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MESMO NO DESERTO
Roteiro de Rafael Ary

Baseado na peça de mesmo nome.

INT. APARTAMENTO - DIA


Câmera subjetiva. Olhos abrindo devagar. Depois de focar com destreza,
vemos o teto do quarto. Pulo da cama. Caminha para a sala. Vai à cozinha.
Olha para o comedouro do gato vazio. Vai para a sala. Olha a mala que está no
meio da sala. Vai à janela. Olha para fora. Vemos a vizinhança. Apenas
ouvimos a porta da sala abrindo. Margô entra na sala.

SANDRA
Demorou.

MARGÔ
Impressão. Mesmo tempo de sempre. Abrir a porta, descer as escadas, dar
bom dia ao zelador, pisar com o pé direito na rua, arrumar o lenço, caminhar
rápido, dobrar a esquina, avistar a banca de jornal, entrar no mercado...

SANDRA
Lavou as mãos? Já lavou as mãos?

MARGÔ
Ainda não, você me perguntou, aí...

SANDRA
(De supetão, cortando a fala da Margô. Entrega o álcool em gel para ela.) Uma
vez você me disse que eram exatos dezessete minutos para chegar ao
mercado. Dezessete minutos pra ir, dezessete minutos pra voltar. O que, numa
soma simples, dá trinta e quatro minutos. Então me permita pensar a respeito.
Sei que ir ao mercado não é uma ciência exata, mas podemos imaginar o que
acontece. Você entra no mercado, sim? Já conhece todos os corredores,
correto? Vai direto ao produto que te interessa, concorda? Ora, o
estabelecimento tem por volta de mil metros quadrados, confere? Deste modo,
não é preciso mais que dez minutos para juntar os alimentos, levar ao caixa e
pagar. Como sempre te dou, mais ou menos, o valor exato das compras, o
atendente nunca precisa pedir pelo troco, não é? Agora, trinta e quatro mais
dez, conforma um total de quarenta e quatro minutos. Não que eu tenha
contado, mas faz mais de uma hora e meia que você saiu, de acordo?
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MARGÔ
O tempo virou. Esfriou. Eu prefiro. Transpirar é um inconveniente.

SANDRA
É, o dia ficou cinza de repente. Tá tudo parado. Eu vi você dobrando a esquina.
Você tem as passadas largas. Tem horas que eu tenho certeza que você vai
correr. Se não fosse a curva eu te seguiria até o mercado.

MARGÔ
Eu agradeço a companhia.

SANDRA
Trouxe a comida?

MARGÔ
Trouxe. A do Emiliano. (Mostra o saco de ração da marca Miuau, Miuau.)

Olho da Sandra treme nervoso. Gota de suor. Tensiona o canto da boca.

SANDRA
Oi? Dava pra comprar um quilo de maminha com o que eu te dei.

MARGÔ
(Põe ração no comedouro do gato.) Mimi, vem. Vem comer, carminha da
mamãe. Olha que gostoso o que a mamãe trouxe pra você. Venga, venga, mira
que rico, corazón.

SANDRA
Ele não gosta de gritos.

MARGÔ
O canalha desaparece.

SANDRA
Continua caçando.

MARGÔ
Nunca mais me deu ratos de presente.

SANDRA
Nunca mais vimos um.
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MARGÔ
Temperamental.

SANDRA
Como a mãe. Cadê o troco?

MARGÔ
Não tem troco.

SANDRA
Nem pão, nem café.

MARGÔ
Sua memória está péssima.

SANDRA
O desjejum é a refeição mais importante do dia.

MARGÔ
Mimi! (Chacoalha o comedouro até desistir.) Jejum intermitente faz muito bem,
você vai viver até os cem anos.

Sandra põe a mão na barriga.

SANDRA
Se você começa o dia sem os nutrientes certos, pode não render o quanto
gostaria.

MARGÔ
Eu tenho uma surpresa pra você.

Garganta da Sandra. Engole seco.

SANDRA
É?

MARGÔ
Comprei ração nova.

SANDRA
Percebi...
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MARGÔ
Sabe por quê?

SANDRA
(Preocupada.) Novo sabor?

MARGÔ
Não. Tá vendo aqui? Lê! (Mostra. Antes que a Sandra pudesse ler, ela mesma
puxa e lê.) Compre nossa deliciosa ração com pedacinhos de carne de
verdade. (Para de ler. Está eufórica.) Tem carne de verdade aqui, mas não é só
isso. Eu comprei cinco sacos agora e vou comprar outros dois mais tarde, daí é
só cortar o cupom e esperar o sorteio.

SANDRA
Isso eu já sei, mas o que tem esse cupom?

MARGÔ
Aqui são cinco agora, tá vendo? Dois mais tarde, preciso de mais dinheiro. Não
é gasto, é investimento.

SANDRA
E qual é a surpresa?

MARGÔ
Deixa eu terminar de falar. O que a gente estava fazendo ontem, na hora do
jantar? Lembra?

SANDRA
Ontem, deixa eu ver, a gente estava comentando sobre a dona Delma, que
ganhou um Fiat Uno no bingo.

MARGÔ
Não. Se concentra.

SANDRA
Então eu não lembro, fala logo o que foi, para com esse mistério.

MARGÔ
A gente vai concorrer, eu e você, a uma viagem pro maravilhoso deserto do
Atacama. (Vai até a mesa e pega uma revista com uma foto de um deserto.)
Olha aqui, a gente tava vendo ontem. Isso foi por acaso? Olha.
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SANDRA
Curioso.

MARGÔ
É ou não é um sinal?

SANDRA
(Irônica.) Você tem razão. Um sinal desses não deve ser desprezado.

MARGÔ
Fiquei feliz só de imaginar. Depois eu lembrei do Emiliano, quando a gente for,
quem vai dar comida pra ele?

SANDRA
A gente tem tempo pra pensar nisso.

MARGÔ
Tenho certeza que é um sinal. Não tem sentido, uma ração de gato dar uma
viagem pro Atacama. Alguma coisa vai acontecer lá, não é possível. Se a gente
não se abre pro mundo, nada acontece e eu estou aberta. E algo vai acontecer.
Pra nós duas. Eu estou sentindo.

SANDRA
Posso ler o regulamento?

Margô dá o pacote para Sandra. Ela procura os óculos que estão no topo de
sua cabeça. Acha os óculos, sorri. Senta no sofá para ler. Começa a tossir, até
que, aos poucos, começa a evoluir para uma crise de asma. Sandra vai até ela
e oferece a bomba. Sandra puxa com toda força. Margô a abana com a mão,
sem muita convicção.

SANDRA
Minhas crises estão cada vez piores. São crises de mofo. Coincidência ou não,
eu piorei desde que fui obrigada a suportar a presença dessa mala na minha
sala.

Margô busca um borrifador e borrifa toda a mala. Enquanto pulveriza toda a


mala, fala.

MARGÔ
Aqui fica mais fácil pegar o que eu preciso, nunca se sabe o que vai acontecer.
Eu posso precisar de alguma coisa, numa urgência.
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MARGÔ
Por exemplo?

SANDRA
Não sei.

O vizinho de cima liga o rádio.

RÁDIO
Promoção, leve quem você ama para o Atacama com a Miuau, Miuau! Recorte
os cupons e concorra a uma viagem ao fabuloso deserto do Atacama.
(Rápido.) O ministério da saúde adverte, grandes variações térmicas exigem
uma diversidade de vestuário. Não esqueça de usar máscara.

Começa a tocar uma música de motel. Vai ficando inaudível aos poucos.

SANDRA
Se vamos fazer essa viagem, é melhor estar preparada. Então, fazendo uma
primeira triagem. Roupas brancas pela manhã, calça térmica pra dormir. E,
pelos meus cálculos, dá uma média de três a quatro sutiãs pra cada uma. Um
mais fresquinho, um cor de pele, um pretinho pra usar à noite. Calcinha.
Calcinha, eu faço uma estimativa de umas cinco, seis, sete. Também de cores
variadas, tecidos variados. Por quê? Porque a gente deve estar preparada pra
qualquer situação. Manteiga de cacau pra preservar os lábios, creme hidratante
e um bom lubrificante pras mucosas íntimas. Mas o mais importante é como
dobrar. Assim, em rolinhos. Pra economizar espaço e preservar a integridade
dos materiais. Porque tudo é perecível, não é? Então a gente tem que cuidar.
Inclusive, eu não sei se você sabe, mas o índice de bagagens extraviadas é
altíssimo. Só no território nacional é uma média de não sei quantas malas
extraviadas por dia. É um número considerável. E se fossem só as malas,
porque têm as pessoas. E eu não estou falando de tráfico de órgãos, sequestro
relâmpago. Eu estou falando do quê? Eu estou falando que as pessoas
determinam um destino, elas querem chegar ali. E aí o que acontece? Vem o
outro destino, aquele com dê maiúsculo, e se atravessa, gerando um terceiro
destino, às vezes um quarto, quiçá um quinto. Ou seja, são vários destinos que
estão ali, atuando, interdependentes. E a vida é essa grande espiral, que está
em constante movimento. Por vezes, ascendente, outras, descendente. E a
gente tem a impressão de que está parado no mesmo lugar. Mas, na verdade,
não.
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Depois de tempo paralisada, como que em transe, Margô se move em direção


à cozinha.

SANDRA
Onde você vai?

MARGÔ
Ao banheiro.

Desorientada, Margô muda de direção e vai ao banheiro. Sandra pega uma


revista jogada na mesa da sala. Folheia, buscando uma informação específica.

INT. BANHEIRO - DIA


Margô entra no banheiro. Balbucia só palavras inaudíveis. Lava a mão
compulsivamente. Olha no espelho e solta um grito mudo. Morde a mão. Sai do
banheiro.

INT. APARTAMENTO - DIA


Margô volta enxugando as mãos na roupa.

SANDRA
Olha o que eu achei. (Lê.) A maioria das classificações repousa numa
combinação de número de dias de chuva por ano, a quantidade pluviométrica
anual, variação de temperatura, umidade e outros fatores. Aproximadamente
vinte por cento da superfície continental da Terra é desértica. (Mostra a imagem
de um deserto.) Não é deslumbrante?

MARGÔ
É maravilhoso.

SANDRA
Como pode tanta coisa acontecer num lugar tão inóspito?

MARGÔ
Inóspito. (Pega uma caneta e uma caderneta do bolso. Escreve.) Inóspito.

SANDRA
(Volta a ler.) Os desertos também são classificados por sua localização
geográfica e padrão climático predominante, como ventos alísios, latitudes
médias, barreiras antichuvas, costeiros, de monção e polares. Antigas áreas
desérticas presentes em regiões não-áridas formam os chamados
paleodesertos. Há ainda os desertos extraterrestres, em outros planetas, como
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o deserto dos ventos vermelhos de Marte. (Para de ler.) Então, eu estou


organizando, classificando assim: História, fronteiras, demografia,
infraestrutura, cultura. Acho que assim fica mais (Pausa.) conciso.

MARGÔ
Não sei se é conciso. Não é essa a palavra. (Pausa.) Simples.

SANDRA
Sintético.

MARGÔ
Sincero.

SANDRA
Sináptico.

MARGÔ
Simbólico.

SANDRA
Sinérgico.

MARGÔ
Sine qua non.

SANDRA
Não. Sine qua non, não. Sintético, simbólico, simples. Sine qua non? (Fica em
silêncio.) É como eu sempre digo: conhecer é romper a fronteira do óbvio.
Saber é ser, enxergar além. Sem isso, sair a qualquer lugar é inútil.

MARGÔ
Resumindo, navegar é preciso.

SANDRA
Exatamente.

MARGÔ
Só de pensar eu fico nervosa, imaginando cada coisa acontecendo. A gente no
aeroporto...

SANDRA
Ou num navio.
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MARGÔ
Ou num navio, que seja. Eu imagino nós duas, maravilhosas, palpitantes, indo
de encontro ao nosso destino. Rumo ao novo, ao inesperado. Tem algo grande
pra gente lá fora.

Margô vai até a cozinha e traz a caixa de remédios, que, na verdade, foi
improvisada em uma caixa de sapatos. Retira da caixa diversos frascos
contendo, cada um, pílulas de cores diferentes.

MARGÔ
A gente tá ficando ansiosa, não é? Hora de uma azulzinha?

SANDRA
Ainda não, senão caio no sono e não volto nunca mais.

MARGÔ
A vermelha, que tal?

SANDRA
Será? Acho que ainda não é o momento...

MARGÔ
Então não sei. (Toma uma pílula azul.) Faz o que achar melhor?

SANDRA
Da última vez não me caiu bem, fiquei passada… Me dá uma aqui… (Toma a
pílula azul.)

As duas vão tomar sol na varanda.

EXT. VARANDA - DIA


Meio-dia. As duas estão deitadas em cadeiras de praia, com chapéu de praia e
óculos escuros. Sandra tem ainda um objeto que reflete a luz do sol,
posicionado de forma a bronzear a papada. Muito calor.

SANDRA
Isso aqui é fichinha perto dos cinquenta e sete graus do Saara.

MARGÔ
Seco, seco, seco.
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SANDRA
Cinquenta e sete graus na sombra.

MARGÔ
As mucosas ficam todas ressecadas. (Passa a língua nos lábios.)

SANDRA
O deserto do Atacama é o lugar mais árido do mundo, já ficou quatrocentos
anos sem chover. (Pausa.) O dromedário bactriano pode ficar até um ano sem
beber água. Já as plantas xerófilas armazenam água nos caules e possuem
raízes profundas que alcançam os lençóis freáticos mais recônditos. A maioria
dos animais se hidrata apenas com o líquido dos alimentos que ingere.
(Pausa.) Mas seres humanos não são dromedários.

MARGÔ
Seres humanos existem em todo lugar. É uma praga.

SANDRA
Os dromedários encontram-se extintos na natureza selvagem. Todos os que
existem moram em cativeiros.

Olhos arregalados da Margô. Engole em seco. Gogó sobe e desce.

MARGÔ
Deve ser melhor morrer do que viver num cativeiro.

SANDRA
Os cangurus vermelhos da Austrália lambem os antebraços pra diminuir a
temperatura corporal. Lambem até acabar toda a saliva. Lambem até ficar em
carne viva.

MARGÔ
(Apenas a língua aparece.) Em carne viva!

SANDRA
Além dos dromedários, existem camelos, cabras, ratos... cobras...

MARGÔ
Escorpiões...

As pupilas da Sandra se abrem. O efeito da pílula está perto do auge.


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SANDRA
Escorpiões venenosíssimos. (Pausa.) Têm também lagartos, elefantes,
gafanhotos, saguaros! O saguaro é uma espécie de cacto do deserto de
Sonora que é capaz de armazenar toneladas de água em seus ramos.
Toneladas! Os guanacos, um tipo de camelo da América do Sul, se alimentam
das flores dos cactos. As mesmas flores que, de madrugada, alimentam os
morcegos de nariz longo e os morcegos de língua grande. (Pausa.) Ah... e tem
também os gafanhotos do Vale da Morte! Os ovos deles passam trinta anos
enterrados na areia até chegar uma chuva e fazer tudo eclodir. Aí é gafanhoto
pra tudo que é lado! Uma nuvem de gafanhotos... Um enxame... Bilhões e
bilhões de gafanhotos! Sessenta quilômetros de gafanhoto...

MARGÔ
(Chapada.) Mas no deserto não tem nada!

SANDRA
(Para si.) Não tem nada... não tem nada... É! Não tem nada! Aliás, deserto vem
do latim desertus, que significa abandonar.

MARGÔ
Peraí, não tem... nada? Não tem padaria?

SANDRA
Não.

MARGÔ
Não tem geladeira, não tem chuveiro elétrico?

SANDRA
Também não.

MARGÔ
Não tem bingo, não tem jogo do bicho, não tem casa lotérica, não tem cassino?

SANDRA
O que me intriga de verdade é uma ração de gato sortear uma passagem pro
deserto. Faz sentido?

Margô se levanta. Fecha a cadeira. Quebra o clima.

INT. SALA - DIA


Margô procura uma roupa na mala que está aberta no meio da sala.
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MARGÔ
Quer alguma coisa da rua?

SANDRA
Vai sair?

MARGÔ
Eu te falei desse compromisso.

SANDRA
Não lembro.

MARGÔ
(Revira a mala freneticamente.) Acho que eu vou tatuar no seu braço em vez
de te dizer as coisas.

SANDRA
Tem como adiar?

MARGÔ
Em cima da hora?

SANDRA
Tem ou não tem?

MARGÔ
Tem, mas eu não queria.

SANDRA
Não estou me sentindo bem. Acho que é o calor.

MARGÔ
Vai se deitar um pouco.

SANDRA
Não estou com sono. Engraçado, você sempre diz que eu não lembro dos seus
avisos. Mas eu tenho certeza que lembro dos avisos que você me deu.

MARGÔ
Essa conversa está ficando chata.
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SANDRA
Então é melhor pararmos por aqui. Você quer um chá?

MARGÔ
Na volta eu tomo.

SANDRA
Vai esfriar.

MARGÔ
Eu esquento.

SANDRA
Depois de algum tempo, o chá perde todas as suas propriedades curativas.

MARGÔ
Eu estou atrasada.

SANDRA
(Muda o tom da voz.) Não me obrigue.

MARGÔ
(Sorriso amarelo.) Não entendi...

SANDRA
Entendeu, sim.

INT. SALA - DIA


Passagem do tempo. Sandra está só na sala. Vai até o pote escondido onde
guarda o dinheiro, conta o dinheiro rapidamente. Margô aparece. Sandra
esconde o pote. Margô vem da cozinha com vários sacos de ração vazios e
apenas um cheio. Despeja um pouco de ração no pote do gato de forma
exagerada até acabar. Tira a tesoura do bolso e começa a cortar os cupons de
forma cuidadosa. Sandra senta no sofá e observa Margô.

MARGÔ
Tem que cortar tudo direitinho, na linha pontilhada. Se uma pessoa nem isso
consegue fazer direito, o que pode querer mais?

Tesoura cortando os cupons. Olhos de Margô vidrados na ação. Continua a


cortar os cupons ansiosamente. Para e fica observando a lâmina da tesoura, vê
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seu reflexo, ri, puxa os cantos dos olhos. Aproxima aos poucos a lâmina do
pescoço. Suspira com o contato.

MARGÔ
Hoje tem sorteio. Só preciso de sorte, um pouquinho de sorte pra mudar minha
vida. Nossa vida, quero dizer. (Lê os números de um cupom qualquer.)

SANDRA
E eu tô com fome. Só isso. Fome, simples assim. (Silêncio. Margô não
responde, continua cortando os cupons.) Que é que foi, o gato comeu sua
língua? (Pausa.) Fala alguma coisa. Você tá na minha casa, eu exijo que você
responda minhas perguntas, tá ouvindo?

Margô levanta e se coloca na frente de Sandra. As duas se encaram. Sandra


vai pra cozinha.

INT. COZINHA - NOITE


Em cortes rápidos, vemos Sandra de costas mexendo uma panela. Bate a
concha na borda da panela. Boca provando o ensopado. Tampa a panela,
empilha os pratos, junta os talheres, pega os copos, enche a jarra de vidro com
água da torneira. Mesa posta.

SANDRA
Vem jantar, antes que esfrie.

Margô chega desconfiada. Sandra abre um sorriso. Margô devolve o sorriso,


relaxa um pouco e senta. Sandra serve as duas. As duas dão a primeira
colherada de forma sincronizada.

MARGÔ
Mudou o tempero?

SANDRA
Gostou?

MARGÔ
Tá gostoso.

SANDRA
Que bom.
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As duas continuam tomando sopa. Sandra faz um enorme barulho ao sorver a


sopa. Margô claramente incomodada com o barulho.

MARGÔ
Depois do jantar eu vou arrumar as malas para a viagem.

SANDRA
Deixa que eu arrumo, eu treinei pra isso.

MARGÔ
Deixa, deixa, eu quero fazer, por favor. (Se levanta e corre pra sala.)

INT. SALA - NOITE


Enquanto Margô joga as coisas dentro da mala, Sandra retira e tenta organizar
devagar.

SANDRA
(Enquanto tenta organizar.) E, pelos meus cálculos, você sabe, deu uma média
de três a quatro sutiãs pra cada uma. Um mais fresquinho, um cor de pele, um
pretinho pra usar à noite. Calcinha. Calcinha, eu fiz uma estimativa de umas
cinco, seis, sete. Tudo em rolinhos pra não desgastar o material.

MARGÔ
Eu vou por quantas calcinhas eu quiser.

SANDRA
Escuta. Você gastou todo o nosso dinheiro, mas está tudo bem, eu entendo. É
um sonho ir pro exterior. Eu entendo...

MARGÔ
Para. Cala a boca. Não diz nada.

SANDRA
A gente precisa ter calma, não tem pressa pra nada, vamos sentar e tomar o
resto da sopa, que tá esfriando.

MARGÔ
Eu não vou mais tomar sopa, nunca mais vou tomar sopa, eu odeio sopa.

SANDRA
Mas você disse que tinha gostado. (Pausa.) Talvez esteja um pouco rala. (Vai
até o comedouro do gato e pega a ração.)
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INT. COZINHA - NOITE


Margô segue Sandra até a cozinha. Sandra joga a ração que está dentro do
comedouro na panela, mexe e serve nos pratos. Prova.

SANDRA
Bem melhor.

O vizinho de cima liga o rádio. Sons de estática, sintonizando. Margô junta


todos os cupons na mão, agarra a mão da Sandra.

RÁDIO
E o grande vencedor do sorteio da ração Miuau, Miuau, que dará uma viagem
ao deserto do Atacama, foi o cupom de número: 1, 2, 3, 4 e 5. Parabéns! E não
esqueçam, a Miuau, Miuau vem com pedaços de carne de verdade.

Sandra passa a língua no dente, tira um pedacinho de carne e engole. Vizinho


desliga o rádio.

SANDRA
Amanhã vai ser outro dia.

Sandra consola Margô. Puxa ela pelo braço até a mesa. Margô senta. Olha
para o prato. Pega a colher com firmeza e toma com raiva a sopa. Sandra
senta. Olha para Margô com quase amor e muito alívio dela existir. Toma a
sopa calmamente.

SANDRA
É, pelo visto, o Emiliano não vem pro jantar.

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