verdadeiro que cada um ruminantes, diria Nietzsche.
de nós pode reconhecer os seus elementos em sua própria casa, Em primeiro lugar, a história da história - como Bal-
em seu coração, talvez. zac descobriu a tragédia vivida por Goriot? Em um fait
divers? Inspirando-se em Rei Lear, tragédia com roteiro
Ao interpelar uma leitora, Balzac se desmascara, põe a semelhante? Tirou-a de sua própria imaginação? O que
cara dentro da cena, não hesitando em se gabar de sua quali- demonstraria que Balzac não é o autor encenado: "pois esse
dade de dramaturgo, nem tampouco em tentar influenciar a narrador-autor é alguém que 'conhece' a pensão Vauquer,
leitura. Não se contenta em enunciar julgamentos como em sua proprietária e seus pensionistas, ao passo que Balzac
Walter Scott (pouco tempo antes desse trecho, ele condenara apenas os imagina."3 A descoberta desse drama é contada
sua época pelo uso "torturador" da palavra drama, e pelos nas primeiras páginas pelo próprio "autor", ela pertence ao
"tempos de dolorosa literatura"), ele se nomeia "o autor", romance do romance e é atribuída a Rastignac:
opera uma estratégia de contato com o público, teoriza
sobre a veracidade de seu romance. A verdade romanesca Sem suas observações curiosas e a habilidade com que soube
se toma a verdade do coração, uma objetividade de ordem circular nos salões de Paris, essa narrativa não teria sido colorida
interior, uma exatidão verificável por empatia, segundo a com os tons verdadeiros que se devem sem dúvida a seu espírito
descoberta de Rousseau. sagaz e a seu desejo de penetrar nos mistérios de uma situação
À margem de sua história, no plano da narração, Balzac pavorosa, cuidadosamente escondida tanto por aqueles que a
erige, portanto, uma intriga secundária, a do autor narrando haviam criado, quanto por quem era sua vítima.
e seduzindo seu público. Ele se transforma não em prota-
gonista, mesmo efêmero, mas em contador de uma espécie Assim, o autor não imaginou esse drama, mas foi infor-
particular, um tapeador de sua própria história. Entre as mado pelo jovem estudante de direito que fez uma verda-
linhas desse "drama da paternidade", ao lado dos aconte- deira investigação para esclarecer "os infortúnios secretos
cimentos vividos pelos pensionistas da pensão Vauquer, se do Pai Goriot": a necessidade de dinheiro inextinguível

58 Vincent Co lonna TIPOLOGIA DA AUTO FICÇÃO 59


de suas filhas, os sacrifícios cada vez maiores do pai para Esse sonho prometeico de engendrar criaturas que se
satisfazê-las. Parece um daqueles romances gregos, nos tornem autônomas graças a um demiurgo que desaparece
quais o autor tem sempre necessidade de uma testemunha em seu efeito-mundo, foi também o sonho do escritor
ocular para forjar sua narrativa. O informante Rastignac, para o conjunto da Comédie humaine. Como em Le pere
no entanto, é um personagem fictício, que aparece pela pri- Goriot, ele o realizou até mesmo nas margens de seu ciclo:
meira vez em uma narrativa fantástica, La peau de chagrin La recherche de l'absolut [À procura do absoluto], Facino
[A pele de onagro), romance que lançou Balzac, quando Cane [Facino Cane], Histoire des treize [História dos treze]
ele ainda não tinha inventado o princípio do retorno dos e algumas outras narrativas amoldam um Balzac de ficção,
personagens, nem pensado na arquitetura da Comédie hu- um Autor-recitante que assombra os bastidores de seus
maine [Comédia humana] . romances, circula entre um e outro, como filósofo, teósofo
Temos então um "autor" que tem a pretensão de contar ou historiador, mas sempre se construindo como efeito de
a história "verdadeira" de um Rastignac criado por Balzac sua obra e não o inverso.
por volta de 1831 . Parece paradoxal: não estamos longe dos É que Balzac tem da literatura uma visão embriagadora,
circuitos e círculos da narração especular. A ficção se revira mais próxima de um Rimbaud do que se poderia imaginar:
como uma fita de Moebius para absorver a situação real da a obra é, para ele, uma forma através da qual o mundo pode
escrita: Rastignac se torna o autor invisível de Le pere Goriot; ser contemplado, apagando os limites da individuação, do
Balzac, o escriba de Rastignac. A criação engloba e ultrapassa espaço e do tempo; a criação literária é um "sonho acorda-
então o criador, mas, em troca, permite que ele atinja por do", um "dom de segunda vista", uma percepção intuitiva
procuração um estatuto inacessível, uma proximidade com da realidade pela qual é preciso "abandonar seus hábitos,
seres de exceção - como frequentemente sonhou o roman- se tornar um outro". 4 A partir daí, parece coerente que o
cista, que desenvolveu amplamente esse tema da vida por escritor Balzac penetre progressivamente na estrutura de sua
procuração para seus personagens ("A minha vida, mesmo, Com édie hu maine e se amalgame com sua obra, através de
são as minhas filhas", diz Goriot; "Eu serei o senhor" diz um devir-texto que Mallarmé, o Obscuro, desenvolveria em
Vautrin a Lucien de Rubempré etc.). verso, com o desaparecimento elocutório do poeta.

60 Vincent Co lonna TIPOLOGIA DA AUTO FICÇÃO 61


Duas imagens do narrador - Após 40 anos de narratologia uma grande liberdade de expressão ou de conivência com os
e de semiótica, pode parecer estranho confundir o narrador personagens. Muitos testemunhos poderiam confirmar esse
e o autor, descrever uma ficcionalização de autor, quando fato histórico e cultural. Quando formula seu ideal estético,
a teoria literária contemporânea aprende a identificar um Flaubert não diz "o narrador deve se apagar na narração",
narrador fictício. É verdade que, ao estabelecer uma fron- mas "o artista não deve aparecer em sua obra mais do que
teira absoluta entre o autor e o narrador, a poética e a nar- Deus na natureza". Quando rejeita o procedimento das
ratologia modernas tornaram esse fenômeno imperceptível intrusões, em Bouvard et Pécuchet [Bouvard e Pécuchet], é
e quase impensável. mais uma vez a palavra autor que emprega:
Durante muito tempo, no entanto, o "Autor" presente
no texto (a "voz" de Balzac, de Fielding, de Mérimée ou de Nesse gênero de livros, deve-se interromper a narração para
Stendhal) foi percebido como um papel inventado e repre- falar do cachorro, das pantufas e da amante. Tanta falta de ceri-
sentado em função das necessidades da escrita de ficção. mônia os encantou inicialmente, depois lhes pareceu idiota, pois
Entendia-se que o escritor adotava um papel de composição, o autor apaga a sua obra quando nela exibe sua pessoa.5
adequado a seu tema, para poder desenvolver sua narração,
orientar a leitura, despistar o leitor quando o gênero o Balzac lembra, com frequência, em seus comentários,
exigia. Todos os pais conhecem essa situação de comuni- prefácios ou dedicatórias, que as afirmações dos persona-
cação: para contar uma história a uma criança, é preciso gens são responsabilidade deles, não do escritor - mas nunca
mudar a voz e a dicção, adaptá-las ao conteúdo narrado, se afirmou o mesmo com relação a seus narradores, alter ego
metamorfosear para dar a impressão que acreditamos no ou duplos ficcionais dele mesmo. Do mesmo modo, co-
mundo maravilhoso ou aterrorizante invocado pelo conto. mentando as digressões de Balzac, e tendo escapado não se
Há menos de um século, essa ainda era a atitude de comuni- sabe como da "virada linguística" de seus contemporâneos,
cação dos escritores com os leitores: para todos, o narrador Julien Gracq analisa ainda La comédie humaine como se a
era o Autor disfarçado, uma máscara adotada segundo as identidade do autor (o escritor) e do narrador fosse óbvia:
necessidades da narrativa. Esse estatuto não o desobrigava
da responsabilidade quanto ao conteúdo textual, mas dava

62 Vincent Colonna TIPOLOGIA DA AUTOFICÇÃO 63


Quando Balzac se lança em páginas e mais páginas, em de- concepção do senso comum permite compreender melhor
senvolvimentos ou comentários infinitamente mais amáveis que a autoficção intrusiva, postura fabuladora que implica ape-
os de Stendhal, ele dá a impressão, por um efeito de ventriloquia, nas a função de autor, com todas as suas consequências.
de falar do outro lado da cena, não como um dos personagens do Pois o que mostra essa autoficção autoral (da palavra latina
romance, mas antes como um herói extra, destinado ao comen- auctor, que originará "autor" e cuja significação era muito
tário e um pouco como um corifeu de tragédia emburguesado, larga: "aquele que faz crescer ou aumentar", "fundador",
espectador da ação, é claro, mas do lado do palco, não do público.6 "instigador", "fonte", "responsável", "autoridade") é que, no
cerne da atividade literária, opera uma pulsão de afabulação
Gracq traduz assim a concepção corrente de narrador de si, às vezes plenamente realizada, muitas vezes recalcada.
na crítica até os anos de 1950-1960. O belo livro de Georges No momento em que um escritor começa uma narração
Blin sobre Stendhal et les problemes du roman [Stendhal e ou um poema, ele tem a possibilidade de se ficcionalizar. A
os problemas do romance] (1954), que vai muito além da função narrativa lhe dá liberdade de enriquecer seu papel
questão do romance stendhaliano, para se constituir em de contador, de modular sua atitude com relação à história
obra de teoria literária e conceitualizar o fenômeno das contada, por alusões, comentários, à expressão da sua verve,
"intrusões de autor", estudando igualmente seu desenvolvi- para se construir como "herói extrá: 1
mento histórico, é um dos últimos grandes livros de crítica Tal faculdade se encontra no próprio discurso, em cer-
que associa narrador e autor, instância narrativa e escritor tos recursos da linguagem em ação e é aí (no prodigioso e
em um mesmo papel. labiríntico conjunto das formas de interação linguageira)
O leitor pode escolher, hoje, entre duas concepções que se deve procurar a razão desse laço infrangível entre a
concorrentes de narrador: uma concepção segregacionista, literatura e a fabulação de si. E também, mas não simples-
advinda da narratologia - a que dissocia autor e narrador - , mente como o reverso da moeda, na paixão fabuladora que
que tende a se tornar mais sutil, mas continua sendo um habita o humano, nesse horizonte ficcional que o cerca por
dogma teórico; e uma concepção assimiladora, muito mais todos os lados. O mundo o assedia com imagens, narrativas
antiga, considerada como "científicá' até os anos de 1960, ou mitos; grande parte de seu tempo, ele passa em seu teatro
que faz as duas instâncias se cruzarem (mas sem se confun-
direm) e que perdura junto ao público. Paradoxalmente, a

1
64 Vincent Colonn a TIPOLOGIA DA AUTO FICÇÃO 65
interior; e seus projetos mais sérios, suas realizações mais
tangíveis, não são mais do que sonhos solidificados. AUTO FICÇÃO: UM MAU GÊNERO?
(Este texto corresponde a parte do livro
Autofiction & autres mythomanies littéraires,
Auch, Tristram, 2004.)

Notas Jacques Lecarme


1
Optamos pela transcrição da tradução brasileira feita por J. Guinsburg: F.
Nietzsche, O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo, São Paulo,
Companhia das Letras, 1992, p. 31.
2
George Blin, Stendhal et Ies problemes du roman, Paris, José Corti, 1954.
' Gérard Genette, Figures III, Paris, Seuil, 1972, p. 226.

' Honoré de Balzac, Facino Cane, Paris, Le Club Français du Livre, 1953, lliuvre
Como foi, por diversas vezes, mencionado nessa coletâ-
de Balzac, t. 2. nea, 1 o termo autoficção foi lançado, no mercado francês,
5
Gustave Flaubert, Bouvard et Pécuchet, Paris, Gallimard, 1979, p . 205, por Serge Doubrovsky em Fils (1977).2 Foi no peritexto
capítulo 5.
que surgiu o neologismo, uma vez que a quarta capa do
' Julien Gracq, En lisant en écrivant, Paris, Corti, 1980, p. 44-45.
romance, em caracteres vermelhos e em itálico, propunha
7
Idem, En /isant en écrivant.
o termo, preferindo-o à autobiografia e em relação com
uma "autofricção, pacientemente onanista". Esse emprego
muito lúdico foi justificado e teorizado pelo autor, em
curto artigo de 1980, intitulado "Autobiographie/vérité/
psychanalyse" [Autobiografia/verdade/psicanálise ].3 Ad-
mitiremos aqui, nos apoiando no quadro das narrativas
construído por Philippe Lejeune e aperfeiçoado por Serge

66 Vincent Colonna 67
Doubrovsky, que a autoficção é inicialmente um dispositivo narrador sisifístico arrastando os grilhões de uma culpa cada
muito simples: ou seja, uma narrativa cujo autor, narrador vez mais opressora. Como W oody Allen, e com a mesma
e protagonista compartilham da mesma identidade nomi- graça, Doubrovsky nos mostra variações ininterruptas sobre
nal e cuja denominação genérica indica que se trata de um seu vivido imediato. Como em Roland Barthes, a ficção se
romance. 4 Enfim, Doubrovsky foi o primeiro a preencher limita a "um pensamento dos efeitos"; mas, à diferença da
a casa cega identificada por Lejeune. Ao longo do tempo, autoficção barthesiana, esse "pensamento dos efeitos" em
entretanto, com Un amour de soi [Um amor de si] (1982),5 Doubrovsky não elimina de modo algum a "instância de
Le livre brisé [O livro partido] (1989),6 L'apres-vivre [Depois verdade".7 A metáfora da ficção como "tênue descolamen-
da vida] (1994), o narrador toma distância do neologismo, to" conviria a esses dois textos que reivindicam o estatuto
sem renegá-lo completamente. A autoficção deixou de se de romance.
opor à autobiografia, para se tornar senão um sinônimo, Do lado oposto a essa definição minimalista, Vincent
pelo menos uma variante ou um ardil: Doubrovsky, assim Colonna, em sua tese de doutorado, ainda inédita (mas
como Descartes, se aventuraria mascarado, por detrás da cuja publicação é altamente desejável), dá uma extensão
alegação peritextual de "romance", alegação que não custa máxima ao campo da autoficção, incluindo nele Dom Qui-
nada a ninguém e possibilita todo tipo de salvo-conduto. chote, Siegfried et le limousin [Siegfried e o limosino] de
O que resta então da ficção, além de um anúncio genérico Giraudoux, Céline e Proust. 8 O autor dá ênfase à invenção de
ao qual nem todos os leitores vão necessariamente aderir, uma personalidade e de uma existência, isto é, a um tipo de
mas que permite evitar as críticas? Jogos de condensação ficcionalização da própria substância da experiência vivida.
e deslocamento que reorganizam o tempo da vida em um Os limites de um campo tão vasto consistiriam apenas na
tempo da narração, um trabalho de estilo que é também manutenção da identidade real do autor, sob a forma de
um jogo de palavras permanente, e que é eficaz enquanto seu nome próprio que é conservado. Mas o nome próprio
transposição escrita da experiência vivida. Assim a autofic- (que frequentemente traz mais problemas do que soluções)
ção se torna, por efeito de um pequeno ardil transparente, não é talvez aqui escrutado de muito perto. Se Doubrovsky
uma autobiografia desenfreada. O leitor tem dificuldades nunca para de soletrar e glosar seu nome - Serge-Julien
para imaginar a menor fabulação, a menor afabulação nesse Doubrovsky - , o narrador de Siegfried et le limousin não se

68 Jacques Lecarme AUTO FICÇÃO: UMMAU G[NERO? 69


chama Giraudoux; o narrador de Em busca do tempo perdido No entanto, o paratexto doubroviskiano assume claramente
só se chama Marcel em virtude de uma inadvertência (aliás a ideia de uma ficção fingida ou de uma ficção de ficção, que
póstuma); o protagonista de L'Eglise [A Igreja) não é nem serviria de desvio à verdade. E não vejo como qualificar de

Destouches nem Céline, mas Bardamu. Resta dizer que é "autobiografias envergonhadas" narrativas que enunciam e
possível ver o modelo da autoficção na Divina comédia, insistem num pacto autobiográfico, a menos que se incrimi-

desde que se lembre que Dante nunca fala, em relação à sua ne, num plano muito diferente, o conteúdo das confissões e

obra, de ficção, mas de comédia e que é impossível elucidar profissões de fé ... Como autoficções admissíveis, Genette cita

o grau de adesão ou de distanciamento entre Dante-autor Dante, Borges ( O Aleph), Balzac (Facino Cane). Se for verdade

e Dante-narrador-protagonista. Nessa extensão do termo, que a identidade narrativa repousa na "adesão séria de um au-

pouco r esta de "auto" e surge algo que faz a ficção transbor- tor a uma narrativa da qual ele assume a veracidade", haver á

dar para todo lado e que poderia ser a literatura. nessas narrativas fictícias, e pouco sérias, dissociação do autor

Nosso reconhecimento a Gérard Genette nunca será sufi- e do narrador. A fórmula de tais narrativas é, p ois, trôpega e

ciente quanto à clareza de suas distinções, no que diz respeito contraditória. Ao designar p or A o autor, N o narrador, P o

à poética dos gêneros. Em seu último livro, Fiction et diction protagonista, isso resulta no pequeno triângulo monstruoso:

[Ficção e dicção] (1991), todavia, ele não se detém muito A


no que chamamos autoficção, manifestando certa irritação, #
uma vez que os romances e escritos de Serge Doubrovsky N=P,
9
nem mesmo são mencionados. Talvez tenha aludido a eles que Genette considera tão absurdo quanto a hesitação do

através de fórmulas ameaçadoras evocando, depois das ver- autor balbuciando: "sou eu e não sou eu." A autoficção,

dadeiras autoficções, "falsas autoficções, que só são 'ficções' mesmo embelezada por grandes nomes, é uma mancha na

para passar na alfândega: em outras palavras, autobiografias soberba teoria dos gêneros coerentes:
envergonhadas". Genette se transforma então em justiceiro e a autobiografia
vingador: "o paratexto de origem dessas obras é evidentemen- A
te autoficcional, mas paciência: é próprio do paratexto evoluir =
e a história literária é prudente." Mais aversão, impossível. N = P,

70 Jacques Lecarme
AUTOF ICÇÃO: UM MAU GÊNERO? 71
a narrativa histórica Friedrich Nietzsche, nos ensina Derrida, "esse nome já é
A um falso nome, um pseudônimo e um homônimo que viria
= #
dissimular, sob a impostura, o outro Friedrich Nietzsche".
N# P,
Se o próprio nome do signatário vira pseudônimo, se a
assinatura inventa o signatário, como o nome próprio po-
a ficção homodiegética
deria garantir a identidade narrativa? 1º Mais simplesmente,
A
# # quando lhe perguntam quem fala em Passion simple [Paixão
N=P, simples], Annie Ernaux responde com simplicidade: "sou
eu e não sou eu."ll A fórmula, que o autor de Fiction et dic-
a autobiografia heterodiegética tion denuncia ser insustentável, sai naturalmente dos lábios
12
A de certos auto biógrafos e de autoficcionadores confessos.
# Na realidade, os textos mencionados por Gérard Ge-
N# P, nette pertencem à categoria presumida do inverossímil ou
do fabuloso. Eles implicariam que não há adesão séria de
a ficção heterodiegética Dante ou de Borges em seus discursos: um não acredita que
A de fato foi aos infernos, o outro não crê ter visto o Aleph.
# # Mas nada o comprova, e nós podemos ler O Aleph como
N# P. um testemunho dos mais sérios. O grau de credibilidade da
narrativa é tão difícil de avaliar no leitor quanto no autor.
Eis os gêneros certos, mesmo se o quarto esquema tem 0 O que o narrador chamado Borges viu seria muito mais
inconveniente de apresentar tão poucos exemplos! Mas a incrível do que as visões de São João da Cruz? Por outro
vantagem da autoficção não seria justamente a de ques- lado, esse tipo de texto não tem nada a ver com a auto-
tionar essa relação de identidade (=) ou de alteridade (#) ficção tal como a concebe Serge Doubrovsky, já que esta
autobiografia ficcionalizada ou romance desficcionalizado,
entre o autor e o narrador, mesmo se o nome próprio é 0
está na intersecção de duas t rajetórias, e o prefixo "auto"
mesmo? Quando o autor de Ecce homo escreve o nome de

72 Jacques Lecarme AUTO FICÇÃO: UM MAU GÊNERO? 73


desempenha o mesmo papel do que em "autodiegética" ou brincam com o anonimato do protagonista, possam entrar
"autobiográfica". Para Genette, a única autoficção tolerável no campo da autoficção.14 Mas é curioso que Genette, para
corresponde a um dos mais antigos procedimentos ficcio- descrever "uma narrativa de ficção homodiegética, comu-
nais, que consiste, através de uma metalepse muito habitual, mente batizada há alguns anos autoficção", se atenha a
em fingir que o autor entra em sua própria ficção. Este duas ou três novelas fantásticas e invoque Dante para não
aparece nominalmente no texto que, nem por isso, deixa nomear Doubrovsky. 15
de ser fictício. Barbey d'Aurevilly e Mérimée não exibem Se nos alongamos sobre a análise de Genette, é porque
seus nomes de família, mas multiplicam os traços signalé- ela mal consegue reprimir uma viva hostilidade contra uma
ticos comuns ao autor e ao narrador. Somerset Maugham, familia de textos. Ele fala de uma "prótese capenga" para evo-
que, aliás, emprega o próprio nome, escreveu um manual car a dissociação de um personagem "em uma personalidade
de instruções no prefácio de Nouvelles écrites à la premiere autêntica e em um destino ficcional", mas essa incoerência
personne [Novelas escritas em primeira pessoa]: não se deve coincide com uma das percepções mais clássicas de Lacan,
nunca confundir o S. Maugham real com o S. Maugham segundo a qual, "o eu, desde a origem, estaria preso em uma
fictício que foi moldado em função de um efeito particular linha de ficção". 16 Se a linha da vida é uma linha de ficção, a
em cada história. 13 A homonímia nesse caso tem apenas a autoficção deixa de ser um caso de bricolagem cirúrgica pas-
função de dar impulso à ficção, e é também lícito ler dessa sando a ser uma análise bem conduzida. A própria contradi-
maneira O Aleph: o nome de Borges nos é jogado brusca- ção, quer seja do tipo "sou eu e não sou eu" ou do tipo "este
mente quando acreditávamos ouvir um narrador fictício é um romance e uma narrativa verdadeira", pulula em uma
e anônimo como o do Horla de Maupassant. A narrativa série de textos que ocupam o intervalo entre o romance e a
homodiegética nunca tomou ares autobiográficos e, apesar autobiografia e apresentam naturalmente dispositivos muito
do papel de testemunha reservado ao autor, essa narrativa diversos. Dessa maneira, a quarta capa de De si braves garçons
não mais é autoficcional do que Carmen ou La Vênus d'Ille [Meninos valentes] de Patrick Modiano evoca "o narrador
[A Vênus de llle], que correspondem ao mesmo dispositi- que é talvez o próprio Patrick Modiano" e a de Remise de peine
vo. É possível ainda que certos livros de novelas, nos quais [Remissão de pena] evoca "o narrador que chamávamos mais
falta a homonímia do autor e do personagem, e outros que pelo apelido de 'Patoche' na época".17 Philippe Sóllers, em

74 Jacques Lecarme AUTOFICÇÃO: UM MAU GÊNERO? 75


Femmes [Mulheres], se mostra muito desenvolto: "Quem talvez tenha marcado impedimento? O que desejava Gérard
fala aqui em primeira pessoa? Um jornalista americano que Genette era uma intervenção impiedosa da história literária.
vive em Paris. Ele e o autor são amigos, seu diálogo cúmplice Vamos tentar ser historiadores do contemporâneo, mas, à
18
é o eixo da narração." Ao longo do texto, essa dualidade primeira vista, não vemos nem "paratextos enganosos", nem
aparecerá como pura ficção e como duplicidade engenho- "pavilhões de indulgência" nos textos que acabamos de citar,
sa. Régis Debray em Les masques [As máscaras], propõe mas antes exercícios de ambiguidade que dão lugar a uma
uma canção: "Isso não se faz/ Abrir mão de um só golpe / irredutível ambivalência. Por que então a poética, assistida
curriculum vitae e romance/ E no entanto ... " 19 Pois é isso pela história literária, exerceria uma função profilática sobre
mesmo que ele faz, e muito bem, nessa narrativa. François essa população nômade de textos?
Nourissier, perito em pactos ambíguos, apresenta assim, em Encontraríamos, em nossos melhores críticos e teóricos,
uma orelha, o narrador de sua Histoire française [História sinais de repugnância, que vão do silêncio altivo à ameaça
francesa]: "um homem maduro, que fala em seu próprio velada. À margem do gênero autobiográfico, que já não tem
nome, ou no meu, como queiram. Ele é, ao mesmo tempo, boa reputação literária, o grupo das autoficções e indeci-
Patrice já adulto e o autor que olha para sua infância e sua díveis parece representar o pior dos piores gêneros.22 Em
vida." 20 Para encerrar a lista, reproduzo o folheto de divul- seu livro magistral, Thomas Pavel distinguiu entre lógicos
gação redigido por Roger Nimier para D'un château l'autre anglo-saxões "segregacionistas" que rejeitam englobar, na
[De castelo em castelo] de Céline: "mas trata-se, sim, de um mesma lógica, enunciados sérios e enunciados simulados
romance tanto quanto de uma confissão. Sigmaringen, nesse (ou fictícios), e os "integracionistas" que procuram unificar
caso, se torna um conto de fadas e de bruxas." 21 Vinte anos sob os mesmos conceitos os dois tipos de enunciado, indi-
antes de Doubrovsky, Céline praticava o duplo jogo entre o cando as transições graduais de uns aos outros. 23 A teoria
romance e a autobiografia, usando o nome do autor. Seria literária, na França, poderia ter também seus integracionis-
fácil denunciar uma artimanha. Trata-se antes de uma finta, tas, para os quais toda autobiografia é um tipo de romance,
no sentido futebolístico do termo. Com seu duplo drible, e seus segregacionistas, para o qual o gênero autobiográfico
Céline marcou um esplêndido gol. Mas o árbitro-crítico tem legitimidade e autonomia. Mas a ficção, desprezada pela

76 Jacques Lecarme AUTO FICÇÃO: UM MAU GtNERO? 77


lógica, se torna para a poética o bem soberano. Estudando alto risco e de inteira responsabilidade dos autores; mas as
a ficção e a dicção (que ele define como o regime da não narrativas híbridas, que não se sabe o que são, se verdadeiras
ficção) Gérard Genette dispensa muita atenção a primeira ou falsificadas, são recusadas. 26 Em 1983, Bernard Pivot, em
e negligencia a segunda, confessando sua preferência por seu programa Apostrophes, recebe Doubrovsky de cara feia:
um "integracionismo gradualista": a ordem das palavras no 0 senhor das letras não gosta de Un amour de soi e Jacques
título é também a ordem da precedência. 24 Jean Bellemin- Laurent, escritor-polígrafo e, como tal, adepto da separação
-Noel, já no início de seu Biographies du désir [Biografias dos gêneros, recusa ao autor a própria qualidade de escritor.
do desejo], recusa o gênero autobiográfico: nada distingue, Em 1989, Doubrovsky, no lançamento de Le livre brisé,
no ato da leitura, a Vie de Henry Brulard [A vida de Henry vive, em Apostrophes, o martírio de São Sebastião, mas a
Brulard] de qualquer romance de Stendhal. Ele recusa, avalanche de recriminações da mídia não o impede de sair
portanto, o termo autoficção (cuja extensão seria então vitorioso do estúdio. Sollers, no lançamento de Femmes,
ilimitada, uma vez que toda ficção seria suscetível de ser sofre a reprovação extrema da crítica, que o recrimina por
lida como "autoficção") e o neologismo autorromance, e ter feito mau uso das facilidades do roman à clé. Pode-se
propõe o engraçado termo bi-autografia, para marcar a notar a mesma rejeição (às vezes silenciosa) com relação a
relação transferencial produzida por tais atos de leitura. livros semelhantes de François Nourissier, Patrick Modia-
Mas quando considera como inconcebível e inconcebida "a no, Gary-Ajar, Régis Debray, que têm em comum o duplo
narrativa oriunda de tudo o que os anos de análise [lhe] terão pertencimento, senão um não pertencimento, ao romance
ensinado sobre [sua] alma secreta", ele parece se esquecer e à autobiografia. Os críticos farejam, nesses casos, auto-
da existência de Fils de seu colega Doubrovsky: a impos- biografias envergonhadas, oscilando entre a camuflagem
sibilidade teórica dessa empresa não a impede de ter sido e o escândalo. Elas violariam a deontologia da literatura
levada a cabo por vários escritores. 25 Uma mistura análoga assim como as regras elementares da civilidade corrente. As
de indiferença e irritação aparece nas críticas da imprensa recriminações serão moderadas pelo respeito à notoriedade
em relação aos textos que podem ser considerados autofic- nos casos de Doubrovsky, Sollers, Debray; menos cuidado
ções, ainda mais que esses textos obtêm em geral grande será dispensado a Philippe Dijan. Esses autoficionadores,
sucesso de público; o que se deseja são romances ricos em sem saber, se veem reunidos pela reprovação dos doutos e
invenção e criação; tolera-se, no máximo, autobiografias de letrados.

78 Jacques Lecarme AU TOFICÇÃO: UM MAU G~NERO? 79


Tomando por postulado a existência de um conjunto Tentativa de agrupamento não exaustivo de !extos
"autoficção", mantendo os dois sentidos dados à palavra, que se inscrevem no campo da AUTOFICÇAO (Continua)
um estrito (Doubrovsky) e outro mais amplo e mais solto ......
... DEFINIÇÃO ESTRITA
(Doubrovsky)
DEFIN1ÇÃO AMPLA
ROMANCE
(Colonna), tentamos fazer uma lista de obras. Esse corpus Narrativa
VERDADEIRA Barthes: Roland Ajar: Pseudo
constitui principalmente uma arqueologia do modelo.
Barthes par R.B.
Se Doubrovsky, como Jean-Jacques Rousseau, estava Aragon: Le roman inachevé
Bastide: La vie rêvée, Cardinal: Les mots pour le
convencido de não ter nem "exemplo" nem imitadores, L'enchanteur et naus
dire
o leitor atento encontrará, sim, seus precursores como etc.
Céline e Malraux, muitos concorrentes que são seus con- Cendrars: Moravagine
Blondin: Monsieur
temporâneos, poucos seguidores no que diz respeito ao Jadis Drieu: État civil, La comédie
de Charleroi
uso preciso de seu dispositivo. Esse corpus parecerá tão Bosquet: Une mere
russe, Debray: Les masques
heteróclito em seus registros, tão heterogêneo na escala
L'enfant que tu étais
dos valores literários que só poderá irritar os especialistas Duras: La douleur
etc.
em tal autor, aqui visto de longe em uma perspectiva de Léautaud: Le petit amí
Céline: D'un château à
conjunto. Mas um conjunto literário não deve se basear l'autre, Franck: La séparation
na avaliação estética de seus elementos: o que levamos em Nord, Rigodon
Loti: Le roman d'un enfant
conta são certos dispositivos e regras de funcionamento Colette: La naissance
Isherwood: Kathleen et
dujour
observáveis. É bom lembrar: nenhum desses autores, ex- Franck
ceto Doubrovsky e Nizon, assume o termo "autoficção"; Dejon: La honte
Mailer: Les armées de la nuit
alguns americanos utilizam o termo "surfiction", e outros Djian: Zone érogene
Malraux: Antimémoíres,
"fiction of facts" ou "faction". Os dispositivos são em geral Doubrovsky: Fils, Un Lazare, (Le miroir des
amour de sai, Le livre límbes)
singulares e originais, pois a diversidade e a inovação são
brisé
os dois traços constantes de nosso gênero. Modiano: Liv ret de familie,
Des si braves garçons, Remise
de peine, Fleurs de ruíne

Navarre: Biographie

80 Jacques Lecarme AUTOF ICÇÃO: UM MAU GENERO? 81


(Conclusão)
+- DEFINIÇÃO ESTRITA -. ---...: Femmes, de Philippe Sollers, remete a Joyaux [Joia] verda-
(Doubrovsky) DEFINIÇÃO AMPLA
Narrativa deiro sobrenome do autor cujo pseudônimo é Sollers); de
ROMAf-iCE
VERDADEIRA Guibert: À l'ami qui maneira mais rara ainda, um autor poderia voltar a assumir
Nourissier: Une histoire
ne m'a pas sauvé française, Bratislava
Ia vie, Le protocole
seu sobrenome que trocara por um pseudônimo literário
compassionnel, Nizon: L'année de l'amour (Georges Sand e Alain Bosquet praticam essa volta ao nome
L'homme au chapeau Perec: W ou le souvenir
rouge
do pai). Descartaremos, da mesma maneira, as séries de
d'enfance
romances nos quais um autor inventa para si um duplo com
Lanzman: Le têtard
Perros: Une vie ordinaire
nome diferente: é o caso de Drieu la Rochelle com o nome
Nimier: L' étrangêre Queneau: Chene et chien Gilles, de um livro a outro, de Albert Cohen, com Solal e
Nourissier: Bleu
Robbe-Grillet: Le miroir qui de Romain Gary, com Rainier. Mas isso não tem nada de
comme la nuit, La fête
revient, Angélique...
des pêres autobiográfico: são apenas romances, heterodiegéticos mui-
Rezvani: Les années Roubaud: Le grand incendie
de Londres, La boucle tas vezes, homodiegéticos outras, que nada têm a ver com
lumiere
Simenon: Pedigree, ]e me nosso debate. O caso de Jules Valles não é diferente: ele usa
Soupault: Le bon
apôtre souviens, Trois crimes de mes a liberdade que lhe dá a oposição entre o "Valles" autor de
amis
"Vingtras" e o narrador-protagonista para escrever um ro-
mance e, aliás, na trilogia, ele muda os nomes de quase todos
Dessa lista, descartamos (deslocando-os para a direita) os personagens ou comparsas.27 Se, na origem, Vingtras foi
os romances que são obstinadamente classificados como au- um pseudônimo entre outros, imposto pela clandestinidade
tobiog~áflcos devido a uma contradição nos termos, porque do comunista, ele se torna um operador de ficcionalização.
se supoe que eles se nutram da experiência vivida do autor. A melhor prova disso está na narrativa intitulada Souvenirs
O~a, b~st~ que o nome do autor e o nome do protagonista d'un enfant pauvre [Lembranças de uma criança pobre]:
nao comc1dam para se estar diante do mais puro e simples V alies o apresenta como "memórias verdadeiras", e traz
romance. Duas exceções podem se apresentar a essa regra: retificações e complementos ao que designa seu romance,
pode-se propor ao leitor decodificar no nome do narrador isto é, à trilogia e especialmente a Bachelíer. No romance,
o nome do autor (assim o nome Diamant [Diamante] em se apresentam duas narrativas perfeitamente distintas: uma

82 Jacques Lecarme AUTOFICÇÃO: UM MAU GfNERO? 83


de maneira fictícia e outra de maneira referencial, de uma protagonista (P). O primeiro traço é genérico e peritextual,
mesma fase da vida. O nome próprio, Vingtras/Valles, 0
segundo é onomástico. Nenhum dos dois tem a ver com
permite diferenciar os dois discursos. 0
próprio regime do texto, e nos seria bem difícil descrever
Mesmo correndo o risco de parecer um simplório in- um estilo da autoficção que se possa distinguir do estilo do
corrigível, consideramos verdadeira uma narrativa que se romance ou da autobiografia. 29 O segundo critério parecerá
dá por verdadeira. A narrativa que alega a verdade (por às vezes bem leviano, quando for preciso folhear um livro
exemplo, a Nadja de André Breton, que contém uma crítica inteiro para ver se o narrador é designado ou não, e quan-
severa da afabulação romanesca) não entra de maneira ne- do uma ocorrência única pode constituir um lapso. Esses
nhuma no espaço da autoficção. Mesmo se a crítica externa indícios são esquecidos com facilidade consternadora,3° em-
e histórica sugerir que o autor mistificou, mitificou, falsi- bora desempenhem um papel essencial. Nos casos em que
ficou os fatos, não o tomaremos por um mitômano: é, sem não há nenhuma indicação genérica, nenhuma indicação
dúvida, a sua parte de verdade, e o melhor a fazer é tentar nominal, não nos situamos no intervalo entre o romance
compreendê-la. Em seu Journal du voleur [Diário de um e as confissões, mas em uma zona de indeterminação, na
ladrão], Genet propõe um pacto nuançado: o que escreve qual se afirma o não pertencimento a esses dois gêneros
não é nem inteiramente verdadeiro, nem inteiramente fal- literários e, aliás, a nenhum gênero literário. Não faz parte
so, mas real; ele heroifica o passado para "tornar claras as da nossa lista L'amant de Marguerite Duras, que poderia
indicações que esse passado lhe propõe". Sartre pensa que ser seu principal exemplo: não há nome ou sobrenome,
esse Diário não é uma autobiografia, mas o movimento nem peritexto; nada além da branca virgindade da capa, tão
do texto indica que é melhor lê-lo como tal, uma vez que cara às edições de Minuit. 3 1 Tudo indica que a narradora
Genet explica sem parar o nome próprio que a Assistência escrevera um romance que poderia ser Un barrage contre
Pública lhe deixou. 8 le Pacifique [Uma barragem contra o Pacífico], mas o título
Como critérios de pertencimento ao conjunto chamado não é mencionado. Vamos admitir, portanto, que L'amant
autoficção, manteremos por um lado a alegação de ficção, [O amante] não pertence a nenhum gênero, senão a um
marcada, em geral, pelo subtítulo romance, e por outro a gênero indeterminado que funciona de acordo com um
unicidade do nome próprio para o autor (A), narrador (N), princípio de indeterminação. E constataremos um _efeito

84 Jacques Lecarme AUTOFICÇÃO: UM MAU GÊNERO? 85


muito paradoxal do anonimato: ele dissolve a identidade Em geral, em sua acepção restrita como em sua acepção
da heroína, mas provoca uma identificação instantânea da generalizada, uma autoficção traz o subtítulo romance. Mas
leitora ou do leitor. muitas são as fórmulas de substituição: a dedicatória, o press
Acredita-se, em primeiro lugar, que o subtítulo romance release, a quarta capa podem introduzir a ideia de romance
seja um marcador muito seguro: se aparece em um texto de ou de ficção. Quando o peritexto vai nesse sentido e o siste-
regime uninominal, é autoficção; se não aparece, é autobio- ma dos nomes próprios permanece o mesmo, incluímos na
grafia, esse era o postulado de Lejeune e Doubrovsky à época autoficção generalizada narrativas às quais falta o subtítulo
da invenção do termo ... Mas, na verdade, a participação romance. No caso da obra de Patrick Modiano, de 1968 a
do autor na escolha ou omissão de um subtítulo é das mais 1993, descartamos de nosso corpus os 12 volumes com o
problemáticas: esse gênero de peritexto se revela muito mais subtítulo romance na edição original da Gallimard ou da
"editorial" do que "autoral". Nenhum dos grandes romances Seuil. Esses romances, de Place de l'Etoile [Praça da Etoile]
do século XIX comportava esse subtítulo, como foi tantas (1968) a Chien de printemps [Cão da primavera] (1993),
vezes observado. Já no século XX, os hábitos editoriais vêm mobilizam sobrenomes aparentemente fictícios e uma fá-
mudando com rapidez crescente. Malraux consegue evitar bula perfeitamente romanesca, ainda que onze deles tenham
o subtítulo romance em todos os seus romances, salvo para sido escritos em primeira pessoa. Por outro lado, em Livret
a menos ficcional de suas narrativas, L 'espoir [A esperança]: de familie (1977), 33 De si braves garçons (1982), Remise de
a partir de um certo grau de glória, a menção de pertenci- peine (1988), Fleurs de ruine (1991), a ausência do termo
menta a um gênero banaliza o livro. O editor da Gallimard, "romance", na capa ou na folha de rosto, aliada à sugestão
em sua coleção Blanche, pesa as consequências da presença do imaginário ou do fictício na quarta capa, constitui, sim,
ou ausência do substantivo "romance", mas quando o livro um sinal característico da autoficção (termo que Modiano
é reeditado na coleção "Folio", a menção genérica desapa- não imaginaria nem por um instante utilizar ou sugerir).
rece e, com isso, os vestígios dos pactos autobiográficos ou O sobrenome do autor é citado ou comentado, ou então
romanescos; inversamente, a inevitável fotografia do autor as alusões aos livros "do mesmo autor" reintroduzem sua
na capa quando criança induz a uma leitura autobiográfica, identidade nominal, literária ou social, ou então o narrador
pela simples mudança de dispositivo peritextual. 32 utiliza o nome verdadeiro de seu pai, ou ainda mantém

86 Jacq ues Lecarme AUTOFI CÇÃO : UM MAU GÊNERO? 87

.1
nomes de pessoas totalmente esquecidas, mas conhecidas não referencialidade, que excluiria a visada autobiográfica.
de alguns nostálgicos como: Rudy Hidden, um goleiro mí- François Nourissier fornece as instruções jurídicas de seu
tico; Bella Darvi, uma atriz principiante que jogava muito; último livro: "Le gardien des ruines [O guardião das ruínas]
Florence Nardus, figura da vida tunisina dos anos de 1930; é um romance. Qualquer homonímia, qualquer semelhança
Sessue Hayakawa, tirada do esquecimento pelo filme A entre seus personagens e pessoas existentes ou que existiram
ponte do rio K wai. A própria estética de Modiano, com sua não seriam mais do que mera coincidência e não poderiam
mistura de hiper-realismo e onirismo, com seu gosto cada em nenhum caso ser responsabilidade do autor." 34 Nesse
vez mais pronunciado pelas brumas à la Simenon e as né- caso, não há mais "auto", só há ficção. Alain Robbe-Grillet
voas da amnésia, dá, ao que chamamos de autoficção, uma preferiu recorrer ao termo romanescos, ao invés de romance.
tonalidade ideal e um êxito incontestável. Na verdade, é o título da trilogia, proposta com Angélique,
Alain Robbe-Grillet ficaria bastante zangado ao se ver si- e que deveria se fechar com Les derniers jours de Corinthe
tuado no rastro do discreto Patrick Modiano. No entanto, Le [Os últimos dias de Corinto]. Tudo aqui é " entrelaçamento
miroir qui revient [O espelho que volta] (1984) e Angélique aventuroso" do biográfico com o fictício, do real com o fan-
ou l'enchantement [Angélique ou o encantamento] (1988) tasmático.35Mas só é possível captar essa "busca aventurosa"
apresentam um dispositivo bastante análogo. O primeiro na época da publicação do terceiro volume.
volume tem a intenção de ser uma novela autobiográfica que Robbe-Grillet ainda passa, pensará o leitor extenuado,
contesta o modelo empírico ou teórico, trançando uma linha mas o que o André Malraux memorialista tem a ver com
de ficção em torno da estranha figura de Henri de Corinthe. esse bando de exploradores vanguardistas? Ele tem pleno
O próprio autor observou que teria sido lido de outra ma- direito de estar entre eles, pois é o único, nas Antimémoires
neira se houvesse dado o subtítulo romance ao livro, mas [Antimemórias] (1967), mais tarde integrado ao Miroir
a articulação explícita desse livro com Roland Barthes par des limbes [Espelho do limbo] (1976), que ousou integrar
Roland Barthes [Roland Barthes por Roland Barthes J não o discurso do romance no discurso da autobiografia, sem
deixava dúvidas quanto a um projeto de ordem ficcional. procurar atenuar os efeitos dissonantes e variegados. O
O termo romance, lido no sentido forte, implica na verda- índice de Antimémoires retoma os títulos dos principais
de uma declaração de irresponsabilidade, ou um pacto de romances de André Malraux. Mas principalmente essas

88 Jacques Lecarme AUTOFICÇÃO: UM MAU GENERO? 89


"memórias" (cujo prefixo "anti" não deve ser interpretado ern Lazare, Malraux retoma a cena do fronte russo em 1916
literalmente) se iniciam com a transcrição confessa de uma de Noyers. A cena é vivida por Berger, que confundiríamos
longa passagem de Noyers d'Alterburg [Nogueiras de Alten- com O narrador, se não soubéssemos que, aos 15 anos,
burg] (1943), sem que haja desficcionalização da narrativa Malraux: não poderia servir como comandante no exército
nem adaptação dos personagens. Não é a genealogia de alemão. Trata~se, portanto, do pai fictício do narrador, que
André Malraux que se desenvolve, mas a do fictício Berger, vem a ser sua criatura romanesca. A alternância do romance
füho de Vincent e neto de Dietrich Berger, em uma Alsácia e das memórias pontua esse Miroir des limbes, cujo título
que acredita na imprevisibilidade da inspiração divina. metaforiza muito bem certo clima da autoficção. 36 Malraux é
Mais adiante, sem aviso prévio, outro episódio de Noyers certamente um dos inventores do gênero - e desde a criação
se implanta na autobiografia: o Berger do romance que de seu personagem de La condition humaine [A condição
se tornou o Malraux de Antimémoires faz um imponente humana] - o Clappique que inventa a fórmula do "nem
ataque de blindados na campanha de 1940. Esse reemprego verdadeiro, nem falso, mas vivido". 37
do romance em memórias não tem precedentes. E induziu As vezes, é preciso procurar dentro da loja o que não
os biógrafos ao erro, pois, em 1940, Malraux não pôde na encontramos na vitrina. Apesar da ausência do subtítulo
verdade tirar o tanque do depósito e foi feito prisioneiro sem genérico tão desejado, Monsieur Jadis ou l'école du soir
opor resistência. Mas, através da genialidade da pseudono- [Senhor Antigamente ou a escola noturna] de Antoine
nimia, Malraux assumiu o nome do comandante fictício Blondin será declarado autoficção canônica, antes de Ro-
Berger para se tornar, em 1944, o muito efetivo coronel land Barthes ou Serge Doubrovsky, já em 1970.38 Um jogo
Berger e levar seus blindados da brigada Alsácia-Lorena de dedicatórias cruzadas garante uma parte de mentira e
à vitória. Ele evitou fornecer a verdadeira narrativa dessa uma parte de confissão entre rivais: uma epígrafe, atribuída
campanha, substituindo-a pela narrativa fictícia de feitos a um sábio chinês chamado Cada-Um-De-Nós, enuncia
antedatados e totalmente inconcebíveis no ano de 1940. "Minha vida é um romance". O epitexto confirma nesse
O leitor fica um pouco aturdido, a menos que tenha lido o caso o peritexto, pois Blondin anota em uma caderneta:
romance, esgotado, cuja reedição Malraux proibiu. Também "Monsieur Jadis: os personagens dessa história realmente

90 Jacques Lecarme AUTOFI CÇÃO: UM MAU GÊNERO? 91


existiram: qualquer semelhança com os heróis de romance que "se trata de uma história verdadeira até nos detalhes",43
44
imaginários seria puramente fortuita." 39 O pacto auto- 0 outro avisa que "é inventado: é literatura". O diário da

ficcional deve ser contraditório, diferentemente do pacto narradora, intitulado exatamente A dor não é um falso
romanesco ou do pacto autobiográfico que são, por sua vez, diário, mas, de todo modo, é defasado com relação ao
unívocos. Faremos uma exceção para a epígrafe do romance acontecimento, e consequentemente reconstituído, senão
de Queneau, Le dimanche de la vie [O domingo da vidaJ que ficcionalizado. O conjunto desses textos é regido pelo vai-
diz: "Os personagens desse romance sendo reais, qualquer -e-vem do fictício e do autobiográfico. Está claro, aliás, que
semelhança com indivíduos imaginários seria fortuita." 4º um livro de contos pode desempenhar, como um romance,
Que não se espere tampouco encontrar o subtítulo o papel de vetor para a autoficção: à Comédie de Charleroi,
(( )) d poderíamos acrescentar Ouvert la nuit [Aberto de noite]
romance quan o o texto é essencialmente compósito.
Pode-se unificar os registros, à maneira de Céline, Robbe- e Fermé la nuit [Fechado de noite] que o autor, no fim da
-Grillet ou Doubrovsky. Pode-se também justapô-los, vida considerava um diário inconsciente. Enfim, mesmo
alterná-los, contrastá-los. Em W ou le souvenir d'enfance que François Nourissier manifeste tanta repugnância pelo
[W ou a lembrança da infância J de Perec, com o subtítulo termo autoficção e faça questão de distinguir claramente
significativo de narrativa, a ficção de utopia negativa se sua produção romanesca de suas narrativas autobiográfi-
alterna com o inventário igualmente negativo da memória, cas, veremos em Bratislava4 5 uma grande arte da narrativa,
segundo capítulos pares ou ímpares diferenciados pelos como há uma arte da fuga. A mesma lembrança engendra
caracteres itálicos ou romanos. Os especialistas em Perec, três narrativas sucessivas, segundo o grau de verdade ou de
que consideram como ficção o conjunto dessa narrativa, ficção. Os jogos complexos da memória e da imaginação
estão errados, a nosso ver.41 A autoficção reside na monta- são desnudados em fragmentos de tons muito diversos.
gem e no intervalo lacunar entre as duas narrativas, uma "Nunca tentei, seja um romance ou não, senão escrever o
fictícia, outra não fictícia. Uma heterogeneidade da mesma mais próximo possível de mim", afirma o narrador, para
ordem é observada nos textos reunidos por Marguerite mais tarde duvidar disso: "como escritor, corria um risco
Duras sob o título La douleur [A dor] .42 Prefácios internos absurdo por querer demais revelar meu passado tal qual. A
contraditórios entram em ressonância: um deles enuncia literatura é memória inverificável, uma mistura de hipóteses

92 Jacques Lecarme AUTO FICÇÃO: UM MAU GÊNERO? 93


e de ilusões." Tal hesitação constitui o próprio intervalo nível de notoriedade e é meio indecente denunciar o que
onde se desenvolve a autoficção. pertence à vida privada do escritor. Acredita-se perceber,
no entanto, que a pseudonímia, tão frequente até 1945
(Maurois, Romains, Maulmier, Saint-John Perse, Éluard,
Afora o nome próprio, não há pedra de toque para a Aragon, Gary-Ajar, Duras, Gracq, Céline), cai em desuso a
autobiografia ou para a autoficção. Mas as dificuldades partir daí. A moda crescente da autobiografia aparece junto
começam aqui ao invés de desaparecer. Jacques Derrida, com a reivindicação do nome próprio. Afinal, o p róprio
como vimos, sugere que o Nietzsche-autor não passa de Stendhal renunciou à pseudonímia ao escolher Beyle/Bru-
homônimo e pseudônimo do Nietzsche-pessoa, tanto é ver- lard, quando escreveu a história de sua vida. 48
dade que o autor é um outro. 46 As noções de nome próprio, O autor de Fils escreve longa e sutilmente seu próprio
assinatura e contrato encontram-se mais do que abaladas, nome, não sem brincar com a alternância dos nomes Serge
quando se àcreditava serem o fundamento da autobiografia. e Julien, segundo as relações imaginadas. Patrick Modiano
Os progressos da linguística do nome próprio não autorizam e Georges Perec certamente nunca imaginaram recorrer a
extrapolações fáceis para uso em textos literários.47 Enfim, um nome de guerra, ou a um nome de pena. A escrita lite-
a questão do pseudônimo se apresenta, a nosso ver, de rária seguiu o caminho aberto pela psicanálise freudiana:
maneira complexa e variável segundo as épocas. É curioso inventariar e desdobrar um nome de familia não tem fim.
que se considere autobiografias mentirosas ou delirantes os De Raymond Queneau a Jean Genet, esse constitui a matéria
textos de Céline, Cendrars e Gary: seria por que o pseudô- poética da autobiografia, sincera ou mentirosa.
nimo compromete menos do que o sobrenome originário? Quando o anonimato do protagonista é mantido
Julien Gracq volta a assinar Louis Poirier quando dedica rigorosamente, e nenhum signo textual permite ligar o
uma bela nota (auto)biográfica ao amigo Henri Queffélec. protagonista ao autor, não há razão para se pensar nem
Pierre Loti introduz seu nome-pseudônimo em sua primeira em autobiografia nem em autoficção. É uma ilusão de me-
infância, procedimento de ficção ou de fabulação retroativa. mória batizar Marcel o narrador de No caminho de Swann,
Os pseudônimos, aliás, só são identificáveis a partir de certo ou Marguerite a narradora de L'amant. O leitor, que tem

94 Jacques Lecarrne AUTOF IC ÇÃO: UM MAU GÊNERO? 95


horror ao vazio, o preenche muito facilmente injetando ali mesmo produto de uma ficção, as crônicas de Siegmarin-
o nome do autor. Em compensação, o anonimato rigoroso gen de Céline serão tudo, menos testemunhos históricos,
que rege La séparation [A separação] de Dan Franck e que à maneira de Benoist-Méschin. A complicada gênese do
se estende a todos os personagens da narrativa não nos pseudônimo em Pierre Loti nos ajuda a considerar Le ro-
impede de considerá-la uma autoficção. O narrador faz man d'un enfant [O romance de uma criança] como uma
várias alusões aos livros e filmes feitos em colaboração com das primeiras autoficções, e das mais bem sucedidas (a
Jean Vautrin e encontra sua identidade nominal graças à
adequação do título ao gênero é aliás perfeita). Em Pseudo,
sinalização "do mesmo autor de", à qual poucos escritores
lido primeiramente como uma narrativa de Emile Ajar,
resistem.49 A narrativa, por sua secura lapidar, pelo rigoroso
depois reconhecido como texto de Roman Gary, há um
recurso à terceira pessoa, pelo uso quase exclusivo do (tem-
jogo de pseudonímia ficcionalizante muito mais comple-
po) presente, propõe um modelo do gênero, completamente
xo do que se acreditara então. 51 Mas o leitor reconheceu
oposto ao de Doubrovsky. A ficcionalização não diz respeito
ao conteúdo da história, mas à voz narrativa que a enuncia, em Tonton Macoute o personagem de Romain Gary: a
pois é ficção se contada em terceira pessoa, sem jamais ceder biografia aparente escondia uma autoficção totalmente
à tentação da volta à primeira pessoa: o efeito produzido é suicida, uma vez que visava ao esfacelamento do sujeito,
a manifestação do estranho e um narrador alienado de sua e atingiu literalmente seu objetivo. O uso do pseudônimo
própria identidade. 50 tem comumente os efeitos mais simples: o autor escolhe
Se o pseudônimo sempre incomodou o pacto autobio- um pseudônimo possível, que tenta ancorar na realidade
gráfico, ele pode ao contrário ajudar no efeito de autoficção, e que existirá apenas na medida em que for consagrado
introduzindo, desde o começo, a invenção de sua identida- pelo sucesso de p úblico. Quando for único, o pseudônimo
de e desenvolvendo um jogo cuidadoso quanto à unidade terá, ao menos, o mérito de nos lembrar a distinção entre
do sujeito que escreve. Céline submergiu Destouches em o nome do autor (que o autor fabricou para si) e o nome
literatura e Louis-Ferdinand, Louis - mas Céline, o louco
da pessoa real (que não conseguimos mais separar das co-
furioso, e Destouches, o bom médico, continuam com-
notações que adquiriu) . "Berger", esse herói de romance,
petindo nos planos social e jurídico. Como "Céline" é ele
1 que se tornou um guerreiro fabuloso, continua distinto de

96 Jacques Lecarme AUTO FICÇÃO: UMMAU GÊNERO? 97


Malraux, cidadão e autor, que não quis se tornar Berger- dos pais], com a expressão "monsieur N.", e Philippe Sollers
-Malraux, como seu amigo Chaban-Delmas. Mas será que o em Femmes, com a sigla "S". 54 Em La fête des peres, uma série
pseudônimo desempenha mesmo esse papel purificador? 52 de artimanhas sutis, entre elas, naturalmente, a menção às
François Nourissier observou recentemente que a literatura obras anteriores do mesmo autor, indicam ao leitor o per-
de Jules Romains se assemelha estranhamente ao patrônimo curso da letra N. até Nourissier. Este nome próprio nunca
de Farigoule. Poderíamos generalizar: os escritos de Duras está presente, mas aparece codificado em Rheinnischer
se assemelham a Donnadieu, os de Gary a Kacew, os de (um hotel), Nicole Hen ner (uma amiga antiga), Berenice
Céline a Destouches, os de Gracq a Poirier. A manutenção (a jovem em questão). O leitor deduz que o narrador se
do pseudônimo nos escritos íntimos tende a preservá-los da chama François, quando na verdade o narrador não indica
autobiografia: o "Eu" dos fragmentos de Gracq não é abso- nenhum nome.
lutamente um "Eu" autobiográfico, mas um "Eu" lírico ou O caso em que o herói apresenta um nome diferente
geográfico do qual toda particularidade e toda contingência daquele do autor pode entrar no nosso corpus? Philippe
foram banidas. Uma autoficção tende ao contrário a apagar Sollers usa de bom grado esses heterónimos e os designou
esse corte. Ela viola continuamente o princípio ditado por como "identidades múltiplas aproximadas". Quando, no
Valéry que era: "Nunca confundir o verdadeiro homem que Portrait du joueur [Retrato do jogador], o autor mostra
fez a obra, com o homem que a obra permite supor." Uma o engendramento de um nome a partir de outro, ele não
confusão dessa ordem é a fonte fecunda da autoficção, mas faz mais do que refinar o dispositivo da autoficção. O
também das autobiografias mitificantes ou mitómanas que narrador-protagonista se chama Philippe Diamant, mas
não fazem parte do nosso assunto. 53 essa identidade está ligada por um jogo de sinonímia a
Muitas vezes, entre o recurso ao patrônimo ou ao pseu- seu sobrenome inscrito no registro civil, Joyaux. A escolha
dônimo e a ausência radical de nome e sobrenome, um meio do pseudônimo, já famoso, Sollers, é contada no próprio
termo se propõe: a redução à inicial. Esta pode fazer parte romance. Em Femmes, a dissociação, bastante laboriosa
do dispositivo da autoficção somente quando combinada entre "Will", o narrador, e "S", o autor, "ghost writer" do
a um conjunto de conexões com o nome do autor. Assim narrador, é finalmente liquidado na página 563, em favor
procedem François N ourissier em La fête des peres [O dia

98 Jacques Lecarme AUTO FICÇÃO: UM MAU GÊNERO? 99


de uma referência aos "duplos" romanescos. O autor e o assume a responsabilidade do autor por sua narrativa e a
narrador são um só .. . seriedade de seus enunciados, e mais ainda quando adia
O tratamento do nome próprio dos outros personagens sine die sua publicação. É certo que essas considerações não
é naturalmente um dos problemas da autoficção (como da podem substituir uma poética do nome próprio - que nos
autobiografia). A ficção começa com a alteração desse "de- faz uma falta atroz - mas permitem avaliar efeitos de leitura
signador rígido". Alteração, aliás, bem cômoda e que poupa que nos parecem incontestáveis.
problemas jurídicos. Como diz ingenuamente o narrador Poderíamos, para terminar, averiguar uma tendência de
de Femmes: "A partir do momento em que não há nomes nosso corpus, que já observamos em alguns momentos. A
próprios, será que não se pode contar o que se quiser?"55 O alternância em um mesmo texto da homodiegética e da he-
risco evidente é o de cair nas vulgaridades do roman à clés, terodiegética foi muito bem concebida por Roland Barthes,
que não tem nada a ver com a autoficção ideal. Mas, para em 1975, e ele fornecera uma chave de leitura autoficcional
o nosso gênero, que exclui a publicação póstuma, a manu- enunciando logo de saída: "Tudo isso deve ser considerado
tenção integral dos nomes próprios é um desafio. Apenas como dito por um personagem de romance." Ficcionalizar
Serge Doubrovsky encarou o desafio em Fils. Elaborou em o narrador e recorrer a um livre jogo das primeiras e ter-
seguida codificações apetitosas, deixando apenas os nomes
ceiras pessoas gramaticais caminhavam lado a lado. Mas, a
das pessoas que não participam do grande conflito. Resta
despeito dessa teorização perfeita, parece-nos que Roland
dizer que a autoficção corre sempre o risco de perturbar as
Barthes teve menos êxito do que Antoine Blondin emMon-
vidas privadas de seus atores involuntários, sendo um gê-
sieur /adis (1970). 56 O incipit da narrativa, extravagante e
nero essencialmente indelicado, que procura seu caminho
etílico, engendra todo o texto: "Por longo tempo pensei que
entre a grosseria, que joga na cara das pessoas seus nomes
me chamava Blondin, mas meu verdadeiro nome é Jadis."
e sobrenomes, e a perfídia, que faz com que se reconheçam
O epílogo deixa o narrador "encontrar a alegria graciosa e
através das telas protetoras. O romance é muito mais deco-
nova de seu nome". O jogo das primeiras e terceiras pessoas
roso, quando põe em cena Bardamu (e não Céline), Gilles (e
é anunciado por uma epígrafe, tomada de empréstimo a
não Drieu), Rainier (e não Gary), um narrador inominado
Um caso doloroso, novela que faz parte de Os dublinenses de
(e não Proust); a autobiografia é muito mais honesta quando

1 00 Jacques Lecarme AUTO FICÇÃO: UM MAU GÊNERO? 101


James Joyce: "Ele tinha uma mania bizarra de autobiografia personalidade sob seu próprio nome, temos que admitir que
que o levava de tempos em tempos a compor mentalmente os êxitos, por vezes espetaculares, são bem raros: há uma
sobre ele mesmo algumas frases com um sujeito em terceira resistência do nome próprio a todas as fabulações que não
pessoa e um verbo sempre no passado." Se lermos a novela é fácil superar. Se a ficcionalização diz respeito apenas às
de Joyce, perceberemos que é dito a respeito do protago- vozes ou às perspectivas narrativas, se ela procede, como o
nista que este começava a duvidar da realidade ditada pela sonho freudiano, por deslocamentos e por condensação,
memória. 57 É reconfortante constatar que James Joyce então é preciso conceder a Serge Doubrovsky e a alguns
esboçou perfeitamente uma figura maior da autoficção e outros o mérito de ter explicitado um modo de enunciação
que o pouco reconhecido Blondin, talvez entre um copo e fundamental, que permanecera implícito na escrita de si.
outro, a realizou com maestria. A autobiografia dita clássica se fundamenta em um pacto;
mas o pacto, supondo que o autor o respeite, permanece
unilateral, leonino e coercivo. O que pode impedir um leitor
Por que defender tanto a existência de um gênero, cuja de ler uma autobiografia como um romance e um romance
comprovação não é garantida, uma vez que o termo que o como uma autobiografia, uma vez que esse leitor é sempre
designa não é reivindicado pelos autores que o praticam? livre e muitas vezes do contra? Citaremos aqui, como tio-
Não conseguiremos com isso vencer o ceticismo daqueles -avô de Serge Doubrovsky, o próprio Goethe. Perguntaram
que acreditam que, ficção e literatura sendo sinônimos, o a Goethe porque havia intitulado as lembranças de sua vida
termo autoficção é inútil e incerto, nem convenceremos Dichtung und Whareit [Poesia e verdade]. Eis a resposta:
aqueles que, preocupados com a probidade, verão nesses
textos confissões alteradas ou falsificadas. Não venceremos Verdade e poesia, esse título foi sugerido pela experiência
tampouco o ceticismo da maioria, para quem a questão do segundo a qual o público sempre nutre certa dúvida quanto à
gênero ou subgênero não passa de pedantismo cego. Mesmo veracidade dos ensaios biográficos. Para me prevenir contra isso,
assim, voltaremos às duas definições iniciais do neologismo. confessei-me recorrendo a uma espécie de ficção, por assim di-
Se a autoficção significa uma verdadeira invenção de uma zer sem necessidade e levado por certo espírito de contradição;

102 Jacques Lecarme AUTOFICÇÃO: UM MAU GÊNERO? 103


pois meu maior esforço foi representar e expressar tanto quanto 1 Roland Barthes não utiliza o termo autoficção, mas esboça um romance h e-
terodiegético cujo herói seria R.B., autor de livros bem conhecidos. Sobre as
possível a verdade profunda que, até onde tenho consciência, metáforas da ficção ("descolamento': "distanciamento", "decalcomanià'), cf.
presidiu minha vida.58 Roland Barthes par Roland Barthes, Paris, Seuil, 1975.
• V. Colonna, L'autofiction (Essai sur la fictionalisation de sai en littérature) [A
(Este texto foi publicado em S. Doubrovsky, autoficção (Ensaio sobre a ficcionalização de si em literatura)]. Tese de Dou-
torado, École de Hautes Études en Sciences Sociales, sob a orient ação de G.
J. Lecarme, P. Lejeune, Autofictions & cie., Genette, 1988 (cf., em particular, p. 34-40).
RITM, n. 6, Publidix, 1993, p. 227-249.
9 G. Genette, Fiction et diction, Paris, Seuil, 1991, p. 86-87.
Título original: "L'autofiction: un mauvais
10 J. Derrida, Otobiographies, l'enseignement de Niet zsche et la politique du nom
genre?")
propre, Paris, Galilée, 1984, p. 47-48.

11 Declarações feitas durante a m esa redonda dos escritores sobre a autoficção que
reuniu Annie Ernaux, Serge Dou brovsky, François Nourissier, Alain Robbe-
Notas -Grillet. A fórmula é ainda mais interessante porque a escritora que a enunciou
elimina radicalmente qualquer vestígio de romance de seus textos, desde La
1
Autofictions & cie., S. Doubrovsky, J. Lecarme, P. Lejeune (org.), RJTM, n. 6, place (1983).
Publidix, 1993. (N.T. )
12 O termo "autoficcionário" [autofictionnaire ) foi proposto por Paul Nizon, em
' A palavra fils em francês, em sua forma escrita, pode significar tanto "filho" Marcher à l'écriture, Actes Sud, 1991, p. 173. Nós preferimos "autoficcionador"
quanto "fios". (N.T.) [autofictionneur]. por semelhança com o sufixo de narrador [narrateur].
3
Cf. S. Doubrovsky, Autobiographiques. De Corneille à Sartre, Paris, P.U.F., 1988, " Conforme Madame la colonelle [A senhora do coronel], Julliard, 1981, p. 7: "o
p. 61-79. 'eu' que escreve a novela participa do elenco da mesma maneira que os atores
4 que põe em cena. Herói, espectador ou confidente, ele continua sendo um
P. Lejeune, Le pacte autobiographique, Paris, Seuil, 1975, p. 28 e 31.
personagem. O escritor que recorre a esse procedimento faz obra de ficção:'
O título, Um amor de si, faz ecoar Un amour de Swann [Um amor de Swann], (Tradução do prefácio da edição de 1961 de Six Stories Written in the First
segunda parte do primeiro volume de Em busca do tempo perdido, de Marcel Person Singular.)
Proust. A própria trama do livro de Doubrovsky repete a aventura do perso-
14 Pode-se pensar em vários livros, que foram recebidos como coletâneas de
nagem de Proust, Swann, que teria passado anos apaixonado "por uma mulher
novelas nos anos de 1920 e 1930: La maison de Claudine [A casa de Claudine]
que não lhe agradava, que não fazia seu tipo''. (N.T.)
de Colette, Ouvert la nuit [Aberto à noite] e Fermé la nuit [Fechado à noite]
• Este é o único livro de Serge Doubrovsky traduzido para o português, com o d e Paul Morand, La comédie de Charleroi [A comédia de Charleroi] de Drieu
título O livro quebrado, trad. de António Filipe Marques, Lisboa, DIFEL, 1992. la Rochelle.
(N.T.)
is Cf. Genette, Fiction et diction, p. 84.

16
J. Lacan, Ecrits, Paris, Seuil, 1996, p. 94.

104 Jacqu es Lecarme AUTOF ICÇÃO : UM MAU GÊNERO? 105


17
P. Modiano, De si braves garçons, Paris, Gallimard, 1982 e Remise de peine, Paris, pauvre [Lembranças de um estudante pobre] (janvier-mars 1884, em Le cri du
Seuil, 1988. Na produção de Modiano, apenas quatro narrativas não apresen- peuple); reedição Du Lérot, 1993 (introdução e notas de Roger Bellet}.
tam, em sua edição original, o subtítulo romance. São esses quatro livros que
" Cf. J.-P. Sart re, Saint Genet comédien et martyr [São Genet: ator e mártir), Paris,
incluímos no conjunto autoficcional: Livret de familie [Livreto de família], De
si braves garçons, Remise de peine, Fleurs de ruine [Flores de ruína]. O editor Gallimard, 1952.
atual, no entanto, na menção às obras "do mesmo autor" designa esses textos 29 Jacques Brenner teve a possibilidade de publicar o mesmo texto Les lumieres de
como romances ( cf. P. Modiano, Chien de printemps [Cão da primaveraJ, Seuil, la ville [As luzes da cidade] primeiramente como romance e, mais tarde, como
1993, p. 123). autobiografia. Bastou que, 20 anos depois, ele mudasse os nomes.
18
Cf. quarta capa da coleção "Blanche''. Femmes, 1983. 'º Eles podem também ser ampliados em excesso, em prática quase fetichista.
19 Como as duas ocorrências do nome Marcel na obra de Proust, uma delas é
R. Debray, Les masques, Paris, Gallimard, 1987 (orelha da sobrecapa}.
uma proposta hipotético-ficcional, a outra, um simples lapso (póstumo, ainda
'º F. Nourissier, Une histoire française, romance, Paris, Grassei, 1965 (orelha}. por cima).
21
Céline, Romans, Tomo II, Bibliotheque de la Pléiade, p. 1014. Henri Godard ' 1 Houve apenas uma edição francesa de L'amant entre 1984 e 1992. A única
reproduz esse folheto de divulgação sem atribui-lo a Nimier. Nós o fazemos, variante p eritextual consistiu no acréscimo de uma tira de papel com uma foto
sem provas, acreditando reconhecer seu estilo característico. encantadora de Marguerite adolescente. Essa tira tem, certamente, a intenção
22 de criar junto ao público um efeito autobiográfico.
Cf. B. Verdier e J. Lecarme, La littérature en France depuis 1968, Paris, Bordas,
1982, "Indécidables ou autofictions'; p. 150-155. 32 As duas capas sucessivas de Livret de familie de Modiano, ou as de Enfance
23 [Infância] de Sarraute não indicam o mesmo modo de leitura. É preciso reco-
T. Pavel, Univers de la fiction, Paris, Seuil, coll. Poétique, 1988.
nhecer que os escritores usam o termo romance para valorizar sua narrativa,
24
Genette, Fiction et diction, p. 93. mesmo quando afastam da obra qualquer ideia de ficção. Paul Léautaud, após
25 ter explicado a Paul Valéry que tudo é verdadeiro em Le petit ami [O namorado],
É certo que a obra é citada em nota, mas somente como referência do termo
se refere ao livro como um romance. É verdade que se falava então em atribuir
autoficção. Cf. J. Bellemin-Joel, Biographies du désir, Paris, P. U.F., 1988, p. 5-10.
ao livro o Prêmio Goncourt (ver Paul Léautaud, Correspondance, Mercure de
26
Un amour de soi de Doubrovsky, Femmes de Sollers, Le miroir qui revient de France). Mas Léautaud, mesmo contra seus princípios, acaba entrando no jogo
Robbe-Grillet, Une mere russe de Bosquet constituem, nas carreiras de seus da ftccionalização. Tudo o conduz a isso, em primeiro lugar, a perspectiva de
autores, um aumento considerável de seu número de leitores. Um "mau gênero" uma carreira literária, campo no qual o intimismo não é nada promissor.
pode ser um gênero "promissor''. Em 1992, houve uma campanha intensa contra
33 Cf. acima nota 18: a quarta capa da edição Blanche, citada parcialmente em
o excesso de produção autobiográfica, especialmente na revista Esprit (Olivier
"Variations" [Variações].
Mongin, Jean-Marie Domenach}. A campanha foi provocada (e em parte
legitimada} por L'esprit de vengeance [O espírito de vingança J de Christophe 34 F. Nourissier, Le Gardien des ruines, roman, Paris, Grasset, 1992, p. 10.
Donner, narrativa que suscita muitas objeções de ordem deontológica.
35 Ver o desenvolvimento dessa metáfora na quarta capa de A. Robbe-Grillet, Le
27
J. Valles, Jacques Vingtras, !, L'erifant [O menino] (1881), II, Le bachelier [O miroir qui revient, Paris, Minuit, 1984.
bacharel] (1881), III, L'insurgé [O insurreto] (1886) - Souvenirs d'un étudiant

106 Jacques Lecarme AUTOFICÇÃO: UM MAU GÊNERO? 107


36
Não será possível, aqui, analisar o jogo intertextual entre os romances e as (anti) 41 Cf. W ou /e souvenir d'enfance: une fiction: Textuel 34/44, n. 21. Para os adeptos
memórias. Ver J. Lecarme, "Malraux e a autobiografia" série "André Malraux" do que chamaríamos de "tudo-é-ficção", ou seja, para aqueles que consideram a
editora Minard, e também ''André Malraux'; em Encyclopaedia universa/is. ficção coextensiva à literatura, a própria ideia de uma "autoficção" é desprovida
Podemos esquematizar as passagens do romance para as memórias da seguinte de pertinência. Mas esse panficcionalismo encontra seu limite exatamente
forma: em uma narrativa como a de W : haverá sempre um resíduo não fictíc io, por
exemplo, Auschwitz.
O reemprego dos romances anteriores em Le miroir des limbes
42 M. Duras, La douleur, Paris, P.O.L., 1985; F. Nourissier, Bratislava, Paris, Grasset,
ROMANCES MEMÓRIAS/AUTOBIOGRAFIA 1990, p. 18 e 53.
Les noyers d'Altenburg Le miroir des limbes (1976)
(1943, 1948) " Ibidem, p. 86.
44
Ibidem, p. 184.
(edição utilizada, 1948)
I capítulo 1, p. 35 - p. 45 " Nourissier, Bratislava, 1990.
46 Derrida, Otobiographies.
II capítulo 2, p. 83 - p. 109 Antimémoires I, I, 1. (Pléiade,
p. 132 - p. 142 p. 17 - p. 39) (1967) 47
Cf. M.-N. Gary-Prieur, Langue française, 92, dez. 1991.
p. 146 - p. 147
p. 150 - p. 153 " É exatamente Henri Beyle quem assina as disposições testamentais sobre Vie
d'Henry Brulard e Souvenirs d'égotisme. "Brulard" aparece apenas por acidente
(epílogo) Camp de Chartres Antimémoires I, rn, 2. (Pléiade, e fazendo parte de um título encobridor.
p. 249- 292 p. 232 - p. 254) 49 D. Franck, La séparation, Paris, Seuil, 1992.
III capít ulo 1, p. 169 - p. 245 Lazare {1974) II, VI (Pléiade, 'º Lecarme faz referência aqui ao texto "Das Unheimlich", de 1919. (N.T.)
p. 838 - p. 868)
51
E. Ajar, Pseudo, Paris, Mercure de France, 1978 (assinado, por iniciativa do
Le temps du mépris (1935) Antimémoires I, I, 3. (Pléiade, editor, Gary-Ajar, a partir de 1981, o que não é muito pertinente).
capítulo 6, p. 133 - p. 146 p. 70- p. 74) 52 As estratégias dos escritores são às vezes inexplicáveis: Saint-John Perse, ao
37
O Barão de Clappique, do romance La condition humaine, é um ex-antiquário organizar sua "Pléiade'; a edição de suas obras completas, acrescenta textos
e m~rchand que se tornou traficante de armas. Trata-se de um personagem de Aléxis Léger, seu verdadeiro nome, transgredindo sua própria religião. Ele
rrutomano e teatral. Daí a alusão de Jacques Lecarme. (N.T.) redige, anonimamente, uma ''biografia'; cuja exatidão factual talvez não seja o
traço dominante.
" A. Blondin , Monsieur !adis ou l'école du soir, Paris, La Table Ronde, 1970,
reeditado na coleção Folio, n. 29. " Poderíamos evocar aqui Mes parents [Meus pais] de Hervé Guibert. Essa
autobiografia de aparência verídica mata os pais do narrador, embora estes
" A. Blondin, Un malin p laisir [Um prazer maligno], Paris, La TableRonde, 1993, estejam vivos. O autor não se sente nem um pouco preso aos usos do pacto
p. 77.
autobiográfico. Esse evidente embuste traz benefícios literários consideráveis.
40
R. Queneau, Le dimanche de la vie, Paris, Gallimard, 1952, reeditado na coleção 54 F. Nourissier, L a fête des pêres, Paris, Grasset, 1985; P. Sollers, Femmes, Paris,
Folio, p. 14.
Gallimard, 1983. ·

108 Jacques l ecarme AUTO FICÇÃO: UM MAU GÊNERO? 109


55
Sollers, Femmes, p. 277.
56
Barthes, Roland Barthes par Roland Barthes, p. 2.
OÚLTIMO EU
57
Cf. J. Joyce, Gens de Dublin, tradução de Jacques Aubert, Gallimard, 1974,
p. 139-151 (Antoine Blondin utilizou uma tradução anterior).
58
Citado por Pierre du Colombier no prefácio de Goethe, Souvenirs de ma
vie - poésie et vérité, Paris, Aubier, 1941. Por falta de referência exata, não
encontramos o original; a inversão dos substantivos no início da citação será Serge Doubrovsky
talvez um lapso do tradutor ou erro tipográfico?

Não será necessário me apresentar, eu próprio o farei:


o professor, primeiramente. Lecionei literatura francesa
em universidades americanas durante cerca de 50 anos,
dos quais 40 na New York University. Tenho o prazer de
ver nessa sala pelo menos dois dos meus antigos alunos.
Frequentemente encontrei pessoas que me conheciam,
sobretudo como o autor de Corneille et la dialectique du
héros [Corneille e a dialética do herói].' Graças à editora
Argus de la Presse, vejo mencionarem o meu Pourquoi la
nouvelle critique [Porque a nova crítica] em estudos sobre
os problemas da crítica contemporânea. Também publiquei
três coletâneas de artigos, sendo a última organizada por
Isabelle Grell,2 a quem faço questão de agradecer. Os temas
a que mais me dediquei foram o teatro do século XVII e

11 O Jacques Lecarrne 111


o romance do século XX, sem excluir outros terrenos de Seria preciso também mencionar sua presença constante na
reflexão, especialmente a filosofia e a psicanálise. internet. Devemos, portanto, admitir que o termo, mesmo
Mas é menos o crítico do que o escritor que toma a pa- desprezado pelos puristas, correspondia a uma expectativa
lavra hoje. A propósito de um termo e de um conceito que do público, vinha preencher uma lacuna ao lado das me-
ele próprio criou há cerca de 40 anos. Graças aos trabalhos mórias, da autobiografia e das escritas íntimas em geral.
da equipe de crítica genética do ITEM,3 sobre a primeira Resta saber se ele constitui um novo "gênero": a questão
versão de Le monstre [ O monstro],4 descobri que a palavra já continua em debate.
aparecera sob a forma "auto-ficção" durante a análise de um Não entrarei aqui nesse debate. A própria imprecisão da
sonho inserida no próprio texto do romance. Usei a palavra palavra é útil, pois possibilita que certos escritores, como
na quarta capa de Fils 5 (1977), sob a forma autoficção em Catherine Cusset, Philippe Vilain ou Camille Laurens,
itálico. A maior parte das resenhas do livro citava o termo presentes nesse colóquio, entendam a dita autoficção em
entre aspas, como se o tratasse com luvas de pelica. Alguns sentidos bem diferentes daquele que lhe atribuo. A palheta
artigos favoráveis ao livro bufavam diante do neologismo. da autoficção é variada e é isso que constitui sua riqueza.
Há pessoas que continuam a não gostar da autoficção, é Gostaria de falar aqui como escritor que, ao escrever, reflete
direito delas. Fiquei surpreso, pois não contava com isso, ao sobre as implicações de sua maneira de proceder. "Autofic-
ver a palavra andar com as próprias pernas, independente tion in the making", ou seja, autofiction en cours [autoficção
de mim, a partir dos anos de 1980-1990, se propagar em em curso], poderíamos dizer em francês. Estou no momento
resenhas, em livros de crítica e logo adquirir legitimidade, atrelado à tarefa de escrever um livro que será o último de
sem aspas, nos jornais, para falar não apenas de literatura, minha obra romanesca, fato que corresponde exatamente ao
mas de cinema, teatro, pintura. A autoficção apareceu logo título dessa minha fala, improvisado com muita pertinência
nos dicionários Larousse e Robert, tornando-se assim uma por Isabelle Grell, "O último eu". O título do livro é Un
palavra da língua francesa. Mas ela existe também em in- homme de passage [Um homem de passagem]. Já compus
glês, alemão, espanhol, italiano. Tive o prazer de descobrir 300 páginas, o livro em gestação já existe, portanto, em
recentemente que havia livros que falavam de autoficção em grande parte. As primeiras páginas foram até publicadas
polonês, embora, naturalmente, eu não tenha podido lê-los. na revista Les Moments Littéraires (n. 20, 2° semestre de
2008). O sentido do livro é dado pela epígrafe de Prôust que

1 12 Serge Doubrovsky OÚLTIMO EU 113


escolhi, retirada de O tempo redescoberto: "Pois compreen-
nào sei mais por onde começar
dia que morrer não era algo novo, mas que, ao contrário, pão aguento mais
no qual toda
preciso me preparar para desocupar o local
desde minha infância, já morrera muitas vezes." É o livro
l)J1la parte de mim mesmo está incrustada há vinte e oito anos
de suas mortes, empreendido por um homem no término há dias semanas opressivos que estou assim não

da vida, já tendo chegado a uma idade bem avançada. Esse aguento mais uma pilha de nervos nó na garganta sufocado
e depois a série de providências que tenho de tomar
homem, vê-se logo de cara, sou eu. Em Fils, meu nome
de um lado pro outro na correria banco repartições
surge pouco a pouco, sob a forma de iniciais gravadas em meu
mas minha vontade é gritar
0 correio
uma pasta, f.S.D., depois na mise en abyme de meus dois
ser
nomes, Julien-Serge, enfim pela maneira como me chamam, se dilacera em dois é uma metade que estão me arrancando

Professor Doubrovsky, quando chego em meu gabinete da sempre a mesma coisa não dá para evitar

tenho de soletrar meu nome D de David o u


Universidade de Nova York. Em Un amour de soi [Um amor
Bde boy R o V de vitória
de si] 6 creio que aparece apenas o nome Serge. Em Le livre y as três últimas letras são mais fáceis
K
brisé, 7 Serge e Doubrovsky aparecem separadamente ou mas há também meus outros nomes não posso me enrolar

conjuntamente, em diversos momentos da narrativa. Em banco correio seguro de saúde sou Julie11

se chama Serge o escritor também Serge


Un homme de passage, minha identidade completa surge, 0 professor

para meus colegas meus alunos para meus


nesse jogo do eu, desde a primeira página (conferir figura para minhas esposas
amigos antigamente para as namoradas
a seguir, na página 115). para as mulheres em geral tempos tão longínquos

O livro é dividido em partes, como Fils, e não em capítu- de minhas travessuras agora meus trajes e trastes voz de minha
ressoando no fundo de mim
los como os outros. A primeira parte se intitula PARTIDA mãe vocé não pode esquecer nada Julien
justamente no fundo vou colocar o quê no baú grande
e é completamente referencial. Trata-se de minha partida
o azul 0 primeiro tenho outros quatro enormes para
de Nova York, em janeiro de 2006. Partida dolorosa, depois
encher
de ter passado 28 anos em um esplêndido apartamento da
Washington Square, e 50 anos na América. Tenho de arru-
mar minha bagagem, tomar as providências administrativas Estado de espírito do narrador, tarefas a serem cumpridas,
necessárias. E os grandes baús eram precisamente quatro. esse início de narrativa é escrupulosamente referencial e,
como o sobrenome e nome do narrador são fornecidos

114 Serge Doubrovsky OÚLTIMO EU 115


já de início e correspondem aos do autor, a homonímia em grandes autores. La naissance du jour [O nascimento
autor-narrador-personagem dá ao texto um estatuto que o do dia] de Colette, D'un château à l'autre [De castelo em
inscreve no pacto autobiográfico. Olhando, entretanto, um castelo] de Céline, Journal d'un voleur (Diário de um ladrão]
pouco mais de perto, um "eu referente" (no presente) não de Genet e Nadja de André Breton. Esses textos funcionam,
conta a experiência de um "eu referido" (no passado), o que cada um a seu modo, segundo o princípio contraditório de
é a estrutura normal de uma narração autobiográfica. Ora, uma narrativa dada como autobiográfica pela identidade
duas outras considerações conferem ao texto um estatuto do autor-narrador-protagonista e intitulada, no caso dos
oposto. A enunciação e o enunciado não estão separados dois primeiros livros, romance. No caso de Breton, não é
por um necessário intervalo, mas são simultâneos. "Viver ele quem o faz, é claro, mas é a personagem de Nadja, mais
ou contar'; dizia Sartre em A náusea. Aqui, o vivido se conta perspicaz que ele, que exclamava: "André? André? ... Você
vivendo, sob a forma de um fluxo de consciência naturalmen- vai escrever um romance sobre mim. Tenho certeza. Não
te impossível de se transcrever no fluxo do vivido-escrito, diga não."
se desenrolando página após página. Trata-se obviamente No que me diz respeito, e retomando um pouco ao início
de uma ficção. Esta ficção é confirmada pela própria escrita do que eu chamaria de bom grado meu "self-romance",
que se inventa como mimese, na qual a abolição de toda e creio que é além ou aquém do problema dos "pactos" que
qualquer sintaxe substitui, por fragmentos de frases, entre- se inscreve a autoficção: no funcionamento simbólico da
cortadas de vazios, a ordem da narração autobiográfica. A própria escrita. Esse funcionamento que encarna em sua
escrita visa criar para o leitor uma corrente de sensações própria enunciação o tema mais profundo desta obra e de
imprevisíveis e disparatadas que solicitam uma identificação minha obra em geral. As letras de meu nome não são forne-
com a pseudomimese de um fluxo de consciência. O modo cidas em meu texto logo de início apenas com o intuito de
de leitura se inscreve no âmbito de um pacto romanesco. O insistir na questão da autoficção, e provocar o leitor. Mais
pacto particular do texto é propriamente oximórico. Philippe profundamente, essas letras debulhadas separadamente
Lejeune reconheceu a possibilidade de tal texto, embora representam o não pertencimento do sujeito à sociedade
não tivesse em vista nenhum exemplo. De fato, esse tipo em que vive e na qual seu nome é difícil de se pronunciar
de autobiografia romanceada já existia há muito tempo. E e memorizar. As letras despedaçadas ilustram também o

116 Serge Doubrovsky OÚLTIMOEU 11 7


despedaçamento irremediável do referido sujeito literal- escritores programáticos, com programação roteirizada, e
mente in-coerente (despedaçamento, fragmento, lacuna, os escritores com estruturação redacional. O primeiro tipo
vazio, esquizo, cissiparidade etc. estão presentes em todos os é perfeitamente representado numa famosa anedota das Bo-
meus livros para caracterizar seu modo de ser). "B comme leana, coletânea de anedotas sobre Boileau. Um dia, parece
boy", "V comme victoire" duplicam ou dividem esse nome que tendo encontrado Racine, que não via há muito tempo,
russo entre o francês e o inglês, como a própria vida do Boileau teria perguntado: "Então, Sr. de Racine, a quantas
sujeito. A oposição entre meus dois nomes Julien e Serge, andas Pedra?" E Racine teria respondido: "Está acabada,
longamente comentada em Fils, opõe o Julien da fusão com agora basta escrevê-la." Se non evera ... Este seria o exemplo
a mãe e o Serge em relação com o mundo exterior (amigo, ideal do escritor "programático". Inversamente, poderíamos
amante, professor, escritor). Quando o autor-narrador se evocar a escrita automática de Robert Desnos sob efeito de
pergunta o que vai pôr primeiro no fundo do primeiro baú, mescalina, nos tempos do movimento surrealista. Pessoal-
a voz da mãe, você não pode esquecer nada Julien, ressoa no mente, pertenço à segunda categoria. Claro que tenho uma
mais profundo de mim. Nada esquecer ou perder, obsessão programação mínima, quando quero fazer uma narrativa.
materna, não esquecer uma mãe perdida. Obsessão também Aqui, a narrativa de minha Partida da América (é o aspecto
permanente desse Julien que nunca joga fora nenhuma referencial da autoficção). Mas as palavras com as quais essa
roupa velha, nem aquelas que já não usa há muito tempo narrativa é escrita surgem por si mesmas, umas chamando
e cuja triagem lhe é imposta por sua mudança definitiva as outras por consonância, proliferam segundo os acasos, os
para a França. Esse acúmulo de camisas, pulôveres, blazers encontros, os choques, inventam até mesmo pouco a pouco
e outras roupas de década em década, sem razão, sem ne- sua própria sintaxe, desconstruindo se necessário a sintaxe
nhuma ordem a não ser preservar a qualquer preço, seria tradicional. Declarei uma vez: "Não escrevo meus livros.
minha forma perversa de diário íntimo, que sempre recusei Meus livros se escrevem através de mim." Exercendo, isso
no plano literário? é óbvio, meu direito de controle estrito sobre esse jorro. É
Naturalmente, essas reflexões só puderam ser feitas a aquilo que eu próprio disse uma vez, a respeito de Sartre,
posteriori, fruto de uma releitura crítica. A crítica precisa- o "ginotexto" e o "falotexto". Você tem um lado feminino,
mente genética ensina que há dois tipos de escritores: os dizia minha mãe. Em minha obra, predomina o fluxo do

1 18 Serge Doubrovsky O ÚLTIMO EU 119


ginotexto enquanto produtor. O falotexto vigia e corrige. ou Cyrano na lua, é certamente uma possibilidade, um caso
Como fazia meu pai. É nesse sentido que declarei na quarta particular desviante do sentido primeiro. Isso não poderia
capa de Fils: "confiar a linguagem de uma aventura à aven- de modo algum constituir a natureza e a essência da au-
tura da linguagem." A fórmula, alguns observaram, já estava toficção. A palavra, em seu uso corrente, remete sempre à
na obra de Jean Ricardou. Dou fé. existência real de um autor. A fórmula do romance autobio-
Gostaria de revisitar, para concluir, a noção de autofic- gráfico foi igualmente proposta como definição da autofic-
ção, que constitui o tema desse colóquio e o sentido dos oito ção. Mas resta precisamente mostrar como autobiografia e
volumes de minha obra. Essa noção foi, nesses últimos anos, romance podem coexistir em um mesmo texto. Não tenho
erudita e longamente debatida. Estou pensando, é claro, nos nem tempo nem intenção, aqui, de retomar detalhadamente
trabalhos de Vincent Colonna8 e de Philippe Gasparini,9 mas essa questão fundamental. Queria simplesmente expressar
também nos numerosos colóquios, nos vários artigos publi- meu derradeiro sentimento de um "último eu", ao fim de
cados em revistas acadêmicas ou não. Em suma, o terreno se 40 anos de prática autoficcional. No fundo, não há oposi-
encontra atualmente coberto por uma soma impressionante ção entre autobiografia e romance. Desde o início de suas
de estudos, cujo primeiro foi o de Jacques Lecarme. 1º As in- longas e frutuosas pesquisas, Philippe Lejeune entregou,
terpretações variam e, por vezes, se contradizem. Eu gostaria se é que posso dizer assim, o ouro ao bandido. "Assim a
de retornar, para concluir, a meu ponto de partida, pois não história da autobiografia só pode ser concebida em relação à
sou de modo algum o inventor dessa prática, da qual já citei história geral das formas da narrativa, do romance, do qual
ilustres exemplos: sou o inventor da palavra e do conceito. ela é apenas no final das contas um caso particular." Toda
Pessoalmente, limito-me sempre à definição que dei - e autobiografia participa do romance por duas razões. Uma
que foi, aliás, reproduzida pelo dicionário Robert Culturel: formal: a autobiografia tal como se constituiu no século
"Ficção, de fatos e acontecimentos estritamente reais." Esse XVIII, com e depois de Rousseau, toma de empréstimo
eixo referencial me parece ser a essência do gênero, se é que a forma da narrativa em primeira pessoa encontrada nos
existe gênero. A definição proposta por Vincent Colonna romances da época. Mas há também outra razão que se
como narrativa feita por um autor-narrador-personagem relaciona à natureza do empreendimento. Nenhuma me-
real de aventuras imaginárias, tal como Dante no inferno mória é completa ou fiável. As lembranças são histórias que

120 Se rge Ooubrovsky OÚLTIMO EU 121


contamos a nós mesmos, nas quais se misturam, sabemos meio-tempo houve Freud e seus sucessores. A atitude clás-
bem disso hoje, falsas lembranças, lembranças encobridoras, sica do sujeito que tem acesso, através de uma introspecção
lembranças truncadas ou remanejadas segundo as necessi- sincera e rigorosa, às profundezas de si passou a ser uma
dades da causa. Toda autobiografia, qualquer que seja sua ilusão. O mesmo acontece com relação à restituição de si
"sinceridade", seu desejo de "veracidade", comporta sua através de uma narrativa linear, cronológica, que desnude
parte de ficção. A retrospecção tem lá seus engodos. Desde enfim a lógica interna de uma vida. A consciência de si é,
a abertura das Confissões, Rousseau imagina a história de com muita frequência, uma ignorância que se ignora. O
seus pais e do amor entre eles que começa na mais tenra belo modelo (auto) biográfico não é mais válido. Como diz
infância como uma pura fantasia à moda de Paul et Virginie. tão bem Robbe-Grillet em seu livro Le miroir quí revient [O
Rétif de Ia Bretonne diz maliciosamente: "tenho provas de espelho que retorna]: "Eis tudo o que resta de alguém, ao
que J. -J. Rousseau fez um romance." Chateaubriand falsifica fün de tão pouco tempo, e, em breve, certamente, também
antecipadamente suas Memórias: "Só direi de mim o que é de mim mesmo: peças desemparelhadas, pedaços de gestos
adequado à minha dignidade de homem." "Também não congelados e de objetos sem continuação, perguntas no
falarei à posteridade sobre os detalhes de minhas fraquezas." vazio, instantâneos enumerados desordenadamente, sem
Que se acrescente a isso as cenas inventadas, eis-nos em que se consiga realmente (logicamente) encadeá-los." Eu
plena empresa de auto-ficção, no sentido estrito. próprio tinha escrito em Le livre brísé, mais ou menos na
Mas então, me perguntarão com todo o direito: se o mesma época: "Não percebo de modo algum minha vida
senhor considera as autobiografias clássicas como nar- como um todo, mas como fragmentos esparsos, níveis de
rativas-romances de si, o que as diferencia da autoficção existência partidos, frases soltas, não coincidências suces-
moderna e pós-moderna, tais como outros e o senhor sivas, ou até simultâneas. É isso que preciso escrever. O
próprio praticam? Responderei que, nesse meio-tempo, a gosto íntimo da existência, e não sua impossível história."
relação do sujeito consigo mesmo mudou. Houve um corte Cada escritor de hoje deve encontrar, ou antes, inventar
epistemológico, ou mesmo ontológico, que veio intervir na sua própria escrita dessa nova percepção de si que é a
relação consigo mesmo. Digamos, para resumir, que nesse nossa. De todo modo, reinventamos nossa vida quando

122 Se rge Doubrovsky O ÚLTIMO EU 123


a rememoramos. Os clássicos o faziam à sua maneira, do personagem de Proust, Swann, que teria passado anos ~paixonado "por
uma mulher que não lhe agradava, que não fazia seu tipo, (N.T.)
em seu estilo. Os tempos mudaram. Não se escreve mais
, Este é O único livro de Serge Doubrovsky traduzido para o português, com o
romances da mesma forma que nos séculos XVIII ou XIX.
título O livro quebrado, trad. de António Filipe Marques, Lisboa, DIFEL, 1992.
Há, entretanto, uma continuidade nessa descontinuidade,
, v. Colonna, Autofictions & autres my thomanies littéraires, Tristram, 2004.
pois, autobiografia ou autoficção, a narrativa de si é sempre
• P. Gasparini, Autofiction. Une aventure du langage, Paris, Seuil, 2008.
modelagem, roteirização romanesca da própria vida.
10 J. Lecarme, Cautofiction: un mauvais genre?, em Autofictions & Cie., Colloque
de Nanterre, 1992. Também presente neste volume. (N.T.)
(Este artigo foi publicado em C. Burgelin, I.
Grell, R.-Y. Roche, (org.), Autofictions(s),
Colloque de Cerisy, Lyon, Presses Univer-
sitaires de Lyon, 2010, p. 383-393, Título
original: "Mon dernier moi")

Notas
1
Corneille et la dialectique du héros, Paris, Gallimard, 1963.

Parcours critique II [Percurso crítico II] (1959-1991), organizado por Isabelle


Grell, ELLUG, 2006.
3
Instituto de Textos e Manuscritos Modernos. (N.T.)

• Trabalho de equipe feito por A. Genon, I. Grell e Ph. Weigel, disponível em


<http://www.everyoneweb.com/doubrovskymanuscrit.com>.
5
O título cria um efeito de ambiguidade, pois a palavra fils em francês, em sua
forma escrita, pode significar tanto "filho" quanto "fios''. (N.T.)
6
O título, Um amor de si, faz ecoar Un amour de Swann [Um amor de Swann],
segunda parte do primeiro volume de Em busca do tempo perdido , de
Marcel Proust. A própria trama do livro de Doubrovsky repete a aventura

124 Serge Ooubrovsky OÚLTIMO EU 125


A QUANTAS ANDA A REFLEXÃO
SOBRE A AUTOFICÇÃO?

Jean-Louis Jeannelle

O que designa precisamente o termo "autoficção"?


Quase 30 anos depois da invenção desse gênero literário,
continua sendo impossível responder com segurança a essa
pergunta. Comecemos, portanto, propondo uma primeira
definição, deliberadamente muito geral: a autoficção é uma
aventura teórica. Roland Barthes lembrava em sua auto-
biografia ao quadrado, Roland Barthes par Roland Barthes,
que com "as coisas intelectuais fazemos ao mesmo tempo
teoria, combate crítico e prazer" .1 A história da autoficção
se compõe precisamente desses três fatores essenciais que
são a teoria, a polêmica e o prazer, presentes em proporções
cuja dosagem é considerável numa época em que a teoria
literária se instalou em um sincretismo que tende a ser con-
sensual demais. Os debates suscitados pela invenção dessa
noção se distinguem por seu vigor e, sobretudo, por sua

127
amplitude, uma vez que - e o fato é raro o bastante para ser mas seu romanesco". É desse "romanesco do intelecto" que
sublinhado - as questões de poética dos gêneros têm, nessa a história da autoficção serve hoje de exemplo. Eis alguns
ocasião, transbordado do contexto relativamente limitado de seus ingredientes: protagonistas com posições muito
das discussões acadêmicas para se propagar nos discursos distintas, sucessos midiáticos, traições amorosas e acertos
críticos e mediáticos. de conta, alianças circunstanciais e lutas fratricidas - como
Philippe Lejeune, no grande colóquio de Nanterre em na querela de precedência para saber quem, Kosinski ou
1992, contou a história do conceito em cinco atos. Essa Doubrovsky, inventara o termo autoficção -,3 e até mesmo
peça se iniciava em 1973, data na qual ele próprio declarara o reconhecimento tardio de filhos que se acreditava serem
em O pacto autobiográfico nunca ter visto um caso (com ilegítimos - como "aquele romance autobiográfico" outrora
exceção talvez de Le sabbat [O sabá] de Maurice Sachs) em condenado e que, há pouco, passou a ter o direito de entrar
que o herói de um romance declarado como tal tivesse o para a família das narrativas pessoais.
mesmo nome que seu autor, embora esclarecesse que nada A publicação recente de três obras dedicadas à questão
impediria a coisa de existir e que até mesmo haveria nisso - Est-íl je? [Ele seria eu?] de Philippe Gasparini, Autofic-
uma contradição interna da qual se poderiam obter efeitos tion & autres mythomanies littéraires [Autoficção & outras
interessantes. 2 Se, em 1992, esse modelo dramatúrgico pos- mitomanias literárias] de Vincent Colonna e Défense de
sibilitava destacar a rapidez com que os eventos tinham se Narcisse [Defesa de Narciso] de Philippe Vilain - mostra
encadeado, em 2006, tal modelo já não convém. A história que nos encontramos em uma virada: o termo está agora
da autoficção não tem mais a forma de uma peça de cinco lexicalizado, o gênero amplamente reconhecido e o cúmu-
atos, cujos personagens nos seriam perfeitamente conheci- lo da legitimidade é que outros conceitos julgados mais
dos e cuja ação constituiria um todo perfeitamente ordena- convenientes já competem com ele. É tempo de fazer um
do, mas sim a forma de uma novela de episódios pululantes, novo balanço e prosseguir a história a partir do ponto em
ricos em reviravoltas e cujos heróis são escoltados por uma que Philippe Lejeune a deixou. Para isso, me apoiarei em
multidão de personagens secundários. um levantamento bibliográfico tão preciso quanto possível,
Barthes acrescentava, no fragmento citado acima, que com o fim de estabelecer quatro principais balizas crono-
"gostaria de ter produzido não uma comédia do Intelecto, lógicas, correspondentes à publicação de artigos ou obras

128 Jean-Louis Jeannell e A QUAN TAS AN DA A REFLEX ÃOSOBRE A AUTO FICÇÃO? 129

1
marcantes, antes de evocar, em um segundo momento, al- grandes modelos, o primeiro identificado à obra de Serge
gumas das dificuldades levantadas pela teoria da autoficção. Doubrovsky e o segundo teorizado por Vincent Colonna que,
Vou terminar essa rápida investigação com um convite à em sua tese orientada por Gérard Genette, estendeu o concei-
mobilização da crítica genética literária, não porque ela seja to ao conjunto dos procedimentos de ficcionalização de si.
uma solução já pronta para os problemas levantados pelo A fim de compreender a evolução do gênero desde oco-
conceito, mas porque essa via de abordagem permaneceu lóquio de Nanterre, selecionei quatro grandes marcos: talvez
até aqui totalmente inexplorada e abre novas perspectivas a escolha pareça arbitrária; todavia esses quatro marcos, a
para o estudo do campo ocupado por essa noção recente em meu ver, desenham o campo de forças críticas no qual se
relação à história dos gêneros em primeira pessoa. encontra doravante preso todo e qualquer pesquisador que
É raro poder assistir às diferentes etapas da vida de trabalhe com autoficção.
um gênero, colhidas em menos de três décadas, de seu Para aqueles que perderam os últimos episódios dessa
nascimento até sua legitimação. Sob esse ponto de vista, a novela teórica, forneço o resumo dos acontecimentos ocor-
autoficção parece um verdadeiro caso de escola. Não voltarei ridos desde então.
aqui às diferentes etapas estabelecidas por Philippe Lejeu-
ne: a invenção do termo por Serge Doubrovsky em 1977, 1. 1989/2004: Vincent Colonna e a ficcionalização de si
depois o lento processo de reconhecimento do gênero, do
O primeiro episódio se situa ao mesmo tempo no iní-
qual Jacques Lecarme foi um dos mais ardentes defensores,
cio e no fün de nossa novela: trata-se da tese que Vincent
como demonstra especialmente o lugar que ele concede ao
Colonna defendeu em 1989,4 mas só publicou 15 anos mais
gênero em 1982, em La littérature en France depuis 1968
tarde, em 2004, sob uma forma amplamente modificada em:
[A literatura na França a partir de 1968], mas também em
Autofiction & autres mythomanies littéraires. Observa-se
1984, na enciclopédia Universalia e, enfim, no colóquio de
especialmente o acréscimo nesse livro de vários capítulos
Nanterre, em 1992. Nessa data, a autoficção adquiriu sua
sobre Luciano de Samósata, apresentado como o inventor
legitimidade; o termo vai logo chegar à mídia e passar a fazer
da maior parte dos diferentes modelos repertoriados por
parte dos programas do ensino secundário e universitário.
Colonna - a autoficção fantástica, biográfica, especular
Mas nem por isso a questão ficou definida, pois os estudos
etc. Resulta daí uma dupla defasagem, ao mesmo tempo
sobre a autoficção já tinham se desmembrado entre dois
cronológica (o estudo ficou por muito tempo disponível

130 Jean-Louis Jeannelle A QUANTAS ANDA A REF LEXÃO SOBRE A AUTOFICÇÃO? 13 1


11

apenas sob a forma de tese ou microfilme e conhecido literária e da teoria dos gêneros - ainda que, como veremos
pelos comentários de outros críticos que restituíam seu em seguida, a confusão proposital entre as duas abordagens
teor de modo mais ou menos objetivo) e discursiva (já que não deixe de ser problemática. Ao descartar o modelo dou-
existem hoje duas versões do trabalho: a primeira é uma broviskiano, que ele considerava como uma simples variante
discussão rigorosa dos textos de Doubrovsky, Genette, Le- do "romance autobiográfico", Colonna escolheu aplicar o
carme e Lejeune, e a segunda adota uma forma muito mais termo "autoficção" ao conjunto dos procedimentos de fic-
livre, voluntariamente mais leve, pois isenta de qualquer cionalização de si. De modo que a autenticidade dos fatos
referência demasiado acadêmica e misturando, sem verda- deixou de ser vista como condição de possibilidade: foi, ao
deiro cuidado metodológico, as épocas, as áreas culturais contrário, a exploração do imaginário literário que passou
e as referências críticas). Colonna substituiu a definição a ser valorizada, sendo que o único critério de identificação
doubroviskiana da autoficção como narrativa cuja matéria aceito é o fato de que o escritor tome a si próprio como
é estritamente autobiográfica, assim como atesta em teoria personagem de sua história e recorra à primeira pessoa ou
a identidade nominal entre autor, narrador e personagem, até mesmo se designe de maneira mais indireta - com a
mas cuja maneira - isto é, a organização narrativa e o tra- condição, é claro, de que a identificação permaneça sempre
balho de estilo - é de natureza romanesca,5 por uma defi- óbvia aos olhos do leitor. 7 Com Colonna, a fabulação deixa
nição completamente diferente. Seu objetivo era estender de se limitar a um período situado sob o signo da "crise do
o uso do termo, até então limitado à obra de Doubrovsky sujeito", mas se aplica a um conjunto exponencial de textos,
ou considerado pelos outros críticos como um avatar mo- sem limite histórico ou geográfico. 8
derno (ou antes, pós-moderno) da autobiografia - o que é
confirmado especialmente pelo lugar essencial que o autor 2. 1996: Marie Darrieussecq:
de Fils6 concede à psicanálise e pelo recurso estratégico de é possível ser sinceramente não sério?
Robbe-Grillet à autoficção a fim de promover a ideia de uma
O segundo momento marca o fim de um longo perí-
"Nova Autobiografia". Tratava-se, em outras palavras, de
odo de desconfiança em relação à noção de autoficção.
passar da palavra-valise ao conceito e fazer da autoficção um
Em resposta aos repetidos esforços de Jacques Lecarme
instrumento crítico dependente, a um só tempo, da história
para conceder um lugar a esse modelo genérico., surgiu,

132 Jean-Lou is Jeannelle A QUANTAS ANDA A REFLEXÃO SOBRE A AUTOFICÇÃO? 133


em novembro de 1996, um artigo de Marie Darrieussecq, mais decisivo de sua normatização -, uma vez que o artigo
à época aureolada pelo sucesso de Truismes [Truísmos], de Darrieussecq fora tirado de uma tese, que permaneceu
visando normalizar o estatuto ainda frágil da autoficção. A inédita, sobre a autoficção em Doubrovsky, Guibert, Leiris
estratégia de Darrieussecq consistia em reverter ou, mais e Perec. Ora, foi também em 1996 que Thierry Laurent
precisamente, modificar a direção do argumento que fora publicou sua pesquisa sobre a obra de Patrick Modiano,
desenvolvido por Gérard Genette em Fiction et díction lida excusivamente pelo filtro da autoficção, e foi em 1998
[Ficção e dicção]. De fato, em 1991, o orientador de Vin- que Lucie-Noelle Aulagne defendeu uma tese intitulada: Et
cent Colonna fornecera uma análise decisiva do campo si c'était moi? Approches de l'autofictíon dans la décennie
dos escritos estéticos, classificados em função de dois tipos 1980 [E se fosse eu? Abordagens da autoficção da década
de regime - uma literariedade constitutiva e uma literarie- de 1980]. Por fim, dentro desse processo de regularização,
dade condicional - e de dois modos principais: a ficção e foram publicados por Jean-Philippe Miraux, Damien Za-
a dicção. Genette concluía seu estudo com a ideia de que none, Jacques Lecarme e, depois, Thomas Clerc, trabalhos
as narrativas factuais dependem, para serem recebidas acadêmicos nos quais a autoficção coexistia ao lado de
como literárias, de um ato de atenção estética, ao contrá- outras formas de narrativas de si e até de estudos que lhe
rio das narrativas ficcionais, percebidas como literárias davam atenção especial: Jacques Lecarme dedicou ao tema,
de direito. Darrieussecq deduzia daí que, ao requerer um como vimos, um capítulo inteiro, em seção que tratava da
duplo pacto de leitura - factual e ficcional -, a autoficção "renovação" do gênero autobiográfico.9
entra, através de uma investida "ontológica", no campo
dos escritos constitutivamente literários e adquire assim 3. 2001: Philippe Forest e o elogio do romance
um valor que comumente envolve ásperas discussões em Dando continuidade ao ensaio intitulado Le Roman,
torno da autobiografia. Essa interpretação pragmática da le réel [O Romance, o real], Philippe Forest publicou em
autoficção fixou em grande parte os termos da an álise que 2001, Le Roman, le j e [O Romance, o eu] acompanhado,
se faz desde então desse fenômeno de dupla inscrição, ou no mesmo ano, de um trabalho coletivo coorganizado
melhor, de dupla reivindicação. Mas ela marcou também com Claude Gaugain: Les Romans du Je [Os Romances do
a entrada do gênero no discurso acadêmico - sinal ainda Eu]. No mesmo ano, Jean-Pierre Boulé propõe, em Hervé

134 Jean-Louis Jeannelle A QU AN TAS ANDA A REFLEXÃOSOBRE A AUTOFICÇÃO? 135


Guibert: l'entreprise de l'écriture du moi [Hervé Guibert: a da doxa reinante, seja retomando o termo "autoficção" de
empreitada da escrita do eu], a noção de "romance falso"
10
maneira bem livre, sem lhe dar qualquer valor conceitual
que ele aplica a um tipo de "romance que não respeita 0 particular e colocando-o à prova de outros termos como
pacto romanesco" - o que era, para ele, o caso, em parte, "narrativa indecidível", 12 seja opondo-o diretamente a
de Mes parents [Meus pais], Fou de Vincent [Louco por um modelo genérico julgado mais adequado, assim como
Vincent] e, mais diretamente, da trilogia: A l'ami qui ne Jean-Pierre Boulé fizera em seu trabalho sobre Guibert.
m'a pas sauvé la vie [Ao amigo que não me salvou a vida], Foi Philippe Forest que levou mais longe a crítica e
Le protocole compassionnnel [O protocolo da compaixão] afirmou mais diretamente a evolução ocorrida: não era
e L'homme au chapeau rouge [O homem do chapéu ver- mais, na verdade, somente em função do modelo auto-
melho]. Um ano mais tarde, Bruno Blanckeman publicou biográfico que se indagava sobre esse tipo de narrativas
Les fictions singulieres: étude sur le roman français con- intermediárias, mas sim em função do modelo romanesco.
temporain [As ficções singulares: estudo sobre o romance Essa mudança de perspectiva vinha acompanhada de uma
francês contemporâneo], dando continuidade a seu estudo espécie de conversão axiológica: onde antigamente se via
sobre Echernoz, Guibert e Quignard, intitulado: Les récits uma complexificação da autobiografia, Forest reconhecia
indécidables [As narrativas indecidíveis]. Laurent Mattuissi um "novo naturalismo do íntimo'', a expressão triunfante
publicou Fictions de l'ipséité: essai sur l'invention narrative de uma "ego-literatura" indigente. Ignorando os debates
de soi [Ficções da ipseidade: ensaio sobre a invenção nar- sobre o estatuto poético da autoficção, Forest denunciava
rativa de si] (Beckett, Hesse, Kafka, Musil, Proust, Woolf). uma forma de escrita romanesca de si que só olhava para
Todos esses trabalhos exploravam certamente pistas por seu próprio umbigo, que era preciso reposicionar numa
vezes totalmente divergentes, mas tinham em comum o corrente literária mais antiga e mais fecunda denominada
fato de fornecer um contraponto ao conceito de autoficção. "O Romance-do-Eu". Ao passo que Lecarme fizera de Bre-
Quando o Magazine Littéraire dedicou um número especial ton, Aragon, Céline, Cendrars, Perece Duras predecessores
às escritas do eu (n. 409, mai 2002), tendo Santo Agostinho mais ou menos diretos da autoficção, Forest, inversamente,
por terminus a quo e a autoficção por terminus ad quem, 11 mobilizava esses grandes nomes da literatura contra os que
toda uma série de estudos importantes se demarcavam sustentavam o "vivido" e o "autêntico". A seus olhos, toda

136 Jean-Louis Jeannelle A QUANTAS ANDA A RE FLEXÃO SOBRE A AU TOFICÇÃO? 137


narrativa de si pertence ao terreno da ficção, na medida em 4. 2004: Philippe Gasparini, retorno ao início do jogo
que um escritor "só pode delegar de si próprio, no interior Um dos gestos inaugurais mais importantes de Philippe
de uma narrativa, o simulacro de um personagem". Assim, Lejeune foi, em 1971, distinguir de maneira drástica a au-
foi no âmbito da ficção, única apta a responder ao apelo tobiografia de todas as formas próximas: as memórias, o
do real, que se avaliou a questão do discurso em primeira autorretrato, o diário íntimo, mas também, e, sobretudo, o
pessoa. Forest chega então à seguinte classificação: romance. É essa distinção fundadora, uma das mais impor-
tantes para a legitimação da autobiografia, que passa assim
Distinguirei "ego-literatura", "autoficção" e "Romance do Eu" a ser dotada de características poéticas que não dependem
como três estases nesse processo de despersonalização em favor mais unicamente dos procedimentos narrativos ou das qua-
do qual o real se faz ouvir sempre com mais força no seio da fic- lidades estilísticas dos textos que Philippe Gasparini coloca
ção. Nas modalidades menos reflexivas da ego-literatura, 0 Eu se em questão em 2004, suprimindo o interdito que pesava
apresenta como realidade (biográfica, psicológica, sociológica etc.) até então sobre a noção de romance autobiográfico. Aos
cujos testemunhos, documentos, narrativas de vida expressam a olhos de Philippe Lejeune, a ideia, muito difundida, de que
objetividade anterior a toda e qualquer modelagem pela escrita. o romance seria mais verdadeiro que a autobiografia tinha
Com a autoficção (pelo menos quando esta reúne verdadeiramente a ver com uma "ilusão ingênua" que era possível dissipar
projeto autobiográfico e projeto romanesco), essa realidade do sublinhando-se a existência de um "espaço autobiográfico",
Eu se experimenta (ou se suspeita) como ficção. Mas é somente analisado já em 1975 (ou seja, mais de 20 anos antes do artigo
de Marie Darrieussecq e pouco mais de 30 anos antes do
em certas obras que o jogo entre realidade e ficção ao invés de
texto de Philippe Gasparini) como a combinação ambígua
aprisionar a literatura no círculo do solipsismo narcísico, faz do
de contratos de leitura antitéticos. 14 Entretanto, por um efeito
Eu o suporte necessário de uma experiência da qual O sujeito se
de gradação em que as opiniões vão se sucedendo do pró ao
ausenta a fim de deixar o romance responder ao apelo exclusivo
contra, segundo a luz que se possui,15 foi a crença na validade
do impossível real.13
referencial da autobiografia que passou a ser considerada
ingênua no fim dos anos de 1990. A partir de então, Lejeune
foi visto como o guardião de uma ortodoxia poética meio

138 Jean-Louis Jeannelle A QUANTAS ANDA A REF LEXÃO SOBRE A AUTO FICÇÃO? 139
ultrapassada: era o momento de todas as formas de hibrida- autobiográfico - o que autorizava Gasparini a fazer da auto-
ção genérica, no qual a ficção se apresentava como um vetor ficção, aliás como Colonna, um tipo particular de romance,
mais rico de expressão de si. Precedido por um estudo de em oposição a Doubrovsky e vários a outros escritores que,
Sébastien Hubier dedicado às diferentes formas de literatura embora reivindicando essa categoria, certificam a validade
íntima, 16 Est-il je? de Philippe Gasparini se distinguia pela referencial de suas narrativas.
precisão de suas análises poéticas: tratava-se de fornecer Vê-se que, em 2004, as fronteiras estabelecidas ainda
uma concepção genérica do "espaço autobiográfico", graças não estavam fixadas. A poética das narrativas de si entrara
ao estudo sistemático de todos os signos (enunciativos, gra- em um período turvo em que as diferentes noções, da mais
maticais, paratextuais ou metatextuais) de duplo indício. O estabelecida como a autobiografia, até a mais recente como
retorno a essa questão, totalmente tradicional no início do a autoficção, se viam ambas contestadas.
século, não deixava de levantar um problema de preexce- Qual ensinamento tirar desse rápido percurso? Talvez
lência: ao passo que Vincent Colonna descrevia, no mesmo que, em matéria de teoria, não há nada mais perigoso que
ano, o romance autobiográfico como "uma das ilhotas da fa- o consenso. Pelo fato de se assentar em grande parte sobre
bulação de si", 11 Gasparini fazia da autoficção uma categoria uma retórica da transgressão e do paradoxo, a teoria da
contígua ao romance autobiográfico, mas de extensão mais autoficção corre o risco, mais que qualquer outra, de se
restrita. A isso se acrescentava um importante problema de tornar monótona: de tanto manejar o paradoxo, passa-se
permeação, uma vez que no quadro das diferentes formas insensivelmente da argumentação à invocação. Parece que
de narrativa em primeira pessoa, proposto na página 27 de é isso que se vem produzindo, há alguns anos, em muitos
seu livro, Gasparini definia a autoficção como uma narrativa estudos nos quais a autoficção é apresentada como um
baseada na homonímia do autor, do narrador e do herói, gênero "estabelecido", correspondendo a uma classe bem
mas que apresentava um "desenvolvimento que se projetava determinada do campo das narrativas de si.
em situações imaginárias". 18 A partir daí, a única diferença Vários teóricos concordam em pensar, ao contrário, que
entre os dois modelos concorrentes seria que, no caso da a autoficção não é um gênero. Na verdade, o valor desse
autoficção, a identidade do sujeito encenado é claramente conceito provém mais das dificuldades teóricas que suscita
fictícia, ao passo que ela permanece ambígua no romance do que da própria coerência do modelo literário que_designa.

140 Jean-Louis Jea nnelle A QUANTAS ANDA A REFLEXÃO SOBRE A AUTOFICÇÃO? 141
Essa é a razão pela qual me parece importante esclarecer os pode fazer o texto passar de uma categoria genérica à outra
termos utilizados e sublinhar os pontos de debate da teoria - da autobiografia ao romance. Toda a análise de Lejeune se
da autoficção, a fim de assegurar que o conceito mantenha baseia, pois, nesse tipo de pacto feito pelo autor: a seus olhos,
toda a sua força. a principal dificuldade provém da ausência de indícios sufi-
Para tanto, destacaria quatro pontos mais ou menos liti- cientes. Ora, a invenção da autoficção se baseia, ao contrário,
na ideia de uma copresença de indícios contraditórios. O
giosos. Apresento-os a seguir, classificados não por ordem
que Lejeune interpretava como um fenômeno de ambigui-
de importância, mas por ordem de inclusão.
dade, Doubrovsky e seus sucessores consideram como um
a) Ambiguidade e Hibridez
fenômeno de hibridez. A nuance pode parecer talvez sutil,
Em seu famoso quadro de dupla entrada do "Pacto mas essa primeira dificuldade me parece comandar todo
autobiográfico", 19 Philippe Lejeune considera duas possi- o resto. Realmente, a maior parte dos estudos dedicados
bilidades: não há indicação que permita ligar o nome do à autoficção volta à questão da indecibilidade genérica,
personagem ao nome do autor ou não há nenhum indício mas poucos críticos fazem a distinção entre ambiguidade
de pacto, autobiográfico ou romanesco. A casa que será ocu- e hibridez. Assim, Marie Darrieussecq define a autoficção
pada alguns anos mais tarde por Doubrovsky se encontra, como um tipo de asserção "que não corresponde a nenhum
como se sabe, no alto, à direita do quadro. Uma outra casa 'outro' ato de linguagem"; ela acrescenta imediatamente:
vazia, embaixo, à esquerda, poderia ser reservada ao caso "a menos que se prefira dizer que o ato de linguagem que
do romance autobiográfico. Notemos que Lejeune preen- corresponde a ela é ele próprio biface: pois a autoficção
cheu a casa do centro, a 2b, indicando: "Indeterminado." pede para que se acredite nela e que não se acredite." 2º No
De fato, o fenômeno da autoficção ultrapassa amplamente primeiro caso, o enunciado autoficcional não se baseia em
a casa situada no alto, à direita: são na realidade todas as nenhum compromisso ilocutório preciso; no segundo,
casas sem gênero fixo que se relacionam a ele. Bem mais combina indissociavelmente os dois. Segundo Darrieussecq,
que isso, pode-se considerar que a casa 2b constitui o pivô as duas hipóteses dão na mesma.
de um duplo sistema de oscilação, formado pela coluna nº 2 Refletir em termos de ambiguidade, como fez Lejeune,
e pela linha de mesmo número. De fato, a ausência, seja de leva a supor que um texto é factual ou ficcional e que seu
indicação de nome do personagem, seja de pacto explícito, estatuto permanece amb íguo por falta de informação

142 Jean-Louis Jeannell e A QUAN TAS ANDA A REFLEXÃO SOBRE A AUTOFICÇÃO? 143
suficiente, mas que um complemento de informação fazer de textos autoficcionais simples exceções, tornando
pode ser suficiente para fazê-lo passar de um lado para assim inútil a existência desse novo gênero.
o outro da fronteira. 21 Definir, ao contrário, a autoficção Assim, pairam sobre a auto ficção, por um lado, a ameaça
pela coexistência no sentido estrito de elementos factuais de não ser reconhecida enquanto tal e, por outro, a ameaça
e elementos ficcionais, como tendem a fazer muitos dos de ser hipostasiada sob uma forma híbrida, na qual não
partidários do gênero, significa arriscar-se a anular a per- haveria mais sentido tratar das relações entre ficção e não
tinência da questão de saber qual distinção convém esta- ficção, uma vez que estaria claro, de uma vez por todas, que
belecer entre esses dois elementos constitutivos dos textos toda narrativa é uma ficção.
autoficcionais. Na verdade, a indecidibilidade deixa de ser b) Definição da ficção
então problema de falta de informação ou de instrumentos Toda a dificuldade diz respeito, na realidade, a uma
poéticos adequados: ela define propriamente a narrativa segunda questão: qual sentido damos ao termo "ficção"?
autoficcional. Ora, não é certo que haja muito a ganhar Sobre esse ponto, as coisas se mostram confusas. Existem,
se instalando assim no paradoxo, simplesmente porque de maneira geral, três grandes definições. Para uns, a ficção
ao fazer deste um traço que define o gênero, arrisca-se é um modo narrativo constituído de asserções simuladas
a anular o próprio problema. A posição segregacionista (trata-se do ficcional), para outros, ela se define em função
de Lejeune era interessante porque oferecia um modelo de um critério de ordem temática, isto é, pelo recurso ao
de análise mais elaborado: um jogo de combinações di- imaginário (trata-se do fictício); para outros, ainda, ela
nâmico entre diferentes modalidades da autobiografia e representa tudo aquilo que não é referencial: o imaginário,
do romance, completado por uma bateria de conceitos, mas também o hipotético, o irreal, o mentiroso etc. (trata-se
como os de "espaço autobiográfico"22 e de "autobiografia do falso). Mas, na maioria das vezes, o ficcional e o falso se
crítica", graças aos quais se tornou possível descrever os confundem, por falta de uma análise do próprio estatuto
fenômenos de ambiguidade em termos de estratégia li- da ficção e de seus marcadores. Esse ponto é, contudo,
terária, sem rebaixá-los a um único e mesmo termo. Por essencial, já que é sobre essa questão que os dois modelos
outro lado, esse modelo de análise tinha o defeito - e é esse reconhecidos por Doubrovsk.y e Colonna se dividem: para o
o principal argumento dos defensores da autoficção - de primeiro, a autoficção se define antes de tudo pela hesitação

144 Jean-Louis Jeannelle A QUANTAS ANDA A REFLEXÃO SOBRE A AUTO FICÇÃO? 145
ou pela indecisão que produz no leitor, incerto quanto à contemporâneo por todas as formas de hibridação torna
natureza das informações apresentadas; para o segundo, a mais difícil se limitar a tal posição - que Philippe Lejeune
auto ficção deve mergulhar o leitor em um mundo ficcional, parece ser hoje um dos raros, junto com Dorrit Cohn, a
sob pena de ser somente uma variante modernizada do sustentar contra tudo e contra todos.
"romance autobiográfico". Vê-se que o impasse precedentemente encontrado de-
Ora, há um forte indício da importância cada vez maior pende antes de tudo da extensão dada ao conceito de ficção:
concedida ao critério de ficcionalidade durante as duas não lhe dar nenhum limite preciso tem por efeito embara-
últimas décadas. Em conferência publicada em 1999, em lhar as referências mais comuns. Pois, ao se supor que uma
Figures IV [Figuras IV], "Du texte à l'reuvre" [Do texto à autobiografia implica necessariamente uma parte de ficção,
obra], Gérard Genette reconstitui o conjunto de seu per- abandona-se toda e qualquer perspectiva poética estrita e
curso teórico. Ele admite ter mudado de posição a respeito fica-se privado dos meios de distinguir o campo da ficção
da autoficção que associara outrora a uma simples forma do campo da dicção em prosa. Ora, toda confusão agrava as
de hápax identificado à obra de Proust, depois reconheceu, dificuldades ao invés de resolvê-las, como lembrou Dorrit
em Fiction et diction, alguns casos muito específicos de Cohn, fervente advogada de uma concepção restrita de fic-
fabulação de si,23 se mostrando, inversamente, muito duro ção. Aos olhos daquela que forneceu uma das análises mais
em relação ao que denominava as "autobiografias envergo- rigorosas dos marcadores de ficcionalidade em Le propre
nhadas". Na narrativa de seu percurso, Genette reconhece de la fiction [O próprio da ficção], o conceito de autoficção
seu erro e, ainda que continue a se demarcar da concepção se revela inútil: a autora, aliás, não o menciona no capítulo
doubroviskiana da autoficção, reconhece o interesse e o intitulado "Vidas ficcionais vs vidas históricas: limites e
valor literário desse modelo narrativo, chegando a escrever casos limites", embora trate de L'oiseau bariolé [O pássaro
que "toda autobiografia comporta, quase inevitavelmente, pintado] de Kosinski. Cohn prefere falar de "autobiografia
uma parte de ficção, com frequência inconsciente ou dis- ficcional", que define como sendo um romance no qual um
simulada". Ao fazer isso, Genette atesta talvez com atraso, narrador ficcional faz um relato retrospectivo de sua vida,
uma mudança de perspectiva: se sua geração tivera como e que opõe às "ficções autobiográficas", isto é, às obras de
preocupação principal distinguir a ficção da dicção, o gosto inspiração autobiográfica.24 De tanto insistir no fenômeno

146 Jean-Lou is Jeannelle A QUANTAS ANDA A REFLEXÃO SOBRE A AUTOFICÇÃO? 147


de hibridação genérica, os defensores da autoficção cor- Modiano. 25 Supondo que não é possível ser perfeitamente
rem, pois, o risco de desfazer o laço que une o romance e sincero, e que toda narrativa de si implica uma ficcionaliza-
a autobiografia. Já em 1988, em "Peut-on innover en auto- ção, Laurent deduz, de maneira simétrica, que um escritor
biographie?" [Pode-se inovar em autobiografia?], Lejeune extrai, de maneira mais ou menos direta e mais ou menos
depois de distinguir as formas ambíguas (que misturam sem intencional, o material de seus romances de sua própria
indícios discriminantes o factual e o fictício) e as formas existência. O pacto autobiográfico não é mais, nesse caso,
múltiplas (nas quais se sucedem explicitamente episódios visto segundo o modelo do contrato outrora fixado por
factuais e episódios fictícios) da autoficção, advertia que, Lejeune, mas como um compromisso de sinceridade que
se os leitores não tivessem a possibilidade de distinguir o só funciona se o leitor tiver um conhecimento suficiente da
factual do fictício, a autoficção se veria condenada a ser vida do autor. 26 Tal critério enviesa inevitavelmente o dito
lida como uma autobiografia clássica - ou, poderíamos pacto autobiográfico, uma vez que ficou claro, depois da
acrescentar, como uma simples ficção, segundo a ideia que análise fundadora de Lejeune, que se é indispensável que o
cada geração faz do grau de implicação pessoal de um autor compromisso de referencialidade seja cumprido, inversa-
em suas obras. mente, não é "necessário que o resultado seja da ordem da
Mas há outro perigo, não menos importante: a extensão estrita semelhança": "O pacto referencial pode ser, segundo
incontrolada do conceito de "ficção" priva, de fato, pouco a os critérios do leitor, mal cumprido, sem que o valor referen-
pouco, o próprio conceito de qualquer significação verda- cial do texto desapareça (ao contrário), o que não é o caso
deira. A tal ponto que se pode falar de um retorno mascara- das narrativas históricas ou jornalísticas."27 Thierry Laurent
do à crítica biográfica, espécie de revanche que Sainte-Beuve escolheu, por sua vez, avaliar o grau de veracidade (ou, por
parece enfim poder saborear, depois de várias décadas de contraste, de ficcionalidade) dos romances de Modiano em
desprezo, e ainda por cima, para cúmulo do prazer, sob a relação às próprias declarações públicas do autor:
aparência de análise poética! O trabalho de Thierry Laurent
é um bom exemplo disso: ele identifica a autoficção a uma Confirma-se que essas declarações são bem explícitas quanto
forma de romance, no qual é possível perceber uma série ao sentido global de sua criação ou quanto a partes inteiras de sua
de analogias entre tal ou tal personagem e o autor, Patrick personalidade. É claro que tememos a possibilidade de omissões,

148 Jean- Louis Jea nn elle A QUANTAS ANDA A REFLEXÃO SOBRE A AUTOFICÇÃO? 149
ou mesmo de mentiras: entretanto parece que esse não foi o caso, quanto ao estatuto das informações fornecidas e quanto
dadas as confirmações recolhidas com comentadores, jornalistas e à natureza do texto apresentado. Se parece ser, portanto,
pessoas próximas ao romancista. Em março de 1996, depois de ter essencial dar um estatuto preciso ao que se denomina fic-
lido nosso trabalho, Modiano aceitou até mesmo retificar alguns ção, é em razão justamente da importância que adquirem,
erros e esclarecer certos pontos.28 nesse caso, o jogo de vai-e-vem entre ficção e não ficção e,
consequentemente, as condições de recepção que assegu-
Essa carta de Modiano, última prova da demonstração, ram a perenidade desse jogo. Sem isso, a própria ideia de
na qual o escritor comenta alguns detalhes, está inserida hesitação entre duas hipóteses antagonistas se reduz a um
no livro à guisa de prefácio.29 Assim, é em relação a uma simples postulado sem nenhum interesse.
verdade biográfica ou histórica que é avaliada a natureza do c) História literária e denominações genéricas
contrato fixado por Modiano em cada um de seus romances. Assim como no caso do estatuto da ficção, a inscrição
Vê-se que essa interpretação psicologizante da autoficção histórica da autoficção levanta um importante problema de
não concede ao conteúdo ficcional dos textos nenhum ver- extensão: qual o limite a ser fixado? Se a redução do modelo
dadeiro estatuto: todo o esforço do crítico visa, na verdade, à literatura contemporânea parece difícil de ser sustentada,3°
reduzir essa forma de transposição como se fosse um véu sua aplicação mais abrangente a todo tipo de obra que oscila
que esconde a experiência nua do escritor. Bem mais que entre romance e autobiografia escapa por pouco ao anacro-
isso, a análise não se apoia em nenhum critério poético nismo: falar de autoficção no caso de Cendrars, Céline ou
compartilhável: ela se fundamenta em um saber externo, Malraux supõe que se trate de um verdadeiro gênero, cujas
ao qual o leitor não tem - ou dificilmente tem - acesso, e características seriam bastante precisas para dar conta de
não na identificação de indícios semelhantes aos que Dorrit práticas textuais heterogêneas, parcialmente estranhas a
Cohn enumerava em Le propre de la fiction. nossas modalidades de apreensão do literário. Mas não há
Chegamos aqui a um dos limites dos estudos dedicados à nenhuma certeza: vários teóricos da autoficção se recusam
autoficção: o gênero só existe na medida em que produz no a conceder ao fenômeno que estudam o estatuto de gênero.
leitor (qualquer que seja o estado dos conhecimentos prévios É particularmente o caso de Colonna, cuja investigação não
sobre o autor dos quais ele dispõe) certa hesitação - hesitação conhece qualquer limite cronológico. Deixando ass_im de

150 Jean-Louis Jeannelle A QUANTAS ANDA A REFLEXÃO SOBREA AUTOF ICÇÃO? 15 1


'1

lado as coerções da história literária e da poética dos gê- não está de modo algum limitado a ser exato sobre os fa-
neros, Colonna faz da autoficção o que se poderia chamar tos, como nas memórias, ou a dizer a verdade por inteiro,
de simples procedimento, que ele identifica em qualquer como nas confissões". Vê-se que, em 1876, as condições
escritor que inventa uma vida para si. Vê-se o inconveniente pragmáticas de um "pacto autobiográfico" não eram de
de tal abordagem, que não permite dar conta da articulação modo algum ignoradas: eram simplesmente associadas a
entre contexto histórico e denominação genérica. Ora, 0 dois outros gêneros à época melhor identificados e fun-
uso renovado do termo "romance autobiográfico" lembra, damentados em uma base sociocultural que implicava tal
se necessário, a importância da questão. Esse rótulo gené- imperativo de veracidade: a história, no caso das Memórias,
rico, por tanto tempo deixado de lado, reaparece ·hoje por e a religião, no caso das confissões. A autobiografia eram
força de um efeito de contrapeso bem conhecido. A própria reservadas as delícias da "fantasia" e a liberdade da transpo-
análise pragmática em que se apoia a teoria de Lejeune foi sição. Previamente à concepção identitária da autobiografia
elaborada para fazer contrapeso a antigas definições que, defendida por Lejeune, Vapereau fornecia uma concepção
hoje, seria preciso levar em conta. Em Pour l'autobiographie expressiva, representativa de um ideal romântico da escrita
[Pela autobiografia], Lejeune mencionava assim o artigo que de si. Pouco importava então que W erther fosse Goethe, ou
Gustave Vapereau dedicara, em 1876, à autobiografia no que o sujeito lírico das Noites não pudesse ser confundido
Dictionnaire universel des littératures [Dicionário univer- rigorosamente com Musset: o essencial era que o escritor
sal das literaturas], publicado pela Hachette. O gênero era evocasse com vivacidade sua personalidade, seus pensa-
definido nesses termos: "Obra literária, romance, poema, mentos e seus sentimentos. Vê-se que basta adotar outra
tratado filosófico etc., cujo autor teve a intenção, secreta ou definição de autobiografia, própria a dar conta da enorme
confessa, de contar sua vida, de expor seus pensamentos ou massa de textos situados no século XIX, intermediários
de evocar seus sentimentos."31 entre o modelo fixado por Rousseau e o romance, para que
Ao mesmo tempo muito próxima da análise feita por se desenhe uma paisagem completamente diferente. A con -
Lejeune em 1971, essa definição é também a exata antítese cepção rom ântica da autobiografia, assim esboçada, repousa
dela, uma vez que, aos olhos de Vapereau, a autobiografia precisamente nos fenômenos de duplo indício estudados
"deixa um amplo espaço para a fantasia, e quem a escreve por Gasparini, mas esses dependem de práticas desig.n adas

152 Jean -Loui s Jeannelle A QUANTAS ANDA A REFLEXÃO SOBRE A AUTOFICÇÃO? 153
e teorizadas por nossos predecessores de maneira diferente vivemos. Tal cruzamento de discursos, tradicionalmente
da nossa. Como a autoficção ou o romance autobiográfico estranhos uns aos outros, se explica por diferentes fatores
não formam um gênero coerente, mas a fronteira sinuosa intelectuais, a saber: a importância adquirida, desde o fim
de um campo literário mais abrangente, devemos, portanto, dos anos de 1970, por aquilo que Lejeune denomina "auto-
reinscrever o estudo não apenas no continuum de uma série biografia crítica" (a partir do modelo dos escritos de Roland
de categorias genéricas ligadas a condições de produção e Barthes, Nathalie Sarraute ouAlain Robbe-Grillet); o desen-
de recepção precisas, mas também no campo dos procedi- volvimento de uma espécie de escolástica dos gêneros que
mentos literários próximos, tais como a prática da hetero- favorece todas as formas de transgressão ou de hibridação;33
nomia ou do embuste literário. É, pois, dentro do quadro também o desenvolvimento recente dos estudos dedicados
mais geral de uma pesquisa sobre as "ficções de autor" que à literatura contemporânea ou ainda a reunião, em vários
convém inscrever no futuro os estudos sobre a autoficção, adeptos da autoficção, das diferentes posturas: prática
a fim de verificar ao mesmo tempo sua coerência conceitual literária, profissão acadêmica, intervenções críticas. Essas
e a continuidade histórica. condições de efetuação explicam de certa maneira o suces-
d) A imbricação das instâncias do discurso so da autoficção: por efeito de ricochete de um discurso a
Resta uma última dificuldade, ligada aos efeitos de infla- outro, essa noção pouco a pouco adquiriu uma importância
ção ou de sobrelanço dos quais a teoria da autoficção parece que se deve menos a sua coerência teórica intrínseca que à
ser vítima. Pois a incriminada falta de rigor conceitua! pro- fecundidade das interações que ela favorece entre instâncias
vém, em grande parte, das condições institucionais nas quais que habitualmente se ignoram. Talvez a autoficção tenha se
se desenrolam as trocas e, particularmente, da imbricação de tornado esse formidável catalisador teórico apenas em razão
três tipos de discurso que obedecem a lógicas habitualmente dessa indeterminação que a envolve: escritores, críticos e
distintas: a teoria acadêmica (e seus derivados escolares), pesquisadores encontram nela um terreno de acordo, ou
os paratextos autorais e a crítica "mundana", 32 pela qual a antes, de desacordo, mas um desacordo produtivo.
mídia transmite a atualidade editorial para o grande público. Vê-se que o balanço das últimas pesquisas dedicadas à
Talvez seja esse ponto que faz do debate sobre a autoficção autoficção é muito contrastado: teremos chegado ao fim
a questão crítica mais representativa do momento que de um debate crítico? Será que os discursos dedicados a ela

1 54 Jean -Louis Jeannelle A QUANTAS AN DA A REFLEXÃO SOBRE A AUTOFICÇÃO ? 155


estão condenados a ficar repisando os mesmos paradoxos atesta uma página manuscrita. Essa retificação me parece
embotados? Parece ser necessário, hoje, operar um deslo- ser de grande alcance simbólico: a passagem do prefácio ao
camento e abrir novas vias de exploração. Uma delas nos é manuscrito propõe substituir uma perspectiva determinada
fornecida pelo próprio Doubrovsky em entrevista a Philippe pela recepção dos textos e pelos efeitos de leitura esperados
Vilain, ao fim de Défense de Narcisse. De fato, o inventor por uma perspectiva mais atenta aos mecanismos de produ-
da noção declara: ção. É importante hoje aplicar à questão da autoficção uma
das abordagens críticas mais fecundas: será que a genética
Como fui levado a inventar esse conceito (pois não é apenas poderia trazer sua contribuição ao debate?
uma palavra, mas um conceito)? Eu próprio me enganei sobre
(Este texto foi publicado em J.-L. Jeannel-
sua origem. Nunca nos conhecemos inteiramente. Eu acreditava
le, C. Violet (org.), Genese et autofiction,
ter inventado a palavra como jornalista, se é que posso dizer
Louvain-la-Neuve: Academia Bruylant,
isso, ao escrever o prefácio de meu livro. Ora, uma equipe do
2007, p. 17-37. Título original: "Ou on en
I.T.E.M. especializada em escrita genética, dirigida por Isabelle
est la réflexion sur l'autofiction?")
Grell, pesquisando as 2.500 páginas que deram origem ao que se
chamava Le monstre [O monstro], das quais afinal extrai Fils, me
fez descobrir, para meu grande espanto, que a palavra "AUTO-
Notas
FICÇÃO", em maiúsculas, foi gerada por meu texto (enviaram-me
1 R. Barthes, Roland Barthes par Roland Barthes, Paris, Seuil, 1975.
uma fotocópia da página).34
' Cf. P. Lejeune, Autofiction & cie. Piece en cinq actes, em Autofictions & cie.,
Organizado por Serge Doubrovsky, Jacques Lecarme e Philipp e Lejeune, RITM,
n . 6, Publidix, 1993, p. 5-16. [Também presente nesta coletânea (N .T.) ].
Eis um elemento que modifica consideravelmente o
3
olhar sobre as origens de toda essa aventura teórica: o con- A esse respeito, ver os esclarecimentos de Ph ilippe Vilain , em Défense de Nar-
cisse, Paris, Grasset , 2005, p. 169-179.
ceito de autoficção não nasceu em uma quarta capa, com
' Disponível em <h ttp://tel.archives-ouver tes.fr/docs/ 00/04/70/04/PDF/ tel-
o objetivo de apresentar a um leitor apressado as grandes 00006609.pdf> . (N.T.)
linhas do texto que ele ainda não conhece, mas surgiu du- 5
Essa primeira definição, paráfrase da fam osa quarta capa ("Ficção, de acon-
rante o próprio processo de composição de Fils, tal como tecimentos e de fatos estritamente reais; se preferirmos, autoficção, por ter-se
confiado a linguagem de uma aventura à aventura da linguagem, avessa a~ bom

1 56 Jean-Louis Jea nnelle A QUANTAS ANDA A REFLEXÃO SOBRE A AUTO FICÇÃO ? 157
r
comportamento, avessa à sintaxe do romance, tradicional ou novo. Encontros, 'protocolo modal' de declaração de imaginário. Isso me parecia mais racional
fios/filho de palavras, aliterações, assonâncias, dissonâncias, escrita de antes ou por diversas razões. À época (1981-1989), Doubrovsky deixava sem herdeiros
de depois da literatura, concreta, como se djz da música. Ou ainda, autofricção, seu neologismo e a moda da autoficção biográfica não existia. Para designar
pacientemente onanista, que espera conseguir agora compartilhar seu prazer") os textos como os de Doubrovsky, eu sugeria o termo 'ficção de si biográfica'.
não está totalmente de acordo com a prática literária realizada por Doubrovsky Tudo isso era pesado do ponto de vista terminológico e não muito prático.
em Fils, como mostrou Philippe Lejeune em "Autobiographie, roman et nom Sobretudo, eu tinha menos de 30 anos e não tinha cultura literária suficiente
propre" [Autobiografia, romance e nome próprio) em Moi aussi, Paris, Seuil, para reconhecer a importância de Luciano de Samósata no desenvolvimento
1986, p. 62-70. histórico do gênero, nem para compreender que a autoficção biográfica era
6
apenas um renascimento mascarado do bom e velho romance autobiográfico.
A palavra fils em francês, em sua forma escrita, pode significar tanto "filho"
Pode-se perceber que essa concepção de autoficção, que tentava semantizar o
quanto "fios". (N.T.)
neologismo numa direção mais adequada a seu sentido intuitivo, corresponde
7
Em seu curso de iniciação à autoficção, disponível no site do departamento de à concepção formulada por Philippe Gasparini em seu estudo sobre o romance
francês moderno da Universidade de Genebra, Laurent Jenny distingue duas autobiográfico (Est-il je?, Paris, Seuil, 2004). Quando estava escrevendo o ensaio,
variantes da autoficção, a primeira "estilística': identificada à obra de Doubro- a moda da autoficção biográfica estava em seu apogeu; e eu estava muito mais
vsky - "[A) autoficção é a ficcionalização do vivido pela maneira de escrever" consciente tanto da importância hist órica de Luciano, quanto da solidariedade
(Serge Doubrovsky, "Quand je n'écris pas, je ne suis pas écrivain", Entretien fo rmal e histórica de fatos poéticos como a metalepse, as intrusões do autor,
avec Michel Contat, em "Autobiographies·: Genesis, v. 16, n. 1, 2001, p. 120) -, a fabulação 'xamânicà (ou fantástica) de si e o romance íntimo. Além disso,
e a segunda "referencial", identificada à obra de Christine Angot, mas que as parece-me inútil lutar contra o uso, que dá um sent ido muito indeciso e m uito
análises de Colonna abordam mais amplamente. São esses os dois polos que amplo à palavra 'autoficção'. Por fim, a prática da ficção tirou de mim algumas
estruturam hoje o campo'da autoficção. Disponível em <http://www.unige.ch/ ilusões sobre a pertinência da abordagem formalista inspirada na narratologia.
lettres/framo/enseignements/methodes/figurationsoi/index.html>. Daí essa teoria II da autoficção, que dá mais import ância à História, às obras
e a seus efeitos:'
8
Após a jornada de estudos realizada em 4 de junho de 2005, Vincent Colonna
9 Cf. J. Lecarme e E. Lecarme-Tabone, L'autobíographíe, Paris, Armand Collin,
me escreveu uma carta na qual voltava a seu percurso teórico e, mais parti-
cularmente, às diferenças entre sua tese de 1989 e a obra publicada em 2004. 1997, p. 267-283.
Publico-a aqui, com a autorização do a utor: "Esse ensaio [Autoficção e outras
'º J.-P. Boulet, Hervé Guibert: l'entreprise de l'écriture du moi, Paris, I:Harmatten,
mitomanias literárias) apresenta uma teoria II da autoficção, diferente da que é
2001, p. 192.
formulada em minha tese, que apresentava uma teoria I. Talvez o resumo desta,
feito por Jacques Lecarme, em seu livro L'autobiographie [A autobiografia]. leve 11
Les écritures du moi: de l'autobiographie à l'autofiction, Magazine Littéraire, n.
a confundir as duas, pois ele diz, a meu respeito, que se trata de uma "teoria 409, mai, 2002, p. 18-66.
extensa" da autoficção vs a de Doubrovsky que seria uma "teoria restrità'. (Cito 12
Bruno Blanckeman, Les récits indécidables, Lille, Presses Universitaires du
de memória.) "Mas ele não chegou ao fim de minha densa tese, o que posso
Sept ent rion, 2007.
compreender. Nessa monografia sobre o gênero, eu propunha a distinção entre
um fenômeno universal da literatura, 'a ficionalização de si'. e um fato poético 13
P. Forest, Le roman, le je, Nantes, Éditions Plein Feux, 2001, p.16.
mais circunscrito - 'a autoficção: que reunia textos como os de Dante ou de
Gombrowicz - , através do qual o autor se metamorfoseava em personagem de " Cf. P. Lejeune, Gide et !'espace autobiographique, Le pacte autobiographique,
ficção, conservando seu nome próprio. Esse critério do nome era determinante Paris, Seuil, 1996 [1975] .
e, ao se manifestar através de um 'protocolo nominal', vinha completar um

158 Jean-Louis Jeannelle A QUANTAS ANDA A REFLEXÃO SOBRE A AUTOFICÇÃO? 159


1

1
i ·!
15
Jean-Louis Jeannelle faz aqui uma sutil referência ao artigo XXIII dos Pensamen- autoficcional, mas paciência: é próprio do paratexto evoluir e a H istória
tos de Blaise Pascal (1623-1662) que versa sobre "Razões de algumas opiniões literária é prudente". Cf. Genette, Fiction et diction, 2004 [1991], p. 161.
do povo'', particularmente ao pensamento III: "O povo honra as pessoas de
22 Conceito q ue Philippe Lejeune desenvolve especialmente em "Gide e o espaço
grande nasciment o. Os semi-hábeis as desprezam, dizendo que o nascimento
não é uma vantagem da pessoa, mas do acaso. Os hábeis as honram, não pelo autobiográfico'; em Le pacte autobiographique, Paris, Seuil, 1975 e 1996.
pensamento do povo, mas por um pensamento mais elevado. Os devotos, que " Genette dá como exemplo A divina comédia de Dante.
têm mais zelo do que ciência, as desprezam, malgrado essa consideração que as
24 Dorrit Cohn acrescenta, t odavia q ue como toda ficção é mais ou menos de ins-
faz honrar entre os hábeis, porque julgam isso por uma nova luz que a piedade
lhes dá. Mas, os cristãos perfeitos as honram por uma outra luz superior. Assim piração autobiográfica, a noção, na verdade, não faz sentido a seus olhos - modo
vão as opiniões sucedendo-se do pró ao contra, segundo a luz que se possui:' de derrubar a doxa que, por sua vez, está sempre pronta a supor inversamente
Disponível em <http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/pascal.html>. (N.T.) que são as autobiografias que não podem evitar uma parte de ficção.
16
S. Hubier, Littératures intimes, Les expressions du moí, de /'autobiographie à 25 Cf. T. Laurent, L'ceuvre de Patrick Modiano: une autofiction [A obra de Patrick
l'autofiction, Paris, Armand Collin, 2003. Modiano: uma autoficção], Lyon, Presses Universitaires de Lyon, 1997, p. 12.

" V. Colonna, Autofictions & autres mythomanies littéraires, Auch, Tristam, 2004, " "De fato, para que o pacto - mesmo o mais honesto - funcione e seja um
p. 196. elemento de informação válido, o leitor deve conhecer bastante bem o autor''.
Ibidem, p. 20.
" Gasparini, Est-il je? Roman autobiographique et autofiction, Paris, Seuil, 2004,
27
p. 26. Lejeune, Le pacte autobiographique, 1996, p. 37.
28
" Ver a reprodução do quadro na nota 2 do texto de Philippe Lejeune desta edição Laurent, L'ceuvre de Patrick Modiano, p. 12.
(N.T.).
" Prática totalmente paradoxal, uma vez que se supõe que um autor de autoficções
20
M. Darrieussecq, L'autofiction, un genre pas sérieux [A autoficção, um gênero travestiu voluntariamente certa quantidade de dados biográficos que utilizou em
nada sério]. Poétique, n. 107, septembre 1996, p. 377. Cf. também o artigo da suas narrativas, qual sentido haverá em se confiar, in fine, em seu julgamento
autora sobre Mes parents, de Hervé Guibert: "É isso a escrita autofictícia e, em para justificar um trabalho de reconstituição do suposto substrato biográfico
Mes parents, há a esse respeito uma confissão in extremis: anunciar que, dizendo de seus textos?
a verdade sobre minha vida, minto. Fazer pairar a dúvida sobre o conjunto de 30
Essa posição tem como consequência favorecer certo teleologismo. Exemplo
minha palavra. Não deixar nenhuma escapatória possível, anunciar - ("mas eu
disso é a reflexão de Mounir Laouyen, em 'Tautofiction: une réception problé-
minto") - que todo discurso deve ser analisado sob o ponto de vista da ficção,
matique" [A autoficção: uma recepção problemática]. sobre o desconhecimento
que toda adesão é um engodo programado, toda lição, um paradoxo, todo
geral sofrido pela autoficção: "Barthes é um dos raros críticos a ter produzido
sentido único, uma ilusão referencial" (Darrieussecq, De l'autobiographie à
um discurso sobre a autoficção avant la lettre. Ele revela sua existência sem
l'autofiction: Mes Parents, Roman?, em Ralph Sarkonak (org.), Le corps textuel
ent retanto nomeá-la'.' (M. Laouyen , L'autofiction: une réception problématique,
de Hervé Guibert, Paris-Caen, Minard, La Revue des Lettres Modernes, 1997,
Colloque en ligne, Les frontieres de la fiction, Fabula, disponível em <http://
p. 154).
www.fabula.org/ forum/ colloque99.php>) .
21
Da mesma forma, Genette falava das "fal sas autoficções, que só são 'ficções' 31
G . Vapereau, Dictionnaire universel des littérat ures, Paris, Hachette, 1876,
com o fim de conseguir passar na alfândega: dito de outro modo, autobio-
p. 170.
grafias envergonhadas. O paratexto de origem dessas obras é evidentemente
32
Michel Charles, L'arbre et la source, Paris, Editions du Seuil, 1985.

160 Jean-LouisJeannelle A QUANTAS ANDA A REFLEXÃO SO BRE A AUTO FICÇÃO? 161


" "A codificação dos gêneros, espécie de nova Retórica das Belas-Letra~, suscita ( ... )
.meVJtave
. 1mente uma reflexa-o remediadora sobre as fronteiras dos generos, hsobre
as passagens e as trocas. Parece-me que, caricaturalmente, tem_o~ de n_os ~ver A PROVA DO REFERENCIAL
debate escolástico que deve, por causa de sua excessiva llp1ficaçao ~reVJa
com um · mflaçao das
dos textos e obras, recorrer a uma orgia de subcategorias, com uma d d
, · " (D· R ªbaté•na mesa-re on a
cate orias genéricas para dar conta das praticas.
dedfcada ao romance, La traversée des theses; bilan de la recherche doctorale en
litt , ature française du XX' siecle [A travessia das teses: balanço sobre a pesqwsa
de erdoutorados em literatura francesa do século XX] ' p ans, · p resses Sorbonne Philippe Vilain
Nouvelle, 2004, p. 78).
,. S. Doubrovsky, L'autofiction selon Doubrovsky [A autoficção segundo Dou-
brovsky], em P. Vilain, Défense de Narcisse, p. 204.
\
Muito me espanta o fato de nunca ter me aventurado no
território da crítica genética, uma vez que o questionamento
da escrita autobiográfica e de suas relações periféricas com a l,1
ficção nunca deixou de ser objeto de minhas preocupações
de escritor e pesquisador. Fico espantado, sobretudo, por 1

nunca ter considerado que esse tipo de crítica descritiva


poderia possibilitar o exame de um aspecto fundamental
da autoficção e representar, ao mesmo tempo, uma ferra-
menta de pesquisa fecunda, capaz de elucidar a parte de
meu trabalho de escrita que permaneceu obscura e talvez
até de dinamizar sua abordagem teórica; capaz também de
demonstrar como meus textos autoficcionais apreendem
o referencial e como, em contrapartida, esse referencial é
experimentado ou dá provas de sua existência em um pro-
cesso de autoficcionamento; capaz, enfim, de esclarecer se

1 62 Jean-Louis Jeannelle 163


esse referencial tem ou não a capacidade de imergir no que ecografia, feita aos três, cinco ou sete meses, fornece sobre
convém chamar aqui - segundo o modelo de Thomas Pavel o estado de evolução de um feto. Privadas assim de suas
que evoca um universo da ficção - um universo da autoficção. versões originais e fundadoras, confessando dessa forma
Reler nossos rascunhos é como descer ao porão: sem- uma dívida com a própria anterioridade de escrita que
pre achamos que sabemos o que está guardado lá, antes de deixou de ser identificável, essas "versões terminais" fazem
perceber, ao vasculhar meticulosamente, que esquecemos parte da reescrita de uma suposta precedência. Vemos o
coisas essenciais nas caixas de papelão e que, afmal, nelas, quanto a exploração de meu patrimônio genético-literário
estamos sempre redescobrindo o nosso passado. Tive essa se revela consequentemente difícil de ser empreendida, na
impressão, ao reler, recentemente e pela primeira vez, meus medida em que a possibilidade de verificação, assim como,
manuscritos. Primeiro porque precisei descer fisicamente aliás, a possibilidade de explicação, se limita a uma descri-
ao porão para procurá-los, depois porque me dei conta, ção superficial e a uma observação restrita: mesmo se, em
com uma espécie de estupefação inocente, de que a ideia defmitivo, não é dito que essa precedência invisível já não
que tinha de meus manuscritos não correspondia de modo constitui ela própria - uma vez que se encontra censurada,
algum à realidade daqueles que tinha sob os olhos. De descartada do jogo e dos territórios da escrita propriamente
fato, esperando encontrar uma enorme e informal massa dita - um modo de autoficcionamento preliminar, mais sutil
manuscrita, tive a surpresa de constatar que meus ma- já que implícito, não podendo servir de referencial absoluto,
nuscritos conservados, em sua própria economia e forma mas deixando que se adivinhe uma anterioridade à qual
bem curta, não estavam muito distantes da versão textual as versões manuscritas sempre vão remeter e da qual elas
definitiva. Temos de deduzir daí que esses manuscritos são seriam ao mesmo tempo o resultado, o vestígio irrefutável
versões terminais, que se sucederam a várias outras versões e a prova irreferencial.
do trabalho, entre três e cinco provavelmente, que joguei Examinar a questão do referencial sob o âng ulo da
fora. Esses manuscritos são apenas um estado provisório, crítica genética é, mais ainda, medir esse referencial em
não representativo da totalidade do que é chamado de relação ao que um processo de autoficcionamento fez com
antetexto, apenas uma etapa intermediária na elaboração ele, em função de uma transposição eficaz ou não. Decidi
do texto e no processo de gênese, semelhante ao que uma me divertir - se é que podemos chamar isso de diversão

164 Ph ilippe Vilain A PROVA DO RE FE RENCIAL 165


- tentando descobrir o funcionamento dessa transposi- o qual nada teria acontecido. Eu precisava de tempo para fazer
ção, nos manuscritos de três de meus textos, L' étreinte [O coincidir a correspondente desconhecida com uma silhueta, para
abraço] (1997), La derniere année [O último ano] (1999) e relacionar a escritora à mulher. A imagem antiga se embaralhara,
L'été à Dresde [O verão em Dresde] (2003), publicados na a imagem real já me parecia muito mais perturbadora.
coleção ''L'infini" pela editora Gallimard. Descobrir esse
funcionamento significa observar o uso particular que O texto publicado apresenta algumas transformações
minha escrita faz do referencial e as estratégias de mani- quanto ao vocabulário, à sintaxe, mas principalmente dá
pulação que aciona para apreendê-lo. à cena uma interpretação inesperada e uma importância
1. É interessante comparar meu primeiro romance, considerável, ao associá-la à perda da inocência do narrador:
L'étreinte a seu manuscrito. Para os que nunca me leram e
para simplificar, L'étreinte relata a história de amor entre Fui me refrescar no banheiro do trem. No espelho, o reflexo do
um jovem e uma mulher mais velha, que é, além do mais, meu rosto, minhas olheiras de "homem". Não compreendia como
uma escritora conhecida no meio literário. O que consta- os outros podiam se vangloriar por ter feito aquilo pela primeira
tamos no trecho transcrito abaixo (fólio nº 1, folha datada vez. A lembrança da noite me provocava antes o sentimento de não
de dez./2006, com tinta azul)? ter estado à altura. Sentia-me pesado e sujo. Não experimentava a
Em primeiro lugar, a passagem descreve os sentimentos embriaguez de que todos haviam falado. Nada. Só a impressão de
do jovem no dia seguinte ao seu encontro amoroso com a que todo o meu ser ficaria ainda durante muito tempo insensível
mulher: à felicidade, como se estivesse embebido em formal. 1

Na manhã seguinte, voltei ao hotel para apanhar minhas coisas. O acréscimo, evidentemente, nada tem de anódino.
Ao me dar a chave, o recepcionista sorriu para mim. O quarto Sem levar em conta nem seu passado amoroso, nem suas
estava exatamente como o havia deixado. No trem que me levava primeiras experiências sexuais, o eu apresenta seu texto
de volta a Rouen, repassei as cenas da noite anterior, tentando me como uma narrativa de iniciação na qual devolve a si pró-
lembrar de cada momento, o hotel, o pub inglês, e todas as frases p rio e doa novamente ao outro sua virgindade. Ele desvia,
às quais não tinha prestado atenção na hora, o convite dela sem portanto, o sentido de sua vivência em proveito. de um

166 Philippe Vilain A PROVA DO REFERENCIAL 167


sentido puramente literário. E esse desvio referencial me os últimos dias de meu pai, e se debruçar sobre a passagem
faz crer que a psicanálise tem uma longa vida pela frente. estenografada (fólio nº 2, folha datada de set./1998, tinta
Essa suplementação narrativa, que manifesta implicita- preta, manuscrito de trabalho). Como preciso esclarecer
mente o desejo regressivo de voltar ao tempo passado dos que muitas passagens estenografadas aparecem nos dois
primeiros amores, valida principalmente um procedimento primeiros manuscritos, L'étreinte e La derniere année, um
especial de autoficcionamento do qual a divisa poderia ser breve parênteses se impõe para explicar de onde m e vem o
a fórmula de Serge Doubrovsky em Le livre brisé:2 "Se me conhecimento e a prática da estenografia, que, como todos
rememoro, me invento." Isso significa que a factualidade sabem e podem lamentar, não é infelizmente disciplina
da lembrança se revela insuficiente para a autoficção e que fundamental ensinada nas universidades. Preciso apenas
não se trata mais simplesmente de procurar essa lembrança esclarecer, mas sem entrar em detalhes, que antes de estudar
atrás de si, no antetexto, mas também diante de si, no texto na universidade, tive uma escolaridade perturbada que me
e na própria escrita, tanto na retrospecção quanto na pros- conduziu desde o colégio para a área técnica, na qual eram
pecção que acompanha a busca inventiva da escrita, pois ensinadas a datilografia e a estenografia, a fim de obter um
a lembrança é aqui fonte autoestimulante de recriação: ao Certificado de Aptidão Profissional (CAP) de Secretariado
rememorar aquele episódio, o eu repete sua primeira vez, e um Diploma de Ensino Profissional (DEP) de Agente
mas contracenando com outra mulher e, é interessante Administrativo.
notar, faz coincidir essa primeira vez com a sua estreia É bem fácil compreender o papel e a função da estenogra-
na literatura, na autoficção; ele se inicia na escrita e se crê fia em meus manuscritos. Essa escrita fonética me servia, é
obrigado a se iniciar de novo na sexualidade; sua entrada na claro, para registrar, de maneira rápida, algumas ideias nem
escrita vem acompanhada de uma volta à inocência original. sempre confessáveis, nem sempre representáveis, que me
Igualmente, ao ser rememorado, o referencial se reelabora passavam pela cabeça, mas também, e principalmente, para
constantemente, se reproduz e se dá a ler em sua unidade produzir uma linguagem secreta cujas regras só eu conhecia,
própria como variação dele mesmo. uma linguagem capaz de dizer aquilo que eu nunca ousara
2. Mais interessante será observar a relação entre o ma- dizer antes. Na verdade, a passagem estenografada nesta
nuscrito e o texto de La derniere année, no qual descrevo versão descreve, aliás, não exatamente nos mesmos termos

168 Philippe Vilain A PROVA DO REFERENC IAL 169


da versão textual, um evento profundamente perturbador menos em parte, mas, com certeza, mais profundamente, a
de minha adolescência - o afogamento de meu pai - que estenografia me permitiu preservar do olhar de outrem esse
aparece em La derniere année: eu dos rascunhos e do trabalho, esse eu ilegível, rasurado, e
por assim dizer fracassado, que está ali, sempre à sombra do
Em wna tarde dessa época, estamos meu pai e eu na beira do eu do escritor oficializado pela publicação. O eu estenografa-
Sena. Meu pai cai de um rochedo. O ruído ressoa wn momento do (:::J) é assim, de alguma maneira, o eu de uma certa forma
em minha cabeça. Por um tempo, ele se mistura aos barulhos da de fracasso social, o eu envergonhado da infância maldita
fábrica, à circulação dos carrinhos de transporte, ao apito das que nunca poderá ter acesso a um estatuto textual superior
máquinas hidráulicas, à barulheira das obras de terraplenagem. e mais valorizador, aquele cuja identidade censurada se
Imediatamente me pergunto se não estou sonhando. Seu corpo afirmará no vão de um metatexto fonético, dissimulado atrás
afunda lentamente na água. Parece parado como um peixe preso de urna retranscrição mais digna que mostrará, em filigrana,
na água gelada. Mergulhei para tirar a cabeça dele da água e me a passagem, através do êxito social, de um adolescente de
debati como podia, pois não sabia nadar. origem modesta para o meio literário ou, se preferirmos,
a experiência - frequente no século XX e nesse começo de
Não sei até que ponto a estenografia, como linguagem século XXI, graças à mobilidade social - de um trânsfuga de
cifrada, servia para secretar um dizer só para mim e para classe, confrontado aos fenômenos de aculturação e às lutas
proibir com todas as minhas forças o acesso a esse dizer das classes culturais. E me parece que é exatamente nessa
às pessoas próximas que, no tempo em que eu escrevia La passagem essencial onde se sucedem todos os estados de
derniere année, poderiam eventualmente ser levadas a ler um trânsfuga de si mesmo, onde se desenha uma trajetória
meus rascunhos, seja por medo legítimo de serem citadas, social - do eu estenografado ao eu assumido, de Philippe a
seja pelo hábito da curiosidade malsã que têm às vezes os Vilain, do escriba ao escritor -, onde, ao mesmo tempo, se
que nos são próximos. Hoje, no entanto, tenho o sentimen- recompõe a identidade, parece, sim, que, nessa passagem,
to de que a estenografia não me servia especialmente para a autoficção encontra a sua justificativa profunda.
dissuadir, ou mesmo para preservar minha vida privada, Pensando bem, me pergunto se a autoficção não repre-
uma vez que eu tinha a intenção de revelá-la algum dia, ao senta para mim uma forma de estenografia simbóHca, uma

170 Philippe Vilain A PROVA DO REFERENCIAL 171

1 1
linguagem também secreta com a qual eu poderia brincar palavras se impõem a mim. Durante muito tempo, fui in-
e na qual poderia me dissimular à vontade; pergunto-me capaz de formular essa evidência."3
na verdade se, de certa maneira, a autoficção não é uma Essa escrita sisífica dá a impressão de restabelecer um
tentativa mais sutil de tornar meu "eu" enigmático ou, pelo movimento, uma dinâmica para o passado imóvel no qual o
menos, dificilmente legível, e não uma tentativa de exibi-lo sujeito se afundou e, assim, fazer o luto das infelicidades da
como pensam frequentemente os leitores. infância, se libertar através da incessante volta das palavras,
3. Um terceiro procedimento de autoficcionamento, que correndo desse modo o risco de desviar o referencial de seu
se pode observar em todos os meus manuscritos, consiste na primeiro sentido ou de amputar informações necessárias
reescrita obsessiva de uma passagem elaborada certo núme- a sua compreensão íntima. A ruminação se afirma assim
ro de vezes (11 vezes no caso deste exemplo, mas pode ser como um meio de refazer sua história pessoal; é reescreven-
muito mais) . Pode me acontecer de reescrever uma mesma do sem parar nosso passado que começamos a inventar, a
passagem umas 30 vezes até encontrar sua forma perfeita, burilar e até a estetizar nossa memória, mesmo se esse não
sua musicalidade sensível, seu estilo particular, mesmo se é o caso no parágrafo em questão.
essa estilização do referencial se realiza em detrimento dele A manipulação referencial se observa ainda em meu
próprio: na verdade, o continente terá prioridade sobre o quarto romance, L' été .à Dresde, no qual o narrador conta
conteúdo, a forma sobre o fundo e o que permanecerá, no seu casamento abortado com uma jovem alemã do Leste
texto final, dessas reescritas, dessas variações recomeça- chamada Elisa, que veio a Paris para se tornar modelo. Nesse
das, será apenas o esqueleto do referencial. O manuscrito romance, aparece pela primeira vez meu sobrenome, "Vi-
propõe a seguinte versão: "Quando eu era criança, meu pai lain': mas o mais estranho é que não aparece no manuscrito.
era alcoólatra. Lembro que a palavra 'alcoólatra' provocava O referente foi, portanto, acrescentado a um eu anônimo,
em mim uma impressão estranha e designava pessoas que como para suplementá-lo, identificá-lo e confirmá-lo. Pela
eram sempre as outras, mas nunca meu pai, como se eu primeira vez, principalmente, através _desse acréscimo, cor-
não quisesse ver que falavam dele." A versão textual é mais respondo à exigência formal definida por Serge Doubrovsky
simplificada: "Meu pai era alcoólatra. Hoje, essas quatro de "chamar a si mesmo pelo próprio nome": exigência
segundo a qual a autoficção impõe a homonímia entre as

172 Philippe Vilain A PROVA DO REFERENCIAL 173


três instâncias narrativas que são o autor, o narrador e o designado para trabalhar em uma associação em Rouen (a
personagem. Trata-se, no caso, de um compromisso do Federação das Obras Laicas) na qual cuidava, entre outras
escritor que deve se assumir em seu próprio nome em seu coisas, de seguros e que uma de minhas namoradas, cujo
próprio texto e que, ao fazê-lo, marca o distanciamento em nome começava com a letra E., vinha de Dresde para estudar
relação ao romance autobiográfico no qual um nome de em Rouen e se tornar modelo.
empréstimo é atribuído à primeira pessoa. Mas o mais importante, aqui, é que o eu de L'été à Dresde
Igualmente, os deslocamentos espaço-temporais - que se refere a um passado que não mais se situa no espaço-
são, na maior parte de meus textos, a característica de um -tempo indicado, em outras palavras, remete a uma reali-
princípio de autoficcionamento - fazem parte em L'été à dade exumada do amor, a uma "ex-realidade" como escreve
Dresde de um acréscimo referencial semelhante. Assim, o Serge Doubrovsky em Le livre brisé,4 a uma "memória do
manuscrito de L'été à Dresde propõe uma grande defasagem amor" cuja fórmula
em relação ao texto publicado. O texto de L'été à Dresde
descreve o encontro entre um agente de seguros e a jovem de tonalidade romântica, mascara na realidade uma proble-
alemã, Elisa, ao passo que o manuscrito, por sua vez, des- mática mais complexa, segundo a qual pensar que o amor tem
creve um encontro com uma moça chamada E. e evoca a necessidade da memória ser ia, ao mesmo tempo, reconhecer
vida de um jovem que trabalha em um escritório na cidade implicitamente sua propensão natural, senão de ser esquecido,
de Rouen. Peço que me perdoem as confidências, mas, para pelo menos de se apagar, confessar a própria falência do amor,
explicar essa transposição, sou mais uma vez obrigado a com todo o conteúdo de vivências e emoções que ele proporciona
contar certos detalhes de minha vida privada (um estudo e, com isso, sugerir a relação particular, necessária, obrigatória do
sobre o referencial precisa recorrer à biografia): aqueles que amor com um suporte material, da memória com a escrita. É por
me conhecem sabem muito bem que no começo dos anos não ter memória que o amor deve ser lembrado, ser escrito para
2000, nunca fui agente de seguros em Paris e que não saía se prolongar em verdadeiras lembranças.5
com uma jovem m9delo do Leste alemão como indica o
romance, mas sabem, por outro lado que, dez anos antes, Enquanto o manuscrito descreve literalmente essa his-
na época em que me recusei a prestar serviço militar, fui tória, o texto publicado modifica os nomes e o contexto do

174 Philippe Vilain A PROVA DO REFERENCIAL 17 5


1

1
1
manuscrito (Rouen se transforma em Paris, aquele que se abala as bases nas quais me assento, e que poderíamos, para
recusou a prestar serviço militar se torna agente de seguros simplificar, formular nos seguintes termos: em que medida o
e escritor, E. vira Elisa etc.), no último momento, como se referencial diz mais respeito a um exercício de autoficciona-
a escrita pretendesse conservar, durante o maior tempo mento do que um exercício comum de ficcionamento, e em
possível, as referências do real e mascarar as referências um que medida ele significa propriamente um questionamento
pouco antes de fazer delas seu real de referência; é como eficaz para a autoficção? Se, segundo a definição inaugural
se a escrita pretendesse extrair dessas referências toda a de Doubrovsky, a autoficção postula um imperativo de
carga afetiva, a verdade sensível, emocional, que é, a meu exatidão referencial ("Ficção, de acontecimentos e fatos
ver - fidelidade muito rousseauniana ao que foi sentido, ex - estritamente reais"), qual seria então o valor dessa exatidão
perimentado -, uma verdade talvez mais essencial, embora em uma transposição, e como conciliá-la com o ficciona-
impossível de ser comprovada, que, abolindo a temporali- mento? Não deveríamos, antes, falar de referencial apócrifo,
dade de dois contextos diferentes, produzindo uma "ilusão a partir do momento em que o ficcionamento transformou
referencial", assegura uma permanência do "eu" entre o um referente a ponto de torná-lo irreconhecível como tal,
antetexto e o texto, entre o verdadeiro e o verossímil e, ao a partir do momento, sobretudo, em que o texto o desisto-
mesmo tempo, significa a via decididamente autoficional rizou, o privou de seu contexto de origem para situá-lo em
tomada pelo escritor. um contexto remodelado pela escrita, a partir do momento,
Como podemos ver, o referencial coloca um problema enfim, em que a imbricação do real e da ficção permitiu o
inerente a sua própria representação. Indagar suas modula- deslocamento das fronteiras espaço-temporais, superpon-
ções e variações, o espaço textual de sua metamorfose, não é do a um espaço-tempo primeiro - que possui apenas valor
apenas indagar o seu uso e a maneira como ele é experimen - denotacional- um espaço-tempo segundo que, na mente do
tado do antetexto ao texto, mas é também indagar seu valor leitor, se torna o referencial absoluto? E esse deslocamento
intrínseco e sua própria condição de referencial. De modo da ótica, e não do sujeito, não nos incitaria a reconsiderar
que a contribuição da crítica genética, ainda que não possi- a própria noção de verdade referencial cuja definição não
bilite suprimir a ambiguidade genérica dessas autoficções, poderia ser reduzida a uma factualidade e a um ocorrencial
também chamadas romances, mas declaradas como auto- restritos demais, mas cujo sentido deveria, ao contrário, ser
biográficas, levanta um problema teórico interessante que alargado até chegar a uma distinção entre um referencial real

1 76 Philippe Vil ain A PROVA DO REFERENCIAL 177


e um referencial fictício, entre um referencial objetivo e um , P. Vilain, La derniere année, Paris, Gallimard, 1999, p. 67.

referencial subjetivo, o que nos levaria, ao mesmo tempo, ' S. Doubrovsky, Le livre brisé, Paris, Grasset, 1989, P· 105·· "Ex umamos a reali-
dade. Aspiramos a ex-realidade:·
a atribuir ao exercício de autoficcionamento um poder ou
s D.-M. Mierzwa, La mémoire de l'amour dans loeuvre d: Philippe Vilain [A
uma qualidade de reversibilidade referencial? , . do amor na obra de Philippe Vilain l, Dissertaçao de Mestrado I em
memona . ) · nh de 2008
Por outro lado, e para terminar, é preciso indagar qual Letras Modernas Aplicadas, Universidade Pans IV (Sorbonne ' JU o .
seria, no fundo, o estatuto de um sujeito submetido a tal
reversibilidade, senão o de um sujeito de uma instância de
enunciação sem referências fixas. Sem conseguir resolver a
equivocidade genérica que a autoficção apresenta, nem mes-
mo propor critérios teóricos que certifiquem a existência
de um processo de gênese própria ao gênero, este estudo de
caso terá, ao menos, possibilitado fazer algumas perguntas
e propor elementos de resposta.

(Este texto corresponde ao capítulo


"L'épreuve du référentiel", em Philippe
Vilain, L 'autofiction en théorie suivi de
Deux entretiens avec Philippe Sollers e
Philippe Lejeune, Chatou, Les Éditions de
la Transparence, 2009, p. 22-33)

Notas
1
P. Vilain, L'étreinte, Paris, Gallimard, 1997, p. 35.

' Este é o único livro de Serge Doubrovsky traduzido para o português, com o
título O livro quebrado, trad. António Filipe Marques, Lisboa, DIFEL, 1992.
(N.T.)

178 Phi lippe Vi lain A PROVA DO REFERENCIAL 179


AUTOFICÇÃO É ONOME DE QUÊ?

Philippe Gasparini

1. Gênero
Partirei da hipótese de que a autoficção é o nome de um
gênero ou de uma categoria genérica. E que esse nome se
aplica, em primeiro lugar e antes de tudo, a textos literários
contemporâneos. Essa hipótese me parece ser, ao mesmo
tempo, a mais fecunda do ponto de vista da poética e a mais
conforme à gênese do conceito de autoficção.
No que tange à poética, a questão da autoficção tem o
mérito de relançar e estimular a reflexão sobre os gêneros;
simultaneamente, ela revigora um debate apaixonante, e
apaixonado, sobre os limites da literatura. A teoria dos gê-
neros, os critérios de literariedade são as questões centrais
propostas pela po,ética desde Aristóteles.
Em uma perspectiva aristotélica, Gérard Genette es-
tabeleceu uma oposição entre a literariedade constitutiva
dos textos de ficção e a literariedade condicional dos.textos

181

ti
referenciais.' Ora, há mais de 200 anos, existem escritores, romantismo empoeirado, categorias ignoradas ou recusadas
e não dos menores, para contestar essa clivagem e reivin- tanto pelos autores quanto pelo meio acadêmico.
dicar que seus textos autobiográficos beneficiem-se de uma Enfim, é comum que textos estritamente autobiográficos,
recepção literária incondicional. no sentido que conhecemos desde os primeiros trabalhos de
Alguns obtêm esse reconhecimento devido à notoriedade. Philippe Lejeune, sejam publicados com a etiqueta mentiro-
As lembranças de Rousseau, Goethe, Chateaubriand ou Sartre sa "romance" ou o rótulo eufêmico "narrativa" que ocultam
fazem parte de suas obras do mesmo modo que seus textos de a visada referencial.
ficção. Outros dissimulam suas confidências sob um verniz
romanesco. O texto que resulta propõe dois contratos incompatí- li. Invenção
veis que levam o leitor a uma caça aos indícios de referencialidade
O aparecimento da palavra autoficção deve, pois, ser
e de ficcionalidade. Essa é a estratégia em funcionamento em
situado no seguinte contexto:
Anton Reiser (de Karl Philip Moritz), René, Adolphe, Oberman,
• uma aspiração crescente dos autores de publicar textos
Les dernieres lettres de Jacopo Ortis [As últimas cartas de Jacopo
autobiográficos cuja qualidade artística possa ser reco-
Ortis] (d'Ugo Foscolo), La confession d'un enfant du siecle [A
nhecida;
confissão de um filho do século], Les confessions d'un mangeur
d'opium [Confissões de um comedor de ópio], David Copperfield,
• um vazio terminológico sideral que deixava sem nome
Henri le vert [O verde Henrique] (de Gottfried Keller).
uma parte considerável da produção literária. Era im-
possível, consequentemente, identificar esses textos,
Mas, pelo menos na França, esses textos não pertencem a
comentá-los, cotejá-los, situá-los em seu contexto cul-
um gênero claramente identificado. O alemão tem Ich Roman
tural. Em suma, era impossível compreendê-los.
e Bildungsroman, o japonês shishôsetsu, o inglês autobiogra-
phical novel, non-fiction, ou faction . Até os anos de 1980, não A palavra autoficção possibilitou nomear, e assim fazer
havia equivalente que tenha entrado em uso em francês. surgir, um espaço genérico que não era conceitualizado
"Romance pessoal" e "romance autobiográfico" eram enquanto tal. A maioria dos críticos admite agora que esse
expressões antiquadas, mais ou menos associadas a um conceito pode ser operacional. Mas falta ainda entrar em
entendimento sobre seu conteúdo e seus limites. Falta es-
pecialmente determinar se "autoficção" corresponde à uma

182 Philippe Gasparini AUTO FICÇÃO ÉO NOME DE QU[? 183


categoria que já existia e só estava esperando ser identificada contrato de leitura: foi introduzindo esse novo critério, prag-
ou designa um meio de expressão totalmente novo, próprio mático, que Lejeune conseguiu distinguir os dois gêneros e,
a nossa época. Ou seja, se é o nome atual de um gênero ou em seguida, circunscrever a especificidade da autobiografia.
o nome de um gênero atual. Serge Doubrovsky leu Le pacte autobiographique quando
Não se pode responder a essa pergunta sem levar em escrevia Le monstre [O monstro] que se tornou Fils. 3 E per-
conta a gênese da palavra e a história das controvérsias que cebeu que sua própria prática narrativa se inscrevia numa
ela suscitou. Essa narrativa das origens mostra, além disso, casa vazia da teoria dos gêneros que Philippe Lejeune pus-
que se trata, já de início, de um conceito classificatório, cava estabelecer para distinguir a autobiografia do romance
nascido, definido e mobilizado para preencher um ou vários autobiográfico. Foi isso, em todo o caso, que ele afamou em
vazios em nosso sistema de gêneros. carta endereçada a Lejeune, em 1977. A seguinte frase, em
De fato, a palavra autoficção surgiu imediatamente particular, teria chamado sua atenção:
depois da publicação de um texto fundador em matéria de
poética, Le pacte autobiographique [O pacto autobiográfico]. O herói de um romance declarado como tal poderia ter o mes-
Não precisamos lembrar que, nesse texto, Philippe Lejeune mo nome que o autor? Nada impediria que a coisa existisse e seria
definia a autobiografia pela homonímia autor/herói/narra- talvez urna contradição interna da qual se poderia obter efeitos
dor e pelo compromisso do autor em dizer a verdade. Mas interessantes. Mas, na prática, nenhum exemplo me vem à mente. 4
o que talvez nem todo o mundo saiba é que, inicialmente,
Lejeune buscava delimitar dois gêneros que vamos encon-
Ora, era precisamente essa "contradição interna" que go-
trar ao longo da história da autoficção: a autobiografia e o
vernava a escrita de Le monstre:
romance autobiográfico: "Minha análise foi desenvolvida
a partir de uma evidência: 'Como distinguir autobiografia
e romance autobiográfico? Tenho de confessar que, se Lembro-me ( ... ) de ter marcado a passagem (... ) Eu estava
nos ativermos à análise interna do texto, não há nenhuma então em plena redação e aquilo me dizia respeito, me atingira em
diferença. "'2 cheio. Mesmo agora, ainda não estou certo do estatuto teórico de
Não há "nenhuma diferença" "no plano da análise interna meu empreendimento, mas, naquele momento, fiquei com muita
do texto", mas há uma diferença no plano da recepção, do vontade de preencher aquela "casá' que sua análise deixara.v azia,

184 Philippe Gasparini AUTOFICÇÃO EONOME DE QUÊ? 185


e foi um verdadeiro desejo que subitamente ligou seu texto Doubrovsky tinha provavelmente em mente aquela acep-
crítico e o que eu estava escrevendo senão às cegas, pelo ção, bem ampla, da palavra "fiction" nos Estados Unidos.
menos na penumbra. 5 Mas, posteriormente, ele justificará o emprego da palavra
por sua etimologia. O verbo latino f ingere significava de
Esse "romance" cujo herói-narrador tem o nome do autor fato "afeiçoar, fabricar, modelar". O ficto r era alguém que
será classificado por ele como uma "autoficção", na apre- dava feição: o oleiro, o escultor, e depois, por extensão, o
sentação de Fils: poeta, o autor.
Não se tratava de uma simples brincadeira com as pala-
Autobiografia? Não, esse é um privilégio reservado aos vras. O conceito de autoficção teve inicialmente como base
importantes desse mundo, no crepúsculo de suas vidas e uma ontologia e uma ética da escrita do eu. Ele postulava que
num belo estilo. Ficção, de acontecimentos e fatos estrita- não é possível se contar sem construir um personagem para
mente reais; se preferirmos, autofícção, por ter-se confiado si, sem elaborar um roteiro, sem "dar feição" a uma história.
a linguagem de uma aventura à aventura da linguagem. Postulava que não existe narrativa retrospectiva sem seleção,
amplificação, reconstrução, invenção. Doubrovsky não era
O que diferencia Fils de uma autobiografia "clássica"? obviamente o primeiro a fazer essa constatação.
Como esta, o livro trata "de acontecimentos e fatos es- Rousseau já observara, ao redigir suas Co nfissões, o
tritamente reais" e parece, pois, subscrever um contrato quanto somos propensos a preencher nossas lacunas de
referencial, um pacto autobiográfico. Entretanto, nos diz memória para compor uma narrativa coerente, agradável,
Doubrovsky, Fíls, contrariamente a uma autobiografia significante:
"clássica", não é escrito em "belo estilo", um estilo rotinei-
ro, convencional, acadêmico, mas busca uma "aventura da Eu escrevia minhas Confissões (... ) de memória; essa memória
linguagem". Fils se inscreve num procedimento de invenção,
falhava com frequência ou só me fornecia lembranças imperfeitas
de inovação, de pesquisa. Para Doubrovsky, a autoficção não
e eu preenchia as lacunas com detalhes que imagin ava como su-
é apenas um gênero novo, mas um gênero de vanguarda. 6
plemento dessas lembranças, mas que não eram contrários a elas.
Por outro lado, assegura ele, Fils pertence ao campo da
ficção, da autoficção.

186 Philippe Gasparini AUTO FICÇÃO É ONOM E DE QUÊ? 187


Freud demonstrara que reconfiguramos nosso passado de romance ( ... ) um romance no qual eu creio, mas que
por procedimentos insconscientes de recalque, deslocamen- continua sendo, apesar de tudo, um romance". 8
to, condensação, de lembranças encobridoras, de romance A partir do momento que contamos o que nos ocorreu
familiar. É por isso que, nos termos de Lacan, "o sujeito está (ou poderia nos ocorrer), criamos um personagem com
situado em uma linha de ficção". o qual nos identificamos e construímos uma história, um
Valéry considerava totalmente ilusório o projeto de roteiro, uma fábula. É por isso que tantos escritores se recu-
Stendhal de dar a palavra a seu "eu natural" em Henry saram a fazer uma distinção entre autobiografia e romance.
Brulard. Segundo ele, de um lado, é impossível que o sujeito O próprio Philippe Lejeune observou, em 1971, que a auto-
se divida para determinar, dentre seus comportamentos, biografia" emprega todos os procedimentos romanescos de
quais resultam do artifício e quais resultam da espontanei- seu tempo" e até mesmo que "a autobiografia é uma ficção
dade. De outro, nossa noção de natural é fundamentalmente produzida em condições particulares".9
cultural. Quando acreditamos optar por uma linguagem Percebe-se, pois, que foi como se a palavra autoficção
"natural", sustentava Valéry, apenas "defendemo-nos de tivesse surgido no momento oportuno para traduzir e
uma afetação por meio de outra". Pois "o verdadeiro que cristalizar as numerosas dúvidas levantadas, desde o início
escolhemos se transforma ( ... ) insensivelmente quando do século XX, pelas noções de sujeito, identidade, verdade,
escrito no verdadeiro que é feito para parecer verdadeiro".7 sinceridade, escrita do eu. O novo conceito não estava, por-
Sartre desenvolve essa argumentação em O ser e o nada tanto, apenas destinado a preencher a casa vazia do pacto
para fazer da alegação de sinceridade uma forma de dupli- autobiográfico, mas postulava a perempção da autobiografia
cidade. De fato, se "a existência é distância de si, defasagem" enquanto promessa de narrativa verídica, sua relegação a
afirmar a coincidência consigo mesmo tem a ver, na melhor um passado definitivamente acabado, sua substituição por
das hipóteses, com a ilusão e, na pior, com a má-fé. Essa um novo gênero.
crítica da sinceridade, enquanto projeto, não o impedirá de O problema é que esse raciocínio não levava em conta a
escrever um texto autobiográfico, Les mots [As palavras]. definição de autobiografia que Philippe Lejeune acabava de
Mas Sartre deixará bem claro que se trata de "uma espécie lançar. Deixando de lado a eterna questão da verdade dos
enunciados, Lejeune definiu a autobiografia pela intenção

188 Philippe Gasparini AUTO FICÇÃO EO NOME DEQUf? 189


do autor, por seu compromisso em buscar e retranscrever os era convidado e dois artigos apaixonantes: "L'initiative
rastros de sua experiência pessoal. Há pacto autobiográfico aux maux: écrire sa psychanalyse" [A iniciativa aos males:
a partir do momento em que o leitor reconhece a autenti- escrever a própria análise] 10 e "Autobiographie/vérité/
cidade desse esforço de reconstituição e de interpretação. psychanalyse" [Autobiografia/verdade/psicanálise]. Como
Fíls seria regido por tal contrato de reconhecimento mútuo? indicam esses títulos, à época, Doubrovskyvinculava estrei-
No folheto de divulgação, Doubrovsky se compromete a tamente sua prática de escrita à experiência da psican álise.
tratar apenas de "acontecimentos e fatos reais". Entretanto, A autoficção não era nada além do que a tradução literária
ele confessará mais tarde que o sonho que é decifrado pelo daquela experiência fundadora: "A autoficção é a ficção que
psicanalista na cena central nunca foi abordado durante decidi, como escritor, produzir de mim mesmo e para mim
a verdadeira análise. Trata-se, em quase 200 páginas, de mesmo, incorporando a ela, no sentido pleno do termo, a
uma sessão fictícia. O livro inteiro e as voltas ao passado experiência da análise, não somente no que diz respeito à
que o estruturam se organizam em torno de interpretações, temática, mas também na produção do texto." 11
hipóteses, revelações que constituem a maneira de proceder Não apenas o texto de Fils retraça uma experiência de
do próprio autor roteirizando sua psicanálise para fazer análise, como também foi produzido por uma nova maneira
dela um romance. Não é, portanto, por acaso que a palavra de escrever, inspirada no processo psicanalítico de anam-
autoficção surgiu sob a pena de Doubrovsky nesse texto. nese. Para baixar as barreiras que separam o inconsciente
da consciência, Doubrovsky cedeu "a iniciativa às palavras"
Ili. Acepções (nos termos de Mallarmé). Dentro de um quadro narrativo
Será que naquele momento a palavra designava um bastante restrito ( 12 horas, 7 capítulos, sendo que o capítulo
gênero? Não, ela designava um texto, Fils, notificando sua central retraça uma sessão de análise), as palavras se enca-
singularidade. De 1978 a 1981, o eminente especialista da deiam por analogias fônicas (assonâncias, paronomásia,
Nouvelle critique, de Corneille, de Racine, de Proust, vai rimas, anáforas, polissemia) e por associações de ideias.
promover, comentar e explicar seu próprio "romance", Embora essa "escrita consonântica" seja exclusivamente
desenvolvendo uma teoria da autoficção. A essa teoria ele dele, o autor pensa, naquele momento, que o procedimento
é "adotável e adaptável por outros para seus próprios fins" .12-
dedicará suas participações em colóquios para os quais

190 Phi lippe Gasparini AUTO FICÇÃO ÉO NOME DEQU Ê? 191


A referência à psicanálise vai, pouco a pouco, desapa- memória( .. . ) abolem toda e qualquer pretensão a uma
recer dos romances de Serge Doubrovsky (Un amour de verdade unificada, proíbem a visada global da referêncià:
soi [Um amor de si] 13 de 1982, La vie, l'instant [A vida, o • De outro lado, um comentário interno que deixa cons-
instante] de 1985, Le livre brisé, 14 de 1989) e, paralelamente, tantemente transparecer as dúvidas do autor quanto à
de sua definição de autoficção. Com isso, a noção poderá validade de sua empresa memorial: o texto "se confessa
ser aplicada a outros textos que não Fils. lacunar, incerto, incoerente':
O primeiro texto que Doubrovsky vai classificar como • Enfim, trata-se de um "autorretrato sem complacêncià:
autoficção, além dos seus, será Une mere russe [Uma mãe
A autoficção se caracterizava assim, essencialmente, em
russa] d' Alain Bosquet. Esse livro fora lançado em 1978; em
1984, por uma certa ética fundada na dúvida sistemática,
1984, o autor de Fils dedica-lhe um artigo intitulado "Un
dúvida que se refere ao mesmo tempo à exatidão dos fatos
fils russe, I' autofiction de Alain Bosquet" [ Um filho russo,
e à boa fé do próprio autor. O metadiscurso crítico torna-
a autoficção de Alain Bosquet]. Une mere russe torna-se
-se consequentemente a marca distintiva do novo gênero.
assim um avatar do texto fundador, Fils. Essa filiação (ou Depois desse artigo, Doubrovsky vai abandonar a refle-
fraternização) surpreendeu na medida em que o livro não
xão teórica para se dedicar à sua obra literária. A partir daí,
corresponde à definição que Doubrovsky dava até então
ele se limitará a observar, às vezes comentar, as interpreta-
da autoficção. Ele não tem o subtítulo "romance"; o herói-
ções do conceito que lançou.
-narrador não tem o nome do autor, permanece anônimo;
A explicação fornecida por ele, por exemplo, no dia 13
não se trata de psicanálise; e longe de qualquer "aventura de outubro de 1989, no programa "Apostrophes", depois
da linguagem", o estilo é muito clássico.
da publicação de Le livre brisé, fica bem aquém de seus
Quais seriam, então, para Doubrovsky, os traços que
primeiros livros teóricos. Ao apresentador, Bernard Pivot,
distinguem esse livro da autobiografia comum?
que lhe pergunta sem nenhuma amenidade: "Autoficção,
• De um lado, a cronologia é perturbada e, consequente- resumidamente, o que quer dizer isso?" Doubrovsky dá a
mente, a causalidade explicativa é abandonada (ante ergo seguinte resposta: 11

propter): "a fragmentação da narrativa, os caprichos da

192 Philippe Gasparini AUTOF ICÇÃO ÉO NOME DE QUE? 193


Quando se escreve uma autobiografia, tenta-se contar a própria 2. os traços romanescos: o subtítulo "romance"; a primazia
história, da origem até o momento em que se está escrevendo, da narrativa; uma predileção pelo presente da narração;
tendo como arquétipo Rousseau. Na autoficção, pode-se fatiar uma estratégia para prender o leitor.
essa história, abordando fases bem diferentes e dando-lhe uma 3. o trabalho textual: a busca de uma forma original; uma
intensidade narrativa de um tipo muito diferente que é a inten- reconfiguração não linear do tempo (por seleção, inten-
sidade romanesca. 15 sificação, estratificação, fragmentação, interferências .. . );
uma escrita visando a "verbalização imediatà: 16
Trata-se de uma definição extremamente ampla, aplicá- Vê-se que Doubrovskyoscila entre duas acepções da ~u-
vel a numerosas autobiografias e à maioria dos romances toficção. Uma acepção extremamente ampla que permitiria
autobiográficos, desde René até L'amant [O amante], na que seu conceito reinasse sobre a grande parte da produção
medida em que procedem de uma intensificação narrativa. literária contemporânea. E uma acepção limitada que defi-
A última definição fornecida por Doubrovsky é ainda niria precisamente a singularidade de seu procedimento e
mais ampla uma vez que engloba a totalidade do campo de sua obra. Há sempre um momento, em suas entrevistas,
da escrita do eu contemporânea, o que é denominado em que ele se refere a Fils, que continua sendo para ele o
por ele, a partir de 1999, "a autobiografia pós-moderna". paradigma da autoficção.
Entretanto, se olharmos de mais perto, se compararmos
as entrevistas concedidas por ele, as conferências e artigos
IV. Extensão
publicados aqui e ali nos últimos 20 anos, percebemos que
É preciso constatar que o conceito de autoficção fugiu
o autor impõe a essa "autobiografia pós-moderna" certo
número de condições que bem poucos textos, a não ser os ao controle de seu criador. Para compreender o sentido que
dele próprio, vão preencher. Pode-se agrupar esses critérios tem hoje, aquilo que o conceito designa, é necessário retra-
de autoficcionalidade, no sentido estrito, em três categorias: çar como se operou esse desapossamento, essa lexicalização.
O processo se deu em dois eixos: alguns críticos simples-
1. os indícios de referencialidade: a homonímia; um com-
mente desenvolveram o conceito definido por Doubrovsky
promisso de só relatar "fatos e acontecimentos estrita-
mente reais"; a pulsão de "se revelar em sua verdade': para lhe atribuir um campo genérico mais largo; outros se
expondo-se, assumindo riscos. apoderaram da palavra para lhe dar outro sentido ..

194 Phi lippe Gasparini AUTO FICÇÃO ÉO NOME DE QUÊ? 195

11
1
Jacques Lecarme foi o primeiro a ter a intuição de que de Modiano, L'amant [O amante] de Marguerite Duras,
a palavra autoficção podia, para além de Fils, designar L 'année de l'amour [O ano do amor] de Paul Nizon; - textos
também um gênero literário. Das diferentes definições mais estritamente autorreferenciais, nos quais a alegação
dadas por Doubrovsky, ele conservou dois critérios: a eti- de ficcionalidade parece ser mais estratégia de sedução ou
queta "romance" e a homonímia autor/herói/narrador. E precaução orátória: Les masques [As máscaras] de Régis
descobriu efetivamente, na literatura francesa, textos que Debray, Roland Barthes par Roland Barthes [Roland Bar-
seguem esses critérios. Dos textos" clássicos" de Loti, Breton thes por Roland Barthes], Biographie [Biografia] de Yves
(Nadja), Colette (La naissance du jour [O nascimento do Navarre, Lambeaux [Farrapos] de Charles Juliet; - textos
dia]), Céline (a trilogia alemã: D'un château l'autre, Nord, que justapõem, ou alternam, uma narrativa referencial e
Rigodon [De castelo em castelo, Norte, Rigodon]), Cen- uma narrativa ficcional: La naissance du jour de Colette,
drars (La main coupée, L'homme foudroyé, Bourlinguer, Le W ou le souvenir d'enfance [W ou a lembrança de infância]
lotissement du ciel [A mão cortada, O homem fulminado, de Perec, Les antimémoires [As antimemórias] de Malraux,
Bourlinger, O loteamento do céu], Genet Uournal du voleur Romanesques [Romanescos] de Robbe-Grillet; - outros que
[Diário de um ladrão]), que Doubrovsky citaria depois como parecem mais meditações ou ensaios como La douleur [A
seus precursores. Mas também livros um pouco esquecidos dor] de Duras, ou Le grand incendie de Londres [O grande
de François-Régis Bastide, François Nourissier, Antoine incêndio de Londres] de Jacques Roubaud; - coletâneas de
Blondin. E textos mais ambiciosos, mais vanguardistas: poemas: Chêne et chien [Carvalho e cão] de Queneau e Une
Mes parents [Meus pais] de Hervé Guibert, Pseudo [Pseu- vie ordinaire [Uma vida comum] de Georges Perros. Essa
dônimo] d'Emile Ajar-Romain Gary, os últimos romances lista, da qual propositalmente mostro a heterogeneidade,
de Aragon (Blanche ou l'oubli, La mise a mort, Le mentir- demonstra a que ponto a aplicação desses dois critérios é
-vrai [Branca ou o esquecimento, Tempo de morrer, O problemática. A homonímia não impede a afabulação, como
mentir-verdadeiro] ) etc. A essas narrativas que preenchem mostrará depois Vincent Colonna. Inversamente, em mui-
os dois critérios, Lecarme vai associar: - textos que não tos casos - Duras, Nizon, Camille Laurens, Philippe Vilain
respeitam o critério da homonímia: Pedigree de Simenon, ou Catherine Cusset, por exemplo-, o herói-narrador não
La séparation [A separação] de Dan Franck, os romances é nomeado, embora remeta incontestavelmente, por vários

196 Philippe Gasparin i AUTO FICÇÃO f ONOME DE QUÊ? 197


indícios intra e extratextuais, ao autor. Serge Doubrovsky história irreal, indiferente à verossimilhança." 18 Colonna dá
vai chamá-los de "quase-autoficção", Philippe Vilain de os seguintes exemplos:
"autoficção anominal". 17 Quanto ao subtítulo "romance", • A divina comédia, na qual "Dante" visita o Inferno, o
todos sabem que muitas vezes foi escolhido pelos autores Purgatório, o Paraíso;
para assegurar a seus textos uma recepção literária e também • Os Estados e Impérios da Lua e do Sol, que o narrador de
que, com frequência, foi imposto por editores que conside- Cyrano de Bergerac visita;
ram que o rótulo vende mais.
• Biographie conjecturale [Biografia conjectural] (1799):
aos 35 anos, 0 poeta romântico Jean-Paul imagina sua
V. Desvios
vida futura de escritor e pai de família;
Jacques Lecarme não foi o único a se apropriar do con- • Ferdydurke, de Gombrowicz, cujo herói, um escritor de
ceito inventado por Doubrovsky. Nos anos de 1980, três 35 anos, volta a ser adolescente;
outros críticos levaram o termo para seu arsenal teórico,
• Le gâteau des morts [O bolo dos mortos], no qual Do-
mas dando-lhe um sentido bem diferente daquele que
minique Rolin conta sua própria morte.
Doubrovsky e Lecarme lhe tinham atribuído. Para Philippe
Pode-se acrescentar The plot against América [Complô
Lejeune, Gérard Genette e Vincent Colonna, o neologismo
contra a América] (2004) livro no qual Philip Roth ima-
"auto-ficção" designava, evidentemente, uma ficção de si.
gina O que teria acontecido à sua familia se um ~a~didato
Dito de outra forma: uma projeção do autor em situações
pró-nazismo e antissemita tivesse vencido as ele1çoes pre-
imaginárias. Deve-se a Colonna o desenvolvimento dessas
sidenciais de 1941.
ideias, primeiro em sua tese orientada por Gérard Genette,
Valendo-se do termo inventado por Serge Doubrovsky,
depois em livro publicado, no ano de 2004, pela editora
Vincent Colonna chamou a atenção para um dispositivo
Tristram: Autofiction & autres mythomanies littéraires
ficcional que pode ser encontrado ao longo de toda a história
[Autoficção e outras mitomanias literárias]. Para ele, a
literária desde Luciano de Samósata e Apuleio. Não creio
autoficção tem a ver diretamente com o "fantástico": "O
tratar-se de um gênero, mas sim de uma figura, variedade
escritor ( ... ) transfigura sua existência e identidade em uma
de metalepse, que foi utilizada, imitada ou redescoberta,
em diferentes períodos, muitas vezes com intenção·satírica.

198 Philippe Gasparini AUTOFICÇÃO É ONOMEOE QU Ê? 199

J
A fim de evitar confusões seria preferível, para designar personagem), mas de conteúdo manifestadamente ficcional (por
essa figura, empregar o termo "autofabulação" criado por exemplo: fantástico ou maravilhoso) como o da Divina comédia de
Colonna. Dante ou o Aleph de Borges. Mantenho minha definição genérica,
Para ele, os outros tipos de "autoficção", que qualifica mas me vejo forçado a não empregar para nomeá-la um termo que
de "biográficos", não fazem mais do que seguir a tradição chamaria hoje de aviltado, se não tivesse consciência de tê-lo eu
do romance autobiográfico sem, na verdade, renová-lo: mesmo, outrora, tomado emprestado abusivamente a seu inventor
para designar um gênero no qual ele de fato não estava pensando.
Hoje, na literatura pessoal, se você ler o melhor Angot, já leu De todo modo, o corpus ao qual eu o aplicava é ínfimo do ponto
todos; o mesmo vale para Doubrovsky, e alguns epígonos. Trata- de vista quantitativo, se comparado ao da autoficção, no sentido
-se de uma literatura de manufaturadores, da reprodução de uma corrente e até mesmo abundante - como se diz de uma enchente
fórmula comprovada, mesmo quando esses autores recusam ou ou de uma maré negra - que adquiriu em nossos dias. Mas, com
ignoram esse fato, invocando uma divindade chamada "escrita" isso, esse corpus (o meu) ficou sem nome. Imaginei de maneira
para encobrir essa fraqueza. 19 fugidia o conceito igualmente contraditório de autobiografia não
autorizada, mas como não estou certo de que convenha, prefiro
reservá-lo para outra ocasião.21
Em Bardadrac,20 Gérard Genette, que orientara a tese de
Colonna, reconheceu os limites da autofabulação e até
desistiu de empregar o termo: O próprio Colonna admite que a autofabulação, que
produziu algumas obras-primas no passado, é muito pouco
praticada hoje: "A afabulação contemporânea parece ter
Tal como é praticado hoje, o "gênero" autoficção corresponde
abandonado essa postura e é bastante curioso, pois ela é
quase fielmente, senão dignamente, à definição ampla, e delibera-
rica em possibilidades narrativas e em temas cativantes. Por
damente desconcertante, de Serge Doubrovsky. A definição mais
não ser nem historiador da cultura nem sociólogo, eu teria
estrita que defendi durante um tempo, acreditando que estava
muita dific uldade em explicar tal indiferença." 22
certo, visava algo totalmente diferente: uma narrativa contradito-
Mas nem por isso, a definição de Colonna perdeu seu
riamente de estatuto declarado autobiográfico (segundo os crité-
valor. Na realidade, podemos considerar que boa parte da
rios de Philippe Lejeune: por homonímia entre autor, narrador e
produção autoficcional atual tem mais ou menos a ver com a

200 Ph ilippe Gasparini AUTOF ICÇÃO ÉO NOME DEQUE? 201


autofabulação na medida em que o autor se representa nela, desenlace da narrativa, como em L' étreinte, mas um ele-
voluntariamente, em situações que não viveu. Mantendo- mento desencadeador que vai comandar todo o processo
-se no limite do plausível, essas narrativas imitam a auto- de criação:
biografia sem respeitar seu contrato de verdade. Apenas a
menção "romance" as preserva de uma acusação de mentira Em resumo, escrevo em primeira pessoa uma h istória a partir
ou embuste. de um fato real, verificável ( ... ) mas uma história transposta, à
qual dou um prolongamento romanesco possível, um alargamento
O último livro de Philippe Vilain, L'autofiction en thé- 24
poético sem me nomear, mas sob a caução de meu sobrenome.
orie [A autoficção em teoria] fornece dois exemplos dessa
passagem da autonarração à autofabulação, dois exemplos
tirados de suas próprias narrativas. Ele explica que o de- Parece que estamos mesmo na própria configuração
senlace fictício de L'étreinte [O abraço] (1997) prefigura, da autofabulação da qual Genette formulou ironicamente
o pacto nos seguintes termos: "Eu, autor, vou contar para
antecipa o fim real de sua relação com Annie Ernaux. E,
vocês uma história da qual sou o herói, mas que nunca
por outro lado, o autor construiu o roteiro fictício de seu
aconteceu comigo." 25 E voltamos ao problema proposto
último romance, Faux-pere [Falso-pai] (2008), a partir de
pela invenção de uma sessão de análise que nunca ocorreu,
uma observação da mulher que amava na vida real:
como acontece em Fils. Mas essa invenção não tem nada
a ver com o fantástico, uma vez que tudo é perfeitamente
A "Stefanià' da vida real ( ... ) me havia confidenciado a possibi- verossímil. Seria preciso, portanto, distinguir três tipos de
lidade de ficar grávida. ( ... ) Minha história mais verdadeira talvez ficcionalização do vivido:
seja aquela que poderia ter acontecido, a história que a angústia • a ficcionalização inconsciente (através de erros, esque-
roubou de mim e que me revelou uma parte m isteriosa de mim cimentos, seleção, roteirização, deformações) comum a
mesmo (o medo da paternidade), a história que teria acontecido toda reconstituição narrativa;
se a Stefania da vida real tivesse realmente ficado grávida.23 • a autofabulação que projeta deliberadamente o autor em
uma série de situações imaginárias e fantásticas;
A hipótese imaginária não é mais aqui, portanto, um • a autoficção voluntária, que passa voluntariamente da
elemento acessório, um deus ex machina que acelera o autobiografia à ficção sem abrir mão da verossimilhança.

202 Ph ilippe Gasparini AUTO FICÇÃO ÉO NOME DE QUÊ? 203


Na autofabulação, o leitor é informado, ou desconfia contrabalançado por indícios de ficcionalidade igualmente
desde o início, que a história "nunca aconteceu". Na auto- convincentes.
ficção voluntária, ele pode ser enganado, apesar da menção
"romance", pela aparência autobiográfica da narrativa. É VI. Reivindicações
nesse caso específico, a meu ver, que o termo autoficção é Não só os críticos adotaram o conceito criado por Serge
o mais adequado. Doubrovsky. Pouco a pouco, os escritores também vão se
Voltamos, então, fatalmente, à questão do contrato de apropriar dele. Mas, curiosamente, a maior parte desseses-
leitura. No meu entendimento, há apenas três possibilidades critores serão também teóricos da literatura que produzirão
pragmáticas: uma reflexão crítica sobre o conceito.
• o contrato de verdade, que rege a comunicação refe- O primeiro que se arriscou a usar o termo autoficção
rencial, do qual depende a escrita do eu em geral e a para caracterizar sua prática de escrita foi Paul Nizon que
autobiografia em particular; disse tê-lo inventado. A partir de 1983, ele começou a se
• o contrato de ficção, que rege o romance, a poesia, o qualificar de "escritor autoficcionário" a fim de distinguir
teatro etc.; sua pesquisa da simples autobiografia:
• a associação dos dois, na qual se baseia a estratégia de
ambiguidade do romance autobiográfico. A autobiografia é uma reconstrução do passado, algo que não
A autoficção não propõe um novo tipo de contrato. Certos me interessa. O que me interessa é que o eu é uma coisa muito
textos classificados como autoficções são lidos como autobio- fluida, inatingível. Trata-se, ao escrever, de mergulhar em direção
grafias, ou pedaços de autobiografias; outros são lidos como a esse eu desconhecido a frm de constituí-lo de uma maneira ou
romances, principalmente aqueles que se apresentam visi- de outra como personagem. O "eu" não é, portanto, o ponto de
velmente como autofabulações. A maioria deles desenvolve partida, como na autobiografia, mas o ponto de chegada.26
estratégias de ambiguidade que os inscrevem na tradição do
romance autobiográfico, mesmo se o herói-narrador tem o Depois, o autor passou a evitar a palavra autoficção:
nome do autor, pois essa homonímia funciona somente como "abandonei o termo para falar de meu trabalho. Tornou-se
um indício suplementar de referencialidade, suscetível de ser uma moda, e n em sei mais muito bem o que significa hoje",

204 Ph ilippe Gasparini AUTO FICÇÃO ÉO NOME DE QUÊ? 205


declarou Nizon em entrevista publicada em janeiro de 2006 autoficção e o que chamava de "a nova autobiografia". Em
no Le Monde des Livres. O trabalho de Nizon se caracteriza suas palavras, como no folheto de lançamento do livro Fils, a
de fato, por seu movimento meditativo, poético, sinuoso: palavra "autoficção" não designava um gênero, mas um pro-
mais próximo do diário do que da narrativa retrospectiva. cesso de escrita. Por outro lado, ao lançar a expressão "nova
autobiografia", ele nutria aparentemente o desejo secreto de
Rejeito a verdadeira narração, a fabricação de histórias( ... ) recriar nos moldes do "novo romance", um movimento, uma
tento autoproduzir-me ( ... ) chamei isso (essa vontade) de en- escola, uma revolução literária. Na esperança de revolucionar
tonação, de pintura de gestos, de pontilhismo ( ... ) não se trata, esse outro gênero canônico, o autor retomava os argumentos
nesse caso, de tempo redescoberto, mas de um tempo criado, antinaturalistas e antimiméticos que expusera em Pour un
metamorfoseado em linguagem, e é um espaço ficcional.21 nouveau roman [Por um novo romance]. E acreditava ver
surgir, através de certos textos de novos romancistas, Les
Poderíamos classificá-lo em uma categoria que eu cha- Géorgiques [As Geórgicas] de Claude Simon, L'amant de
maria, em referência a Montaigne, de autoensaio. Marguerite Duras, Enfance [Infância] de Nathalie Sarraute
Jerzy Kosinski empregou o termo autoficção, a partir de e seus próprios Romanesques, uma "nova autobiografia",
1986, para explicar e justificar, a maneira como tinha escrito "consciente de sua própria impossibilidade constitutiva", e
L 'oiseau bariolé [O pássaro pintado]. Foi o que levou Marc imunizada contra qualquer ilusão referencial pela injeção
W eitzmann a afirmar que Kosinski o havia inventado. Não de altas doses de ficção.
pretendo retomar a polêmica, já encerrada, cujas causas e Cabe ao leitor decidir se Le miroir qui revient [O espelho
consequências vocês podem encontrar no livro de Philippe que retorna] (1984), Angélique ou l'enchantement [Angélique
Vilain, Défense de Narcisse [Defesa de Narciso].2s ou o encantamento] (1988) e Les derniers jours de Corinthe
Em 1994, Alain Robbe-Grillet apresentou Les derniers [Os últimos dias de Corinto] (1994) correspondem ao pro-
jours de Corinthe [Os últimos dias de Corinto] como seu grama descrito. Se as fabulosas aventuras de "Corinto" de
"terceiro volume de errâncias autoficcionais". Quatro anos fato "quebram o ritmo anedótico" das lembranças familiares
antes, em um colóquio intitulado "Autobiografia e van- e dos acertos de contas entre amigos ou se, ao contrário,
guarda", ele postulara uma espécie de equivalência entre

206 Ph ilippe Gasparini AUTO FICÇÃO É ONOM EDE QUÊ? 207

1 i
reforçam a especificidade da autonarração, apesar de todas Como fizera Doubrovsky em 1977, Federman nega,
as precauções oratórias do autor para se proteger. em 2008, que sua narrativa memorial seja considerada
Raymond Federman manifesta a mesma preocupação autobiografia, apesar das evidências. O único registro que
de não ceder à trivialidade naturalista quando se refere à reivindica é a ficção.
metaficção, sobreficção, "autobiografia de vanguarda" ou Marie Darrieussecq representa um caso à parte, pois
ainda à literatura "pós-moderna". E, quando se dirige ao ela dedicou sua tese à autoficção e defendeu o gênero em
público francês, emprega eventualmente o termo criado muitos artigos, entre 1996 e 1997, mas depois sua obra li-
por seu "companheiro neurastênico Serge Doubrovsky". terária foi essencialmente ficcional. E, paradoxalmente, ela
A palavra "autoficção" aparece, por exemplo, a partir da precisou justificar sua prática da ficção, para se defender das
página 23 de seu último livro, Chut, em um metadiscurso acusações de Maria N'Diaye e ainda de Camille Laurens.30
bem ao seu estilo: Esse último caso evidenciou a mudança profunda em
nossa concepção da literatura. Até hoje, o que se contesta-
Preste atenção, Federman. Se você continuar desse jeito, vai va era a legitimidade dos textos autobiográficos, em nome
cair no naturalismo de Zola. Não me importa. Eu tenho que dizer de princípios éticos, pelos críticos, pelos romancistas, ou
a verdade, mesmo se a verdade dói. Tudo bem, os leitores vão por pessoas que se consideravam caluniadas. E, no caso de
dizer: O que você faz não é romance, Federman, é autobiografia, Darrieussecq, questionou-se a legitimidade da ficção, o fato
ou pior, autoficção. de que se possa representar, em uma cena imaginária, um
E aí eu vou dizer, vocês quebraram a cara, o que estou contando sofrimento já descrito por suas vítimas. Qualquer que seja
é pura ficção, porque esqueci completamente toda a minha infân- nosso ponto de vista sobre a polêmica, o episódio questiona
cia. Tenho um bloqueio. Tudo o que digo, portanto, é inventado, é a convivência entre a escrita referencial e a escrita ficcional.
reconstrução. E como tudo o que se escreve é fictício, como disse É como se elas não pudessem compartilhar o mesmo espaço
Mallarmé, o que estou escrevendo, é ficção. literário, como se elas tivessem de se excluir uma à outra.
Os pequenos blocos de palavras que acumulo sobre o papel são Philippe Forest também é, ao mesmo tempo, teórico e ro-
como tijolos com os quais se constrói uma casa. Estou construindo mancista. Publicou diferentes estudos sobre o Surrealismo,
minha infância com blocos de palavras. 29 sobre o romance contemporâneo e o grupo Tel Quel, antes

208 Philippe Gasparini AUTOF ICÇÃO ÉO NOME DEQUÊ? 209


de empreender uma obra literária. A palavra "autoficção" da autonarração se aproxima das concepções desenvolvidas
apareceu em seus textos em 1998, para designar ao mesmo por Annie Ernaux e Chloé Delaume.
tempo a obra do romancista japonês Kenzaburô Ôé, e seu Chloé Delaume pertence com Philippe Vilain, Catherine
primeiro "romance", L'enfant éternel [A criança eterna] Cusset, Camille Laurens, a uma nova geração de autores
(1997). A maior parte dos livros de Ôé conta sua dificulda- que aprofunda o conceito criado por Serge Doubrovsky.
de em aceitar o nascimento e, em seguida, a presença a seu Em La regle du je [A regra do eu], ela atribui à autoficção
lado, de seu filho deficiente. L 'enfant éternel relata o câncer uma função ética e, em sentido amplo, política. Diante das
e a morte de uma criança de quatro anos. Trata-se, nos dois "ficções coletivas" que são as "fábulas religiosas, sociais,
casos, de dar conta de uma experiência de luto sem cair na econômicas, políticas, culturais, as ficções empresariais, o
"armadilha fatal da escrita autobiográfica". Para quebrar a story telling'', os escritores devem, em sua opinião, "con tar
ilusão da transparência e do imediatismo, o texto deve ser os fatos, e em tom maior". A autoficção constituiria assim
trabalhado, diz Forest, através da fragmentação, do inaca- um polo de resistência ao travestimento dos fatos e à reifi-
bado, da diversidade de registros e vozes, da carnavalização cação dos indivíduos.
e da intervenção de personagens imaginários.
Ao termo criado por Doubrovsky, Forest vai logo prefe- VII. Recusa
rir a expressão "romance do eu", calcado no alemão Ich Ro- Sob essa perspectiva de denúncia das imposturas, o
man e no japonês shishôsetsu. O "romance do eu", tal como termo autoficção continuaria a ter pertinência real? Certa-
ele o concebe, se inscreve na continuidade das vanguardas
mente não, no caso de Annie Ernaux. Seu projeto é ir além
dos anos de 1960, mas também de Bataille, Cendrars, Céline.
do estágio narcisista da escrita do eu para atingir uma espé-
Distingue-se da tendência "pós-moderna" da autoficção, na
cie de universalidade. É por isso que a autora propôs, para
qual Forest, sem citar nomes, vê o sintoma de um indivi-
caracterizar seus textos, o termo "narrativa transpessoal".
dualismo reacionário, narcisista, hedonista e consumista.
E também a expressão "narrativa auto-socio-biográfica":
Referindo-se a Primo Levi, Forest atribui à escrita do eu
entre "auto" e "biográfica", o morfema "socio" notifica que
a função e a responsabilidade de testemunhar pelos "náu-
o testemunho pessoal deve se inscrever em um contexto
fragos" que o sofrimento privou de palavra. Essa alta ideia
social e histórico, que ele contribui senão para elucidar,

21 O Philippe Gasparini AUTOFICÇÃO É ONOM E DE QUÊ? 2 11


1

1 l
pelo menos para descrever. Esse procedimento original "narrativa". La honte [A vergonha] eL'usage de la photo [O uso da
teve o que se pode ser considerado uma glorificação em foto), por exemplo, assim como Passion simple, se distanciam dela.
Les années [Os anos] (2008). É por isso que Annie Ernaux Portanto, Passion simple não é a meu ver uma autoficção, mas o
recusa categoricamente a palavra autoficção, conforme me boletim de ocorrência, o registro, "a exposição", a objetivação no
explicou, a respeito de Passion simple [Paixão simples], por sentido quase científico, o inventário, de uma paixão que tive. 31
e-mail, em 2006:
Estamos diante de uma posição diametralmente oposta
A única separação que estabeleço - talvez porque ela cor- à de Federman. Ao lado de escritores autoficionistas, que
responda em meu percurso a dois momentos bem distintos - é "misturam a ficção e a realidade", existem autores que, como
entre, por um lado, um texto em que o autor estabelece a possi- Annie Ernaux, mantém "uma postura de verdade" e tentam
bilidade de "se irrealizar" em fatos ou histórias imaginárias, de atingir certo grau de universalidade. Não sendo regidos
misturar a ficção (no sentido antigo) e a realidade, e, por outro pelo mesmo contrato de leitura, seus textos não pertencem
lado, um texto no qual a proposta é se ater à realidade tal como à mesma categoria pragmática. É o que explicou Philippe
foi percebida ou memorizada. A partir de Laplace [O lugar], a Lejeune em entrevista recente com Philippe Vilain que afir-
primeira categoria foi completamente abandonada e todas mi- mava: "uma descrição fiel do vivido me parece impossível."
nhas pesq~isas de escrita passaram a se inserir na segunda. Ao A essa questão, Lejeune respondeu:
mesmo tempo, o termo autoficção se vulgarizou mais de 15 anos
depois de eu ter escolhido a autobiografia e o uso que foi feito Sim. Há pessoas que se resignam a essa impossibilidade - você,
dele, que continua sendo feito, exceto no caso de Doubrovsky, Philippe Vilain, e Serge Doubrovsky - e há pessoas que não se
corresponde na maior parte das vezes a uma "zona" indecidível resignam; os que não se resignam parecem naifs para os primeiros.
entre autobiografia e romance, postura de verdade e postura de Pertenço à categoria dos naifs. As duas posições são constitutiva-
ficção. Em suma, sinto-me "estrangeira" à autoficção. (... )O que mente antinômicas. Nossa vida é um imaginário, um imaginário
conta para mim é encontrar, a partir de um conteúdo estritamen- que evolui, se questiona, esse imaginário é a realidade do que
te autobiográfico, uma forma, válida apenas para aquele texto. vivemos. ( ... ) Posso me colocar no sentido do vento, e m inha es-
Como o senhor observou, tenho cada vez mais dificuldade com a crita vai prolongar esse movimento de construção imaginária. Há,

21 2 Philippe Gasparini AUTOFICÇÁO ÉO NOME DE QUf ? 213


portanto, escritas que escolhem ir contra o vento para observá-lo, Em 1996, Philippe Lejeune organizou em Nanterre um
e outras que acompanham e amplificam seu movimento. Fica-se colóquio sobre o tema A autobiografia em processo. Em sua
forçosamente numa dessas posições, mas é claro que nenhuma participação intitulada "L'hydre anti-autobiographique"
delas é "verdadeira". 32 [A hidra antiautobiográfica], Jacques Lecarme repertoriou
os sete adversários da escrita do eu: a crítica jornalística,
Vocês me dirão: por que falar de Annie Ernaux e de a escola, a política, a tradição religiosa, os filósofos, "o
Philippe Lejeune, a propósito de uma categoria que ambos espírito-santo da literatura" e a psicanálise.
rejeitam? Precisamente para buscar seus limites. É preciso Creio que a situação mudou completamente em todos
constatar que "autoficção" se tornou, hoje, o nome de todos esses campos. A escrita do eu é, hoje, não somente tolerada,
os tipos de textos em primeira pessoa. Funcionando como mas, em vários campos, incentivada, valorizada, recom-
um "arquigênero", ele subsume todo "o espaço autobiográ- pensada. Seus adversários se tornaram minoria e acabam,
fico": passado e contemporâneo, narrativo e discursivo; com geralmente, por praticá-la.
Com essa reavaliação, veio também um considerável
ou sem contrato de verdade. Vítima ou beneficiário dessa
desenvolvimento qualitativo e quantitativo. Basta folhear
confusão, o termo começa a ser empregado para valorizar
as seções "livros" na imprensa para constatar que os textos
ou desvalorizar não apenas livros de todos os gêneros, mas
autobiográficos estão tão presentes nas páginas sobre lan-
também álbuns de histórias em quadrinhos, filmes, espe-
çamentos literários quanto os romances.
táculos e obras de arte contemporânea.
Não sei se é mais justo dizer que, para ser admitida
no campo literário, a escrita do eu se transformou, ou se
VIII. Estatuto
a evolução das expectativas do leitor a obrigou a inovar.
Creio que seria um erro reduzir essa extensão a um fe- O que é certo é que a literatura do eu contemporânea tem
nômeno de moda. Se ele "pegou", se entrou em uso, é sinal apenas uma longínqua relação com a autobiografia de
de que era preciso um termo para qualificar as criações que outrora. Hoje, tem-se a consciência de que relatar sua vida
manifestam uma nova concepção do eu e de sua expressão. é construir um roteiro tributário de modelos culturais.
Nesse sentido, pode-se dizer que a "autoficção" é também Alguns autores, como diz Philippe Lejeune, não hesitam
o nome de uma mutação cultural.

2 14 Philippe Gasparini AUTO FICÇÃO É ONOME DE QUt? 215


em simular, ampliar, ou embelezar "esse movimento de de ficção - em favor da descrição, da enumeração e da me-
construção imaginária", e o termo autoficção convém ditação. Passam então da autonarração ao autoensaio, de
precisamente a esse procedimento. Enquanto isso, há Rousseau a Montaigne.
outros que lutam obstinadamente contra qualquer deriva Em minha opinião, o termo autoficção deveria ser reser-
ficcional e, apesar de tudo, tentam revelar pedaços de ex- vado aos textos que desenvolvem, em pleno conhecimento
periências compartilháveis. Michel Leiris, Georges Perec, de causa, a tendência natural a se ficcionalizar, própria à
Annie Ernaux, Philippe Forest, o próprio Doubrovsky nos narrativa de si. Uma situação, uma relação, um episódio, são
últimos livros, filiam-se a essa linhagem. Mas também narrados e roteirizados, intensificados e dramatizados por
Primo Levi, Imre Kertesz, Jorge Semprun, André Gorz técnicas narrativas que favorecem a identificação do leitor
(Le traftre [O traidor]), Fritz Zorn, Hervé Guibert em seus com o autor-herói-narrador. De um ponto de vista pragmá-
últimos textos, Paul Nizon, Henri Roth, Thomas Bernhard, tico, são romances autobiográficos, baseados em um duplo
Pascal Quignard (Vie secrete [Vida secreta]), Peter Handke, contrato de leitura. No entanto, a partir do momento em
Hélene Cixous, Jacques Roubaud, Jean-Bertrand Pontalis, que são designados pelo neologismo um pouco mágico de
Emmanuel Carrere etc. "autoficção", eles se tornam outra coisa. Não são mais textos
Arnaud Schmitt propôs o termo autonarração para de-
isolados, esparsos, inclassificáveis, nos quais um escritor
signar esse procedimento que se diferencia da autobiografia
dissimula com mais ou menos engenho suas confidências
tradicional em, no mínimo, três pontos: a fragmentação,
sob um verniz romanesco, ou vice-versa. Inscrevem-se em
o metadiscurso e a alteridade. Esses autores não têm a
um movimento literário e cultural que reflete a sociedade
intenção de relatar sua vida inteira, nem de explicá-la ou
de hoje e evolui com ela.
justificá-la ou mesmo de apresentar dela uma imagem fiel.
Um consenso parece se esboçar entre os pesquisadores
Eles trabalham com fragmentos de lembranças, que exu-
para adotar a seguinte tripartição do espaço autobiográfico
mam, questionam, interpretam, relacionam ou contrapõem
contemporâneo: autofabulação/autoficção/autobiografia
a outros fragmentos. E discutem sem cessar a relação entre
(ou autonarração). Mas é pouco provável que essas distin-
escrita e experiência, pelo metadiscurso, pela intertextua-
ções entrem em uso. O neologismo criado por Doubrovsky
lidade, pelo olhar do outro. Essa inquietação pragmática
vai, provavelmente, continuar embaralhando as cartas.
os leva muitas vezes a negligenciar a narrativa - geradora

216 Philippe Gasparini AUTOFICÇÃO É ONOMEDEQU E? 2 17


f

Como disse Víncent Colonna no colóquio de Cerisy,


2
P. Lejeune, Le pacte autobiographique (bis) em Moi aussi, Paris, Seuil, 1986, p.
25. O autor cita uma passagem de L'autobiographie en France [A autobiografia
"autoficção" é uma palavra-narrativa, que basta desdobrar na França] (1971) que já fora citada em Le pacte autobiographique, p. 26.
para que apareçam todos os tipos de histórias pessoais. A 3 A palavra fils , em sua forma escrita, pode significar tanto "filho" quanto "fios''.
sedução do termo se deve à sua ambiguidade, a seu mistério. (N.T.)

Todos podem se apropriar dele ou rejeitá-lo em função de ' P. Lejeune, Le pacte autobiographique, Paris, Seuil, 1975, 1996, p. 31.

sua própria identidade narrativa e de sua própria mitologia 5 Carta de 17 de outubro de 1977 citada por Philippe Lejeune em Moi aussi, Paris,
Seuil, coll. Poétique, 1986, capítulo Autobiographie, roman et nom propre, p. 63,
estética. Palavra-teste, palavra-espelho, que nos devolve as e em Autofictions & cie., dir. S. Doubrovsky, J. Lecarme e P. Lejeune, RITM, n.
definições que lhe atribuímos. 6. Université Paris X-Nanterre, 1993, p. 6. Em Le Magazine Littéraire de março
de 2005 Doubrovky se refere novamente a essa frase do Pacto, desajeitada, mas
fecunda.
(Este texto que me foi gentilmente cedido 6 J.-J. Rousseau, Quarto passeio de Os devaneios do caminhante solitário, L&PM
pelo autor, foi apresentado na Universidade Editores, São Paulo, 2008. (N .T.)
de Lausanne, em 9 outubro de 2009 e se 7 P. Valéry, Stendhal, em Variétés II, Paris, Gallimard, 1930, p. 73-126.
encontra disponível no site Autofiction. 8
J.-P. Sartre, Autoportrait à 70 ans, entretien avec Michel Contat, em Situations
org: <http://www.autofiction.org/index. X, Par is, Gallimard, 1976, p. 146.
php ?post/2010/01/02/ De-quoi-1-autofic- 9 P. Lejeune, L'autobiographie en France, p. 20-21.
tion -est-elle-le-nom -Par-Philippe-G aspa- 10
O título de Doubrovsky remete à conhecida frase de Stéphane Mallarmé, em
rini>. Título original: "De quoi l'autofiction "Crise de verso" (1945): "La:uvre pure implique la disparition élocutoire du
est-elle le nom?") poete, qui cede l'initiative aux mots" [A obra pura implica o desaparecimento
elocutório do poeta, que cede a iniciativa às palavras] . Entretanto, Doubrovsky,
fazendo um jogo de palavras, utiliza o termo "maux" [males]. homófono de
"mots" [palavras]. (N.T.)
11 S. Doubrovsky, Autobiographie/vérité/ psychanalyse, p. 77.
Notas
12 Idem, Linitiative aux maux, écrire sa p sychanalyse, p. 177.
' Aristóteles: "De tudo o que dissemos, resulta claramente que o papel do poeta
é dizer não o que aconteceu realmente, mas o que poderia ter acontecido na 13 O título, Um amor de si, faz ecoar Un amour de Swann [Um amor de Swann],
ordem do verossímil ou do necessário. Pois a diferença entre o cronista e o segunda parte do pr im eiro volume de Em busca do tempo perdido, de Marcel
poeta( ... ) é que o primeiro diz o que aconteceu, o outro o que poderia ter Proust. A própria t rama do livro de Doubrovsky repete a aventura do perso-
acontecido; é por essa razão que a poesia é mais filosófica e mais nobre do que nagem de Proust, Swann, que teria passado anos apaixonado "por uma mulher
a crônica; a poesia trata mais do geral, a crônica do particular:· que não lhe agradava, que não fazia seu tipo''. (N.T.)

21 8 Philippe Gasparini AUTOF ICÇÃO ÉONOME DE QUÊ? 219


" Este é o único livro de Serge Doubrovsky traduzido para o português, com o 30
A escritora e psicanalista Marie Darrieussecq publicou em 2007 um romance,
título O lívro quebrado, trad. de António Filipe Marques, Lisboa, DIFEL, 1992. Tom est mort [Tom está morto], que provocou a reação da escritora Camille
(N.T.) Laurens, que a acusou de cometer "plágio psíquicó' de seus livros autobiográ-
15
ficos Philippe (1995) e Cet absent-là [Aquele ausente] (2004), dedicados a seu
S. Doubrovsky, L'apres-vivre [Depois da vida], Paris, Gallimard, 1994, p. 302.
filho Philippe, morto logo depois de seu nascimento. Maria N'Diaye, depois
16 de ter, em 1998, acusado Darrieussecq de ter "macaqueadó' uma suas obras
No que diz respeito a autores que preenchem essas condições, e em particular
o último critério, Doubrovsky só cita Céline e Christine Angot. Poderíamos para escrever um romance, toma a defesa de Camille Laurens na polêmica.
acrescentar Henry Miller, Jack Kerouac, Charles Bukowski, Raymon Federman, Ver, entre o utros, o texto de Laurens ("Marie Darrieussecq ou le syndrome du
Nina Bouraoui, Fernando Vallejo, Pedro Juan Guttiérez, D ave Eggers .. . Justine coucou·: publicado logo depois do lançamento de Tom est mort) e a resposta de
Lévy? Darrieussecq: "La fiction à la premiere personne ou l'écrit ure immoralê', em C.
Burgelin, I. Grell, R.-Y. Roche (org.), Autofiction(s), Colloque de Cerisy, Lyon,
17
P. Vilain, L'autofiction en théorie suivi de Deux entretiens avec Philippe Sollers Presses Universitaires de Lyon, 20 10, p. 495-506 e 507-525, respectivamente.
Philippe Lejeune, Chatou, Editions de la Transparence, 2009, p. 70-75. (N.T.)
16
V Colonna, Autoficção e outras mitomanias literárias, Auch, Tristram, 2004, p. 31 A. Ernam:, Quelques précisions d'Annie Ernaux [Algumas explicações de Annie
75.
Ernam:]. entrevista que se segue ao artigo ''Annie Ernam:, de Se perdre à passion
1
• Ibidem, p. 117. simple" [Annie Ernam:, de Se perder à paixão simples], em Genese et autofiction,
dir. J.-L. Jeannelle et C. Viole!, Louvain-la-neuve: Academia Bruylant, 2007, p.
20
G. Genette, Bardadrac, Paris, Seuil, 2006. 149-173, citação p. 166.
21
Ibidem, p. 136-137. 32
P. Lejeune em Moi contre moi: Philippe Lejeune et Philippe Vilain, Vilain,
22
V Colonna, Autoficção e outras mitomanias literárias, p. 91. L'autofiction en théorie, Chatou, Editions de la Transparence, 2009, p. 108-109.
[Também presente n este volume]
23
P. Vilain, L'autofiction en théorie, Chatou, Editíons de la Transparence, 2009,
p. 72.
" Ibidem.
25
G. Genette, Fiction et diction [Ficção e dicção], Paris, Seuil, 1991, p. 86.
26
P. Nizon, La république Nizon, rencontre avec Philippe Dériviere, Paris, Les
Flohic, 2003, p. 128.
27
P. Nizon, Die lnnenseite des Mantels, Frankfurt, 1995, traduzido em francês por
J.C. Rambach, L'envers du manteau [O avesso do sobretudo]. Actes Sud, 1997,
p. 321.
28
P. Vilain, Défense de Narcisse, Paris, Grasse!, 2008.

" R. Federman, Chut [Psiu!]. Paris, Léo Scheer, 2008, p. 23.

220 Philippe Gasparini AUTOFICÇ ÃO EONOM E DE QUÊ? 221


1 1

Entrevista a Annie Pibarot


DOIS EUS EM CONFRONTO

Philippe Lejeune
Philippe Vilain

Concedida a Annie Pibarot, esta entrevista sobre a espe-


cificidade da escrita do eu encontra naturalmente seu espaço
no final de meu ensaio. 1 Nela, Philippe Lejeune defende a
ideia de um compromisso - rousseauniano - com relação à
verdade e recusa toda e qualquer ficção, como tão bem havia
teorizado em obras anteriores, L 'autobiographie en France
[A autobiografia na França] (1971) e, principalmente, Le
pacte autobiographique [O pacto autobiográfico] (1975) .
É no livro de 1971 que a expressão "pacto autobiográfico"
aparece, pela primeira vez, como sendo "a narrativa retros-
pectiva em prosa que alguém faz de sua própria existência,
quando focaliza principalmente sua vida individual, em
particular a história de sua personalidade".2

223
+

A posição de Philippe Lejeune com relação à autobiogra- não destinados apublicação, os blogs, as narrativas de vida.
fia, da qual é um dos mais importantes teóricos, se aproxima Chamo a atenção para a variedade de situações e desejo que
da posição defendida por Annie Ernaux:: a promoção de um a problemática do debate respeite essa diversidade.
discurso de verdade e de uma autobiografia literal, radical, Peço então aos dois entrevistados que respondam em
mesmo se nos primeiros tempos de suas pesquisas, Lejeune função de suas experiências e reflexões a cinco perguntas su-
houvesse também assimilado a narrativa autobiográfica a cessivas: a especificidade da escrita do eu, as críticas aescrita
uma forma ficcional: "a autobiografia é um caso particular de si, a significação particular dessa forma de escrita hoje, o
do romance e não algo exterior a ele"; 3 "devemos ter em destinatário das escritas de si, seus dispositivos específicos.
mente que a autobiografia não passa de uma ficção pro-
duzida em condições particulares."4 Aproximadamente 25 Especificidade da escrita do eu
anos depois, em Signes de vie. Le pacte autobiographique 2
[Philippe Vilain] Essa pergunta me desconcerta, porque
[Sinais de vida. O pacto autobiográfico 2], ele classifica a
não faço diferença entre "escrever o eu" e "escrever", da
afirmação de "erro grosseiro". 5 Esta entrevista vai confirmar
mesma forma que não distingo o fato de escrever uma
a firmeza da posição de Lejeune sobre a questão.
"autoficção" do fato de escrever um "romance", uma vez
[Annie Pibarot]: Não apresentarei os dois entrevistados, cujas
que a autoficção se intitula, aliás, "romance". Formulando
biografias constam há muito tempo no site da Associação
de outra maneira, jamais digo que escrevo sobre mim ou
pela Autobiografia (APA). Philippe Lejeune éprincipalmente
sobre momentos de minha vida, mas que escrevo. A nuance
pesquisador, professor, mas também autor de textos pessoais.
me parece importante. Embora o "eu" seja objeto de minha
Philippe Vilain tem, por sua vez, uma identidade principal
escrita, ele só a influencia ou modifica sua orientação de
de escritor (com quatro romances publicados pela editora
maneira inconsciente. Ignoro se existe realmente uma es-
Gallimard), mas também é teórico, autor de uma tese e de
pecificidade da escrita do "eu". Mas se é que existe alguma,
um ensaio: Défense de Narcisse [Defesa de Narciso].
talvez fosse preciso procurá-la, quanto aos meus textos, no
Proponho manter como referência durante a entrevista as
que diz respeito a uma fidelidade sensível a meu vivido;
diferentes situações de escrita que são: escrita literária publi-
na verdade, escrevo mais sobre o que sinto do que sobre o
cada, escrita em oficina, escrita de diário ou de fragmentos
que vivi. Arrogo-me a liberdade de transformar os fatos,

224 Entrev ista a Ann ie Pibarot DOIS EUS EM CONFRONTO 225


...
os acontecimentos, mas nunca as emoções; se, de um lado, falar como teórico, mas também como praticante da escrita
não tenho nenhum escrúpulo em deformar o que vivi, de do eu, de uma escrita secreta, confidencial. Não escrevo o
outro, eu teria a impressão de me trair se não retranscrevesse "eu", mas escrevo para mim. Escrever o eu não correspon-
fielmente as emoções que senti em tal ou tal circunstância. de ao que faço desde os 15 anos. Quando faço u m diário,
A especificidade da escrita do eu seria dessa ordem, ela tenho a impressão de que escrevo o mundo, mesmo se é a
residiria na conjunção da fidelidade emocional e da recria- partir de mim: minha escrita não é centrada na minha per-
ção factual própria a todo e qualquer imaginário de si. Fiz sonalidade, mas no mundo, nos problemas sobre os quais
minha a magnífica fórmula de Doubrovsky: "Se tento me todos nós pensamos. A palavra "eu" me dá a impressão de
rememorar, invento-me." O "eu" seria assim um desafio de uma substância grudenta, não apetitosa, tenho a impressão
recomposição, de reformulação imaginária, de constante de jamais ter escrito essa coisa. A fórmula reflete um olhar
tentativa (o que constitui parte do sentido dos Ensaios de social negativo sobre esse tipo de escrita.
Montaigne, da Busca proustiana) para definir sua verdade. Mas pode-se também ver as coisas positivamente: es-
Escrever o eu seria no fundo tentar ser verdadeiro, não crever o "eu" supõe então o desejo de ser verdadeiro, o que
descrever a verdade efetiva, considerando que a verdade se implica a exclusão, a recusa de toda e qualquer forma de
aloja independentemente, segundo o autor, seja na estrita ficção. Escrever o "eu" é se engajar em uma grande aventura.
fidelidade ao factual como na narrativa autobiográfica, seja Não há coerção mais difícil do que a da autobiografia a partir
mais amplamente na fidelidade ao emocional (o que supõe do momento em que esta é levada a sério. Escrever o "eu" é
um arranjo com o factual, uma ficcionalização). Talvez o uma ascese, é preciso conseguir ver as coisas lucidamente,
eu se escreva nessa busca da verdade, talvez ele seja apenas conhecer algo que talvez sejamos os últimos a poder conhe-
um prisma para apreendê-la, um captador exterior, do cer. Embora exista uma tendência a crer, ingenuamente,
mundo exterior, através do qual um autor afirma sua visão como Rousseau, que somos os mais abalizados para falar
de mundo. de nós mesmos.
[Philippe Lejeune] Como reagir diante dessa formulação? [Ph. V.] Em toda escrita autobiográfica, há uma ficcionali-
O eu tem conotações tão negativas que se torna difícil dizer zação involuntária, porque nossa memória é falível, porque,
"eu" sem cavar um buraco no chão para se esconder. Vou ao escrever, caímos na armadilha das palavras e que, por

226 Entrevista a Ann ie Pi barot DOIS EUS EM CONF RO NTO 227


vezes, a literatura ganha da vida e escolhemos o estilo em e florescentes . Dentre os contemporâneos, não existem
detrimento dos fatos e acontecimentos. Uma descrição fiel muitos.
do vivido me parece impossível. Você estava falando de [Ph. V. J Há Annie Ernaux que se impõe, de fato, esse regime
não ficção? drástico, esse imperativo de lucidez.
[Ph. L.] Sim. Há pessoas que se resignam a essa impossi- [Ph. L.] Annie Ernaux, tipicamente, tentou sustentar essa
bilidade - você, Philippe Vilain, e Serge Doubrovsky - e linha de verdade, verdade que ela não apresentou de forma
há pessoas que não se resignam; os que não se resignam alguma sob o modo da complacência e do narcisismo, mas
parecem naifs para os primeiros. Pertenço à categoria dos sob o modo da distância. Não é apenas a ficção que detém
naifs. As duas posições são constitutivamente antinômicas. o monopólio da d istância. Annie Ernaux reivindica poder
Nossa vida é um imaginário, um imaginário que evolui, se se colocar numa posição "autoetnológica".
questiona, esse imaginário é a realidade do que vivemos. A [Ph. V.] Ela considera a ficção como uma traição. Mas o
meu ver, uma escrita autobiográfica que visa à lucidez vai mais engraçado é que certos críticos continuam a colocá-la
tentar fixar esse imaginário da forma mais nítida possível, no meio dos autores de autoficção, embora ela própria a
mas, por outro lado, posso me colocar no sentido do vento e rejeite para reivindicar seu integrismo em relação à narrativa
minha escrita vai prolongar esse movimento de construção autobiográfica.
imaginária. Há, portanto, escritas que escolhem ir contra o
vento para observá-lo, e outras que acompanham e ampli- Críticas da escrita de si: despudor e narcisismo
ficam seu movimento. Fica-se forçosamente numa dessas [Ph. V.] Em Défense de Narcisse, eu quis examinar - a partir
posições, mas é claro que nenhuma delas é "verdadeira". de minha experiência de escritor e dos trabalhos teóricos de
A quais escritores de hoje corresponde, segundo vocês, essa Philippe Lejeune e de um artigo magistral de Jacques Lecar-
forma de escrever?
me, "Autoficção: um mau gênero?" - o desprezo intelectual,
[Ph. L.] Dentre os grandes ancestrais, Leiris e Perec, ambos a d iabolização da qual a autoficção é objeto há vários anos.
apegados a essa ideia de verdade, ainda que isso não tenha Impudica, narcisista, terapêutica, imoral, eis o que se ouve
impedido Perec de construir universos de ficção, barrocos quando se fala de autoficção: escrever sobre si, segundo
certas pessoas, equivaleria se excluir do campo da literatura.

228 Entrevista a An ni e Piba rot DOIS EUSEM CON FRONTO 229


Então a autoficção seria narcisista? Existem, incontes- fundo, em que o impudor impediria a literatura? Não se po-
tavelmente, estratégias de autocelebração na medida em deria tornar estético o que o impudor tem de inestético? É o
que uma construção de si por si mesmo não pode escapar à processo do realismo que é intentado à auto ficção. Eu falaria
tentação narcísica: "Ao dizer eu, só posso falar de mim", es- em uma estética da transparência na qual se trata de dizer,
creveu Benveniste. Mas impõe-se a necessidade de nuançar de confessar, mesmo se "dizer tudo" não é necessariamente
a afirmação e diferenciar a contemplação passiva-idealista "dizer a verdade", e não se tem certeza de que a verdade
de Narciso da construção intelectual, artística, at_iva does- possa jorrar da confissão: assim, quando Hervé Guibert
critor que procura uma verdade sobre ele. Não se escreve conta a dolorosa provação de sua terapia, que empreendeu
sempre por se admirar, mas porque se queria isso: o escritor depois de ter contraído o vírus da AIDS, há uma necessidade
se situaria antes numa esperança narcísica. existencial em que o impudor se faz exibição vital.
Além disso, não se trata sempre de valorização, mas Onde acaba então o pudor? Onde começa o impudor?
de revalorização de si, como atesta toda uma literatura de O pudor é variável segundo o grau de tolerância de uma
acompanhamento em que um narrador descreve a morte de determinada cultura e de uma determinada sociedade, se-
alguém próximo. Se, como escreveu Paul Valéry, "existem gundo a permissividade das religiões. Sobretudo, tenho o
eus mais eus que outros", então o grau de egotismo não é sentimento de que um autor se exibe fora de sua arte (para
idêntico de um autor a outro. Não se pode deixar de pensar, se promover: Amélie Nothomb, vestida de preto, se gaba de
além disso, que o narcisismo tem relação, sobretudo, com comer frutas podres; Christine Angot dá uma de arrogante
o ato de escrever e com toda socialização de si mesmo, e, e sai de um programa de televisão chorando ... ) e se expõe
especialmente, não decide quanto à qualidade de um tex- em sua obra. A que se exporia? Ao risco de ser julgado e
to. Seria naif achar que basta não escrever autoficção para punido pelo leitor, de descobrir verdades embaraçosas sobre
escapar à suspeita de narcisismo. O narcisismo se situa em si mesmo. Todo o mundo se lembra da fabulosa metáfora de
outro lugar, em regiões periféricas à própria escrita. Leiris que associa a literatura à tauromaquia, a um escrever
Da mesma forma, a autoficção seria impudica? Não que seria ameaçado pelo chifre do touro. Talvez a autofic-
se trata aqui de uma concepção moralizante: a resistência ção, mais do que qualquer outro gênero, faça parte de uma
moral é também, nesse caso, resistência estética. Mas, no tauromaquia simbólica.

230 Entrevista a Ann ie Pibarot DOIS EUS EM CONFRONTO 23 1


Além disso, deveríamos nos perguntar se o excesso de retomando aqui o belo título de Richard Millet. Modesta-
impudor de certos textos não seria, de certo modo, uma res- mente, a autoficção tem apenas uma função substitutiva.
posta ao voyeurismo dos leitores. De fato, se o impudor não Vemos que não há seriedade nas acusações. Sobretudo,
fascinasse tanto, se não existisse uma demanda importante, seu ponto fraco é se fundamentar em critérios éticos, não
seria surpreendente que quase um milhão de exemplares em critérios estéticos. Um texto narcisista e impudico pode
de A vida sexual de Catherine M. tenham sido vendidos. O possuir mais qualidades literárias do que um texto que não
título e a quarta capa, na qual está explicitamente formulado é nem uma coisa nem outra.
que a autora descreve sua sexualidade, não deixam pairar A palavra "narcisismo" tem uma conotação negativa, mas
nenhuma dúvida quanto ao conteúdo do livro e criam um certos psicanalistas utilizam o termo de maneira positiva:
horizonte de expectativa. A má fé do leitor é, pois, manifesta. a criança tem necessidade de ser "narcisada" para assumir
Enfim, a autoficção tem a ver com a terapia? Existe um riscos, enfrentar perigos.
vínculo óbvio entre literatura e psicanálise, como mostraram [Ph. L.] V ou ousar fazer uma comparação divertida: o nar-
os surrealistas com a escrita automática, Leiris, Doubrovsky cisismo é igual ao colesterol, há o bom e o ruim, o problema
e toda uma literatura de analisados. As duas disciplinas é o excesso do ruim: se só fabricamos colesterol ruim, tudo
procedem de um esforço semelhante de rememoração e dá errado. Mas sem narcisismo, a vida não é possível. ( ... )
de liquidação pela linguagem, embora a transferência seja A acusação de narcisismo é tipicamente francesa. Existe
impossível, pois o leitor não pode se encarregar disso. um ódio nacional que não existe no universo anglo-saxão
Contudo, não se pode crer seriamente em uma função protestante onde o "eu" não é visto de forma trágica. De
mágico-paliativa da escrita. Não escrevemos para nos livrar onde vem, em nossa cultura, esse medo do "eu"? De Pascal,
das pessoas desaparecidas, mas para reencontrá-las, ao talvez, para quem "o eu é detestável".
contrário, no universo da linguagem; trata-se sempre de Na cultura alemã, a escrita de si também não é objeto de
um consolo derrisório, pois só encontramos fantasmas, e ostracismo.
estamos condenados a vagar numa vida entre as sombras,

232 Entrevista a Annie Piba rot DO ISEUS EM CONFRONTO 233


[Ph. L.] A tradição crítica sobre a autobiografia nos círculos Nada servia para ela e ao longo dos meses ela repetia: "Estou
anglófonos e germanófonos data do século XIX, ao passo avançando, estou na página 40, página tal."
que, na França, ela data dos anos de 1960. Ela fazia o que bem queria! Ela sabia o que queria fazer.
Quando perguntei como, ela respondeu que compunha
Escrever o eu, hoje? as coisas na cabeça, escrevia duas páginas e depois voltava
O que há de particular na escrita de si, hoje? Como ajudar, à meditação. De fato, ela escrevia como falava, com uma
acompanhar quem quer escrever sobre si? violência por vezes celiniana! No caso dela, prefiro o termo
[Ph. L.] Os nove manuais para aprender a escrever uma "expressão" a "escrita".
autobiografia cuja lista eu distribui se dirigem a pessoas Voltando aos manuais para aprender a escrever, eles
atormentadas pelo problema da transmissão, sem exigência funcionam frequentemente mais como livros de legitimação
literária. A APA 6 recebe uma gama variada de textos mais do que como livros de receitas. Os autores dão exemplos
estimulados pela necessidade de memória do que pela ne- tirados de suas próprias autobiografias. Eles exercem uma
cessidade de literatura. Na maioria dos casos, o ponto im - função de incentivo, mais psicológico do qu e técnico. Eles
portante não é como, mas para quem escrever. O problema seguem em geral o esquema seguinte: legitimação do de-
é o destinatário, a legitimação. A partir do momento em sejo de escrever, fontes ou arquivos da memória, redação,
que ele é resolvido, a máquina de escrever pode começar composição e cronologia, diálogos, descrições, releitura,
ou voltar a funcionar. digitação, edição.
Tive uma experiência pessoal de guiar uma pessoa sem [Ph. V.] É su rpreendente, fascinante, assustador também,
cultura, que jamais - ou muito pouco! - foi à escola, em ver esses livros, essas instruções! Se eles puderem incenti-
suma, a empregada de meus pais, que reencontrei graças var muita gente a escrever, a fazer da escrita o instrumento
à AP A. Cinquenta anos depois, ela me falou de seu desejo de sua paixão, fico sinceramente feliz. E admiro muito
de escrever uma autobiografia, mas não sabia como fazer; a imensidão do trabalho feito por Philippe Lejeune para
tentei guiá-la, propondo um vaivém, um diálogo, cada um democratizar a escrita e sua preocupação permanente em
escrevia uma página, respostas a perguntas, fragmentos etc. teorizar suas experiências (por exemplo, aqui, o desejo de

234 Entrevista a Annie Pibarot


DO ISEUS EM CONFRONTO 235
legitimação). Temos de ser gratos a ele por tudo o que vem [Ph. L.] Pode-se contudo acompanhar a escrita. Escrever
fazendo por nós há tantos anos. se aprende, ainda que nem todo mundo chegue a bons
Ao mesmo tempo, no que diz respeito aos manuais, há resultados.
algo que me incomoda no fato de convencer as pessoas que,
por meio de exercícios, a escrita se torna acessível a todos. Por que escrever a própria vida?
Não é verdade. A escrita é um trabalho, e mais ainda, um
Quem é o destinatário da escrita de si? Alguém que existe ou
investimento. Esses manuais me parecem ser engodas para
um destinatário interno? Qual é o lugar do outro na escrita?
quem espera mais e outra coisa, e nunca compreenderá
(Ph. V.] Quanto a mim, a questão do destinatário não se
porque seu texto, que seguiu à risca todas as instruções
coloca de modo algum. Se eu o fizesse, creio que não es-
do manual, foi recusado. Não existe método para escrever
creveria. Isso me inibiria completamente. Com frequência
(observo, aliás, que os autores de manuais para aprender a
é no momento em que o livro sai que me dou conta do que
escrever não são escritores de verdade e que eles próprios dão
escrevi, em L'étreinte [O abraço] ou La derniere année [O
conselhos, mas não deram a prova literária de que sabem
último ano] especialmente, em que revelo sentir ciúmes de
escrever). Claro que é possível explicar como estruturar
uma escritora bem conhecida e o alcoolismo de meu pai.
um texto, dar diretivas, organizar ideias, mas isso não irá
No meu caso, a tomada de consciência é bem tardia, ela
muito além e imagino que não se ultrapasse o estágio da
vem depois da escrita quando descubro o livro que escrevi.
expressão. Não se sabe como um livro é escrito, é feito.
Será que escrevo para os outros? Francamente não, isso
Cada romance é diferente. Escrever, creio eu, não é apenas
me parece suspeito, hipócrita, esse dom absoluto de si, o
um exercício mecânico, um saber construir - isso, o hábito
simples fato de dizer "escrevo para os outros". Não há nada
da leitura permite a quase todos nós fazer mais ou menos
mais egoísta, individualista, solipsista que escrever, seja um
bem-, escrever é, sobretudo, ter sua própria voz, seu estilo,
romance, seja uma autobiografia. Escreve-se primeiramente
sua identidade. Isso, os melhores manuais não ensinam.
e antes de tudo para si mesmo, mas esse "eu" se faz leitor
Há uma zona cega que escapa à reflexão. Não há mais
de si mesmo, se desdobra, quando escreve. Há uma dupla
intervenção da consciência; "a coisa" se escreve. Existe um
consciência que age. Ele escreve como se o leitor fosse ele.
parentesco entre o ato de escrever e a experiência de se soltar.
(Ph. L.] Entretanto, você acaba publicando!

236 Entrevista a An ni e Pibarot DOIS EUS EM CON FRONTO 237


[Ph. V.] Sim, mas não preciso pensar numa categoria de [Ph. V.] O que dizer dos diaristas que publicam em vida e
leitores, num leitorado, para escrever. Se esse leitor existe escrevem sabendo que serão publicados?
fora de mim, ele é anônimo, é alguém que não existe para [Ph. L.) Renaud Camus publica seu diário com muita cora-
mim, o leitor não é ninguém. Para dizer a verdade, não gem, impondo-se censuras e precauções, pois sabe que vai
penso nisso. Talvez devido ao fato de nunca ter certeza de ser publicado, mas assume o risco de desagradar e chocar.
que vou publicar. Mesmo depois de 10 anos, sempre me [Ph. V.] Mas isso não modifica a sinceridade do diarista?
coloco na posição de alguém que jamais publicou. O fato Será que o diário pode mesmo assim conservar toda sua
de acreditar que conservei essa virgindade deve me dar autenticidade?
maior liberdade. [Ph. L.] Talvez seja uma escrita de escritor? Léautaud, inver-
[Ph. L.] Proponho então falar sobre a escrita do diário que samente, não publica logo para conservar sua liberdade de
permite aceitar a ausência de destinatário. O diarista pode expressão. Seu diário, aliás, não está totalmente publicado.
escrever sem desejar ser lido. Prova disso é que frequente- A questão do destinatário é dupla, o destinatário pode ser
mente destrói o diário. uma pessoa real, por quem se deseja ser lido, mas também
O diário implica a possibilidade do segredo, um outro uma figura interna à escrita, a alteridade que estrutura o
uso do tempo, muito importante para a profundidade e a discurso e permite sua emergência. Aquela "testemunha
autenticidade da escrita. Na internet, a escrita é feita para interna" que fabricamos não seria uma figura da alteridade?
ser consumida imediatamente. Já o diário privado pode
renunciar a todo e qualquer consumo, abrir-se para wn Por meio de quais dispositivos?
tempo imenso e vazio. Em Vida de Henry Brulard, Stendhal
Será que podemos invocar a noção de ';usto desvio", que
escreve que, para poder escrever a verdade, ele precisa es- tomo emprestada de um estudo do escritor François Emma-
crever para daí a 50 anos! "Falar para pessoas das quais se nuel sobre a obra de Henry Bauchau? Em outras palavras, a
ignora a mentalidade, o tipo de educação, os preconceitos, a
regulação da distância entre a vida e a escrita é, ao mesmo
religião! Que incentivo para ser verdadeiro, e simplesmente
tempo, fixa em cada um e muito diferente de uma pessoa
verdadeiro, só isso é sólido."
para a outra. Tive, especialmente, a experiência de casos
diferentes e opostos de participantes de oficinas de es.crita,

238 Entrevista a Annie Pibarot DO ISEU SEM CONFRONTO 239


uns escrevendo o mais próximo possível de si, sofrendo com etc.) que permitem, ao mesmo tempo, desligar o dispositivo
o que lhes parece ser uma falta de imaginação, e outros que, afetivo e por em movimento o dispositivo intelectual. Não
ao contrário, se proíbem toda e qualquer forma ou expressão devemos acreditar que tais modelagens do vivido sejam
da intimidade. artifícios contrários ao engajamento autobiográfico e que a
[Ph. V.] O "justo desvio" é o ângulo pelo qual uma primeira arte só possa conviver com a ficção. De Montaigne a Leiris,
ou terceira pessoa (pouco importa a postura da instância de Rousseau a Sarraute, essa via mostrou sua fecundidade
de enunciação) se apropria de um tema, é a distância que e, sem passar pela ficção, ainda restam muitos caminhos a
esta se esforça para respeitar em relação ao tema, é o acordo serem inventados!
íntimo, sensível, que lhe faz experimentar um estilo, a íntima
convicção que nos faz dizer a respeito de um texto: "É isso." (Esta entrevista foi publicada em Philippe
O "justo desvio" tem algo de irrefutável. Vilain, L'autofiction en théorie suivi de
[Ph. L.] Eu falaria de distanciamento, da arte de utilizar a Deux entretiens avec Philippe Sollers e
distância como meio de se aproximar de si mesmo. Philippe Lejeune, Chatou, Les Éditions de la
Transparence, 2009, p. 105-118. Título ori-
Mas a ficção (fabricação de um universo de referência
ginal: "Moi contre Moi: Philippe Lejeune
diferente do que sabemos ser a realidade) é apenas uma das
& Philippe Vilain".)
modalidades possíveis desse distanciamento. Pode-se tomar
distância, conservando a preocupação de dizer a verdade.
Essa posição de desvio, de segundo grau, pode ser obtida
Notas
pelo que chamarei de compreensão ou figuração.
1
Philippe Vilain está se referindo a Autofiction en théorie suivi de Deux entretiens
Compreensão: a análise e a reconstrução inteligível de avec Philippe Sollers e Philippe Lejeune, Paris, Les l?.ditions de la Transparence,
uma experiência particular, que nos separa de nosso vivido 2009. (N.T.)

e permite ir, por meio dessa inteligibilidade, ao encontro ' P. Lejeune, L'autobiographie en France, Paris, Armand Colin, 1971, p. 10 (igual-
mente para as citações seguintes). Cf. Le pacte autobiographique, Paris, Seuil,
dos outros. 1975, p. 14: "Narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua
Figuração: existem figuras de enunciação (falar de si na própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a
história de sua personalidade"'
terceira pessoa) e figuras de enunciado (metáforas, alusões

240 Entrevista a Annie Pibarot DOIS EUS EM CONFRONTO 241


--
3 Philippe Lejeune, L'autobiographie en France, Paris, Armand Colin, 1971, p.
23.
SOBRE OS AUTORES
4
Ibidem, p. 30.
5 Idem, Signes de vie. Le pacte autobiographique 2, Paris, Seuil, 2005, p. 17.
6 Sigla de ''Association pour l'autobiographje et pour le patrirnoine autobiogra-
pruque'' [Associação pela autobiografia e pelo patrimônio autobiográfico],
fundada em 1992, por Philippe Lejeune e Chantal Chaveyrial, cuja sede e o
acervo de escritas de si não publicadas se encontram na biblioteca murucipal
da cidade de Ambérieu-en-Bugey, França. (N.T.)

Jacques Lecarme
Foi professor de literatura francesa na Universidade de
Paris-Nord Villetaneuse. Professor emérito na Universidade
de Paris III Sorbonne Nouvelle. Além de numerosos artigos
sobre as escritas de si, publicou L 'autobiographie (1977,
2002), com Eliane Lecarme, Drieu La Rochelle, ou Le bal
des maudits (2001) e André Malraux, d'un siecle à l'autre
(2002), com Jean-Claude Larrat.

Jean-Louis Jeannelle
Professor de literatura na Universidade de Paris-Sorbonne
e pesquisador do Institut Universitaire de France. É autor
de Malraux, mémoire et métamorphose (2006) e de Écrire
ses Mémoires au xx' siecle: déclin et renouveau (2008). Or-
ganizou, em colaboração com Catherine Violet, a coletânea
Genese et autofiction (2007). É organizador da revista on-
-line Fabula-LHT (http:/ /www.fabula.org/lht/).

242 Entrevista a Annie Pibarot 243


Philippe Gasparini Serge Doubrovsky
Nascido em 1953, na região de Lyon, exerceu diferentes Escritor e ensaísta, criou o termo "autoficção" em seu
atividades antes de retomar seus estudos de Letras, aos 40 romance Fils (1977). Dedicou-se ao teatro de Corneille
anos. Sua tese sobre o romance autobiográfico foi publicada (Corneille et la dilectique du héros, 1963), à Nova Crítica
em 2004, com o título Est-il je?. É autor de Autofiction, une (Pourquoi la nouvelle critique, Critique et objectivité, 1966),
aventure du langage (2008). à obra de Marcel Proust (Laplace de la madeleine. Écriture
et fantasme chez Proust, 1974), e à escrita de si (Auto-
Philippe lejeune biographiques, de Corneille à Sartre, 1988). Além de Fils,
Foi professor de literatura francesa na Universidade de publicou Le jour S (1963), La dispersion (1969), Un amour
Paris-Nord Villetaneuse até 2004. Autor de Le pacte auto- de soi (1982), La vie, l'instant (1985), Le livre brisé (1989),
biographique (1975), Le moi des demoiselles (1993), em L'apres-vivre (1 994), Laissé pour conte (1999) e Un homme
colaboração com Catherine Bogaert, Les brouillons de soi de passage (2011).
(1998), Un journal à soi. Histoire d'une pratique (2003),
Signes de vie (2004), O pacto autobiográfico: de Rousseau Vincent Colonna
à internet (Ed. UFMG, 2008), entre outros. Atualmente, Estudou filosofia na Sorbonne e defendeu, sob a orienta-
dedica-se à preparação do livro Aux origines du journal ção de Gérard Genette, em 1989, a primeira tese sobre a
personnel, France, 1750-1815, disponível em <www.auto- autoficção, disponível on-line. Em Autofiction & autres
pacte.org>. É cofundador e presidente da Association pour mythologies littéraires (2003), expõe uma "segunda teoria",
l'Autobiographie (APA). que dá menos importância ao nome próprio do escritor e
reunifica todos os tipos de autofabulação. Em 2010, publicou
Philippe Vilain L'art des séries télé ou comment surpasser les Américain e,
Escritor e doutor em Letras Modernas pela Universidade sob o pseudônimo Barouk Salamé, os romances policiais:
de Paris III Sorbonne Nouvelle. Publicou, entre outros, os Le testament syriaque (2009), Arabian thriller (201 1) e Une
romances La derniere année (1999), Le renoncement (2001), guerre de génies, de héros et de lâches (2012).
L 'été à Dresde (2003), Faux-pere (2008), Pas son genre (2011)
e os ensaios Défense de Narcisse (2005), L'autofiction en
théorie (2009), Dans le séjour des corps. Essai sur Marguerite
Duras (2010).

244 SOBRE OS AUTORES SOBRE OS AUTORES 245


105 SOBRE A AUTOFICÇÃO ENSA
A presente edição foi composta pela Editora UFMG
OENSAIOS SOBRE A AUTOFICÇÃO
e impressa pela Imprensa Universitária UFMG em
sistema offset, papel pólen soft 80g (miolo) e cartão
ICÇÃOENSAIOS SOBRE A AUTOFI
supremo 250g (capa), em fevereiro de 2014. AUTOFICÇÃOENSAIOS SOBRE A A
BRE A AUTOFICÇÃOENSAIOS SOB
OS SOBRE A AUTOFICÇÃOENSAIO
ENSAIOS SOBRE A AUTOFICÇÃOE

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