Como você explica o golpe de Estado que depôs João Goulart em 1964?
Construa sua argumentação apoiando-se na bibliografia tratada nos Tópicos I e II.
Sua resposta deve indicar se se trata de uma análise conjuntural ou estrutural, se está ancorada na historiografia marxista ou na História Política, os conceitos e as evidências empíricas. Vinícius Passos Paulucci
R: O Golpe dado em 1964 é um dos temas mais debatidos dentro da historiografia
brasileira e um dos mais que mais se vê diversas disputas de narrativas. Segundo Badaró, há quatro ciclos de estudos que se dedicaram a essa temática. O primeiro vai até os anos 70. O segundo começa nos anos 80 com Dreifuss e uma leitura mais marxista do evento. A terceira se apresenta nos anos 90, com novas interpretações acerca do golpe. Em 2004 temos o quarto ciclo, onde vamos ter uma retomada das discussões da terceira, entretanto, com um discurso mais radicalizado. O primeiro ciclo de estudos referente ao Golpe de 64 tem início nos anos 70, principalmente com autores como o sociólogo Octávio Ianni, que defende a tese do “colapso do populismo”, entendido como base da dominação de classe e algo extremamente presente nos políticos durante muito tempo e ainda presente em alguns ligados a Vargas. O outro ponto defendido é o da “crise de acumulação de capital” que consistiu na perda de força estrutural da política de barganha com o eleitorado popular (presente principalmente nos governos Vargas), que acabou entrando em contradição com o que se entendia como importante para a acumulação de capital. O segundo ciclo tem início nos anos 80, principalmente com o cientista político e historiador Rene Dreifuss, que em sua obra clássica 1964 – A conquista do estado trás uma perspectiva estrutural do golpe, trazendo conceitos grascinianos e aprimorando-os, como o caso do conceito de elite orgânica, que segundo o autor, seria um conjunto articulado de empresários com consciência de classe, que buscaram investir na construção de seus projetos de poder. Uma das principais teses que Dreifus defende é a de que na verdade, não tivemos um Golpe Militar apenas, tivemos um Golpe Civil militar, visto que esses empresários são civis que contribuíram para a deposição de Jango. Essa contribuição veio principalmente com investimentos em instituições como IPES e IBAD, que repassava esse dinheiro para a confecção de propagandas, panfletos, livros, reportagens nos canais de TV, com um tom principalmente anticomunista e anti-populismo PSB’istas e PDT’istas, buscando fazer uma certa “doutrinação” das classes mais baixas. Segundo Dreifuss, o objetivo dessa doutrinação “era modelar as várias frações das classes dominantes e diferentes grupos sociais das classes médias em um movimento de opinião com objetivos a curto prazo amplamente compartilhados, qual seja, a destituição de João Goulart da presidência e a contenção da mobilização popular”. (DREIFUSS, 1981, p. 232). Para Dreifuss, o que houve na realidade, foi um golpe de classe, golpe dos capitalistas com a ajuda dos militares e imprensa. O que vemos nesses dois primeiros ciclos são estudos do golpe pela óptica estrutural, buscando compreender como o sistema capitalista e a classe empresarial tiveram um protagonismo no golpe, muito por conta dos dois principais autores desses primeiros ciclos (Ianni e Dreifuss) serem marxistas. As suas obras trazem uma perspectiva mais estrutural, principalmente a de Dreifuss, que busca explicar o golpe com uma justificativa perante a luta de classes e interesses dos capitalistas. Umas das principais criticas das próximas gerações será a de que Dreifuss deu como justificativa para o golpe uma mera “conspiração”. Contudo, nos anos 90 surgiram autores que passaram a ter uma interpretação diferente do Golpe de 64, especialmente com seu aniversário de 30 anos, que consistiu em dar um maior protagonismo aos atores que participaram do golpe diretamente, como o caso da pesquisa de Soares, que buscou estudar o período através de depoimentos de militares. Nesse estudo, Soares dá um maior protagonismo a ação dos militares e as usa motivações, não restringindo apenas aos interesses da classe econômica. Seguindo essa mesma linha do protagonismo dos atores, Figueiredo com sua obra Democracia ou reformas? busca oferecer uma leitura alternativa à de Dreifuss, opondo-se a sua tese, buscando contestar as análises anteriores a dela, que seriam “baseadas em explicações ‘estruturais’ (econômicas, mas também políticas — como a idéia de crise institucional) e, principalmente naquelas interpretações ‘intencionais’”. (BADARÓ, 2008, p. 250). Portanto, vemos que a partir daí começamos a ter um maior apreço pela história sob um aspecto mais conjuntural, buscando ações políticas, sociais e econômicas mais “concretas” e específicas. A tese defendida pela autora é a de que, nem a esquerda e nem a direita possuíam um apresso pela democracia. Para a autora, as atitudes destes atores políticos, principalmente, a do próprio Jango, ao adotarem um tom mais radicalizado, limitaram a possibilidade de realização de reformas dentro do limite institucional e democrático. Figueiredo foi uma das principais criticas ao trabalho de Dreifuss, pois para ela, o autor toma a mera existência de uma “conspiração” como condição suficiente para o sucesso do golpe político. Segundo Badaró “A novidade de Democracia ou reformas estava em que agora a responsabilidade pelo golpe era atribuída tanto aos que o deram quanto às forças que defendiam as reformas e foram atingidas por ele”. (BADARÓ, 2008, p. 250- 251) Em 2004, com o aniversário de 40 anos do golpe, tivemos uma releitura dessa interpretação, e segundo Badaró, acabaram sendo mais radicalizadas ainda, como por exemplo a obra de Elio Gaspari, que nega qualquer tipo de motivação econômico-social e de conspiração articulada, atribuindo o golpe as especificidades e individualidades dos personagens como Jango, buscando nos mostrar que o golpe teve a intenção de defender a ordem constitucional. Gaspari ainda não só concorda com a falta de democracia entre direita e esquerda, mas radicaliza esse pensamento, nos dizendo que havia dois golpes em marcha. Além disso, para Ferreira, “o momento era de radicalização, mas o povo assistiu a tudo bestializado”. (BADARÓ, 2008, p. 251) Segundo Melo e Hoeveler (2014), esse “revisionismo histórico” começado nos anos 90 e que perpassaram e ainda estão presentes até os dias atuais, acabaram sendo usados pelos apreciadores do regime militar como uma legitimação do golpe, mesmo que não fosse a intenção destes autores. Vemos atualmente (especialmente a partir de 2006) diversas pesquisas em relação ao golpe com análises mais compactuadas com a História Política Renovada, influenciada principalmente por historiadores franceses com Rene Remond, que buscava uma maior interdisciplinaridade dentro dessa nova história política. Segundo Badaró, em relação a temática do golpe, atualmente temos três abordagens principais dentro da História Política Renovada: a abordagem biográfica, a discussão sobre a memória e a apresentação dos testemunhos de época sobre Goulart e seu governo. Temos trabalhos sobre a memória das pessoas em relação ao governo de João Goulart, como por exemplo a obra João Goulart: entre a memória e a história de Marieta de Moraes Ferreira. Temos ainda Mário Grynzpan que discute de forma muito densa a questão agrária e seus reflexos na política a partir dos anos 60. Com todo esse denso material historiográfico sobre o Golpe de 1964, foi possível ter uma ideia de como esse é um tema extremamente delicado para a historiografia brasileira e como cada interpretação tem a ver com o momento político vivido no país. Sem dúvidas, é possível ver como a crítica feita pelos Annales a História Política tradicional teve um reflexo gigantesco dentro da própria historiografia do golpe de 64, principalmente a partir dos anos 90. Vemos essas criticas principalmente na obra de Argelina Figueiredo, que critica Dreifuss (Marxista) pela sua análise “estruturalizante” e “conspiratória”. Infelizmente, esse impacto acabou sendo por um lado extremamente negativo, pois as direitas passaram a usar o discurso radicalizado por autores depois dos anos 2000, para legitimar o Golpe de 64. Ao mesmo tempo, os historiadores mais extremistas apontavam o dedo a esses autores, chamando-os de meros revisionistas. Dessa forma, vendo todo esse debate, vejo que a melhor forma de se explicar o golpe militar de 64 é por uma perspectiva da História Política Renovada, com um olhar às especificidades de cada região, por meio de uma análise de conjuntura, principalmente através da micro história, com o estudo das mentalidades tanto dos civis que apoiavam o golpe, quanto dos militares que também o apoiaram, buscando através de uma maneira crítica, estudar a memória dessas pessoas e o que os motivou a apoiar o golpe, fazendo uma análise do que era transmitido nas mídias, tendo como base obras como a do Dreifuss, que mesmo se tratando de um aspecto mais estrutural, tem uma contribuição enorme com a historiografia. Hoje em dia se vê pouquíssimos trabalhos que buscam entender os militares da época, como se o tema fosse um tabu dentro da historiografia pelo fato de (acho eu) ficarem com receio de serem apontados como a “favor do golpe” (ou algo do gênero), por simplesmente tentar estudar melhor como foi que esses militares chegaram a ter esse pensamento golpista. O próprio Badaró nos diz que “sente-se - a falta de um nexo maior entre tal análise política e a história social daquele período” (BADARÓ, 2008, p. 261), ou seja, há um campo ainda a ser explorado por essa nova leva de historiadores que estão se formando. Atualmente é possível ver o quanto esse revisionismo dos anos 2000, reacendeu a chama da direita em relação à temática do golpe e do regime militar em si, principalmente vendo que temos um documentário presente gratuitamente no Youtube no canal do Brasil Paralelo com o nome de 1964 – Brasil entre armas e livros, que mesmo sendo extremamente revisionista e que dissemina desinformação em relação ao golpe, está com mais de oito milhões de visualizações na plataforma. Os historiadores não podem se omitir da maneira que estão se omitindo. REFERÊNCIAS:
MATTOS, Marcelo Badaró. O governo João Goulart: novos rumos da produção
historiográfica. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 28, n. 55, p. 245-263, 2008.
DREIFUSS, René. A Conquista do Estado. Ação Política e Golpe de Classe.
Petrópolis: Editora Vozes, 1981.
MELO, D. B.; HOEVELER, R. C. . Muito além da conspiração: uma reavaliação
crítica da obra de René Dreifuss. Tempos Históricos (EDUNIOESTE), v. 18, p. 13-43, 2014.
SILVA, E. P. . A história política renovada: novas possibilidades de pesquisa. Revista