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Título do original еш russo:

RETCH I MISHLÊNIE

Capa:
Do u n ê

Revisão:
U m b e r t o F. P in t o ,
N il o F e r n a n d e s
e M a r io E l b e r C u n t ía

Direitos desta edição adquiridos,


com exclusividade para a língua portuguesa, pela
EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
Rua Muniz Barreto, 91/93,
RIO DE JANEIRO — R J,
que se reserva a propriedade desta tradução.

1979

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Sumário

I — O C o m po r t a m e n t o I n t e l e c t u a l 1
O ato intelectual e sua estrutura 1
A atividade intelectual direta 4
Patologia do pensamento direto 13

II — A P alav ra e o C o n ceito 17
O significado da palavra 18
Métodos de pesquisa dos significados da palavra 24
Evolução do significado das palavras 28
A palavra e o conceito 35
Métodos de estudo dos conceitos 39
Patologia do significado das palavras e dos
conceitos 48

III — E n u n c ia d o e Pe n s a m e n t o 53
Meios sintáticos de enunciação 54
Principais tipos de enunciados 56
Evolução das estruturas lógico-gramaticais do
enunciado 58
Processo de codificação do enunciado verbal. Do
pensamento à linguagem ampla 61
Tipos de enunciado verbal e sua estrutura 66
Patologia do enunciado verbal 72
Processo de decodificação do enunciado verbal.
O problema da interpretação 76
O problema da decodificação (interpretação) da
comunicação 76
Decodificação (interpretação) do sentido das
palavras 79
Decodificação (interpretação) dos significados
da oração 82
Interpretação do sentido da comunicação 86
Patologia da interpretação da fala 93

IV — O P e n s a m e n t o P r o d u t iv o . D e d u ç ã o e So l u ç ã o
da s Ta r ef a s 99
O problema 99
As estruturas lógicas como base do pensamento 102
Desenvolvimento da conclusão lógica na criança 108
Processo de solução das tarefas 111
Métodos de estudo do pensamento produtivo 115
Patologia do pensamento produtivo 120
I

O Comportamento Intelectual

A rÉ a g or a abordamos as condições básicas da ativida-


de consciente do homem: a obtenção de informação, a
discriminação dos elementos essenciais e o registro da infor-
mação recebida na memória.
Agora devemos passar ao exame do modo de constru-
ção da atividade consciente do homem no conjunto e, acima
de tudo, abordaremos a estrutura das formas complexas de
sua atividade intelectual.
Examinaremos primeiramente a estrutura do ato intelec-
tual nas formas mais aproximadas dos atos de análise direta
e síntese da informação que o homem recebe diretamente do
mundo circundante para, em seguida, abordar as leis básicas
das formas mais complexas de pensamento que o homem rea-
liza com base em sua linguagem.

O ato intelectual e sua estrutura

Já vimos que existem três formas básicas de comporta-


mento. já observadas nos animais, que experimentaram um

1
desenvolvimento substancial na transição do macaco ao
homem.
As de caráter mais elementar são as formas mais simples
de comportamento motor-sensorial. Elas se manifestam no
fato de surgirem imediatamente no animal formas congénitas
simples de comportamento, que aparecem sob a influência
das inclinações congénitas básicas ou necessidades (fome,
necessidade sexual) ou no fato de que o animal responde
com os necessários movimentos reflexos a influências exter-
nas imediatas. Esse tipo de comportamento, na forma mais
complexa e ampla, assume o aspecto de comportamento
instintivo, no qual a percepção dos indícios de uma situação
qualquer aciona programas congénitos de comportamento
que, em alguns casos, adquirem fcrma muito complexa.
Esses atos de comportamento motor-sensoriais e instinti-
vos mantêm-se no homem; neste, não obstante, eles são rele-
gados ao último plano e afastados pelas formas mais com-
plexas de atividade psíquica.
A segunda forma básica é constituída pelo comportamen-
to perceptivo. Este surge com o desenvolvimento dos órgãos
complexos dos sentidos, com a dificultação da atividade de
pesquisa e orientação e com o surgimento dos níveis supe-
riores do aparelho cerebral: o córtex cerebral. Essa forma de
comportamento se baseia na análise da situação direta em
que se encontra o animal, na discriminação dos elementos
mais importantes dessa situação e na adaptação do compor-
tamento às condições da situação imediatamente perceptível.
Esse comportamento compreende operações de análise
direta e síntese, a formação de certas imagens motoras ou
“cópias” do mundo exterior e a aquisição dos atos adaptati-
vos que tornam o animal apto para a situação em mudança.
Para esse comportamento perceptivo, o mais importante''
é que a aquisição de novas formas de comportamento adap-
tativo ocorre em condições de testes ativos imediatos e, de-
pois de inúmeras repetições da mesma situação, as novas
formas de atividade adaptativa se tomam automáticas, a ati-
vidade adaptativa do animal se transforma em sistema de
habilidades sólidamente fixadas.
Essas formas de comportamento direto ou adaptativo,
que se afirma com base na atividade orientadora de pesqui-
sa, começam a ocupar papel determinante entre os vertebra-
dos superiores; sem perder a ligação com as formas instinti-

2
vas de comportamento, elas se tornam forma básica de com-
portamento dos mamíferos superiores e conservam posição
considerável na atividade consciente do homem.
A terceira e mais complexa forma de comportamento é o
comportamento intelectual, que existe no animal apenas em
formas embrionarias, tornando-se quase forma básica de ati-
vidade consciente.
O traço característico do comportamento intelectual con-
siste em que a atividade orientadora-intelectual, que antes en-
globava todo comportamento, começa a destacar-se e se con-
verte em atividade independente e antecede ao comportamen-
to, criando-lhe a base. Os mamíferos superiores (primatas)
se orientam no ambiente retendo as suas reações imediatas e
formando um prévio “modo de ação”, que começa a servir
de “base orientadora da ação” e a determinar as posteriores
formas complexas do ato motor.
No processo da atividade de pesquisa e orientação for-
ma-se uma tarefa concreta, cria-se uma estratégia geral de
atividade que deve levar à solução de tal tarefa, surge a
tática de ação que pode conduzir ao êxito e destaca os modos
de solução ou operações que podem levar ao cumprimen-
to da tarefa. Por último, aqui mesmo surgem certos mecanis-
mos de controle, através dos quais o efeito da ação coincide
com a intenção inicial caso esse efeito não conduza ao resul-
tado necessário e entre a intenção inicial e o efeito da ação
continue a existir certa “divergência”, incorporando-se auto-
maticamente novas buscas da solução necessária, que conti-
nuam até que a solução seja encontrada.
O comportamento “intelectual” tem um expresso caráter
direto, pois até as suas formas mais elevadas continuam man-
tendo a mais estreita ligação com a percepção e ocorrem nos
limites do campo imediatamente perceptivo. Somente no ho-
mem, que inaugura a fase de transição para o trabalho so-
cial, com o surgimento das ferramentas e da linguagem, esse
caráter direto do comportamento intelectual cede o lugar a
novas formas. A assimilação de formas novas historicamente
surgidas de atividade material, o domínio da linguagem, que
permite uma codificação abstrata da informação, levam o ho-
mem a modalidades inteiramente novas de atividade de pes-
quisa e orientação. Esta deixa de ocorrer no campo direto
separa-se da situação imediatamente perceptível. O homerr
está em condições de formular em palavras a sua tarefa, de
assimilar os princípios abstratos de sua solução; ele se tor-'
na capaz de transmitir a estratégia de sua atividade, apoian-
do-se não em imagens diretas mas em esquemas abstratos de I
linguagem, e seus planos e programas de ação assumem cará-j
ter livre, tornando-se independentes da situação imediata.J
Surgem-lhe novas formas de comportamento auténticamente
intelectual, no qual as tarefas complexas se resolvem inicial-
mente no “plano mental”, concretizando-se posteriormente
em ações exteriores. Muda a correlação dos processos psíqui-
cos fundamentais. Se antes a atividade intelectual subordina-
va-se inteiramente à percepção direta, agora a percepção
muda sob a influência dos esquemas abstratos que se formam
com base na assimilação da experiência histórica e do domí-
nio dos códigos abstratos da linguagem.
Produz-se um salto do sensorial ao racional, modificando
de tal modo as leis básicas da atividade psíquica, que os clás-
sicos da filosofia materialista tiveram fundamento para con-
siderá-lo um acontecimento tão importante quanto o salto que
ocorre na transição do inanimado para o animado ou na pas-
sagem do mundo vegetal para o animal.
Agora passaremos à análise das formas básicas de ati-
vidade intelectual do homem, e começaremos pela análise
das formas mais simples de atividade intelectual direta.

A atividade intelectual direta

A atividade intelectual dos animais superiores, sobretudo


dos macacos, estudados minuciosamente por Kõhler, apresen-
ta grande ligação com as condições do campo visual ime-
diatamente perceptível. O macaco relaciona os objetos no
campo visual imediato com relativa facilidade e sente difi-
culdades se tiver de operar com elementos de uma situação
que não façam parte de um campo de visão, pois ele não tem
condições de ir além dos limites de uma situação direta e
subordinar o seu comportamento a princípios abstratos.
É totalmente diferente o caráter da atividade intelectual
prática do homem. Vários estudiosos não-soviéticos costu-
mam separar a atividade intelectual prática da atividade in-
telectual teórica e considerar que ela ocorre no plano intei-

4
ramente direto, sem qualquer participação considerável do
discurso.
Esse ponto de vista revelou-se profundamente erróneo.'1
Como mostraram as pesquisas, a atividade prática concreta
ocorre nos limites do campo direto e subordina-se inteira-
mente às leis da percepção direta imediata da criança pe-
quena. Nesta, não obstante, ela logo passa a ser determina-
da pela comunicação com os adultos, assumindo poste-
riormente caráter complexo específicamente humano, abran-
gendo novas formas de análise verbal e planejamento verbal
da atividade intelectual.
Somente na criança de 2-2,5 anos podemos observar a
completa dependência do ato “intelectual” em relação à per-
cepção visual direta.

Se estendermos diante da criança três linhas, fixando


a uma delas um objeto que lhe chame a atenção, ela
agarra facilmente a linha necessária e a puxa para si.
Se afastarínos para um lado a linha a que está fixado
o objeto, a criança não tem condições de distinguir o
devido extremo e costuma puxar a linha situada num
espaço mais próximo do objetivo.
O mesmo ocorre se apresentarmos à criança uma
alavanca com um objeto que lhe chame a atenção, fixado
num extremo e, no outro, uma caneta. Neste caso a
criança de 2-2,5 anos ou começa a estender o braço
diretamente para o objeto, ou a puxar a caneta em sua
direção, afastando, assim, o objeto que o atrai. A criança
não pode reagir às “regras” da alavanca em vez do cam-
po diretamente perceptível e as inúmeras repetições do
teste não surtem o efeito necessário.

Com a evolução da criança, muda o caráter motor-sen-


sorial das ações, distingue-se uma fase especial de orientação
prévia numa situação. A criança começa a resolver a tarefa
prática que lhe foi sugerida, examina inicialmente a situa-
ção para posteriormente subordinar suas ações a um plano
elaborado no processo de orientação prévia.
Essa distinção do estágio de orientação prévia na tarefa
aumenta substancialmente a possibilidade de êxito de sua
solução.

5
Psicólogos soviéticos examinaram como se forma gra-
dualmente na criança a solução organizada da tarefa de en-
contrar o caminho necessário num labirinto muito simples.
Com a transição da idade pré-escolar inicial à final, um
maior número de crianças começa a orientar-se previamente
nas condições do labirinto. Nos testes em que a criança re-
cebe a tarefa de examinar previamente o necessário caminho
em um labirinto e apenas depois disto começar a agir, uma
criança de 4-5 anos cumpre tal tarefa com bastante liberdade,
a criança de 5-7 anos a resolve com absoluta correção, ao
passo que continua cometendo muitos erros nas tentativas de
solução imediata da tarefa (sem orientação prévia nas
condições).
Por conseguinte, nas crianças de 4-5 anos forma-se um
novo tipo de comportamento, no qual se separa uma fase de
orientação prévia nas condições da tarefa e do esquema de
sua sucessiva solução.
Estudos posteriores mostraram que a discriminação da
orientação prévia nas condições da tarefa ocorre paulatina-
mente, tendo inicialmente caráter de testes eficientes prévios
e só mais tarde esses testes eficientes são substituídos pela
análise direta da situação que ocorre no processo de exame
das condições da tarefa. Esse processo se manifesta nitida-
mente nos testes especiais, nos quais a criança deve resolver
a tarefa manipulando corretamente a alavanca; em alguns ca-
sos. dava-se-lhe oportunidade de fazer testes eficientes prévios,
permitindo-lhe, noutros casos, apenas examinar previamente
o quadro que representasse o esquema desse teste.
A orientação por meio de testes eficientes produz um ín-
dice de soluções acertadas das tarefas consideravelmente
maior do que um simples exame direto do esquema da tarefa
sugerida à criança.
Nas fases posteriores de desenvolvimento da criança (dc
6-7 em diante), através dos testes eficientes diretos, a orien-
tação desenvolvida se torna acessível e o processo de
orientação prévia assume o caráter de ação intelectual interna.
Mas seria erróneo pensar que o desenvolvimento das formas
complexas de comportamento intelectual da criança ocorre
pela via simples de transição paulatina de testes amplos di-
retos para a discriminação da fase de orientação prévia nas
condições da tarefa, graças à análise interna desta. Em suas
primeiras observações em tomo do comportamento do recém-

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nascido, Kurt Lewin e seus colaboradores observaram o se-_
guinte: ao tentar inutilmente alcançar um objeto que lhe atraii
a atenção, a criança, no segundo ano de vida, interrompe,
amiúde as suas tentativas diretas e se volta para o adulto quej
presencia o teste, tentando atrair-lhe a atenção e conseguí^
sua ajuda para obter o objeto que a atrai. Já muito cedo %
ação da criança se converte em ação social. Essa v i â de do-,
minio de uma situação através do contato com o adulto se>
torna mais expressa e começa a predominar quando a crian-,
ça passa a exercer o domínio da linguagem.
Vigotsky já observara que, na criança de 3-4 anos, cad%
dificuldade na solução de uma tarefa prática provocava um^
explosão de reações verbais, que eram consideradas pelos;
psicólogos (sobretudo por Piaget) como jala egocêntrica, que,
não tem importância prática e revela apenas os desejos d^
criança. Vigotsky mostrou que essa fala egocêntrica (isto é,
não dirigida Uj ninguém) tem, desde o início, caráter real-,
mente social. Ela está dirigida de fato ao adulto, nela q
criança formula inicialmente um pedido ou uma solicitaçãoi
de ajuda na solução de uma tarefa e em seguida seu dis-.
curso começa a refletir uma situação real, como se “tirasse,
uma cópia” dessa situação, analisando-a e planejando uma,
possível solução. Deste modo, a linguagem da criança, ini-.
cialmente dirigida ao adulto, converte-se paulatinamente em
meio de orientação em uma situação (de traçar as vias de,
solução de uma tarefa, de criar um plano de atividade).
A evolução da fala foi estudada pelos pesquisadores ale-
mães K. Bühler e Hetzer, que, observando o desenvolvimento
do processo de desenlio na criança, mostraram que a fala
da criança reflete antes o desenho por ela já feito e o deno-
mina; em seguida o discurso começa a acompanhar o dese-
nho, a anteceder-lhe e a participar ativamente da formação
do plano da ação seguinte.
O fato da participação da linguagem da criança em sua
atividade prática e na solução de complexas tarefas práticas
é mostrado nitidamente nos testes realizados numa escola
pelo psicólogo soviético A. V. Zaporojets e sua colaboradora
G. I. Minskaya. Nesses testes foram incluídas crianças que
antes não conseguiam resolver uma tarefa prática como o
domínio de uma simples alavanca; um grupo de crianças foi
instruído para a solução dessa tarefa, com os participantes
separados uns dos outros; outro grupo resolveu a mesma ta-

7
refa ern “teste de dupla”, no qual a criança tinha oportuni-
dade de comunicar-se ativamente com o seu colega e coe-
tâneo, com as duas resolvendo conjuntamente a tarefa. As
observações mostraram que, entre as crianças de 3-4 anos, a
situação do “teste em dupla” gerava nelas uma atividade de
grande desempenho da fala; as crianças começavam a formu-
lar perguntas umas às outras, a fazer tentativas de solução im-
pulsiva sem se basearem na orientação assimilada naquela
situação e ficavam inibidas; ao dirigir-se ao seu coetâneo, a
criança se orientava inicialmente na situação, após o que pla-
nejava as suas ações. Em semelhantes condições, entre as
crianças de 4-5 anos já se manifestava uma fala independen-
te ativa, que se incorporava à sua atividade, enquanto entre
as crianças de 5-6 anos começavam a formar-se nessa ope-
ração modalidades complexas de uma atividade intelectual
auténticamente consciente.
As pesquisas nas condições do “teste em dupla”, com ati-
va participação da linguagem, são minto mais bem-sucedidas
do que as pesquisas realizadas nas condições do “teste isola-
do”, onde a linguagem da criança não se manifesta em ter-
mos tão ativos.
r Tudo isto mostra que o desenvolvimento da atividade in-
telectual prática da criança ocorre com a participação da lin-
guagem ativa da criança, que tem inicialmente o caráter de
j comunicação da criança com as pessoas que a cercam, assu-
mindo posteriormente o caráter de meio que a ajuda a orien-
t a r s e na situação direta e planejar a sua atividade.
* Participando da formação da atividade intelectual da
criança, a linguagem tem inicialmente caráter desdobrado ex-
terno, restringindo-se posteriormente, transformando-se em
linguagem murmurada e, por último, desaparece quase intei-
, ramente entre os 7 e 8 anos, assumindo a forma de lingua-
gem interna inaudível, que constitui a base do ato intelectual
interno.
Os fatos que citamos mostram que a atividade intelectual
direta percorreu um complexo caminho de desenvolvimento
e incorporou aos seus componentes vários elementos, come-
çando por amplos testes motores e orientação visual na situa-
ção e terminando pela análise verbal das condições da tarefa
sugerida.
Isto permite analisar mais de perto a estrutura psicoló-
gica da atividade intelectual direta (prática) do homem.

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Durante muito tempo dominou na Psicologia a concep-
ção segundo a qual a atividade intelectual prática tem uma
estrutura psicológica relativamente simples e se baseia em
testes motores imediatos, por um lado, e na noção visual
direta, por outro. Essa concepção simplificava o pensamento
prático direto, opondo-o ao pensamento verbal abstrato. Tal
concepção carece de fundamento.
O pensamento prático direto não se realiza, absoluta-^
mente, através de simples testes motores e imagens diretas;
ele compreende também a análise da situação direta com
o auxílio da linguagem, que permite ao homem distinguir
nessa situação os elos mais importantes, analisar as condi-
ções da tarefa e compor um plano para resolvê-la. Neste sen-
tido o pensamento direto prático se aproxima do pensamento
lógico-verbal abstrato, com a única diferença de que o pro- \
cesso de solução das tarefas está aqui voltado para as corre- Г
lacões diretas dos objetos perceptíveis.. O pensamento de
um construtor, que resolve uma tarefa prática de construção,
prócessa-se com a mesma orientação interna na condição da
tarefa, com a mesma discriminação dos componentes mais
importantes e construção do plano (estratégia) de ação que
o pensamento de um físico ou lógico que resolve uma com- )
plexa tarefa abstrata.
A participação da linguagem oculta (interna) no pensa-
mento direto pode ser observada se sugerirmos a um sujeito
experimental resolver uma tarefa que pareceria puramente
direta, registrando simultaneamente os movimentos sutis,
torcidos do aparelho fonador, que são traços de existência da
linguagem interna.
Sugere-se ao sujeito um desenho com espaço em branco,
que deve ser lembrado, escolhendo a variante a ser inserida.
Para resolver a tarefa é necessário discriminar os traços es-
senciais (linhas ascendentes e descendentes, sua direção, a
mudança da espessura, etc.) e, somente depois que esses tra-
ços forem discriminados e o princípio de construção do de-
senho direto se tornar claro, será selecionada entre as par-
tes carentes aquela que corresponda ao esquema do dese-
nho. Basta examinar o registro do eletromiograma da lín-
gua do sujeito que resolve essa tarefa para ver como esse
processo de análise do desenho, que, pareceria, devia ocorrer
inteiramente no plano diretamente figurativo, incorpora tam-
bém a linguagem, participando intimamente da orientação

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numa situação espaço-vital complexa. Esse teste mostra
que os componentes ocultos da linguagem, presentes também
no pensamento direto prático (construtivo), são um integran-
te importante.
Para ver qual o papel que a linguagem desempenha no
pensamento prático (construtivo) complexo, é necessário exa-
minar os testes que se aplicam em Psicologia para o estudo
da atividade intelectual construtiva.
Um desses procedimentos é o experimento com o cha-
mado “cubo de Linck”. O sujeito recebe a tarefa de cons-
truir um grande cubo verde de 27 cubos pequenos. Na cole-
ção, proposta ao sujeito, uns cubos têm três faces verdes (são
oito cubos), outros, duas (estes são 12), terceiros, uma face
pintada (estes são seis) e um não é pintado. A distribuição
incorreta dos cubos pequenos no cubo grande torna a tarefa
insolúvel.
A observação mostra que só pouquíssimos sujeitos adul-
tos normais começam a tentar imediatamente, sem orienta-
ção prévia, armar o cubo grande. Via de regra, à solução prá-
tica da tarefa antecede uma fase de orientação, que tem o
caráter de cálculos prévios, a consideração do número de
cubos pequenos com números diferentes de faces pintadas;
em seguida vem a construção do esquema geral de solução
da tarefa, na qual os cubos pequenos de três faces pintadas
são naturalmente distribuídos pelos ângulos do cubo grande;
os cubos pequenos de duas faces pintadas e os cubos de uma
face pintada são dispostos no meio de cada superfície, colo-
cando-se no centro o cubo não pintado. Assim, o processo
de solução dessa tarefa prática não é nada simples e evidente
conto se poderia supor. Ele inclui em sua composição com-N
plexos cálculos prévios, realizados com a participação ime- )
diata da linguagem, e somente quando o esquema geral de I
solução da tarefa está pronto, o sujeito comeca a concretizá- /
lo e a concretização desse esquema iá não tem caráter cria-
tivo mas executivo. '
Tem caráter semelhante a solução de outra tarefa com
base na atividade intelectual prática direta, conhecida em
Psicologia pela denominação de “cubos de Kohs”.
Nesta tarefa sugere-se ao sujeito construir um desenho
geométrico com cubos de lados branco, amarelo, azul e ver-
melho, sendo que os dois lados restantes são de duas cores
(vermelho-branca ou azul-amarelo) divididas em diagonais.

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Em uns casos, figuram os desenhos que se supõem mui-
to simples e são percebidos imediatamente. Noutros casos,
eles são construídos de tal modo que as suas partes direta-
mente perceptíveis não correspondem aos elementos da cons-
trução (em um desenho o sujeito percebe um triângulo azul
em fundo amarelo ou uma faixa diagonal azul em fundo
amarelo (ou um losango azul em fundo amarelo ou uma fai-
xa azul quebrada em fundo amarelo). Nestes casos o sujeito
deve desmembrar mentalmente o desenho imediatamente per-
ceptível em suas partes componentes e compreender que as
figuras não são formadas por três partes imediatamente per-
ceptíveis mas por dois cubos pequenos de duas cores, ou que
são constituídas de quatro pequenos cubos, separados na dia-
gonal dos cubos de duas cores.
Essa tarefa, naturalmente, exige que o sujeito se abste-
nha de tentativas imediatas de execução, que se oriente nos
modos de solução das tarefas e não subordine o seu progra-
ma de solução aos contornos imediatamente perceptíveis do
desenho mas a um esquema recodificado que ele deve
criar, fracionando mentalmente os contornos do desenho e
substituindo os elementos da impressão imediata pelos ele-
mentos da construção.
Compreende-se perfeitamente que também neste caso o'
programa de solução intelectual da tareia não surge sob a
influência da aercepcão imediata direta mas como resultado t
da superação da impressão imediata e subordinação da
acão ao esauema aue se cria como produto da recodificação
do campo oerceotível.
O processo de superação da impressão imediata, que"^
constitui a base do ato intelectual, só pode ser realizado no
processo de orientação prévia nas condições da tarefa, de
coteio do protótipo direto com os meios dados oara a sua
realização: deste modo. a solução da tarefa construtiva direta
apresenta um complexo caráter mediato. J
É natural que esse caráter complexo do pensamento prá-
tico, que acabamos de descrever, seja produto de um longo
desenvolvimento e se perturba facilmente nos estados pato-
lógicos do cérebro.
0 teste mostrou que tanto o retardamento intelectual,
como a redução da atividade intelectual nos estados patoló-
gicos do cérebro levam à desintegração dessa forma estrutu-
ralmente complexa de atividade intelectual. Os doentes que

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apresentam semelhante redução do intelecto são incapaze); de
reter as tentativas de solução da tarefa construtiva que sur-
gem imediatamente; desaparece a fase de orientação prévia
nas condições da tarefa, razão por que levam ao fracasso as
tentativas de resolver imediatamente uma tarefa complexa
evitando a análise de suas condições.
Procurando resolver a tarefa do “cubo de Linck”, os
doentes começam logo a tentativa de construir o cubo igno-
rando que a distribuição correta dos cubos pequenos só pode
ser assegurada por cálculos prévios e, via de regra, termi-
nam rapidamente as suas tentativas indicando que os “cubi-
nhos são poucos” ou a “tarefa é irrealizável”.
Começando a resolver a tarefa do “cubo de Kohs”, os
doentes não fazem uma análise prévia do desenho proposto,
não desmembram a estrutura ¡mediatamente perceptível nem
transformam as “unidades da impressão” em “unidades da
construção”. Por isto esses doentes começam ¡mediatamente
a fazer tentativas de representar cada elemento isolado ,do
desenho perceptível num cubo isolado e não se perturbam
se a estrutura a ser construída conservar o número de ele-
mentos imediatamente perceptíveis mas não tiver nenhuma
identidade com o protótipo.
É natural que se eles conseguem construir sem grande
dificuldades protótipos simples que não requerem recodifica-
ção, resultem inacessíveis quaisquer tentativas de fazer de
cubinhos isolados protótipos complexos, nos quais a exe-
cução correta da tarefa só pode ser acessível como resultado
da análise do protótipo e transformação das “unidades da
impressão” em “unidades da construção”.
Dados análogos podem ser obtidos mediante a aplica-
ção do método de estudo do intelecto prático (construtivo),
conhecido pela denominação de “figura de Roop”. .
Neste teste sugere-se ao sujeito reproduzir um protótipo
formado por hexágonos contíguos. Para resolver corretamente
a tarefa, é necessário levar em conta que as figuras con-
tíguas tem paredes comuns, razão pela qual se devem repre-
sentar no desenho não tanto figuras isoladas quanto correla-
ções geométricas entre as linhas componentes.
Esta tarefa resulta inacessível para sujeitos com retar-
damento intelectual ou com perturbação da atividade intelec-
tual, que começam a cumprir a tarefa sem análise prévia e

12
substituem o desenho da correlação geométrica das linhas
pela representação de figuras concretas isoladas.
Em todos os casos citados, o mais importante é o fato
de que a impossibilidade de cumprimento das tarefas suge-
ridas ao sujeito não se manifesta como resultado de uma
falha particular (por exemplo, a orientação no espaço), mas
da desintegração das formas complexas de atividade intelec-
tual; tal desintegração manifesta-se no fato de que desapa-
rece a fase de orientação prévia nas condições da tarefa com
a “recodificação” das condições, substituindo-se a estrutura
complexa da atividade intelectual pelas tentativas de cumpri-
mento da tarefa com base nas impressões imediatas.

Patologia do pensamento direto

O comportamento intelectual é produto de uma longa


evolução e apresenta uma estrutura psicológica muito com-
plexa. É natural que qualquer retardamento intelectual, por
um lado, e a mudança patológica da atividade cerebral, por
outro, provoquem fatalmente a desintegração da atividade in-
telectual de estrutura complexa.
Isto pode ser observado em formas mais nítidas na crian-
ça mentalmente atrasada com retardamento cerebral e na de-
mência da velhice, relacionada com a atrofia da massa
cerebral.
É sabido que a criança mentalmente retardada pode con-
servar todas as modalidades mais simples de percepção direta
e ação, mas é acentuadamente atrasada a sua estrutura de
atividade intelectual. Isto se manifesta no fato de que a crian-
ça, com formas profundas dc retardamento mental, é incapaz'
de analisar satisfatoriamente as situações, distinguir nestas as
ligações e relações essenciais e substitui a atividade intelec-
tual de construção complexa por reações impulsivas imedia-
tas, que são inteiramente determinadas por impressões super-
ficiais da situação.
Nas formas mais profundas de atraso mental, a criança
não consegue estabelecer nem mesmo as relações mais sim-
ples entre as partes de uma situação perceptível. Assim, se
ela tem diante de si várias linhas, e uma delas está amarrada

/.»
a um objeto que a atrai, ela continua a arrastar-se para esse
objeto, ignorando que ele está longe dela e sem ao menos
tentar puxá-lo pela linha, ou puxa a linha que está visual-
mente mais próxima do objeto atraente, ignorando a linha
a que o objeto está amarrado, caso a ponta desta esteja situa-
da além dela.
As falhas do comportamento intelectual da criança men-
talmente atrasada aparecem facilmente nos testes em que,
para estudar tal comportamento, aplicam-se alavancas, e
para atingir o objetivo é necessário não puxar o cabo da
alavanca mas afastá-lo. A criança mentalmente atrasada, que
se mostrou incapaz de resolver essa tarefa, continua puxando
o cabo da alavanca, apesar de escapar-lhe o objetivo. Situa-
ção análoga se desenvolve no teste da caixa problemática,
proposto por Leôntyev. Diante da criança coloca-se um obje-
tivo (por exemplo, um bombom) na caixa, que é fechada a
ferrolho; pode-se abri-la pressionando por um furo situado
¡mediatamente sobre o ferrolho (à direita) ou puxando o fer-
rolho por um furo situado do lado oposto (à esquerda). As
crianças com forma profunda de retardamento mental não
conseguem fazé-lo, e se o primeiro furo, situado ¡mediata-
mente sobre o ferrolho, estiver fechado, elas são incapazes
de deixar de manipular numa proximidade imediata do fer-
rolho, tom ando-se a tarefa inacessível para elas.
Dados aproximados são obtidos também nos testes em
que a criança mentalmente retardada deve desenhar tfma fi-
gu.ia complexa ou construí-la de cubinhos, após analisar pre-
viamente a sua estrutura interna. Nestes casos, as crianças
mentalmente atrasadas não são capazes de abstrair as impres-
sões imediatas e substituem o sistema complexo de opera-
ções, indispensáveis à solução dessa tarefa, pela reprodução
direta das impressões imediatas.
Fatos análogos de desintegração da atividade intelectual
complexa, com supressão da análise da situação e das ope-
rações auxiliares, são observados nos estados de senilidade,
que resultam da atrofia do cérebro (mal de Pick). Os tipos
aqui descritos de perturbação da atividade intelectual direta
(prática) são de caráter geral e se traduzem na desintegra-
ção geral da estrutura complexa dessa atividade e na substi-
tuição da atividade intelectual por formas imediatas de com-
portamento, subordinadas à impressão direta.

14
Podem ter caráter diferente as perturbações da atividade
intelectual nas afecções locais do cérebro. Aqui a afecção
[imitada do cérebro suprime apenas uma das condições neces-
sárias à realização da atividade intelectual complexa, razão
poi que a perturbação do comportamento intelectual pode ter
caráter parcial.
Podem servir de exemplo as perturbações da atividade
intelectual, que surgem nas afecções das áreas parietais infe-
riores (ou occipto-parietais) do córtex. Nestes casos, o doen-
te conserva a tarefa que lhe foi dada mas é incapaz de or-
ganizar corretamente a sua atividade no espaço-, ele confunde
os lados direito e esquerdo, não consegue construir um siste-
ma interno de coordenadas espaciais e suas operações no es-
paço assumem caráter impotente. Esses doentes não podem
desempenhar-se com êxito em nenhuma tarefa que exija que
se levem em conta as correlações espaciais e perturbam-se
todas as suas operações construtivas. Eles não conseguem
fazer uma figura de fósforos, um desenho de cubos, construir
um cubo grande de cubos pequenos, etc. Todas essas tarefas
se tornam acessíveis caso eles recebam esquemas espaciais
auxiliares, a partir dos quais podem realizar as respectivas
operações.
É inteiramente distinto o caráter da perturbação do com-
portamento intelectual dos doentes com afecções das áreas
frontais do cérebro. Essas afecções levam a que a tarefa, dada
a esses doentes, seja muito instável, a intenção provocada
desapareça rapidamente, os doentes caiam facilmente sob a
influência das impressões imediatas, não consigam elaborar
ou reter programas complexos de atividade e substituam a
atividade intelectual organizada por atos impulsivos ou repe-
tições inalteráveis de estereótipos uma vez surgidos.
O estudo da perturbação do comportamento intelectual
dos doentes com afecções maciças dos lobos frontais do cére-
bro constitui um capítulo da neuropatologia, que é interessan-
te para a Psicologia.

15
A Palavra e o Conceito

A so lu çã o de tarefas construtivas práticas é uma das


formas de atividade intelectual do homem.
A forma segunda e consideravelmente mais elevada é o
pensamento verbal ou lógico-verbal, através do qual o ho- Л
mem, baseando-se nos códigos da língua, está em condicoes.
de ultrapassar os limites da percepcão sensorial imediata do I
mundo exterior, refletir conexões e relações complexas, for- j
mar conceitos, fazer conclusões e resolver complexas tarefas J
„teóricas.
Essa forma de pensamento é especialmente importante;
ela serve de base à assimilação e ao emprego dos conheci-
mentos e se constitui no meio fundamental da complexa ati-
vidade cognitiva do homem.
O pensamento que utiliza o sistema da língua, permite
/ discriminan* os elementos mais importantes da realidadeVre-
lacionar/a uma categoria os obietos e fenômenos que, na
percepção imediata, podem parecer diferentes, /identifica^
aqueles fenômenos que, apesar da semelhança exterior, per-
tencem a diversos campos da realidade: ele permite elabor
rar conceitos abstratos e fazer concliisõés lógicas, que ultra-,
oassam os limites da pcrcencão sensorial: permite realizar os
processos de raciocínio lógico e no processo deste raciocínio
descobrir as leis dos fenômenos que são inacessíveis à expe-
riência imediata; permite refletir a realidade de maneira ¡me-
diatamente bem mais profunda que a nercepção sensorial ime-
diata e coloca a atividade consciente do homem numa altura
incomensurável com o comportamento do animaL
Para melhor conhecer as leis que servem de base ao
pensamento lógico-verbal, é necessário conhecer mais de per-
to como se constrói a língua em cuja base processa-se o pen-
samento, abordar a estrutura da palavra que permite formar
os conceitos, focalizar as leis básicas das ligações das palavras
em sistemas complexos, que possibilitam realizar juízos, e
descrever os sistemas lógicos mais complexos que se forma-
ram na história da língua; dominando estes sistemas, o ho-
mem é capaz de executar operações de conclusão lógica.
Somente depois deste exame podemos passar à parte
mats complexa da Psicologia — à análise das operações do
pensamento discursivo e abordar a psicologia do pensamento
produtivo do homem.

O significado da palavra

Ê com todo fundamento que se considera a palavra uni-


dade fundamental da língua. No entanto seria um grande erro
pensar que ela é uma partícula elementar, indivisível, como
se considerou durante muito tempo, uma simples ligação (as-
sociação) do som condicional com certo conceito.
A lingüística moderna sabe que a palavra tem uma estru-
tura complexa, podendo-se distinguir nela dois componentes
básicos, que se costumam definir com os termos tepresenta-
çfíp nvateriql e significado.
Cada palavra da linguagem humana significa um objeto,
indica-о, gera em nós a imagem de um objeto; ao pronyn-
ciarmos a palavra “mesa”, nós a relacionamos a um determi-
nado objeto, à mesa; ao pronunciarmos a palavra “pinheiro”
temos em vista outro objeto, o mesmo ocorrendo com as
palavras “cão”, “incêndio”, “cidade”, “tempo”, que represen-

18
tam diferentes objetos/bu fenômenos. Com isto a linguagem
do homem se distingue da “linguagem” dos animais, que,
como vimos acima, expressa em sons apenas um estado emo-
tivo mas nunca representa objetos através de sons. Essa pri-
meira função básica da palavra é denominada representação
material ou. como dizem alguns lingüistas, função represen-
tativa da palavra (do alemão Darstellende Funktion).
A existência da função representativa da palavra ou re-
presentação material é a função mais importante das pala-
vras, constituintes da linguagem. Essa função permite ao ho-
mem evocar arbitrariamente as imagens dos objetos corres-
pondentes, operar com objetos inclusive quando estes estão
ausentes. Como dizem alguns psicólogos, a palavra possibili-
ta “multiplicar” o mundo, explorar não apenas imagens dire-
tamente perceptíveis dos objetos, mas também com imagens
dos objetos, suscitadas na representação interna por meio da
palavra.
A capacidade da palavra para significar objetos corres-
pondentes com um sinal convencional, de suscitar as suas
imagens não é, contudo, a sua única função.
A^ palavra tem outra função mais complexa: permite
analisar os objetos. distinguir nestes as propriedades essen-
ciais e relacioná-los a determinada categoria. Ela é meio de
abstração e generalização, reflete as profundas ligações e re-
lações que os objetos do mundo exterior encobrem. Essa se-
gunda função da palavra costuma ser designada pelo termo
significado da valavra.
Analisemos minuciosamente o significado de uma pala-
vra qualquer, por exemplo, da palavra russa tchernílnitsa
(tinteiro). À primeira vista pode parecer que ela simples-
mente designa um determinado objeto e suscita a imagem de
um tinteiro sobre a mesa. Mas tal coisa está longe da verda-
de. e a simples evocação da imagem do objeto não esgota a
função dessa palavra. Examinando atentamente essa palavra
desc< bre-se facilmente que ela tem uma estrutura complexa
e c constituída por uma série de partes componentes. A pri-
meira parte da palavra — tchern (tint) — indica que o obje-
to por ela designado tem alguma relação com tintas; indica
um indício de cor, que por si mesma está relacionada com
outras cores (negro, vermelho, ozul, etc.). A segunda parte
da palavra é o sufixo //: na língua russa, este designa uma
qualidade de instrumento, noutros termos, o objeto em ques-

PjkAétí -5 M/jpOtfb-
tão pode ser usado corno meio de ura trabalho qualquer
(tchernlLa ‘tinta’, bellLa ‘branco’, motovILo ‘torniquete’,
gruzILo ‘cambulho’). O terceiro componente da palavra
tchernílnitsa é o sufixo nits; na língua russa, este significa que
o objeto em questão serve de recipiente de alguma coisa,
assodando-a a palavras como “sákharmísa" ‘açucareiro’,
“gortchítchn/ísa” ‘mostardeira’, péretchnií«j ‘pimenteira’, etc.
Assim, uma palavra que pareceria muito simples revela-se
um dispositivo complexo, que analisa a função de um dado
objeto e indica que temos diante de nós um objeto relacio-
nado com tinta (tchern), que serve de meio a alguma coisa
(ií) e tem propriedade de recipiente (nils). Um exame minu-
cioso da morfologia da palavra revela toda a complexidade
de sua função. Mostra que temos diante de nós um comple-
xo sistema de códigos que se formou na história da huma-
nidade e transmite à pessoa que usa a palavra uma complexa
informação acerca das propriedades essenciais para um dado
objeto, das suas funções básicas e das relações que com ou-
tros objetos mantêm as categorias coexistentes que esse obje-
to possui objetivamente.
Ao dominar a palavra, o homem domina automaticamen-
te um complexo sistema de associações e relações em que um
dado objeto se encontra e que se jormaram na história mul-
tissecular da humanidade.
É a essa capacidade de analisar o objeto, distinguir nel<
as propriedades essenciais e relacioná-lo a determinadas cate
gorias que se chama significado da palavra.
Na estrutura de cada palavra é fácil observar as duas
funções básicas da palavra, ou seja, discriminar o traco
essencial do objeto e relacionar este objeto a certa ca-
tegoria ou. noutros termos, observar a função de abstra-
ção e generalização.
A palavra stoí — ‘mesa’ — (radical stl — “porí/Zat’ ” —
‘estender, pôr’ —, “nasí/Zat’ ” — ‘cobrir’) indica uma quali-
dade essencial da mesa, a existência de “tablado”; a pa-
lavra tchasí (radical tchas) indica que a função básica dos
relógios é indicar o tempo (tchasa, em eslavo); a palavra
sutki (radical stk — ligar) mostra que a palavra significa a
confluência entre o dia e a noite; a palavra korova — ‘vaca’
— (do latim cornu) indica que estamos diante de um animal
comífero.

20
Em palavras relativamente novas, essa função de discri-
minação (abstração) dos traços essenciais aparece com niti-
dez ainda maior: parovoz — ‘locomotiva a vapor’ — indica
dois traços: par — ‘vapor’ — e voz do verbo vozit' — ‘levar’,
‘transportar’: a palavra telejone também tem dois traços:
(tele — ‘distância’ e jone ‘voz’). O mesmo ocorre com a pa-
lavra televisor: tele — ‘distância’ e vídeo — ‘ver’.
A abstração dos traços essenciais é, entretanto, apenas'!
um aspecto do significado da palavra. O segundo aspecto é !
a colocação do objeto em relação com certa categoria, nou- j
tros termos, com a função de generalização. *
A palavra “relógio” sienifica igualmente qualquer reló-
gio, independentemente da sua forma ou do tamanho; a pa-
lavra “mesa” significa mesa de qualquer forma, de qualquer
tipo; a palavra “cão” designa cão de qualquer raça. Cada pa-
lavra, inclusive a concreta, não representa sempre um objeto
único mas toda uma categoria de objetos e, nas pessoas que
a usam, pode suscitar quaisquer imagens individuais, mas
apenas imagens de objetos pertencentes a essa categoria. É
essencial que isto se refere igualmente a palavras concretas
(como “mesa”, “relógio”, “cão”) bem como a palavras que
designam conceitos gerais (“país”, “cidade”, “desenvolvimen-
to”, “substância”).
A linguística sabe perfeitamente que a correlação dos
componentes figurados diretos da palavra com os abstratos,
generalizadores, não é sempre a mesma; cada grupo de pala-
vras apresenta diferenças essenciais. Assim, em uns substan-
tivos (“pinheiro”, “cão pastor”, “samovar”) os componentes
figurados concretos são muito fortes, ao passo que em outros
(“animal”, “país”, “pensamento”) eles são afastados pelo
significado abstrato generalizador* Sabc-se ainda que nos
adjetivos (“amarelo”, “seco”, “alto”) e nos verbos (“andar”,
“pensar”, “empenhar-se”) que, como se sabe, surgiram mui-
tos anos depois que os substantivos, esses componentes ma-
teriais são colocados em segundo plano e a discriminação da
qualidade ou ação, abstraída do objeto íemanescente, cons-
titui o significado básico dessas palavras.
Por último, nas línguas evoluídas existem “palavras aces-
sórias” especiais (preposições, conjunções etc.) sem qualquer
significado material, que não expressam objetos concretos
mas as relações entre eles (“sob”, “sobre”, “com”, “de”, “con-
juntamente”, “em consequência de”).
Deste modo, cada palavra tem um sisnificado complexo,
fornindo tanto pelos componentes figurado-diretos, quanto
pelos abstratos e generalizadores; é just amento isto gue_psr-
niile a quem usa tais palavras escolher um dos possíveis sig-
nificados e em uns casos empregar uma dada palavra em seu
sentido concreto, figurado c, em outros, empregá-la em seu
sentido abstrato e generalizado.
Tanto a análise da estrutura morfológica da palavra,
como o seu emprego prático do cotidiano mostram que a pa-
lavra não é, em hipótese alguma, uma associação simples e
unívoca entre o sinal sonoro condicional e a noção direta,
bem como que ela tem uma infinidade de significados
potenciais.
Assim, a palavra “carvão” pode designar um pedaço de
carvão-de-Ienha, carvão-de-pedrn, um pertence de um pintor
que desenha com carvão, o mineral “C”, etc. Por isto, em
cada situação prática o homem escolhe entre todos os possí-
veis significados dessa palavra aquele que mais se adequa a
ela. É natural que, para o pintor, o “carvão” é um instru-
mento para rascunhos, para a dona-de-casa, algo que serve
para ferver água, para o químico, o elemento “C”, sendo a
causa de problemas desagradáveis para a menina que suja o
vestido.
Vê-se facilmente que empregos diferentes dessa palavra
empanam diferentes processos psíquicos: em uns casos a pa-
lavra “carvão” suscita uma imagem concreta (material que
serve para ferver água, para fazer rascunhos), em outros, sis-
temas abstratos de ligações lógicas (carvão como elemento
“C”), em terceiros, aflições (o carvão que sujou o vestido).
£ш_ isto o emprego real da palavra é sempre um pro-
cesso de escolha do .significado adequado entre iodo um xis-
tema de alternativas aue sursem. com a discriminação de uns
sistemas adequados de relações e a inibição de outros oue
não correspondem à tarefa dada dos sistemas de relações.
Esse sistema de relações, destacado entre muitos signifi-
cados possíveis e correspondente à situação, é chamado em
Psicologia sentido da palavra.
O sentido da palavra, que depende da tarefa concreta
que o sujeito tem diante de si e da situação concreta em que
se emprega a palavra, pode ser totalmente diferente embora
ex'eriormente permaneça o mesmo. Por exemplo, a palavra
“dez” tem sentidos inteiramente distintos na boca de uma

22
pessoa que espera um ônibus e na boca do aluno que аса
1за de prestar exames; ela tem sentido diferente para a pes-
soa que espera o ônibus N.° 3 e vê chegar à parada o
N.° 10 e para a pessoa que vê chegar o ônibus que tanto
esperara. A palavra “tempo” tem sentidos inteiramente dife-
rentes quando empregada pelo serviço de meteorologia ou
quando pronunciada por uma pessoa que, após longa con-
versa, levanta-se e diz: “bem, o tempo!”, querendo com isto
dizer que a conversa está terminada; ela adquire um tercei-
ro sentido na boca de uma velha que olha com reprovação
para os jovens e diz: “que tempos!”, querendo externar seu
desacordo com as concepções e os costumes da nova geração.
Cabe observar que, além da estrutura morfológica da
palavra, existe ainda um fator que pode contribuir para a
distinção do sentido adequado da palavra entre todos os seus
possíveis significados. Esse fator é a entonação que toma a
pronúncia de uma palavra. Basta pronunciar a palavra besta,
uma vez sem qualquer entonação especial, e em outra com
a entonação humilhante besta! para lhe dar o sentido de pes-
soa curta de inteligência, tola, simplória, pedante, etc.; a
palavra pamonha, pronunciada sem entonação especial, sig-
nifica uma espécie de bolo de milho verde condimentado;
pronunciada com entonação especial, essa mesma palavra
adquire o sentido de pessoa tola.
É justamente por isto que a entonação, de importância'’
tão grande no emprego vivo da língua, torna-se. paralela-
mente ao contexto, um dos importantes fatores еще permitem
mudar o sentido da palavra, escolhendo-o entre muitos signi-
ficados possíveis.
O processo de emprego real da palavra é a escolha do
sentido adequado entre todos os possíveis significados da pa-
lavra e somente existindo um sistema de escolha que fun-
cione com precisão, com o realce do sentido adequado e a
inibição de todas as outras alternativas, o processo de uso das
palavras pode desenvolver-se com êxito para a expressão do
sentido e a comunicação.
Ainda examinaremos em caráter especial os desvios que
podem surgir na comunicação e no pensamento quando se
perturba o emprego das palavras, baseado no processo de
escolha plástica dos significados possíveis, e quando a pala-
vra continua conservando o mesmo significado rotineiro em
todas as situações.
í *

23

1
Métodos de pesquisa dos significados da palavra

O processo real de emprego da palavra, como a escolha


em um sistema de múltiplos significados, é fundamental para
a psicologia da comunicação e do pensamento; por isto, urna
das tarefas mais importantes da Psicologia científica consiste
em estabelecer a probabilidade com que aflui sempre um ou
outro significado da palavra, escolhido entre muitas alterna-
tivas, bem como no estabelecimento daqueles fatores que de-
terminam o processo de escolha de uma ou outra relação
entre todas as relações possíveis.
Para estabelecer precisamente qual dos variados signifi-
cados da palavra predomina no sujeito e como essa relação
predominante muda dependendo das peculiaridades do sujei-
to, da situação e da tarefa colocada diante dele, existe em
Psicologia uma série de procedimentos que permitem respon-
der a essa questão com graus variados de precisão.
O método mais simples de estudo das relações potenciais
que a palavra esconde é o estudo das associações suscitadas
pela palavra apresentada. Para tal pesquisa dá-se ao sujeito
uma palavra e ele deve responder à pergunta relacionada com
ela com qualquer palavra que lhe vier à mente. Analisando
o caráter da associação que se produz, pode-se ver que rela-
ções a apresentação de tal palavra suscita no sujeito. Assim,
se a palavra árvore suscita no sujeito uma associação com um
vegetal e a palavra cereja uma associação com amoras, pode-
se pensar que o sujeito tende mais para a discriminação das
relações abstratas e generalizadoras do que outro sujeito no
qual a palavra árvore suscita ¡mediatamente a associação com
amendoeira e a palavra cereja a associação com pomar ou
doce.
O método de análise das “associações livres” foi apli-
cado com êxito em Psicologia ao estudo do caráter das rela-
ções semânticas predominantes no sujeito e à caracterização
das suas tendências para relações predominantemente dire-
tas ou predominantemente abstratas. Esse método se mostrou
muito importante tanto para a caracterização das peculiarida-
des individuais na atividade intelectual do sujeito, quanto para
o diagnóstico dos desvios que se podem observar no signifi-
cado das palavras nos estados patológicos do cérebro.

24
O segundo método de estudo das relações semântica*
reais, que a palavra implica, é o método psicofísiológico
objetivo de estudo dos “campos semânticos”, elaborado no
último decénio por estudiosos soviéticos e estrangeiros (ame-
ricanos). Esse método aplica procedimentos da pesquisa
objetiva do reflexo orientado e consiste no seguinte.

Durante um período bastante longo, apresenta-se ao


sujeito um grande número de palavras diferentes e sem
relação entre si; durante todo esse período, ele registra
os componentes involuntários do reflexo orientado (vas-
culares, contato-galvánicos ou eletroencefalográficos).
Inicialmente cada palavra suscita no sujeito um re-
flexo orientado nítido, que se manifesta na compreensão
dos vasos do braço (e ampliação dos vasos da cabeça), o
surgimento da reação galvánica por contato ou depressão
do alfa-ritmo. Após algum tempo, o sujeito se acostuma
aos estímulos verbais e estes deixam de provocar-lhe
qualquer reação orientada. É nesse período que começa
o teste de análise objetiva das relações semânticas.
Para este fim, uma palavra (palavra-“teste”) é acom-
panhada por um estímulo de dor ou para responder
a essa palavra o sujeito deve apertar uma chave com a
mão direita, enquanto registra a reação vascular com um
dedo da mão esquerda. Essas duas condições levam a
que, após várias repetições do teste, a apresentação da
palavra-“teste” começa a suscitar no sujeito uma reação
orientada estável, que serve de reação básica para o tes-
te posterior.
Após obter uma nítida reação orientadora à apresen-
tação de uma palavra-“teste” (por exemplo, a palavra
gato), o experimentador coloca diante de si uma ques-
tão básica: além da palavra "gato”, que palavras susci-
tam no sujeito sintomas análogos de reação orientada
(compressão dos vasos da mão, surgimento de reação
galvánica por contato, depressão do alfa-ritmo, etc.)? Se
outras palavras que estão direta ou indiretamente rela-
cionadas com a palavra gato começam a suscitar no su-
jeito os mesmos sintomas de reflexo orientado, como a
própria palavra-“teste”, isto é um sintoma objetivo de
cue tal palavra suscita todo um sistema de relações se-
mânticas. que suscitam igualmente uma reação orienta-

25

\
da; esse método será um procedimento para o . e stu d o
o b je tiv o d o sistem a d e rela çõ es sem ân ticas (ou de
“campos semânticos”), que surgem no sujeito em cada
apresentação da palavra correspondente.

O estudo dos sintomas objetivos das relações possibilitou


a obtenção de resultados de grandiosa importância para a
Psicologia.
Esse estudo mostrou que, no adulto normal, um grupo
de palavras semanticamente aproximadas da palavra-“teste”,
começa a suscitar os mesmos sintomas de reações orientadas
como a própria palavra-“teste”. Assim, se em resposta à pa-
lavra-“testc” ga to o sujeito apresentava a reação motora exi-
gida, comprimindo a chave e localizando ao mesmo tempo
os componentes vegetativos e eletrofisiológicos do reflexo
orientado que surgem involuntariamente (compressão dos
vasos da mão, reação galvánica por contato, depressão do
alfa-ritmo), com a apresentação de palavras semanticamente
semelhantes — gatin h o, rato, cão, anim al —, surgiam-lhe
idênticas reações involuntárias (vegetativas e eletrofisiológi-
cas), embora em resposta a essas palavras ele não apresen-
tasse nenhuma reação motora arbitrária. Verificou-se que
quanto maior é a semelhança semântica da palavra apresen-
tada com a palavra-“teste”, tanto mais intensivos são os tra-
ços involuntários da reação orientada (por isto essas reações
são mais fortes diante das palavras gatinho ou rato do que
ante a palavra a n im a l); em palavras indiferentes, desvincula-
das da palavra-“teste” (por exemplo, em palavras como vi-
d ro , tu b o , céu, etc.), geralmente não surgiam tais sintomas
Ale reflexo orientado. O resultado mais importante das obser-
' vações foi o fato de que, se as p a la vra s sem an ticam en te a p ro -
1 x im a d a s d a palavra-"teste" su scita va m a m esm a reação o rien -
I tada, co m o a p ró p ria p a la vra -" teste’’, to d a s as pa la vra s a pro-
) x im a d a s, p e lo so m , d a palavra-" tes t e ”, n ão p ro vo ca va m n e-
nhum a rea çã o o rien tada. Assim, reagindo com reações orien-
tadas às palavras gatinho, ra to , cã o e anim al, os sujeitos nor-
mais não reagiam com reações orientadas a palavras próximas
^ elo som como janela, panela, lix o , lu xo, etc.
Isto mostra que por meio do método aqui descrito po-
demos realmente esta b elecer um sistem a daqu elas relações
sem ân ticas au e cada palavra o cu lta e que, no sujeito nor-

26
mui, essas relações têm caráter sem â n tico e não ca rá ter s o
п а п / externo.
O estudo objetivo das relações semânticas pode apro-
fundar-se ainda mais. Mediante a aplicação do referido
método, podemos medir com certa precisão o grau de proxi-
midade entre certos grupos semânticos, estabelecer objetiva-
mente os sistemas dos “campos semânticos” em que se
distribuem as palavras mais próximas e mais distantes en-
tre si.
Para este fim aplica-se outra variante do método que
descrevemos.
A palavra-11teste” é sempre acompanhada por uma esti-
mulação de dor, que suscita não uma reação orientada mas
uma reação defensiva, que consiste na compressão dos vasos
da mão e da cabeça. Depois disto, as palavras que apresen-
tam grau variado de semelhança com a palavra-“teste” co-
meçam, durante certo tempo, a suscitar reações diferentes:
as palavras mais próximas da palavra-“teste” (por exemplo,
na palavra-“tcste” violino, a palavra arco) começam a sus-
citar a mesma reação defensiva que a palavra-“teste” (com-
pressão dos vasos da mão e da cabeça); as palavras que pelo
sentido são mais distantes da palavra-"teste” mas que, não
obstante, guardam certa semelhança com ela (por exemplo,
as palavras guitarra, tambor), começam a suscitar apenas uma
reação orientada (compressão dos vasos da mão e ampliação
dos vasos da cabeça); por último, as palavras que não têm
qualquer relação com a palavra-“teste” (por exemplo, as pa-
lavras janela, nuvem, bosque) não suscitam nenhuma reação
orientada.
Assim, podemos descrever objetivamente todo um campi^
semântico em cujo centro estão as palavras mais próximas I
pelo sentido, encontrando-se na periferia as palavras de sen-
tido comum mais distante com a palavra-“teste”, situando-se
fora desse campo semântico todas as outras palavras que não
têm nenhuma afinidade com a palavra-“tcste".
O método aqui descrito é de grande importância, per-
mitindo estabelecer objetivamente o grau de proximidade en-
tre diversos sistemas semânticos, noutros termos, possibilitan-
do estabelecer objetivamente as estruturas dos campos se-
mânticos. O estudo objetivo das relações semânticas é de
grande importância tanto para a psicologia dos sistemas
semânticos e a lingüística, quanto para a análise dos

27
desvíos que se verificam nas relações semânticas nos es-
tados patológicos.
Assim, foi estabelecido que se no sujeito normal os sin-
tomas objetivos correspondentes são suscitados por palavras
próximas da palavra-“teste” no sentido semântico, mas não
são provocados por palavras que com esta guardam seme-
lhança sonora externa, na criança com retardamento mental
ocorre justamente o contrário: as palavras próximas da pa-
lavra-“teste” podem, pelo sentido, não provocar reações cor-
respondentes, ao passo que as palavras a ela semelhantes pelo
som provocam tais reações.
Usando-se a palavra gato como palavra-“teste”, nesses
sujeitos, palavras como rato, cão e animal podem não suscitar
reações correspondentes, ao passo que as palavras crato,
crista, custo suscitam reações vasculares, análogas àquelas
provocadas pela palavra-“teste’\

[
É interessante que a estrutura dos campos semânticos
não permanece a mesma mas pode variar dependendo de di-
ferentes condições.
Assim, entre os escolares com forma leve de retarda-
mento mental, no estado descansado (no início do dia de
trabalho), reações idênticas podem ser provocadas predomi-
nantemente por palavras semanticamente muito próximas da
palavra-“teste”, ao passo que, no estado de fadiga (após cin-
co aulas), reações análogas começam a ser provocadas predo-
minantemente por palavras semelhantes pelo som.
Vê-se facilmente que grande importância tem o estudo
objetivo do sistema de relações semânticas tanto para o diag-
nóstico da estrutura dos processos cognitivos nos estados de
patologia cerebral, quanto para as suas mudanças, dependen-
do da fadiga.

Evolução do significado das palavras

Seria incorreto pensar que a estrutura complexa da


palavra, que comprende tanto a significação do objeto como
o sistema de traços abstratos e generalizadores, teria surgido
de um golpe e que a língua teria possuído, desde os seus
primórdios, um sistema de significados que podem ser obser-
vados nas formas mais desenvolvidas da língua.

28
Durante muito tempo, quando a palavra era entendida
como uma simples associação do sinal sonoro condicional
com a imagem direta, os estudiosos estiveram convencidos de
que o significado continuava imutável em todas as fases do
desenvolvimento e que a evolução da língua reduzia-se ao
simples enriquecimento do vocabulário e à ampliação do cír-
culo de noções designados por palavras isoladas.
Essa concepção é profundamente errónea.
Em realidade, o significado da palavra passa por uma''
complexa evolução, e se a representação material da palavra
continua a mesma, desenvolve-se o seu significado, ou seja,
o sistema de relações e ligações que ele implica, o sistema de
т generalizações realizado pela palavra. Por isto, a palavra não
apenas muda de estrutura em etapas diferentes da evolução,
como passa a basear-se em novas correlações de processos
psicológicos.
Ainda sabemos muito pouco acerca das etapas da evolu-
ção histórica da palavra nas fases sucessivas de desenvolvi-
mento da sociedade. No entanto as poucas conjeturas dos
historiadores das etapas mais antigas da evolução da lingua-
gem (a chamada paleontologia da fala) levam a pensar que
a palavra nem sempre teve as formas precisas que atualmen-1
te tem, nem dispôs do sistema preciso de significados que ca-1
racterizam as palavras de uma língua desenvolvida. у
As teorias modernas da linguagem aventam я hipóos»
de que esta surgiu no processo comunicativo do trabalho, no
qual “surgiu nas pessoas uma necessidade de dizer algo umas
às outras”. Nas primeiras etapas, a linguagem se constituía
antes de exclamações, entrelaçadas num sistema de gestos e
atos de trabalho, do que de palavras de significado rígido
e permanente. Era justamente em decorrência dessa ligação
indissolúvel com a prática ou, como dizem os psicólogos, do
caráter “simprático” da fala, que essas exclamações, nas eta-
pas iniciais da evolução histórica da linguagem, não tinham
significado próprio permanente e, dependendo da situação
prática, do gesto ou da entonação, podiam significar a simples
indicação de um objeto ou sinal de que era necessária pre-
caução ou um pedido para trazer alguma coisa. Por isto po-
demos supor que as primeiras palavras-exclamações, que não)
tinham rígida referência material nem significado permanente. !
expressavam antes uma situação efetiva e adquiriam sentido
dependendo da acâo em que se entrelaçavam.

29
Somente como resultado de um longo processo de evo-
lução. tiue durou vários milénios, as palavras começaram a
^unificar traeos particulares e. mais tarde, objetos comple-
xos que eram portadores desses traços. Isto pode ser julgado
apenas pelas peculiaridades das línguas mais antigas, pouco
desenvolvidas, que conservaram remanescentes das formas
mais primitivas de estrutura da palavra. Numa língua dos
índios americanos, a palavra “lago” é designada pela pa-
lavra composta kech-kam-ui; cada parte dessa palavra in-
dica uma marca ainda não suficientemente definida (kech
significa algo grande, к am, um espaço qualquer, ui, algo
inerte). É natural que as palavras de semelhante língua
só paulatinamente adquirem nítida referencia material c, nos
primórdios, o estudo delas dependia altamente da situação
em que elas se empregavam e dos atos, gestos e entonações
de que eram acompanhadas.
Somente depois de milénios as palavras começaram a
assumir significado preciso e estável, que adquiriu a sua base
na separação paulatina da base morfológica dos significados
dos radicais, que codificam determinadas marcas dos objetos
e sufixos, ciue designam certas relações.
Dispomos de um número insuficiente de fatos, que indi-
cam a transformação gradual da linguagem num sistema ,
objetivo e diferenciado de códigos, que representa não ape-
nas os traços e objetos, mas também as ligações e relações;
só alguns fatos históricos (por exemplo, o fato já referido de
as preposições e conjunções complexas terem origem nas sig-
nificações materiais) dão fundamentos para tirar conclusões
acerca das etapas percorridas pelo processo de formação dos
complexos códigos lingüísticos.
Sabemos bem mais a respeito da evolução da palavra na t
entogenese, ou seja, das transformações que sofre a palavra
à medida que a criança se desenvolve.
O processo de evolução do discurso infantil, particular-
mente o domínio do vocabulário que começa no final do pri-
meiro ano de vida da criança e começo do segundo, foi fre-
qiientemente interpretado como simples processo de assimila-
ção das palavras de uma língua evoluída, empregada pelo
adulto.
O fato de a formação das palavras surgir na criança no
processo de assimilação da linguagem do adulto, não suscita

30
dúvida; entretanto isto não significa, de maneira nenhuma ^
<|i¡e a crianca assimile dc imediato os palavras da língu;■ ¡i i V
forma em que cias se apresentam no discurso do adulta. (
Sabc-se que entre o fim do primeiro ano tie vida e come-
ço do segundo, a criança começa a assimilar as palavras do
adulto em resposta às palavras “onde está a xícara?”, “onde
está a boneca?”, pronunciadas pela mãe, vira a cabeça e olha
para os objetos mencionados.
Mas isto está longe de significar que a criança da refe-
rida faixa etária domina de imediato a referência material
precisa dc dada palavra.
Como mostraram as observações da pesquisadora sovié-\
tica M. M. Koltsovaya, a criança reage à altura ante a pala-
vra pronunciada se ela a percebe, em certa atitude, de deter-
minada pessoa, se a palavra do adulto é pronunciada com
certa entonação e é acompanhada de determinado gesto.
Basta excluir um desses componentes da situação para a
criança não mais reagir adequadamente à palavra. Isto sig-
nifica que, nas primeiras etapas, a palavra é percebida pela
criança como o componente de toda uma situação que englo-
ba uma série de influências extradiscurso. Somente depois de
certo período a palavra adquire relativa independência e co-
meça a significar o objeto mencionado independentemente de
quem e com que voz pronuncie a palavra, de que gestos a
acompanhem e em que situação foi pronunciada.
Mas nessa etapa, que se forma na metade do segundov
ano de vida, a palavra que a criança ouve ainda não adqui-'.
re nítida referência material e suscita antes uma ação que 1
representa determinado objeto. J
A psicóloga soviética Fradkina fez uma interessante
observação. Uma criança no início do segundo ano de vida
aprendeu o seguinte: em resposta à pergunta “cadê a cabeci-
nha?”, mostrava a cabeça de uma boneca, mas quando lhe
mostravam uma boneca sem cabeça ela repetia o mesmo ges-
to indicador; o mesmo ocorria quando lhe perguntavam “cadê
o papai?” e ela mostrava o retrato, repetindo o mesmo gesto
quando se retirava o retrato. <*-
As palavras percebidas pela criança de tenra idade não'^ .#
suscitam, absolutamente, uma referência material precisa é
ainda não têm uma sólida função significativa, provocando, . ^
antes, apenas gestos e atos da criança que pouco se distin-
guem de outros sinais.

31
Hisses sinais são conservados também na etapa subse-
yiicnie__de desenvolvimento da criança, quando a palavra já
etчпсса a adquirir alguns traços de autêntico sistema de si-
In is mas ainda não designa por si só o objeto e sim traços
dcslc. que são avaliados pela criança como portadores de mais
I informação. Em suas pesquisas, os psicólogos soviéticos G. L.
1 Rozengardt e N. H. Shvatchkin observaram o seguinte: à
, solicitação “mostre o pato”, a criança, no segundo ano de
I vida, responde mostrando esse objeto, e quando ao seu redor
não existe um pato ela pode apontar para uma louça arre-
dondada com bico fino; em resposta à solicitação “mostre o
gato”, ela pode apontar para qualquer pedaço de pele que
sirva para luvas, etc.
.Por conseguinte, também nessa fase a palavra ainda não
tem referência material nítida, significando apenas traços
particulares mais informativos e nunca o objeto em sua

~ Fatos análogos podem ser estabelecidos, observando o


significado das primeiras palavras da criança.
Durante muito tempo os psicólogos observaram que as
primeiras palavras que surgem na criança não significam
objetos precisos e, por conseguinte, ainda não têm nítida re-
ferência material. Segundo observações do conhecido psicólo-
go alemão Karl Stumpf, seu filho empregava a palavra “ei-
der” para designar não apenas p a to mas também água e a
moeda em que aparecia a figura de uma águia. Nas obser-
vações de outro psicólogo, a criança que começava a falar
denominava g a to com a palavra “gh” mas aplicava esta, si-
multaneamente, ao barrete de pele e a um arranhão no
dedo, etc. Conseqüentemente, a “palavra” inicial não signi-
ficava na criança pequena um objeto determinado mas um
traço do objeto; ademais, esse traco era instável e distinguia-
se dependendo da situação (ê id e r — p a to — água — figu ra
da a ve; gh — g a to — m a ciez d a p ele — d o r p ro v o c a d a p e lo
arran h ão. etc.V Segundo recordações do conhecido mnemoni-
zador S acerca da sua infância tenra, a palavra “besouro”
significava para ele barata, p a rte fratu rada d e um va so , m e d o
d a e scu rid ã o , etc.
A referência material nítida da palavra não se manifes-
ta nas etapas tenras de desenvolvimento da criança mas é um
produto do desenvolvimento.

32
Há ainda menos fundamentos para considerar que
primeiras palavras da infância tenra têm caráter diferenciado
e designam o objeto, a acão ou a qualidade. Observações em
gêmeos com retardamento considerável da evolução da fala
(Luria) mostraram que a palavra “ô!” significava simultanea-
mente cavalo, va m o s, pare, mudando de significado depen-
dendo da situação em que era empregada, do tom com que
era pronunciada e do gesto que a acompanhava.
Apenas no final do segundo ano de desenvolvimento nor-
mal muda esse caráter difuso das palavras, empregadas pela
criança. As palavras adquirem uma estrutura diferenciada;
surgem os sufixos, que dão à palavra significado preciso; a
interjeição “ô!” adquire o caráter de “ô-valo!” que indica
concretamente o objeto (cavalo e deixa de significar ação
(vamos, pare, etc.).
Com o surgimento da palavra morfologicamente diferen-^
ciada, aumenta consideravelmente o vocabulário da criança.
Se as palavras assumem um significado estável mais determi-
nado. comecando a designar objetos ou ações, a criança deixa
de exprimir com uma só palavra as situações mais diversas,
necessitando de um número maior de palavras diferenciadas. I
Eis porque ao desenvolvimento de uma estrutura morfológica!
não estão relacionadas apenas a libertação da palavra dos'
fatores extradiscurso que a acompanhavam (situações, ges-
tos, entonação) e a transformação da linguagem da crianca
num sistema de códigos, onde cada elemento tem nítida re-
ferência material, como também o enorme sal to no volume
de palavras que os observadores situam entre o fim do_s
gundo ano de vida e começo do terceiro. У
A criança de 3-4 anos sente interesse pela forma da
palavra: por isto é justamente a esse período que pertence a
“criação das palavras” da criança, bem conhecida na litera-
tura. Assimilando as peculiaridades morfológicas da palavra,
a crianca comeca por si mesma a construir as palavras, con-
servando os traços concretos do objeto e o sistema de sufi-
xos que designam determinado modo de acão do obieto. Ê
justamente nesse período que surgem palavras infantis como
aviãodor (em vez de aviador), bátelo (em vez de martelo),
cachorrãozão (em vez de cachorro grande), etc.
Vê-se facilmente que imenso trabalho faz a criança desse
período na assimilação das partes morfológicas (sufixos) da

3.1
palavra, permitindo analisar aspectos isolados do objeto, dis-
criminar-lhe as funções os traços funcionais e introduzi-la no
sistema dc outros objetos que apresentam os mesmos traços.
U processo de assimilação precisa da referência material
da palavra e seu significado concreto, que é questão central
na criança de 3-5 anos, durante muito tempo apresenta como
traco característico o fato de as palavras continuarem tendo
caráter concreto. A criança assimila palavras que, para o
adulto, já perderam o uso concreto e assumiram o caráter de
significação de conceitos gerais.
São bem conhecidos casos em que à pergunta: “esta
aqui é uma menina, e você, quem é?, a criança responde:
“Eu sou Marina!" ou à pergunta “isto é um cão?” ela res-
ponde: “Não, esse é Tomik!”
Situam-se nesse período os fatos de interpretação concre-
ta das palavras, cujo efeito são os divertidos equívocos de
compreensão do sentido figurado das palavras (por exemplo,
a inesperada reação da criança à expressão “ele se deitou com
as galinhas” através da réplica: “não, elas beliscam”).
O predomínio do significado figurado, concreto da pa-
lavra, que caracteriza esse período de domínio da língua,
foi estudado por S. N. Karpova: se dermos a uma criança
de 5-6 anos a tarefa de separar as palavras da frase e contá-
las, ela, via de regra, comeca a separar e contar as palavras
que desitmam obietos concretos, omitindo as palavras de sig-
nificado não-concreto, auxiliar. Assim, nas primeiras etapas
a criança separa e conta apenas algumas unidades semânti-
cas substantivas ou concretas, omitindo os verbos e as pala-
vras secundárias (por exemplo, na frase “mamãe foi ao bos-
que” conta apenas duas palavras: mamãe e bosque); em
seguida separa as palavras que designam objetos e ações mas
omite as palavras secundárias (por exemplo, discriminando
mamãe ■ — fo i — ao bosque) e somente dominando a arte
de ler e escrever, começa a discriminar todos os componentes
do discurso, distinguindo incorretamente os elementos que fa-
zem parte da composição de uma palavra (mamãe — ao —
tomou-se).
O processo de assimilação da composição morfológica da
palavra mostra de modo patente o caminho complexo e am-
plo que a criança percorre ao assimilar tanto a referência
material da palavra, quanto seu significado generalizado.

34
Nas crianças de idade pré-escolar e escolar, o processo'
de assimilação da referência material e do significado nmis
aproximado da palavra termina e começa um processo —
mais complexo e mais dificilmente acessível à observação
— de desenvolvimento interno da estrutura semântica da j
palavra. J

A palavra e o co n ceito

Descrevemos acima o fato de que pada palavra de uma'',


Jíngua evoluída oculta um sistema de ligações e relações nas 1
quais está incluído o objeto designado pela palavra e de quç I
"¡cada palavra generaliza” e è um m eio d e form ação d e c o n - ч
ceito.4. noutros termos, deduz esse objeto do campo das im^- j
gpns sensoriais e o inclui no sistema de categorias lógicas )
que permitem refletir o mundo com mais profundidade do /
que o faz a nossa pcrccpçâo. Ao dizermos jaca, introduzimos
esse objeto na categoria de instrumentos; ao dizermos á rv o re ,
designamos um sistema de ligações do qual esse objeto faz
parte.
Eis porque a palavra não apenas significa uma imagem
mas também inclui o objeto no riquíssimo sistema de liga-
ções e relações em que ela se encontra.
Essa tese, conhecida na filosofia materialista como dou-
trina do “conceito concreto”, indica que a transição de sig-
nificações mais diretas (como am en doeira, p in h eiro) para
conceitos mais genéricos (como á rv o re , vegetal) não apenas
não empobrece como enriquece substancial mente as nossas
concepções. Ao dizermos veg eta l, incluímos nesse conceito
uma rede de ligações mais rica do que am endoeira ou álam o.
Esse termo genérico encobre uma oposição entre vegetal e
anim al, dele fazem parte as categorias de á rvo re e erva , nele
existe em forma latente toda a riqueza de variedades indivi-
duais de árvores (pin h eiro, ca rva lh o , á la m o ), ervas (esparga-
niácio, u rtig a ), de gramíneas (cen teio , trigo, a v e ia ), etc. Por
isto o conceito genérico, representado pela palavra que pelo
rjau de concreticidade pode afigurar-se pobre, pelo sistema
de ligações que ela implica é incomparavelmente mais
rico do que a representação concreta do objeto individual. A
filosofia marxista vê na transição da significação material do
objeto para a significação do conceito abstrato não um pro-
cesso de empobrecimento ou ascensão ao abstrato, mas um
processo de enriquecimento ou ascen são autêntica ao con-
creto. se рог c o n creticid a d e entendermos a riqueza das liga-
ções em cujo sistema o conceito inclui o referido objeto.
Analisando a estrutura semântica da palavra que signi-
fica o conceito, vê-se facilmente que ela implica uma série
de_ imaeens com ela coord en a d a s bem como várias imagens
subordinadas, ou seja, cada palavra generalizada tem, segun-
do expressão de Vigotskv. sua •‘amplitude” e sua “longitude”
(ou “profundidade”) .
Ao pronunciarmos a palavra “cão”, coordenamos essa
imagem com imagens situadas numa série como g a to , ca va lo ,
ovelh a, c o e lh o , raposa, lo b o , e quanto mais amplo o conceito
de que o homem dispõe, tanto maior o número de concep-
ções coordenadas (ou situadas numa série com elas) que esse
conceito incorpora.
Mas ao pronunciarmos a palavra “cão”, incluímos essa
imagem num sistema hierárquico de categorias mais genéri-
cas do qual tal imagem faz parte (um sistema de “ medidas
de generalidade” de diferentes graus — cão — a n im a l —
v iv o ) e suscitamos ao mesmo tempo uma série de imagens
particulares subordinadas a esse conceito e situadas nos seus
limites (cão, ovelha, buldogue, etc.).
Deste modo, ao mencionar determinada palavra, o homem
não apenas reproduz certo conceito direto mas suscita p á ti-
camente todo um sistema de ligações que vão muito além
dos limites de uma situação ¡mediatamente perceptive! e têm
caráter de matriz complexa de significados, situados num sis-
tema lógico.
r É natural que esse sistema de relações semânticas, im-
plícito na palavra que expressa um conceito, permita ao pen-
samento movimentar-se em muitos sentidos, que são deter-
/ minados pela “amplitude” e a “profundidade” desse sistema
j de relações. Por isto a p a la vra q u e form a co n ceito p o d e s e r
/ c o n sid era d a , co m to d o fu n dam en to, o m ais im p o rta n te m eca-
[nismo q u e serve d e base a o m o vim en to d o p en sa m en to .
O sistema de relações, latentes na palavra-conceito, não é
o mesmo em pessoas diferentes,

(
Compreende-se perfeitamente que nas pessoas, que assi-
milaram um grande conjunto de conhecimento fornecido pela
escola e a ciência moderna, esse sistema de relações, tanto
pelo volume de conceitos coordenados, quanto pelo número ¡
de “medidas de generalidade” hierarquicamente construídas,
é incomparavelmente mais rico do que nas pessoas que têm
experiência apenas limitada e não assimilaram um rico siste- 1
ma de conhecimentos. jSeria incorreto pensar que essas dife-
renças têm caráter apenas quantitativo. A pesquisa mostra
que, em diferentes níveis de desenvolvimento mental, a es-
trutura d o s co n ceito s é profundamente diversa e nos níveis
posteriores de desenvolvimento o conceito oculta d ife re n tes
processo s p síq u ico s.
Já dissemos que em toda palavra portadora de conceito
podem-se discriminar facilmente tanto os co m p o n en tes figu-
rado-em ocion ais d ire to s (na palavra cã o , discriminamos a
imagem latente do animal correspondente, na palavra á rvo re,
a imagem da árvore correspondente), quanto o sistem a d e rela-
çõ es lógicas, integrado tanto por conceitos com eles coorde-
nados, quanto conceitos mutuamente subordinados (mais par-
ticulares ou mais gerais — cã o , animal doméstico, animal em
geral, etc.; c ã o , animal de caça, animal doméstico, cão de
caça, bassê, etc.). É essencial o fato de que, em diferentes
nessoas. sobretudo naquelas que estão em diferentes níveis de
desenvolvimento intelectual, a co rrela çã o das relações d ire to -
fieuradas n ão é a m esm a. Se nas etapas inferiores de desen-^
volvimento predominam no homem as relações direto-figura-
das. nas etapas mais desenvolvidas de desenvolvimento cabe
posição determinante aos complexos, sistemas de relações
lógicas.
Eis porque nas crianças de idade pré-escolar predomi-
nam nitidamente as reações figurado-emocionais latentes na
palavra, predominando nos alunos do primário relações di-
retas concreto-figuradas e circunstanciais, e relações lógicas
complexas nos alunos do curso superior e nos adultos.
Assim, a palavra ven d a ou m ercearia suscita na criança
de idade pré-escolar várias emoções (“pão quente”, “bom-
bons gostosos”), na criança de idade escolar, uma situação
prática direta (tipo de casa comercial, balconistas, prateleiras
com mercadorias, estabelecimento, compradores que entram
e saem), provocando na pessoa adulta e bem-preparada os
conceitos de “produção” e “distribuição”, às vezes o conceito
de “sistema capitalista e socialista”, etc. Esse fato sugere a
profunda mudança da estrutura do significado das palavras
(conceitos), experimentada por elas nas etapas sucessivas da

a j JL * . 1
evolução, e dá fundamento para formular uma das teses bá-
sicas da Psicologia moderna segundo a qual o sig n ifica d o d a ")
p a la v ra e v o lu i e. apesar de não variar a referêpcia material
da palavra nas diferentes fases de desenvolvimento, muda

í!
radicalmente o conteúdo dos conceitos implicitamente repre-
sentados pela palavra bem como a estrutura das relações
suscitadas pela palavra.
Nas diferentes etapas de desenvolvimento, o siste m a d e
p ro c e sso s p sico ló g ico s, laten tes na palavra, não é o m esm o
e o conceito, suscitado pela palavra, é realizado por dife-
rentes processos psicológicos. É fácil nos convencermos disto.
N a criança pequena a palavra suscita, acima de tudo, reações
emocionais e imagens diretas; na criança em idade escolar
primária, a palavra implica antes de tudo um sistema de re-
cordações diretas e por isto ela pensa recordando: no aluno
do curso superior e na pessoa com alto nível de desenvolvi-
mento intelectual, a palavra evoca antes de tudo um sistema
de operações lógicas, daí ele a memorizar pensando. Essav
m u dan ça p ro fu n d a d a correlação d o s p ro cesso s p síq u ic o s im-J
plícitos no conceito (e, conseqiientemente, no pensamento),/
em etapas particulares da evolução intelectual, é um dos maisl
importantes fatos descobertos pela Ciência Psicológica. É por'
isso mesmo que a Psicologia afirma que o homem reflete e
toma consciência do mundo de diferentes modos em cada
etapa do desenvolvimento, baseando-se em significados da
palavra estruturalmente diferentes e numa estrutura do concei-
to diferente pelos mecanismos psicológicos que apresenta^
Essa tese foi lançada em seu tempo por Vigotsky, que foi o
primeiro a sugerir uma profunda relação entre a estrutura do
significado da palavra (conceito) e a estrutura da consciên-
cia. formulando a tese_ da estru tu ra sem án tica e sistém ica d a
con sciên cia, por outras palavras, a tese segundo a qual, nas
etapas sucessivas do desenvolvimento, a consciência do ho-
mem c realizada por conceitos que têm estrutura semântica
(direto-figurada ou lógico-verbal) e por uma correlação di-
ferente de processos psíquicos (pcrcepções, memorizações,
pensamento verbal abstrato), correlação essa que muda nas
diferentes etapas de desenvolvimento intelectual da criança.
É essencial, ainda, o fato de que a correlação de com-
ponentes direto-figurados (práticos) e lógico-verbais, que
muda nas etapas sucessivas do desenvolvimento, não perma-
nece a mesma em conceitos diferentes.
ejo»oc.>c«/c¡4 ^ <•*.
38 J n
Em Psicologia costumam-se distinguir dois tipos de con-
ceito. que são diferentes tanto pela origem quanto pela es-
trutura psicológica. É comum designá-los com os termos con-
ceitos comuns e científicos.
Os conceitos comuns (cadeira, mesa, lavatório, pão, ár-
vore. cão) são assimilados pela criança no processo da expe-
riência prática e. neles, as relações direto-figuradas ocupam
POSicâO predominante. A criança tem uma noção prática do
que significa cada um desses conceitos, e a palavra correspon-
dente evoca nela a imagem da situação prática em que ela
esteve em contato com o objeto. Por isto a criança conhece
bem o conteúdo de todos esses conceitos mas, via de regra.
não consegue formular ou determinar verbalmente o conceito.
É internamente distinto o que ocorre com os conceitos
“científicos”, adquiridos pela criança no processo de apren-
dizagem escolar (conceitos como estado, ilha, verbo, mamí-
fero, etc.). Esses conceitos se incorporam à consciência da
criança como resultado da aprendizagem. Inicialmente eles
são formulados pelo professor e só posteriormente completa-
dos com um conteúdo concreto. Por isto o aluno pode, desde')
o início, formular verbalmente esses conceitos e só bem mais/
tarde tem condições de completá-los com um conteúdo válido.)
É natural que sejam totalmente distintos a estrutura dos
dois tipos de conceito e o sistema dos processos psicológicos
que participam da formação deles: nos conceitos “comuns”
predominam as relações circunstanciais concretas, nos “cien-
tíficos" as relações lógicas abstratas. Os conceitos “comuns”
se formam com a participação _dã„atiyidM£..piática e da.caps-
riência figurado-direta, os “científicos”, com a participação

Os dois referidos tipos de conceito ocupam posição va-


riada na vida intelectual do homem e refletem diferentes for-
mas de sua experiência.

Métodos de estudo dos conceitos

O estudo psicológico dos conceitos e sua estrutura inter-


na tem uma importância tão grande tanto para a teoria psi-
cológica quanto para o diagnóstico prático das peculiaridades

39
do desenvolvimento intelectual e sua patologia, que se faz
necessária uma abordagem especial dos métodos que se apli-
cam a tais fins.
O primeiro e mais difundido método de estudo psicoló-
gico dos conceitos é o m é to d o d e d efin içã o d o s co n ceito s.
Cabe de imediato a ressalva de que não faz parte desse mé-
todo o estudo do grau de precisão ou plenitude lógica da
definição dos conceitos (plenitude essa que é pouco acessí-
vel à criança no que concerne aos conceitos com os quais
ela efetivamente opera). O método de definição dos con-
ceitos, adotado em Psicologia, tem como tarefa fundamental
explicar quais as correntes que tentam definir e, acima de
tudo, estabelecer se o sujeito inclui o conceito que lhe ó)
dado num sistem a d e relações lógicas ou se substitui esse I
processo pela simples d escriçã o d o s tra ço s evid e n te s do obje-(
to
1 que é representado pela palavra.

í:
Para o pensamento lógico-verbal desenvolvido, é natural
'd a definição do conceito através de sua in tro d u çã o no sistem a
d e u m a categoria lógica m ais genérica. Por isto definições
como “a mesa é um móvel”, o “martelo é uma ferramenta”,
“o cão é um animal” são o modo mais comum de definição
de um conceito, que indica que nessa operação cabe papel
determinante aos processos de pensamento lógico-verbal.
Distinguem-se acentuadamente desse procedimento as de-
finições do conceito na criança pequena e na pessoa não habi-
tuada à atividade teórica lógico-verbal. A criança pequena
costuma substituir o processo de definição do conceito com
sua inclusão numa categoria lógica mais genérica, por outro
processo psicológico — a definição do objeto nomeado, a
discriminação dos seus traços concretos ou funções básicas.
Por isto são mais características das crianças definições como
“a cadeira serve para a gente se sentar nela!”, “o martelo
serve para pregar pregos!”, “o cão ladra!”, etc.
O caráter das operações psicológicas, empregadas para
definir o conceito, distingue-se radicalmente daquele que des-
crevemos; se o sujeito, apesar dos exemplos que lhe são da-
f dos e das tentativas de ensinar-lhe a definir logicamente os
conceitos, continua a substituir a definição dos conceitos pela
descrição direta do objeto ou pela discriminação do seu tra-
ço distintivo, o pesquisador pode indicar com suficiente fun-
damento que as operações figurado-diretas predominam so-
Jidamente nesse sujeito sobre as lógico-verbais abstratas.

40
O segundo método de estudo psicológico dos conceitos
é o método de comparação dos conceitos. O sujeito recebe
duas palavras, que significam objetos de uma categoria e deve
compará-los, encontrar o denominador comum que os une.
Em um teste mais simples, esses dois objetos pertencem
evidentemente a uma categoria (por exemplo, “cão” e “gato”,
“xícara” e “prato”, “pistola” e “fuzil”). Em outro teste mais
complexo, os dois traços, ao pertencerem à mesma categoria,
são variedades que se distinguem não acentuadamente e a
descoberta de uma categoria comum constitui grandes dificul-
dades (podem servir de exemplo os termos “cão” e “esqui-
lo”, “árvore” e “peixe”). Por último, na terceira variante, a
mais difícil, mencionam-se ao sujeito dois objetos que, em-
bora pertençam à mesma categoria (abstrata), assim mesmo
contraem relações mútuas concretas tão nítidas que o sujeito
deve ser capaz de descrever essa evidente interação para en-
contrar a categoria geral a que pertencem os dois objetos
(podem servir de exemplo pares como um “garoto” e um
“ cão", um “homem” e um “cavalo”, etc.).
Os sujeitos adultos, que estão num nível elevado de de-
senvolvimento intelectual, resolvem facilmente essa tarefa en-
contrando uma categoria geral à qual pertencem ambos os
objetos e dizem: “o cão e o gato são animais”, “a xícara e o
prato são louças”, etc. Essa definição dos objetos mediante
sua inserção numa categoria geral é possível inclusive se am-
bos os objetos pertencerem a situações nitidamente diversas
(“o cão e o lobo”, “o corvo e o peixe”) ou se o primeiro
que vier naturalmente à cabeça do sujeito indicar uma intera-
ção concreta de tais objetos (“o cão morde o garoto”, “o
homem anda a cavalo”, etc.).
É internamente diverso o que ocorre no estudo de uma
criança pequena e um homem situado num nível bastante
baixo de desenvolvimento intelectual. Nestes casos não ten-
tam, de maneira alguma, encontrar uma categoria lógica geral
cm que seja possível inserir ambos os mencionados objetos.
Ao invés disto comecam a descrever cada objeto, discriminan-
do-lhe os traços evidentes (“o cão ladra e o gato arranha”,
“na xícara bebe-se chá, no prato põe-se o pão”) ou tentam
encontrar a interação entre eles (“o cão pode morder o garo-
to”, “o homem anda a cavalo”, etc.). A operação de pen-'
sarnento lógico ou referência a uma categoria lógica geral é
substituída pela operação de descrição de indícios particula-

41
¡ООАЛсЛ «Cçrj 1
res: por isto, as referências ãs diferenças concretas entre am-
bos os objetos costumam anteceder a operações de desco-
berta de afinidade lógica entre eles, enquanto as operações
de descrição da interação prática direta entre eles antecedem
à operação de generalização lógica.
Se esse caráter das operações permanece apesar da longa
aprendizagem da criança, o psicólogo pode afirmar que o sis-
tema de relações figurado-diretas predomina nitidamente no
sujeito sobre o sistema de operações lógico-verbais abstratas.
O terceiro procedimento, mais difundido, dc estudo psi-
cológico dos conceitos 6 o método de classificação.
Em sua forma mais simples, esse método consiste no se-
guinte. Sugerem-se ao sujeito quatro palavras (ou quatro qua-
dros), tres das quais pertencem a uma categoria geral (por
exemplo: instrumentos, louça, animais) e o quarto não per-
tence a esse grupo; o sujeito deve responder quais as três
palavras (objetos) que pertencem a mais um grupo ou quais
os três objetos que podem ser unificados por uma palavra
comum, devendo ainda mencionar o quarto objeto que per-
tence a esse grupo e é supérfluo. O presente procedimento
pode ter diversas variantes. Na variante mais simpes, o quar-
to objeto — o "supérfluo” — se distingue acentuadamente
quer pela categoria a que ele pertence, quer pela forma; na
variante mais complexa, os objetos pertencentes a uma cate-
goria geral têm forma variada, o objeto “supérfluo” man-
tém a semelhança externa com um dos objetos pertencentes à
categoria geral. Por último, na variante de teste mais com-
plexa, porém ao mesmo tempo mais informativa, o sujeito
recebe quatro objetos três dos quais podem participar de uma
situação eficaz-direta sem pertencerem à mesma categoria,
enquanto o quarto objeto, pertencente à mesma categoria que
pertencem os outros dois, às vezes não se encontra numa
situação prática com eles.
A forma mais complexa desse método é o método de
classificação livre.
Propõe-se ao sujeito um grande número (20-30) de car-
tões com figuras de diversos objetos e dividi-los em grupos,
nos quais se situem os cartões pertencentes à mesma catego-
ria. Divididos os cartões em grande número de grupos fra-
cionados, propõe-se ao sujeito ampliar esses grupos, unifican-
do alguns grupos pequenos. Sugere-se em seguida denominar
cada um dos grupos discriminados com uma palavra comum.

42
Um adulto suficientemente preparado resolve facilmente
ambas as variantes dessa tarefa, unificando os objetos per-
tencentes à mesma categoria (“móvel”, “animais”, “vegetais”,
“ferramentas”, etc.), apesar da diferença do tipo externo dos
elementos integrantes dessa categoria, e recusa (ou insere
em outro grupo) os objetos exteriormente semelhantes porém
pertencentes a diferentes grupos.
Resultados diferentes são apresentados por crianças pe-
quenas ou sujeitos situados num baixo nível de desenvolvi-
mento intelectual.
Via de regra, a unificação dos quadros diretos em grupos
abstratos (categorias) é uma operação inacessível a esses su-
jeitos. As crianças pequenas (pré-escolares) não iniciam o
cumprimento dessa tarefa ou reúnem os objetos segundo a sua
semelhança externa (cor, forma). Às vezes tentam reuni-los
pelo sentido mas, nestes casos, ao invés de reuni-los numa
categoria geral (abstrata), un ificam -n os num a situ ação d ireto -
efetiva con creta. Assim, p ra to , faca, garfo, p ã o , m esa podem
ser reunidos em um grupo; em outro grupo podem inserir-se
cão, casinha onde o cão vive, tigela para a comida do cão,
etc. Grupamento efetivo-concreto análogo, que não é tanto
uma classificação quanto uma inserção numa situação direta
geral, continua característico das crianças de tenra idade es-
colar, especialmente para as crianças que apresentam retar-
damento mental. É típico destas o fato de que nenhuma
tentativa de ensinar-lhes a classificação abstrata (“categorial”)
autêntica é bem-sucedida e, concordando com a possibilidade
de semelhante classificação, os sujeitos fogem rapidamente
desta para o grupamento circunstancial-direto dos objetos e
sob nenhuma condição passam ao nível de operações lógicas
abstratas.
Vê-se facilmente a grande importância dos resultados do
teste para a avaliação das formas reais de generalização pró-
prias dos sujeitos, bem como para a caracterização das corre-
lações típicas dos elementos figurado-diretos e lógico-verbais
do conceito.
A metodologia descrita incorpora-se mais uma tarefa
especial de estudo do modo pelo qual foram construídos os
sistemas de coordenação e subordinação dos conceitos, deno-
minados por Vigotsky de m e d id a s d e generalidade.

43
O sujeito recebe um grupo de 20-30 palavras escritas em
cartões isolados, que significam diferentes conceitos coorde-
nados e subordinados que ele deve dividir em certos sistemas
lógicos, por exemplo:

animais selvagens vegetais

cão
domésticos
7 T “ \
gato vaca
Л \ A
lobo raposa lince árvore grama

p a s to r^ bassé pinheiro abeto espar-


gánio
V
buldogue bétula

O adulto com nível bem elevado de desenvolvimento


intelectual e suficientemente preparado resolve facilmente essa
tarefa, distinguindo nitidamente tanto os conceitos coorde-
nados quanto os subordinados, colocando os cartões num de-
terminado sistema lógico. Via de regra, a criança não tem
condições de fazê-lo e sua classificação carece inteiramente
de caráter de sistema lógico hierarquicamente organizado, que
na melhor das hipóteses assume a forma:

cão — basse — buldogue.........


lobo — raposa — animal.........
árvore — abeto — pinheiro.........
grama — espargânio — urtiga..........

Se esse caráter da classificação permanece inalterado


mesmo depois que o experimentador mostra à criança um
exemplo de estrutura válida logicamente organizada, há todos
os fundamentos para afirmar que a crianca ainda não domina
as relações das medidas de generalidade lógicas, embora te-
nha dominado a classificação simples.
Vê-se facilmente que a comparação de todos os dados,
oDtidos com o auxílio dos métodos descritos, possibilita uma

44
informação bastante completa que caracteriza tanto a estru-
tura lógica dos conceitos de um dado objeto, quanto os pro-
cessos psicológicos que lhe servem de base.
Nos métodos descritos, entretanto, verifica-se uma falha:
.constatando bem o nível dos conceitos característicos do sujei-
to. tais métodos ainda não refletem à altura todo o p ro c e sso
de formação do conceito. Por outro lado, eles operam com
sistemas já conhecidos de conceitos e por isto refletem não
só as habilidades como a própria existência do co n h ecim en to
do sujeito.
Para evitar tais falhas, aplica-se com êxito, em Psicologia, \
o método de form ação d e c o n c e ito s artificiais, proposto em
seu tempo pelo psicólogo alemão N. Ach e modificado por
Vigotsky e seus colaboradores (L. S. Sakharov). Esse méto-
d£L se propõe observar como se formam paulatinamente no \
sujeito os n o v o s co n ceito s artificiais, as fases que o sujeito ,
lineados
palavras artificialmente criados e como ocorre na realidade
o processo de assimilação de tais significados. /
Sugerem-se ao sujeito várias figuras geométricas de
madeira, de tamanho, forma e altura variados, pintadas
com diferentes cores (branco, azul, verde, amarelo, ver-
melho). Cada uma dessas figuras é representada por uma
das quatro “palavras” condicionais (“ras” — “hasum” —
— — ), que significam respectivamente: figuras gran-
des e altas, grandes e baixas, pequenas e altas, pequenas
e baixas. Todas as figuras se distribuem em ordem na
mesa; as “palavras” escritas em cada figura são dis-
tribuídas no lado onde estão situadas as figuras.
O sujeito, que não domina esses novos “conceitos”
artificiais, inicialmente faz conjeturas acerca da impor-
tância de uma dada “palavra” e escolhe uma figura pela
cor, a forma ou o tamanho, semelhante à que lhe foi
sugerida. O experimentador descobre a “palavra” reme
sentada em uma das figuras esco’hHas e mostra que ela
não nertence ao grupo representado pela palavra “ras”;
ocorre que na figura há outra palavra escrita, por exem-
nlo. “hasum”. Isto coloca o sujeito diante da tarefa de
lapear uma nova hioótese e se antes ele escolhera um
gmpo de figuras semelhantes à primeira pela forma, ago-
ra ele seleciona um grupo de outras figuras, semelhan-

45
tes pela cor ou pelo tamanho. É natural que ele torne a
errar. Mas agora, ao prosseguir o teste, ele já dispõe de
duas ou três “palavras” que representam diferentes figu-
ras e lhe surge a possibilidade de fazer novas “partidas”
com base num grande volume de informação.
Acompanhando o contínuo desenrolar do teste, o
experimentador tem condições de observar as conjeturas
que o sujeito faz, o princípio pelo qual se constroem as
figuras que ele seleciona e, por conseguinte, o signifi-
cado que ele atribui à respectiva “palavra” artificial.

Um experimento realizado por Vigotsky permitiu descre-


ver várias classificações formadas em série e discriminar vá-
rias formas de “conceitos” empregados pela criança em dife-
rentes etapas do desenvolvimento. Citaremos apenas os mais
importantes.
1. A modalidade mais elementar de unificação das figu-
ras é a sua unificação pelo tipo de “a cu m u la d o ”. As crian-
ças de tenra idade se negam inteiramente a classificar as fi-
guras à base de qualquer princípio hipotético. Elas acumu-
lam em um grupo as figuras casualmente reunidas ou come-
çam a fazer desenhos delas; a “palavra” e o “princípio” que
ela oculta não desempenham, aqui, nenhum papel.
2. A segunda modalidade de unificação das figuras é a
sua unificação pelo tipo de con ju n to simultâneo ou sucessivo,
no qual cada figura se insere co n fo rm e a b a se q u e a p resen ta .
Assim sendo, para uma pequena pirâmide verde com a
inscrição “ ras”, o sujeito escolhe um pequeno círculo verde
(pelo traço de cor), escolhe uma grande pirâmide amare-
la (pelo traço de forma) e um pequeno cilindro vermelho
(pelo traço de tamanho), etc. Resulta daí a formação de
algo como uma “ja m ília ”, na qual cada figura tem posição
determinada pelo seu fundamento (assim como um integra
a família como irm ão, outra como irm ã e um terceiro como
pai, etc.).
Às vezes essa modalidade de unificação assume outra for-
ma, designada pelo termo con ju n to seriado. Para uma peque-
na pirâmide verde escolhe-se uma grande pirâmide azul (pelo
traço de forma), para esta, um grande cilindro azul (pelo tra-
ço de cor), escolhendo-se para o cilindro azul um pequeno
cilindro amarelo (pelo traço de forma), etc. Vè-se facilmente

46
que, neste caso, a permanência do traço não é observada je_a_
unificação se faz segundo o traço que sempre muda.
3. A terceira forma transitória é aquela na qual o su-
jeito, comparando um número sempre crescente de “pala-
vras” condicionais que representam diferentes figuras, já cons-
trói as hipóteses do significado dessas palavras e discrimina
os grupos adequados de objetos, que se distinguem pela mes-
ma combinação de traeos, embora cometa deslizes incluindo
nesse grupo fisuras que apresentam traços secundários. Essa
fase de desenvolvimento das generalizações é designada
como fase de nscudoconceitos.
4. Por último, o derradeiro estágio ao qual nem de
longe chegam todos os sujeitos, é o estágio de formação._da
conceilo autêntico; este conceito é sólidamente retido pelo
suieito e a ele se contrapõem outros grupos em que a pala-
vra condicional designa outra combinação de traços.
Como mostraram as observações de Vigotsky, a possi-
bilidade de abstrair vários traços evidentes e captar que o
significado da “palavra” artificial reúne um grupo de traços.
que ate então não constituíam um conceito, surge no desen-
volvimento num período relativamente tardio e comeca a se
manifestar sólidamente entre os 12 e os 14 anos de idade.
Esse fato não significa, absolutamente, que as crianças'
não operam com conceitos: em dadas condições especiais,
entretanto, os novos conceitos artificiais podem surgir em um
nível relativamente alto de desenvolvimento dos significados
verbais.
O experimento de Vigotsky desempenhou importante
papel na Psicologia. Mostrou de maneira patente que, em di-
ferentes etapas, o significado da palavra encobre diferentes
formas de generalização e diferentes processos psicológicos e.
conseqüentemente. evolui.
Esse experimento mostrou, simultaneamente, que o estu-
do experimental da formação dos conceitos pode ter grande
importância diagnóstica, estabelecendo o nível que a criança
pode atingir, estando numa fase inferior de desenvolvimento
intelectual, e as peculiaridades do processo de formação dos
conceitos que caracterizam determinados estados patológicos
da atividade cerebral. É nisto que consiste a grande impor-
tância do método de estudo experimental da formação dos
conceitos.

47
Patologia do significado das palavras e dos conceitos

Os métodos experimentais de estudo do significado das


palavras e assimilação dos conceitos abrem novas possibilida-
des para a descrição das peculiaridades dos processos cogniti-
vos que se manifestam nos estados patológicos do cérebro. A
aplicação desses métodos tem grande importância diagnósti-
ca, possibilitando uma informação nova e rica, que pode ser
necessária tanto para uma melhor compreensão da estrutura
dos processos cognitivos, quanto para a precisão do diagnós-
tico de diversos tipos de patologia dos processos psíquicos.
Tornaremos a abordar as mudanças do sig n ifica d o d a s
p a la v ra s nos estados patológicos do cérebro, para passar pos-
teriormente à descrição das formas básicas de patologia do
processo de formação (assimilação) dos conceitos.
A manutenção do significado pleno das palavras requer,
como já foi indicado, uma sólida referência da palavra a de-
terminados o b je to s (referência material) bem como a exis-
tência de um sistem a d e relações diferenciado e móvel, que
constituem a base dos significados verbais: as duas podem
perturbar-se nos estados patológicos do cérebro.
É sabido que a função do córtex do lo b o te m p o ra l es-
q u e rd o — aparelho central de análise e síntese dos sons da
fala — consiste em discriminar na cadeia de sons os fon em as
nítidos e assegurar a permanência dos complexos sonoros que
representam certas palavras.
Por isto é absolutamente natural que o estado patológico
do córtex do lobo temporal esquerdo, que provoca perturba-
ção da discriminação de fonemas isolados, leve fatalmente a
que as palavras da linguagem falada, percebidas pelo doente,
percam o caráter nítido e a referência material precisa. Se
a palavra v o z começa a soar como fo z , p ó s ou n ó s, ela per-
de naturalmente seu significado mais próximo e o homem
experimenta consideráveis dificuldades em relacioná-la a de-
terminado objeto. É característico que os doentes com afec-
ção do córtex da região temporal esquerda e com manifes-
tação da chamada “afasia sensorial” costumem manter o sig-
nificado difuso da palavra, compreendam que a palavra m o -
d ism o significa um conceito geral (correspondente ao sufixo

48
¡sm o) mas percam a capacidade de relacionar essa palavra
difusa pelo som a uma imagem precisa.
E inteiramente distinto o caráter da perturbação ao sig-
nificado das palavras, que surge na afecção das áreas mais
complexas (terciárias) da região temporo-parieto-occipital.
Nestes casos, a estrutura sonora da palavra conserva-se
plenamente e a referência material da palavra não se perturba.
Mas por força do estado patológico do córtex dessa região
(que assegura o funcionamento conjunto das áreas temporais,
parietais e occipitais), perturba-se o processo de discrimina-
ção normal do sistema determinante, essencial de ligações la-
tentes na palavra e o doente, ao tentar recordar a palavra
adequada, não consegue distingui-la entre todas as alternati-
vas que surgem, confundindo a palavra autêntica com pala-
vras de sentido aproximado, pelo som e a estrutura grama-
tical; nestes casos, na tentativa de chamar o objeto pelo nome,
surge algo semelhante àquilo que nós experimentamos ao ten-
tarmos recordar um sobrenome pouco conhecido, que se com-
plica por causa de diferentes associações correlatas (a “fa-
mília cavalar”* de Tchekhov pode servir de ilustração de
semelhantes dificuldades).
Perturbações mais grosseiras do significado das palavras
ocorrem nos casos de reta rd a m en to geral d o céreb ro , que
serve de base ao retardamento mental, ou nos casos de afec-
çõ e s orgânicas gerais, que levam a perturbações tróficas do
cérebro e servem de base à demência orgânica. Nestes casos,
a variedade das possíveis ligações latentes na palavra dimi-
nui acentuadamente, os componentes figurado-diretos imedia-
tos da palavra começam a predominar sobre os componen-
tes lógico-verbais abstratos e o significado da palavra come-
ça a ter caráter elementar unificado. Relacionam-se com este
mesmo caso as ocorrências de predomínio das relações so-
noras externas sobre as internas, semânticas, a que já nos re-
ferimos ao descrevermos os métodos objetivos de estudo dos
campos semânticos.
Ocorre processo inverso nos casos de doenças psíquicas,
que são designadas na clínica pela palavra esquizojrenia. Nes-

• Trata-se de uma história em que todos os personagens têm os nomes


derivados dos nomes dos arreios de cavalo. (N. do T.)

49
tes casos a referencia material imediata da palavra c deixada
para último plano, o significado costumeiro da palavra, adqui-
rido na experiencia prática do sujeito, deixa de aparecer com
grande probabilidade, tornando-se igualmente provável o sur-
gimento de diferentes relações sonoras e semánticas, que cos-
tumam ser reprimidas pela consciencia normal. Por isto a
estrutura do significado das palavras assume caráter profun-
damente patológico, que leva à eclosão de associações cola-
terais inesperadas.
São igualmente nítidas as mudanças que ocorrem nos
estados patológicos do cérebro no processo psicológico de
formação (assimilação) dos conceitos.
Os doentes com afecções locais limitadas da região tem-
poral e occipito-temporal do hemisfério esquerdo podem não
apresentar perturbações consideráveis na estrutura dos con-
ceitos; aqui a afccção só perturba as correlações normais do
aspecto sonoro e semântico da fala, mas conserva a estrutura
dos conceitos já assimilados anteriormente.
Mudanças consideráveis da estrutura dos conceitos obser-
vam-se nos casos de retardamento mental e demência orgâni-
ca, bem como numa série de doenças psíquicas específicas
(por exemplo, na esquizofrenia).
Nos casos de retardamento mental e demência orgânica,
o complexo sistema de relações, que serve de base aos con-
ceitos, fica seriamente perturbado, desintegram-se as ligações
lógico-verbais abstratas e a posição determinante é ocupada
pelas ligações figurado-diretas concretas. Nos doentes desse
grupo surge a possibilidade de realizar operações de inser-
ção dos conceitos em determinadas categorias lógicas, o pro-
cesso de classificação lógica dos objetos é substituído pela
descrição direta destes e o papel determinante no pensamen-
to passa das operações lógico-verbais abstratas para a repro-
dução da experiência ativa direta, substituindo a classifica-
ção “categorial” abstrata pela inserção do objeto numa situa-
ção ativa direta.
Ocorre o inverso na esquizofrenia, onde as ligações di-
reto-eficazes são colocadas em último plano e a posição
determinante é ocupada pelas relações lógico-verbais que per-
dem seu caráter seletivo, o que cria a impressão de um pen-
samento dos doentes inadequado, demasiadamente abstrato e
desordenado.

50
O estudo psicológico da mudança do significado das pa-
lavras e do pensamento nos conceitos, nos estados patológi-
cos do cérebro, possibilita uma importante informação tanto
para os nossos conhecimentos acerca da estrutura dos concei-
tos, quanto para um diagnóstico mais preciso da patologia dos
processos psíquicos.

51
I
Enunciado e Pensamento

J à v im o s que a palavra (unidade básica da linguagem)


é o principal meio de formação do conceito. Mas a palavra
isolada, que pode significar um objeto ou formular um con-
ceito, ainda não pode exprimir um evento ou uma relação,
formular um pensamento. Para exprimir um pensamento, é
necessária j j s o r jçxp o , .PabWMS OU МП, Ш Я £ Щ - que
cria uma o ra çã o integral ou en u n ciado.
A palavra b o sq u e designa um conceito nítido — uma
reunião de árvores; a palavra a rd er sugere certo estado, mas
apenas a combinação (sintagma) o bosqu e está arden do ex-
prime todo um acontecimento, formula um pensamento. A
palavra pastor significa certa raça de cão; a palavra cã o su-
gere determinada espécie, mas só a combinação das duas pa-
lavras cão-pastor insere p a sto r numa determinada categoria,
formula um juízo determinado.
Muitos lingüistas, reconhecendo que a palavra é a uni-
dade básica da linguagem, acham que a unidade básica d o
d iscurso , q u e form u la um ju ízo o u um pen sam en to, é a co m -

53
binação das palavras (ou sintagma), que serve de base para
a construção de uma oração ou frase.
Por isto a Psicologia, ao passar da análise da estrutura
de certos conceitos à análise dos processos que servem de
base a juízos inteiros, deve ocupar-se fatalmente do estudo
imediato das leis de construção das combinações das pala-
vras, que são os mecanismos objetivos que constroem os
enunciados, juízos ou pensamentos.

Meios sintáticos de enunciação

Nem toda combinação de duas ou várias palavras cria


um sistema inteligível ou oração.
A lingüística conhece vários meios objetivos de que dis-
põe a língua, que transforma a combinação de palavras em
enunciado inteligível.
Nas línguas desenvolvidas, esses meios são multivariados
e englobam ao menos três tipos básicos de procedimentos au-
xiliares ou sintáticos, que transformam um grupo de palavras
isoladas em sintagmas inteligíveis, que constituem a base
dos enunciados ou juízos. Situam-se entre tais procedi-
mentos a flexão, as preposições e a posição das palavras nas
combinações.
Dizer pedaço e pão ainda não implica em externar um
pensamento ou um juízo, mas pedaço de pão já é um enun-
ciado elementar. Casa e arder são duas palavras isoladas, mas
a casa está ardendo já é uma oração muito simples que tra-
duz um acontecimento e formula um pensamento elementar.
Os enunciados mais simples, que traduzem um pensa-
mento simplíssimo, consistem, via de regra, em enunciados
.■)de nome e verbo ou nome e adjetivo (casa ardendo, homem
' bondoso; na língua portuguesa dispensa-se o verbo de liga-
ção para os casos acima referidos, constituindo o esquema
S -> P ^ ,as variantes de flexões (ardendo, arde, ardia), bem
~c5mo a desinência modo-temporal (ardeu) detalham a forma,
dando ao verbo um caráter que expressa o tempo, o modo
e o aspecto.
Os enunciados mais complexos englobam várias palavras;
flexões diferentes precisam as relações em que se situam os

54
acontecimentos participantes de uma frase, e adquirem o es-
quema assim representado: S — P — O (“o menino espancou
o cão”, “a menina cortou-sc com um vidro”),
A existência de um complexo sistema diferenciado de
flexões permite exprimir quaisquer relações nas quais as coi-
sas se correlacionam, bem como construir uma matriz daque-
les mecanismos objetivos da linguagem que permitem formu-
lar qualquer pensamento.
O segundo veículo sintático, que traduz qualquer rela-
ção entre os objetos por meio de construções lingüísticas, são
as palavras acessórias (preposições, conjunções). Combinadas
com as fiexÕcs, estas refletem a riqueza das relações tanto
externas quanto internas entre os objetos (“o homem ia para
o bosque", “o homem ia na direção do bosque”, “o homem
saía do bosque” ou “João ia chamar Pedro”, “João ia adian-
te” e “João ia junto com Pedro”). As palavras acessórias]
(preposições, conjunções) exprimem tanto as relações espa-J
ciais simples quanto as relações internas complexas entre osj
objetos (“o homem saiu do bosque”, mas “o homem saiu
(está fora) de si”; “o homem andava no bosque”, mas “o
homem acredita na verdade”; “o homem examinou o cami-
nho diante de si”, mas “o homem desconcertou-se diante da
dificuldade”).
A grande variedade e a polissemia das palavras acesso-1
rias tornam praticamente a língua um sistema de códigos
que possibilitam formuiar qualquer relação. j
O terceiro meio de expressão das relações complexas dos
objetos com o auxílio da linguagem é a ordem da Dalavrar
ria oração (sintagma). Na língua portuguesa o termo prin-
cipal da oração (sujeito) costuma ocupar o primeiro lugar
na ordem de combinação das palavras, ficando o objeto, alvo
da acão, em segundo; por isto as construções “Marina cha-
mou Maria”, ou “Maria chamou Marina” têm significados di-
ferentes, apesar de os nomes incluídos na oração não terem
flexões diferenciadas.
Todo o conjunto de recursos sintáticos_(não idênticos'1
em linguas diferentes) toma a língua um sistema objetivo.
Que permite construir o pensamento e exprimir quaisquer.
lieacões e relações as mais complexas, nas quais os objetosI
estão em correlação. J
A existência dos recursos sintáticos externos recém-refe-
ridos não esgota, entretanto, o sistema de procedimentos que

55
faz da língua uma matriz altamente complexa para a forma-
ção do pensamento.
Em concomitância com os recursos morfológicos e lexi-
cais da língua estão os recursos da en to n a çã o , usados pela
tala humana para exprimir urna nova riqueza de relações, des-
ta feita relações do próprio falante que emite um pensamen-
to com o objeto do seu enunciado. Essas relações de entona-
ção se expressam no discurso falado através das mudanças
da entonação da voz, manifestando-se na forma escrita atra-
vés dos recursos de pon tu ação. As orações “A casa está ar-
dendo?*, “A casa está ardendo!”, “A casa está ardendo...”
ou “O menino espancou o cão?”, “O menino espancou o
cão!”, “O menino espancou... o cão” apresentam o mesmo
significado externo, mas traduzem relações inteiramente dis-
tintas do falante com o mesmo acontecimento, em outros ter-
mos, con servan do o m esm o sign ificado, a d q u irem se n tid o
¿ ¡verso .
Vê-se facilmente como é rico o sistema de recursos sin-
táticos objetivos, que o homem recebe em forma pronta na
língua e que lhe permitem refletir independentemente, sem
apelar para recursos estranhos, extralingüísticos, acontecimen-
tos altamente complexos e formular a própria atitude do fa-
lante em relação ao fato.

P rin cipais tipo s d e enu n ciados

O psicólogo, que estuda a língua como um sistema de


códigos que permitem refletir a realidade exterior e formular
pensamentos, deve estudar atentamente não só os meios atra-
vés dos quais se formula um enunciado, mas também os tipos
de comunicações básicas que podem ser transmitidas pelos
recursos da língua.
Em lingüística costumam-se distinguir d o is tip o s húsic o s
d e com u n icação, que costumam ser expressos nos termos co -
m u n icação d o e v e nto e co m u nicação d a relo£Õo. Esses dois
tipos de comunicacão usam os mesmos recursos gramaticais
externos, mas se distinguem profundamente entre si.
Entende-se por co m u n icação d o e v en to a comunicacão
acerca de algum fato externo, expresso na oração. A simples

56
combinação do sujeito com o predicado (“a casa arde”, “о
menino come”), assim como as combinações complexas em
que se manifesta a relação evidente do sujeito com o objeto
(“o garoto espancou o cão”, “o homem racha lenha”) são
um exemplo típico de “comunicação do evento”. Um traço\
característico desse tipo de comunicação é o fato de que
aquilo que c representado por um sistema de palavras pode V
ser muito bem expresso num quadro direto, por outras pala-
vras, o conteúdo figurado-direto predomina nitidamente nesse
tipo de comunicação sobre o conteúdo lógico-verbal. Nes-<
te tipo de comunicações desempenham importantíssimo papel
os meios extralingüísticos diretos em forma de conhecimento
da situação, os gestos indicadores ou descritivos, as entona-
ções complementares, etc.
É totalmente distinto o caráter da “comunicacão da re-
lação”. Existem enunciados que não significam qualquer
evento, mas formulam certas relações. Situam-se entre estes as
construções do tipo “Sócrates é um homem”, “o cão é um
animal” ou construções gramaticais como “o irmão do cole-
ga”, "o cão do patrão”, etc.
Q significado dessas construções não pode ser transmiti-
do em quadros diretos. Estes não expressam os eventos reais
.que os objetos integram, mas a relação lógica entre as coisas
e são empregados como meios de formalização de um pen-
samento não tão figurado-direto quanto lógico verbal mais
complexo. É natural que uma situação direta, um gesto indi-
cador ou descritivo, a mímica ou a entonação não possam
ajudar a revelar o significado dessas construções'. Ioda a ple-
nitude das relações por elas expressas deve ser traduzida so-
mente pela estrutura gramatical das palavras que as compõem.
Em alguns casos, que constituem interesse especial, o']
verdadeiro significado da “comunicação da relação” pode cn- j
trar em conflito com a sua percepçâo imediata direta. Servem J
de exemplo as construções com uma das variantes do geniti-
vo (“atributo paterno”): a expressão “irmão do pai”, que
externamente cria a impressão de tratar-se de duas pessoas,
não significa, em hipótese alguma, “irmão” ou “pai”, mas
uma terceira pessoa — “tio”: a referencia “pai” não tem
aqui significado de substantivo, mas de atributo, adjetivo, ra-
zão por que a expressão pode ser facilmente substituída por
“irmão paterno”, sendo que, em algumas línguas como a rus-
sa, a primeira palavra é expressa por um adjetivo e se coloca

57
no primeiro lugar como todos os outros adjetivos da língua
russa (“paterno irmão”, “bom tio”, “alta árvore”, etc.).
Peculiaridades análogas distinguem também as complexas
construções gramaticais, onde a ordem das palavras não coin-
cide com a ordem dos fatos significados na frase como, por
exemplo, “eu desjejuei depois de ter lido o jornal”, onde
uma “subversão” mental da ordem das palavras se faz neces-
sária para compreender o significado dessa oração.
O verdadeiro significado da construção gramatical, ex-
presso pelos recursos especiais da subordinação gramatical
de uma palavra a outra, entra aqui em conflito com a referên-
cia material direta de cada palavra e requer operações men-
tais especialmente complexas, que dificultam as impressões
imediatas e transferem totalmente o processo do plano dire-
to para o plano das operações lógico-verbais abstratas.
Semelhantes construções gramaticais complexas, nas quais
a representação de uma determinada relação lógica transfere-
se inteiramente para os recursos da língua, constituem parte
considerável daquelas matrizes lógico-verbais que servem de
base às formas complexas de pensamento, revestindo-se
de grande interesse, por isto, a análise psicológica dos pro-
cessos intelectuais indispensáveis às operações bem-sucedidas.

Evolução das estruturas lógico-gramaticais do enunciado

A descrição dos métodos básicos e dos tipos de estrutu-


ras lógico-gramaticais do enunciado verbal permite ver o
quanto é complexo o caráter das matrizes da linguagem que
formam o pensamento, o quanto o processo de reflexão dos
acontecimentos e de reflexos na fala pode separar-se das leis
da percepção direto-figurada imediata.
Impõe-se uma pergunta natural: como surgiram os mo-
dos lógico-gramaticais de formação do pensamento e que
mudanças eles sofreram no processo de desenvolvimento
histórico?
Seria incorreto pensar que semelhantes formas lógico-
gramaticais da língua surgiram de imediato e que esta, desde
as primeiras etapas de sua formação, tornou-se o mesmo meio
de formação do pensamento abstrato que hoje conhecemos.

58
A lingua nem sempre possuiu recursos complexos de'
expressão das relações, razão por que a formação da língua,
corno sistema de códigos que se bastam por si mesmos para
formular qualquer vínculo ou relação, é produto de dezenas!
de milhares de anos de desenvolvimento histórico. '
Já dissemos que a protolíngua, cuja existência os estu-
diosos situam entre os primórdios da história da humanida-
de, não se baseia no sistema de palavras de significado sóli-
do permanente; dissemos que as “palavras” da protolíngua
eram antes exclamações entrelaçadas na ação prática ime-
diata e seu sentido tornou-se inteligível somente a partir da
situação prática em que elas surgiram e dos gestos e entona-
ções que as acompanharam.
Nos primórdios da paleontologia da fala, a língua ainda\
não era um sistema de códigos permanentes, capazes de /
transmitir informação, e o papel decisivo na trammissão desta (
era desempenhado por fatores extralingüísticos como o conhe- (
cimento da situação, os gestos indicadores, a mímica e a en- ¡
tonação. Esta fase do desenvolvimento da língua pode s e r1
denominada, por isto, de fase não dilerenciada da fala intei-
ramente simprática.
A continua evolução da língua é um processo de eman-
cipação gradual em relação aos meios cxtraUnsüísíicos (sim-
práticos) e ao desenvolvimento dos códieos complexos atra-
vés dos quais a língua se гота gradualmente um sistema ca-
paz de ioimular por si mesmo quaisquer conexões e relações.
Um exemplo disto podemos encontrar nas línguas mais
antigas, que ató recentemente não tinham escrita própria e
cuja estrutura ainda apresenta traços de um relativo primi-
tivismo. Entre estas situam-se muitas línguas paleoasiáticas
(do norte), nas línguas polinésias e as línguas dos índios
americanos.
Estas línguas apresentam como traço característico o')
fato de que, possuindo um conjunto bastante rico de signifi-/
cados verbais, elas não possuem um sistema de códigos gra-y
maticais que se bastem por si mesmos para expressar quais-
ímer_çQtu>xões e relações.
Assim sendo, na língua dos aleútes existem dois casos:
um caso direto, que representa o sujeito-agente (sujeito), e um
caso indireto, que representa qualquer objeto ao qual se destina
a ação; isto não significa, porém (como costuma ocorrer nas
línguas flexionadas complexas), que o objeto deva manter-

59
se numa ordem em relação ao sujeito (na língua russa essa
ordem é expressa através do sistema de flexões do nome,
isto é, das desinencias dos casos; em outras línguas, através
do sistema de preposições). Por si só, o caso direto ainda
não é suficiente para transmitir uma informação precisa a
respeito das relações entre objetos isolados, e o aluno conti-
nua necessitando de apoiar-se em recursos suplementares ex-
tralingiiísticos (conhecimento da situação, gesto, mímica, en-
tonação), para que o sentido concreto da informação seja
suficientemente compreensível.
Segundo informam os etnólogos, só poderemos entender
0 sentido da informação nas línguas mais primitivas da Po-
linesia se soubermos precisamente de que se trata e observar-
mos os gestos usados na conversação; mas no escuro (que
exclui a observação dos gestos e da mímica), o sentido da
fala pode ser incompreensível.
A evolução posterior da língua reduz-se à aquisição per-
manente de códigos gramaticais complexos, que se tornam
cada vez mais suficientes para formular por si mesmos co-
nexões e relações complexas. O processo de emancipação da
necessária participação de fatores “simpráticos” extralingüís-
ticos de transmissão da informação é muito lento e na his-
tória das línguas bem-desenvolvidas podemos observar está-
gios nos quais o sistema de recursos lógico-gramaticais ainda
não é suficientemente diferenciado e a transmissão da infor-
mação deve basear-se em elementos de conhecimento da si-
tuação e das conjeturas sobre o significado do enunciado se-
gundo o contexto geral.
Apresentamos apenas alguns exemplos desses estágios
transitórios que se podem observar na história inicial da evo-
lução contemporânea das línguas.
Nos textos bíblicos, em vez de “docilidade do rei David",
diz-se “o rei David e toda a sua docilidade”; nos textos gre-
gos, em vez de “a força da hoste dos aqueus”, diz-se "a for-
ça e a hoste dos aqueus”.
Em lingüística costuma-se designar com o termo hen-
díadis (multiplicação de “dois por um”) essas peculiaridades
das formas antigas da língua, que ainda não dispõe de meios
gramaticais de expressão das relações complexas e substitui
as formas complexas de subordinação gramatical (hipotaxe)
por formas mais simples de com-posição (parataxe). É ca-
racterísticos que essas formas sejam encontradas até hoje na

60
língua falada das pessoas que não dominam suficientemente
as formas desenvolvidas da língua moderna.
É característico, ainda, que as deformações relacionadas
com o emprego insuficiente dos códigos gramaticais da
língua desenvolvida possam ser verificadas até nos exem-
plos da substituição das expressões complexas de textos
bem conhecidos.
Os exemplos citados mostram que a evolução da língua é
um processo psicológico de elaboração paulatina dos com-
plexos meios lógico-gramaticais; a língua se torna cada vez
mais um sistema que absorve todos os meios de expressão de
quaisquer ligações e relações, necessitando cada vez menos de
meios suplementares extralingüísticos (simpráticos) que par-
ticipam da transmissão da informação.
É esse processo que reflete a linha básica da evolução da
língua, evolução essa que tem importância decisiva para a
análise psicológica das formas complexas de pensamento
verbal.

Processo de codificação do enunciado verbal.


Do pensamento à linguagem ampla

Até agora abordamos a estrutura da língua, veículo fun-


damental de que se serve o homem para transmitir informa-
ção, o sistema básico de códigos que se formaram no processo
da história social e permitem refletir as complexas ligações
e relações da realidade e formular o pensamento.
Agora devemos passar à análise da linguagem que trans-
mite a informação na qual o homem se baseia no processo
de pensamento.
Entendemos por linguagem o processo de transmissão de
informação, que emprega recursos da língua.
Se a língua é um sistema objetivo de códigos, surgido
ao longo da história social, e objeto de uma ciência especial
— a lingüística —, então a linguagem é um processo psicológi-
co de formulação e transmissão do pensamento através dos
recursos da língua; enquanto processo psicológico, ela é objeto
da Psicologia, recebendo a denominação de Psicolingiiistica.
Em termos reais, a linguagem se apresenta em duas for-

61
mas de atividade. Uma delas — transmissão de informação ou
comunicação — requer a participação de duas pessoas: um
falante e um ouvinte. A segunda forma de linguagem une fa-
lante e ouvinte em um sujeito e, neste caso, a linguagem não
é um meio de comunicação, mas um veículo de pensamento.
O homem pode falar para si, produzindo a linguagem externa-
mente ou limitando-se à linguagem interna; neste segundo ca-
so, ele usa a linguagem para precisar o seu pensamento.
Enquanto veiculo de comunicação, a linguagem atua em
dois processos reais.
Por um lado, ela pode concretizar uma idéia, formulan-
do-a cm termos de enunciado que transmite a informação ao
interlocutor. Neste caso trata-se da codificação do enunciado,
que se reduz à materialização do pensamento no sistema de
códigos da língua. A análise dessa trajetória entre o pensa-
mento e a linguagem recebe em ciência a denominação de
psicologia do enunciado ou linguagem expressiva.
Por outro lado, não é menos importante um processo
idêntico, só que desta feita visto não da ótica do falan-
te, mas do ouvinte. Aqui ocorre um processo inverso — a
decodificação do enunciado, em outras palavras, a análise do
enunciado inteligível, a transformação de um enunciado am-
plo numa idéia sucinta. Essa trajetória entre a linguagem e
o pensamento recebe freqüen temen te em Psicologia a deno-
minação de processo de interpretação, chamando-se à parte
correspondente da ciência psicológica de psicologia da lingua-
gem impressiva.
É natural que o processo de enunciado possa ter cará-
ter de linguagem falada ou linguagem escrita. Como veremos
adiante, essas duas formas de linguagem têm suas peculiari-
dades psicológicas e se distinguem tanto pelo processo de
formação quanto pela estrutura.
Abordemos inicialmente os processos psicológicos que
servem de base à formulação do enunciado verbal ou a aná-
lise do caminho que o processo psicológico percorre entre a
idéia e a linguagem ampla, e examinemos as etapas percorri-
das pelo processo psíquico do homem, processo esse que for-
mula o pensamento num enunciado amplo.
Uma pessoa quer dirigir-se a outra ou expor seus pensa-
mentos em forma verbal ampla. Ela deve ter antes de tudo
o motivo correspondente do enunciado. Pode servir de mo-
tivo o desejo de formular uma necessidade, externar um pe-

62
■dk b , uma exigência a serem atendidos pelo interlocutor; ncs-
te caso o enunciado terá caráter eficaz, pragmático. Pode ser
motivo do enunciado a transmissão de informação£ o estabe-
lecimento de contato córn outra pessoa "epasvezes, até mes-
mo a elucidação de algum ponto de vista para si mesma.
Neste caso o enunciado terá caráter cognitivo, informativo.
Por último, em alguns casos mais elementares, pode servir
de motivo do enunciado a expressão de um estado emocional,
o alívio da tensão interna, etc. Neste caso terá caráter de
exclamações, interjeições e todo o “enunciado” (que só em
termos condicionais pode receber tal denominação) apresen-
tará um caráter pouco diferente de outras formas (mímicas)
de descargas emocionais.
O motivo do enunciado é apenas o ponto de partida, a
força motriz de todo o processo. O momento seguinte é o
surgimento do pensar ou do esquema geral do conteúdo que
deve materializar-se sucessivamente no enunciado.
A análise psicológica do pensamento sempre apresentou
grandes dificuldades para a Psicologia. Uns autores (psicó-
logos, pertencentes à chamada Escola de Würzburg, extre-
mamente idealista, entre eles Kiilpe, Messer, Biihler, Ach)
achavam que o “pensamento puro” nada tem em comum com
as imagens nem com as palavras. Ele se reduz aos esquemas
espirituais internos ou “estados emocionais lógicos” que só
posteriormente se revestem de palavras como o homem ves-
te sua roupa. Outros psicólogos, adeptos do campo materia-
lista, tiveram todo fundamento para duvidar de que o pen-
samento seja uma formação psíquica acabada, que precisa
apenas “materializar-se” nas palavras. Estes psicólogos exter-
naram a hipótese de que o “pensamento” é apenas uma eta-
pa situada entre o motivo básico e a linguagem externa de-
finitiva e ampla, permanecendo impreciso e difuso enquanto
não adquire seus contornos nítidos na linguagem. Seguindo
Vigotsky, esses pesquisadores afirmavam que o pensamento
não se materializa mas se realiza, se forma na palavra. Enten-
deremos por pensamento ou idéia o esquema geral do con-
teúdo que deve materializar-se no enunciado, considerando
que antes dessa materialização o pensamento tem o caráter
mais genérico, vago e difuso e amiúde dificilmente se presta
à formulação e à consciência.
A etapa seguinte no caminho da preparação do enuncia-
do tem importância especial. Durante muito tempo ela perma-

63
neceu inteiramente desconhecida e só depois das pesquisas de
Vigotsky foi demonstrada a importância decisiva dela para a
recodilicação da idéia numa linguagem ampla e para a cria-
ção do esquema geraíivo do enunciado verbal amplo. Te-
mos em vista o mecanismo que em Psicologia é denominado
linguagem interna.
A Psicologia moderna é a que menos entende por lin-
guagem interna a simples pronúncia das palavras e frases do
falante para si e não acha que a linguagem interna tenha a
mesma estrutura e as mesmas funções que apresenta a lin-
guagem externa ampla.
A Psicologia subentende por linguagem interna uma
etapa transitória essencial entre a idéia (“pensamento”) e a
linguagem externa desenvolvida. O mecanismo que permite
recodificar o sentido geral em enunciado verbal dá a essa
idéia uma forma verbal. Neste sentido a linguagem interna
é um processo que gera o enunciado verbal desenvolvido, que
insere a idéia inicial no sistema de códigos gramaticais da
língua.
A posição transitória que a linguagem interna ocupa na
trajetória entre o pensamento e o enunciado amplo determi-
na os traços fundamentais tanto da função quanto de sua
estrutura psicológica.
A linguagem interna é, acima de tudo, não um enun-
ciado verbal desenvolvido, mas tão-somente um estágio pre-
paratório anterior a esse enunciado; ela não se destina ao
ouvinte mas a si mesma, à passagem, para o plano da lin-
guagem, do esquema que antes era apenas o conteúdo geral
da idéia. Esse conteúdo o falante já conhece em linhas ge-
rais, pois já sabe justamente o que quer dizer embora ainda
não saiba em que forma e em que estruturas de linguagem
pode formular o seu enunciado. Ocupando posição interme-
diária entre a idéia e a linguagem desenvolvida (ampla), a
linguagem interna tem caráter sucinto, reduzido, que derivou
geneticamente da redução paulatina, da redução da lingua-
gem sucinta da criança, passando pela fala murmurada que
se transforma em linguagem interna, sendo esta antes a indi-
cacao do tema geral ou do esquema geral do sucessivo enun-
ciado desenvolvido, mas nunca a sua completa reprodução.
A linguagem interna, que formula o conteúdo do pen-
samento, é conhecida pelo homem e tem caráter não apenas
conciso mas também predicativo. Ela realiza o esquema ver-

64
bal do enunciado posterior e gera as formas desenvolvidas
deste; por isto encontramos na linguagem interna as indica-
ções gerais do tema do enunciado posterior, expressas às ve-
zes por apenas uma palavra inteligível somente ao próprio
sujeito e que apresenta, às vezes, a forma de fragmento de
linguagem que indica os elementos mais importantes do enun-
ciado posterior; este formula, em termos concisos, embrioná-
rios, justamente aquilo que deve constituir o conteúdo da lin-
guagem desenvolvida posterior.
A Psicologia ainda não estudou adequadamente a estru-
tura e os mecanismos funcionais da linguagem interna. Ela
ainda sabe muito pouco a respeito de como esses esquemas
predicativos concisos, situados entre o pensamento e o enun-
ciado verbal, efetuam a transformação do pensamento num
sistema de códigos desenvolvidos da língua. É sabido que os
processos da linguagem interna se formam na infância a par-
tir da fala “egocêntrica” desenvolvida, reduzindo-se gradual-
mente e transformando-se em linguagem interna através da
fala sussurrada. Ao que parece, é justamente a origem da
linguagem interna derivada da externa que lhe permite reali-
zar um processo inverso, gerar o esquema gramatical do enun-
ciado desenvolvido, levando ao surgimento das matrizes ló-
gico-gramaticais que permitem realizar posteriormente a lin-
guagem desenvolvida externa. Os fragmentos ativos da lin-
guagem interna surgem a cada dificuldade e desaparecem
quando o processo de pensamento se automatiza e perde o
ativo caráter criativo; é justamente isto que sugere a grande
importância da linguagem interna para os processos de pen-
samento discursivo.
Este último fato é mostrado com êxito por testes espe-
ciais de registro eletromiográfico de movimentos agudos do
aparelho fonador (língua, lábios, laringe) que surgem sempre
que há preparação para o enunciado desenvolvido ou em
cada ato de pensar.
Como mostraram as pesquisas de alguns autores (parti-
cularmente as de A. N. Sokolov), cada proposta de resolver
uma tarefa complexa provoca no sujeito um gruño de nítidas
descargas elétricas nos músculos do aparelho fonador e elas
não se manifestam em forma de linguagem externa, mas sem-
pre antecedem à solução da tarefa.
É característico que os componentes da linguagem inter-
na, descritos por esse autor, surgem em qualquer atividade

65
intelectual (até mesmo naquela que antes não se considerava
verbal) e essas descargas eletromiográficas, que são sintomas
da linguagem interna, só desaparecem nos casos em que a
atividade intelectual assume caráter habitual, bem automa-
tizado. O papel gerador da linguagem interna, que leva à
reanimação das estruturas gramaticais da linguagem desenvol-
vida anteriormente assimiladas, leva à última etapa do pro-
cesso que nos interessa — ao surgimento de um enunciado
verbal desenvolvido, no qual a linguagem começa a basear-se
em todos os esquemas lógico-gramaticais e sintáticos da lín-
gua. A estrutura do enunciado desenvolvido pode, em di-
versos casos, apresentar caráter diferente e variar dependendo
do caráter do enunciado verbal. x
Cabe um exame especial dos tipos básicos de enunciado
verbal, altamente importantes para a Psicologia.

Tipos de enunciado verbal e sua estrutura

Abordamos a estrutura do enunciado verbal e seus com-


ponentes isolados. Cabe agora examinar os diversos tipos de
enunciado verbal que apresentam estrutura internamente di-
versa e nos quais a correlação dos elementos que acabamos
de descrever pode ser totalmente distinta.
O enunciado verbal pode apresentar duas modalidades
básicas: uma de linguagem falada e outra de linguagem es-
crita. A diferença entre elas consiste em que cada uma usa
diferentes meios de expressão da linguagem bem como na
estrutura psicológica; simultaneamente, cada uma apresenta
as suas variedades.
Uma estrutura mais simples distingue a linguagem emo-
tiva verbal, que só pode ser denominada linguagem em ter-
mos condicionais. A ela pertencem exclamações como oh!, fu!,
mas também chavões de linguagem como vá para o infer-
no!, etc.
Nessa forma a linguagem não tem nem um motivo pre-
ciso (pedido, ordem, informação); seu lugar é ocupado pela
tensão emocional que tem a sua descarga na exclamação.
Nela não há etapa da ideia ou pensamento, que inclui o es-
quema geral do enunciado posterior; naturalmente ela dis-
pensa preparação prévia ou recodificação inserida na lingua-

66
gem interna. O aspecto externo é muito simples e limitado
por interjeições ou pelos habituais chavões da linguagem.
É característico que as formas mais elementares de lingua-
gem expressiva se mantêm nos casos em que a patologia ce-
rebral resulta na perturbação das formas complexas de codi-
ficação verbal.
A segunda variedade da linguagem falada é a lingua-
gem dialógica falada.
Essa linguagem tem uma estrutura psicológica sui generis
sem cuja análise atenta ela fica ininteligível. A linguagem
dialógica falada tem sempre o seu motivo; contém um pedido
ou uma ordem ou a transmissão de uma informação qual-
quer. No entanto esse motivo está às vezes incluído no com-
portamento de um dado sujeito (por exemplo, do que faz a
pergunta) e às vezes no comportamento de outro sujeito (da-
quele a cuja pergunta a pessoa responde). O mesmo pode-se
dizer da idéia ou pensamento. No início da conversação essa
linguagem surge numa pessoa que pede alguma coisa ao inter-
locutor ou lhe transmite algo. Muito brevemente ela deixa de
ser uma formação que surge na cabeça do homem. Nos casos
em que o homem responde a uma pergunta (se a resposta
consiste em concordar ou discordar, a ideia da palestra surge
no processo de conversação), a conversa seguinte se toma um
esquema que surge no contexto de toda a conversação, sendo
difícil dizer a quem pertence a idéia geral, que é o teor da
conversa. O importante consiste em que em cada etapa da
conversa a idéia é dada em forma acabada, não precisando o
sujeito procurá-la ou formulá-la; logo, uma das peculia-
ridades do diálogo consiste em que os interlocutores sempre
sabem de que trata a conversa e não precisam desenvolver
sempre a idéia, levando o enunciado verbal à sua forma mais
acabada. A essa peculiaridade da linguagem dialógica falada
incorpora-sc uma segunda peculiaridade — a linguagem dia-
lógica falada, que se processa freqiientemente nas condições
de conhecimento da situação concreta, é acompanhada de
ricos fatores extralingüísticos da comunicação: os gestos, a
mímica, a entonação.
Tudo isto determina também as peculiaridades estrutu-
rais da linguagem dialógica falada. Esta pode ser incompleta,
reduzida, às vezes fragmentária, permite elipses (omissão
de componentes da oração), mas nem assim deixa de ser
inteligível.

67
Se um passageiro da fila do ônibus diz a outro: “o cin-
co!” todos entenderão, pois se a palavra for pronunciada
com matiz de satisfação, significará: “aí vem o nosso 5”; se а
mesma palavra for pronunciada com matiz de frustração, sig-
nificará: “o que vem aí não é o nosso, é o 6”.
A forma fragmentária concisa ocorre também em formas
mais complexas de linguagem dialógica falada, para a qual
a pienitude gramatical desenvolvida não é obrigatória e sem-
pre permanece linguagem nas condições do conhecimento da
situação e existência de um grande componente shnprático
(extralingüístico). Pode-se dizer que, na linguagem dialógica
falada, parte considerável da informação transmissível não
se manifesta na estrutura gramatical desenvolvida do enun- i
ciado, mas “subentende-se", está presente no contexto extra-
lingüístico simprático; a linguagem dialógica falada transmi-
te principalmente o sentido (ou seja, o significado individual
correspondente à situação) que é freqüentemente incom-
preensível sem contexto.
Vê-se facilmente que a etapa de preparação prévia do
enunciado desenvolvido na linguagem interna é muito res-
trita em diversos casos, mas nos casos em que o conteúdo
do enunciado é formulado com a suficiente plenitude por
quem pergunta, a resposta se resume simplesmente a afirmar
ou negar a pergunta (“Você já almoçou?” “Já!”), reduzindo-
se praticamente a nada o papel da linguagem interna que
prepara uma resposta ampla. Compreende-se, por isto, que
algumas formas mais simples de linguagem dialógica falada,
que não usam os amplos recursos gramaticais da língua e dis-
pensam a codificação prévia do enunciado, podem conservar-
se em todos os casos de afecção cerebral nos quais se toma
inacessível o complexo processo de codificação do enunciado.
A terceira e mais complexa modalidade de enunciado verbal
é a linguagem monológica falada, que pode manifestar-se na
forma de narração, relatório ou conferência.
Essa modalidade de linguagem falada apresenta uma es-
trutura muito mais complexa.
A linguagem monológica falada sempre tem motivo bási-
co e idéia precisa. Via de regra, formula um pedido, uma so- 1
licitação ou transmite certa informação. A linguagem mono-
lógica deve ter uma idéia, partir de um pensamento básico
que deve ser desenvolvido no enunciado posterior. À dife-
rença da linguagem dialógica, esse pensamento (ou conteúdo

68
suscetível de formulação) não é dado aqui em forma acabada
mas surge no próprio falante.
A linguagem monológica falada apresenta como traço
peculiar o fato de não costumar subentender forçosamente
conhecimento da situação no interlocutor, a quem ela se des-
tina, devendo, por isto, conter unia formulação verbal bas-
tante completa da informação que transmite.
Por isto é necessário preparar uma linguagem ampla, um
processo prévio de recodificação da idéia básica no esquema
verbal do enunciado futuro, por outras palavras, do processo
de linguagem interna que antes descrevemos e que é o único
que pode assegurar a transformação da idéia básica em enun-
ciado verbal amplo. Quem já se preparou para intervir em
público sabe perfeitamente que é necessário realizar um
grande trabalho prévio para iniciar uma narrativa ampla, um
relatório ou conferência; no conferencista inexperiente, esse
trabalho tem caráter amplo e complexo, assumindo no confe-
rencista experiente forma concisa de apresentação de etapas
isoladas da exposição em observações fragmentárias ou em
suportes internos de linguagem.
No entanto cabe observar que a linguagem monológica
verbal dispõe de alguns meios extralingüísticos que aqui se
apresentam em forma de componentes subordinados suplemen-
tares mas que assim mesmo continuam ocupando posição con-
siderável. Em sua linguagem monológica verbal, o homem
continua usando gestos e mímica; através da entonação ele
discrimina aquelas partes de sua comunicação que têm sig-
nificado especial; mediante os recursos suplementares ele ex-
pressa sua relação com o que comunica, discrimina o sentido
do comunicado. Isto permite conservar até na linguagem mo-
nológica verbal certa insuficiência gramatical, torna aceitáveis
algumas elipses (omissão de alguns componentes gramaticais
redundantes), possibilita o emprego de construções gramati-
cais desenvolvidas de modo incompleto cuja redução é com-
pensada pela entonação e pelos gestos que as acompanham.
É absolutamente natural que a estrutura do enunciado
monológico verbal dependa altamente do caráter das infor-
mações que ele transmite; se o sujeito transmite a “comuni-
cação de um acontecimento”, a participação dos componen-
tes extralingüísticos (simpráticos: gestos, mímica, entonação)
pode ser bem maior; se ele transmite uma “comunica-
ção de relações”, a participação delas será naturalmente

69
menor e o centro básico de gravidade se transferirá para c
sistema de códigos lógico-gramaticais da língua.
Costumam-se distinguir duas formas de linguagem mo-
nológica verbal que, em graus variados, se baseiam nos meios
simpráiicos extralingüísticos.
Uma delas costuma ser apresentada como linguagem
dramatizadora: ela usa amplamente a reprodução do discurso
direto, é acompanhada de gestos e mímica, emprega os ricos
meios da entonação, podendo por isto ter um caráter desen-
volvido insuficiente cm termos gramaticais. Basta lembrar
uma mulher que acaba de chegar da rua contando uma dis-
cussão de vendedoras no mercado e reproduz as suas répli-
cas, gestos e entonações para obter um exemplo de lingua-
gem monológica “dramatizante”.
A segunda forma de linguagem monológica verbal é fre-
quentemente apresentada como linguagem épica. Esta não é
acompanhada de gestos e entonações, não usa formas do
discurso direto nem recorre a meios extralingüísticos de ex-
pressão tão ricamente empregados pela linguagem “dramati-
zadora”. A linguagem “épica”, sem se basear em meios ex-
tralingüísticos, pode expressar os mais complexos conteúdos,
no entanto deve usar inteiramente os códigos lógico-gramati-
cais da língua que nela contenham os meios fundamentais se-
não os únicos de transmissão de informação. Pode servir de
protótipo à forma de linguagem monológica verbal a epopéia
dos narradores, que, a acreditar-se na lenda, pôde ser trans-
mitida pelo cego Homero sem o uso de quaisquer meios su-
plementares externos de expressão.
É natural que a forma “épica” de monólogo deva basear-
se numa forma gramatical máxima e todos os códigos lingüís-
ticos (lexicais e sintáticos) devam ser nela usados com a má-
xima plenitude.
A última e mais complexa modalidade de enunciado é a
linguagem monológica escrita.
À diferença da linguagem falada, a linguagem monoló-
gica escrita é uma linguagem sem interlocutor ou com ausên-
cia deste, às vezes com interlocutor imaginário. Este fato
lhe determina a estrutura psicológica.
A linguagem monológica escrita deve parte de determi-
nado motivo e tem uma idéia bastante precisa. O pensamen-
to, suscetível de codificação no enunciado amplo da lingua-
gem, nunca se dá aqui em forma acabada em que a formula

70
o interlocutor, participante do diálogo. Nos casos era que
aquele que recorre à narrativa monológica escrita transmite
um conteúdo já acabado, o esquema geral de pensamento deve
ser extraído de sua experiencia anterior, conservada em sue
memória. Neste caso esse esquema é decodificado segundo as
leis de memorização lógica que acima abordamos. Nos casos
em que a linguagem monológica escrita formula urna idéia
nova, elaborada de modo ainda insuficiente e cujos detalhes
ainda não estão bastante claros para o próprio sujeito, a pre-
paração do enunciado pode assumir formas complexas. Por
isto a idéia geral deve ser recodificada num complexo pro-
grama semântico de enunciado amplo, devendo elos isolados
desse programa ser precisados e sua ordem estabelecida. A
atividade preparatória, que parcialmente pode ter caráter ex-
terno. emprega vários suportes, registros ou notações frag-
mentárias, mas sempre se apóia amplamente nos mecanismos
da linguagem interna, assume caráter especialmente complexo.
Basta examinarmos atentamente protótipos de preparação da
exposição escrita ampla como aqueles empregados por Tols-
toi, Flaubert, para vermos toda a complexidade da codifica-
ção previa do pensamento; uma parte considerável deste
recai sobre trechos da linguagem interna e constitui a essên-
cia daquelas tentativas angustiantes de “concretização da
idéia na palavra” que caracterizara toda criação.
A linguagem monológica escrita apresenta como peculia-
ridade essencial o fato de não ter possibilidade de apoiar-se
em quaisquer meios extralingüísticos — conhecimento da si-
tuação, gestos, mímica e entonação (esta última é substituída
apenas parcialmente pelos recursos da pontuação e discrimi-
nação de palavras e frases isoladas de que dispõe a linguagem
escrita).
A linguagem monológica escrita é forçada a apoiar-se
num amplo sistema de códigos lógico-gramaticais da língua,
que se tornam o único meio de transmissão da informação
complexa, tornando-se, assim, inadmissíveis quaisquer abre-
viaturas ou elipses. Basta comparar a estrutura gramatical do
enunciado verbal (com sua imperfeição e suas elipses, que são
compensadas por gestos e entonação) com a estrutura ampla
e gramaticalmente plena da linguagem escrita, para ver isto
com bastante clareza; se nas primeiras etapas de assimilação
da linguagem escrita a pessoa continua a inserir nela locuções

71
da linguagem falada (basta lembrar o estilo de escrita da
pessoa que não está habituada à exposição escrita), suces-
sivamcnte a influencia da estrutura da linguagem falada na
formação da exposição monológica escrita desaparece e a lin-
guagem escrita se forma como forma autónoma especial dc
linguagem, que requer a máxima preparação e o mais com-
pleto emprego dos códigos lógico-gramaticais da língua.
Até agora falamos dc enunciado verbal como forma de
comunicação entre as pessoas, ou seja, como meio dc trans-
missão de informação.
No entanto as linguagens falada e escrita têm outra im-
portante função: são um melo de retoque do pensamento c
desempenham importante papel no aprimoramento da ativi-
dade propriamente intelectual do sujeito.
O fato de o pensamento codificar-se na linguagem рак.
adquirir clareza autêntica foi expresso por Vigotsky na fór-
mula “o pensamento se realiza na palavra”. Isto indica o sig-
nificado que a formulação da ideia na linguagem tem para
precisar o pensamento, para que o seu esquema geral se tor-
ne um programa amplo, se inclua num sistema de ligações e
relações que se manifestam nos amplos códigos lógico-grama-
ticais da língua.
Por isto a codificação do pensamento no enunciado ver-
bal tem importância decisiva tanto para a transmissão da in-
formação a outra pessoa, quanto para precisar a idéia para o
próprio falante. Eis por que a linguagem ampla não é
apenas um meio de comunicação, mas também um veículo
do pensamento.
Esse fato sugere nitidamente a segunda função da lin-
guagem: seu papel na elaboração da idéia, na sua preparação
para a atividade intelectual. Ao mesmo tempo, tal função
indica ainda a natureza social da atividade intelectual do ho-
mem, que o distingue radicalmente do animal.

Patologia do enunciado verbal

A estrutura psicológica do enunciado verbal se tornará


nítida se observarmos as formas das perturbações que se ma-
nifestam em estados patológicos particulares do cérebro, espe-
cialmente nas afecções locais.

72
Abordaremos apenas os aspectos da patologia do cnim-
.i.ido verbal, que mostram a natureza psicológica normal, omi-
tir. Jo o problema dos mecanismos fisiopatológicos dessc
enunciado.
As formas mais maciças de perturbação do enunciado
verbal surgem com a perturbação dos motivos que lhe servem
dc base. Isto surge com a afecção das áreas cerebrais profun-
damente localizadas, que levam à redução geral do tônus do
córtex e suscitam ocorrência de acinesia e bloqueio dos pro-
cessos psíquicos. Semelhantes perturbações se verificam no
período inicial de saída dos estados de inibição patológica,
cm conseqiicncia de traumas latentes do crânio e inchações
do cérebro situadas em profundidade e que influem no he-
misfério esquerdo. Esses estados apresentam como peculiari-
dades características o fato de que o doente não faz quais-
quer tentativas para produzir enunciados verbais ativos e
depois do desaparecimento do fator patológico primário os
enunciados verbais podem tornar a manifestar-se na forma
anterior.
Semelhantes fatos são observados também nos casos de
afecção grave dos lobos frontais do cérebro (especialmente
nos casos de ocorrência de tumores localizados em profundi-
dade no lobo frontal, que exercem influência sobre as fun-
ções normais do hemisfério esquerdo). Nestes casos a espon-
tar.c'dade geral do doente provoca tanto perturbação profun-
da dos motivos, quanto destruição profunda da idéia do enun-
ciado. Os doentes manifestam “acinesia verbal” típica, com a
única diferença de que tanto a fala ecolálica (imitação da fala
do pesquisador), quanto as respostas monossílabas simples ou
estereótipos podem permanecer intactas, ao passo que o dis-
curso ativo, que é exprimido por desejos e exigências ou tem
caráter narrativo, aqui desaparece. Cabe observar que a estru-
tura gramatical do discurso permanece intacta, não importa
quç buscas ativas de palavras ou perturbações da estrutura
sintática do enunciado aqui se observem.
Inteiramente distinto é o caráter das perturbações do
enunciado verbal, que surgem com a afecção das áreas ante-
riores da zona da fala do hemisfério esquerdo e das ocorrên-
cias clínicas designadas pelo termo afasia motora dinâmica od
afasia motora transcortical.
A peculiaridade fundamental dessa forma de perturbação
do enunciado verbal consiste em que tanto o motivo do enun-

73
ciado quanto a idéia geral daquilo que é suscetível de
enunciado são aqui conservados: conservam-se também a ar-
ticulação do doente, a possibilidade de nomear determinados
objetos, de repetir palavras ou frases isoladas. Ocorre uma per-
turbação substancial no elo de recodijicaçâo da idéia geral
para o esquema do enunciado verbal, ou seja, na transição da
ideia geral para a sua formulação na linguagem. Esses doentes
tentam inutilmente encontrar o esquema destruído da frase,
mencionam palavras isoladas que, entretanto, não se enqua-
dram no enunciado subseqüente. É característico que eles
conservam em grau bem mais elevado a possibilidade de
operar com substantivos, mas sentem dificuldades em operar
com verbos (que lhes ocorrem com muito mais lentidão do
que os substantivos). O que é mais importante é o fato de
que as palavras isoladas não cabem, para eles, no “esquema
linear da frase” e o mecanismo dc “geração" do enunciado
verbal fica profundamente perturbado.
Esse fato pode ser observado compensando-se a falha do
“esquema linear da frase” com suportes externos, por exem-
plo, dispondo diante do doente, que tenta inutilmente pronun-
ciar a frase “eu quero passear”, três quadros vazios, cada um
significando a palavra que integra a frase e indicando, sub-
seqiien temen te, cada um dos quadrados e sugerindo-lhe
reproduzir a frase:

eu ------ quero r
passear

Semelhante teste indica não só que existe no doente um


mecanismo perturbado de geração do enunciado verbal, como
também pode ser aplicado para o restabelecimento de tal
mecanismo.
A introdução de meios externos de apoio leva a que
comecem a manifestar-se no doente impulsos eletromiográficos
anteriormente bloqueados, que tomam a desaparecer tão logo
se afastam os meios auxiliares de apoio.

74
Torna-se bastante provável a hipótese segundo a qual
semelhantes quadros se baseiam em perturbações do apare-
lho da linguagem interna, que recodifica a idéia básica em
enunciado verbal e desempenha importante papel na prepara-
çai dessa idéia por ser o importante mecanismo que nega o
“esquema linear da frase”. Uma confirmação dessa hipótese
é ainda o fato de que, na medida cm que se eliminam as
perturbações da fala, o doente passa por uma fase em que
os enunciados verbais que nele se formam conservam quase
exclusivamente os substantivos, enquanto desaparecem os vei-
bos e as cópulas, formando o quadro conhecido como “estilo
telegráfico”.
Uma variedade especial da perturbação acima referida
do enunciado verbal é constituída pelo quadro que surge nos
casos em que a afecção do ccrebro não destrói as áreas ante-
riores da “zona da fala” do hemisfério esquerdo, mas lhe des-
trói os nexos com as áreas estruturalmente mais complexas da
região frontal do cérebro.
Nestes casos conserva-se o esquema da frase e não sur-
gem perturbações da estrutura do enunciado verbal simples.
O doente que repete facilmente a frase e pode transmitir uma
história bem consolidada é incapaz de desenvolver por si mes-
mo enunciados mais amplos, construindo-lhes o programa e
passando de uma fase destes às seguintes. A perturbação che-
ga ao ponto em que é impossível o desenvolvimento harmo-
nioso do enredo e os doentes começam a queixar-se de que
lhes chegam desordenadamente à cabeça algumas linhas do
enunciado que não se enquadram em um programa semân-
tico; por isto eles repetem facilmente a frase que acabamos
de mencionar, mas são incapazes de transmitir com nexo a
história que leram e desenvolver com autonomia a narração.
A perturbação do plano interno do enunciado leva a que
esses doentes podem reproduzir desordenadamente fragmen-
tos isolados, suscetíveis de transmissão verbal com nexo.
Tais doentes são capazes de passar à narração encadeada am-
pla se alguns fragmentos forem inicialmente registrados por
eles de forma desordenada, mas em seguida forem inseridos
numa cadeia sucessiva.
A perturbação dos planos concisos internos do enuncia-
do verbal, que surge nesses casos, é um dos exemplos mais
ilustrativos das perturbações da trajetória entre a idéia e o
discurso amplo, que pode surgir com as afecções locais do

75
cérebro; tal perturbação leva mais de perto o pesquisador aos
mecanismos cerebrais mais íntimos (embora ainda latentes)
dc pensamento verbal ativo.

Processo de decodificação do enunciado verbal.


O problema da interpretação

Nós examinamos o processo de formação do enunciado,


ou seja, a trajetória entre o pensamento e a linguagem ou
processo de decodificação do pensamento em comunicação
verbal. Agora devemos examinar um processo inverso, ou seja,
o processo de decodificação da comunicação recebida ou a
trajetória entre a linguagem e o pensamento que serve de
base à interpretação do material comunicável.

O problema da decodificação (interpretação) da comunicação

O processo de interpretação da comunicação recebida em


hipótese alguma pode ser considerado um simples processo
de assimilação do significado das palavras: interpretar a pro-
posição: “seu irmão quebrou a perna” não implica, absoluta-
mente, cm entender o significado das palavras “seu”, “irmão”,
“quebrar” e “perna”. O processo de decodificação ou inter-
pretação da comunicação é sempre um meio de decifrar o
sentido geral, implícito na comunicação recebida ou, em ou-
tras palavras, um complexo processo de discriminação dos
elementos mais importantes do enunciado, a transformação
c7e um sistema desenvolvido de comunicação no pensamento
nela latente. Este é um processo simples; ele pode deter-se
em diferentes etapas do caminho a ser percorrido pelo sujeito
que interpreta a comunicação. Ele pode terminar com a per-
ccpção do significado de palavras isoladas, ao passo que o
sentido da comunicação permanece inteiramente ininteligível.
Esse processo pode chegar à decodificação do significado de
frases isoladas, e então a pessoa que o percebe, que assimila
bem o significado de cada proposição, pode não chegar a
interpretar o verdadeiro sentido de toda a comunicação. Ela

76
pode peneirar mais a fundo e refletir o sentido geral da comu-
nicação e Irunsmiti-lo em forma sucinta, mas isto é suficien-
te para interpretar um texto científico “explicativo”, se bem
que dificilmente esgotaria a interpretação autêntica de uma
obra de arte. Por último, a pessoa que interpreta a comunica-
ção (ou lê uma obra de arte) pode entender o sentido inse-
rido no “subtexto”, os motivos que servem de base aos atos
do personagem, bem como a relação do autor com os perso-
nagens, relação essa que llie serviu de motivo para escrever
tal obra.
O processo de decodificação (interpretação) da comuni-
cação que nos chega pode ser profundamente diverso, depen-
dendo da forma de dada comunicação e dos modos através
dos quais comunica-se a informação, bem como do conteúdo
da comunicação e do grau de conhecimento nela inserido.
O conceito de enunciado verbal tem uma estrutura psicológi-
ca bem diferente da estrutura do conceito de comunicação
escrita.
O enunciado verbal, como já tivemos oportunidade de
ver, se baseia num grande número de fatores extralingüísticos
suplementares da comunicação (conhecimento da situação,
gestos, mímica, entonação), o que não se verifica no enun-
ciado escrito. Por isto é absolutamente natural que a inter-
pretação do enunciado verbal, baseada não só na decodifica-
ção das estruturas lógico-gramaticais da linguagem, mas tam-
bém na consideração de todos os meios extralingüísticos de
comunicação, processe-se de maneira inteiramente diversa da
decodificação do texto escrito, pois este carece de todos
aqueles suportes suplementares e requer uma decodificação
especialmente minuciosa das estruturas gramaticais que a
compõem.
É dispensável dizer que a interpretação da linguagem
do interlocutor no diálogo permite basear-se nos contextos
extralingüísticos, simpráticos, de maneira bem mais ampla
do que a interpretação da linguagem verbal monológica e que
a decodificação de ambas as formas de linguagem processar-
se-á segundo leis inteiramente diversas.
A interpretação de um texto descritivo, narrativo, expli-
cativo e artístico (psicológico) coloca o interpretador diante
de tarefas completamente diferentes e requer uma profundi-
dade de análise inteiramente distinta: para interpretar uma
linguagem descritiva é bastante entender o significado direto

77
das frases (às vezes dificultado pela compreensão do contex-
to comum); no discurso narrativo, a interpretação do con-
texto geral é muito mais importante; no texto explicativo
(científico), a compreensão do contexto geral é apenas uma
etapa inicial que deve passar à comparação dos componentes
isolados, ao cotejo destes entre si e à decodificação do senti-
do geral ou da lei geral, cuja argumentação ou ilustração é
constituída pelos fatos apresentados na comunicação. Por
último, a interpretação de um texto artístico (que à primeira
vista pode parecer insignificante) pressupõe um processo mais
complexo de decodificação com a passagem subsequente do
texto ao contexto, do conteúdo externo ou da idéia geral a
uma análise profunda do sentido c dos motivos que às vezes
devem basear-se não no simples processo de decodificação
lógica, mas nos fatores de decodificação emocional chamados
de conhecimentos “intuitivos”,
O grau de conhecimento contido do material comunicá-
vel quase chega a ser o fator mais importante que determina
a estrutura psicológica do processo de decodificação da comu-
nicação interpretável.
É sabido que a interpretação de uma informação bem
conhecida não requer uma decodificação minuciosa das es-
truturas lógico-gramaticais do texto interpretado, que pode
realizar-se “por conjeturas”, com base na interpretação de
apenas alguns fragmentos (às vezes insignificantes) que fazem
surgir situações conhecidas na consciência do interpretador.
Por isto todo o processo de decodificação de uma informa-
ção conhecida esgota-sc freqüentemente com a simples dis-
criminação das referências a uma situação determinada e no
cotejo subseqiientc da hipótese que vem à cabeça do homem
com os detalhes posteriores da informação. Por isto a deco-
dificação de uma informação bem conhecida não requer um
trabalho minucioso sobre o texto sendo antes ura processo
de identificação do sentido que a sua dedução posterior de
uma decodificação longa da informação.
É internamente diversa a estrutura psicológica que carac-
teriza o processo de interpretação de um texto desconhecido.
Aqui não pode haver quaisquer conjeturas extracontextuais,
pois estas não levam a uma decodificação bem-sucedida do
conteúdo da informação. A pessoa que se vê diante da tarefa
de decodificar uma informação que lhe é desconhecida pode

7S
basear-se somente na estrutura lógico-gramatical dessa infor-
mação e deve percorrer lodo o caminho complexo, partindo
da decodificação de frases isoladas, comparando-as em se-
guida entre si e tentando discriminar o sentido original que
elas desenvolvem e terminando na análise do sentido geral
latente em toda a comunicação e às vezes naqueles motivos
que servem de base a esse enunciado.
Vê-se facilmente que este caminho é muito complexo e,
dependendo da experiência do analisador do texto, pode
apresentar como traço distintivo um grau variado de desen-
volvimento; este grau, cm alguns casos, aproxima-se pela
complexidade do processo de decodificação de informação
desconhecida através dos meios aplicados e, em outros casos
(nos leitores bastante experientes), limita-se a discriminar os
elementos mais informativos do texto e a cotejá-los entre si.

Decodificação (interpretação) do sentido das palavras

Muitos linguistas afirmam com todo fundamento que a


palavra é sempre polissêmica, que cada palavra se constitui
de fato em uma metáfora, como ocorre com a palavra mão.
A palavra “mãozinha” significa antes de tudo a mão peque-
na (“a mãozinha da criança”), mas pode significar ao mesmo
tempo um objeto ou até uma circunstância (“mão de direção,
mão de ferro, mão de linho, tnão única, contramão”). O
mesmo podemos dizer em relação à palavra pé (“pezinho da
criança; pé de mesa, pé-de-moleque, etc.”); até palavras como
“ água”, “toupeira”, podem ser empregadas com sentidos di-
ferentes (“água do balde”, “fulano pediu água”). “A toupei-
та vive no bosque”, ou “este homem é uma toupeira”. É
preciso ressaltar que muitas preposições apresentam polisse-
mia ainda maior, como podemos ver nas seguintes frases:
“ ele fez isto no peito e na raça”, “as cartas estão na mesa",
“creio na força das ideias”; “o cesto está sob a mesa”; "sob
esse pretexto assim agiram”, “sob esse ponto de vista as coi-
sas parecem realmente maravilhosas”.
A decodificação da comunicação exige antes de tudo que
se proceda à seleção semântica dentre os muitos significados
•da palavra empregada em dado texto.

79
A escolha adequada se baseia numa série de fatores e
encontra algumas dificuldades.
Um dos fatores que permite fazer a escolha do sentido
adequado da palavra é a entonação com a qual tal palavra
é pronunciada. A entonação atribui automaticamente maior
significado a uma das alternativas e a expressão “que cace-
te!”, pronunciada com desdém, logo dá a entender que se
trata da qualidade de uma pessoa.
O fator segundo e niais importante que determina a es-
colha do sentido adequado da palavra é o contexto. É natu-
ral que a palavra dez, pronunciada numa fila de ônibus, vai
indicar que se trata do ônibus esperado pelos passageiros,
porém pronunciada num exame estará se referindo à nota
obtida por um aluno. Tem efeito análogo o contexto verbal,
que determina justamente em que sentido se emprega deter-
minada palavra. Quem lê a frase “ele lhe beijou a mão”
nunca interpretará a palavra “mão” como, por exemplo, mão
de pilão, e quem lê a frase “ele recebeu como presente a
mão dela” nunca vai interpretar “mão dela" como se tratan-
do, por exemplo, de mão de uma criança. Cria-se um para-
doxo sui generis, no qual o sentido da frase só pode tornar-
se inteligível conhecendo-se o sentido de certas palavras, en-
quanto o sentido de uma palavra isolada se toma compreen-
sível apenas conhecendo-se todo o contexto. No entanto é
justamente o paradoxo aparente que caracteriza o complexo
processo de decodificação da comunicação; esse duplo cará-
ter do processo pode ser visto em forma ampla, por exemplo,
no registro do movimento dos olhos da pessoa que lê um
texto.
O processo de escolha correta do sentido de uma pala-
vra pode encontrar uma série de dificuldades que devem ser
levadas em conta pela Psicologia do processo real de deco-
dificação da comunicação.
A primeira dessas dificuldades, que se manifesta com
clareza especial no estudo de uma língua estrangeira e na
assimilação de um novo objeto, é o conhecimento deficiente
do léxico. É justamente desse fator que decorre a confusão
de palavras semelhantes pelo som (ou pela escrita), confusão
essa que se torna perigosa uma vez que o leitor prefere, às
vezes, fazer uma conclusão imediata acerca da palavra em
vez de verificar o seu significado no dicionário. Erros como

80
a confusão das palavras inglesas yvheather (tempo, clima) e
whether (ou), a interpretação precipitada do rótulo “molted
coffee” (marca molted) e “café moído” podem servir de pro-
totipo de dificuldades da decodificação do significado das
palavras; inúmeros exemplos desta decodificação incorreta
podem ser vistos nas observações das crianças. O segundo
obstáculo à escolha correta do significado da palavra entre
as possíveis alternativas é o predomínio do pensamento jigtt-
rado-direto, que torna um dos significados mais concretos da
palavra o mais provável.
Um exemplo típico pode ser a interpretação do sentido
das palavras por uma pessoa na qual predomina a memó-
ria figurado-direta (cidética), para quem a expressão “tri-
pulação do navio” ou “mar de sangue” é dificultada pelas
imagens que afluem imediatamente de “tripulação” ou “mar”,
que obstaculizam a escolha de outro significado menos ha-
bitual e alegórico. Essas deficiências se manifestam em forma
mais acentuada nos casos de retardamento mental, quando o
significado concreto da palavra predomina sobre as demais
alternativas e a escolha de outra alternativa menos habitual
e mais abstrata se torna freqiientemente impossível.
É um caso especial o processo de interpretação do sig-
nificado das palavras nos surdos-mudos, que ainda não entra-
ram no multifacetado mundo do significado das palavras no
processo de assimilação prática permanente da linguagem;
nesses deficientes, todas as alternativas possíveis esgotam com
um significado decorado da palavra. Exemplos de como a
expressão “está frio na rua, o termómetro caiu violentamen-
te” é entendida como “o termómetro quebrou-se”, a expres-
são “levante o lenço” é entendida por analogia com “levante
o braço" (como ato de erguer alguma coisa) são apenas
exemplos isolados das dificuldades que se impõem à deco-
dificação do significado das palavras na criança surdo-muda.
Outros exemplos das dificuldades que surgem na deco-
dificação do significado das palavras dependem da oscila-
ção dos estados de vigília, que podem ser observados no es-
tado de fadiga intensa, nos estados pré-sonolentos e nos esta-
dos inibitórios do córtex.
Ё sabido que no sujeito normal, em estado de vigília, o
significado da palavra suscita um feixe de nexos semantica-
mente aproximados, ao passo que a semelhança sonora das

81
palavras é inibida e não atinge a consciência. É natural que
a palavra “violino” suscite facilmente palavras semelhantes
pelo sentido como “arco”, “corda”, “violoncelo”, mas não
evoque a palavra “viuvinho”, que se aproxima pelo som. Mas
é justamente esta seletividade do processo que não se verifica
nos estados inibitórios do córtex, nos quais a palavra “vio-
lino” suscita com a mesma probabilidade a palavra “viuvi-
nho”, assim como outras palavras semanticamente aproxima-
das. A palavra “carrapata” suscita com a mesma facilidade
a palavra “carrapato”. Nas observações registraram-se casos em
que, no estado de pré-sonolcncia, a palavra “preterir” susci-
tou associação de cor (preto, escuro), fato que nunca se veri-
fica no estado normal de vigília do córtex.
Há muitos fundamentos para se considerar que as pe-
culiaridades da interpretação das palavras nos casos de retar-
damento mental e a originalidade da avaliação “incompreen-
sível” do sentido das palavras nos casos de esquizofrenia têm
justamente como fonte essa perda dos nexos seletivos que
surgem na percepção das palavras e é atribuída ao estado
patológico do córtex.
É absolutamente natural que todos os obstáculos aqui
referidos nos levem a uma atitude cuidadosa em face do
processo de decodificação do sentido da palavra, cuja exati-
dão é ameaçada pelas dificuldades que acabam de ser
descritas.

Decodificação (interpretação) dos significados da oração

A segunda grande parte do processo de decodificação


da comunicação é a interpretação da oração, segunda unidade
maior do enunciado.
A decodificação da oração coloca diante do receptor da
comunicação problemas inteiramente diversos daqueles colo-
cados pela decodificação do sentido de palavras isoladas.
A percepção de orações isoladas e seu significado pres-
supõe antes de tudo a assimilação dos códigos gramaticais
que servem de base às orações.
Nos casos simples, especialmente quando se trata da
comunicação de um evento, quando a estrutura da oração c

82
relativamente simples c o sentido é unívoco, isto não consti-
tui a menor dificuldade. Simples “comunicações de um even-
to” como “a casa está ardendo”, “o menino bateu no cão”
ou formas mais difundidas como “o pai e a mãe foram ao
cinema e a velha babá e as crianças ficaram em casa”
não suscitam qualquer dificuldade para a interpretação,
sendo acessíveis tanto para os escolares quanto para os
pré-escolares.
A questão se torna visivelmente mais complexa quando
o sujeito sc propõe decodificar uma frase que expressa a
“comunicação de uma relação", sobretudo se a forma dessa
estrutura gramatical entra em conflito com a percepção ime-
diata das palavras que a compõem ou com a avaliação ime-
diata dos seus fragmentos.
O exemplo mais simples pode ser visto na decodificação
das construções flexionadas (ver as construções do genitivo
atributivo). As construções “irmão do pai”, assim como “pai
do irmão” criam a impressão imediata de que aqui se trata de
duas pessoas — o pai e o irmão — e que ambas as constru-
ções se distinguem apenas pela ordem das palavras nelas in-
cluídas. Mas a análise mostra facilmente que as duas impres-
sões são falsas e que essas construções, sendo um exemplo tí-
pico de “comunicação da relação”, não designam nenhuma das
referidas pessoas mas uma terceira — o “tio” — e se expres-
sam na forma do significado relativo de dois tipos de parentes-
co. O significado da segunda construção revela outras relações
do conceito “pai” (pai do meu irmão e meu pai), diferentes
daquelas apresentadas pelo significado imediato dessa palavra.
A decodificação dessa construção requer trabalho pré-
vio, que compreende a retenção da impressão imediata do
seu significado, atribuição a um dos substantivos, situado* no
genitivo, do significado de adjetivo (“irmão paterno”) e dis-
criminação do significado geral da construção na correlação
dos dois elementos.
Processo análogo de análise é indispensável para a deco-
dificação das construções concretas (do tipo “um círculo sob
um quadrado”, “primavera antes do verão”, “verão depois da
primavera” e “desjejuei depois que li o jornal”). Observe-se
que esse trabalho de decodificação do significado da cons-
trução suscita dificuldades especiais quando não nos apoia-
mos em noções figuradas diretas ou quando a ordem das

83
palavras, inseridas nessa construção, não coincide com a or-
dem dos acontecimentos representados. É justamente por isto
que a construção “cesto sob a mesa” é bem mais fácil de
entender que a construção neutra “círculo sob o quadrado”
que, por sua vez, se entende com muito mais facilidade que
a construção “a mesa sob o cesto”. Por isto o decodificador
da construção “desjejuei depois que li o jornal” tende a
evitar a inversão dos acontecimentos nela contidos e inter-
pretá-la conforme a primeira impressão como expressão de
ordem direta: desjejuar — ler o jornal.
Dificuldades análogas são suscitadas por construções com
inversão do sentido. Por exemplo, a negação dupla, ampla-
mente empregada na língua russa; o verdadeiro significado
desta construção diverge acentuadamente da impressão inicial,
por exemplo, “eu não estou acostumado a não me sujeitar às
regras”*, mas não implica, absolutamente, em violação das
regras como se poderia esperar a partir da interpretação de
fragmentos isolados da construção (“não estou acostumado”
e l‘não me sujeitar”), mas ao contrário, subentende uma pes-
soa disciplinada que se submete às regras.
Neste caso a decodificação da construção requer recodi-
ficação prévia dessa construção. O sentido se torna inteligí-
vel apenas após a transformação da negação dupla numa
afirmação positiva.
As dificuldades da decodificação do sentido se manifes-
tam de modo sobremaneira patente nas construções compa-
rativas mais complexas. Pode servir de exemplo a constru-
ção inserida no conhecido teste psicológico de Bertt: “Olga
é mais clara que Sônia porém mais escura que Kátia”; aqui
o sujeito deve dispor as três meninas numa ordem de cres-
cente escurecimento dos seus cabelos. A impressão imediata
provocada por tal construção, que acompanha a percepção
gradual de suas partes, e a omissão do elo mais importante
da inversão inserida na construção levam à distribuição em
ordem

* Mantemos as duas partículas de negação não apenas por questão de


fidelidade à estrutura da língua russa que aqui serve de exemplo. (N
do T . )

84
Olga Sônia Kátia
(clara) (escura) (mais escura)

ao passo que a correta decodificação subentende a compreen-


são de que uma mesma pessoa (Olga) é mais clara (que Sô-
nia) c mais escura (que Kátia); por outras palavras, para en-
tender as relações é necessário evitar a inversão e realizar
uma operação intermediária de deslocamento.

Olga Olga Sônia Olga Kátia


(mais clara) (mais escura) (mais escura) (mais clara)

Essa complexa tarefa de recodificação prévia dessa ins-


trução é naturalmente difícil, sendo bastante possível fazer
dela uma interpretação errónea.
Os exemplos mostram o quanto pode ser complexo o
processo de decodificação das construções lógico-gramaticais,
principalmente se elas são “comunicações de relações” e so
seu autêntico significado entra em conflito com as impres-
sões imediatas que delas se podem ter.
Esse complexo processo pode encontrar obstáculos à
interpretação das construções.
Mencionaremos apenas três grupos de fatores que sus-
citam dificuldades e apresentam sério interesse teórico e prá-
tico.
Ao primeiro deles pode chamar-se fator “estrutural”.
Consiste em que, na recodificação das referidas construções,
é necessário distribuir-lhes os elementos numa correlação
simultánea (que abrange simultaneamente a correlação espa-
cial). Sem a existência de “esquemas simultâneos” continua
impossível dispor os elementos dessa construção num sistema
lógico-gramatical único. O fator de recodificação das cons-
truções lógico-gramaticais requer a participação de áreas do
córtex cerebral plenamente determinadas (temporo-occipitais),
podendo desaparecer com a afecção destas, tornando inacessí-
vel o processo de decodificação dessas construções.
O segundo fator pode ser designado fator “dinâmico”. A
decodificação das complexas construções gramaticais requer
a inibição das impressões imediatas do significado e das apre-
ciações falsas que podem surgir impulsivamente; ela requer

85
uma orientação substancial, às vezes bastante complexa face
à construção proposta e somente esta condição pode assegu-
rar uma correta interpretação.
No entanto é justamente essa condição a que nem sem-
pre é exequível. Nos sujeitos que não conseguem controlar-
se suficientemente (principalmente nas crianças) pode-se ve-
rificar freqiientemente a retenção deficiente da resposta impul-
siva e a tendência a evitar o trabalho prévio de análise dc
uma dada construção e sua recodificação, o que se deve a de-
ficiências dinâmicas; pode surgir uma interpretação errónea,
que pode ser facilmente afastada restabelecendo-se toda a ple-
nitude da análise prévia da construção e dando-se ao sujeito
a oportunidade de usar para este fira apoios externos.
Ainda abordaremos a importância diagnóstica desse tipo de
dificuldades.
O terceiro tipo de fatores, que provocam dificuldade para
a decodificação das referidas construções, pode ser chamado
fator “mnemónico”.
Para decodificar o significado de uma complexa cons-
trução lógico-gramatical, é necessário memorizar os elementos
que a compõem e compará-los mentalmente uns aos outros,
retendo na memória quer todas as partes componentes dessa
construção, quer as suas formas modificadas. Este processo,
cujas dificuldades aumentam quando operamos com constru-
ções volumosas, requer um volume bastante amplo de “me-
mória operativa”; se tal volume é insuficiente, gera dificul-
dades naturais que podemos evitar transferindo do plano oral
para o escrito o processo de decodificação da construção.

Interpretação do sentido da comunicação

A decodificação do significado de uma frase ou constru-


ção lógico-gramatical não esgota o processo de interpretação,
pois a ela se segue uma etapa mais complexa: a interpreta-
ção do sentido de todo o conjunto da comunicação.
Essa etapa não apresenta grandes dificuldades em um
texto narrativo simples, que transmite um acontecimento ex-
terno. Mas ela se torna tarefa difícil quando a comunicação
tem entre seus componentes um complexo subtexto e requer
a revelação da ideia geral ou do sentido oculto neste subtexto.

86
Essas dificuldades se manifestam nitidamente em cada
texto científico para cuja interpretação é insuficiente decodi-
ficar o significado de cada uma das frases que o compõem,
sendo necessário compará-las, discriminar a ideia básica e
os detalhes secundários. A ideia gera! de um texto científico
se torna clara somente como resultado de uma complexa ope-
ração sintético-analítica, sem a qual a interpretação do texto
permanece no nível do reflexo do conhecimento de frases
isoladas e não leva ao efeito adequado.
Percebe-se facilmente a complexidade do processo de
interpretação de um texto científico (explicativo) examinan-
do lodo o processo sucessivo de atividades que levam à inter-
pretação adequada desse texto. A forma ampla desse proces-
so compreende a discriminação dos elementos constituintes do
texto, ressalta às vezes as partes mais informativas, coteja
essas partes entre si, compõe esquemas minuciosos nos quais
essas partes se correlacionam, formula teses gerais decorren-
tes desse cotejo e, por último, constrói breves esquemas que
refletem em forma lógica o conteúdo básico de um extrato
em esludo. Só quando de um longo trabalho resulta que
todo um texto (às vezes muito volumoso) cabe em um breve
esquema lógico, que a qualquer momento pode ser novamente
desenvolvido, o processo de transformação de um texto lon-
go numa “ideia” reduzida pode considerar-se concluído. A
complexidade de todo o trabalho de interpretação de um ex-
trato pode ser observada por uma via mais económica. Uma
destas vias é o registro dos movimentos dos olhos do leitor
de um texto.
Para atingir esse fim, fixa-se ao olho do sujeito um
pequeno espelho que se movimenta juntamente com o olho,
e a trajetória do movimento do raio que cai sobre esse espe-
lho é registrada em papel fotográfico ou, a partir de todos
os lados do olho, fixam-se à pele eletrodos que permitem
registrar por via direta os movimentos do globo ocular (mé-
todo da oculografia). Por último, para atingir esse fim apli-
ca-se ainda o método fotoelétrico, segundo o qual o feixe
de luz, que passa pelo filtro infravermelho, cai sobre o olho,
registrando-se em papel fotográfico a diferença de potenciais
entre a pupila escura e a íris clara, diferença essa que varia
com o movimento dos olhos. O registro dos movimentos dos
olhos durante a leitura de um texto complexo mostra que,
neste caso, tais movimentos não são simples e seguidos. O

87
olho se movimenta em saltos, fixando partes isoladas do texto,
voltando repetidas vezes ao ponto inicial e comparando frag-
mentos isolados. Somente esse sistema complexo de movi-
mento dos olhos, que discrimina e coteja os fragmentos mais
importantes da informação produzida pelo texto, resulta na
interpretação deste.
No leitor relativamente pouco experiente, os movimentos
dos olhos são de caráter complexo; diminuem no leitor expe-
riente, quando a discriminação dos pontos mais informativos
assume caráter generalizado e o processo de confrontação
dos fragmentos discriminados é transferido cada vez inais para
o plano interno, começando a realizar-se na linguagem interna.
Cabe observar que é justamente da interpretação do texto
científico que se manifestam de maneira sobretudo patente
os diversos processos de decodificação, que distinguem a in-
terpretação de um texto novo e desconhecido da interpreta-
ção de um texto bem conhecido.
Sendo muito pequena a probabilidade de interpretação
correta do conteúdo geral de um texto novo e complexo por
simples conjetura, torna-se necessário um grande trabalho de
discriminação de suas partes mais substanciais (mais infor-
mativas) e comparação de umas com as outras. Na interpre-
tação de um texto velho e bem conhecido, aumenta a pro-
babilidade de abrangcncia do sentido geral por simples
conjetura, tornando-se dispensável um longo trabalho de
análise e comparação das partes mais informativas.
Isto pode ser facilmente visto se comparmos duas frases
inacabadas; na primeira, a terminação única surge, com gran-
de probabilidade, do próprio texto, constituindo na segunda
uma infinidade de alternativas cuja descoberta requer um
trabalho posterior e comparação com os dados fornecidos
pelo contexto. A pessoa que lê a frase: “chegou o inverno
e c a iu ... azul”, dificilmente hesitaria em preencher a lacuna
com a palavra “neve”, complemento único do conteúdo da
frase; já a pessoa que lê a frase: “depois de muita demora
saí finalmente à rua para com prar...” não tem solução idên-
tica e pode escolher o final correto da frase entre muitos
com igual probabilidade de alternativas que surgem, se o
contexto lhe fornece a informação complementar necessária
à solução.

88
Diferenças análogas surgem na decodificação de um tex-
to científico, que transmite uma informação conhecida ou
menos conhecida.
É absolutamente natural que para a interpretação de uma
informação menos conhecida seja necessário um trabalho de
cotejo de muitos detalhes do texto, ao passo que pode ser
mais breve o caminho do conhecimento de uma informação
conhecida.
Formou-se últimamente um novo campo da ciência, de-
nominado “teoria da informação'’, que tornou possível a aná-
lise quantitativa das dificuldades que surgem no processo de
decodificação da informação e permitiu que se chegasse mais
de perto de um estudo preciso desse processo.
O processo de interpretação de um texto artístico não
apresenta menor complexidade do que a decodificação de uin
texto científico, embora seja diferente o caráter das dificul-
dades que ali surgem.
É precisamente na exploração do texto artístico que a
interpretação não é uma simples decodificação do significado
de frases isoladas ou de todo um contexto, mas um complexo
caminho entre o texto externo amplo e seu sentido interno.
Cada texto artístico oculta um certo subtexto interno, que
exprime o sentido de uma dada obra (ou trecho), os motivos
de determinados personagens que o leitor deve inferir da
descrição do comportamento e, por último, a relação do au-
tor com a sua narração, os acontecimentos e atos. Daí a ta-
refa que se coloca ante o leitor de uma obra de arte não
consistir, absolutamente, na assimilação da narração produ-
zida por essa obra, mas na revelação do subtexto, na inter-
pretação do sentido, na elucidação dos motivos dos persona-
gens e na atitude do autor em relação aos acontecimentos
narrados.
O trabalho de descoberta do sentido de uma obra de
arte não tem nada de simples e pode-se afirmar com segu-
rança que a profundidade da descoberta do sentido interno
por diferentes leitores de um texto artístico difere profunda-
mente da interpretação de um simples texto narrativo e des-
critivo (e talvez até científico, explicativo). A diferença em
relação à decodificação do texto científico consiste em que,
aqui, a finalidade da interpretação deste texto é revelar as
complexas relações lógicas que constituem a idéia geral e não

89
mostrar o sentido interno ou subtexto, não expresso direta-
mente no texto, que existe em toda obra de arte.
A estrutura psicológica do texto artístico já se manifesta
nos provérbios e fábulas. No provérbio “nem tudo o que
reluz é ouro” não se trata do valor do ouro, mas das qua-
lidades do homem; interpretar literalmente o proverbio, sem
penetrar no seu sentido interno, implica em não entendê-lo.
O mesmo podemos dizer das fábulas, cujo sentido não se
resume à história de algum episódio da vida dos animais, mas
consiste em revelar aquelas relações que constituem o sentido
do significado moral da fábula. Nestes casos a figura ou me-
táfora é o traço fundamental dessa forma de obra de arte,
sendo exigência básica da interpretação a passagem do con-
teúdo externo para o sentido interno.
Essa estrutura se manifesta com idêntica nitidez em ou-
tras formas de obras de arte.
No conto A menina da cidade, L. F. Voronkova* narra
o seguinte episódio: crianças que tomavam banho em um rio
advertiram uma menina para não passear de barco rio abaixo
porque havia uma barragem e o barco podia virar. A menina
não deu atenção aos conselhos, continuou remando rio abai-
xo e não regressou. As crianças saíram rio abaixo à sua pro-
cura e do outro lado da barragem avistaram um chapeuzinho
vermelho flutuando sobre a água.
O conteúdo externo do conto se reduz à narração du
acontecimento, cujo episódio essencial não está representado
no texto. No entanto a frase “e elas avistaram um chapeu-
zinho vermelho flutuando sobre a água” tem sentido perfei-
tamente determinado, exprimindo nesse pequeno fato a indi-
cação do acontecimento trágico. É natural que a simples
transmissão do enredo externo não diga absolutamente nada
da interpretação do conto e que a autêntica decodif¡cação
do sentido se manifeste na transição para o subtexto não
formulado na narração.
No referido conto, a tarefa do leitor consiste em pene-
trar no acontecimento representado apenas indiretamente no
texto externo. Em outro conto, a tarefa de interpretação do

• Lyubov Fedorovna Voronkova (Moscou, 1906), escritora soviética,


muito conhecida por sua literatura infantil e pelo alto sentido metafó-
rico e psicológico de suas obras. (N. do T .)

90
texto c ainda mais complexa e consiste em passar do acon-
tecimento externo à descoberta dos motivos profundos e
relações.
No conto A menina estranha narra-se a seguinte histó-
ria: uma mulher adotou uma menina e esta, durante muito
tempo, não conseguiu acostumar-se à nova família e recebia
com muita reserva o tratamento caloroso que lhe dispensava
a mãe adotiva. Mas certa vez, na primavera, quando floresce-
ram as campainhas-brancas, ela fez um buquê, chamou a
mãe adotiva e disse: “ fsso é pra v o cê... mamãe”. Neste caso
as palavras representam uma profunda mudança na vida emo-
cional da menina, que reconhece pela primeira vez a mulher
estranha como sua mãe; se o leitor se limitou aqui a assi-
milar 0 enredo externo e não tirou uma conclusão psicológica,
naturalmente não pode considerar que entendeu o conto.
Essa correlação complexa do conteúdo externo com o
sentido interno se manifesta com nitidez ainda maior nas
grandes obras de arte; a famosa réplica de Góre ot umá*, “já
está amanhecendo”, não significa absolutamente a simples
constatação de uma parte do dia, mas sugere uma noite de
insónia, assim como a réplica de Tchatsky, personagem cen-
tral da mesma obra, "Carruagem, tragam-me a carruagem”,
tem um profundo sentido de ruptura do personagem com a
sociedade que lhe é hostil.
Todo o complexo trabalho do diretor com o ator, des-
crito com tanta profundidade por Konstantin Stanislavsky,
pode servir de exemplo amplo das transições do conteúdo
externo para os sentidos e motivos internos que constituem
a essência de uma autêntica “aclaração do texto”, que lhe
descobre o sentido interno.
Se os códigos gramaticais da língua, a que antes nos re-
H ferimos, são um sistema de meios que permitem expressar
quaisquer relações lógicas e podem ser aplicados acertada-
mente à decodificação de um texto, o texto literário quase
não tem suportes externos que possam assegurar o mesmo
trabalho de decodificação do sentido nele latente. São exce-
ção apenas os meios de pontuação na linguagem escrita e os
i meios de entonação na linguagem falada.

* Góre o t um á (A desgraça que n m en te nos tr a i) , famosa obra sa-


tírica do escritor russo Aleksandr Scrguêevitch Griboydov (1795-1820).
(N. d o T . )

91
Basta observar como muda o sentido interno de um
enunciado com a mudança da pontuação para ver como fica
claro o seu significado enquanto meio de direção do sentido
da comunicação. Comparemos, por exemplo, três variantes
de distribuição dos sinais de pontuação na frase já citada:
1) “isso é pra você, mamãe!”; 2) “isso é pra você... ma-
mãe!” ; 3) “isso ... é pra você, mamãe!” e veremos que no
primeiro caso a pontuação não é usada para expressar um
sentido interno especial; no segundo caso, ela destaca a re-
lação modificada da criança com a mãe e, no terceiro, a ti-
midez da menina ao praticar tal ato. Isto dá plenos funda-
mentos para considerar a pontuação um código dc sentidos
internos na mesma medida em que os recursos sintáticos são
um código de relações lógicas externas.
Os procedimentos de decodificação dos sentidos internos
do extrato de um texto literário se manifestam com mais
nitidez nos meios empregados na linguagem falada, especial-
mente nas entonações e no espaçamento dos fragmentos sig-
nificantes de um texto através de pausas. O uso desses meios
é o que constitui a via principal de exploração do discurso
expressivo do ator, que deve possuir a habilidade de aplicá-
los para aprender a levar ao ouvinte não apenas a narração
dos acontecimentos externos, mas também a descoberta do
sentido interno da obra.
A crítica literária soviética N. G. Morozova apresenta
como exemplo um trabalho semelhante de exploração do con-
to aparentemente simples Tchuk e Guek, do escritor infantil
soviético Arkady Gaidar (1904-1941).
O texto direto descreve determinados acontecimentos
externos.
“Vivia um homem em um bosque, ao pé de montanhas
azuis. Ele sentiu saudade e pediu permissão para escrever à
sua mulher pedindo que ela viesse visitá-lo junto com os
meninos”.
Mas se no trabalho que visa a descobrir o sentido interno
desse extrato forem empregados os recursos da entonação e
da pausa que espaçam as suas partes semânticas, o extrato
começará a ter outra apresentação:
“Vivia um homem em um bosque ao pé de montanhas
azuis.. . ” começa a traduzir a sensação de longos dias (“vivia
um hom em ...”) que se arrastavam na solidão (“em um
bosque.. .) .

9?
“Ele sentiu saudade e pediu permissão para escrever à
sua mulher, pedindo que ela viesse visitá-lo com os meninos”.
Aqui se revela 0 quadro da saudade, a relação com a mulher
e os filhos, a vontade de vê-los mesmo que fosse por pouco
tempo, etc.
Os recursos da pausa e da entonação pertencem intei-
ramenie ao discurso falado, embora nos manuscritos anti-
gos fossem usados juntamente com a pontuação gramatical
os “sinais vermelhos", que serviam de meios externos de
discriminação da unidade semântica e direção da passagem
do significado externo do texto para o sentido interno.
A complexidade do processo de decodiíicação do senti-
do interno de um texto literário dá fundamentos para se
considerar que se deve aprender a decodificar (descobrir)
o sentido interno da obra assim como se aprendeu a deco-
dificar (interpretar) o seu significado externo (lógico-grama-
tical), para considerar que a Psicologia deve elaborar as vias
mais racionais de semelhante aprendizagem. A Psicologia
ainda tem pouco conhecimento dos fatores que podem difi-
cultar o processo de decodiíicação dos sentidos internos, de-
vendo a análise destes constituir objeto especial de futuros
estudos.

Patologia da interpretação da fala

O processo de decodiíicação do enunciado verbal (ou


informação afluente) pode perturbar-se seriamente nos esta-
dos patológicos do cérebro e as formas dessa perturbação
permitem uma descrição mais aproximada da estrutura psi-
cológica do processo de interpretação.
A perturbação do nível de decodificação de uma comu-
nicação complexa pode ocorrer nos casos de retardamento
mental ou nas formas de redução da atividade intelectual
que se manifestam nos casos de demência orgânica. Nestes
casos a interpretação do significado de certas palavras pode
empobrecer acentuadamente, a posição dominante cabe às
noções imediatas, concretas ou figurado-diretas do significado
das palavras, o significado figurado ou abstrato das palavras
torna-se inacessível e toda a interpretação assume caráter con
ereto expresso. É natural que em tais casos a decodificação

93
do significado das frases ou construções lógico-gramaticais
também se simplifique acentuadamente, e se a interpretação das
proposições estrutural mente elementares, que expressam sim-
ples “comunicações de um acontecimento’’, continua acessível,
então a descoberta do significado das complexas constru-
ções lógico-gramaticais torna-se possível e leva o sujeito ao
impasse ou é substituída por conjeturas simplificadas. Aqui
dificilmente seria possível a decodificação do sentido interno
da comunicação, embora, como mostra a clínica, possam
ocorrer nesses casos dissociações consideráveis, nas quais a
completa impossibilidade de assimilação do significado abs-
trato das complexas estruturas lógico-gramaticais não seja
acompanhada de idêntica desintegração da compreensão do
sentido emocional do enunciado.
Um quadro inteiramente diverso (inverso, em muitos
sentidos) da perturbação da decodificação da comunicação
pode ser visto em algumas formas de doenças psíquicas, par-
ticularmente na esquizofrenia. Como já indicamos a correla-
ção de probabilidades de surgimento dos significados mais
freqüentes das palavras e a escolha correspondente de deter-
minadas alternativas (por exemplo, da concepção de “árvore”
como pinheiro, amendoeira, figueira e não como “árvore” das
alternativas lógicas, que predominam nos lógicos) são pertur-
badas; as palavras começam a suscitar quaisquer nexos que
acorrem, com igual medida de probabilidade, e perturba-se a
interpretação univalente até das comunicações mais simples,
que se torna polissêmica, sendo que, às vezes, ligações pouco
prováveis surgem quer com igual quer com maior probabili-
dade do que as ligações comuns imediatamente derivadas da
prática anterior.
Eis por que em Psicopatologia costuma-se falar de “po-
lissemia”, de “ininteligibilidade” das ligações que surgem no
esquizofrénico, cuja decodificação da comunicação pode assu-
mir caráter complexo, requintado e dificilmente previsível.
Entretanto para uma melhor compreensão da estrutura
psicológica do processo de decodificação (interpretação) do
enunciado verbal, tem importância especial a análise neuro-
psicológica das mudanças que esse processo apresenta nos
casos de afecção local do cérebro.
Como se sabe, o significado da patologia local do cére-
bro consiste em que a afecção elimina aqui fatores psicoló-

94
gicos variados, indispensáveis ao desenvolvimento normal dos
processos psicológicos, decorrendo daí que a perturbação da
respectiva função começa a ter caráter específico perfeita-
mente definido.
Assinalemos brevemente aquelas perturbações do pro-
cesso de decodificação da linguagem, que surgem com diver-
sas afecções locais do cérebro.
A afecção local do córtex da região temporal esquerda
(de suas áreas póstero-superiores) leva à desintegração do
ouvido fonemático, levando daí à impossibilidade de perceber
a precisa referência material e, às vezes, o significado preciso
das palavras. O fenômeno do “alheamento do sentido das
palavras”, que ocorre nesses casos, consiste em que o doente
não percebe com a devida precisão a estrutura sonora
da palavra e começa a confundir-lhe o significado com sig-
nificados aproximados pelo som, resultando daí que a pala-
vra “vaca” é percebida como “vaga”, ora como “faca” ou
como “fava”, enquanto a palavra “brecha” pode ser percebida
como “flecha”, “mecha” ou “festa”, etc. É natural que, nestes
casos, a decodificação da comunicação verbal seja especialmen-
te dificultada e o doente comece a reagir diante das comunica-
ções verbais como a um complexo de ruídos ou a uma mis-
tura difusa de nexos isolados. Ê característico que, em tais
casos, o sentido geral da comunicação é às vezes mais inte-
ligível do que o seu significado imediato. Ê possível que isto
se deva ao fato de os componentes melódico-intencionais da
fala continuarem chegando melhor ao doente do que o sig-
nificado de palavras isoladas; é possível ainda que a percep-
ção de uma palavra (abstrata) dê fundamentos para com-
pensar as falhas resultantes da percepção deficiente de deter-
minadas palavras concretas. Os fatos sugerem possibilidades
potenciais de atividade intelectual desses doentes, que se con-
servaram apesar das falhas grosseiras de decodificação de
palavras isoladas portadoras de informação.
É inteiramente diverso o caráter da perturbação da deco-
dificação (interpretação da comunicação verbal) com a afec-
ção das áreas temporo-occipitais do hemisfério esquerdo.
A compreensão de palavras isoladas conserva-se total-
mente e se distingue apenas por certa compreensão das rela-
ções latentes na palavra. No entanto o defeito principal que
surge nas afecções é a perturbação da possibilidade de dis-
tribuir os elementos perceptíveis e as noções em certos esque-

95
mas simultâneos ¡internos, e esse defeito provoca dificuldades
consideráveis na initerpretação das construções lógico-gramati-
cais que transmiteini o sistema de relações lógico-gramaticais
e cuja interpretaçãco requer um cotejo simultâneo externo dos
componentes de tai:s construções. Eis por que os doentes desse
grupo compreendera facilmente o sentido de “comunicações
de acontecimentos’” como “a floresta está em chamas”, “o
menino bateu no cão”, “a menina toma chá quente” ou va-
riantes mais comphexas como “o pai do irmão” ou “o irmão
do pai”, “um círctulo sob um quadrado” ou “um quadrado
sob um círculo”, ‘“o sol é iluminado pela terra” ou “a terra
é iluminada pelo sol”, já sem falar das formas complexas de
expressão das relações como a forma de negação dupla ou
a complexa construção comparativa do tipo “Olga é mais
clara do que Sônia porém mais escura do que Kátia”. Em
todos esses casos, os objetos isolados, designados pelas pala-
vras, são bem percebidos pelo doente mas as tentativas de
captar-lhes as correlações provocam-lhe total confusão e só
uma longa aprendiizagem do doente, com a transição para
um amplo emprego de meios auxiliares complementares, atra-
vés dos quais ele pode chegar gradativamente ao significado
da construção dada, não captado ¡mediatamente por ele, per-
mite compensar parcialmente o seu defeito. Cabe observar
que também nesse grupo de doentes a compreensão do sen-
tido emocional interno da comunicação se conserva melhor e,
ao que tudo indica, reflete o fato de ser esse processo rea-
lizado por outros sistemas do cérebro, diferentes da decodifi-
cação das relações lógico-gramaticais.
Outro quadro da perturbação dos processos de decodifi-
cação das comunicações verbais ocorre nos casos de afecção
dos lobos frontais do cérebro, que desempenham papel essen-
cial na programação, regulação e controle das formas com-
plexas de atividade consciente do homem.
Aqui é internamente conservada a compreensão de pala-
vras isoladas e das construções lógico-gramaticais, não ha-
vendo qualquer dificuldade visível. No entanto, em toda parte
em que o sujeito deve realizar certo trabalho ativo de deco-
dificação da comunicação recebida, inibir a impressão imediata
acerca do significado da construção verbal apresentada e ten-
tar penetrar mais a fundo nas suas relações semânticas inter-
nas, o doente começa a sentir dificuldades consideráveis e o
processo de decodificação revela às vezes falhas significativas.

96
Ê por isto que a interpretação do sentido de um provérbio
ou de uma fábula é aqui freqiientemente perturbada e os
doentes que lhes captam facilmente o significado imediato
são amiúde incapazes de penetrar-lhes no sentido interno,
limitando-se a constatar o significado concreto imediato. Por
entro lado, o doente com afecção maciça dos lobos frontais
do cérebro são incapazes de discernir o enredo propriamente
dito de uma comunicação transmitida da emersão descontro-
lada de suas associações e começam a narrar o famoso conto
de Toistói A galinha e os ovos de ouro (segundo este conto,
o dono cortou uma galinha que tinha ovos de ouro mas nada
achou dentro dela) sem conseguir entender a moral oculta
na história e não são capazes nem sequer de separar o con-
teúdo de semelhantes associações e assim transmitem a his-
tória: “a galinha... tinha o v o s... o dono os vendeu no
mercado... ou ao E stad o ...”, etc.
Não há necessidade de dizer que qualquer trabalho de
dccodificação do sentido interno de uma narração ou dos
motivos dos personagens é absolutamente inacessível a esse
grupo de doentes, nos quais a interpretação do sentido inter-
no é incomparavelmente menos acessível do que a interpre-
tação dos significados externos, cuja análise leva totalmente
à descoberta dos mecanismos psicofisiológicos essenciais dos
ft complexos processos de decodificação da comunicação verbal.
ь

97
/
IV

O Pensamento Produtivo.
Dedução e Solução das Tarefas

O problema

A bordam os o problema da estrutura da palavra e seu


papel na formação dos conceitos e analisamos a trajetória
entre a ideia e o discurso amplo, que serve de base à for-
mação do enunciado, e entre o discurso amplo e o pensamen-
to, que serve de base à decodificação da comunicação e sua
interpretação. Agora devemos ir além dos limites dessas ques-
tões, situadas na fronteira entre a Psicologia e a Lingüística,
e passar à análise psicológica do pensamento produtivo.
O pensamento humano, que se baseia na atividade ma-
terial e nos recursos da linguagem, pode não só organizar a
percepção do homem e permitir-lhe realizar o salto do sen-
soria! ao racional, considerado por muitos filósofos materia-
listas um dos saltos decisivos na evolução do psiquismo; ba-
seando-se nos recursos da linguagem, o pensamento permite

99
transmitir a comunicação, codificando o pensamento no enun-
ciado verbal, e decodificá-lo, revelando-lhe o sentido interno.
Baseado nos recursos da linguagem, o pensamento huma-
no é também uma forma específica de atividade produtiva:
permite não apenas ordenar, analisar e sintetizar a informa-
ção, relacionar os fatos percebidos a determinadas categorias,
mas também ultrapassar os limites da informação imediata-
mente recebida, fazer conclusões a partir dos fatos percebidos
e chegar a certas inferências mesmo sem dispor de fatos ime-
diatos e partindo da informação verbal recebida. O homem
pensante é capaz de raciocinar e resolver tarefas lógicas, sem
incluir o processo de solução na atividade prática. Tudo isto
sugere que o processo de pensamento pode ser uma atividade
teórica especial que leva a novas conclusões e, assim, tem
caráter produtivo.
Durante muito tempo o problema do pensamento não
foi objeto de um preciso estudo psicológico experimental e foi
antes uma parle da filosofia e da lógica do que da Psicologia.
Por isto no estudo do pensamento manifestava-se com nitidez
especial a luta entre o material e o ideal, que foi o motivo
central em toda a história da filosofia.
O enfoque materialista do pensamento partia da fórmula
clássica do sensualismo: Nihil est in intellecto quod non
fuerit primo in sensu (“não há nada no intelecto que não
tenha havido antes no conhecimento sensorial”). No entanto
esta fórmula levava mais amiúde a uma abordagem mecânica,
segundo a qual o pensamento era entendido como uma com-
binação de imagens da memória ou um produtto da associa-
ção (pela contigiiidade, a semelhança e o contraste). É natu-
ral que a concepção (encampada por um grande número de
adeptos do chamado associacionismo) levasse a afirmar que
o próprio pensamento não era um processo específico e podia
ser inteiramente reduzido a um jogo de imagens e associa-
ções. Por isto, durante muito tempo os processos reais de
pensamento produtivo não foram objeto de estudo especial.
Posição oposta era ocupada pela filosofia idealista, que
via no pensamento formas específicas de atividade do espírito
humano, irredutíveis a quaisquer processos sensoriais mais
elementares ou associativos.
Na Idade Média e no início da Idade Moderna, esse
enfoque do pensamento manifestou-se na filosofia racionalista,
cujo ponto de partida era a afirmação de que o pensamento

100
6 propriedade primária do espírito e possui várias peculiari-
dades que não podem reduzir-se a processos mais elementares.
Essas concepções (um dos fundadores do racionalismo foi
Christian Wolf) foram partilhadas por grandes filósofos como
Descartes, Kant e outros.
Em nossa época, a tese segundo a qual devemos consi-
derar o pensamento como manifestação de uma atividade
“simbólica” específica do espírito tornou-se a base da filo-
sofia neokantista e está presente nos trabalhos de grandes
filósofos idealistas como Cassirer, Husserl e outros. A abor-
dagem idealista do pensamento enquanto forma específica de
atividade psíquica constituiu a base da escola que, pela pri-
meira vez em Psicologia, o converteu em objeto de estudo
experimental especial. Essa escola, que recebeu o nome de
Escola de Wiirrzburg, reuniu um grupo de psicólogos ale-
mães no início do século XX (Kiilpe, Messer, Bühler e Ach),
que consideravam o pensamento uma função específica indivi-
sível da consciência. Sugerindo aos seus sujeitos (geralmen-
te professores ou docentes de Psicologia) tarefas especiais
(por exemplo, interpretar o sentido de uma tese complexa,
encontrar a parte pelo todo ou o todo pela parte, selecionar
as relações gênero-espécie e espécie-gênero) e dando-lhes a
tarefa de descrever as emoções que surgem no cumprimento
dessas tarefas (ou seja, usando a auto-observação experimen-
tal), os psicólogos dessa escola chegaram à conclusão de que
o processo de pensamento não se baseia em nenhuma ima-
gem, não se realiza através da linguagem e constitui “emoções
lógicas” especiais, que são dirigidas pelas respectivas “orien-
tações” ou “intenções” e se realizam como “atos” psicológi-
cos específicos. Destacando o pensamento como tipo especial
de processos psíquicos, a Escola de Wiirrzburg, entretanto,
separou-o da base sensorial e dos mecanismos da linguagem,
por outras palavras, concebia o pensamento como forma es-
pecial de atividade do espírito, enfocando esta das posições
de um idealismo extremado.
O problema do enfoque científico dos processos de pen-
samento, deste modo, não foi resolvido e a ciência psicoló-
gica viu-se diante da tarefa de dar uma explicação materialis-
ta do processo de pensamento, abordando-o como forma com-
plexa de atividade psíquica, que tem origem e história pró-
prias e se baseia em meios historicamente formados que carac-

101
terizam outras formas de atividade material e usam como
recurso básico o sistema da linguagem.
Para resolver essa tarefa, a Psicologia materialista devia
considerar o pensamento não como uma “revelação do espí-
rito”, mas como um processo que se forma na história social,
ocorre inicialmente como atividade material ampla, usa o sis-
tema da linguagem como um sistema objetivamente concluído
de relações semânticas e conexões, e só posteriormente assu-
me formas reduzidas, adquirindo o caráter de “atos intelec-
tuais” internos.
Sob esse enfoque, o pensamento humano deixa de pa-
recer “categoria irredutível do espírito”, sem história, acessí-
vel apenas à descrição fenomenológica subjetiva e pode tor-
nar-se objeto da ciência psicológica.

As estruturas lógicas corno base do pensamento

Examinando o processo de formação dos conceitos, vimos


o papel ali desempenhado pela palavra, que por si mesma é
produto do desenvolvimento histórico-social, tem uma com-
plexa estrutura semântica e se converte em matriz objetiva,
formadora dos nossos conceitos. Ao estudar o processo de
formação do enunciado, vimos que a transição de uma idéia
restrita para um juízo amplo se forma à base de estruturas
sintáticas objetivas da língua, que também são uma matriz
historicamente formada, que determina o movimento da idéia
e serve de base à formação dos juízos.
O sistema objetivo de matrizes que se formaram no pro-
cesso de desenvolvimento histórico e se reflete tanto na ati-
vidade material do homem quanto no sistema da língua, deve
servir de base a formas mais complexas de pensamento, asse-
gurando uma operação de raciocínio e conclusão.
Esse sistema de matrizes, formado na história social, é
empregado pelo homem como meio objetivo de organização
do pensamento e pode ser facilmente encontrado se obser-
varmos a complexa estrutura semântica da linguagem e as
estruturas lógicas, formadas pela experiência das gerações,
que são assimiladas pelo homem em seu desenvolvimento in-
telectual e servem de base objetiva de sua complexa atividade
intelectual.

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Entre todos os meios de que dispõe a linguagem para
transmitir a comunicação de relações existem aqueles que
permitem formular relações lógicas precisas; estas relações são
reflexo de ligações e relações práticas entre as coisas trans-
feridas para o plano da linguagem e formuladas nos modelos
de construções semânticas determinadas. Entre os tipos mais
simples de tais relações situam-se as construções que se ba-
seiam na flexão e nas preposições. Por exemplo, as constru-
ções “eu vou a . . “eu venho de. . “estou sentado na..
“encontro-me e m ..." criam automaticamente uma situação
de relações espaciais e são empregadas pelo homem como
meios objetivos de pensamento espacial.
Existem, entretanto, outros meios bem mais complexos
de linguagem, que refletem relações mais complexas e permi-
tem realizar tipos mais complexos de operação do pensamen-
to. Situam-se entre eles, por exemplo, construções como “o
incêndio eclodiu em conseqiiência d e . . “saí à rua, embo-
ra...", “eu lhe disse a verdade, apesar de...”, etc. Esses
meios objetivamente surgidos na história da linguagem refle-
tem não mais relações espaciais externas ou temporais, po-
rém relações lógicas bem mais complexas, entre as quais se
situam tanto as relações de causa e efeito, quanto as rela-
ções de inserção no todo, de condições, restrições parciais
e outras que vêm sendo elaboradas últimamente por outro
campo da ciência — a lógica matemática — e são represen-
tadas por um sistema especial de sinais.
Ao dominar o sistema de uma língua, o homem domi-
na automaticamente o sistema que reflete relações lógicas dife-
rentes pelo grau de complexidade; a inserção na construção
de palavras como “em conseqiiência d e . .. ”, “em bora...”,
“apesar d e . .. ” gera fatalmente no homem a sensação sai
generis de uma estrutura imperfeita e aqueles “sentidos lógi-
cos” (“embora”, “apesar d e ...”) que antes eram considera-
dos formas de “manifestação do espírito” e serviam de base
ao pensamento, em realidade são um produto da assimilação
dos códigos objetivos da língua, que se formaram no processo
da vida social.
Existem, porém, outras relações lógicas menos comple-
xas, que se refletem não tanto na estrutura lexical e sintática
da língua, quanto em determinadas estruturas lógicas, surgidas
no desenvolvimento histórico da humanidade, que formam as

103
matrizes lógicas objetivas determinantes dos nexos que sur-
gem na consciência evoluída do homem.
Situam-se entre as matrizes lógicas estruturas lógicas
como a relação parte-todo ou todo-parte, gênero-espécie ou
espécie-gênero e, por último, os mecanismos lógicos conhe-
cidos como relações de analogia.
Essas relações, que só últimamente receberam denomina-
ção simbólica específica na lógica matemática, formaram-se
no processo de desenvolvimento da cultura e refletem as for-
mas básicas da complexa prática humana, que serviram de-
base às estruturas lógicas fundamentais.
Por isto, para uma consciência desenvolvida é absoluta-
mente natural que um par de conceitos subordinado ao homem,
tendo grau variado de generalidade (por exemplo, marta-ani-
mal), gere a “sensação da relação”, que pode ser denomi-
nada “sentido lógico” e leve a que a palavra “espargânio”
suscite fatalmente o conceito de “vegetal” mas nunca o con-
ceito de “corte” ou “pântano”. A sensação das relações lógi-
cas é o que reflete a existência de “mecanismos especiais de
analogia”, que caracterizara a ação da consciência desenvol-
vida do homem e determinam a escolha de um tipo especial
de relações lógicas que, na consciência desenvolvida, inibem
todas as outras associações possíveis.
Existem, entretanto, sistemas mais complexos que se
formaram no processo de desenvolvimento histórico e com-
põem as “matrizes” pelas quais se desenvolve o pensamento
organizado do homem adulto e evoluído, que as aplica desta
feita a eventuais conclusões lógicas.

Um exemplo de matriz é o silogismo.


O homem que recebe duas premissas — uma maior
e uma menor — como, por exemplo:
— os metais preciosos não enferrujam
— o ouro é um metal precioso
começa imediatamente a experimentar o “sentido lógi-
co”, que reúne as duas premissas em certo sistema lógi-
co, e faz quase automaticamente a dedução:
— logo, o ouro não enferruja.

O silogismo citado é o resultado de uma longa experiên-


cia prática, refletida num esquema lógico restrito que, por

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sua vez reflete um juízo geral (nenhum metal precioso enfer-
ruja), um juízo particular, que relaciona o metal dado (ouro)
a um grupo de metais preciosos. É justamente a relação en-
tre esses juízos geral e particular que leva a transferir automa-
ticamente as qualidades de todo o grupo (de metais preciosos)
para um metal individual, que o segundo juízo relaciona com
o grupo geral que é objeto do primeiro juízo.
O mais importante é o fato de que o juízo, formulado na
terceira frase acima citada, não é o resultado de uma expe-
riência prática pessoal mas ocorre como conclusão automá-
tica das correlações lógicas das premissas maior e menor.
Na história da linguagem e na história da lógica forma-
ram-se meios objetivos que automaticamente transmitem ao
indivíduo a experiência das gerações, livrando-o da necessi-
dade de obter informação da prática individual imediata e
permitindo-lhe obter o juízo correspondente por via teórica,
lógica. São justamente as matrizes lógicas, que o homem as-
simila no processo de desenvolvimento intelectual, que cons-
tituem a base objetiva do seu pensamento produtivo lógico.
Seria incorreto pensar que o homem nasce com “sentido
lógico” acabado e que as “sensações lógicas” experimentadas
pelo homem adulto desenvolvido são “propriedades do espí-
rito”, que existem como inatas em toda pessoa.
As observações mostram que as operações de conclusão
(/.<?., de dedução que não parte da experiência prática pessoal
mas se baseia nas relações lógicas que se formaram na lin-
guagem, por exemplo, em forma de silogismo) estão longe
de ocorrer em todas as fases do desenvolvimento e o homem
deve percorrer um longo caminho para ter condições de ope-
rar com relações lógicas que se bastam por si mesmas para
transmitir informação independentemente da prática imediata.
Para que isto se tornasse possível, foi necessário que o homem
adquirisse o domínio das formas de generalização, que são
formuladas pela premissa maior (“os metais preciosos não
enferrujam”), para começar a considerá-la uma afirmação
da universalidade dessa regra genérica. Foi-lhe necessário
transferir imediatamente o raciocínio do plano dos processos
práticos evidentemente eficazes para o campo das construções
teóricas lógico-verbais para ganhar confiança na premissa bá-
sica e começar imediatamente a ver na afirmação da segunda
premissa menor um caso particular da premissa maior,
genérica.

105
São justamente esses processos que constituem a necessá-
ria condição psicológica do pensamento teórico ou dedutivo
(possibilidade de tirar conclusões de uma regra geral por
meio de operações lógicas teóricas); como mostraram as obser-
vações, eles são resultado de um complexo desenvolvimento
histórico. Eles ainda não existem em forma idêntica nas pes-
soas daquelas formações históricas nas quais predominam as
formas imediatas de prática c o pensamento teórico ainda não
atingiu o suficiente desenvolvimento; formam-se apenas no
processo de assimilação dos tipos básicos de atividade teó-
rica (na aprendizagem escolar e nas formas complexas de
comunicação pelo trabalho).
As teses que acabamos de formular podem ser ilustradas
com uma série de observações.

Se sugerirmos a um sujeito, que se criou numa for-


mação histórico-social na qual predominam formas visi-
velmente eficazes de prática, e ainda não passou pela
aprendizagem escolar, o par “cão-animal”, isto ainda não
quer dizer que se lhe sugerirmos a palavra “espargânio”
esta lhe evoque o par lógico “vegetal”. A prática de
pensamento teórico nesses sujeitos ainda é insuficiente, a
relação lógica gcnero-espécie não será aqui assimilada
como dominante e a palavra “espargânio” terá grande
probabilidade de evocar as imagens diretas de “pânta-
no”, “corte” ou imagens diretas de situações práticas
como “alimentar o gado”, “preparar para o inverno”, etc.
Como resultado da assimilação deficiente das matrizes
lógicas, o pensamento das pessoas que vivem nas condi-
ções da experiência prática elementar processar-se-á antes
no plano da reprodução de situações evidentes-eficazes
que no plano do estabelecimento de relações lógicas
abstratas e as leis do pensamento serão aqui essencial-
mente distintas.
Se, dando continuidade ao teste, sugerirmos aos su-
jeitos ambas as premissas do silogismo acima formulado,
poderemos ver facilmente que elas se repetem não tanto
como duas teses relacionadas entre si por diferente me-
dida de generalidade, quanto como duas afirmações cor-
relatas ou duas perguntas isoladas, que não refletem a
relação lógica e não criam uma estrutura lógica única.

106
Por isto a repetição das duas premissas pode assu-
mir o caráter:
— os metais preciosos não enferrujam;
— e o ouro, metal precioso, não enferruja;
ou
— os metais preciosos enferrujam ou não?
— o ouro, metal precioso, enferruja ou não?
As observações posteriores mostram que as duas te-
ses examinadas, que não se correlacionam cm um sistema
lógico único, naturalmente não dão fundamento para se
tirar automaticamente delas uma conclusão lógica como
se tira facilmente com base na experiência prática ou no
conhecimento existente, mas ainda não pode surgir por
meio da conclusão lógica.
É por isso mesmo que os sujeitos desse grupo podem
fazer facilmente uma conclusão dos dados que se apóiant
na sua experiência prática imediata, mas se negam a tirar
conclusão desse mesmo silogismo se este não compreende
a experiência própria deles.
Assim, os sujeitos desse grupo tiram facilmente “con-
clusão” do silogismo:
“Em toda parte onde é quente e úmido nasce algo-
dão”.
“Na aldeia X é quente e úmido”.
“Será que lá nasce algodão?”
declarando: “É claro, lá ele deve nascer. Sendo quente
e úmido, ele nascerá fatalmente, isto eu s e i...”
No entanto eles não podem tirar conclusão do silo-
gismo que não lhe reflita a experiência pessoal e quan-
do se lhe sugere o silogismo
“No Extremo Norte, onde há neve o ano inteiro,
todos os ursos são brancos”.
“O lugar X se encontra no Extremo Norte”.
“Será que os ursos de lá são brancos?”
eles respondem
“Não posso afirmar! Não estive no Norte e não
sei. É melhor você perguntar ao vovô M., ele esteve no
Norte e lhe d ir á ...”
Vê-se facilmente que, neste caso, o sujeito se nega
praticamente a tirar conclusão de uma premissa que não
se baseia na sua experiência prática individual e o pro-

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cesso de conclusão é aqui não tanto uma operação do
pensamento dedutivo lógico, quanto uma operação de
reprodução dos próprios conhecimentos, dos resultados de
sua própria experiência prática.
Como mostraram observações especiais, semelhante
recusa a tirar conclusões lógicas de uma tese que não se
baseia na experiência prática pessoal caracteriza a gran-
de maioria de sujeitos que vivem em formações económi-
cas atrasadas e não passaram por aprendizagem escolar.
Mas é bastante uma aprendizagem escolar relativa-
mente breve ou a sua inclusão na faina coletiva, que re-
quer discussão conjunta e planificação do processo de tra-
balho, para o problema mudar radicalmente e o homem
começar a incorporar-se facilmente à operação de conclu-
são lógica, dedutiva.

Desenvolvimento da conclusão lógica na criança

O domínio da operação de conclusão lógica passa por


várias fases sucessivas, que podem ser claramente observadas
no processo de desenvolvimento da criança.
Já indicamos que, no início da idade pré-escolar, tanto
a referência material quanto o significado mais aproxima-
do das palavras estão suficientemente constituídos e a sim-
ples comunicação dos acontecimentos se torna plenamente
acessível.
Isto ainda não significa que até esse momento a criança
domina perfeitamente as formas complexas de “comunicação
de relações”.
Já dissemos que conceitos relativos como “irmão" e “ir-
mã” ainda não estão suficientemente constituídos até esse
momento, e a criança que diz ter um irmão Carlos, cai em
impasse se lhe pedem para dizer como se chama o irmão
Carlos por não ter condições de relacionar esse conceito con-
sigo mesma.
É ainda mais complexo o processo por que passa a assi-
milação dos códigos lógicos da língua, que estão presentes
nas palavras acessórias “porque”, “embora”, “apesar d e . . . ”,
etc. As observações do notável psicólogo suíço Jean Piaget
mostram que, na criança de 5-6 anos, as referidas palavras

108
não ocultam o significado lógico que adquirem no aluno de
curso superior ou no adulto.
Piaget sugeriu a crianças frases interrompidas pelas pa-
lavras “porque” ou “embora”, pedindo-lhes para concluí-las.
Os dados aí obtidos mostraram que essas palavras não ti-
nham atrás de si as relações lógicas que lhes são próprias
quando empregadas por pessoas adultas; a criança que con-
cluía semelhantes orações representava antes a ordem ou a
contiguidade dos acontecimentos, que a sua dependência cau-
sal. Justamente pelo fato de que a assimilação externa das
palavras acessórias ainda não redunda na assimilação do seu
significado lógico interno, a criança de 5-6 anos não podia
apresentar protótipos de acabamento das orações como “o
menino caiu porque... foi levado para o hospital” ou “está
chovendo porque... as árvores estão molhadas”. Aqui a
busca da causalidade era freqiientemente substituída pela
simples constatação de traços diretamente perceptíveis, levan-
do a juízos do tipo: “o barco rema e não afunda porque...
é vermelho” ou “porque é grande” ou “porque... ele é
pequeno”.
É natural que essa substituição do conceito de causali-
dade pela percepção imediata e pela descrição externa do
fato não podia levar à formação de um autêntico “sentido
lógico”; daí surgirem todos os fundamentos para se supor
que “sentidos lógicos” como o “sentido do porque” ou o
“sentido do embora” surgem na criança bem mais tarde do
que o uso externo desses termos, e a assimilação autêntica
desses conceitos passa por uma longa e complexa via de
desenvolvimento.
As observações de Piaget mostraram que não apenas a
assimilação do pleno significado das palavras acessórias lógi-
cas, como também do significado dos juízos como sua uni-
versalidade surge bem mais tarde do que se poderia imagi-
nar. Assim, entre um grande número de “comunicações de
acontecimentos” ou de juízos particulares, reunidos em crian-
ças de 5-6 anos, Piaget não encontrou nenhum que tivesse
caráter de juízo geral; por isto um processo lógico como a
conclusão de uma premissa geral ou dedução resultou intei-
ramente estranho para as crianças dessa idade cujos juízos
eram antes um reflexo do acontecimento concreto imediata-
mente perceptível que a formulação de uma regra de signifi-
cado universal.

109
Eis por que os testes de Piaget, cuja tarefa era observar
na criança dessa idade uma autêntica operação de conclusão
lógica, terminavam fatalmente em fracasso, assim como os
testes que tentavam obter conclusões das sentenças
— Todos os habitantes da cidade N. são bretões.
— Todos os bretões da cidade N. morreram na guerra.
— Há sobreviventes da cidade N.?
não tinham caráter de conclusão lógica de premissas e pro-
vocavam invariavelmente respostas do tipo “não se i... não
estive lá”, “não me disseram nada sobre isso”, etc.
Essas peculiaridades do pensamento infantil, que não
opera сощ conceitos genéricos mas com impressões concretas
e juízos diretos únicos, tornam impossíveis para a criança as
operações de conclusão a partir de um silogismo ou os pro-
cessos de dedução, e levam a considerar que o processo de
pensamento infantil não tem caráter de dedução (conclusão
lógica de uma sentença geral) nem caráter de indução (pas-
sagem do juízo único para a sentença geral) mas caráter de
transição do singular ao singular, que o psicólogo alemão
W. Stem designou com o termo transducção. É justamente
em virtude desse caráter dos juízos que o pensamento da
criança dessa idade é insensível às contradições lógicas. Se a
criança que observa um objeto que flutua diz que “ele flu-
tua porque é grande” e, em outra ocasião, “porque ele é
pequeno”, em ambos os casos ela apresenta apenas juízos con-
cretos, não surgindo nenhum sentido' de contradição lógica
entre tais juízos.
Segundo Piaget, a assimilação das verdadeiras operações
de conclusão lógica surge na criança quando ela começa a
dominar operações inversas, por outras palavras, no período
em que cada operação lógica corresponde a uma operação
dupla inversa (por exemplo, 3-)-2 = 5, 5 — 2 = 3), quando
a criança assimila não juízos isolados mas sistemas de juízos,
que servem de base a todo conhecimento científico.
Os fatos descritos por Piaget são de grande importância
para a compreensão das peculiaridades do pensamento infan-
til; no entanto a sua hipótese, segundo a qual as autênticas
operações lógicas se desenvolvem apenas muito tarde e em
certo sentido são produtos do amadurecimento natural, pro-
vocou várias objeções sérias entre os psicólogos soviéticos.
Lançou-se entre estes a hipótese de que a total impossibilida-

110
de de levar a criança de 6-7 anos a fazer as operações lógi-
cas, observadas por Piaget, é resultado do fato de se terem
sugerido à criança tarefas lógicas estranhas a ela, limitándo-
se aqui ao campo puramente verbal as possibilidades de orien-
tação nos meios de solução dessas tarefas.
Ouiros resultados poderão ser obtidos se na orientação
de uma dada tarefa for incluída a experiência direta-eficaz
da criança. Nestes casos, como mostraram as observações do
conhecido psicólogo soviético A. V. Zaporojets, a criança
que recebe a sugestão de tirar uma conclusão de um silogis-
mo com análise eficiente-direta prévia do conteúdo da pre-
missa maior e, em seguida, da menor, tem condições de
dominar tanto o juízo genérico quanto a correlação das pre-
missas maior e menor bem antes da criança a quem esse
silogismo é sugerido em forma puramente verbal. Os experi-
mentos com a orientação prévia racionalmente organizada da
atividade da criança, com verificação eficiente, por etapas, do
juízo geral e sua transferência posterior do plano eficaz-di-
reto para o plano lógico-verbal, permitiram mostrar que a
criança de 5-6 anos pode chegar ao pleno domínio de opera-
ções lógicas e que as normas etárias, determinadas por Pia-
gel. não são, em hipótese alguma, limites absolutos que não
podem ser ultrapassados nas condições de uma aprendizagem
científicamente organizada da criança.

Processo de solução das tarefas

Nos casos que acabamos de examinar, a operação de


pensamento consiste em atingir o domínio de um sistema ló-
gico que estava implícito numa comunicação verbal ou num
silogismo, e tirar uma conclusão científica lógica a partir
das relações formuladas no silogismo. A única condição de
cumprimento da respectiva operação lógica consistia em assi-
milar uma dada estrutura de relações lógicas e fazer uma
certa conclusão ou inferência, que é determinada de maneira
unívoca pelo algoritmo (sistema de operações) encerrado no
silogismo.
Nem de longe o processo de pensamento é determinado
em todos os casos por um algoritmo acabado, encerrado na
condição lógica.

III
A maioria esmagadora das operações de pensamento não
é determinada por um algoritmo unívoco, e o homem que
se ache diante de uma tarefa complexa deve encontrar sozi-
nho o caminho de sua solução, abandonando os procedimen-
tos lógicos incorretos e discriminando os corretos. É esse o
caráter do pensamento criativo; no processo de solução de
qualquer tarefa complexa surge a necessidade desse pensa-
mento criativo.
O exemplo mais patente de semelhante pensamento pro-
dutivo pode ser visto na solução dos habituais problemas de
aritmética, que, com pleno fundamento, podem ser conside-
rados modelo de ação intelectual lógico-verbal.
O problema sempre coloca diante do sujeito um fim, que
está formulado na pergunta que encerra cada tarefa. O fim
é dado em determinadas condições e o sujeito que resolve a
tarefa deve, antes de tudo, orientar-se em suas condições, dis-
criminando do conteúdo o mais importante, comparando as
partes componentes. Somente esse trabalho, que serve de base
orientadora à ação intelectual, permite criar a hipótese da via
pela qual deve seguir a solução, por outras palavras, a estraté-
gia da solução, seu esquema geral. Após determinar a estra-
tégia, aquele que resolve a tarefa pode passar à discriminação
das operações particulares que sempre devem manter-se nos
limites da estratégia geral, devendo observar rigorosamente a
ordem de tais operações. Estas podem, às vezes, permanecer
relativamente simples e, às vezes, adquirem caráter complexo
e são constituídas de toda uma cadeia de elos ordenados (que
o sujeito deve conservar em sua “memória operativa”), levam
a determinado resultado; quem resolve a tarefa deve cotejar
esse resultado com a condição inicial, só concluindo a ação
se o resultado corresponder à condição; caso não haja essa
correspondência, deve reiniciar a ação até atingir a neces-
sária combinação do resultado com a condição inicial.
É natural que todo o processo que descrevemos deva ser
sempre determinado pela tarefa básica e não ir além dos
limites de sua condição; qualquer perda do nexo de opera-
ções isoladas com a condição inicial redunda fatalmente na
impossibilidade da tarefa e transforma o ato intelectual numa
cadeia de associações carentes de sentido.
Tudo isto cria exigências especiais sob as quais o pro-
cesso de solução da tarefa pode conservar o caráter válido.

112
Quem resolve uma tarefa deve lembrá-la e não perder o
nexo da pergunta com a condição da tarefa; deve orientarse
nas condições da tarefa e inibir qualquer tentativa de ope-
rações imediatas que surgem impulsivamente, não subordina-
das ao esquema semântico geral da tarefa. Ele deve criar
certo “campo interno" em cujos limites devem processar-se
todas as suas buscas e operações, não ultrapassando, em hi-
pótese alguma, os limites do campo lógico interno; deve exe-
cutar as necessárias operações de cálculo, sem esquecer o
lugar que cada operação ocupa na estratégia geral da solução
da tarefa. Por último, ele deve, como já dissemos, comparar
o resultado obtido com a condição inicial.
O descumprimento de cada uma dessas exigências leva
fatalmente à desintegração do ato intelectual.
A complexidade do processo intelectual exigido é dife-
rente em casos distintos e varia dependendo da estrutura da
tarefa.
Em tarefas simples (do tipo: “Catarina tinha três maçãs e
Sônia duas. Quantas maçãs as duas meninas tinham?”), o de-
senvolvimento das operações (algoritmo de solução da tarefa)
é determinado de maneira unívoca por sua condição; não pode
vir à cabeça nenhuma operação estranha e a solução da
tarefa não costuma provocar quaisquer dificuldades.
A grande complexidade do processo surge em outra va-
riante dessa tarefa. “Olga tinha três maçãs, Sônia tinha duas
a mais; quantas maçãs as duas meninas tinham?”. Aqui o
algoritmo da solução da tarefa (a + (a+ b ) = X) é de
caráter consideravelmente mais complexo e a adição direta
dos dois números referidos na condição leva a resultado falso.
Quem resolve a tarefa deve impedir a solução direta e for-
mular uma pergunta complementar, não indicada na condi-
ção (“Quantas maçãs Sônia tinha?”), somente realizando
uma operação intermediária (3 + 2 = 5) e aproveitando
os seus resultados como uma das parcelas (3 + 5 = 8), pode
obter o resultado necessário.
Apresentam solução ainda mais complexa as tarefas que
requerem a formulação de perguntas suplementares e o cum-
primento de várias operações intermediárias; entre estas, al-
gumas têm caráter específico e adquirem sentido próprio
quando quem resolve tais tarefas retém sólidamente na me-
mória o objetivo final e o sistema de procedimentos que
levam à realização das mesmas. Pode servir de exemplo

113
típico uma tarefa complexa como: o filho tem cinco anos,
daqui a quinze anos o pai será Irês vezes meãs velho d o q u e
o filho. Quantos anos o pai tem agora?
Vê-se facilmente que a condição dessa tarefa cria desde
o início a impressão dc insuficiência lógica; não fixa a idade
do pai, e somente depois que o sujeito formula a pergunta
intermediária (“quantos anos terá o filho daqui a quinze
anos?) e, por último (“quantos anos tem o pai agora?”),
desaparece essa aparente insuficiência lógica, obtendo-se
a resposta cujo algoritmo se torna complexo: (a -f- 15 =
= n; X 3 = m; m — 15 = X).
É complexo o processo de solução da tarefa se esta
compreende atos acessórios que não fazem parte de sua con-
dição concreta e são de caráter puramente auxiliar. São as
“tarefas padronizadas” como: “em duas estantes havia 18 li-
vros, tendo uma 2 vezes mais do que a outra; quantos livros
havia em cada estante?” Neste caso quem a resolve deve ini-
bir os atos diretos que decorrem dos fragmentos da condição
(por exemplo, 18 : 2 = 9 ou 18 X 2 = 36) e antes de
passar às operações com os livros referidos na tarefa deve
fazer as operações com as seções não mencionadas no pro-
blema, perguntando-se inicialmente quantas seções havia em
cada estante e unicamente após uma operação abstrata com-
plementar (2 seções -f- 1 seção = 3 seções) passar à
solução do problema ( 1 8 : 3 = 6 ; 6 X 2 = 1 2 ) , através da
qual obtém a resposta incógnita..
Vê-se facilmente que as tarefas descritas pressupõem pro-
cessos lógico-verbais de dificuldade crescente e se a tarefa
básica de não sair do contexto da condição em todas as ope-
rações permanece a mesma, então a complexidade da análise
das condições e da “estratégia” que deve servir de base à
solução será cada vez maior.
A análise psicológica pode discriminar facilmente os fa-
tores que foram inseridos no processo de solução das tare-
fas, por serem as condições fundamentais de uma atividade
intelectual plenamente válida e cuja exclusão levaria à per-
turbação do seu desenrolar normal.
O primeiro desses fatores é o estabelecimento de uma
sólida relação lógica entre a condição e a pergunta final, que
conservam o significado dominante da pergunta no problema;
sem essa condição, o lugar do sistema seletivo de operações,
subordinadas à pergunta, pode ser ocupado pelas associações

114
seletivas, a escolha entre muitas alternativas possíveis torna-se
impossível e a atividade intelectual, perdendo o sentido,
desintegra-se.
O segundo fator que determina a conservação da ativi-
dade intelectual é a orientação prévia nas condições da tarefa,
que prevé a possibilidade de observação simultânea de lodos
os elementos constituintes da condição e permite criar um
esquema geral de solução da tarefa. A eliminação desse fator
leva inevitavelmente a que todo o sistema lógico, incluído na
condição da tarefa, se desintegre em fragmentos isolados e o
sujeito seja influenciado pelos nexos que surgem impulsiva-
mente desses fragmentos.
O terceiro fator, que pode ser condicionalmente chama-
do “fator dinâmico”, consiste na inibição das operações pre-
maturas que surgem impulsivamente; essa inibição c absolu-
tamente necessária à concretização bem-sucedida de toda a
estratégia de solução da tarefa.
Por último, o derradeiro fator é o mecanismo de com-
paração dos resultados da ação com a condição inicial, me-
canismo esse que pode ser considerado como equilíbrio do
mecanismo do “aceptor da ação” a que já nos referimos.
O processo de solução das tarefas é indiscutivelmente
um modelo que reflete com a maior plenitude a estrutura da
atividade intelectual, podendo o estudo das peculiaridades
desse processo fornecer material importante para a Psicologia
dos processos cognitivos do homem.

Métodos de estudo do pensamento produtivo

Os métodos de estudo do pensamento verbal produtivo


dividem-se em dois grupos. O primeiro visa ao estudo das
premissas do complexo pensamento verbal discursivo e tem
como tarefa estabelecer em que medida o sujeito domina as
principais relações lógico-verbais e até que ponto ele pode
partir justamente delas em seus raciocínios e não dos nexos
circunstanciais figurados-diretos. O segundo está voltado para
as operações propriamente ditas do pensamento produtivo
discursivo.
Ao primeiro grupo pertencem antes de tudo todos os
métodos que já mencionamos quando descrevemos as vias

115
de estudo do processo de assimilação dos conceitos e os pro-
cessos de decodificação (interpretação) das complexas estru-
turas verbais.
Juntam-se a eles mais dois grupos de procedimentos, nos
quais nos deteremos em termos apenas muito breves.
Os primeiros deles são constituídos pelos procedimentos
pelos quais se estuda até que ponto o sujeito domina o siste-
ma de conexões lógicas que surgem no enunciado e o grau
de clareza com que nele se formam as “conclusões lógicas”
a que antes já nos referimos.
Para esclarecer este ponto, aplica-se com ótimos resul-
tados o procedimento de complementação da frase até atin-
gir o todo, proposto por Ebbinghaus. Esse procedimento
consiste em sugerir ao sujeito frases ou textos isolados, omi-
tindo-se em cada frase uma palavra que o sujeito deve
completar.
Em uns casos a palavra em falta eclode com grande pro-
babilidade, em outros, como alternativa única. Por exemplo,
em frases como: “Chegou o inverno e as ruas ficaram co-
bertas de densa... (neve)” ou “Soou o apito do maquinista
e o trem lentamente... (partiu)” naturalmente não se pode
falar de nenhum processo de escolha entre várias alternativas.
Em outros casos, a palavra que prenche a lacuna não surge
como única e o sujeito pode escolher uma das várias alter-
nativas, às vezes comparando uma frase com o contexto an-
terior. Pode servir de exemplo o seguinte texto: “O homem
voltou para casa e notou que havia perdido o boné. Na ma-
nhã seguinte saiu de casa e como estivesse chovendo não
tinha com que cobrir... (a cabeça)” ou “Um homem en-
comendou a uma fiandeira . . . fina (linha). Ela fiou linha
fina mas o homem disse que a linha e ra ... (grossa) e ele
precisava de linha fina”, etc. Neste caso, naturalmente, o
processo de escolha de alternativas é mais complexo e só
pode ser assegurado por uma orientação prévia no contexto.
Vê-se facilmente que a falta dessa orientação prévia pode
levar a lacuna a ser preenchida apenas com base em conjetura
surgida durante a leitura da última palavra, sendo a tarefa
resolvida de maneira incorreta.
No terceiro caso, a lacuna pode não recair sobre palavras
concretas omitidas (substantivos, verbos), mas sobre pala-
vras acessórias omitidas e para a correta solução da tarefa é
necessário tomar consciência da relação lógica em que se en-

116
contram alguns componentes da frase. Tomemos como exem-
plo as frases: “Fui ao cinema... (embora) estivesse chovendo
torrencial mente” ou “Consegui chegar a tempo ao trabalho...
(apesar de que) o percurso era muito longo”, etc. Vemos fa-
cilmente que, no último caso, o objeto de estudo consiste em
estabelecer se o sujeito é capaz de operar conscientemente
não com a conexão dos acontecimentos, mas com o caráter das
relações lógicas; nessas possibilidades, toda falha refletir-se-á
na tarefa sugerida.
Uma variante desse método é o conhecido método de
extrapolação no qual o sujeito recebe vários números com
um grupo de números omitido; ele deve inseri-los, após to-
mar consciência da base da série. Em alguns casos essa tare-
fa não apresenta dificuldades e tem solução única; podemos
tomar como exemplo a série
1 2 3 4 56 ... 9 10 etc.
Em outros casos essa tarefa é resolvida de maneira bem mais
complexa e o sujeito deve analisar a lógica da construção da
série, lógica essa que sempre é fácil de descobrir. Podemos
lomar como exemplo a série
1 2 4 5 6 8 . . . 13 14 16 etc.,
ou 1 2 4 7 ... 21 28 etc.
A orientação insuficiente nas condições de composição
da série, bem como a impossibilidade de assimilar a lógica
de sua construção refletem-se seriamente na solução dessa
tarefa.
Um método amplamente difundido de estudo é a análise
da execução de várias operações lógicas peio sujeito, por exem-
plo, a localização das relações espécie-gênero ou gênero-espé-
cie, a descoberta de relações análogas. Para esse fim,
sugere-se ao sujeito o protótipo de uma relação que ele deve
transferir para outra relação dupla. Pode servir de exemplo:
cão — animal; rouxinol..........? pinheiro.......... ?
louça — prato; arma......... ? verdura.......... ?
ou relações mais complexas e mutáveis:
regimento — soldados; biblioteca — .......... ?
rua — praça; rio — ............?

117
O procedimento aqui descrito pode ser aplicado em duas
variantes. Numa delas, dá-se ao sujeito a oportunidade de
escolher por si mesmo a resposta incógnita; em outra, suge-
re-se-lhe escolher a resposta necessária entre três alternativas
pcssíveis, sendo que uma das palavras sugeridas encontra-se
com a incógnita nas relações necessárias (correspondentes à
tarefa), enquanto as outras duas se encontram em outras
relações. Se a relação lógica básica não for assimilada, a
escolha correta será substituída pela escolha de outra pala-
vra cue esteja em qualquer tipo de relação com a incónita.
Pode parecer à primeira vista que a variante, na qual
o próprio sujeito deve escolher a resposta necessária, requer
grandes esforços criativos e é mais difícil do que a segunda,
quando lhe é proposto escolher a solução entre várias alter-
nativas. Mas, em realidade, a última variante pode apresentar
dificuldades especiais porque nela o sujeito deve superar ou-
tras alternativas às vezes mais comuns e a relação lógica por
ele discriminada deve determinar com solidez especial toda
a busca posterior.
Podemos tomar como exemplo o processo de escolha
requerido pelas seguintes tarefas:

filho — pai; mãe (filha, irmã, avó)?


peixe — escama; gato (rato, dentes, lã)?
óculos — peixe; telefone (fone, voz, disco)?

Vê-se facilmente que a escolha de uma combinação mais


comum (por exemplo, “mãe-filha”, “gato-rato”, “telefone-
fone”) será um obstáculo para a correta solução da tarefa;
somente a superação desse nexo que eclode com maior pro-
babilidade e a total subordinação da procura à relação en-
contrada nas duas primeiras palavras podem assegurar a
solução correta da tarefa colocada.
Aproxima-se dessa metodologia a metodologia da ava-
liação do sentido dos provérbios, que permite verificar até
que ponto o sujeito tem condições de abstrair o significado
circunstancial imediato de um provérbio e discriminar seu
sentido interno.
Para este fim sugere-se ao sujeito um provérbio acompa-
nhado por três frases, duas das quais reproduzem palavras
do provérbio enquanto a terceira opera com um conteúdo
externo inteiramente distinto mas mantém o sentido interno

118
afim com o provérbio. О sujeito deve dizer qual das frases
tem o mesmo sentido que o provérbio. Podem servir de
exemplo tarefas como:
O ferreiro forjou do ferro quen-
Malhe o ferro enquanto te excelentes ferraduras,
está quente Na cooperativa agrícola resolve-
ram convidar um agrónomo ex-
periente.
Não se deve resolver uraa
tarefa quando se perde o interesse
por ela.
Vê-se facilmente que a impossibilidade de abstrair a si-
tuação direta referida no provérbio ou impossibilidade de
conservar o significado lógico dominante do provérbio e o
leve deslizamento para a proximidade circunstancial externa
leva à seleção de uma frase falsa e à solução inadequada da
tarefa.
Os procedimentos descritos permitem estabelecer algumas
premissas indispensáveis ao pensamento produtivo e podem
servir de bom método prévio para estudá-lo.
O estudo do próprio processo de pensamento produtivo
constitui dificuldades consideráveis justamente por apresentar
como mais típicos os casos em que se coloca diante do sujei-
to uma tarefa cuja solução não se dá segundo algoritmo pre-
viamente dado, mas requer procura independente das neces-
sárias hipóteses e de métodos adequados de solução.
A forma mais conveniente de estudo desse processo é a
minuciosa análise psicológica da solução de questões de
aritmética, que podem servir de modelo adequado de pen-
samento discursivo.
Dá-se ao sujeito uma série de tarefas segundo um grau
crescente de complexidade, começando por aquelas que têm
um único algoritmo de solução e terminando na solução de
tarefas que requerem uma minuciosa análise prévia da con-
dição, formulação de questões intermediárias, formação de
um esquema geral (estratégia) de solução e seleção das neces-
sárias operações (meios) de solução. É condição da aplica-
ção produtiva desse método a minuciosa análise psicológica
do processo de solução da tarefa com a descrição do caráter
dos erros cometidos e a discriminação dos fatores que dificul-
tam a solução correta.

119
Já citamos exemplos dos principais tipos de tarefas cuja
aplicação pode dar a maior informação para caracterizar o
processo de pensamento dos sujeitos, encerrando assim
o assunto.

Patologia do pensamento produtivo

As perturbações do processo de pensamento nos estados


de patologia cerebral podem ser resultado de um dos dois
fatores: falha da abstração e generalização e da mudança da
própria estrutura dos processos de pensamento (a esse tipo
de perturbação chamaremos convencionalmente de perturba-
ção estrutural) ou perturbação da orientação do pensamento,
pela dificuldade de reter a tarefa e inibir as operações pre-
maturas ou inadequadas que resultam da redução do con-
trole (a esse tipo de perturbação do pensamento chamaremos
convencionalmente de perturbação dinâmica).
Nos casos de retardamento mental ou demência orgâni-
ca, ambos os fatores podem unificar-se; nos casos de afecção
local do cérebro, eles podem manifestar-se isoladamente.
As perturbações do pensamento, que surgem nos casos
de atraso geral ou demência orgânica, manifestam-sc acima
de tudo no fato de os doentes não poderem criar um sistema
complexo de nexos lógico-verbais abstratos, que nesses doen-
tes são substituídos pelos nexos circunstanciais eficazes-
diretos.
Os doentes foram incapazes de executar operações de
classificação abstrata (“categórica”) dos objetos, substituindo
a referência dos objetos a uma categoria abstrata por uma
operação mais direta de inserção destes numa situação con-
creta geral; foram igualmente incapazes de realizar operações
lógicas que deles se exigiam nos testes com análise das rela-
ções lógicas ou análise do sentido dos provérbios.
Esses doentes substituem de fato os testes de localização
de analogias por operações de restabelecimento da situação
direta, na qual estão presentes os respectivos conceitos; por
isto os doentes sempre substituem a tarefa que exige deles
encontrar relações análogas no sistema: vaca — animal; ca-
pim — . . . ? por um raciocínio concreto do tipo: “a vaca,
animal que come capim, fe n o ...”; a tarefa de encontrar rela-

120
ção análoga no sistema: “filho-pai”; mãe (filha, irmã, avó)
eles substituem pelo raciocínio concreto análogo: “bem, o
pai tem um filho e este naturalmente deve ter mãe, pode
nem ter irm ã... quanto à avó, já está velhinha...”, etc. Di-
ficuldades análogas também surgem no teste de interpreta-
ção do sentido latente dos provérbios. A discriminação da
frase que tem o mesmo sentido latente é facilmente substi-
tuída pela discriminação da frase na qual figuram as mesmas
palavras ou цд qual se manifesta uma situação externa pró-
xima (por exemplo, para o provérbio mallie o ferro enquan-
to está quente escolhe-se sem hesitação a frase: “o ferreiro
forjou do ferro quente excelentes ferraduras”, ignorando-se a
frase de sentido aproximado porém diferente pelo conteúdo
externo concreto).
Outras peculiaridades distinguem as perturbações do pen-
samento produtivo nos casos de esquizofrenia. O material das
tarefas propostas, que normalmente tem significado determi-
nado e evoca com a máxima probabilidade nexos perfeita-
mente determinados, estabelecidos pela experiência anterior
do sujeito, nestes casos pode suscitar os nexos acessórios
mais imprevisíveis e a solução da tarefa lógica se toma ina-
cessível devido à igual probabilidade com que surgem quais-
quer nexos, assumindo o processo de associações o caráter
mais extravagante e freqiientemente inesperado. Assim, por
exemplo, o doente que recebe o provérbio “nem tudo o que
reluz é ouro” começa a “definir” o sentido da seguinte ma-
neira. “Aqui ocorre a desvalorização do ouro enquanto me-
tal, de unt ponto de vista filosófico. Talvez outro metal, não
tão desprezível quanto o ouro, reluz e traz maior proveito ao
homem. 0 raio de luz brilha ao cair sobre o vidro e isto
pode trazer proveito... E assim todos os feixes de ondas
dirigidas...”, etc. É natural que todas essas multifacéticas
associações, que eclodem com igual probabilidade, tomem o
processo de discriminação dos nexos seletivos e a solução
lógica do problema totalmente inacessíveis.
Entre os psicólogos soviéticos, В. V. Zeygamik e Yu.
F. Polyakov estudaram minuciosamente as formas de pertur-
bação do pensamento nos doentes mentais, razão pela qual
não nos deteremos pormenorizadamente nelas.
Para o estudo da estrutura do pensamento produtivo e
dos fatores que lhe servem de base reveste-se de grande e es-
pecial importância a análise das perturbações desse pensa-

121
mento, que podem manifestar-se nos casos de afecção local
do cérebro. Isto se deve ao fato de que as afecções locais
do cérebro, nas quais se destrói ora uma, ora outra parte do
aparelho cerebral, levam à eliminação de diversos fatores
indispensáveis ao pensamento e o processo de pensamento
produtivo começa a sofrer de diversos modos.
Via de regra, as afecções locais do cérebro nunca levam
à redução geral do nível de pensamento, que é observada
nos casos de atraso mental ou de formas grosseiras de demên-
cia orgânica; nesses doentes não se pode observar nem a
concreticidade do pensamento, que distingue os retardados
mentais ou doentes com demência orgânica, nem aquela eclo-
são de nexos “sem sentido”, aparentemente casuais, que 6
observada nos esquizofrénicos. Apesar da conservação das
premissas básicas, necessárias à atividade de pensar, nesses
doentes perturba-se de maneira patente o caráter do pensa-
mento produtivo, ocorrendo variação do tipo de perturbações
em casos diferentes.
Detenhamo-nos em algumas formas de perturbação do
pensamento produtivo nos casos de afecção local do cérebro,
discriminando os fatores que permitem melhor entender os
mecanismos do pensamento normal.
As afecções do lobo temporal esquerdo do cérebro não
provocam nem perturbações primárias da estrutura do pen-
samento, nem defeitos evidentes no seu caráter seletivo e
orientado a um fim. No entanto o desenvolvimento pleno dos
processos produtivos do pensamento sai acentuadamente per-
turbado nesses casos, devido principalmente às perturbações
da memória auditivo-verbal. O doente se orienta atentamente
nas condições da tarefa, pode discriminar facilmente a neces-
sária relação lógica mas quando a tarefa é constituída de
várias fases começa a experimentar dificuldades ditadas pela
sua incapacidade de reter na memória operativa as fases pas-
sadas; rompe-se facilmente o fio de operações lógicas e o
doente, que conservara plenamente uma atitude crítica face
à sua própria atividade intelectual, nega-se a resolver a tarefa,
embora conserve o sentido geral de toda a tarefa e as ope-
rações particulares.
Diferente é o caráter da perturbação do pensamento pro-
dutivo nas afecções da região lemporo-occipital esquerda. O
quadro que acabamos de descrever encontra afinidade no fato
de que, em tais afecções, a atividade intelectual não perde

122
o seu caráter consciente e as falhas se manifestam não tanto
na estratégia dos processos intelectuais, quanto na sua exe-
cução, por outras palavras, naquelas operações que foram
incluídas no ato de pensar.
Os doentes desse grupo retêm sólidamente a tarefa e
tentam, de maneira orientada para o fim, resolvê-la sem se
desviarem nem se abstraírem como influências secundárias.
No entanto a execucão da tarefa encontra imediatamente vi-
síveis dificuldades. Os doentes sentem dificuldades em assi-
milar a estrutura lógico-gramatical da condição, não conse-
guem apreender de imediato a necessária relação lógica, caem
em impasse ante a formulação gramatical do tipo “Sônia tem
duas vezes mais do que Kátia”, tentam angustiados confrontar
os elementos isolados da condição e encontrar o esquema
semântico geral de solução. O perceptível se torna “fragmen-
tário” para ele e o “discernimento das relações”, o surgi-
mento do “esquema de solução”, que na pessoa normal ocor-
re ¡mediatamente e se desenvolve sucessivamente numa série
de operações encadeadas, ora não lhe vem à mente, ora surge
na forma mais confusa e leva a novas dificuldades quando o
doente apela para a fase executiva do ato intelectual e tenta
incluir as operações auxiliares. Resulta dessas dificuldades
que todo o processo de solução das tarefas não vai além de
tentativas angustiantes de assimilar o processo de solução e
executar as necessárias operações e, apesar da conmleta cons-
cientização das dificuldades, não consegue concluir-se.
É inteiramente distinto o caráter das perturbações da
atividade intelectual nos casos de afecção dos lobos fron-
tais do cérebro.
Nestes casos, a execução de certas operações não encon-
tra quaisquer dificuldades. Os doentes conservam inteiramen-
te a capacidade de captar ¡mediatamente o significado das
relações lógico-gramaticais e não sentem qualquer dificuldade
para executar certas operações lógicas ou aritméticas. Sem
qualquer dificuldade eles podem discernir relações análogas
e não cometem nenhum erro na rápida avaliação de rela-
ções como gênero-espécie, espécie-gênero, etc.
No entanto, apesar da total integridade de certas opera-
ções lógicas, perturba-se profundamente toda a atividade inte-
lectual desses doentes.
A causa fundamental consiste em que, nesses doentes,
a questão básica colocada pela tarefa não é dominante nem

123
determina a ocorrência de todos os processos posteriores.
Por isto, após ler a condição da tarefa, os doentes que apre-
sentam afecção maciça dos lobos frontais do cérebro “esque-
cem" mais amiúde, de imediato, a pergunta a que deve sub-
meter-se todo o processo de solução da tarefa, não raro repe-
tem como pergunta um dos componentes dados na condição
(por exemplo, "Em duas estantes havia 18 livros, numa delas
havia duas vezes mais do que a outra. Quantos livros havia
em cada estante?” eles respondem: “Em duas estantes ha-
via 18 livros; numa delas havia duas vezes mais do que na ou-
tra. Quantos livros havia em cada estante?”) sem perceber
que a resposta a essa pergunta está na condição. Mesmo nos
casos em que a condição da tarefa é repetida pelo doente, ela
não o leva a um trabalho sistemático e orientado nas condi-
ções da tarefa e a tentar encontrar a “estratégia” adequada de
sua solução. É comum a base orientadora da atividade intelec-
tual desaparecer nesses doentes e eles começarem imediata-
mente a executar operações fragmentárias, não incluídas na
condição da tarefa e, por isto, carentes de sentido. Tais doen-
tes começam a “resolver” a tarefa que acabamos de formular
executando atos fragmentários do tipo “Em duas estantes
18 livros... logo, 2 X 1 8 = 3 6 ... duas vezes mais do que
na o u tra ... logo, 18 + 36 = 5 4 ... etc.; via de regra, não
respondem para que executam tais operações.
Em casos mais grosseiramente manifestos de afecção dos
lobos frontais do cérebro, o doente não consegue sequer reter
a condição da tarefa que lhe foi dada e a simples repetição
dessa condição começa a levá-lo a cair num emaranhado de
associações que eclodem desordenadamente, como, por exem-
plo: “Em duas estantes havia 18 livros... e em mais uma
havia mais 18 livros... os livros foram levados para en-
cadernação... e já não restaram tantos liv ro s...”, esquecen-
do completamente a questão fundamental que constituía a
essência da tarefa.
Semelhantes perturbações da dinâmica do processo inte-
lectual, que perde facilmente seu caráter consciente, perma-
necem em outras afecções menos manifestas dos lobos fron-
tais do cérebro; nestes casos, a separação de operações
isoladas da “estratégia” geral de solução da tarefa pode
manifestar-se em formas mais obliteradas e os doentes, após
a solução de uma tarefa, começam a reproduzir de maneira
estereotipada todo o processo da solução já encontrada nos

124\
casos em que a tarefa muda. Assim, depois da explicação de
que a tarefa acima apresentada é “dividida em partes” e que
a via de sua solução requer a localização das partes, os doen-
tes continuam aplicando o mesmo método de “divisão em
partes” quando a tarefa é substituída por outra, como, por
exemplo: “Em duas estantes havia 18 livros mas em uma
delas havia dois livros a menos do que na outra”. Essa subs-
tituição fácil da solução planejada da tarefa pela repetição
de um estereótipo, que surge de modo apático, leva à desin-
tegração dc fato da atividade intelectual, caracteriza os doen-
tes desse grupo e mostra claramente o papel que os lobos
frontais do cérebro desempenham no desenrolar das formas
complexas de pensamento.
A análise neuropsicológica da mudança do pensamento
nos casos de afecções locais do cérebro, realizada pelos psi-
cólogos soviéticos A. R. Luria. L. S. Tsvetkova e outros,
revela perspectivas novas e importantes para o estudo dos
mecanismos cerebrais dos complexos processos intelectuais.

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