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ENSAIOS SOBRE
AAUTOFICÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
RE ITOR Clélio Campolina Diniz
VICE-REITORA Rocksane de Carvalho Norton
Jovita Maria Gerheim Noronha
E DITORA UFMG Maria Inês Coimbra Guedes
DIRETOR Wander Melo Miranda
Tradução
VICE-DIRETOR Roberto Alexandre do Carmo Said
CONSELHO EDITORIAL
Wander Melo Miranda (PRESIDENTE)
Ana Maria Caetano de Faria
Danielle Cardoso de Menezes
Flavio d e Lemos Carsalade
Heloisa Maria Murgel Starling
Márcio Gomes Soares Belo Horizonte
Maria Helena Damasceno e Silva Megale
Editora UFMG
Roberto Alexandre do Carmo Said
2014
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© 2014, Os autores
© 2014, Editora UFMG
SUMÁRIO
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização
escrita do Editor.
7
nos devolve as definições que lhe atribuímos",2 como pro-
atualmente entre nós. E essa disseminação é operada em
põe Philippe Gasparini, em seu artigo presente neste livro.
três esferas: os escritores que se apropriam do termo para
definir suas próprias obras; o mundo acadêmico, no qual a Philippe Lejeune foi o primeiro a estabelecer, em 1992,
investigação sobre essa categoria conceituai toma corpo em a trajetória da autoficção, na abertura do colóquio Autofic-
eventos e comunicações, em teses, dissertações e artigos; tions & cie, realizado na Universidade de Nanterre. Lejeune
lança mão da metáfora de uma peça em cinco atos, desta-
a mídia especializada, que mobiliza o termo em entrevis-
cando, de maneira bem-humorada, cinco datas. O primeiro
tas e resenhas. Além disso, a etiqueta "autoficção" não se
ato, "1973", encena a elaboração do conhecido quadro de
restringe mais ao campo da literatura, estendendo-se às
Lejeune que explicita o conceito de "pacto autobiográfico",
outras artes. Mas o que se percebe é que não há de fato
cuja casa vazia combinando homonímia entre autor e perso-
consenso nem entre os críticos, nem entre os escritores
nagem e pacto romanesco dará margem a Doubrovsky para
que a praticam, que são, aliás, com frequência, agentes
forjar a noção de autoficção. O segundo ato, "1977", evoca
duplos. Vale lembrar, nesse sentido, as considerações de
Silviano Santiago de que "a autoficção não é forma simples o diálogo crítico de Doubrovsky com o quadro de Lejeune,
nem gênero adequadamente codificado pela crítica mais a publicação de Fils e de textos em que o conceito, então es-
treitamente vinculado à psicanálise, começa a ser teorizado.
recente". 1 De fato, tanto a fortuna crítica da autoficção,
O terceiro ato, "1984", lembra o trabalho de ampliação do
quanto sua apropriação pelos autores para designar suas
termo por Jacques Lecarme, que transporta a noção para
obras deixam antes a impressão de um debate vertiginoso,
à maneira de Pirandello. outros textos, afrouxando a definição doubrovskiana. O
Esta coletânea pretende, através de ensaios de críticos quarto ato, "1989", explica como a tese de VincentColonna
e escritores franceses consagrados, apresentar ao leitor estende a definição de Doubrovsky e dá ao termo ficção
um sentido "amplo abrangendo tanto o ficcional (a forma
brasileiro um panorama da história da autoficção e de
literária), quanto o fictício (a invenção mesma do conteú-
sua recepção na França e trazer as tentativas de teorização
do)". O quinto ato, "1991-1992", coloca em cena o próprio
e a controvérsia em torno da categoria, para alimentar,
colóquio Autofictions & cie, sua organização e realização. O
dentro de nosso contexto, a reflexão e o debate sobre essa
texto de Lejeune antecipa as questões e divergências que se
"palavra-narrativa", "palavra-teste, palavra-espelho, que
APRESENTAÇÃO 9
8 Jovita Maria Gerheim Noronha
revelarão mais tarde na discussão sobre o conceito e em sua é de que a autoficção não se restringiria a um período em
apropriação: "Mas seria de fato um gênero? Como poderia que, como quer Doubrovsky, "a relação do sujeito consigo
ela englobar sob um mesmo nome os que prometem dizer mesmo mudou", mas englobaria um conjunto bem mais
toda a verdade (como Doubrovsky) e os que se entregam amplo de textos de outras épocas e áreas geográficas, daí a
livremente à invenção?", se pergunta o autor. ideia de" extensão máxima" de seu campo, que será sugerida
O segundo artigo que compõe este volume apresenta as e discutida por Jacques Lecarme.
definições propostas por Vincent Colonna, em sua tipo- O ensaio de Lecarme, também apresentado no Colóquio
logia, extraídas de seu livro de 2004, no qual ele revisita a de Nanterre de 1992, deve sua importância ao fato de ter
tese mencionada por Lejeune para conceber uma "teoria II inaugurado, como assinala Doubrovsky, a "soma impres-
da autoficção", abandonando a narratologia e dando mais sionante de estudos" sobre a autoficção e, n esse sentido,
ênfase à História, às obras e a seus efeitos. Colonna cria resgata os elementos principais da recepção imediata da
o termo "autofabulação" para designar uma prática, um noção. Reconhecendo nas críticas ao modelo autoficcional
procedimento, que remontaria, segundo ele, ao início de doubrovskiano a persistência da tradicional recusa do gê-
nossa era, com a obra de Luciano de Samósata, Uma histó- nero autobiográfico, a "viva hostilidade contra uma familia
ria verdadeira. A seu ver, o modelo doubroviskiano seria de textos", Lecarme toma a defesa da autoficção - que de-
apenas uma das manifestações da autoficção, a "autoficção nomina "autobiografia desenfreada" - tal como é praticada
biográfica", que ele chega a considerar, em carta a Jean-Louis por Doubrovsky e, antes dele, por outros autores. Ele chama
Jeannelle, como "o renascimento mascarado do bom e velho a atenção para um aspecto importante da obra de Doubro-
romance autobiográfico" e distingue de outras estratégias vsky: o fato de que, depois de Fils e dos textos teóricos sobre
de "autofabulação": a autoficção fantástica, em que o autor o conceito, "a autoficção deixou de se opor à autobiografia,
inventa para si uma vida; a autoficção especular, em que o para se tornar senão um sinônimo, p elo menos uma variante
escritor, através de um "procedimento refletor", se torna um ou um ardil". Lecarme se opõe dessa forma à concepção
dos personagens de sua narrativa fictícia; a autoficção intru- extensa da autoficção, proposta por Vincent Colonna, em
siva (autoral), em que um narrador-autor se manifesta, sem seu trabalho de doutorado, e às críticas do orientador da
participar da intriga como personagem. Assim, a hipótese tese, Gérard Genette, que considera, em 1991, esse modelo
21
20 iovita Maria Gerheim Noronha
As soluções que decretei como impossíveis seriam mesmo im - subitamente ligou seu texto crítico e o que eu estava escrevendo
possíveis? ... O herói de um romance declarado como tal poderia senão às cegas, pelo menos na penumbra. [Carta a Philippe Le-
ter o mesmo nome que o autor? Nada impediria que a coisa exis- jeune, novembro 1977]
tisse e seria talvez uma contradição interna que produziria efeitos
interessantes. Mas, na prática, nenhum exemplo vem à mente . .. Em seu "romance" intitulado Fils, Serge Doubrovsky
dará a seu personagem seu próprio nome. Essa ambiguidade
Então aquela casa cega ficaria vazia ... Ele fica pensando do contrato de leitura traduz a ambiguidade de seu projeto:
no livro de Mamice Sachs, Le sabbat [O sabá] (1946), mas veracidade da informação, liberdade da escrita. Ele explode
acaba concluindo, talvez com razão, que o subtítulo romance os tijolos que lacram a janela e fmca sua bandeira: Fils é
era de responsabilidade do editor ... Então a casa cega fica batizado "autoficção".2 A palavra não serve de subtítulo
mesmo vazia. Todos nós temos nossas cegueiras .. . genérico (a indicação será "romance"), mas é proposta na
quarta capa do livro:
André Malraux
André Gide
Tenho de recusar tudo o que eu poderia escrever para Embora quase não tivesse bebido, estava bêbado daque-
me explicar, me desculpar, me defender. Imagino sempre la mentira, daquele calor, do universo fictício que estava
prefácios assim para L 'immoraliste [O imoralista], Les faux- criando. Quando dizia que se mataria, não acreditava em si
mesmo; mas já que ela acreditava, ele entrava num mundo
-monnayeurs [Os moedeiras falsos], La symphonie pastorale
em que a verdade não mais existia. Não era nem verdadeiro
[A sinfonia pastoral], sobretudo um no qual eu exporia o
nem falso, mas vivido. E já que nem seu passado que acaba-
que entendo por objetividade romanesca, estabeleceria dois
va de inventar, nem o gesto elementar e supostamente tão
tipos de romance, ou ao menos duas maneiras de olhar e
próximo no qual se fundamentava sua relação com aquela
pintar a vida que, em certos romances (Whuthering Heights,
mulher não existiam, nada existia. O mundo cessara de pe-
os de Dostoievski), se reúnem. Uma maneira exterior, e que
sar sobre ele. Libertado, passara a viver apenas no universo
é chamada comumente de objetiva, que vê primeiramente o
romanesco que acabava de criar, seguro do laço que toda
gesto de outrem ou o acontecimento e o interpreta. A outra
piedade humana estabelece diante da morte.
que se dedica primeiramente às emoções, aos pensamentos
e se arrisca a permanecer impotente para pintar algo que La condition humaine (1933), Folio, p. 247.
não tenha sido primeiro sentido pelo autor. Sua riqueza e
complexidade, o antagonismo de suas múltiplas possibilida- Drieu la Rochelle
des vão possibilitar uma maior diversidade de suas criações. Minha obra romanesca é falha ( ... ) Mas, refletindo me-
Mas é dele que tudo emana. Ele é o único responsável pela lhor, usando de mais habilidade e cuidado, eu poderia ter
verdade que revela, o único juiz. Todo o céu, todo o inferno encontrado uma forma mais condizente com meu pouco
de seus personagens estão nele. Ele não pinta ele próprio, fôlego, com meu apego ao real tal qual. Algo entre o diário
mas poderia ter-se tornado o que pinta, se não tivesse se e as memórias. Como tantos outros franceses. Falhei nis-
tornado ele mesmo. É para poder escrever Hamlet que so por outra razão: a falta de coragem moral. Poderia ter
Shakeaspeare não se deixou transformar em Otelo. substituído a falta de dons pela sinceridade, indo fundo na
8 de fevereiro de 1927 confissão.
Journal 1889-1939, Gallimard, Pléiade, p. 829.
5 Quatorze anos depois de sua tese, Vincent Colonna publica Autofiction & autres
mythomanies littéraires [Autoficção & outras mitomanias literárias], Mayenne:
Vincent Colonna
Aautoficção fantástica
Definição - O escritor está no centro do texto como em uma
autobiografia (é o herói), mas transfigura sua existência e
sua identidade, em uma história irreal, indiferente à veros-
similhança. O duplo ali projetado se torna um personagem
fora do comum, perfeito herói de ficção, que ninguém teria
a ideia de associar diretamente a uma imagem do autor.
Diferentemente da postura biográfica, esta não se limita a
acomodar a existência, mas vai, antes, inventá-la; a distância
entre a vida e o escrito é irredutível, a confusão impossível,
a ficção de si total.
A aproximação com a pintura é esclarecedora. No Re-
nascimento, há um tipo de retrato chamado in figura no
qual o pintor se insere na tela, emprestando seus traços
a uma figura religiosa ou histórica. O dublê do pintor se
destaca frequentemente por seu olhar que foge do espaço do
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quadro, voltado para o espectador. Dürer pintou a si mesmo , tête-à-tête que nunca aconteceu. Em direção bem diferen-
sob a figura do Salvador, em um Cristo ultrajado de 1493, te, como Van Gogh, e também Rembrandt, que nisso foi
que podemos comparar a um autorretrato do mesmo ano. insuperável, Frida Kahlo e Lucian Freud, que levaram sua
Filippino Lippi e Masaccio figuram nos afrescos da capela nudez mortificada ao mais alto grau, pintores praticaram
Brancacci, como espectadores assistindo aos Atos de Pedro. 1 uma forma ascética de autorretrato, mais empenhados em
Segundo a tradição, em seu quadro Davi com a cabeça de desvelar de maneira clínica as corrupções de seus próprios
Golias, Caravaggio teria desenhado seus próprios traços rostos e corpos do que preocupados com a busca de seme-
para animar o rosto decapitado de Golias. Os exemplos po- lhança. Há, no entanto, uma distância entre essas licenças
deriam ser multiplicados: em 1568, em seu Vidas dos mais I pictóricas (vejam a liberdade gráfica do Autorretrato com
excelentes pintores, Vasari já contava 80 pintores presentes, caveira, 1972, de Picasso) e uma representação de si situada
em um mundo mítico ou lendário. A autoficção fantástica
sob essa forma in figura, em seus afrescos ou retábulos. Os f
modernos continuaram explorando o procedimento com a difere assim da fabulação biográfica, da mesma maneira
predileção, ao que parece de inspiração luterana, por uma que a representação in figura se distingue do autorretrato,
transfiguração em Cristo: é o que se observa em Samuel tradicional ou ascético.
Palmer e Gauguin. Em Ensor, Dalí, Roy Lichtenstein ou Curiosamente, uma das primeiras fotografias, e a primeira
David Hockney, o gesto visa materializar a fantasmagoria e ficção da história da fotografia, utiliza a encenação in figu-
a mitologia pessoal: como O autorretrato mole com toucinho ra: é o célebre autorretrato O afogado (1840) de Hippolyte
assado (1941), no qual Dalí pintou seu "soft self portrait" Bayard, que o mostra quase nu, enrolado em um lençol, o
e uma variação sobre o motivo do relógio mole; como o corpo muito branco apoiado em uma banqueta, com um
hábil Autorretrato de 1978, no qual o rosto de Lichtenstein rosto sorridente de criança doente e, à sua direita, um grande
aparece através de um espelho que reflete a famosa trama, chapéu romântico. Ele queria protestar, dessa maneira, contra
)\marca de fabricação desse pintor da Pop Art; ou ainda, a a falta de reconhecimento oficial de sua invenção que, no
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t' \gravura de Hockney, O artista e seu modelo (1974), que entanto, tinha uma técnica de fixação das imagens superior à
W mostra Hockney e Picasso sentados frente a frente, o pri- de Daguerre. Além do tema pessoal e da razão técnica dessa
meiro nu e o segundo olhando para um croqui, em um pose, a escolha é intrigante. Por que Bayard não optou por um
Assim como agora os animais falam e a terra dá leite e mel, eia na memória dos homens. Um personagem de autor
do interior do homem também soa algo de sobrenatural: ele se fabulado e a imagem mais ou menos magnificante de um
sente como um deus, ele próprio caminha agora tão extasiado e escritor são, para a faculdade de imaginar, duas entidades
enlevado, como vira em sonho os deuses caminharem. O homem igualmente fictícias, duas identidades de contorno instável
não é mais artista, tornou-se obra de arte ... 1
que existem apenas na proporção de sua capacidade para
produzir emoções e sonhos. Sua eficácia imaginária não é,
certamente, a mesma, mas tendo a crer que todos os escri-
Esse processo de reificação artística, através do qual o
tores de renome nos vêm à mente, além de seu estatuto de
escritor não é mais apenas uma pessoa, mas também objeto
"descrição definida" (eles designam seus escritos como uma
estético é aquele destino estranho sobre o qual Gombrowicz
etiqueta), como papéis quase míticos, suscitando a mesma
se interrogava em seu diário. Legitimamente, é o que acon-
mistura de investimento e afetos que os heróis de romance.
tece ao escritor que se autofabula em um trecho de literatura
TIPOLOGIA DA AUTOFICÇÃO 53
52 Vincent Colonna
Picasso, tradição, em princípio, distinta daquela do autorre- por uma primavera imprevista, o escritor pode se tornar
trato dito autônomo - assim como a fabulação especular se personagem, o personagem escritor, o leitor pode se ver no
diferencia da autoficção autobiográfica. Em L'reil et l'esprit meio do complô maquinado pela ficção, transformado em
[O olho e o espírito] (1964), pequeno texto sugestivo sobre sujeito da história, como Calvino demonstrou de maneira
pintura, Maurice Merleau-Ponty associa essa tradição do surpreendente em seu romance Se um viajante numa noite
retrato do pintor pintando à presença de um espelho dentro de inverno (1979).
do quadro; os dois proclamam a reversibilidade do vidente ( ... )
e do visível, da essência e da existência, do imaginário e do Afirmei que a autoficção sempre tinha algo de especular:
real; "uma universal magia que transforma as coisas em es- ao por em circulação seu nome, nas páginas de um livro do
petáculos, os espetáculos em coisas, eu em outrem e outrem qual já é o signatário, o escritor provoca, quer queira quer
em mim". Essa reversibilidade é, às vezes, expressamente não, um fenômeno de duplicação, um reflexo do livro sobre
o objeto da representação, como no autorretrato de 1646, ele mesmo ou uma demonstração do ato criativo que o fez
no qual Johannes Gumpp se expõe de costas, ao passo que nascer. Em contrapartida, e essa é outra diferença entre as
dois reflexos simétricos de seu rosto, sobre um espelho e duas figuras, uma mise en abyme não invoca necessaria-
sobre sua tela, o enquadram e olham para o espectador. No mente a fabulação de si: Hamlet contém, como se sabe, uma
primeiro plano do quadro, mergulhados em semiobscurida- pequena peça encenada no castelo de Elseneur, mas a re-
de, paralelos aos dois reflexos do rosto do pintor, um gato transcrição dessa performance teatral não põe Shakespeare
e um cachorro se espreitam e estão prestes a se dilacerar em cena, nem faz parte da lista das obras do dramaturgo
mutuamente, como se a metamorfose do vidente e do visível elisabetano. Ao passo que L'impromptu de Versailles [O
não fosse possível sem violência. improviso de Versailles] de Moliere, peça singular, na qual
Mas com ou sem o motivo do espelho, violenta ou a tradição do teatro dentro do teatro encontra a metalepse,
pacífica, essa reversibilidade é a lição capital de todos os põe em cena um chefe de trupe de nome Moliere que im-
procedimentos refletores, qualquer que seja a escala, o dis- provisa um espetáculo para o rei: o improviso anunciado
positivo ou o campo artístico. Ela cochila no fundo das obras pelo título.
literárias e, sem aviso prévio, sua hibernação é interrompida
1
64 Vincent Colonn a TIPOLOGIA DA AUTO FICÇÃO 65
interior; e seus projetos mais sérios, suas realizações mais
tangíveis, não são mais do que sonhos solidificados. AUTO FICÇÃO: UM MAU GÊNERO?
(Este texto corresponde a parte do livro
Autofiction & autres mythomanies littéraires,
Auch, Tristram, 2004.)
' Honoré de Balzac, Facino Cane, Paris, Le Club Français du Livre, 1953, lliuvre
Como foi, por diversas vezes, mencionado nessa coletâ-
de Balzac, t. 2. nea, 1 o termo autoficção foi lançado, no mercado francês,
5
Gustave Flaubert, Bouvard et Pécuchet, Paris, Gallimard, 1979, p . 205, por Serge Doubrovsky em Fils (1977).2 Foi no peritexto
capítulo 5.
que surgiu o neologismo, uma vez que a quarta capa do
' Julien Gracq, En lisant en écrivant, Paris, Corti, 1980, p. 44-45.
romance, em caracteres vermelhos e em itálico, propunha
7
Idem, En /isant en écrivant.
o termo, preferindo-o à autobiografia e em relação com
uma "autofricção, pacientemente onanista". Esse emprego
muito lúdico foi justificado e teorizado pelo autor, em
curto artigo de 1980, intitulado "Autobiographie/vérité/
psychanalyse" [Autobiografia/verdade/psicanálise ].3 Ad-
mitiremos aqui, nos apoiando no quadro das narrativas
construído por Philippe Lejeune e aperfeiçoado por Serge
66 Vincent Colonna 67
Doubrovsky, que a autoficção é inicialmente um dispositivo narrador sisifístico arrastando os grilhões de uma culpa cada
muito simples: ou seja, uma narrativa cujo autor, narrador vez mais opressora. Como W oody Allen, e com a mesma
e protagonista compartilham da mesma identidade nomi- graça, Doubrovsky nos mostra variações ininterruptas sobre
nal e cuja denominação genérica indica que se trata de um seu vivido imediato. Como em Roland Barthes, a ficção se
romance. 4 Enfim, Doubrovsky foi o primeiro a preencher limita a "um pensamento dos efeitos"; mas, à diferença da
a casa cega identificada por Lejeune. Ao longo do tempo, autoficção barthesiana, esse "pensamento dos efeitos" em
entretanto, com Un amour de soi [Um amor de si] (1982),5 Doubrovsky não elimina de modo algum a "instância de
Le livre brisé [O livro partido] (1989),6 L'apres-vivre [Depois verdade".7 A metáfora da ficção como "tênue descolamen-
da vida] (1994), o narrador toma distância do neologismo, to" conviria a esses dois textos que reivindicam o estatuto
sem renegá-lo completamente. A autoficção deixou de se de romance.
opor à autobiografia, para se tornar senão um sinônimo, Do lado oposto a essa definição minimalista, Vincent
pelo menos uma variante ou um ardil: Doubrovsky, assim Colonna, em sua tese de doutorado, ainda inédita (mas
como Descartes, se aventuraria mascarado, por detrás da cuja publicação é altamente desejável), dá uma extensão
alegação peritextual de "romance", alegação que não custa máxima ao campo da autoficção, incluindo nele Dom Qui-
nada a ninguém e possibilita todo tipo de salvo-conduto. chote, Siegfried et le limousin [Siegfried e o limosino] de
O que resta então da ficção, além de um anúncio genérico Giraudoux, Céline e Proust. 8 O autor dá ênfase à invenção de
ao qual nem todos os leitores vão necessariamente aderir, uma personalidade e de uma existência, isto é, a um tipo de
mas que permite evitar as críticas? Jogos de condensação ficcionalização da própria substância da experiência vivida.
e deslocamento que reorganizam o tempo da vida em um Os limites de um campo tão vasto consistiriam apenas na
tempo da narração, um trabalho de estilo que é também manutenção da identidade real do autor, sob a forma de
um jogo de palavras permanente, e que é eficaz enquanto seu nome próprio que é conservado. Mas o nome próprio
transposição escrita da experiência vivida. Assim a autofic- (que frequentemente traz mais problemas do que soluções)
ção se torna, por efeito de um pequeno ardil transparente, não é talvez aqui escrutado de muito perto. Se Doubrovsky
uma autobiografia desenfreada. O leitor tem dificuldades nunca para de soletrar e glosar seu nome - Serge-Julien
para imaginar a menor fabulação, a menor afabulação nesse Doubrovsky - , o narrador de Siegfried et le limousin não se
Destouches nem Céline, mas Bardamu. Resta dizer que é "autobiografias envergonhadas" narrativas que enunciam e
possível ver o modelo da autoficção na Divina comédia, insistem num pacto autobiográfico, a menos que se incrimi-
desde que se lembre que Dante nunca fala, em relação à sua ne, num plano muito diferente, o conteúdo das confissões e
obra, de ficção, mas de comédia e que é impossível elucidar profissões de fé ... Como autoficções admissíveis, Genette cita
o grau de adesão ou de distanciamento entre Dante-autor Dante, Borges ( O Aleph), Balzac (Facino Cane). Se for verdade
e Dante-narrador-protagonista. Nessa extensão do termo, que a identidade narrativa repousa na "adesão séria de um au-
pouco r esta de "auto" e surge algo que faz a ficção transbor- tor a uma narrativa da qual ele assume a veracidade", haver á
dar para todo lado e que poderia ser a literatura. nessas narrativas fictícias, e pouco sérias, dissociação do autor
Nosso reconhecimento a Gérard Genette nunca será sufi- e do narrador. A fórmula de tais narrativas é, p ois, trôpega e
ciente quanto à clareza de suas distinções, no que diz respeito contraditória. Ao designar p or A o autor, N o narrador, P o
à poética dos gêneros. Em seu último livro, Fiction et diction protagonista, isso resulta no pequeno triângulo monstruoso:
através de fórmulas ameaçadoras evocando, depois das ver- autor balbuciando: "sou eu e não sou eu." A autoficção,
dadeiras autoficções, "falsas autoficções, que só são 'ficções' mesmo embelezada por grandes nomes, é uma mancha na
para passar na alfândega: em outras palavras, autobiografias soberba teoria dos gêneros coerentes:
envergonhadas". Genette se transforma então em justiceiro e a autobiografia
vingador: "o paratexto de origem dessas obras é evidentemen- A
te autoficcional, mas paciência: é próprio do paratexto evoluir =
e a história literária é prudente." Mais aversão, impossível. N = P,
70 Jacques Lecarme
AUTOF ICÇÃO: UM MAU GÊNERO? 71
a narrativa histórica Friedrich Nietzsche, nos ensina Derrida, "esse nome já é
A um falso nome, um pseudônimo e um homônimo que viria
= #
dissimular, sob a impostura, o outro Friedrich Nietzsche".
N# P,
Se o próprio nome do signatário vira pseudônimo, se a
assinatura inventa o signatário, como o nome próprio po-
a ficção homodiegética
deria garantir a identidade narrativa? 1º Mais simplesmente,
A
# # quando lhe perguntam quem fala em Passion simple [Paixão
N=P, simples], Annie Ernaux responde com simplicidade: "sou
eu e não sou eu."ll A fórmula, que o autor de Fiction et dic-
a autobiografia heterodiegética tion denuncia ser insustentável, sai naturalmente dos lábios
12
A de certos auto biógrafos e de autoficcionadores confessos.
# Na realidade, os textos mencionados por Gérard Ge-
N# P, nette pertencem à categoria presumida do inverossímil ou
do fabuloso. Eles implicariam que não há adesão séria de
a ficção heterodiegética Dante ou de Borges em seus discursos: um não acredita que
A de fato foi aos infernos, o outro não crê ter visto o Aleph.
# # Mas nada o comprova, e nós podemos ler O Aleph como
N# P. um testemunho dos mais sérios. O grau de credibilidade da
narrativa é tão difícil de avaliar no leitor quanto no autor.
Eis os gêneros certos, mesmo se o quarto esquema tem 0 O que o narrador chamado Borges viu seria muito mais
inconveniente de apresentar tão poucos exemplos! Mas a incrível do que as visões de São João da Cruz? Por outro
vantagem da autoficção não seria justamente a de ques- lado, esse tipo de texto não tem nada a ver com a auto-
tionar essa relação de identidade (=) ou de alteridade (#) ficção tal como a concebe Serge Doubrovsky, já que esta
autobiografia ficcionalizada ou romance desficcionalizado,
entre o autor e o narrador, mesmo se o nome próprio é 0
está na intersecção de duas t rajetórias, e o prefixo "auto"
mesmo? Quando o autor de Ecce homo escreve o nome de
Navarre: Biographie
.1
nomes de pessoas totalmente esquecidas, mas conhecidas não referencialidade, que excluiria a visada autobiográfica.
de alguns nostálgicos como: Rudy Hidden, um goleiro mí- François Nourissier fornece as instruções jurídicas de seu
tico; Bella Darvi, uma atriz principiante que jogava muito; último livro: "Le gardien des ruines [O guardião das ruínas]
Florence Nardus, figura da vida tunisina dos anos de 1930; é um romance. Qualquer homonímia, qualquer semelhança
Sessue Hayakawa, tirada do esquecimento pelo filme A entre seus personagens e pessoas existentes ou que existiram
ponte do rio K wai. A própria estética de Modiano, com sua não seriam mais do que mera coincidência e não poderiam
mistura de hiper-realismo e onirismo, com seu gosto cada em nenhum caso ser responsabilidade do autor." 34 Nesse
vez mais pronunciado pelas brumas à la Simenon e as né- caso, não há mais "auto", só há ficção. Alain Robbe-Grillet
voas da amnésia, dá, ao que chamamos de autoficção, uma preferiu recorrer ao termo romanescos, ao invés de romance.
tonalidade ideal e um êxito incontestável. Na verdade, é o título da trilogia, proposta com Angélique,
Alain Robbe-Grillet ficaria bastante zangado ao se ver si- e que deveria se fechar com Les derniers jours de Corinthe
tuado no rastro do discreto Patrick Modiano. No entanto, Le [Os últimos dias de Corinto]. Tudo aqui é " entrelaçamento
miroir qui revient [O espelho que volta] (1984) e Angélique aventuroso" do biográfico com o fictício, do real com o fan-
ou l'enchantement [Angélique ou o encantamento] (1988) tasmático.35Mas só é possível captar essa "busca aventurosa"
apresentam um dispositivo bastante análogo. O primeiro na época da publicação do terceiro volume.
volume tem a intenção de ser uma novela autobiográfica que Robbe-Grillet ainda passa, pensará o leitor extenuado,
contesta o modelo empírico ou teórico, trançando uma linha mas o que o André Malraux memorialista tem a ver com
de ficção em torno da estranha figura de Henri de Corinthe. esse bando de exploradores vanguardistas? Ele tem pleno
O próprio autor observou que teria sido lido de outra ma- direito de estar entre eles, pois é o único, nas Antimémoires
neira se houvesse dado o subtítulo romance ao livro, mas [Antimemórias] (1967), mais tarde integrado ao Miroir
a articulação explícita desse livro com Roland Barthes par des limbes [Espelho do limbo] (1976), que ousou integrar
Roland Barthes [Roland Barthes por Roland Barthes J não o discurso do romance no discurso da autobiografia, sem
deixava dúvidas quanto a um projeto de ordem ficcional. procurar atenuar os efeitos dissonantes e variegados. O
O termo romance, lido no sentido forte, implica na verda- índice de Antimémoires retoma os títulos dos principais
de uma declaração de irresponsabilidade, ou um pacto de romances de André Malraux. Mas principalmente essas
ficcional deve ser contraditório, diferentemente do pacto narradora, intitulado exatamente A dor não é um falso
romanesco ou do pacto autobiográfico que são, por sua vez, diário, mas, de todo modo, é defasado com relação ao
unívocos. Faremos uma exceção para a epígrafe do romance acontecimento, e consequentemente reconstituído, senão
de Queneau, Le dimanche de la vie [O domingo da vidaJ que ficcionalizado. O conjunto desses textos é regido pelo vai-
diz: "Os personagens desse romance sendo reais, qualquer -e-vem do fictício e do autobiográfico. Está claro, aliás, que
semelhança com indivíduos imaginários seria fortuita." 4º um livro de contos pode desempenhar, como um romance,
Que não se espere tampouco encontrar o subtítulo o papel de vetor para a autoficção: à Comédie de Charleroi,
(( )) d poderíamos acrescentar Ouvert la nuit [Aberto de noite]
romance quan o o texto é essencialmente compósito.
Pode-se unificar os registros, à maneira de Céline, Robbe- e Fermé la nuit [Fechado de noite] que o autor, no fim da
-Grillet ou Doubrovsky. Pode-se também justapô-los, vida considerava um diário inconsciente. Enfim, mesmo
alterná-los, contrastá-los. Em W ou le souvenir d'enfance que François Nourissier manifeste tanta repugnância pelo
[W ou a lembrança da infância J de Perec, com o subtítulo termo autoficção e faça questão de distinguir claramente
significativo de narrativa, a ficção de utopia negativa se sua produção romanesca de suas narrativas autobiográfi-
alterna com o inventário igualmente negativo da memória, cas, veremos em Bratislava4 5 uma grande arte da narrativa,
segundo capítulos pares ou ímpares diferenciados pelos como há uma arte da fuga. A mesma lembrança engendra
caracteres itálicos ou romanos. Os especialistas em Perec, três narrativas sucessivas, segundo o grau de verdade ou de
que consideram como ficção o conjunto dessa narrativa, ficção. Os jogos complexos da memória e da imaginação
estão errados, a nosso ver.41 A autoficção reside na monta- são desnudados em fragmentos de tons muito diversos.
gem e no intervalo lacunar entre as duas narrativas, uma "Nunca tentei, seja um romance ou não, senão escrever o
fictícia, outra não fictícia. Uma heterogeneidade da mesma mais próximo possível de mim", afirma o narrador, para
ordem é observada nos textos reunidos por Marguerite mais tarde duvidar disso: "como escritor, corria um risco
Duras sob o título La douleur [A dor] .42 Prefácios internos absurdo por querer demais revelar meu passado tal qual. A
contraditórios entram em ressonância: um deles enuncia literatura é memória inverificável, uma mistura de hipóteses
11 Declarações feitas durante a m esa redonda dos escritores sobre a autoficção que
reuniu Annie Ernaux, Serge Dou brovsky, François Nourissier, Alain Robbe-
Notas -Grillet. A fórmula é ainda mais interessante porque a escritora que a enunciou
elimina radicalmente qualquer vestígio de romance de seus textos, desde La
1
Autofictions & cie., S. Doubrovsky, J. Lecarme, P. Lejeune (org.), RJTM, n. 6, place (1983).
Publidix, 1993. (N.T. )
12 O termo "autoficcionário" [autofictionnaire ) foi proposto por Paul Nizon, em
' A palavra fils em francês, em sua forma escrita, pode significar tanto "filho" Marcher à l'écriture, Actes Sud, 1991, p. 173. Nós preferimos "autoficcionador"
quanto "fios". (N.T.) [autofictionneur]. por semelhança com o sufixo de narrador [narrateur].
3
Cf. S. Doubrovsky, Autobiographiques. De Corneille à Sartre, Paris, P.U.F., 1988, " Conforme Madame la colonelle [A senhora do coronel], Julliard, 1981, p. 7: "o
p. 61-79. 'eu' que escreve a novela participa do elenco da mesma maneira que os atores
4 que põe em cena. Herói, espectador ou confidente, ele continua sendo um
P. Lejeune, Le pacte autobiographique, Paris, Seuil, 1975, p. 28 e 31.
personagem. O escritor que recorre a esse procedimento faz obra de ficção:'
O título, Um amor de si, faz ecoar Un amour de Swann [Um amor de Swann], (Tradução do prefácio da edição de 1961 de Six Stories Written in the First
segunda parte do primeiro volume de Em busca do tempo perdido, de Marcel Person Singular.)
Proust. A própria trama do livro de Doubrovsky repete a aventura do perso-
14 Pode-se pensar em vários livros, que foram recebidos como coletâneas de
nagem de Proust, Swann, que teria passado anos apaixonado "por uma mulher
novelas nos anos de 1920 e 1930: La maison de Claudine [A casa de Claudine]
que não lhe agradava, que não fazia seu tipo''. (N.T.)
de Colette, Ouvert la nuit [Aberto à noite] e Fermé la nuit [Fechado à noite]
• Este é o único livro de Serge Doubrovsky traduzido para o português, com o d e Paul Morand, La comédie de Charleroi [A comédia de Charleroi] de Drieu
título O livro quebrado, trad. de António Filipe Marques, Lisboa, DIFEL, 1992. la Rochelle.
(N.T.)
is Cf. Genette, Fiction et diction, p. 84.
16
J. Lacan, Ecrits, Paris, Seuil, 1996, p. 94.
da vida, já tendo chegado a uma idade bem avançada. Esse aguento mais uma pilha de nervos nó na garganta sufocado
e depois a série de providências que tenho de tomar
homem, vê-se logo de cara, sou eu. Em Fils, meu nome
de um lado pro outro na correria banco repartições
surge pouco a pouco, sob a forma de iniciais gravadas em meu
mas minha vontade é gritar
0 correio
uma pasta, f.S.D., depois na mise en abyme de meus dois
ser
nomes, Julien-Serge, enfim pela maneira como me chamam, se dilacera em dois é uma metade que estão me arrancando
Professor Doubrovsky, quando chego em meu gabinete da sempre a mesma coisa não dá para evitar
conjuntamente, em diversos momentos da narrativa. Em banco correio seguro de saúde sou Julie11
O livro é dividido em partes, como Fils, e não em capítu- de minhas travessuras agora meus trajes e trastes voz de minha
ressoando no fundo de mim
los como os outros. A primeira parte se intitula PARTIDA mãe vocé não pode esquecer nada Julien
justamente no fundo vou colocar o quê no baú grande
e é completamente referencial. Trata-se de minha partida
o azul 0 primeiro tenho outros quatro enormes para
de Nova York, em janeiro de 2006. Partida dolorosa, depois
encher
de ter passado 28 anos em um esplêndido apartamento da
Washington Square, e 50 anos na América. Tenho de arru-
mar minha bagagem, tomar as providências administrativas Estado de espírito do narrador, tarefas a serem cumpridas,
necessárias. E os grandes baús eram precisamente quatro. esse início de narrativa é escrupulosamente referencial e,
como o sobrenome e nome do narrador são fornecidos
Notas
1
Corneille et la dialectique du héros, Paris, Gallimard, 1963.
Jean-Louis Jeannelle
127
amplitude, uma vez que - e o fato é raro o bastante para ser mas seu romanesco". É desse "romanesco do intelecto" que
sublinhado - as questões de poética dos gêneros têm, nessa a história da autoficção serve hoje de exemplo. Eis alguns
ocasião, transbordado do contexto relativamente limitado de seus ingredientes: protagonistas com posições muito
das discussões acadêmicas para se propagar nos discursos distintas, sucessos midiáticos, traições amorosas e acertos
críticos e mediáticos. de conta, alianças circunstanciais e lutas fratricidas - como
Philippe Lejeune, no grande colóquio de Nanterre em na querela de precedência para saber quem, Kosinski ou
1992, contou a história do conceito em cinco atos. Essa Doubrovsky, inventara o termo autoficção -,3 e até mesmo
peça se iniciava em 1973, data na qual ele próprio declarara o reconhecimento tardio de filhos que se acreditava serem
em O pacto autobiográfico nunca ter visto um caso (com ilegítimos - como "aquele romance autobiográfico" outrora
exceção talvez de Le sabbat [O sabá] de Maurice Sachs) em condenado e que, há pouco, passou a ter o direito de entrar
que o herói de um romance declarado como tal tivesse o para a família das narrativas pessoais.
mesmo nome que seu autor, embora esclarecesse que nada A publicação recente de três obras dedicadas à questão
impediria a coisa de existir e que até mesmo haveria nisso - Est-íl je? [Ele seria eu?] de Philippe Gasparini, Autofic-
uma contradição interna da qual se poderiam obter efeitos tion & autres mythomanies littéraires [Autoficção & outras
interessantes. 2 Se, em 1992, esse modelo dramatúrgico pos- mitomanias literárias] de Vincent Colonna e Défense de
sibilitava destacar a rapidez com que os eventos tinham se Narcisse [Defesa de Narciso] de Philippe Vilain - mostra
encadeado, em 2006, tal modelo já não convém. A história que nos encontramos em uma virada: o termo está agora
da autoficção não tem mais a forma de uma peça de cinco lexicalizado, o gênero amplamente reconhecido e o cúmu-
atos, cujos personagens nos seriam perfeitamente conheci- lo da legitimidade é que outros conceitos julgados mais
dos e cuja ação constituiria um todo perfeitamente ordena- convenientes já competem com ele. É tempo de fazer um
do, mas sim a forma de uma novela de episódios pululantes, novo balanço e prosseguir a história a partir do ponto em
ricos em reviravoltas e cujos heróis são escoltados por uma que Philippe Lejeune a deixou. Para isso, me apoiarei em
multidão de personagens secundários. um levantamento bibliográfico tão preciso quanto possível,
Barthes acrescentava, no fragmento citado acima, que com o fim de estabelecer quatro principais balizas crono-
"gostaria de ter produzido não uma comédia do Intelecto, lógicas, correspondentes à publicação de artigos ou obras
128 Jean-Louis Jeannell e A QUAN TAS AN DA A REFLEX ÃOSOBRE A AUTO FICÇÃO? 129
1
marcantes, antes de evocar, em um segundo momento, al- grandes modelos, o primeiro identificado à obra de Serge
gumas das dificuldades levantadas pela teoria da autoficção. Doubrovsky e o segundo teorizado por Vincent Colonna que,
Vou terminar essa rápida investigação com um convite à em sua tese orientada por Gérard Genette, estendeu o concei-
mobilização da crítica genética literária, não porque ela seja to ao conjunto dos procedimentos de ficcionalização de si.
uma solução já pronta para os problemas levantados pelo A fim de compreender a evolução do gênero desde oco-
conceito, mas porque essa via de abordagem permaneceu lóquio de Nanterre, selecionei quatro grandes marcos: talvez
até aqui totalmente inexplorada e abre novas perspectivas a escolha pareça arbitrária; todavia esses quatro marcos, a
para o estudo do campo ocupado por essa noção recente em meu ver, desenham o campo de forças críticas no qual se
relação à história dos gêneros em primeira pessoa. encontra doravante preso todo e qualquer pesquisador que
É raro poder assistir às diferentes etapas da vida de trabalhe com autoficção.
um gênero, colhidas em menos de três décadas, de seu Para aqueles que perderam os últimos episódios dessa
nascimento até sua legitimação. Sob esse ponto de vista, a novela teórica, forneço o resumo dos acontecimentos ocor-
autoficção parece um verdadeiro caso de escola. Não voltarei ridos desde então.
aqui às diferentes etapas estabelecidas por Philippe Lejeu-
ne: a invenção do termo por Serge Doubrovsky em 1977, 1. 1989/2004: Vincent Colonna e a ficcionalização de si
depois o lento processo de reconhecimento do gênero, do
O primeiro episódio se situa ao mesmo tempo no iní-
qual Jacques Lecarme foi um dos mais ardentes defensores,
cio e no fün de nossa novela: trata-se da tese que Vincent
como demonstra especialmente o lugar que ele concede ao
Colonna defendeu em 1989,4 mas só publicou 15 anos mais
gênero em 1982, em La littérature en France depuis 1968
tarde, em 2004, sob uma forma amplamente modificada em:
[A literatura na França a partir de 1968], mas também em
Autofiction & autres mythomanies littéraires. Observa-se
1984, na enciclopédia Universalia e, enfim, no colóquio de
especialmente o acréscimo nesse livro de vários capítulos
Nanterre, em 1992. Nessa data, a autoficção adquiriu sua
sobre Luciano de Samósata, apresentado como o inventor
legitimidade; o termo vai logo chegar à mídia e passar a fazer
da maior parte dos diferentes modelos repertoriados por
parte dos programas do ensino secundário e universitário.
Colonna - a autoficção fantástica, biográfica, especular
Mas nem por isso a questão ficou definida, pois os estudos
etc. Resulta daí uma dupla defasagem, ao mesmo tempo
sobre a autoficção já tinham se desmembrado entre dois
cronológica (o estudo ficou por muito tempo disponível
apenas sob a forma de tese ou microfilme e conhecido literária e da teoria dos gêneros - ainda que, como veremos
pelos comentários de outros críticos que restituíam seu em seguida, a confusão proposital entre as duas abordagens
teor de modo mais ou menos objetivo) e discursiva (já que não deixe de ser problemática. Ao descartar o modelo dou-
existem hoje duas versões do trabalho: a primeira é uma broviskiano, que ele considerava como uma simples variante
discussão rigorosa dos textos de Doubrovsky, Genette, Le- do "romance autobiográfico", Colonna escolheu aplicar o
carme e Lejeune, e a segunda adota uma forma muito mais termo "autoficção" ao conjunto dos procedimentos de fic-
livre, voluntariamente mais leve, pois isenta de qualquer cionalização de si. De modo que a autenticidade dos fatos
referência demasiado acadêmica e misturando, sem verda- deixou de ser vista como condição de possibilidade: foi, ao
deiro cuidado metodológico, as épocas, as áreas culturais contrário, a exploração do imaginário literário que passou
e as referências críticas). Colonna substituiu a definição a ser valorizada, sendo que o único critério de identificação
doubroviskiana da autoficção como narrativa cuja matéria aceito é o fato de que o escritor tome a si próprio como
é estritamente autobiográfica, assim como atesta em teoria personagem de sua história e recorra à primeira pessoa ou
a identidade nominal entre autor, narrador e personagem, até mesmo se designe de maneira mais indireta - com a
mas cuja maneira - isto é, a organização narrativa e o tra- condição, é claro, de que a identificação permaneça sempre
balho de estilo - é de natureza romanesca,5 por uma defi- óbvia aos olhos do leitor. 7 Com Colonna, a fabulação deixa
nição completamente diferente. Seu objetivo era estender de se limitar a um período situado sob o signo da "crise do
o uso do termo, até então limitado à obra de Doubrovsky sujeito", mas se aplica a um conjunto exponencial de textos,
ou considerado pelos outros críticos como um avatar mo- sem limite histórico ou geográfico. 8
derno (ou antes, pós-moderno) da autobiografia - o que é
confirmado especialmente pelo lugar essencial que o autor 2. 1996: Marie Darrieussecq:
de Fils6 concede à psicanálise e pelo recurso estratégico de é possível ser sinceramente não sério?
Robbe-Grillet à autoficção a fim de promover a ideia de uma
O segundo momento marca o fim de um longo perí-
"Nova Autobiografia". Tratava-se, em outras palavras, de
odo de desconfiança em relação à noção de autoficção.
passar da palavra-valise ao conceito e fazer da autoficção um
Em resposta aos repetidos esforços de Jacques Lecarme
instrumento crítico dependente, a um só tempo, da história
para conceder um lugar a esse modelo genérico., surgiu,
138 Jean-Louis Jeannelle A QUANTAS ANDA A REF LEXÃO SOBRE A AUTO FICÇÃO? 139
ultrapassada: era o momento de todas as formas de hibrida- autobiográfico - o que autorizava Gasparini a fazer da auto-
ção genérica, no qual a ficção se apresentava como um vetor ficção, aliás como Colonna, um tipo particular de romance,
mais rico de expressão de si. Precedido por um estudo de em oposição a Doubrovsky e vários a outros escritores que,
Sébastien Hubier dedicado às diferentes formas de literatura embora reivindicando essa categoria, certificam a validade
íntima, 16 Est-il je? de Philippe Gasparini se distinguia pela referencial de suas narrativas.
precisão de suas análises poéticas: tratava-se de fornecer Vê-se que, em 2004, as fronteiras estabelecidas ainda
uma concepção genérica do "espaço autobiográfico", graças não estavam fixadas. A poética das narrativas de si entrara
ao estudo sistemático de todos os signos (enunciativos, gra- em um período turvo em que as diferentes noções, da mais
maticais, paratextuais ou metatextuais) de duplo indício. O estabelecida como a autobiografia, até a mais recente como
retorno a essa questão, totalmente tradicional no início do a autoficção, se viam ambas contestadas.
século, não deixava de levantar um problema de preexce- Qual ensinamento tirar desse rápido percurso? Talvez
lência: ao passo que Vincent Colonna descrevia, no mesmo que, em matéria de teoria, não há nada mais perigoso que
ano, o romance autobiográfico como "uma das ilhotas da fa- o consenso. Pelo fato de se assentar em grande parte sobre
bulação de si", 11 Gasparini fazia da autoficção uma categoria uma retórica da transgressão e do paradoxo, a teoria da
contígua ao romance autobiográfico, mas de extensão mais autoficção corre o risco, mais que qualquer outra, de se
restrita. A isso se acrescentava um importante problema de tornar monótona: de tanto manejar o paradoxo, passa-se
permeação, uma vez que no quadro das diferentes formas insensivelmente da argumentação à invocação. Parece que
de narrativa em primeira pessoa, proposto na página 27 de é isso que se vem produzindo, há alguns anos, em muitos
seu livro, Gasparini definia a autoficção como uma narrativa estudos nos quais a autoficção é apresentada como um
baseada na homonímia do autor, do narrador e do herói, gênero "estabelecido", correspondendo a uma classe bem
mas que apresentava um "desenvolvimento que se projetava determinada do campo das narrativas de si.
em situações imaginárias". 18 A partir daí, a única diferença Vários teóricos concordam em pensar, ao contrário, que
entre os dois modelos concorrentes seria que, no caso da a autoficção não é um gênero. Na verdade, o valor desse
autoficção, a identidade do sujeito encenado é claramente conceito provém mais das dificuldades teóricas que suscita
fictícia, ao passo que ela permanece ambígua no romance do que da própria coerência do modelo literário que_designa.
140 Jean-Louis Jea nnelle A QUANTAS ANDA A REFLEXÃO SOBRE A AUTOFICÇÃO? 141
Essa é a razão pela qual me parece importante esclarecer os pode fazer o texto passar de uma categoria genérica à outra
termos utilizados e sublinhar os pontos de debate da teoria - da autobiografia ao romance. Toda a análise de Lejeune se
da autoficção, a fim de assegurar que o conceito mantenha baseia, pois, nesse tipo de pacto feito pelo autor: a seus olhos,
toda a sua força. a principal dificuldade provém da ausência de indícios sufi-
Para tanto, destacaria quatro pontos mais ou menos liti- cientes. Ora, a invenção da autoficção se baseia, ao contrário,
na ideia de uma copresença de indícios contraditórios. O
giosos. Apresento-os a seguir, classificados não por ordem
que Lejeune interpretava como um fenômeno de ambigui-
de importância, mas por ordem de inclusão.
dade, Doubrovsky e seus sucessores consideram como um
a) Ambiguidade e Hibridez
fenômeno de hibridez. A nuance pode parecer talvez sutil,
Em seu famoso quadro de dupla entrada do "Pacto mas essa primeira dificuldade me parece comandar todo
autobiográfico", 19 Philippe Lejeune considera duas possi- o resto. Realmente, a maior parte dos estudos dedicados
bilidades: não há indicação que permita ligar o nome do à autoficção volta à questão da indecibilidade genérica,
personagem ao nome do autor ou não há nenhum indício mas poucos críticos fazem a distinção entre ambiguidade
de pacto, autobiográfico ou romanesco. A casa que será ocu- e hibridez. Assim, Marie Darrieussecq define a autoficção
pada alguns anos mais tarde por Doubrovsky se encontra, como um tipo de asserção "que não corresponde a nenhum
como se sabe, no alto, à direita do quadro. Uma outra casa 'outro' ato de linguagem"; ela acrescenta imediatamente:
vazia, embaixo, à esquerda, poderia ser reservada ao caso "a menos que se prefira dizer que o ato de linguagem que
do romance autobiográfico. Notemos que Lejeune preen- corresponde a ela é ele próprio biface: pois a autoficção
cheu a casa do centro, a 2b, indicando: "Indeterminado." pede para que se acredite nela e que não se acredite." 2º No
De fato, o fenômeno da autoficção ultrapassa amplamente primeiro caso, o enunciado autoficcional não se baseia em
a casa situada no alto, à direita: são na realidade todas as nenhum compromisso ilocutório preciso; no segundo,
casas sem gênero fixo que se relacionam a ele. Bem mais combina indissociavelmente os dois. Segundo Darrieussecq,
que isso, pode-se considerar que a casa 2b constitui o pivô as duas hipóteses dão na mesma.
de um duplo sistema de oscilação, formado pela coluna nº 2 Refletir em termos de ambiguidade, como fez Lejeune,
e pela linha de mesmo número. De fato, a ausência, seja de leva a supor que um texto é factual ou ficcional e que seu
indicação de nome do personagem, seja de pacto explícito, estatuto permanece amb íguo por falta de informação
142 Jean-Louis Jeannell e A QUAN TAS ANDA A REFLEXÃO SOBRE A AUTOFICÇÃO? 143
suficiente, mas que um complemento de informação fazer de textos autoficcionais simples exceções, tornando
pode ser suficiente para fazê-lo passar de um lado para assim inútil a existência desse novo gênero.
o outro da fronteira. 21 Definir, ao contrário, a autoficção Assim, pairam sobre a auto ficção, por um lado, a ameaça
pela coexistência no sentido estrito de elementos factuais de não ser reconhecida enquanto tal e, por outro, a ameaça
e elementos ficcionais, como tendem a fazer muitos dos de ser hipostasiada sob uma forma híbrida, na qual não
partidários do gênero, significa arriscar-se a anular a per- haveria mais sentido tratar das relações entre ficção e não
tinência da questão de saber qual distinção convém esta- ficção, uma vez que estaria claro, de uma vez por todas, que
belecer entre esses dois elementos constitutivos dos textos toda narrativa é uma ficção.
autoficcionais. Na verdade, a indecidibilidade deixa de ser b) Definição da ficção
então problema de falta de informação ou de instrumentos Toda a dificuldade diz respeito, na realidade, a uma
poéticos adequados: ela define propriamente a narrativa segunda questão: qual sentido damos ao termo "ficção"?
autoficcional. Ora, não é certo que haja muito a ganhar Sobre esse ponto, as coisas se mostram confusas. Existem,
se instalando assim no paradoxo, simplesmente porque de maneira geral, três grandes definições. Para uns, a ficção
ao fazer deste um traço que define o gênero, arrisca-se é um modo narrativo constituído de asserções simuladas
a anular o próprio problema. A posição segregacionista (trata-se do ficcional), para outros, ela se define em função
de Lejeune era interessante porque oferecia um modelo de um critério de ordem temática, isto é, pelo recurso ao
de análise mais elaborado: um jogo de combinações di- imaginário (trata-se do fictício); para outros, ainda, ela
nâmico entre diferentes modalidades da autobiografia e representa tudo aquilo que não é referencial: o imaginário,
do romance, completado por uma bateria de conceitos, mas também o hipotético, o irreal, o mentiroso etc. (trata-se
como os de "espaço autobiográfico"22 e de "autobiografia do falso). Mas, na maioria das vezes, o ficcional e o falso se
crítica", graças aos quais se tornou possível descrever os confundem, por falta de uma análise do próprio estatuto
fenômenos de ambiguidade em termos de estratégia li- da ficção e de seus marcadores. Esse ponto é, contudo,
terária, sem rebaixá-los a um único e mesmo termo. Por essencial, já que é sobre essa questão que os dois modelos
outro lado, esse modelo de análise tinha o defeito - e é esse reconhecidos por Doubrovsk.y e Colonna se dividem: para o
o principal argumento dos defensores da autoficção - de primeiro, a autoficção se define antes de tudo pela hesitação
144 Jean-Louis Jeannelle A QUANTAS ANDA A REFLEXÃO SOBRE A AUTO FICÇÃO? 145
ou pela indecisão que produz no leitor, incerto quanto à contemporâneo por todas as formas de hibridação torna
natureza das informações apresentadas; para o segundo, a mais difícil se limitar a tal posição - que Philippe Lejeune
auto ficção deve mergulhar o leitor em um mundo ficcional, parece ser hoje um dos raros, junto com Dorrit Cohn, a
sob pena de ser somente uma variante modernizada do sustentar contra tudo e contra todos.
"romance autobiográfico". Vê-se que o impasse precedentemente encontrado de-
Ora, há um forte indício da importância cada vez maior pende antes de tudo da extensão dada ao conceito de ficção:
concedida ao critério de ficcionalidade durante as duas não lhe dar nenhum limite preciso tem por efeito embara-
últimas décadas. Em conferência publicada em 1999, em lhar as referências mais comuns. Pois, ao se supor que uma
Figures IV [Figuras IV], "Du texte à l'reuvre" [Do texto à autobiografia implica necessariamente uma parte de ficção,
obra], Gérard Genette reconstitui o conjunto de seu per- abandona-se toda e qualquer perspectiva poética estrita e
curso teórico. Ele admite ter mudado de posição a respeito fica-se privado dos meios de distinguir o campo da ficção
da autoficção que associara outrora a uma simples forma do campo da dicção em prosa. Ora, toda confusão agrava as
de hápax identificado à obra de Proust, depois reconheceu, dificuldades ao invés de resolvê-las, como lembrou Dorrit
em Fiction et diction, alguns casos muito específicos de Cohn, fervente advogada de uma concepção restrita de fic-
fabulação de si,23 se mostrando, inversamente, muito duro ção. Aos olhos daquela que forneceu uma das análises mais
em relação ao que denominava as "autobiografias envergo- rigorosas dos marcadores de ficcionalidade em Le propre
nhadas". Na narrativa de seu percurso, Genette reconhece de la fiction [O próprio da ficção], o conceito de autoficção
seu erro e, ainda que continue a se demarcar da concepção se revela inútil: a autora, aliás, não o menciona no capítulo
doubroviskiana da autoficção, reconhece o interesse e o intitulado "Vidas ficcionais vs vidas históricas: limites e
valor literário desse modelo narrativo, chegando a escrever casos limites", embora trate de L'oiseau bariolé [O pássaro
que "toda autobiografia comporta, quase inevitavelmente, pintado] de Kosinski. Cohn prefere falar de "autobiografia
uma parte de ficção, com frequência inconsciente ou dis- ficcional", que define como sendo um romance no qual um
simulada". Ao fazer isso, Genette atesta talvez com atraso, narrador ficcional faz um relato retrospectivo de sua vida,
uma mudança de perspectiva: se sua geração tivera como e que opõe às "ficções autobiográficas", isto é, às obras de
preocupação principal distinguir a ficção da dicção, o gosto inspiração autobiográfica.24 De tanto insistir no fenômeno
148 Jean- Louis Jea nn elle A QUANTAS ANDA A REFLEXÃO SOBRE A AUTOFICÇÃO? 149
ou mesmo de mentiras: entretanto parece que esse não foi o caso, quanto ao estatuto das informações fornecidas e quanto
dadas as confirmações recolhidas com comentadores, jornalistas e à natureza do texto apresentado. Se parece ser, portanto,
pessoas próximas ao romancista. Em março de 1996, depois de ter essencial dar um estatuto preciso ao que se denomina fic-
lido nosso trabalho, Modiano aceitou até mesmo retificar alguns ção, é em razão justamente da importância que adquirem,
erros e esclarecer certos pontos.28 nesse caso, o jogo de vai-e-vem entre ficção e não ficção e,
consequentemente, as condições de recepção que assegu-
Essa carta de Modiano, última prova da demonstração, ram a perenidade desse jogo. Sem isso, a própria ideia de
na qual o escritor comenta alguns detalhes, está inserida hesitação entre duas hipóteses antagonistas se reduz a um
no livro à guisa de prefácio.29 Assim, é em relação a uma simples postulado sem nenhum interesse.
verdade biográfica ou histórica que é avaliada a natureza do c) História literária e denominações genéricas
contrato fixado por Modiano em cada um de seus romances. Assim como no caso do estatuto da ficção, a inscrição
Vê-se que essa interpretação psicologizante da autoficção histórica da autoficção levanta um importante problema de
não concede ao conteúdo ficcional dos textos nenhum ver- extensão: qual o limite a ser fixado? Se a redução do modelo
dadeiro estatuto: todo o esforço do crítico visa, na verdade, à literatura contemporânea parece difícil de ser sustentada,3°
reduzir essa forma de transposição como se fosse um véu sua aplicação mais abrangente a todo tipo de obra que oscila
que esconde a experiência nua do escritor. Bem mais que entre romance e autobiografia escapa por pouco ao anacro-
isso, a análise não se apoia em nenhum critério poético nismo: falar de autoficção no caso de Cendrars, Céline ou
compartilhável: ela se fundamenta em um saber externo, Malraux supõe que se trate de um verdadeiro gênero, cujas
ao qual o leitor não tem - ou dificilmente tem - acesso, e características seriam bastante precisas para dar conta de
não na identificação de indícios semelhantes aos que Dorrit práticas textuais heterogêneas, parcialmente estranhas a
Cohn enumerava em Le propre de la fiction. nossas modalidades de apreensão do literário. Mas não há
Chegamos aqui a um dos limites dos estudos dedicados à nenhuma certeza: vários teóricos da autoficção se recusam
autoficção: o gênero só existe na medida em que produz no a conceder ao fenômeno que estudam o estatuto de gênero.
leitor (qualquer que seja o estado dos conhecimentos prévios É particularmente o caso de Colonna, cuja investigação não
sobre o autor dos quais ele dispõe) certa hesitação - hesitação conhece qualquer limite cronológico. Deixando ass_im de
lado as coerções da história literária e da poética dos gê- não está de modo algum limitado a ser exato sobre os fa-
neros, Colonna faz da autoficção o que se poderia chamar tos, como nas memórias, ou a dizer a verdade por inteiro,
de simples procedimento, que ele identifica em qualquer como nas confissões". Vê-se que, em 1876, as condições
escritor que inventa uma vida para si. Vê-se o inconveniente pragmáticas de um "pacto autobiográfico" não eram de
de tal abordagem, que não permite dar conta da articulação modo algum ignoradas: eram simplesmente associadas a
entre contexto histórico e denominação genérica. Ora, 0 dois outros gêneros à época melhor identificados e fun-
uso renovado do termo "romance autobiográfico" lembra, damentados em uma base sociocultural que implicava tal
se necessário, a importância da questão. Esse rótulo gené- imperativo de veracidade: a história, no caso das Memórias,
rico, por tanto tempo deixado de lado, reaparece ·hoje por e a religião, no caso das confissões. A autobiografia eram
força de um efeito de contrapeso bem conhecido. A própria reservadas as delícias da "fantasia" e a liberdade da transpo-
análise pragmática em que se apoia a teoria de Lejeune foi sição. Previamente à concepção identitária da autobiografia
elaborada para fazer contrapeso a antigas definições que, defendida por Lejeune, Vapereau fornecia uma concepção
hoje, seria preciso levar em conta. Em Pour l'autobiographie expressiva, representativa de um ideal romântico da escrita
[Pela autobiografia], Lejeune mencionava assim o artigo que de si. Pouco importava então que W erther fosse Goethe, ou
Gustave Vapereau dedicara, em 1876, à autobiografia no que o sujeito lírico das Noites não pudesse ser confundido
Dictionnaire universel des littératures [Dicionário univer- rigorosamente com Musset: o essencial era que o escritor
sal das literaturas], publicado pela Hachette. O gênero era evocasse com vivacidade sua personalidade, seus pensa-
definido nesses termos: "Obra literária, romance, poema, mentos e seus sentimentos. Vê-se que basta adotar outra
tratado filosófico etc., cujo autor teve a intenção, secreta ou definição de autobiografia, própria a dar conta da enorme
confessa, de contar sua vida, de expor seus pensamentos ou massa de textos situados no século XIX, intermediários
de evocar seus sentimentos."31 entre o modelo fixado por Rousseau e o romance, para que
Ao mesmo tempo muito próxima da análise feita por se desenhe uma paisagem completamente diferente. A con -
Lejeune em 1971, essa definição é também a exata antítese cepção rom ântica da autobiografia, assim esboçada, repousa
dela, uma vez que, aos olhos de Vapereau, a autobiografia precisamente nos fenômenos de duplo indício estudados
"deixa um amplo espaço para a fantasia, e quem a escreve por Gasparini, mas esses dependem de práticas desig.n adas
152 Jean -Loui s Jeannelle A QUANTAS ANDA A REFLEXÃO SOBRE A AUTOFICÇÃO? 153
e teorizadas por nossos predecessores de maneira diferente vivemos. Tal cruzamento de discursos, tradicionalmente
da nossa. Como a autoficção ou o romance autobiográfico estranhos uns aos outros, se explica por diferentes fatores
não formam um gênero coerente, mas a fronteira sinuosa intelectuais, a saber: a importância adquirida, desde o fim
de um campo literário mais abrangente, devemos, portanto, dos anos de 1970, por aquilo que Lejeune denomina "auto-
reinscrever o estudo não apenas no continuum de uma série biografia crítica" (a partir do modelo dos escritos de Roland
de categorias genéricas ligadas a condições de produção e Barthes, Nathalie Sarraute ouAlain Robbe-Grillet); o desen-
de recepção precisas, mas também no campo dos procedi- volvimento de uma espécie de escolástica dos gêneros que
mentos literários próximos, tais como a prática da hetero- favorece todas as formas de transgressão ou de hibridação;33
nomia ou do embuste literário. É, pois, dentro do quadro também o desenvolvimento recente dos estudos dedicados
mais geral de uma pesquisa sobre as "ficções de autor" que à literatura contemporânea ou ainda a reunião, em vários
convém inscrever no futuro os estudos sobre a autoficção, adeptos da autoficção, das diferentes posturas: prática
a fim de verificar ao mesmo tempo sua coerência conceitual literária, profissão acadêmica, intervenções críticas. Essas
e a continuidade histórica. condições de efetuação explicam de certa maneira o suces-
d) A imbricação das instâncias do discurso so da autoficção: por efeito de ricochete de um discurso a
Resta uma última dificuldade, ligada aos efeitos de infla- outro, essa noção pouco a pouco adquiriu uma importância
ção ou de sobrelanço dos quais a teoria da autoficção parece que se deve menos a sua coerência teórica intrínseca que à
ser vítima. Pois a incriminada falta de rigor conceitua! pro- fecundidade das interações que ela favorece entre instâncias
vém, em grande parte, das condições institucionais nas quais que habitualmente se ignoram. Talvez a autoficção tenha se
se desenrolam as trocas e, particularmente, da imbricação de tornado esse formidável catalisador teórico apenas em razão
três tipos de discurso que obedecem a lógicas habitualmente dessa indeterminação que a envolve: escritores, críticos e
distintas: a teoria acadêmica (e seus derivados escolares), pesquisadores encontram nela um terreno de acordo, ou
os paratextos autorais e a crítica "mundana", 32 pela qual a antes, de desacordo, mas um desacordo produtivo.
mídia transmite a atualidade editorial para o grande público. Vê-se que o balanço das últimas pesquisas dedicadas à
Talvez seja esse ponto que faz do debate sobre a autoficção autoficção é muito contrastado: teremos chegado ao fim
a questão crítica mais representativa do momento que de um debate crítico? Será que os discursos dedicados a ela
1 56 Jean-Louis Jea nnelle A QUANTAS ANDA A REFLEXÃO SOBRE A AUTO FICÇÃO ? 157
r
comportamento, avessa à sintaxe do romance, tradicional ou novo. Encontros, 'protocolo modal' de declaração de imaginário. Isso me parecia mais racional
fios/filho de palavras, aliterações, assonâncias, dissonâncias, escrita de antes ou por diversas razões. À época (1981-1989), Doubrovsky deixava sem herdeiros
de depois da literatura, concreta, como se djz da música. Ou ainda, autofricção, seu neologismo e a moda da autoficção biográfica não existia. Para designar
pacientemente onanista, que espera conseguir agora compartilhar seu prazer") os textos como os de Doubrovsky, eu sugeria o termo 'ficção de si biográfica'.
não está totalmente de acordo com a prática literária realizada por Doubrovsky Tudo isso era pesado do ponto de vista terminológico e não muito prático.
em Fils, como mostrou Philippe Lejeune em "Autobiographie, roman et nom Sobretudo, eu tinha menos de 30 anos e não tinha cultura literária suficiente
propre" [Autobiografia, romance e nome próprio) em Moi aussi, Paris, Seuil, para reconhecer a importância de Luciano de Samósata no desenvolvimento
1986, p. 62-70. histórico do gênero, nem para compreender que a autoficção biográfica era
6
apenas um renascimento mascarado do bom e velho romance autobiográfico.
A palavra fils em francês, em sua forma escrita, pode significar tanto "filho"
Pode-se perceber que essa concepção de autoficção, que tentava semantizar o
quanto "fios". (N.T.)
neologismo numa direção mais adequada a seu sentido intuitivo, corresponde
7
Em seu curso de iniciação à autoficção, disponível no site do departamento de à concepção formulada por Philippe Gasparini em seu estudo sobre o romance
francês moderno da Universidade de Genebra, Laurent Jenny distingue duas autobiográfico (Est-il je?, Paris, Seuil, 2004). Quando estava escrevendo o ensaio,
variantes da autoficção, a primeira "estilística': identificada à obra de Doubro- a moda da autoficção biográfica estava em seu apogeu; e eu estava muito mais
vsky - "[A) autoficção é a ficcionalização do vivido pela maneira de escrever" consciente tanto da importância hist órica de Luciano, quanto da solidariedade
(Serge Doubrovsky, "Quand je n'écris pas, je ne suis pas écrivain", Entretien fo rmal e histórica de fatos poéticos como a metalepse, as intrusões do autor,
avec Michel Contat, em "Autobiographies·: Genesis, v. 16, n. 1, 2001, p. 120) -, a fabulação 'xamânicà (ou fantástica) de si e o romance íntimo. Além disso,
e a segunda "referencial", identificada à obra de Christine Angot, mas que as parece-me inútil lutar contra o uso, que dá um sent ido muito indeciso e m uito
análises de Colonna abordam mais amplamente. São esses os dois polos que amplo à palavra 'autoficção'. Por fim, a prática da ficção tirou de mim algumas
estruturam hoje o campo'da autoficção. Disponível em <http://www.unige.ch/ ilusões sobre a pertinência da abordagem formalista inspirada na narratologia.
lettres/framo/enseignements/methodes/figurationsoi/index.html>. Daí essa teoria II da autoficção, que dá mais import ância à História, às obras
e a seus efeitos:'
8
Após a jornada de estudos realizada em 4 de junho de 2005, Vincent Colonna
9 Cf. J. Lecarme e E. Lecarme-Tabone, L'autobíographíe, Paris, Armand Collin,
me escreveu uma carta na qual voltava a seu percurso teórico e, mais parti-
cularmente, às diferenças entre sua tese de 1989 e a obra publicada em 2004. 1997, p. 267-283.
Publico-a aqui, com a autorização do a utor: "Esse ensaio [Autoficção e outras
'º J.-P. Boulet, Hervé Guibert: l'entreprise de l'écriture du moi, Paris, I:Harmatten,
mitomanias literárias) apresenta uma teoria II da autoficção, diferente da que é
2001, p. 192.
formulada em minha tese, que apresentava uma teoria I. Talvez o resumo desta,
feito por Jacques Lecarme, em seu livro L'autobiographie [A autobiografia]. leve 11
Les écritures du moi: de l'autobiographie à l'autofiction, Magazine Littéraire, n.
a confundir as duas, pois ele diz, a meu respeito, que se trata de uma "teoria 409, mai, 2002, p. 18-66.
extensa" da autoficção vs a de Doubrovsky que seria uma "teoria restrità'. (Cito 12
Bruno Blanckeman, Les récits indécidables, Lille, Presses Universitaires du
de memória.) "Mas ele não chegou ao fim de minha densa tese, o que posso
Sept ent rion, 2007.
compreender. Nessa monografia sobre o gênero, eu propunha a distinção entre
um fenômeno universal da literatura, 'a ficionalização de si'. e um fato poético 13
P. Forest, Le roman, le je, Nantes, Éditions Plein Feux, 2001, p.16.
mais circunscrito - 'a autoficção: que reunia textos como os de Dante ou de
Gombrowicz - , através do qual o autor se metamorfoseava em personagem de " Cf. P. Lejeune, Gide et !'espace autobiographique, Le pacte autobiographique,
ficção, conservando seu nome próprio. Esse critério do nome era determinante Paris, Seuil, 1996 [1975] .
e, ao se manifestar através de um 'protocolo nominal', vinha completar um
1
i ·!
15
Jean-Louis Jeannelle faz aqui uma sutil referência ao artigo XXIII dos Pensamen- autoficcional, mas paciência: é próprio do paratexto evoluir e a H istória
tos de Blaise Pascal (1623-1662) que versa sobre "Razões de algumas opiniões literária é prudente". Cf. Genette, Fiction et diction, 2004 [1991], p. 161.
do povo'', particularmente ao pensamento III: "O povo honra as pessoas de
22 Conceito q ue Philippe Lejeune desenvolve especialmente em "Gide e o espaço
grande nasciment o. Os semi-hábeis as desprezam, dizendo que o nascimento
não é uma vantagem da pessoa, mas do acaso. Os hábeis as honram, não pelo autobiográfico'; em Le pacte autobiographique, Paris, Seuil, 1975 e 1996.
pensamento do povo, mas por um pensamento mais elevado. Os devotos, que " Genette dá como exemplo A divina comédia de Dante.
têm mais zelo do que ciência, as desprezam, malgrado essa consideração que as
24 Dorrit Cohn acrescenta, t odavia q ue como toda ficção é mais ou menos de ins-
faz honrar entre os hábeis, porque julgam isso por uma nova luz que a piedade
lhes dá. Mas, os cristãos perfeitos as honram por uma outra luz superior. Assim piração autobiográfica, a noção, na verdade, não faz sentido a seus olhos - modo
vão as opiniões sucedendo-se do pró ao contra, segundo a luz que se possui:' de derrubar a doxa que, por sua vez, está sempre pronta a supor inversamente
Disponível em <http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/pascal.html>. (N.T.) que são as autobiografias que não podem evitar uma parte de ficção.
16
S. Hubier, Littératures intimes, Les expressions du moí, de /'autobiographie à 25 Cf. T. Laurent, L'ceuvre de Patrick Modiano: une autofiction [A obra de Patrick
l'autofiction, Paris, Armand Collin, 2003. Modiano: uma autoficção], Lyon, Presses Universitaires de Lyon, 1997, p. 12.
" V. Colonna, Autofictions & autres mythomanies littéraires, Auch, Tristam, 2004, " "De fato, para que o pacto - mesmo o mais honesto - funcione e seja um
p. 196. elemento de informação válido, o leitor deve conhecer bastante bem o autor''.
Ibidem, p. 20.
" Gasparini, Est-il je? Roman autobiographique et autofiction, Paris, Seuil, 2004,
27
p. 26. Lejeune, Le pacte autobiographique, 1996, p. 37.
28
" Ver a reprodução do quadro na nota 2 do texto de Philippe Lejeune desta edição Laurent, L'ceuvre de Patrick Modiano, p. 12.
(N.T.).
" Prática totalmente paradoxal, uma vez que se supõe que um autor de autoficções
20
M. Darrieussecq, L'autofiction, un genre pas sérieux [A autoficção, um gênero travestiu voluntariamente certa quantidade de dados biográficos que utilizou em
nada sério]. Poétique, n. 107, septembre 1996, p. 377. Cf. também o artigo da suas narrativas, qual sentido haverá em se confiar, in fine, em seu julgamento
autora sobre Mes parents, de Hervé Guibert: "É isso a escrita autofictícia e, em para justificar um trabalho de reconstituição do suposto substrato biográfico
Mes parents, há a esse respeito uma confissão in extremis: anunciar que, dizendo de seus textos?
a verdade sobre minha vida, minto. Fazer pairar a dúvida sobre o conjunto de 30
Essa posição tem como consequência favorecer certo teleologismo. Exemplo
minha palavra. Não deixar nenhuma escapatória possível, anunciar - ("mas eu
disso é a reflexão de Mounir Laouyen, em 'Tautofiction: une réception problé-
minto") - que todo discurso deve ser analisado sob o ponto de vista da ficção,
matique" [A autoficção: uma recepção problemática]. sobre o desconhecimento
que toda adesão é um engodo programado, toda lição, um paradoxo, todo
geral sofrido pela autoficção: "Barthes é um dos raros críticos a ter produzido
sentido único, uma ilusão referencial" (Darrieussecq, De l'autobiographie à
um discurso sobre a autoficção avant la lettre. Ele revela sua existência sem
l'autofiction: Mes Parents, Roman?, em Ralph Sarkonak (org.), Le corps textuel
ent retanto nomeá-la'.' (M. Laouyen , L'autofiction: une réception problématique,
de Hervé Guibert, Paris-Caen, Minard, La Revue des Lettres Modernes, 1997,
Colloque en ligne, Les frontieres de la fiction, Fabula, disponível em <http://
p. 154).
www.fabula.org/ forum/ colloque99.php>) .
21
Da mesma forma, Genette falava das "fal sas autoficções, que só são 'ficções' 31
G . Vapereau, Dictionnaire universel des littérat ures, Paris, Hachette, 1876,
com o fim de conseguir passar na alfândega: dito de outro modo, autobio-
p. 170.
grafias envergonhadas. O paratexto de origem dessas obras é evidentemente
32
Michel Charles, L'arbre et la source, Paris, Editions du Seuil, 1985.
Na manhã seguinte, voltei ao hotel para apanhar minhas coisas. O acréscimo, evidentemente, nada tem de anódino.
Ao me dar a chave, o recepcionista sorriu para mim. O quarto Sem levar em conta nem seu passado amoroso, nem suas
estava exatamente como o havia deixado. No trem que me levava primeiras experiências sexuais, o eu apresenta seu texto
de volta a Rouen, repassei as cenas da noite anterior, tentando me como uma narrativa de iniciação na qual devolve a si pró-
lembrar de cada momento, o hotel, o pub inglês, e todas as frases p rio e doa novamente ao outro sua virgindade. Ele desvia,
às quais não tinha prestado atenção na hora, o convite dela sem portanto, o sentido de sua vivência em proveito. de um
1 1
linguagem também secreta com a qual eu poderia brincar palavras se impõem a mim. Durante muito tempo, fui in-
e na qual poderia me dissimular à vontade; pergunto-me capaz de formular essa evidência."3
na verdade se, de certa maneira, a autoficção não é uma Essa escrita sisífica dá a impressão de restabelecer um
tentativa mais sutil de tornar meu "eu" enigmático ou, pelo movimento, uma dinâmica para o passado imóvel no qual o
menos, dificilmente legível, e não uma tentativa de exibi-lo sujeito se afundou e, assim, fazer o luto das infelicidades da
como pensam frequentemente os leitores. infância, se libertar através da incessante volta das palavras,
3. Um terceiro procedimento de autoficcionamento, que correndo desse modo o risco de desviar o referencial de seu
se pode observar em todos os meus manuscritos, consiste na primeiro sentido ou de amputar informações necessárias
reescrita obsessiva de uma passagem elaborada certo núme- a sua compreensão íntima. A ruminação se afirma assim
ro de vezes (11 vezes no caso deste exemplo, mas pode ser como um meio de refazer sua história pessoal; é reescreven-
muito mais) . Pode me acontecer de reescrever uma mesma do sem parar nosso passado que começamos a inventar, a
passagem umas 30 vezes até encontrar sua forma perfeita, burilar e até a estetizar nossa memória, mesmo se esse não
sua musicalidade sensível, seu estilo particular, mesmo se é o caso no parágrafo em questão.
essa estilização do referencial se realiza em detrimento dele A manipulação referencial se observa ainda em meu
próprio: na verdade, o continente terá prioridade sobre o quarto romance, L' été .à Dresde, no qual o narrador conta
conteúdo, a forma sobre o fundo e o que permanecerá, no seu casamento abortado com uma jovem alemã do Leste
texto final, dessas reescritas, dessas variações recomeça- chamada Elisa, que veio a Paris para se tornar modelo. Nesse
das, será apenas o esqueleto do referencial. O manuscrito romance, aparece pela primeira vez meu sobrenome, "Vi-
propõe a seguinte versão: "Quando eu era criança, meu pai lain': mas o mais estranho é que não aparece no manuscrito.
era alcoólatra. Lembro que a palavra 'alcoólatra' provocava O referente foi, portanto, acrescentado a um eu anônimo,
em mim uma impressão estranha e designava pessoas que como para suplementá-lo, identificá-lo e confirmá-lo. Pela
eram sempre as outras, mas nunca meu pai, como se eu primeira vez, principalmente, através _desse acréscimo, cor-
não quisesse ver que falavam dele." A versão textual é mais respondo à exigência formal definida por Serge Doubrovsky
simplificada: "Meu pai era alcoólatra. Hoje, essas quatro de "chamar a si mesmo pelo próprio nome": exigência
segundo a qual a autoficção impõe a homonímia entre as
1
1
manuscrito (Rouen se transforma em Paris, aquele que se abala as bases nas quais me assento, e que poderíamos, para
recusou a prestar serviço militar se torna agente de seguros simplificar, formular nos seguintes termos: em que medida o
e escritor, E. vira Elisa etc.), no último momento, como se referencial diz mais respeito a um exercício de autoficciona-
a escrita pretendesse conservar, durante o maior tempo mento do que um exercício comum de ficcionamento, e em
possível, as referências do real e mascarar as referências um que medida ele significa propriamente um questionamento
pouco antes de fazer delas seu real de referência; é como eficaz para a autoficção? Se, segundo a definição inaugural
se a escrita pretendesse extrair dessas referências toda a de Doubrovsky, a autoficção postula um imperativo de
carga afetiva, a verdade sensível, emocional, que é, a meu exatidão referencial ("Ficção, de acontecimentos e fatos
ver - fidelidade muito rousseauniana ao que foi sentido, ex - estritamente reais"), qual seria então o valor dessa exatidão
perimentado -, uma verdade talvez mais essencial, embora em uma transposição, e como conciliá-la com o ficciona-
impossível de ser comprovada, que, abolindo a temporali- mento? Não deveríamos, antes, falar de referencial apócrifo,
dade de dois contextos diferentes, produzindo uma "ilusão a partir do momento em que o ficcionamento transformou
referencial", assegura uma permanência do "eu" entre o um referente a ponto de torná-lo irreconhecível como tal,
antetexto e o texto, entre o verdadeiro e o verossímil e, ao a partir do momento, sobretudo, em que o texto o desisto-
mesmo tempo, significa a via decididamente autoficional rizou, o privou de seu contexto de origem para situá-lo em
tomada pelo escritor. um contexto remodelado pela escrita, a partir do momento,
Como podemos ver, o referencial coloca um problema enfim, em que a imbricação do real e da ficção permitiu o
inerente a sua própria representação. Indagar suas modula- deslocamento das fronteiras espaço-temporais, superpon-
ções e variações, o espaço textual de sua metamorfose, não é do a um espaço-tempo primeiro - que possui apenas valor
apenas indagar o seu uso e a maneira como ele é experimen - denotacional- um espaço-tempo segundo que, na mente do
tado do antetexto ao texto, mas é também indagar seu valor leitor, se torna o referencial absoluto? E esse deslocamento
intrínseco e sua própria condição de referencial. De modo da ótica, e não do sujeito, não nos incitaria a reconsiderar
que a contribuição da crítica genética, ainda que não possi- a própria noção de verdade referencial cuja definição não
bilite suprimir a ambiguidade genérica dessas autoficções, poderia ser reduzida a uma factualidade e a um ocorrencial
também chamadas romances, mas declaradas como auto- restritos demais, mas cujo sentido deveria, ao contrário, ser
biográficas, levanta um problema teórico interessante que alargado até chegar a uma distinção entre um referencial real
referencial subjetivo, o que nos levaria, ao mesmo tempo, ' S. Doubrovsky, Le livre brisé, Paris, Grasset, 1989, P· 105·· "Ex umamos a reali-
dade. Aspiramos a ex-realidade:·
a atribuir ao exercício de autoficcionamento um poder ou
s D.-M. Mierzwa, La mémoire de l'amour dans loeuvre d: Philippe Vilain [A
uma qualidade de reversibilidade referencial? , . do amor na obra de Philippe Vilain l, Dissertaçao de Mestrado I em
memona . ) · nh de 2008
Por outro lado, e para terminar, é preciso indagar qual Letras Modernas Aplicadas, Universidade Pans IV (Sorbonne ' JU o .
seria, no fundo, o estatuto de um sujeito submetido a tal
reversibilidade, senão o de um sujeito de uma instância de
enunciação sem referências fixas. Sem conseguir resolver a
equivocidade genérica que a autoficção apresenta, nem mes-
mo propor critérios teóricos que certifiquem a existência
de um processo de gênese própria ao gênero, este estudo de
caso terá, ao menos, possibilitado fazer algumas perguntas
e propor elementos de resposta.
Notas
1
P. Vilain, L'étreinte, Paris, Gallimard, 1997, p. 35.
' Este é o único livro de Serge Doubrovsky traduzido para o português, com o
título O livro quebrado, trad. António Filipe Marques, Lisboa, DIFEL, 1992.
(N.T.)
Philippe Gasparini
1. Gênero
Partirei da hipótese de que a autoficção é o nome de um
gênero ou de uma categoria genérica. E que esse nome se
aplica, em primeiro lugar e antes de tudo, a textos literários
contemporâneos. Essa hipótese me parece ser, ao mesmo
tempo, a mais fecunda do ponto de vista da poética e a mais
conforme à gênese do conceito de autoficção.
No que tange à poética, a questão da autoficção tem o
mérito de relançar e estimular a reflexão sobre os gêneros;
simultaneamente, ela revigora um debate apaixonante, e
apaixonado, sobre os limites da literatura. A teoria dos gê-
neros, os critérios de literariedade são as questões centrais
propostas pela po,ética desde Aristóteles.
Em uma perspectiva aristotélica, Gérard Genette es-
tabeleceu uma oposição entre a literariedade constitutiva
dos textos de ficção e a literariedade condicional dos.textos
181
ti
referenciais.' Ora, há mais de 200 anos, existem escritores, romantismo empoeirado, categorias ignoradas ou recusadas
e não dos menores, para contestar essa clivagem e reivin- tanto pelos autores quanto pelo meio acadêmico.
dicar que seus textos autobiográficos beneficiem-se de uma Enfim, é comum que textos estritamente autobiográficos,
recepção literária incondicional. no sentido que conhecemos desde os primeiros trabalhos de
Alguns obtêm esse reconhecimento devido à notoriedade. Philippe Lejeune, sejam publicados com a etiqueta mentiro-
As lembranças de Rousseau, Goethe, Chateaubriand ou Sartre sa "romance" ou o rótulo eufêmico "narrativa" que ocultam
fazem parte de suas obras do mesmo modo que seus textos de a visada referencial.
ficção. Outros dissimulam suas confidências sob um verniz
romanesco. O texto que resulta propõe dois contratos incompatí- li. Invenção
veis que levam o leitor a uma caça aos indícios de referencialidade
O aparecimento da palavra autoficção deve, pois, ser
e de ficcionalidade. Essa é a estratégia em funcionamento em
situado no seguinte contexto:
Anton Reiser (de Karl Philip Moritz), René, Adolphe, Oberman,
• uma aspiração crescente dos autores de publicar textos
Les dernieres lettres de Jacopo Ortis [As últimas cartas de Jacopo
autobiográficos cuja qualidade artística possa ser reco-
Ortis] (d'Ugo Foscolo), La confession d'un enfant du siecle [A
nhecida;
confissão de um filho do século], Les confessions d'un mangeur
d'opium [Confissões de um comedor de ópio], David Copperfield,
• um vazio terminológico sideral que deixava sem nome
Henri le vert [O verde Henrique] (de Gottfried Keller).
uma parte considerável da produção literária. Era im-
possível, consequentemente, identificar esses textos,
Mas, pelo menos na França, esses textos não pertencem a
comentá-los, cotejá-los, situá-los em seu contexto cul-
um gênero claramente identificado. O alemão tem Ich Roman
tural. Em suma, era impossível compreendê-los.
e Bildungsroman, o japonês shishôsetsu, o inglês autobiogra-
phical novel, non-fiction, ou faction . Até os anos de 1980, não A palavra autoficção possibilitou nomear, e assim fazer
havia equivalente que tenha entrado em uso em francês. surgir, um espaço genérico que não era conceitualizado
"Romance pessoal" e "romance autobiográfico" eram enquanto tal. A maioria dos críticos admite agora que esse
expressões antiquadas, mais ou menos associadas a um conceito pode ser operacional. Mas falta ainda entrar em
entendimento sobre seu conteúdo e seus limites. Falta es-
pecialmente determinar se "autoficção" corresponde à uma
11
1
Jacques Lecarme foi o primeiro a ter a intuição de que de Modiano, L'amant [O amante] de Marguerite Duras,
a palavra autoficção podia, para além de Fils, designar L 'année de l'amour [O ano do amor] de Paul Nizon; - textos
também um gênero literário. Das diferentes definições mais estritamente autorreferenciais, nos quais a alegação
dadas por Doubrovsky, ele conservou dois critérios: a eti- de ficcionalidade parece ser mais estratégia de sedução ou
queta "romance" e a homonímia autor/herói/narrador. E precaução orátória: Les masques [As máscaras] de Régis
descobriu efetivamente, na literatura francesa, textos que Debray, Roland Barthes par Roland Barthes [Roland Bar-
seguem esses critérios. Dos textos" clássicos" de Loti, Breton thes por Roland Barthes], Biographie [Biografia] de Yves
(Nadja), Colette (La naissance du jour [O nascimento do Navarre, Lambeaux [Farrapos] de Charles Juliet; - textos
dia]), Céline (a trilogia alemã: D'un château l'autre, Nord, que justapõem, ou alternam, uma narrativa referencial e
Rigodon [De castelo em castelo, Norte, Rigodon]), Cen- uma narrativa ficcional: La naissance du jour de Colette,
drars (La main coupée, L'homme foudroyé, Bourlinguer, Le W ou le souvenir d'enfance [W ou a lembrança de infância]
lotissement du ciel [A mão cortada, O homem fulminado, de Perec, Les antimémoires [As antimemórias] de Malraux,
Bourlinger, O loteamento do céu], Genet Uournal du voleur Romanesques [Romanescos] de Robbe-Grillet; - outros que
[Diário de um ladrão]), que Doubrovsky citaria depois como parecem mais meditações ou ensaios como La douleur [A
seus precursores. Mas também livros um pouco esquecidos dor] de Duras, ou Le grand incendie de Londres [O grande
de François-Régis Bastide, François Nourissier, Antoine incêndio de Londres] de Jacques Roubaud; - coletâneas de
Blondin. E textos mais ambiciosos, mais vanguardistas: poemas: Chêne et chien [Carvalho e cão] de Queneau e Une
Mes parents [Meus pais] de Hervé Guibert, Pseudo [Pseu- vie ordinaire [Uma vida comum] de Georges Perros. Essa
dônimo] d'Emile Ajar-Romain Gary, os últimos romances lista, da qual propositalmente mostro a heterogeneidade,
de Aragon (Blanche ou l'oubli, La mise a mort, Le mentir- demonstra a que ponto a aplicação desses dois critérios é
-vrai [Branca ou o esquecimento, Tempo de morrer, O problemática. A homonímia não impede a afabulação, como
mentir-verdadeiro] ) etc. A essas narrativas que preenchem mostrará depois Vincent Colonna. Inversamente, em mui-
os dois critérios, Lecarme vai associar: - textos que não tos casos - Duras, Nizon, Camille Laurens, Philippe Vilain
respeitam o critério da homonímia: Pedigree de Simenon, ou Catherine Cusset, por exemplo-, o herói-narrador não
La séparation [A separação] de Dan Franck, os romances é nomeado, embora remeta incontestavelmente, por vários
J
A fim de evitar confusões seria preferível, para designar personagem), mas de conteúdo manifestadamente ficcional (por
essa figura, empregar o termo "autofabulação" criado por exemplo: fantástico ou maravilhoso) como o da Divina comédia de
Colonna. Dante ou o Aleph de Borges. Mantenho minha definição genérica,
Para ele, os outros tipos de "autoficção", que qualifica mas me vejo forçado a não empregar para nomeá-la um termo que
de "biográficos", não fazem mais do que seguir a tradição chamaria hoje de aviltado, se não tivesse consciência de tê-lo eu
do romance autobiográfico sem, na verdade, renová-lo: mesmo, outrora, tomado emprestado abusivamente a seu inventor
para designar um gênero no qual ele de fato não estava pensando.
Hoje, na literatura pessoal, se você ler o melhor Angot, já leu De todo modo, o corpus ao qual eu o aplicava é ínfimo do ponto
todos; o mesmo vale para Doubrovsky, e alguns epígonos. Trata- de vista quantitativo, se comparado ao da autoficção, no sentido
-se de uma literatura de manufaturadores, da reprodução de uma corrente e até mesmo abundante - como se diz de uma enchente
fórmula comprovada, mesmo quando esses autores recusam ou ou de uma maré negra - que adquiriu em nossos dias. Mas, com
ignoram esse fato, invocando uma divindade chamada "escrita" isso, esse corpus (o meu) ficou sem nome. Imaginei de maneira
para encobrir essa fraqueza. 19 fugidia o conceito igualmente contraditório de autobiografia não
autorizada, mas como não estou certo de que convenha, prefiro
reservá-lo para outra ocasião.21
Em Bardadrac,20 Gérard Genette, que orientara a tese de
Colonna, reconheceu os limites da autofabulação e até
desistiu de empregar o termo: O próprio Colonna admite que a autofabulação, que
produziu algumas obras-primas no passado, é muito pouco
praticada hoje: "A afabulação contemporânea parece ter
Tal como é praticado hoje, o "gênero" autoficção corresponde
abandonado essa postura e é bastante curioso, pois ela é
quase fielmente, senão dignamente, à definição ampla, e delibera-
rica em possibilidades narrativas e em temas cativantes. Por
damente desconcertante, de Serge Doubrovsky. A definição mais
não ser nem historiador da cultura nem sociólogo, eu teria
estrita que defendi durante um tempo, acreditando que estava
muita dific uldade em explicar tal indiferença." 22
certo, visava algo totalmente diferente: uma narrativa contradito-
Mas nem por isso, a definição de Colonna perdeu seu
riamente de estatuto declarado autobiográfico (segundo os crité-
valor. Na realidade, podemos considerar que boa parte da
rios de Philippe Lejeune: por homonímia entre autor, narrador e
produção autoficcional atual tem mais ou menos a ver com a
1 i
reforçam a especificidade da autonarração, apesar de todas Como fizera Doubrovsky em 1977, Federman nega,
as precauções oratórias do autor para se proteger. em 2008, que sua narrativa memorial seja considerada
Raymond Federman manifesta a mesma preocupação autobiografia, apesar das evidências. O único registro que
de não ceder à trivialidade naturalista quando se refere à reivindica é a ficção.
metaficção, sobreficção, "autobiografia de vanguarda" ou Marie Darrieussecq representa um caso à parte, pois
ainda à literatura "pós-moderna". E, quando se dirige ao ela dedicou sua tese à autoficção e defendeu o gênero em
público francês, emprega eventualmente o termo criado muitos artigos, entre 1996 e 1997, mas depois sua obra li-
por seu "companheiro neurastênico Serge Doubrovsky". terária foi essencialmente ficcional. E, paradoxalmente, ela
A palavra "autoficção" aparece, por exemplo, a partir da precisou justificar sua prática da ficção, para se defender das
página 23 de seu último livro, Chut, em um metadiscurso acusações de Maria N'Diaye e ainda de Camille Laurens.30
bem ao seu estilo: Esse último caso evidenciou a mudança profunda em
nossa concepção da literatura. Até hoje, o que se contesta-
Preste atenção, Federman. Se você continuar desse jeito, vai va era a legitimidade dos textos autobiográficos, em nome
cair no naturalismo de Zola. Não me importa. Eu tenho que dizer de princípios éticos, pelos críticos, pelos romancistas, ou
a verdade, mesmo se a verdade dói. Tudo bem, os leitores vão por pessoas que se consideravam caluniadas. E, no caso de
dizer: O que você faz não é romance, Federman, é autobiografia, Darrieussecq, questionou-se a legitimidade da ficção, o fato
ou pior, autoficção. de que se possa representar, em uma cena imaginária, um
E aí eu vou dizer, vocês quebraram a cara, o que estou contando sofrimento já descrito por suas vítimas. Qualquer que seja
é pura ficção, porque esqueci completamente toda a minha infân- nosso ponto de vista sobre a polêmica, o episódio questiona
cia. Tenho um bloqueio. Tudo o que digo, portanto, é inventado, é a convivência entre a escrita referencial e a escrita ficcional.
reconstrução. E como tudo o que se escreve é fictício, como disse É como se elas não pudessem compartilhar o mesmo espaço
Mallarmé, o que estou escrevendo, é ficção. literário, como se elas tivessem de se excluir uma à outra.
Os pequenos blocos de palavras que acumulo sobre o papel são Philippe Forest também é, ao mesmo tempo, teórico e ro-
como tijolos com os quais se constrói uma casa. Estou construindo mancista. Publicou diferentes estudos sobre o Surrealismo,
minha infância com blocos de palavras. 29 sobre o romance contemporâneo e o grupo Tel Quel, antes
1 l
pelo menos para descrever. Esse procedimento original "narrativa". La honte [A vergonha] eL'usage de la photo [O uso da
teve o que se pode ser considerado uma glorificação em foto), por exemplo, assim como Passion simple, se distanciam dela.
Les années [Os anos] (2008). É por isso que Annie Ernaux Portanto, Passion simple não é a meu ver uma autoficção, mas o
recusa categoricamente a palavra autoficção, conforme me boletim de ocorrência, o registro, "a exposição", a objetivação no
explicou, a respeito de Passion simple [Paixão simples], por sentido quase científico, o inventário, de uma paixão que tive. 31
e-mail, em 2006:
Estamos diante de uma posição diametralmente oposta
A única separação que estabeleço - talvez porque ela cor- à de Federman. Ao lado de escritores autoficionistas, que
responda em meu percurso a dois momentos bem distintos - é "misturam a ficção e a realidade", existem autores que, como
entre, por um lado, um texto em que o autor estabelece a possi- Annie Ernaux, mantém "uma postura de verdade" e tentam
bilidade de "se irrealizar" em fatos ou histórias imaginárias, de atingir certo grau de universalidade. Não sendo regidos
misturar a ficção (no sentido antigo) e a realidade, e, por outro pelo mesmo contrato de leitura, seus textos não pertencem
lado, um texto no qual a proposta é se ater à realidade tal como à mesma categoria pragmática. É o que explicou Philippe
foi percebida ou memorizada. A partir de Laplace [O lugar], a Lejeune em entrevista recente com Philippe Vilain que afir-
primeira categoria foi completamente abandonada e todas mi- mava: "uma descrição fiel do vivido me parece impossível."
nhas pesq~isas de escrita passaram a se inserir na segunda. Ao A essa questão, Lejeune respondeu:
mesmo tempo, o termo autoficção se vulgarizou mais de 15 anos
depois de eu ter escolhido a autobiografia e o uso que foi feito Sim. Há pessoas que se resignam a essa impossibilidade - você,
dele, que continua sendo feito, exceto no caso de Doubrovsky, Philippe Vilain, e Serge Doubrovsky - e há pessoas que não se
corresponde na maior parte das vezes a uma "zona" indecidível resignam; os que não se resignam parecem naifs para os primeiros.
entre autobiografia e romance, postura de verdade e postura de Pertenço à categoria dos naifs. As duas posições são constitutiva-
ficção. Em suma, sinto-me "estrangeira" à autoficção. (... )O que mente antinômicas. Nossa vida é um imaginário, um imaginário
conta para mim é encontrar, a partir de um conteúdo estritamen- que evolui, se questiona, esse imaginário é a realidade do que
te autobiográfico, uma forma, válida apenas para aquele texto. vivemos. ( ... ) Posso me colocar no sentido do vento, e m inha es-
Como o senhor observou, tenho cada vez mais dificuldade com a crita vai prolongar esse movimento de construção imaginária. Há,
Todos podem se apropriar dele ou rejeitá-lo em função de ' P. Lejeune, Le pacte autobiographique, Paris, Seuil, 1975, 1996, p. 31.
sua própria identidade narrativa e de sua própria mitologia 5 Carta de 17 de outubro de 1977 citada por Philippe Lejeune em Moi aussi, Paris,
Seuil, coll. Poétique, 1986, capítulo Autobiographie, roman et nom propre, p. 63,
estética. Palavra-teste, palavra-espelho, que nos devolve as e em Autofictions & cie., dir. S. Doubrovsky, J. Lecarme e P. Lejeune, RITM, n.
definições que lhe atribuímos. 6. Université Paris X-Nanterre, 1993, p. 6. Em Le Magazine Littéraire de março
de 2005 Doubrovky se refere novamente a essa frase do Pacto, desajeitada, mas
fecunda.
(Este texto que me foi gentilmente cedido 6 J.-J. Rousseau, Quarto passeio de Os devaneios do caminhante solitário, L&PM
pelo autor, foi apresentado na Universidade Editores, São Paulo, 2008. (N .T.)
de Lausanne, em 9 outubro de 2009 e se 7 P. Valéry, Stendhal, em Variétés II, Paris, Gallimard, 1930, p. 73-126.
encontra disponível no site Autofiction. 8
J.-P. Sartre, Autoportrait à 70 ans, entretien avec Michel Contat, em Situations
org: <http://www.autofiction.org/index. X, Par is, Gallimard, 1976, p. 146.
php ?post/2010/01/02/ De-quoi-1-autofic- 9 P. Lejeune, L'autobiographie en France, p. 20-21.
tion -est-elle-le-nom -Par-Philippe-G aspa- 10
O título de Doubrovsky remete à conhecida frase de Stéphane Mallarmé, em
rini>. Título original: "De quoi l'autofiction "Crise de verso" (1945): "La:uvre pure implique la disparition élocutoire du
est-elle le nom?") poete, qui cede l'initiative aux mots" [A obra pura implica o desaparecimento
elocutório do poeta, que cede a iniciativa às palavras] . Entretanto, Doubrovsky,
fazendo um jogo de palavras, utiliza o termo "maux" [males]. homófono de
"mots" [palavras]. (N.T.)
11 S. Doubrovsky, Autobiographie/vérité/ psychanalyse, p. 77.
Notas
12 Idem, Linitiative aux maux, écrire sa p sychanalyse, p. 177.
' Aristóteles: "De tudo o que dissemos, resulta claramente que o papel do poeta
é dizer não o que aconteceu realmente, mas o que poderia ter acontecido na 13 O título, Um amor de si, faz ecoar Un amour de Swann [Um amor de Swann],
ordem do verossímil ou do necessário. Pois a diferença entre o cronista e o segunda parte do pr im eiro volume de Em busca do tempo perdido, de Marcel
poeta( ... ) é que o primeiro diz o que aconteceu, o outro o que poderia ter Proust. A própria t rama do livro de Doubrovsky repete a aventura do perso-
acontecido; é por essa razão que a poesia é mais filosófica e mais nobre do que nagem de Proust, Swann, que teria passado anos apaixonado "por uma mulher
a crônica; a poesia trata mais do geral, a crônica do particular:· que não lhe agradava, que não fazia seu tipo''. (N.T.)
Philippe Lejeune
Philippe Vilain
223
+
A posição de Philippe Lejeune com relação à autobiogra- não destinados apublicação, os blogs, as narrativas de vida.
fia, da qual é um dos mais importantes teóricos, se aproxima Chamo a atenção para a variedade de situações e desejo que
da posição defendida por Annie Ernaux:: a promoção de um a problemática do debate respeite essa diversidade.
discurso de verdade e de uma autobiografia literal, radical, Peço então aos dois entrevistados que respondam em
mesmo se nos primeiros tempos de suas pesquisas, Lejeune função de suas experiências e reflexões a cinco perguntas su-
houvesse também assimilado a narrativa autobiográfica a cessivas: a especificidade da escrita do eu, as críticas aescrita
uma forma ficcional: "a autobiografia é um caso particular de si, a significação particular dessa forma de escrita hoje, o
do romance e não algo exterior a ele"; 3 "devemos ter em destinatário das escritas de si, seus dispositivos específicos.
mente que a autobiografia não passa de uma ficção pro-
duzida em condições particulares."4 Aproximadamente 25 Especificidade da escrita do eu
anos depois, em Signes de vie. Le pacte autobiographique 2
[Philippe Vilain] Essa pergunta me desconcerta, porque
[Sinais de vida. O pacto autobiográfico 2], ele classifica a
não faço diferença entre "escrever o eu" e "escrever", da
afirmação de "erro grosseiro". 5 Esta entrevista vai confirmar
mesma forma que não distingo o fato de escrever uma
a firmeza da posição de Lejeune sobre a questão.
"autoficção" do fato de escrever um "romance", uma vez
[Annie Pibarot]: Não apresentarei os dois entrevistados, cujas
que a autoficção se intitula, aliás, "romance". Formulando
biografias constam há muito tempo no site da Associação
de outra maneira, jamais digo que escrevo sobre mim ou
pela Autobiografia (APA). Philippe Lejeune éprincipalmente
sobre momentos de minha vida, mas que escrevo. A nuance
pesquisador, professor, mas também autor de textos pessoais.
me parece importante. Embora o "eu" seja objeto de minha
Philippe Vilain tem, por sua vez, uma identidade principal
escrita, ele só a influencia ou modifica sua orientação de
de escritor (com quatro romances publicados pela editora
maneira inconsciente. Ignoro se existe realmente uma es-
Gallimard), mas também é teórico, autor de uma tese e de
pecificidade da escrita do "eu". Mas se é que existe alguma,
um ensaio: Défense de Narcisse [Defesa de Narciso].
talvez fosse preciso procurá-la, quanto aos meus textos, no
Proponho manter como referência durante a entrevista as
que diz respeito a uma fidelidade sensível a meu vivido;
diferentes situações de escrita que são: escrita literária publi-
na verdade, escrevo mais sobre o que sinto do que sobre o
cada, escrita em oficina, escrita de diário ou de fragmentos
que vivi. Arrogo-me a liberdade de transformar os fatos,
e permite ir, por meio dessa inteligibilidade, ao encontro ' P. Lejeune, L'autobiographie en France, Paris, Armand Colin, 1971, p. 10 (igual-
mente para as citações seguintes). Cf. Le pacte autobiographique, Paris, Seuil,
dos outros. 1975, p. 14: "Narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua
Figuração: existem figuras de enunciação (falar de si na própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a
história de sua personalidade"'
terceira pessoa) e figuras de enunciado (metáforas, alusões
Jacques Lecarme
Foi professor de literatura francesa na Universidade de
Paris-Nord Villetaneuse. Professor emérito na Universidade
de Paris III Sorbonne Nouvelle. Além de numerosos artigos
sobre as escritas de si, publicou L 'autobiographie (1977,
2002), com Eliane Lecarme, Drieu La Rochelle, ou Le bal
des maudits (2001) e André Malraux, d'un siecle à l'autre
(2002), com Jean-Claude Larrat.
Jean-Louis Jeannelle
Professor de literatura na Universidade de Paris-Sorbonne
e pesquisador do Institut Universitaire de France. É autor
de Malraux, mémoire et métamorphose (2006) e de Écrire
ses Mémoires au xx' siecle: déclin et renouveau (2008). Or-
ganizou, em colaboração com Catherine Violet, a coletânea
Genese et autofiction (2007). É organizador da revista on-
-line Fabula-LHT (http:/ /www.fabula.org/lht/).