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Trabalho apresentado no 4º Período, 2011.

1, d o Curso de Graduação
em História pela Universidade Federal de Campina Grande, Campus de
Cajazeiras, em forma de seminário na disciplina de Moderna I ministrada
pelo Professor Dr. Rodrigo Ceballos.
Everaldo Vieira de Oliveira

O Público e o Particular
Nicole CASTAN

Havia no final da Idade Média para o início do Período Moderno uma


interpenetração dos espaços públicos e privados, embora houvesse um ardente desejo de
separá-los. De um lado a vida totalmente pública dos grandes e do outro a vida quase
que totalmente privada dos simples trabalhadores e burgueses. Dessa forma são as
funções na sociedade e a redefinição dos papéis quem vão definir as posições e os
lugares dos indivíduos dentro de uma sociedade em mudança, saindo do feudalismo
para capitalismo mercantil provocando muitas transformações tanto na sociedade como
nas mentalidades dos indivíduos.

A porta e a janela, locais de


observação privilegiados,
assinalam a fronteira do espaço
reservado ao interior familiar,
mas aberto para a rua, campo
intermediário semiprivatizado
para as necessidades das tarefas
cotidianas. A ssim, é um local de
encontros, de trocas de notícias e
de comentários. (Jacobus Vrel,
Esquina urbana. Amsterdam,
Coleção particular.)

A FAMÍLIA DOMESTICADA
A família deveria ser o lugar do refúgio, da independência, no entanto, torna-se
um lugar de dominação, de divisão disciplinada das tarefas por meio da figura
autoritária do chefe de família. Desde a infância existe uma busca constante pela boa
aparência, valorizando o que se parece ser. Não se trata mais de uma liberdade pura,

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mas vigiada, onde a preocupação com os olhares externos são constantes. Para Nicole
Castan ³sem dúvida, é preciso conhecer a arte da dissimulação´.
A família ainda não é o lugar do afeto, nela são moldadas as imagens, não é o
que realmente é, mas o que parece ser. Os espaços públicos eram mais agradáveis que o
espaço particular da família.
A mulher desenvolve a função estritamente de doméstica não lhe sendo
permitida nenhuma função exterior ou pública, somente os afazeres do lar. A Igreja lhe
impõe a imagem da perfeição, a necessidade da boa reputação, de fiel companheira que
cuida dos seus para gerar, alimentar, criar e assistir, com pouquíssimos reconhecimentos
e gratificações por parte dos maridos. Tinha por única função a de servir, mas isso
voluntariamente. Serva e senhora, sempre cuidadosa nos afazeres e na educação dos
filhos se encontram submetida a uma subordinação rigorosa do chefe da família.
Encontra a liberdade no direito de escolher as criadas, estabelecendo com elas laços de
amizade tão intensos que chegam a ser incorporadas como membros da família pela
cumplicidade que se estabelece. Embora a administração da casa seja de sua
competência não está incluída a parte financeira, esta é exclusiva do homem. O que lhe
sobra são alguns poucos recursos adquiridos com a venda no mercado dos produtos do
seu quintal. Isso pode ser o suficiente para lhe garantir a compra de roupas e algumas
pequenas transações com as amigas que compõe o seu circulo de amizade. Embora as
mulheres, sobretudo as mais pobres, não tenham participação ativa na sociedade
mercantil e nas decisões exclusivas dos homens, estas desenvolvem no âmbito
comunitário algumas relações de amizade e serviço na vizinhança do bairro onde
moram e também entre seus parentes. Os pequenos e desconfortáveis espaços de
moradia, insuficientes, sem estrutura, as fazem reunir-se nos lavadouros, nas fontes e
nos moinhos. Aí se confundem o público e o privado, nos longos momentos de
conversas trazem à tona os acontecimentos do privado. São lugares que promovem a
construção de relacionamentos, através de gestos de amizade que excedem os limites da
privatização doméstica e representam as fronteiras móveis estabelecidas entre o público
e o particular. Esses vínculos se tornam muitas vezes mais fortes do que as duras regras
de sujeição a que elas são submetidas no lar.
A Igreja tem forte representação na família, pois é dela que surgem os modelos
paternalistas. Suas festas e celebrações acolhem as mulheres especialmente as moças,
pois se constituem em oportunidades de encontros com os jovens com quem desejam
casar, sempre rodeadas de muito cuidado e dos olhares protetores dos pais. O casamento
é o destino desejado para as filhas que por sua vez serão submetidas a continuidade das
regras de conduta familiar, compensadas pela religião e pelas tarefas domésticas, que
lhes permite o acesso legítimo e sem condenações da sociedade aos encontros públicos.
Vimos na introdução desse texto que tanto a Reforma Protestante como a
Contra-Reforma Católica criam novas possibilidades de vivência. Isso se aplica também
no campo da vida privada feminina, levando-as a viver mais intensamente a religião
cristã através de novos modelos de devoção e religiosidade. A oportunidade de estar,
ainda que por dois ou três anos, no convento abrem para as moças novas perspectivas.
Amizades são construídas fora do contexto familiar, muitas delas tão sólidas que
resistem por décadas, como também criam oportunidades de isolamento para a leitura,
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as reflexões e os diálogos que vão além do hábito tradicional das mulheres desse
período. Essas novas possibilidades representam continuidade por não romper com os
costumes impostos às mulheres, mas também representam rupturas quando cria novos
modelos de vida e leitura do mundo através da busca da intimidade e da liberdade para a
reflexão.
Nesta nova sociedade as mulheres mantêm seu estilo de vida como servas do lar,
zelosas pela privacidade familiar, mas são ao mesmo tempo responsáveis por um
conjunto de informações que regulam a vidas dos indivíduos. Essas informações correm
entre elas através das conversas nos lavadouros e das janelas das casas alcançando a
sociedade. O que alguém fizer de errado, ou pelo menos almejar fazê-lo terá grande
repercussão quando absorvido pelas mulheres, isso funciona como um elemento
controlador da sociedade. Nada passa despercebida entre elas, desde os segredos do lar
até a aproximação entre jovens com interesses conjugais. São capazes de estimular a
opinião pública revelando o escândalo privado e o romper do silêncio.

Um mundo feminino não recluso, mas


aberto para o exterior; por necessidade
e porque se destinam exclusivamente à
mulher, forno, lavadouro, lojas lhe
A ³
pertencem
donas dee sócasa
a ela...cria
li o ecoro´ das
destrói
reputações, espalha rumores; mas a
taberna, sede da sociabilidade
masculina, lhes é praticamente
interdita, pelo menos nas províncias
meridionais. (Jean-Honoré Fragonard,
As cascatinhas de Tivoli . Paris, Louvre.
E Jovem à fonte. Coleção particular.)

UMA REDEFINIÇÃO DOS PAPÉIS

O que o autor Nicole Castan apresenta como ³Uma redefinição dos papéis´
refere-se a crise da consciência européia, quando surge uma nova visão do mundo e a
concepção da vida ganha outras interpretações graças aos grandes acontecimentos que
marcam o época denominada deRenascimento. Neste período existe uma valorização
do homem enquanto ser racional, artístico e cultural, exaltando e dando novas
dimensões aos valores humanos que busca explicação para todas as coisas por meio da
razão e da ciência, recusando acreditar em algo que não tenha sido provado. Com o
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surgimento do Estado Moderno na segunda metade do século XV, a partir do
desenvolvimento do capitalismo mercantil, o qual não permite que sua autoridade
dependa de nenhuma outra autoridade, fazendo com que os representantes da Igreja
deixem de exclusivos na influência sobre a comunidade.

³Dentro de uma visão marxista o Estado Moderno fundamenta-se na existência


de uma sociedade de classe onde os interesses são antagônicos, o que inviabiliza a
realização do bem comum e a neutralização do Estado. Segundo esse enfoque, o Estado
é uma instituição política controlada por uma classe social dominante, e que
representa, o predomínio dos interesses dessa classe sobre o conjunto da sociedade,
embora estes se apresentem como interesses universais, de toda sociedade.
O absolutismo surge como a primeira forma de Estado moderno.A formação
dos Estados absolutistas não teve o mesmo percurso em todos os países europeus, e
nem ocorreu de forma tranqüila. Fortes conflitos entre países, entre burguesia e
aristocracia, entre católicos e protestantes, entre camponeses e senhores e entre Estado
e sociedade civil marcaram a constituição do mundo capitalista. Mas em pouco tempo
quase toda a Europa era absolutista, a França é apontada como a nação que vivenciou
em sua forma mais plena.
Enquanto isso o Estado Liberal apresenta-se como desdobramento lógico da
separação entre o publico e o privado ou pessoal.A revolução da burguesia
transformou radicalmente a sociedade feudal na Europa, exigindo uma nova forma de
Estado, que rompeu com a ordem hierárquica das corporações, dos laços sanguíneos e
dos privilégios e criou uma estrutura de poder político capaz de manter e ampliar suas
conquistas. Em 1787 foi aprovada a primeira constituição liberal, que tinha como
princípios à liberdade, a igualdade e a fraternidade, lema da Revolução Francesa de
1789.´1

Antes de Marly, o
Trianon foi para o rei um
refúgio relativo, mas
rigidamente fechado. A
princípio era uma casa onde
se tomavam as refeições;
depois foi ampliado para
que o soberano e seus
convidados pudessem ficar
ali por breves períodos.
(Paris, Biblioteca Nacional.)

Como afirma Philippe Ariés, o Estado e sua justiça vão interferir com maior
frequência no espaço social que antes estava entregue às comunidades. Neste sentido,

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http://mundodasociologia.blogspot .com/2010/05 /como -surgiu- o-estado- mode-rno-o-e stado.html
- Disponível 22.05.2011

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dois aspectos se instauram, de um lado o Estado, sobretudo os absolutistas, tende a
ampliar seu domínio estando mais presente no cotidiano das pessoas, controlando o
comportamento e acompanhando os movimentos e acontecimentos, cobrando mais
impostos, reprimindo a violência, fazendo uso de seu aparelho para regular a vida
cotidiana; e do outro lado as pessoas esclarecidas desejam participar mais ativamente da
vida pública, ao mesmo tempo em que passam a encontrar na família e nos lugares
privados refúgio para as tensões externas, passando a valorizar mais efetivamente seus
espaços para reflexão e leitura, graças também ao desenvolvimento da alfabetização e a
difusão da leitura. O individual e o particular ganham mais relevância. Criam-se,
portanto, espaços distintos. O espaço público, da comunidade, dos encontros diários
para os cafés, das conversas, exposição de idéias, das tabernas, das praças como lugares
de sociabilidade, onde as pessoas se encontram, se informam e constroem amizades,
buscando sempre defender suas posições sociais. O espaço familiar constitui-se num
lugar mais reservado, numa pequena sociedade, destinado a acolher os amigos mais
próximos, para tratar dos assuntos que não interessam a todas as pessoas, é na verdade o
lugar do privado da ³pequena nobreza´.
A privatização evidencia-se através do conhecimento e da prática de novos usos
e costumes da vida social, da experiência da vida e do convívio com as outras pessoas.
Surgem novas atitudes com relação ao próprio corpo e ao corpo do outro. Criam-se
regras de pudor, de comportamento e de vestimentas. O gosto pelo isolamento e por se
conhecer através da escrita e desfrutar dos artigos redigidos. O gosto pelos momentos
de solidão que era por vezes compartilhada apenas num círculo bem pequeno de
pessoas, geralmente amigos, parentes ou vizinhos. Todas essas transformações
materializam-se nas construções e divisões das casas, onde esses espaços serão
representados pelos cômodos cujas finalidades são previamente definidas e vão fornecer
suas próprias localizações, dimensões e decorações, visando delimitar o espaço do
indivíduo, do grupo e da família.

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