Você está na página 1de 58

psicologia-social-cap.

3 7/27/12 9:21 AM Page 99

CAPÍTULO III

Atribuição Causal e Inferência de


disposições no Mundo Social

Mário B. Ferreira, Leonel Garcia-Marques, Margarida V. Garrido e Rita Jerónimo

Introdução causas dos acontecimentos, e perceber, inferir e


representar as cadeias de factores que resultam
Os capítulos dos manuais científicos são nos acontecimentos que observam. Mas os
como livros de banda desenhada. Em ambos, percepientes sociais são como um amigo de
alguns heróis com poderes especiais ou únicos adolescência de um dos presentes autores que
tentam desvendar pistas e ultrapassar obstáculos reduzia tudo a imperiais. X euros? Humm, isso
mentais, físicos ou tecnológicos temíveis, para dá N imperiais... Ou seja para avaliar o
salvar a comunidade a que pertencem de perigos desconhecido, tinha de o reduzir a uma unidade
vários (muitas vezes, perigos morais). Em que conhecia – a imperial. Os percepientes
ambos os casos, os respectivos heróis atingem sociais fazem o mesmo, perante a complexi-
os seus objectivos, nem sempre sendo recom- dade e a obscuridade das possíveis causas,
pensados mas, pelo menos mantendo vivo o reduzem-nas ao tipo de causas que melhor
interesse pelos próximos episódios. conhecem – eles próprios. De facto, segundo
O nosso capítulo também vai ser construído Heider (1944), os percepientes sociais tomam-se
em redor de um herói, uma espécie de Sherlock a si próprios e às outras pessoas como modelos
Holmes do quotidiano, de seu nome, Fritz de todas as causas, imbuindo, muitas vezes, as
Heider, mas temos uma vantagem em relação causas físicas naturais de intencionalidade e
aos capítulos de outros manuais científicos – o personalidade. Para corroborar as ideias de
nosso herói é capaz de fornecer a razão pela Heider, basta pensar nos furacões que são
qual os capítulos científicos são escritos à volta apelidados com nomes de mulher (Katrina,
de heróis e das suas narrativas. Carol, Edna, etc.) ou nos átomos electro-
De facto, Heider defendia, como veremos nicamente instáveis ou radioactivos que são
em maior detalhe mais adiante, que os perce- conhecidos por átomos infelizes (ver, por
pientes sociais não são meros observadores ou exemplo, Livingstone, 1996) ou na máxima
actores passivos que registam e/ou reagem às corrente entre os programadores: “Por favor, não
vicissitudes do quotidiano; os percepientes antropomorfizem os computadores, eles detes-
esforçam-se por obter significados, conhecer as tam que façam isso.”
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 100

100

Não espanta assim, que os capítulos de pessoas e inferências de traço de personalidade


manuais científicos se assemelhem a banda que é discutida na segunda parte. Assim, na
desenhada. Quando temos de explicar algo parte sobre Inferência de Traços de Personali-
complexo, obscuro e difuso, reduzimo-lo ao que dade iremos para além da contribuição de
melhor conhecemos – as acções humanas. Mas Heider, incluindo tópicos como os novos
as acções humanas são, para nós, telenovelas. modelos de Inferência desenvolvidos por Daniel
Assim, as histórias da ciência que nos fascinam Gilbert, e exploraremos com algum pormenor
estão cheias de episódios rocambolescos. Por uma nova área de investigação referente a
exemplo, rezam as crónicas que Évariste Galois Inferências Espontâneas de Traços. Com base
só não conseguiu concluir a demonstração da na integração destes avanços teóricos mais
sua Teoria dos Grupos porque depois de passar recentes terminaremos o capítulo fornecendo
a noite a tentar concluí-la, teve de interromper não uma mas várias possíveis explicações para o
essa demonstração para participar num duelo erro fundamental de atribuição.
em que se finou. Charles Darwin quis fazer uma
viagem à América do Sul (no Beagle) antes de
ser tornar um pastor-naturalista da Igreja Angli- 1. Atribuição Causal
cana e acabou por se tornar num dos principais
alvos a abater pela igreja que ele queria servir. 1.1. Heider e a Causa das Coisas...
Niels Bohr sonhou com o sistema solar e esse
sonho veio a inspirar o seu modelo atómico, etc. Heider nasceu em Viena e passou grande
Mas lá iremos, por enquanto, comecemos parte da infância e adolescência em Gräz.
por avisar o leitor do que pode encontrar ao Heider interessou-se pelas artes e pela filosofia,
longo deste capítulo. O capítulo vai ser dividido mas o seu pai queria que ele seguisse uma
em duas partes: (1) Atribuição Causal e (2) Infe- carreira mais responsável. Chegaram a um
rência de Traços de Personalidade. consenso, Heider estudaria aquilo que quisesse
A parte sobre Atribuição Causal deriva em durante 5 anos mas depois teria de dedicar-se a
grande medida do trabalho de Fritz Heider. Nela uma actividade respeitável (agricultura ou
revemos os modelos clássicos de Atribuição negócios). Assim foi, Heider estudou o que quis
desenvolvidos sobretudo por Harold Kelley, durante cinco anos, passando pelas univer-
Bernard Weiner e Edward Jones. Esta primeira sidades de Innesbruck, de Munique e de Gräz.
parte termina com a discussão de um dos Frequentou cadeiras de Medicina, Zoologia,
resultados mais enigmáticos da investigação em História de Arte e Filosofia. Estudou Psicologia
atribuição causal e percepção social que é o erro com Karl e Charlotte Bühler e com Alexius
fundamental de atribuição causal (Ross, 1977) Meinong, tendo como colegas (também estu-
também conhecido por enviesamento corres- dantes de Meinong, Christian von Ehrenfels e
pondente (Jones e Harris, 1967). A incapaci- Vittorio Benussi, dois dos fundadores da
dade dos modelos clássicos de atribuição Psicologia Gestalt). Mas depois dos cinco anos
(sobretudo o de Jones e Davis) de explicar este de estudos, dedicou-se a criar porcos na quinta
fenómeno psicológico foi um dos desenca- da família e nunca mais ninguém, no mundo das
deadores da investigação em percepção de ideias ouviu falar de Heider. Isto foi o que
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 101

101

poderia ter acontecido e, por um triz, não obra de Heider (ver também, Frieze e Bar-Tal,
aconteceu. Na verdade, Heider foi logo con- 1979; Shaver, 1985). São eles:
vidado para uma posição no governo local como
a) Só através da análise sistemática das
orientador vocacional e foi isso que o salvou
formas como o homem comum descreve
para nós (Malle e Ickes, 2000).
e percebe o mundo social é possível
Mas o percurso de Heider na Psicologia
aspirar à compreensão da sua psicologia.
continuou tão tortuoso como antes. Na primeira
b) O homem comum é motivado pelo desejo
apresentação pública dos seus trabalhos, em
de predizer e controlar o seu ambiente.
Gräz, no ano de 1921, Heider defendeu que a
c) A percepção do mundo social é construída
psicologia científica deveria fundamentar-se no
pelos mesmos processos que subjazem à
senso comum ou também chamada de psico-
percepção do mundo físico.
logia ingénua ou leiga. O mínimo que se pode
d) A causalidade pessoal é o protótipo de
dizer é que a assistência, composta de inves-
todas as causas.
tigadores sedentos de obter credibilidade
e) A distinção entre causas pessoais e
científica para a Psicologia, não reagiu bem. E a
situacionais é fundamental para a percep-
cena repetiu-se outras vezes, nomeadamente em
ção social.
Harvard, nos anos quarenta, numa conferência
f) Os conceitos da psicologia do homem
que contava com a presença de eminentes
comum traduzem padrões complexos de
psicólogos como Gordon Allport, Jerome
interacção entre as causas pessoais e
Bruner e Roger Barker (Harvey, Ickes, e Kidd,
situacionais.
1976). Assim, os primeiros trabalhos do autor
sobre a causalidade fenomenológica em 1944 Iremos discutir a contribuição de Heider com
(Heider e Simmel, 1944; ver também, Heider, base nestes seis pressupostos. Nas próximas
1965) foram praticamente ignorados e Heider secções, debruçar-nos-emos sobre cada um deles
nunca conseguiu um lugar permanente numa em detalhe.
universidade americana. Foi apenas com o livro
“The Psychology of Interpersonal Relations” Só através da análise sistemática das formas
que o trabalho de Heider (Heider, 1958) ganhou como o homem comum descreve e percebe o
impacto; e mesmo assim, só após alguns anos mundo social é possível aspirar à compreensão
(Jones e Davis,1965; Kelley,1967). da sua psicologia

“O conhecimento “intuitivo” pode ser


1.2. A Percepção Social segundo Heider bastante penetrante e levar-nos bastante longe
na compreensão do comportamento humano,
Garcia-Marques e Garcia-Marques (2003)1 enquanto que nas ciências físicas, o senso-comum
identificaram seis pressupostos fundamentais na é relativamente primitivo. Se erradicássemos do

1
As secções relativas a Heider e Jones e Davis são parcialmente baseadas em Garcia-Marques e Garcia-Marques
(2003).
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 102

102

nosso mundo todo o conhecimento físico, não em si próprio. Este objectivo pode ser alcançado
só passaríamos a não dispor de carros, televisões se o homem comum for capaz de identificar os
e bombas atómicas, mas poderíamos até seus antecedentes causais. A dificuldade básica
descobrir que o homem comum seria incapaz de consiste em discernir de entre todas as causas
lidar com problemas mecânicos fundamentais potenciais possíveis, as verdadeiramente respon-
de roldanas e alavancas. Por outro lado, se sáveis pelo comportamento a explicar. Ou seja, o
removêssemos do nosso mundo, todos os homem comum tem de ser capaz de separar as
conhecimentos da ciência psicológica, os causas que sistematicamente promovem os
problemas de relações pessoais continuariam a comportamentos que pretendemos prever das
ser enfrentados e resolvidos de modo bastante condições acessórias e inconstantes que acompa-
idêntico ao que o eram antes. O homem comum nham, mas de forma intermitente, esses mesmos
continuaria a “saber” furtar-se a ter de fazer o comportamentos. Segundo Heider (1958, p. 297)
que é requerido dele e como fazer os outros “a base para esta análise é frequentemente uma
concordar consigo; ele continuaria a “saber” série de observações que possam fornecer
detectar quando alguém estava zangado e informação sobre os acontecimentos e as
quando alguém estava satisfeito. Ele poderia até
identidades disposicionais e que tornem possí-
oferecer explicações sensatas sobre os “porquês”
vel o isolamento de causas naturalmente
de muito do seu comportamento e muitos dos seus
associadas, de certa maneira análoga aos
sentimentos. Noutras palavras, o homem comum
métodos experimentais”. O homem comum
possui uma vasta e profunda compreensão de si
comporta-se assim como um cientista. Heider
próprio e dos outros que, embora não articulada
chega, aliás, a comparar essa análise causal com
ou apenas vagamente concebida, lhe permite
uma Analise Factorial implícita (Heider, 1958,
interagir com os outros de formas mais ou menos
p. 66) ou com o Método das Diferenças de John
adaptadas.” (Heider, 1958, p. 2).
Stuart Mill (Heider, 1958, p. 68). Este
E como o conhecimento psicológico intui-
tivo do homem comum guia grande parte da princípio depois apelidado por Kelley (1973)
interacção com o mundo que o rodeia, pouco como Princípio da Covariação é já enunciado
entenderemos das acções humanas, dos seus por Heider da seguinte forma: “[...] o padrão de
objectivos e das representações que lhe subja- dados que é fundamental na determinação da
zem, sem um análise profunda dos conhe- atribuição, nomeadamente: a condição que será
cimentos que os fundamentam. Tal era a tese de considerada responsável pela ocorrência de um
Heider (1944; 1958). efeito, será aquela que está presente quando o
efeito está presente e ausente quando o efeito
está ausente” (Heider, 1958, p. 152).
O homem comum é motivado pelo desejo de
Foi assim introduzida a analogia do homem
predizer e controlar o seu ambiente
comum com um cientista, analogia que iria
Heider (1944, 1958) defendia que o homem inspirar os desenvolvimentos posteriores das
comum pretende antecipar os efeitos que o seu Teorias de Atribuição Causal (ver por exemplo
comportamento e o comportamento dos outros Jones, Kanouse, Kelley, Nisbett, Valins, e
terão nas outras pessoas, no contexto social e Weiner, 1971).
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 103

103

A percepção do mundo social é construída sonoras, etc.), quer dizer, os meios que
pelos mesmos processos que subjazem à possibilitam a recepção da informação percep-
percepção do mundo físico tiva nos órgãos sensoriais periféricos. É nesse
ponto do processo que encontramos o estímulo
Em ambos os casos, os indivíduos procuram proximal (por exemplo, a imagem retiniana).
identificar as propriedades invariantes mais Seguidamente dá-se a codificação neuronal
relevantes dos objectos ou dos contextos sociais (formando-se uma imagem neuronal corres-
e físicos. Em ambos os casos, torna-se funda- pondente) e a consequente construção cognitiva
mental a distinção entre o produto da percepção do estímulo – originando-se finalmente o
e processo perceptivo, distinção que é fenome- percepto final. Segundo Heider, não existe uma
nologicamente inacessível. A Figura 1 (adaptada correspondência total entre o estímulo distal e o
de Shaver, 1976) representa os elementos essen- percepto final na medida em que as limitações
ciais desse processo perceptivo na perspectiva perceptivas humanas exigem uma simplificação
de Heider. do estímulo e a aprendizagem anterior tem de
Segundo Heider, o primeiro elemento a suprir essas limitações e contribuir significa-
considerar no processo perceptivo é o estímulo; tivamente para o percepto final (ver por
o termo distal chama a atenção para o facto de exemplo, Neisser, 1976).
os objectos da percepção não serem directa- Este encadeamento de processos perceptivos
mente acessíveis ao percepiente. O segundo básicos seria assim comum à percepção de
elemento é a Mediação; no caso da percepção de objectos físicos e sociais. Heider (1958) defende
objectos físicos, o termo refere-se aos referentes que os processos perceptivos de objectos físicos
físicos da percepção (ondas luminosas, ondas e de objectos sociais partilham dois aspectos

FIGURA 1

O processo perceptivo segundo Heider (adaptado de Shaver, 1976)

Estímulo Proximal Imagem Neuronal

Estímulo Distal Percepto Final

Mediação Processos
Construtivos
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 104

104

críticos. O primeiro é o da identificação de inferimos “aquele homem é melancólico” não


invariantes que permite a constância perceptiva. pensamos “tenho-o visto várias vezes com os
O segundo é o da inconsciência por parte do cantos dos lábios repuxados para baixo e as
percepiente dos mediadores e processos cons- sobrancelhas franzidas; por outro lado, as vezes
trutivos que ocorrem durante a percepção de que eu o vi a rir à gargalhada estava a ver
objectos físicos e sociais. programas cómicos; por isso ele é triste, embora
tal não se verifique em certos momentos,
A constância perceptiva. Na percepção do
quando as circunstâncias o justificam”.
mundo físico, o tamanho, forma e cor de um
Neste caso, o invariante é o traço de
objecto percepcionado a diferentes distâncias,
personalidade “tristeza” e a mediação vai desde
ângulos e luminosidades mantêm-se constantes
a forma como nos apercebemos dos compor-
– apesar das diferenças que se registam na
tamentos desse homem e dos contextos desses
imagem retiniana. Segundo Heider (1958), a
comportamentos até às inferências por nós
constância perceptiva dos objectos físicos só é
realizadas.
atingida através da atribuição da variabilidade
Estas semelhanças básicas dos processos
às circunstâncias da mediação e da invariância à
perceptivos dos objectos sociais e físicos não
essência do objecto. Mas esta busca de
fazem esquecer a Heider (1958) no entanto, as
invariantes não é exclusiva da percepção dos
diferenças mais importantes entre as duas
objectos físicos e, pelo contrário, subjaz também
classes de processos: Enquanto que a mediação,
à percepção dos objectos sociais. A inferência
no caso da percepção dos objectos físicos, não
de um traço de personalidade em outrém
depende directamente desses objectos, o contrá-
realiza-se, também, através da atribuição da
rio se passa com os objectos sociais. Os objectos
variabilidade do seu comportamento a circuns-
não-sociais não são capazes de encenar a forma
tâncias transitórias e dos aspectos invariantes à
como são percepcionados, mas os objectos
sua personalidade. Daí que Heider (1958)
sociais (por exemplo, as pessoas), são grandes
redefinisse a percepção como “todas as formas
“encenadores de imagem e de competências”
que nós temos de conhecer o meio ambiente,
(Goffman, 1959).
desde a percepção directa até a inferência
Decorrente da consideração anterior, no caso
explícita”(p. 27).
da percepção dos objectos sociais verificam-se
Inconsciência da mediação. Do ponto de menos mediações sinónimas e mais mediações
vista do percepiente, este “sente” directamente o ambíguas. O primeiro tipo de mediação veri-
estímulo, ignorando assim todos os processos de fica-se quando uma acção reflecte inequivo-
mediação. De facto, quando nos aproximamos camente uma disposição. Nesse caso, a acção
de uma cadeira, vemo-la de tamanho constante, seria “sinónima” da disposição. O segundo
não nos damos conta dos processos subjacentes refere-se a possibilidade de diferentes disposi-
que permitem que os invariantes estruturais ções poderem manifestar-se de formas idên-
sejam atribuídos à essência do objecto, ticas. Essa menor correspondência entre o
enquanto que os aspectos mutáveis (distância, “fenótipo” (comportamento dos objectos sociais)
perspectiva, luminosidade, etc.) são atribuídos e os seus “genótipos” (disposições) tornaria a
ao nosso movimento. Do mesmo modo, quando percepção social mais complexa e menos
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 105

105

precisa relativamente à percepção de objectos diferença actor – observador (para uma reaná-
físicos. Heider (1944; 1958) acreditava, por lise mais recente ver Watson, 1982), e foi a essa
isso, que a percepção social é menos “válida”, mesma tendência que Ross (1977) designou
quer dizer, existe uma menor correlação entre as como “erro atribucional fundamental” e Jones
invariâncias do mundo extra-percepiente e (1979) como “enviesamento correspondente”.
aquelas construídas por este. Mais adiante discutiremos estes conceitos.

A causalidade pessoal é o protótipo de todas


A distinção entre causas pessoais e situacionais
as causas
é fundamental para a percepção social
Heider (1944) considerava que a causalidade
Heider (1944, 1958) considera fundamental
pessoal era o protótipo ou modelo de todas as
para o percepiente, a distinção entre causalidade
causas. No mundo social em que vivemos, a
pessoal e causalidade impessoal (ou situacio-
explicação leiga dos acontecimentos passa mais
nal), referindo-se a primeira à produção
por achar agentes do que causas. E o actor e as
intencional de acções ou efeitos e sendo a
suas acções formam uma unidade mais forte do segunda o seu complementar (daí que a produ-
ponto de vista perceptivo do que as acções e a ção acidental de um efeito por um actor poder
situação que em estas ocorrem. Como afirmou ser considerada impessoal ou situacional).
Heider na sua célebre formulação (1944, p. A causalidade pessoal distingue-se da
361): “As mudanças verificadas no ambiente impessoal, segundo o autor, por duas proprieda-
são quase sempre causadas por acções de des distintas: equifinalidade e produção local.
pessoas em associação com outros factores. Mas A Figura 2 (adaptada de Heider, 1958) ilustra
a tendência é para imputar essas mudanças estas propriedades.
inteiramente às pessoas.” A mesma ideia Na Figura 2, percebem-se bem as diferenças
reaparece noutra não menos célebre formulação entre causalidade pessoal e impessoal. A causa-
(Heider, 1958, p. 54): “Parece que o lidade pessoal é equifinal porque adapta os
comportamento [...] tem propriedades tão meios em função das circunstâncias para pro-
salientes que tende mais a engolir o campo do duzir o efeito desejado. Os meios mudam para
que a confinar-se à sua legítima posição como que o efeito se mantenha constante. A causa é
estímulo local, cuja interpretação requer dados local porque a mudança das circunstâncias não
adicionais do campo circundante – a situação alterará o efeito (só uma mudança no locus ou
em percepção social”. Quer dizer, utilizando os na origem, isto é na causa, levará à mudança do
termos anteriormente introduzidos, os per- efeito). A causalidade impessoal é multifinal, a
cepientes tendem a tomar as acções como mesma causa leva a efeitos diferentes em
“sinónimas” da disposição do actor. É esta pois diferentes circunstâncias e não tem produção
a principal causa da já referida frequente falta de local, a mudança das circunstâncias levará à
“validade” na percepção dos objectos sociais. mudança dos efeitos. Tomemos como exemplo,
Da constatação desta “tendência”, retiraram os incêndios numa dada região. Se forem devidos
Jones e Nisbett (1971) a sua célebre hipótese da a causas naturais (impessoais) vão depender de
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 106

106

FIGURA 2
A causa impessoal Ci, nas circunstâncias c1, c2, e c3, provoca respectivamente os efeitos
e1, e2 ou e3 (todos efeitos diferentes). A causa pessoal Cp, nas circunstâncias c1,c2, e c3,
através dos meios m1, m2, e m3 provoca sempre o mesmo efeito (equifinalidade e produção local)
(adaptado de Heider, 1958).

certas condições (a humidade dos combustíveis equifinal e local e causalidade impessoal,


potenciais como caruma, ramos secos, árvores e multifinal e distribuída.
arbustos mortos, a presença de pedaços de De notar que Heider (1958, p. 112) descreve
quartzo ou cacos de vidros em forma de lente, circunstâncias em que as acções aparentemente
etc.) e poderão ser grandemente evitados (com a não intencionais de um actor são atribuídas
limpeza das matas e remoção dos lixos, etc.). pessoalmente ao actor, inferindo-se intenções
A prevenção de fogos com origem intencional inconscientes, desde que essas acções pareçam
(pessoal) só é eficaz se agir não sobre as possuir as características da causalidade pessoal.
condições concretas mas sim sobre o que motiva A distinção entre causas pessoais e impes-
o incendiário (por exemplo, se o incendiário for soais (situacionais) veio a constituir o funda-
motivado por certo tipo de razões económicas, a mento dos modelos atribucionais mais impor-
proibição da venda de madeira queimada ou tantes como, por exemplo, os de Kelley (1967) e
proveniente de regiões fortemente atingidas Weiner (1974).
pelos incêndios pode ser uma solução). Quer
dizer, agir sobre condições concretas não produz Os conceitos da psicologia do homem
resultados quando a causalidade possui comum traduzem padrões complexos de
equifinalidade – se as intenções incendiárias interacção entre as causas pessoais e
persistem, adequar-se-ão os meios à produção situacionais
do efeito desejado. Só uma acção sobre a
origem da causa (o motivo do incendiário) Como já referimos Heider, pressupõe a
poderá resultar quando a causalidade é local. Tais necessidade de previsão e de controlo do meio-
são as diferenças entre causalidade pessoal, -ambiente, como motivações básicas do homem
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 107

107

comum. Para os alcançar o homem comum tem, assim, de discriminar basicamente entre o
procura as características estáveis desse meio- que é, numa dada categoria de compor-
-ambiente, ou seja, procura as disposições. tamentos, atribuível ao meio e o que é atri-
“As propriedades disposicionais são os inva- buível à pessoa que exibe esse comportamento
riantes que tornam possível um mundo mais ou (Heider,1958). E o autor parte para uma análise
menos estável, previsível e controlável. Refe- do vocabulário do senso comum, descrevendo o
rem-se aos processos e estruturas relativamente cálculo inferencial possível de ser realizado
estáveis que caracterizam ou subjazem aos através do conjunto de relações entre alguns
fenómenos” (Heider, 1958, p. 80). É importante conceitos da psicologia “ingénua” (ou do senso
recordar que a descrição, feita por Heider, da comum).
análise ingénua da acção, pretende sistematizar Os conceitos usados nesta análise (Heider,
a perspectiva do homem comum. Ora, neste 1958, Cap. IV) foram “Trying” (Tentar),
processo de procura de disposições, é frequente “Ability” (Capacidade), “Task Difficulty”
que o homem se afaste do observável em (Dificuldade da tarefa), “Intention” (Intenção),
benefício do inferido. “Exertion” (Esforço), “Can” (Conseguir) e
O homem comum seria, então, para Heider, “Action” (Acção). Estes foram os conceitos
como um cientista, mas um cientista de um tipo cujas relações sistematizadas permitiriam
particular – um que, ao que parece, entende segundo Heider, discriminar, entre os dois
explicação como identificação de invariantes do conjuntos essenciais de causas ou disposições: a
comportamento humano. O homem comum força pessoal e a força situacional.

FIGURA 3
Os componentes das forças pessoal e situacional que subjazem às acções de acordo
com uma análise ingénua (adaptado a partir de Heider, 1958; Shaver, 1975
e Garcia-Marques e Garcia-Marques, 2003).

FORÇ A PESSOA L FORÇ A SITUA CIONA L

Tent ar Capacida de Dificuldade


(Mo tivação) (Comp etência ou Poder)
Sorte
da Tarefa

Intenção Esfo rço Conseguir

Acção (Des empenho)


psicologia-social-cap.3 7/27/12 2:48 PM Page 108

108

Um exemplo ajudará a melhor compreender deveria prevalecer sobre a dificuldade da tarefa),


esta rede conceptual: então terá sido uma questão de o estagiário nem
ter tentado? Não tentou porque não se esforçou
Um Chef prova o soufflé de um cozinheiro- o suficiente? O que e que o Chef observou
-estagiário. O soufflé está péssimo. O estagiário durante a realização do soufflé? Ou será que o
falhou totalmente na consistência do delicado estagiário não tinha a intenção de fazer um bom
prato. Como explicar este fracasso? Dessa soufflé? Teria alguma razão para isso? Será que
explicação vai depender o que o Chef irá fazer. o seu sonho era dedicar-se exclusivamente à
Será que o estagiário nem tentou ou não doçaria?
conseguiu? Se ele nem tentou, quer isso dizer Deste exemplo, podemos concluir que para a
que não tinha a intenção de fazer um bom realização da tarefa (acção) é necessário o
soufflé, ou quer isso dizer que não se esforçou o Tentar e o Conseguir. Que o Conseguir é o resul-
suficiente? Se o estagiário não conseguiu, isso tado de dois componentes estáveis das Forças
foi porque fazer soufflé é muito difícil para um Pessoal e Situacional, respectivamente a Capa-
estagiário ou porque ele não tem a capacidade cidade e a Dificuldade da Tarefa. Que Tentar
necessária? Ou será que este infeliz soufflé se possui dois componentes: a Intenção (que é o
deve apenas a falta de sorte? aspecto direccional do Tentar) e o Esforço (que
Se o Chef quiser saber se pediu algo é o seu aspecto quantitativo).
demasiadamente difícil (dificuldade da tarefa) É de notar ainda que, a ocorrência de um
a um estagiário, pode sempre pedir aos outros dado Desempenho ou Acção quando a Força
estagiários que tentem fazer um soufflé. Se a Situacional é adversa implica automatica-
maioria se sair bem – então a razão de ser do mente a inferência de maior Capacidade e ou
fracasso do estagiário não se pode ficar a dever de Motivação. Quando a Acção ou Desem-
à dificuldade de fazer soufflés. (Isto é uma penho esperado não ocorre, o problema atribu-
aplicação do Método das diferenças de John cional é maior já que é necessário situar esse
Stuart Mill: “o método afirma que a causa de resultado no componente motivacional (o actor
uma diferença reside na condição variante e nem Tentou) ou em Capacidade insuficiente.
não nas condições comuns a diversas ins- Segundo Heider (1958), estes casos de opo-
tâncias”, Heider, 1958, p. 68). Neste exemplo, sição de forças situacionais a forças pessoais
a diferença é a consistência mais ou menos são tão frequentes que normalmente se veri-
variável dos soufflés e a condição comum a fica uma relação hidráulica entre estas forças
essa diferença é a dificuldade em fazer os (quanto maior a presença de uma das forças na
soufflés atingir o ponto ideal – por isso a causa produção de uma Acção ou Desempenho,
não pode residir nessa condição). E será que o menor a outra). Aliás para estabelecer de
estagiário tinha capacidade? O Chef poderá forma mais concreta essa relação hidráulica,
usar os seus conhecimentos de desempenhos Heider (1958, pp. 112-113, ver Caixa 1) defi-
culinários anteriores desse estagiário para o niu níveis crescentes de responsabilidade
saber (utilizando, por exemplo, o Método das pessoal na produção de efeito (com o corres-
Diferenças). E se não foi uma questão de não pondente decréscimo da responsabilidade
conseguir (porque a capacidade do estagiário situacional).
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 109

109

CAIXA 1

Os níveis de atribuição da responsabilidade (na nomenclatura de Shaw e Sulzer, 1964)

*Associação
Uma pessoa é responsabilizada por um acontecimento através de uma mera associação com a causa.
Por exemplo, os pacientes com Hipertricose Lanuginosa Congénita são temidos e perseguidos por
terem um crescimento patológico de pêlo por todo o corpo e por assim se tornarem um pouco mais
semelhantes aos lobos (mas não muito...). Essa doença poderá ter contribuído para o aparecimento do
mito da licantropia (o mito dos lobisomens) um pouco por todo o mundo.
*Produção Efectiva
Neste nível o actor é responsabilizado por ter sido o agente instrumental do efeito a explicar.
Exemplo: um homem não repara nos óculos de um colega e senta-se em cima deles.
*Antecipação das consequências
A este nível o actor é responsabilizado, não só por ter sido o agente instrumental do efeito a explicar,
mas também, por poder ter antecipado as consequências das suas acções. Exemplo: um trabalhador
entra com um escadote numa loja de cristais.
*Intencionalidade
O actor pretendeu realmente produzir o efeito a explicar. De acordo com Heider é este o ponto onde
começa a causalidade pessoal. Exemplo: um homem aproxima-se de um automóvel da polícia, pega
numa chave-de-fendas e risca a pintura.
*Justificação
A este nível, apesar do actor ter pretendido causar o efeito a explicar, a sua intenção justifica-se por
pressões situacionais. Exemplo: o mesmo do nível anterior, só que bandidos tinham como refém o filho
do homem e exigiam-lhe aquela manobra de diversão, enquanto eles assaltavam um banco. A este nível
a causalidade pessoal diminui.

Pela consideração dos níveis de atribuição da “A capacidade é também atribuída à pessoa


responsabilidade se vê que Heider não toma mas não no mesmo sentido que a motivação.
causalidade impessoal e pessoal como cate- [...] As pessoas são responsabilizadas pelas suas
gorias discretas, mas sim como formando um intenções e seus esforços, mas são-no menos
contínuo. De notar que, para Heider a inten- estritamente responsabilizadas pelas suas
cionalidade é o critério mais importante para a capacidades.”
sinonomia das acções e disposições humanas.
Tal critério como veremos vai ser central em 1.3. Heider e sua contribuição para a literatura
modelos de inferências de traço como o Jones e em inferências de traço: Epílogo
Davis (1965). É, no entanto, duvidoso que a
intencionalidade seja realmente necessária para A contribuição de Heider (1958) para a
inferir muitos traços de personalidade que literatura da inferência de traços de persona-
envolvam competência. Como afirma Heider lidade e outras disposições na cognição social é
(1958, p. 112): fundamental. Poderíamos talvez responsabilizá-lo
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 110

110

por algumas confusões conceptuais existentes Um dos aspectos que interessou Kelley foi o
na literatura mas, apenas, por associação (ver das explicações que o homem comum produzia
Garcia-Marques e Garcia-Marques, 2003). Na para dar conta das vicissitudes do quotidiano.
maior parte dos casos, como veremos tais con- Kelley não acreditava que o homem comum
fusões deveram-se a interpretações duvidosas fosse um observador desinteressado – pelo
da sua obra. contrário, Kelley acreditava que a causalidade
humana era final, e que o comportamento
humano era determinado pelas suas conse-
1.4. A Idade dos Porquês em Psicologia Social I quências (Kelley e Stahelski, 1970). E quais
poderiam ser as consequências desejáveis da
O Modelo de Kelley produção de explicações? Aqui, seguindo
Heider, Kelley acreditava que as explicações
Não foi por ter trabalhado na Aviação Militar retractavam a busca de invariantes e que a
dos EUA que Harold Kelley estava destinado a identificação de invariantes era essencial para o
altos voos. Foi talvez por nanos gigantum homem comum poder prever as consequências
humeris insidentes (isto é, por se ter erguido do seu comportamento e do comportamento dos
sobre os ombros de gigantes). De facto, Kelley outros e assim, optar pelas alternativas compor-
estudou com Dorwin Cartwright e Kurt Lewin tamentais que produzissem efeitos mais
no Centro para Investigação em Dinâmica de favoráveis (Kelley, 1967).
Grupos no Massachusetts Institute of Techno- Claro que o problema de selecção causal é
logy (MIT), trabalhou com Leon Festinger na um dos principais problemas das explicações:
Universidade de Michigan, com Carl Hovland e quando um efeito a explicar ocorre, como eleger
Irwin Janis na Universidade de Yale e final-
entre as inúmeras potenciais causas aquela que
mente com John Thibaut na Universidade de
foi verdadeiramente eficiente? Aqui Kelley
Minnesota. (Para se perceber melhor a que
(1973) inspirou-se no Método das Diferenças de
altura é que estavam os ombros a que nos
John Stuart Mill (1886): “O Efeito é atribuído
referimos basta consultar os outros capítulos
àquela das suas causas possíveis com a qual
deste manual). Claro que existiram outros
co-varia ao longo do tempo”, designando este
factores – o carácter cumulativo da ciência faz
com que todos comecemos ou devêssemos princípio por Princípio da Co-variação. Quer
começar a voar a partir dos ombros de gigantes, dizer, aquela condição que está presente quando
e nem todos voam à mesma altura... (como o o efeito está presente e ausente quando o efeito
leitor perceberá mais à frente, este argumento está ausente. Por exemplo, se o dono de um
baseia-se na utilização do critério de Consenso restaurante nota que em certos dias, desaparece
do Modelo de Kelley). Mas Kelley teve a pro- dinheiro da caixa, uma forma de identificar o
jectá-lo para o êxito a simplicidade das ideias culpado é verificar que existe algum empregado
auto-sustentáveis, quer dizer, ideias que podem ou cozinheiro cujos dias de trabalho coincidem
ser imediatamente adoptadas a partir de uma com dias em que se verificaram desfalques e
engenhosa capitalização dos recursos inte- cujos dias de folga coincidem com os dias que
lectuais disponíveis (uma espécie, de bricolage se não verificaram desfalques. Esta seria uma
intelectual). aplicação do Princípio da Co-variação, seria
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 111

111

eleito como culpado (causa) o empregado ou Pessoa (P) face ao mesmo Estímulo (E)
cozinheiro de entre todos os empregados ou em diferentes circunstâncias. Se o com-
cozinheiros que estejam presentes nos dias em portamento não varia diz-se de alta con-
que o efeito (o desfalque) se verifica e ausentes sistência se varia de baixa consistência.
no dias em que o efeito se não verifica.
Kelley defende que para um grande número Uma vez expostas as dimensões informativas
de problemas de atribuição causal do dia-a-dia, que o atribuidor utiliza, resta explicar como é
as três causas potenciais são: a pessoa, o estí- combinada essa informação para a identificação
mulo e a circunstância, e o efeito é um com- de uma causa. Kelley (1967, 1973; Orvis,
portamento humano. Cada uma das causas Cunningham e Kelley, 1975) foi gradualmente
potenciais referidas define uma dimensão identificando os padrões que correspondiam às
informativa, a que o atribuidor leigo irá recor- condições que levavam o homem comum a
rer, planeando observações ou sumariando atribuir um efeito a cada uma das causas
observações já realizadas. Consoante os resul- potenciais e das suas combinações. Em parte,
tados verificados, cada dimensão informativa fê-lo a partir da aplicação sistemática do
pode assumir a modalidade alta ou baixa. Princípio da Co-variação, mas recorreu também
Assim: aos resultados empíricos obtidos por McArthur
(1972) e os dois critérios nem sempre coincidi-
* A Pessoa (P) define uma dimensão cha- ram (para uma discussão detalhada, ver Gar-
mada Consenso que se constitui pela cia-Marques, 1988). Em prol da simplicidade
observação do modo como outras pessoas de exposição e a exemplo do que fizeram os
se comportam face ao mesmo Estímulo seguidores de Kelley (Fosterling, 1989; 1992;
(E) em iguais Circunstâncias (C). Se as Jaspars e Hewstone, 1983; Novick e Cheng,
outras pessoas exibem o mesmo com- 1990) vamos centrar-nos na aplicação sistemá-
portamento, diz-se desse comportamento tica do Princípio da Co-variação. A ideia básica
que possui alto consenso; se o contrário se é a de que uma causa potencial de um efeito só
passa diz-se do comportamento que será a sua causa efectiva se estiver presente
possui baixo consenso. sempre que o efeito ocorre e ausente sempre
* O Estímulo (E) define a dimensão que o efeito não ocorre. Os Quadros I e II vão
Distintividade que consiste no resultado ajudar-nos a compreender essa aplicação.
das comparações que se realizam entre o O Quadro I descreve as dimensões infor-
comportamento de uma Pessoa (P), nas mativas e respectivas modalidades alta ou baixa,
mesmas Circunstâncias (C) face a dife- obtidas pela verificação da ocorrência ou não
rentes estímulos. Se o comportamento é ocorrência do efeito em função da observação
idêntico diz-se de baixa distintividade, se de condições em que apenas uma das três causas
varia diz-se de alta distintividade. potenciais está ausente (estando as outras
presentes). No Quadro II são apresentados os
* A Circunstância (C) define a dimensão padrões informativos (quer dizer, a combinação
Consistência que se preenche através da específica das modalidades das dimensões)
observação do comportamento da mesma subjacentes à atribuição a uma das causas
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 112

112

QUADRO I

As dimensões informativas e suas modalidades segundo o Modelo de Kelley.


Como exemplo, o padrão atribuicional subjacente à atribuição à pessoa está a negrito.
O padrão corresponde aos casos em que quando a pessoa está ausente,
o efeito não ocorre e quando a pessoa está presente o efeito ocorre.

Modalidade da Dimensão
Causas Possíveis Efeito Atribucional focal
Pessoa Estímulo Circunstância
Ausente Presente Presente Ocorre Alto Consenso
Ausente Presente Presente Não Ocorre Baixo Consenso
Presente Ausente Presente Ocorre Baixa Distintividade
Presente Ausente Presente Não Ocorre Alta Distintividade
Presente Presente Ausente Ocorre Alta Consistência
Presente Presente Ausente Não Ocorre Baixa Consistência

Nota. As dimensões informativas são definidas por comparações em que se faz variar uma das causas potenciais,
mantendo-se constantes as outras causas.

potenciais ou das suas combinações. O Quadro II Por exemplo, a combinação Pessoa & Estímulo
é facilmente construída a partir do Quadro I, está presente na dimensão de Consistência
basta seleccionar as modalidades que corres- (porque estão ambas as causas potenciais
pondem à concomitância da presença da causa presentes e ausente nas dimensões Consenso e
(ou combinação de causas) e da ocorrência do Distintividade porque a Pessoa está ausente na
efeito, e da concomitância da ausência da causa primeira e o Estímulo ausente na segunda).
(ou combinação de causas) e da não ocorrência Um exemplo, agora usando a nomenclatura
do efeito. Por exemplo, se quisermos identificar de Kelley, ajudar-nos-á a explicar melhor o fun-
o padrão informativo correspondente à atribui- cionamento do Modelo de Kelley.
ção à Pessoa (a negrito no Quadro I) temos que Um dado político (P), face a um jornalista
seleccionar a modalidade que corresponde à não (E) numa entrevista televisiva (C) têm um mau
ocorrência do efeito na dimensão em que a desempenho. Se quisermos explicar esse mau
Pessoa está ausente (isto é, Baixo Consenso) e desempenho, teremos que coligir mais informa-
as modalidades que correspondem à ocorrência ção. Por exemplo, que tal é o desempenho de
do efeito nas dimensões em que a Pessoa está outros políticos com o mesmo jornalista em
presente (isto é, Baixa Distintividade e Alta entrevistas de televisão? (a Dimensão informa-
Consistência). No caso das combinações de tiva de Consenso). Se na maior parte dos casos
causas, considera-se que basta uma das causas tiver sido bom, então o mau desempenho terá
estar ausente para a combinação estar ausente. baixo consenso, se tiver sido igualmente mau,
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 113

113

QUADRO II

Os padrões informativos correspondentes às causas potenciais seleccionadas


segundo o Princípio da Co-variação

Consenso Distintividade Consistência Causa(s) Seleccionada(s)


Baixo Consenso Baixa Distintividade Alta Consistência Pessoa (P)
Alto Consenso Alta Distintividade Alta Consistência Estímulo (E)
Alto Consenso Baixa Distintividade Baixa Consistência Circunstância (C) 2
Baixo Consenso Alta Distintividade Alta Consistência P&E
Baixo Consenso Baixa Distintividade Baixa Consistência P&C
Alto Consenso Alta Distintividade Baixa Consistência E&C
Baixo Consenso Alta Distintividade Baixa Consistência P&E&C

Nota. A(s) causa(s) seleccionada(s) é (ou são) aquela(s) que está (estão) presente(s) quando o efeito ocorre, e
ausente quando o efeito não ocorre (ver Tabela 1).

então o mau desempenho terá alto consenso. vista de televisão (C) foi mau. Se, por exemplo, o
E que tal é o desempenho desse político com desempenho de outros políticos face ao mesmo
outros jornalistas em entrevistas de televisão? (a jornalista em entrevistas de televisão foi
Dimensão informativa de Distintividade). Se na geralmente bom (baixo consenso), se o desem-
maior parte dos casos tiver sido bom, então o penho do mesmo político face a outros
mau desempenho terá alta distintividade, se tiver jornalistas em entrevistas de televisão foi
sido igualmente mau, então o mau desempenho geralmente mau (baixa distintividade) e se,
terá baixa distintividade. E que tal é o desem- finalmente, o mesmo político face ao mesmo
penho desse político com esse jornalista em jornalista em entrevistas de rádio ou nos jornais
entrevistas da rádio ou nos jornais? (a Dimensão foi igualmente mau (alta consistência), então
informativa de Consistência). Se na maior podemos inferir que o que causou o mau desem-
parte dos casos tiver sido bom, então o mau penho está localizado no político (por exemplo, o
desempenho terá baixa consistência, se tiver sido político é incompetente) e pouco terá a ver com o
igualmente mau, então o mau desempenho terá jornalista específico ou com entrevistas de
alta consistência. Resumindo, o desempenho do televisão. Outros padrões informativos deveriam
político (P) com um jornalista (E) numa entre- levar a diferentes inferências.

2
Orvis, Cunningham e Kelley (1975) identificaram um padrão subjacente à atribuição às Circunstâncias diferente do
aqui exposto. A discrepância deve-se ao recurso a um resultado empírico obtido por McArthur (1972), inconsistente com
o princípio da co-variação. Tal resultado pode ter sido devido a ambiguidade nas instruções fornecidas aos participantes
(ver Jaspars e Hewstone, 1983). Aqui preferimos uma aplicação sistemática do princípio da co-variação (para uma
discussão detalhada desta questão, ver Garcia-Marques, 1988), semelhante à realizada pelos seguidores de Kelley
(Fosterling, 1989; 1992; Jaspars e Hewstone, 1983; Novick e Cheng, 1990).
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 114

114

Note-se que o modelo de Kelley se dedica padrão de atribuição à Circunstância (ver o


sobretudo a descrever o processo inferencial que Quadro II, três primeiras linhas e a nota 1).
leva o atribuidor leigo a localizar a origem de Quer dizer, tendo informação incompleta,
um efeito (o chamado locus da causa), não em relativa a uma ou duas dimensões, o atribuidor,
descrever a natureza da causa. Por exemplo, o verifica se ela é coincidente com um dos
mesmo padrão informativo serviria também padrões essenciais – se for, faz a atribuição
para atribuir diferentes disposições a esse correspondente a esse padrão; se for coincidente
mesmo político (falta de inteligência, timidez, com mais do que um dos padrões, faz uma
excessiva franqueza, etc.), mas o modelo de atribuição em que combina as causas subjacen-
Kelley diz apenas respeito à determinação do tes a esses padrões; o mesmo acontece, se a
locus causal (nos pontos seguintes, serão coincidência for apenas parcial com mais do
discutidos modelos que têm a preocupação que um dos padrões essenciais.
complementar). No início da discussão da contribuição de
Um problema evidente com que se depara o Kelley, referimos que parte do seu grande êxito
modelo de Kelley é a habitual pobreza infor- se deveria à capitalização eficiente dos recursos
macional do atribuidor leigo. Quer dizer, só em intelectuais disponíveis. Uma capitalização
condições muito favoráveis, é que podemos eficiente de recursos é frequentemente o recurso
esperar que o atribuidor leigo possua infor- à metáfora, sobretudo quando aquilo que se
mação de consenso, distintividade e consistên- tenta compreender é comparado com algo que
cia de uma ocorrência que pretende explicar. conhecemos bem. Por exemplo, quando nos
Como funcionará o processo atribucional nos dizem que na vida como no futebol, o talento
casos em que tais condições não se verificam. não é tudo, ficamos a pensar que compreen-
Segundo Orvis e colaboradores (1975), os demos melhor a vida só porque achamos que
padrões de atribuição ao Estímulo, Pessoa ou percebemos de futebol. Kelley recorreu a uma
Circunstância são facilmente reconhecíveis estratégia parecida, comparou o processo
pelo atribuidor comum. Mais do que isso: atribucional com uma Análise de Variância
segundo os autores, estes padrões poderiam ser (ANOVA). Ora essa metáfora foi facilmente
usados como referência e seriam utilizados para assimilável, visto que a Análise de Variância
inferir informação ausente. Por exemplo, (ANOVA) era uma autêntica “disciplina afim”
segundo Orvis e colaboradores (1975), se da psicologia científica para os psicólogos
apenas a informação acerca de Consenso (por sociais dos anos 60 e 70 (Rucci e Tweney,
exemplo, baixo Consenso) e de Distintividade 1980). Ora apesar de ninguém saber exacta-
(alta Distintividade) estivesse disponível, o mente o que era a atribuição, toda os psicólogos
atribuidor deveria realizar uma atribuição sociais sabiam o que era a ANOVA. Assim, os
Pessoa e/ou Estímulo porque a informação psicólogos sociais aderiram prontamente à
disponível é parcialmente coincidente com o ideia, tornando-se a atribuição causal o domínio
padrão informativo de atribuição à Pessoa (na mais investigado da psicologia social dessa
dimensão de Consenso) e com o padrão de altura (Kelley e Michela, 1980). É contudo,
atribuição ao Estímulo (na dimensão de Dis- curioso, pensar que tal analogia, uma das
tintividade) e nada correspondente com ao principais forças do abordagem de Kelley, não é
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 115

115

de forma alguma necessária ao modelo (para Kelley começou a perder força nos anos 80 e 90.
uma crítica desta analogia ver, Jaspars e Porquê? Recomendamos ao leitor curiosos, a
Hewstone, 1983; Fosterling, 1990; Garcia- leitura da Caixa 2.
-Marques, 1988) e que Kelley se só lembrou Na verdade, o modelo de Kelley não foi
desta metáfora depois do texto de 1967 estar no propriamente invalidado, simplesmente passou
prelo e que depois se arrependeu de a usar, de moda... falaremos mais à frente de um outro
como conta o próprio Kelley (Harvey, Ickes, e modelo, contemporâneo de Kelley, esse sim
Kidd, 1978). Essa é também a razão porque pre- invalidado mas que não passou de moda (quer
ferimos centrarmo-nos nos aspectos essenciais e dizer, continua a influenciar o pensamento con-
evitar essa (poderosa) mas infeliz metáfora. temporâneo) – o modelo de Jones e Davis. Mas
Mas assim como surgiu nos anos 60 e se para já passemos a outro modelo mais centrado
tornou dominante nos anos 70, o Modelo de nas atribuições que fazemos relativamente às

CAIXA 2

Os níveis de atribuição da responsabilidade (na nomenclatura de Shaw e Sulzer, 1964)

As 3 razões para a perda de momentum do Modelo de Kelley


* A metáfora atribuição-ANOVA e as restantes ambiguidades teóricas do modelo de Kelley. Como
referimos anteriormente, Kelley, apesar de enunciar o Princípio da Co-variação, nunca o aplicou
sistematicamente, optando antes por uma justaposição de diferentes princípios, pela generalização de
resultados empíricos discutíveis e, por último, pela adopção apressada de uma metáfora com a técnica
estatística de Análise de Variância. Tal falta de clareza feriu seriamente o desenvolvimento do modelo
(ver Garcia-Marques, 1988).
* A excessiva extensão das aplicações do modelo. O modelo de Kelley tornou-se a norma em quase
todos os domínios da psicologia social e de disciplinas afins. Assim, apareceram aplicações à
persuasão, ao altruísmo, à influência social, às emoções, aos estereótipos, etc. Cedo porém, se começou
a questionar (e.g., Langer, 1978) a hegemonia dos processos atribucionais num mundo social complexo
como o nosso, demasiado exigentes quer em termos informativos, quer em termos de recursos
cognitivos que supostamente requerem. A actividade atribucional espontânea passou assim a ser tida
como ocorrência relativamente rara na interacção social (Weiner, 1985).
* O descrédito das explicações baseadas em processos deliberativos e a emergência da Cognição
Social. No final dos anos 70 começaram a surgir dados e teorias que punham radicalmente em causa a
relevância dos processos deliberativos na explicação do comportamento humano, dando muito mais
ênfase ao papel explicativo dos processos cognitivos, inconscientes e automáticos (Nisbett e Wilson,
1977; Bargh, 1984). Tal movimento que se tornou grandemente dominante nos nossos dias é
dificilmente compatível com as explicações Kelleyanas baseadas em processos deliberativos exigentes
em termos de tempo e recursos cognitivos.
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 116

116

causas dos nossos sucessos e fracassos e nas com locus de controlo interno pode ainda ser
consequências motivacionais e emocionais controlável (e.g., esforço que resolvo investir na
destas atribuições. Trata-se do modelo atribu- preparação para um exame) ou não controlável
cional de Weiner. (e.g., aptidão intelectual). Por outro lado, uma
causa externa poder ser controlável (e.g.,
dificuldade de uma tarefa) ou não controlável
1.5. A Idade dos Porquês em Psicologia (e.g., sorte). Mas com três dimensões não se
Social II: O Modelo de Weiner fica por aqui porque a resultante da sua
combinação aumenta naturalmente para oito os
Como vimos, Heider (1958) introduziu uma principais tipos de atribuições causais que
importante distinção entre atribuições causais tendemos a realizar (ver Quadro III).
internas e externas do comportamento humano,
uma dimensão a que normalmente se chama
Locus de controlo
locus de controlo. O seja aquilo que controla (ou
explica) o comportamento pode ser localizado De forma geral, a dimensão “locus de
internamente (e.g., capacidade intelectual) e/ou controlo” é a mais importante nas atribuições
externamente (e.g., dificuldade de um teste). causais que fazemos do comportamento
Para além disto, a análise de Heider sobre (Anderson, 1991). A forma como reagimos ao
raciocínio causal identifica ainda uma segunda sucesso ou fracasso de alguém depende em
dimensão: estabilidade das causas. Assim têm-se grande medida do locus de atribuição. Consi-
causas internas ou externas que podem ser derando-se a pessoa como causa última do
estáveis ou instáveis. Da combinação destas comportamento quando o locus é interno.
duas dimensões resultam os principais tipos de Mesmo a defesa de valores políticos de natureza
causas percebidas: capacidade (interna, estável); mais social (enfatizando a importância do
esforço (interno, instável); sorte (externa, contexto social) ou mais liberal (enfatizando a
instável); dificuldade da tarefa (externa, importância do individuo na sociedade) decor-
estável). Um importante domínio de aplicação rem de argumentações filosóficas que salientam
destas duas dimensões gerais de atribuição é o respectivamente um locus causal externo ou
de realização pessoal. Neste domínio, a teoria interno para a explicação do comportamento
atribucional de Bernard Wiener é, sem dúvida, o humano. Por exemplo, Vala, Monteiro e Leyens
mais importante desenvolvimento das ideias de (1988) examinaram o tipo de atribuições
Heider. Weiner (1974, 1985, 1986, 2000) não só (interna ou externa) que sujeitos conservadores
sistematizou o trabalho inicial de Heider como (de direita) e sujeitos radicais de esquerda
acrescentou uma terceira dimensão de faziam para explicar um alegado acto de
atribuição causal: a controlabilidade. Ou seja, as agressão perpetuado por agentes institucionais
causas do comportamento podem ainda ser (i.e., Policia) ou por delinquentes. Cerca de
controláveis ou não-controláveis. O leitor mais metade dos participantes destas duas categorias
atento poderá notar que, num certo sentido, (radicais de esquerda e conservadores) liam o
Weiner não fez mais do que “partir” a dimensão texto “Policias mal trataram e feriram grave-
Locus de controlo em duas. De facto, uma causa mente uma pessoa em circunstâncias ainda
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 117

117

QUADRO III

Tipos atribucionais de acordo com o modelo atribucional de Weiner

Porque é que a Joana teve um resultado tão mau no exame de estatística?


LOCUS INTERNO LOCUS EXTERNO

CONTROLÁVEL ESTÁVEL INSTÁVEL ESTÁVEL INSTÁVEL


A Joana nunca A Joana saiu à O Professor é O professor fez
estuda para os noite na véspera muito rigoroso a um exame muito
exames do exame corrigir os exames difícil

INCONTROLÁVEL A Joana sempre A Joana teve A estatística é A Joana ficou


tem dificuldades uma insónia na uma disciplina presa no trânsito e
a matemática véspera do difícil chegou atrasada
exame

desconhecidas”. A outra metade lia uma versão por policias), considerando-os menos respon-
deste texto igual em todos os aspectos excepto sáveis e merecedores de menor punição do que
no que refere ao sujeito da frase que em vez de os policias. No caso dos conservadores veri-
ser “Policias” era “Adolescentes”. Tal com ficou-se a tendência inversa: maior violência
esperado a ideologia dos participantes interagiu percebida, mais responsabilidade e maior
com a atribuição causal que realizaram. Os punição para o acto de agressão quando prati-
conservadores, favoráveis à defesa do status quo cado por adolescentes do que quando praticado
pelas instituições (se necessário pela força), por policias.
atribuíram o comportamento dos policias mais a Por último, o próprio erro fundamental de
causas externas e o comportamento dos atribuição causal (Ross, 1977) – a que volta-
adolescentes mais a causas internas (ainda que remos mais adiante neste capítulo – pode ser
esta diferença não tenha atingido valores visto como um enviesamento no sentido de
estatisticamente significativos). Os radicais de atribuições causais internas do comportamento
esquerda, favoráveis à defesa das causas sociais mesmo na presença de explicações de locus
atribuíram o comportamento dos policias mais a externo.
causas internas e o comportamento dos Na mesma linha, a tendência para pensarmos
adolescentes mais a causas externas. Na mesma em nós próprios de forma favorável justificando
linha, e de acordo com este padrão atribucional os nossos fracassos através de atribuições exter-
os radicais interpretaram o comportamento de nas e explicando os nossos sucessos interna-
agressão como sendo menos violento na mente, leva a que em geral nos consideremos
condição em que este era praticado por a nós próprios acima da média! assim, a
adolescentes (por comparação com a condição maioria dos condutores de automóvel (mesmo
em que o mesmo comportamento era praticado incluindo aqueles que foram hospitalizados em
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 118

118

consequência de acidentes de viação) auto-ava- bias) assume especial importância uma vez que,
liam-se como sendo condutores mais seguros e para alem do nível relacional interpessoal, todos
mais competentes do que o condutor médio nós pertencemos a diferentes grupos sociais e
(e.g., McKeena e Myers, 1997). Na edição de interagimos também como membros destes
1984 do famoso “Public Opinion” (base de grupos, ou seja, relacionamo-nos a nível inter-
dados internacional baseada da realização de grupal. Por outro lado, existe evidência que
inquéritos da opinião pública) a maioria das sugere que quando em oposição, o enviesa-
pessoas vêem-se a si próprias como possuindo mento a favor do endogrupo (group-serving
melhor aparência, sendo mais inteligentes, e bias) pode em certas circunstâncias até
muito menos preconceituosas do que a média da sobrepor-se ao enviesamento a favor do próprio
respectiva população. Por fim, mesmo as (self-serving bias). Num estudo de Taylor e
pessoas que sabem da existência desta tendência Dória (1981) em que atletas universitários
para nos auto-avaliarmos de forma enviesa- envolvidos em desportos de equipa avaliavam o
damente favorável (como é o caso do leitor, pelo seu desempenho e o dos colegas de equipa face
aos sucessos e insucessos da equipa, não só se
menos a partir de agora) auto-avaliam-se como
verificaram a existência dos dois tipos de envie-
sendo menos afectadas por este enviesamento
samento como também se verificou a prevalên-
nos julgamentos que fazem de si próprios do
cia do group-serving bias sobre o self-serving
que a média das outras pessoas! (Friedrich,
bias. Com efeito, os atletas manifestaram menor
1996).
tendência para atribuir os seus fracassos
Este auto-enviesamento (ou self-serving
individuais (e.g., não atingir o score pessoal que
bias) acaba por assumir uma importante função
se tinha como objectivo) num jogo aos restantes
de defesa da auto-estima ajudando inclusiva-
membros da equipa e uma maior tendência para
mente a proteger da depressão (Snyder e
atribuir os seu sucessos individuais aos contri-
Higgins, 1988). Contudo, também há um lado
butos dos seus companheiros de equipa.
disfuncional do self-serving bias que contribui
para o desenvolvimento de um optimismo
irrealista frequentemente causador de compor- Controlabilidade
tamentos irresponsáveis. Por exemplo, estudan-
A dimensão de controlabilidade, sobretudo
tes universitárias sexualmente activas que não
usam de forma consistente contraceptivos, auto- quando considerada na sua vertente de contro-
-avaliam-se como muito menos vulneráveis face labilidade pessoal (i.e., controlabilidade do
à contracção de uma gravidez indesejada com- próprio sobre o seu comportamento), parece
parativamente a outras colegas universitárias assumir igualmente um papel central nos
(Burger e Burns, 1988). julgamentos de causalidade (Anderson, 1991).
Um fenómeno relacionado com o self- Atribuições a factores controláveis em contexto
-serving bias é a realização de atribuições causais escolar levam a melhores resultados de desem-
internas dos sucessos e atribuições externas dos penho a curto e a longo prazo permitindo o
insucessos dos grupos sociais a que perten- desenvolvimento de crenças de auto-eficácia
cemos ou endo-grupos (e vice-versa para os (e.g., Bandura, 1994). Por outro lado, temos
outros grupos ou exo-grupos). Este enviesa- menos simpatia por vítimas que podiam ter
mento a favor do endo-grupo (ou group-serving evitado o crime através de acções sobre o seu
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 119

119

controlo. Um exemplo extremo desta tendência os outros fazem a nosso respeito por vezes com
é a atribuição da culpa em casos de violação consequências dramáticas. Por exemplo, um
sexual à vítima da violação em detrimento do estudante que preveja reprovar num teste de
agressor (e.g., Johnson, Mullick e Mulford, elevada dificuldade pode, paradoxalmente,
2002). resolver não estudar. A lógica atribucional
subjacente a tal comportamento poderá ser algo
como: “se eu me esforçar, estudar muito, e
Estabilidade
reprovar todos saberão que não tenho a capa-
A dimensão de estabilidade das causas cidade necessária para passar neste teste;
parece ser sobretudo importante no que diz mesmo que eu passe as pessoas vão pensar que
respeito a previsões do futuro: causas estáveis eu tenho que estudar muito para ser bem
(e.g., capacidade) levam a generalização no sucedido e inferir que sou pouco inteligente; se
futuro, causas instáveis não (e.g., sorte). Neste eu não estudar e reprovar posso atribuir o mau
contexto, Wilson e Linville (1982, 1985), resultado a nem sequer ter tentado verda-
mostraram que os fracassos académicos de deiramente e ninguém poderá dizer com base no
estudantes universitários no primeiro ano do resultado que eu sou pouco inteligente; se não
curso é preditor de melhor desempenho relativo estudar e mesmo assim passar então as pessoas
futuro quando estes estudantes recebiam vão achar que eu sou brilhante uma vez que a
informações sugerindo que as causas das suas única explicação para o meu sucesso será a
más notas eram instáveis (por oposição a um minha capacidade intelectual.”
grupo controlo que não recebia este tipo de
feedback).
1.6. A Idade dos Porquês em Psicologia
Atribuição Causal, emoções e gestão de Social III: Kelley versus Weiner
impressões
Como notado por Kelley e Michela (1980)
De acordo com o modelo atribucional de não existe uma única teoria atribucional mas
Weiner, a causa percebida de um acontecimento diversos modelos e perspectivas que se podem
determina ainda a reacção emocional associada grosso modo separar entre perspectivas sobre
e motiva certos comportamentos. Por exemplo: auto-atribuições como é o caso do modelo de
Acontecimentos negativos atribuídos a causas Wiener e hetero-atribuições (atribuições causais
internas e controláveis leva a raiva e agressi- do comportamento dos outros), como no caso
vidade, dirigidos ao agente causal. Fracasso do modelo de Kelley. Para além disto, o modelo
atribuído a causas incontroláveis (internas ou atribucional de Weiner é tipicamente usado para
externas) leva a sentimentos de piedade e dar conta de atribuições de realização (sucessos
vontade de ajudar (Weiner, 1985, 1986). e fracassos em ambientes académico ou profis-
Dado o papel da atribuição causal nas sional) enquanto que o modelo de Kelley
emoções e comportamentos que desencadeiam pretende dar conta das dimensões informacio-
nos outros, não é de estranhar que muitas vezes nais subjacentes ás atribuições sociais. Na parte
procuremos manipular o tipo de atribuições que restante deste capítulo daremos mais ênfase aos
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 120

120

desenvolvimentos decorrentes na linha das Quer dizer, enquanto a análise de Heider (1958)
preocupações teóricas de Kelley. Note-se se debruça bastante sobre a aplicação da
contudo que os dois modelos não são incom- distinção entre causalidade pessoal e impessoal,
patíveis. As dimensões de Consenso, Distintivi- Jones e Davis adoptaram essa aplicação e pros-
dade e Consistência fornecem a base para as seguiram a partir daí a sua análise.
atribuições interna/externa, estável/instável, Segundo Jones e Davis (1965), para que uma
controlável/não controlável do modelo de determinada acção possa revelar alguma coisa
Weiner, sugerindo que ambos os modelos do actor é necessário que, depois de satisfeitas
descrevem aspectos complementares mas com- as duas condições acima referidas (inten-
patíveis dos mesmos processos atribucionais cionalidade e conhecimento das consequências
subjacentes (Martinko e Thompson, 1998). das suas acções), se consiga encontrar uma
ligação directa com uma intenção que medeia a
relação entre o comportamento e uma dispo-
1.7. Em busca da Correspondência Perdida: sição do actor. Por exemplo, o que queremos
O Modelo de Jones e Davis (1965) dizer quando explicamos o comportamento de
uma pessoa que evita a companhia dos outros,
Edward Jones doutorou-se em Psicologia afirmando “fê-lo porque é uma pessoa intro-
Clínica, mas era um apaixonado por Jazz e Psi- vertida”? Bom, por um lado, queremos dizer
cologia Social. Quando, na entrega do prémio que não detectámos pressões situacionais
de “Distinguished Scientist” da Society for particulares a esse comportamento (não o
Experimental Social Psychology em 1987, diríamos de uma pessoa que tivesse contraído
Jones se ouviu designado por “Mr. Social uma doença infecciosa). Por outro lado, quere-
Psychology”, ele disse que tal referência lhe mos dizer que esperamos que em circunstâncias
soube tão bem como lhe saberia tocar piano como diferentes essa pessoa se continuasse a mostrar
Bill Evans (Darley e Cooper, 1998). A maior reservada (não o diríamos de alguém que
parte da carreira de Edward Jones decorreu na durante um funeral se mostrasse circunspecto).
Universidade de Duke mas os seus últimos anos Finalmente, queremos dizer que essa pessoa é
foram passados em Princeton. Jones dedicou-se mais introvertida do que a média das pessoas
a muitos temas diferentes de Psicologia Social (não o diríamos de uma pessoa que, como toda
mas foi o modelo que desenvolveu com Keith a gente, de vez em quando preferisse estar só).
Davis o seu mais famoso contributo. Resumindo: para se considerar que uma acção
Jones e Davis (1965) basearam-se no revela o actor, o observador tem de conseguir
trabalho de Heider mas restringiram-se a uma achar uma correspondência entre a acção, uma
pequena parcela do seu trabalho. A pertinência intenção e uma disposição. A intenção pode ser
do modelo de Jones e Davis limita-se aos casos consciente ou não, segundo Jones e Davis
em que o percepiente, observando as acções de (1965), mas tem de se referir a algum aspecto
um actor e pretendendo explicá-las, atribui a relativo ao livre arbítrio do actor, e não pode
este a capacidade de realizar o que realizou (as reflectir apenas pressões situacionais. A dispo-
suas acções não são meramente acidentais) e o sição é concebida como algo interno que faz o
conhecimento das consequências dessas acções. actor comportar-se de determinada maneira
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 121

121

mais frequente ou intensamente do que a Jones e Davis propõem dois critérios que
maioria das pessoas. O estabelecimento da comandariam os procedimentos prévios a uma
inferência correspondente (acção – disposição) inferência correspondente (ligação acção – inten-
decorre, segundo Jones e Davis (1965), de uma ção – disposição).
observação das consequências dessa acção. Ou O primeiro critério de selecção é o da
seja, dado que o comportamento a explicar é suposta desejabilidade (“assumed desirability”).
percebido como intencional, o conteúdo dessa Por exemplo, se sabemos que um amigo nosso
intenção será revelado pelas suas consequên- foi passar as férias nas Caraíbas, concluímos
cias. A inferência de uma disposição é, por isso, rapidamente as principais consequências dessa
sempre posterior e indirecta a esta ligação acção decisão: passar belos dias de praia, apreciar o
– intenção, a partir da consequência da acção. pitoresco dessas paragens, provar pratos exóti-
A Figura 4 (adaptada de Jones e Davis, 1965) cos, sofrer atrasos prováveis nos voos charters,
tenta representar o essencial desta descrição do ser explorado pelas agências turísticas, aumen-
presente modelo. tar a dívida do cartão de crédito. Não é fácil
O problema com que o percepiente leigo do imaginarmo-nos a inferir: “coitado, só para ter o
comportamento humano se confronta é agra- prazer da pagar as prestações do cartão de
vado, segundo Jones e Davis, pelo facto de, crédito, sofrer atrasos e ser explorado pelas
frequentemente, cada acção humana produzir agências turísticas vai passar uns dias na praia,
múltiplas correspondências. Assim sendo, aventurar-se em novos petiscos e descobrir
mesmo estando o percepiente convencido da novas paisagens”. Neste caso, o que faríamos
intencionalidade de determinada acção (isto é, seria a rejeição das consequências que consi-
reconhecendo-lhe as características da causa- derássemos indesejáveis, inferindo por isso que
lidade pessoal), como procederá para seleccio- “para ter o prazer de passar uns dias na praia,
nar as consequências percebidas que foram pro- aventurar-se em novos petiscos e descobrir
curadas pelo actor? novas paisagens vai ter de pagar as prestações

FIGURA 4
O paradigma de correspondência entre acção, intenção e disposição
(adaptado de Garcia-Marques e Garcia-Marques, 2003; Jones e Davis, 1965)
psicologia-social-cap.3 7/27/12 2:53 PM Page 122

122

do cartão de crédito, sofrer atrasos e ser De facto, o João é rico, de boas famílias e
explorado pelas agências turísticas.” Este critério atraente. O Pedro, por outro lado, também é rico
refere-se portanto ao que o observador considera e atraente além de gostar muito de crianças.
que a maioria das pessoas acha desejável. Finalmente, o Carlos é atraente e intelectual-
É importante salientar dois aspectos a mente brilhante. A Figura 5 explicita as conse-
respeito deste procedimento de selecção. O pri- quências de um marido com estas características
meiro é o seu carácter ego e etnocêntrico: o e representa a continuação deste procedimento
observador, tomando-se como paradigma, pura inferencial.
e simplesmente projecta no actor a sua hierar- Como vemos na Figura 5, depois de agru-
quia de preferências (no exemplo atrás referido pados os efeitos de cada alternativa, são
estaríamos a interpretar mal o verdadeiro eliminados os efeitos comuns às várias alter-
amante de passar o tempo em aeroportos ou um nativas. De facto, efeitos comuns a várias
qualquer “masoquista”). Este carácter egocên- alternativas não podem servir como critério para
trico corresponde à noção de “atribuição a escolha de uma dessas alternativas. Depois,
egocêntrica” de Heider (1958). O segundo é a de acordo com a alternativa escolhida, são
sua insuficiência. De facto, e para nos manter- seleccionados os efeitos não-comuns, conside-
mos no caso da viagem às Caraíbas, quais das rando-se os outros efeitos não comuns de cada
consequências da decisão reflectem realmente alternativa como irrelevantes e os efeitos
as disposições do actor – um gosto pela praia, comuns às alternativas preteridas e ausentes na
uma obsessão culinária ou um desejo de escolha como indesejáveis. A inferência corres-
explorar novas paragens? É esta insuficiência pondente é feita a partir dos efeitos não comuns
que justifica o segundo critério de selecção: a da escolha realizada (e dos efeitos comuns às
rejeição dos efeitos comuns às alternativas alternativas preteridas mas ausentes na esco-
preteridas da acção (ou cálculo da sobreposição lhida), considerando esses efeitos como reflec-
dos efeitos). tindo intenções e, consequentemente, sendo
Partiremos, desta vez, de um exemplo dos inferidas as disposições que as subordinam.
próprios Jones e Davis (1965; e adaptado por Dois aspectos relativamente ao cálculo da
Garcia-Marques e Garcia-Marques, 2003). sobreposição de efeitos devem ser retidos: O pri-
Suponhamos que soubemos que a Rosa se meiro diz respeito ao facto de qualquer acti-
tinha casado. Sabendo que tanto o João, como o vidade intencional possuir uma dimensão
Paulo e o Carlos a assediavam frequentemente temporal e que o momento da observação
com convites e presentes, e, conhecendo-os, determina o tipo de inferências que podem ser
temos os elementos necessários para o cálculo feitas. No caso da Rosa, por exemplo, o efeito
da sobreposição (“commonality”). (Vamos comum rejeitado por não servir de critério nesta
presumir que já eliminámos as características escolha – a aparência física dos pretendentes –
que temos como desagradáveis. Só assim se pode ter sido o critério de uma escolha anterior
justifica na presente análise a exclusão da falta ou seja a da eliminação de todos os candidatos
de pontualidade do João, o irritante hábito do de pior aparência. Vemos portanto, como noutro
Pedro de acabar as frases das outras pessoas e a contexto temporal um efeito comum presente
célebre fobia do Carlos pelos animais com pelo). pode ser potencialmente muito informativo.
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 123

123

FIGURA 5
A Rosa escolhe marido (segundo Jones e Davis, 1965)

Efeitos do casamento a ser considerados


a) Riqueza
b) Estatuto social
c) Prazer sexual
d) Crianças
e) Estimulação intelectual

A. A escolha de Rosa
João Pedro Carlos
abc acd ce

B. A eliminação dos efeitos comuns


João Pedro Carlos
ab ad e

C. Efeitos não-comum reagrupados


Se a escolha for:
João - b desejado, d & e, irrelevantes
Pedro - d desejado, b & e, irrelevantes
Carlos - e desejado, a indesejado, b & d, irrelevantes

D. Inferências
Se a escolha for:
Se o João for escolhido - a Rosa é uma snob
Se o Pedro for escolhido - a Rosa é maternal
Se o Carlos for escolhido - a Rosa é uma intelectual

É preciso não esquecer, no entanto, que o mundo social. Por isso, observando a mesma
modelo pretende descrever o que um observador acção poderão, dois percepientes leigos usando
pode inferir de uma acção num dado momento. o mesmo cálculo da sobreposição dos efeitos,
O segundo aspecto é o do carácter contra- chegar a inferências perfeitamente distintas e até
factual que este cálculo apresenta. Quer dizer, a incompatíveis – tudo depende da construção do
observação de determinada acção e/ou das suas cenário suporte a este raciocínio contra-factual.
consequências suscita no percepiente leigo, um Estes dois critérios podiam e foram usados por
raciocínio contra-factual do tipo: “Se em vez Jones e Davis (1965) como variáveis independen-
de y tivesse acontecido x, então em vez de A tes em relação à produção de inferências corres-
dar-se-ia B”. Nesta construção de um cenário pondentes, aqui tomada como variável depen-
intervêm tanto os conhecimentos específicos do dente. As relações entre a desejabilidade suposta
observador sobre aquele actor e aquela situação, dos efeitos e o número dos efeitos não comuns
como as suas consequências gerais sobre o encontra-se representada no Quadro IV.
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 124

124

QUADRO IV

Desejabilidade e sobreposição dos efeitos enquanto determinantes da correspondência

Suposta Desejabilidade
Elevada Baixa

Número de Efeitos Grande a) Ambiguidade trivial b) Ambiguidade intrigante


Não-Comuns Pequeno c) Claridade trivial d) Inferência Correspondente

A probabilidade de um determinado efeito identificação da intenção do actor é facilitada


ser seleccionado como ponto de partida para pelo pequeno número de efeitos não-comuns e a
uma inferência correspondente é função inversa baixa suposta desejabilidade desses efeitos
de uma Suposta Desejabilidade e função inversa permite a inferência de algo de específico no
do Número de Efeitos Não-Comuns. actor – dá-se a inferência correspondente.
Torna-se agora mais fácil a compreensão do Para encerrar este ponto cremos ser útil uma
Quadro IV. Nas situações descritas pela célula a), síntese das principais características do
o observador não encontra nada de particular- processo subjacente às inferências correspon-
mente misterioso no facto de um actor produzir dentes segundo Jones e Davis (1965). E é o que
uma acção de múltiplos efeitos únicos, todos se pretende fazer na Figura 6 (adaptada de
desejáveis. A acção observada não pode servir Garcia-Marques e Garcia-Marques, 2003).
de base para o estabelecimento de uma corres-
pondência com uma disposição, mas a situação
não suscita qualquer esforço para obter maiores A Liberdade de Escolha do Actor
explicações (o actor faz aquilo que qualquer um
faria). Nas situações sintetizadas pela célula b), Ao definir intenção como relativa ao livre
o elevado número de efeitos não-comuns – como arbítrio do actor e nunca a pressões situacio-
na célula a) – impossibilita a identificação da nais, Jones e Davis (1965) introduzem impli-
intenção do actor e, contudo, as razões de ser citamente uma outra variável importante na
daquela acção merecem consideração, na determinação das inferências correspon-
medida em que se produziram efeitos indese- dentes: a liberdade percebida de escolha. Para
jáveis. Nas situações representadas na célula c), Jones e Davis (1965), basta que um observa-
a identificação de uma intenção não conduz à dor se dê conta de grandes pressões situa-
correspondência, na medida em que essa cionais sobre o comportamento de um actor
intenção naquelas circunstâncias não diferencia para que a inferência correspondente deixe de
o actor do mais comum dos mortais (porque se ser realizada.
produziram efeitos altamente desejáveis para “a Uma experiência célebre neste contexto
generalidade das pessoas” tal como é concebida servirá como ilustração empírica desta previsão
pelo percepiente). Finalmente na célula d) a (Jones, Davis, e Gergen, 1961) – ver a Caixa 3.
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 125

125

FIGURA 6
As fases da elaboração de uma inferência correspondente

1.ª Fase Observação da acção e das suas consequências


2.ª Fase Consideração dos constrangimentos situacionais à liberdade de escolha do actor
(se tais constrangimentos forem encontrados o processo inferencial detém-se nesta fase)


3.ª Fase Selecção dos efeitos a considerar em função da suposta desejabilidade desses efeitos

4.ª Fase 
Construção de cenários (alternativas à acção e suas consequências)


5.ª Fase Eliminação dos efeitos comuns




6.ª Fase Inferência Correspondente

Por outro lado, várias outras experiências dentes são tidos por Jones e Davis (1965) como
que se debruçam sobre a atribuição de atitudes “extra-racionais”. São eles, a relevância hedó-
testaram o impacto moderador das pressões nica e o personalismo. A relevância hedónica
situacionais que se exercem sobre o actor na refere-se à tendência que o “psicólogo leigo”
realização de inferências correspondentes. No apresenta para a realização de inferências
entanto, nem sempre os sujeitos experimentais correspondentes, nos casos em que as acções
deram o peso considerado razoável as pressões observadas têm consequências directas para si
situacionais no momento da atribuição. próprio bloqueando-lhe ou facilitando-lhe
Voltaremos adiante a esta questão. objectivos ou a afirmação de valores pessoais.
O Personalismo é uma tendência basicamente
semelhante à relevância hedónica, só que, em
Relevância Hedónica e Personalismo
acréscimo, as consequências sobre o observador
Se o levar em consideração as pressões são percebidas por si, como decorrendo directa-
situacionais que restringem a liberdade com que mente das intenções do actor. Um exemplo da
um actor escolhe determinado comportamento, vida corrente bastará para ilustrar este ponto.
é visto por Jones e Davis (1965) como uma Imaginemo-nos num autocarro cheio...quão
tendência “racional”, já outros factores determi- reveladores de personalidades profundamente
nantes da realização de inferências correspon- detestáveis são os empurrões e pisadelas que
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 126

126

CAIXA 3

A “selecção” de astronautas e tripulantes de submarino.

Nesta experiência, os participantes ouviam a reprodução da gravação de uma entrevista de selecção


ou para astronautas ou para tripulantes de submarino, mas cada participante só ouvia uma das gravações
que correspondia à condição experimental em que estivesse incluído.
No começo de cada entrevista, ouvia-se comunicar aos entrevistados qual o “tipo de pessoa”
desejável para o lugar no caso do tripulante de submarino: obediente, cooperativo, gregário – em suma
“orientado para os outros” (“porque tinha de viver numa comunidade restrita durante longos períodos”)
ou auto-suficiente, não-dependente – ou seja “orientado para si próprio” no caso do astronauta (“porque
tinha de passar muito tempo sozinho, no espaço”). O entrevistado respondia (conforme as condições
experimentais) ora mostrando-se como “orientado para os outros” ora como “orientado para si próprio”,
independentemente da entrevista em que participava.
Temos assim duas variáveis independentes com duas modalidades cada: auto-apresentação do
entrevistado (“orientado para os outros” ou “orientado para si próprio”) e lugar a que se candidata
(astronauta ou tripulante de submarino). Cruzando estas duas variáveis obtiveram-se quatro condições:
C1 – astronauta/”orientado para os outros”, C2 – astronauta/”orientado para si próprio”, C3 – tripu-
lante/”orientado para os outros” e C4 – tripulante/”orientado para si próprio”.
De acordo com as indicações fornecidas ao entrevistado (e do conhecimento dos participantes
experimentais), nas condições C1 (astronauta/”orientado para os outros”) e C4 (tripulante/”orientado
para si próprio”), o comportamento deste não se ajusta ao perfil desejável para o desempenho da função
(isto é, está fora do papel que pretende desempenhar) mas na condição C2 (astronauta/”orientado para
si próprio”) e C3 (tripulante/”orientado para os outros”), o ajustamento é perfeito. Como tal, e de
acordo com a definição de intenção dada por Jones e Davis (1965), a intenção não pode provir de
pressões situacionais e, consequentemente foi prevista uma maior frequência de inferências
correspondentes nos casos de auto-apresentação fora do papel, (condições C1 e C4) casos em que o
comportamento se realiza contra as pressões ambientais. A variável dependente – inferência
correspondente – foi definida operacionalmente tanto pela polarização na atribuição de traços
relevantes ao entrevistado, como pelo grau de confiança com que a atribuição é feita. Os resultados
demonstraram que as mesmas respostas “orientadas para os outros” por exemplo, são vistas como
muito mais reveladoras de uma personalidade “orientada para os outros” e merecem mais confiança,
quando são fornecidas numa entrevista de selecção para astronautas do que quando são dadas numa
para tripulantes de submarino. Passando-se exactamente o simétrico para as respostas “orientadas para
si próprio”. Quer dizer, comportamentos fora do papel promovem menos inferências correspondentes,
tal como o modelo previra.

sofremos da parte dos outros passageiros! nalismo). Estas tendências foram consideradas
(Hedonismo). E quando estamos, nesse mesmo por Jones e Davis (1965) como extra-racionais
autocarro, muito chegados a alguém? Quão mais porque envolvem o ignorar das condições prévias
diagnóstica é essa situação para alguém que necessárias para o estabelecimento de uma
julgue que o fazemos propositadamente? (Perso- ligação acção – intenção – disposição.
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 127

127

Passará a ligação acção – disposição sempre distinguiram entre casos em que a ligação acção
pela intenção? – disposição passa necessariamente ou não
passa pela atribuição de uma intenção corres-
Segundo o Modelo de Jones e Davis (1965), pondente, criando assim uma certa confusão
o estabelecimento de uma ligação acção – dis- potencialmente evitável.
posição passa sempre pela atribuição de uma Este problema pode, no entanto, ser resol-
intenção. Tal tem sido criticado por vários vido se seguirmos a sugestão de Kelley (1973) e
autores (Eiser, 1983; Jaspars e Hewstone, 1984; restringirmos o modelo de Jones e Davis aos
Ross e Fletcher, 1985; Shaver, 1985). A questão é casos de inferência de disposições depois de
basicamente a seguinte: será que considerar que inferida a causalidade pessoal. Deixa-se assim
uma acção é necessariamente mediada por em aberto a possibilidade de elaboração de
uma intenção quererá dizer, de uma acção da inferências correspondentes nos casos de causa-
qual se infere que o actor é irresponsável ou lidade impessoal. Veremos como se desenvolveu
desajeitado, que é uma acção intencional- uma literatura (i.e., inferências espontâneas de
mente irresponsável ou desajeitada? Tal seria traço) que estuda inferências de traço indepen-
um paradoxo, já que é necessária uma grande dentemente dos efeitos a considerar puderem
habilidade para se ser intencionalmente desa- ser tomados como causalidade pessoal ou
jeitado (ver por exemplo, as acrobacias de impessoal.
Charlie Chaplin ou Jackie Chan). E poder-se-ia
ser intencionalmente estúpido, sem se ser mini-
mamente inteligente? O Modelo de Jones e Davis:
A consideração de que o estabelecimento de primeiras conclusões
uma ligação acção – disposição passa sempre
pela atribuição de uma intenção é eminente- O Modelo de Jones e Davis (1965) na forma
mente heideriana. De facto, só as acções inten- em que foi inicialmente formulado e na
cionais representariam para Heider verdadeiras reformulação feita por Jones e McGillis (1976)
instâncias de causalidade pessoal (ver a noção representou uma contribuição importante, em
de níveis de causalidade pessoal de Heider atrás primeiro lugar porque trouxe para o campo da
referida). Mas a este respeito convém voltar a investigação, algumas das ideias de Heider. No
citar Heider (1958, p. 112): entanto, e curiosamente, poderíamos dizer que o
seu principal mérito foi estar errado de uma
“A capacidade é também atribuída à pessoa
forma interessante. Em Ciência, todas as teorias
mas não no mesmo sentido que a motivação.
são falsas, daí que a descoberta de factos que
[...] As pessoas são responsabilizadas pelas suas
falseiam uma teoria não é particularmente
intenções e seus esforços, mas são-no menos
surpreendente. Não devemos esperar que as
estritamente responsabilizadas pelas suas
teorias naveguem indefinidamente evitando os
capacidades.”
escolhos da refutação. Pelo contrário, todas as
Ao não distinguir entre motivações, teorias naufragam. No entanto, algumas teorias
objectivos, atitudes, traços e capacidades, Jones quando naufragam, parecem contribuir para
e Davis (1965, ver também Jones, 1990) não uma melhor navegação teórica porque o seu
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 128

128

naufrágio ensina-nos imenso sobre ciência a jovem? Não é tarefa fácil, pois não? Afinal, o
náutica. Tal foi o caso do Titanic, um leitor dispõe de pouquíssima informação.
naufrágio interessante não só do ponto de Certamente que gostaria de saber que género de
vista dramático mas também tecnológico (ver pessoa é Harold. Seria ele uma pessoa tímida,
o Museu Marítimo OnLine do Atlântico, introvertida e cautelosa? Ou será o Harold, um
http://museum.gov.ns.ca/mma/AtoZ/titanicinfo. sedutor, extrovertido e aventureiro? Sem saber
html). Tal foi também o caso do Modelo de isso, como poderá responder? Certo? Errado!
Jones e Davis. O leitor precisaria de mais informação para
De facto, uma das mais importantes predi- responder, é exacto, mas seria mais útil
ções do Modelo de Jones e Davis, a de que as informação de outro tipo. Por exemplo, será que
pressões situacionais que se exercem sobre o o encontro se deu antes ou depois do Harold ter
actor têm um impacto moderador na realização atravessado o Skywalk? De facto, este factor
de inferências correspondentes pelo observador teve uma influência decisiva numa situação muito
revelou-se surpreendentemente falsa (Jones e semelhante (Dutton e Aron, 1974) – enquanto
Harris, 1967). A falha dessa predição foi que, antes de atravessar a ponte, apenas 12% dos
precisamente o que inspirou os mais importan- participantes telefonou à entrevistadora, essa
tes modelos de inferência de traço contem- percentagem atingiu os 50% quando o encontro
porâneos (Gilbert, 1989; ver próximas secções). se deu após a travessia. A explicação proposta
pelos autores é a de que os participantes
confundiram a ansiedade associada à travessia
O Erro Atribucional Fundamental de uma ponte periclitante com atracção sexual
(ver capítulo sobre Atracção Interpersonal,
Imaginemos por um momento que Harold, Sexualidade e Relações Intimas, neste Manual).
um homem solteiro vai visitar o Grand Canyon. No entanto, tal ou qualquer outro factor
E, ao pé do Skywalk, uma ponte de vidro situacional, nunca nos passariam pela cabeça.
suspensa a grande altitude sobre o rio Colorado, A relevância das características do actor, a sua
encontra uma jovem encantadora que lhe pede experiência romântica passada, a sua perso-
para responder a algumas perguntas sobre nalidade, os seus valores morais ou religiosos,
destinos turísticos. Harold aceita e após isso sim, ocorre-nos de imediato. Essa é mais
terminado o inquérito, a jovem deixa-lhe um uma demonstração do erro atribucional funda-
cartão de visita com o telefone e e-mail para o mental3 (Ross (1977, p. 183): “a tendência dos
caso de precisar de algum esclarecimento sobre atribuidores para subestimarem o impacto dos
o estudo em que acabou de participar. factores situacionais e sobrestimarem o papel
Diga-nos o presente leitor, acha que o Harold dos factores disposicionais no controlo do
vai usar o cartão de visita e tentar contactar com comportamento”.

3
A noção de “erro” implicaria a existência de um modelo normativo de atribuição e tal modelo não existe. Seria assim
mais adequado a utilização de termos mais neutrais como tendência ou enviesamento. Usamos, contudo, o termo “erro
atribucional fundamental” por ser uma designação consagrada na literatura.
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 129

129

Esta tendência já tinha sido identificada por quantas histórias existem de falsos médicos a
Heider (1944; 1958) como vimos atrás. As for- exercerem a sua profissão durante anos até
mas que esta tendência assume são múltiplas serem desmascarados...
porque inúmeras são as formas pelas quais as
situações constrangem o comportamento.
1.8. O Erro Atribucional Fundamental
Por exemplo, o desempenho de papéis sociais e o Enviesamento Correspondente
acarreta constrangimentos situacionais inevitá-
veis. Um vendedor de carros deve ser jovial, um O médico manda o doente tossir e o doente
fiscal de finanças, circunspecto, um jornalista, tosse. O médico manda o doente tossir outra vez
inquisitivo, um advogado, eloquente, uma e o doente tosse. O médico manda o doente
bibliotecária, silenciosa, uma educadora de tossir ainda outra vez e o doente tosse. O médico
infância, maternal, etc. A negligência de tais conclui: “O seu mal é tosse”.
constrangimentos subjaz, decerto, à formação Esta conhecida anedota ilustra perfeitamente
de muitos estereótipos. o que acontece nas experiências modeladas a
Os papéis sociais também acarretam vanta- partir de Jones e Harris (1967). A situação cons-
gens e desvantagens relativas em termos de trange o actor de forma explícita (às vezes, os
poder, conhecimentos ou capacidades aparentes. constrangimentos são mesmo veiculados pelo
E assim em certos contextos, a desatenção aos próprio observador como no caso do médico da
constrangimentos situacionais decorrentes do anedota, ver Gilbert e Jones, 1986) e no entanto,
desempenho de papéis sociais pode induzir o observador ignora esses constrangimentos e
percepções curiosas. Ross, Amabile e Steinmetz interpreta facialmente o comportamento do actor.
(1977) ilustram magnificamente como as No caso específico, de Jones e Harris (1967),
pessoas têm tendência para traduzir em os participantes tinham de tentar adivinhar a
diferenças de capacidade ou de conhecimentos verdadeira atitude de uma pessoa-alvo que
vantagens ou desvantagens relativas que são escreveu uma resposta a uma pergunta de um
decorrentes do desempenho de dados papéis. exame de ciências políticas. Os participantes
Não terá o leitor também, como nós, a sensação liam quer a pergunta do exame, quer a resposta
de que os apresentadores na televisão de da pessoa-alvo. A pergunta a que a pessoa-alvo
concursos de cultura geral (por exemplo, Jorge tinha de responder aparecia a diferentes grupos
Gabriel ou José Carlos Malato), são em geral, de participantes em versões diferentes:
mais cultos do que a média das pessoas?).
a) “Baseada na literatura e discussão da
A tendência para ignorar os constrangi-
semana passada, escreva uma pequena
mentos da situação leva a que em muitas
crítica convincente à Cuba de Castro como
actividades, um actor não possa apenas ser
se estivesse a dar o mote para um debate”
competente, o actor tem de parecer competente.
Tem de fazer aquilo a que Erving Goffman b) “Baseada na literatura e discussão da
chamou “encenação de competências” (Goffman, semana passada, escreva uma pequena
1959). Mas é claro que a dúvida fica: e não será, defesa convincente da Cuba de Castro
no fundo, apenas necessária a encenação e como se estivesse a dar o mote para um
dispensável a competência? Quem sabe... debate”.
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 130

130

FIGURA 7

Atribuição de Atitudes em Jones e Harris (1967)

Nota. A amplitude possível era de 10 (extremo anti) a 70 (extremo pró).

c) “Baseada na literatura e discussão da segundo o Modelo de Jones e Davis (1965), os


semana passada, escreva uma pequena participantes de Jones e Harris (1967) fizeram o
dissertação convincente defendendo ou Modelo de Jones e Davis naufragar. Claro que
criticando a Cuba de Castro como se existiram muitas reinterpretações destes resul-
estivesse a dar o mote para um debate”. tados tentando mostrar que esta negligência era
um artefacto experimental. Afinal talvez os
Esta foi a manipulação de Escolha, com os constrangimentos da situação fossem dema-
participantes em condições nas quais a pessoa- siado subtis para serem notados ou talvez os
alvo recebia as instruções a) ou b), considerados ensaios fossem tão bons que só alguém que no
como participantes “Sem Escolha” e os par- seu íntimo concordasse com a posição que o
ticipantes que liam versão c) como participantes ensaio expressava pudesse atingir tal nível de
“Livre Escolha”. Como a Figura 7 mostra, em argumentação. Daí que as experiências que
ambos os casos, os participantes inferiram seguiram a linha de Jones e Harris (1967) se
atitudes (disposições) correspondentes à posição tornassem cada vez mais sofisticados até ao
expressa no ensaio (a acção a explicar). Quer ponto em que o comportamento do actor era
isto dizer que mesmo quando a tendência pró ou fruto de um guião fornecido pelo experimen-
anti-Castro não é determinada pelo autor do tador, conhecido previamente e directamente
ensaio, os participantes atribuíram-lhe atitudes monitorizado pelo observador (neste caso,
correspondentes à tendência expressa no ensaio. chamado indutor). Mesmo neste caso, o
E pronto, ao não levar em consideração os enviesamento correspondente (designação pre-
pré-requisitos para a inferência correspondente ferida por Jones, 1979) mantinha-se (Gilbert e
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 131

131

Jones, 1986). Como explicar tal enviesamento, abordagens clássicas de atribuição causal. Por
aparentemente tão insensato? E é aqui que o outro lado, fazia parte de uma nova vaga de
naufrágio do Modelo de Jones e Davis foi uma Psicólogos Sociais interessados na explicação
preciosidade, um autêntico Titanic, para a do comportamento humano em termos da
navegação teórica que prosseguiu esta rota, especificação da sequência de processos
como veremos nas próximas secções. cognitivos que o produzem. Para estes inves-
tigadores a verdadeira questão não era tanto
quais os princípios lógicos que devem caracte-
2. A Emergência de uma nova perspectiva rizar as atribuições causais mas antes quais as
sobre Inferências de traços de Personalidade operações mentais que subjazem às atribuições
e inferências que as pessoas fazem sobre os
A investigação em percepção social desen- outros.
volvida durante a década de 80 caracteriza-se Nesta linha, Quattrone (1982) propôs que a
pela emergência de diversas abordagens teóricas atribuição causal humana devia ser vista
que configuram não só uma nova perspectiva enquanto um processo cognitivo constituído por
sobre a forma como realizamos inferências a dois subprocessos que ocorrem sucessivamente
partir do comportamento; como também um no tempo. Um subprocesso de inferência dispo-
novo olhar sobre um velho problema, os envie- sicional a partir do comportamento observado e
samentos correspondentes (Jones e Harris, um subprocesso de ajustamento da inferência
1967) ou erro fundamental de atribuição causal realizada em função do contexto ou da situação
(Ross, 1977). em que o comportamento ocorre.
Esta nova perspectiva que podemos con- A proposta de um processo atribucional
siderar radicalmente diferente da subjacente aos composto por dois subprocessos não foi o
modelos clássicos de atribuição (e.g., Kelley, resultado isolado do trabalho de Quattrone. Em
1967; Jones e Davis, 1965), não foi o produto do vez disso, foi directamente inspirada na Heurís-
trabalho solitário de nenhum investigador em tica da Ancoragem e Ajustamento proposta por
particular. Foi antes uma consequência histórica Tversky e Kahneman (1974). Segundo esta
da chamada “revolução cognitiva” e principal- Heurística quando realizamos julgamentos em
mente do advento da cognição social, tendo condições de incerteza começamos por “ancorar”
como resultado um conjunto de contribuições o nosso julgamento na primeira resposta que
teóricas e evidências experimentais que foram nos ocorre e só depois o ajustamos em função
surgindo de fontes dispersas e sucessivamente de outros dados da situação. Analogamente,
articuladas num todo coerente. Quattrone (1982) sugeriu que numa primeira
Mas comecemos pelo princípio, na génese fase realizamos inferências correspondentes
destas novas teorias está a concepção avançada independentemente da causa percebida do
por George Quattrone, um brilhante jovem comportamento ser a pessoa (actor do compor-
investigador que calhou estar no lugar certo na tamento) ou a situação (em que o comporta-
altura certa. Com efeito, tendo sido um mento ocorre). Numa segunda fase, ajustamos
estudante de Doutoramento de Edward Jones, estas inferências de traço iniciais levando em
Quattrone era um profundo conhecedor das conta as pressões situacionais que possam ter
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 132

132

facilitado ou inibido o comportamento. Ou seja, pessoas demoram a responder a diversas


ao perceberem que, por exemplo, “o João pisou perguntas sobre frases que descreviam o com-
a namorada a dançar o fox-trot” as pessoas não portamento de diversos actores (e.g., “O João
ponderam, “Será que o João pisou a namorada pisou a namorada enquanto dançava o fox-trot”).
porque é desajeitado ou será que alguém o em- Entre estas perguntas estavam questões
purrou?”. Em vez disto, imediatamente inferem atribucionais (e.g., “será que alguma coisa sobre
“desajeitado” e depois ajustam esta inferência a pessoa causou a acção descrita na frase?” ou
com informação situacional (e.g., “mas afinal “será que alguma coisa sobre a situação causou
foi empurrado o que quer dizer que não é assim a acção descrita na frase?”); questões dispo-
tão desajeitado”). sicionais (“será que o adjectivo “desajeitado”
O leitor mais atento certamente já notou que descreve a pessoa da frase?”); e questões de
esta proposta é diametralmente oposta à das controlo como “A pessoa da frase era um
teorias clássicas que postulam a primazia da homem?”. A estas questões, os participantes
atribuição causal à situação ou à pessoa tinham que responder simplesmente “sim” ou
eventualmente seguida pela realização de “não”. A análise que fizeram dos tempos de
inferências mais específicas como a inferência resposta baseou-se numa lógica tão simples e
de certos traços de personalidade. elegante como antiga, a de que julgamentos que
Mas afinal de contas em que é se baseou este demoram mais a realizar não podem mediar
jovem investigador para ter a impertinência de nem ocorrer primeiro do que julgamentos
virar às avessas as teorias clássicas de atribuição demoram menos tempo. Ou seja, nada mais,
causal? Haveria alguma evidência experimental nada menos do que a lógica do método de
que sugerisse esta inversão dos processos Donders (1868) cujo potencial explicativo só
subjacentes à maneira como percepcionamos os contrasta com a sua escassa utilização na
outros? Na verdade, não. No início dos anos 80 investigação em Psicologia até então (para um
não havia dados claros que suportassem directa- outro exemplo de adaptação do método de
mente uma tal mudança radical mas o que talvez Donders ver Sternberg, 1977).
seja mais surpreendente é que também não Os resultados reportados por Smith e Miller
havia resultados experimentais que suportassem (1983) não podiam ter sido mais descon-
directamente a proposta das teorias clássicas de certantes para a maioria dos investigadores da
atribuição causal. No entanto, este estado de época que viam em Jones e Davis (1965) e
coisas foi sol de pouca dura. depois em Kelley (1967; Orvis et al., 1976) o
Em 1983, Smith e Miller (1983) resolveram auge do desenvolvimento teórico em percepção
testar directamente a noção estabelecida de que de pessoas e atribuição causal. É que os tempos
as pessoas, enquanto cientistas ingénuos, de resposta às questões disposicionais não só
procuram compreender o mundo social que as não se distinguiam dos tempos de resposta da
rodeia através da identificação das causas condição controlo, sugerindo que estas inferên-
(situacionais ou disposicionais) e só depois cias disposicionais (tal como a identificação do
realizam inferências mais específicas (e.g., género do actor) ocorrem durante a leitura das
intenções, disposições). Para o efeito, estes próprias frases, como eram significativa e
autores decidiram estudar o tempo que as substancialmente inferiores aos tempos de
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 133

133

resposta às questões atribucionais. Quer isto de um conjunto de movimentos ou actos físicos


dizer que a visão clássica (e.g., Orvis et al., quando as mesmas acções podem ser descritas
1976) de que só se realizam inferências de diversas formas. Por exemplo, como poderá
correspondentes se houver previamente uma ser descrita a acção duma colega sentada ao
atribuição causal do comportamento ao actor foi nosso lado durante o exame de Psicologia Social
claramente refutada. Por outras palavras, que nos passa uma folha de papel com
quando lemos que “O João pisou a namorada informação relevante para o exame: “contraiu
enquanto dançava o fox-trot” é provável que alguns músculos do braço deslocando pelo ar
durante a própria leitura da frase infiramos o um pedaço de papel na nossa direcção”; ou
traço de personalidade “desajeitado”. Posterior- “estava a tentar ser prestável”? Eis uma questão
mente, se nos perguntarem ou se de alguma que qualquer leigo e muitos filósofos e
forma tal for relevante para nós, poderemos vir psicólogos sabem a resposta: temos uma clara
a atribuir a causa do comportamento a alguma preferência pela identificação do comporta-
coisa sobre o João (ou a algum aspecto da mento que remete para as intenções dos actores,
situação). ou seja, “ser prestável”. Contudo esta não é a
Ao demonstrar a clara primazia temporal das questão mais importante. Senão vejamos, será
inferências de traços de personalidade em que aquilo que a nossa colega fez foi “ser
relação à atribuição causal, o trabalho experi- prestável” (ajudar-nos no exame) ou foi “ser
mental de Smith e Miller (1983), não só desonesta” (deixar-nos copiar e assim quebrar
suportava empiricamente uma das premissas uma regra básica de conduta numa prova de
basilares da proposta teórica de Quattrone avaliação individual)? A resposta é…ambígua.
(1982) como também anunciava a morte Ou seja, dado que para cada conjunto de acções
conceptual das teorias clássicas de atribuição há sempre um leque variado de possíveis
causal. No entanto, foi recebido com modesto interpretações, o problema de identificação das
aplauso e relativa indiferença pela comunidade acções é na verdade um problema de resolução
científica da época. da ambiguidade. De forma algo revisionista
Mas as coisas não ficaram por aqui. A ênfase poder-se-ia hoje dizer que as noções de efeitos
na descrição pormenorizada da sequência de não comuns e de desejabilidade social avan-
operações mentais que caracterizam os proces- çadas pela teoria das inferências correspon-
sos cognitivos humanos tornou saliente uma dentes (Jones e Davis, 1965) funcionam como
outra lacuna no tipo de explicação fornecida “regras inferenciais” de redução da ambigui-
pelas abordagens atribucionais clássicas. É que dade na identificação dos comportamentos (ver
estas nada nos dizem sobre a forma como Gilbert, 1998). Independentemente do mérito
passamos da observação de acções à identifica- desta posição, a verdade é que os psicólogos
ção de comportamentos com significado. Quer sócio-cognitivos abordaram o problema de
dizer, antes de realizarmos inferências ou resolução da ambiguidade de forma radical-
mesmo atribuições com base em comporta- mente diferente. Em vez de insistir na pres-
mentos é necessário identificar o significado crição de regras que o senso-comum deveria
destes comportamentos. Como é que o fazemos? seguir, a perspectiva sócio-cognitiva foi a de
Como é que extraímos significado psicológico considerar a história passada do percepiente e o
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 134

134

contexto social em que este se encontra na altura Kintsch, 1974; Reder, 1979; para uma revisão
em que procura identificar o comportamento, ver Kintsch, 1998) e que coexistem com as
como factores que predispõem à aceitação de nossas reflexões conscientes. Aliás, estes
um significado do comportamento em detri- processos estão a acontecer consigo, neste
mento de outros. Por exemplo, se observamos preciso instante. Com efeito, neste momento o
uma pessoa a roer as unhas na sala de espera do leitor poderá estar a pensar na frase anterior, em
dentista, o conhecimento prévio que temos tudo o que ainda tem que estudar para o exame
sobre ela (costuma agir assim quando está (para além de ler este capítulo), ou até nas
nervosa) e o conhecimento sobre a situação em próximas férias. Agora o que certamente não
ela se encontra (prestes a submeter-se a diversas estará a fazer conscientemente é a tentar
sevícias como injecções nas gengivas, brocar os predizer ou inferir a palavra com que esta frase
dentes, etc.) leva-nos provavelmente a identi- termina e, no entanto, processos cognitivos
ficar o comportamento de “roer as unhas” automáticos estão a fazê-lo por si. Ou seja, estão
enquanto reflectindo “elevada ansiedade” e não a antecipar, a tentar predizer, ou melhor dizendo
enquanto, digamos, “necessidade de ir à a inferir espontaneamente o que vem a seguir
manicure”. Note-se que embora a identificação neste texto para que possa continuar a pensar…
de um comportamento se trate de um processo naquilo que está a pensar. De resto, são estas
de desambiguação este não é percepcionado inferências espontâneas que fazem de si um
como tal por nós, enquanto observadores. bom leitor. Uma forma simples de demonstrar
Provavelmente porque a desambiguação não esta actividade espontânea é justamente impedi-
decorre da aplicação consciente de quaisquer la. Como? Por exemplo, escrevendo uma frase
regras inferenciais mas ocorre espontaneamente relativamente à qual as suas predições estejam
com base em processos cognitivos largamente surpreendentemente bananas...quer dizer,
automáticos cuja operação ocorre sem esforço erradas. Está a ver? Os seus mecanismos
nem intencionalidade, é dificilmente contro- inferenciais espontâneos falharam e com isso
lável, e envolve pouco ou nenhum acesso esperamos ter conseguido a sua atenção por
consciente (ver Bargh, 1984, 1989). Tudo a que mais algum tempo.
temos acesso é ao output do nosso proces-
samento cognitivo após este ter resolvido a 2.1. Inferências espontâneas de traços
ambiguidade relativa aos múltiplos significados de personalidade
de uma mesma acção: “claro que é nervosismo,
que mais poderia ser?”. Não foi preciso esperar muito tempo para
Note-se que esta noção de processos que alguém propusesse explicitamente aquilo
inferenciais automáticos que actuam esponta- que provavelmente muitos já suspeitavam mas
neamente não era nova em psicologia cognitiva. não se atreviam a dizer: não só a identificação
A investigação sobre os mecanismos cognitivos comportamental mas também a inferência de
subjacentes à leitura e compreensão de texto já traços de personalidade a partir do comporta-
há algum tempo constatava que o acto de ler mento pode ocorrer espontaneamente. Esta
envolve a realização de inferências que vão proposta foi pela primeira vez apresentada preto
muito para além das palavras do texto (e.g., no branco por Winter e Uleman (1984).
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 135

135

O paradigma de recordação com pistas pistas na fase de recordação do que quando


estes participantes realizaram recordação livre
Vejamos como tudo começou. Laraine (i.e., recordação sem pistas de memória); e foi
Winter frequentava um curso avançado de pelo menos tão bom como quando se
Psicologia cognitiva no âmbito do seu programa apresentavam como pistas de memória palavras
de Doutoramento orientado por James Uleman que são fortes associados semânticos das frases
quando se deu conta que poderia aplicar o (e.g., “escreve” que está semanticamente
princípio de codificação específica (Tulving e associado à acção da frase: “…publicou o seu
Thompson, 1973) para testar a hipótese das poema…”) ou dos actores das frases (e.g., “pai”
inferências espontâneas de traço. De acordo palavra semanticamente associada ao actor da
com este princípio de memória, a recuperação mesma frase “a mãe…”). Note-se que a partir
do contexto da codificação durante a recupe- do desempenho mnésico usando os associados
ração leva a melhor desempenho mnésico. Por semânticos como pistas é possível estimar a
outras palavras, se num teste de memória dois eficácia máxima das pistas com associações
eventos são codificados em conjunto a pré-existentes às frases. Ao demonstrar que os
apresentação de um deles na fase de recordação traços de personalidade são pelo menos tão
facilita a recuperação do outro. eficazes como estes associados não estando eles
Imagine-se agora que se apresentam várias próprios previamente associados às frases,
descrições comportamentais implicativas de Winter e Uleman (1984) concluíram que a sua
traços cujo actor é designado pelo seu papel eficácia resulta com toda a probabilidade de
(e.g., “a mãe publicou o seu poema no inferências e associações realizadas durante a
NewYorker”) e que se pede aos participantes codificação.
não para formar impressões sobre os actores Mas como se pode ter a certeza que os
destas frases mas meramente para memorizar participantes não realizaram intencionalmente
estas frases o melhor possível. Se, apesar das inferências correspondentes como uma estra-
instruções de memória, as pessoas, ao lerem tégia mnemónica? Bom, vários indícios pare-
estas frases inferirem espontaneamente os ciam tornar esta possibilidade pouco provável
traços de personalidade implicados (e.g., como seja o facto de, em entrevistas pós-expe-
“talentosa”) os respectivos pares frase-traço rimentais realizadas por Winter e Uleman
serão codificadas em conjunto. De acordo com (1984), os participantes não só negarem o uso
o princípio de codificação específica isto quer de uma tal estratégia como ficarem surpreen-
então dizer que, na fase de recordação, a didos ao saber que os traços de personalidade
apresentação dos traços de personalidade como tinham melhorado o seu desempenho mnésico.
pistas de memória deverá facilitar a recuperação No entanto, poucos psicólogos experimentais
das descrições comportamentais que os impli- ficam extraordinariamente convencidos com
cam. De facto, usando o paradigma experimen- este tipo de indicações qualitativas. Assim, um
tal resumido acima, Winter e Uleman (1984) ano depois, Winter, Uleman e Cunniff (1985)
verificaram que o desempenho mnésico dos foram um pouco mais longe, e testaram de
participantes foi melhor quando os traços impli- forma mais rigorosa não só a natureza incons-
cados pelas frases foram apresentados como ciente e não intencional das inferências espon-
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 136

136

tâneas assim como a sua eficiência cognitiva. “roupa”), ou sem pistas (recordação livre).
Ou seja até que ponto fazem uso de recursos Winter e colaboradores (1985) replicaram os
cognitivos gerais (interferindo com outra resultados de Winter e Uleman (1984) indepen-
actividade mental concomitante) ou não. Os par- dentemente do grau de sobrecarga cognitiva em
ticipantes do estudo de Winter e colaboradores que os participantes da experiência se encontra-
(1985) eram informados que se tratava de um vam (números de um dígito versus números de
estudo sobre memória de números. E que após a múltiplos dígitos). O desempenho mnésico no
apresentação de cada número (que podia ter um teste de memória surpresa para as frases
ou múltiplos dígitos e que devia ser lido em apresentadas como distractores foi melhor
voz alta) havia uma “tarefa distractora” que quando os traços implicados por estas frases
consistia na leitura em voz alta de uma frase. eram usados como pistas de memória do que
Seguidamente os participantes deviam dizer quando os associados semânticos eram usados
(mais uma vez em voz alta) qual o número que como pistas ou quando não eram usadas pistas
lhes tinha sido apresentado antes da frase. Como (recordação livre). Os traços de personalidade e
o leitor já terá suspeitado estes distractores eram as palavras-sumário4 revelaram-se pistas de
na verdade frases implicativas de traços de memória igualmente boas.
personalidade (e.g., “o alfaiate carregou as Aparentemente, apesar da natureza irrele-
compras da velha senhora”) que os experi- vante das frases implicativas de traço as pessoas
mentadores apresentaram como “material inferiram espontaneamente os traços implicados
irrelevante” para o objectivo do estudo. Note-se pelas frases. Bem, aparentemente, sim. Mas
que qualquer tentativa de inferir intencio- ainda assim muitos investigadores não ficaram
nalmente traços por parte dos participantes não convencidos por estes primeiros trabalhos sobre
só não teria utilidade para o desempenho dos inferências espontâneas de traço. Com efeito,
participantes (uma vez que estes não sabiam que estes violavam a noção largamente aceite de que
a sua memória para as frases ia ser testada) observações isoladas do comportamento não
como iria competir em termos de recursos são suficientes para desencadear inferências de
cognitivos gerais com a tarefa de nomeação e traços de personaldade na ausência de intenções
recordação de números em que os participantes explícitas para as fazer (Park, 1989; Srull e
estavam envolvidos, afectando o seu desem- Wyer, 1979). Reuniram-se assim as condições
penho nesta tarefa. No fim havia um teste de para o lançamento de um profundo debate
memória surpresa usando como pistas traços conceptual que se estende até aos dias de hoje.
implicados pelas frases (e.g., “prestável”), A primeira grande objecção aos resultados
acções que sumariavam a acção (e.g., “ajudar”), de Winter e colaboradores foi que os efeitos de
pistas semanticamente associadas ao actor (e.g., memória encontrados não resultavam necessa-

4
A natureza destas palavras-sumário não é totalmente clara. Inicialmente cada palavra sumário foi pensada enquanto
um associado semântico de cada frase como um todo. No entanto, é evidente que são mais do que isso. Muitas vezes dizem
respeito aos objectivos e intenções do actor. Neste sentido podem corresponder a outras inferências espontâneas que são
realizadas ao ler as frases e que segundo Uleman e Moskowitz (1994) não são directamente relevantes para as inferências
de traço.
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 137

137

riamente das inferências espontâneas realizadas condições de recuperação foram mantidas


durante a codificação das frases mas que constantes (i.e., a tarefa de recordação com
poderiam decorrer de processos cognitivos que pistas era a mesma) e se variou apenas as condi-
ocorrem durante a recordação. Por exemplo, ções de codificação (i.e., sobrecarga cognitiva),
perante um traço apresentado como pista, os verificou-se que os traços foram tanto melhores
participantes começariam por gerar compor- pistas de memória para as frases que os
tamentos tipicamente implicativos deste traço implicam quanto mais facilmente foram
(e.g., comportamentos tipicamente prestáveis inferidos quando os participantes liam estas
incluem ajudar os mais velhos em tarefas físicas frases. Ou seja, embora as inferências espon-
como… carregar as compras…), sendo estes tâneas tendam sempre a ocorrer no estudo de
comportamentos (e não directamente os traços) Uleman e colaboradores (1992), a facilidade de
que mediavam a recordação das frases realização destas inferências espontâneas é
implicativas de traço apresentadas na fase de tanto maior quanto mais são os recursos
estudo (e.g., “o alfaiate carregou as compras da cognitivos disponíveis. Note-se que uma expli-
velha senhora”). Uma segunda objecção pren- cação meramente baseada em processos que
dia-se com o facto de Winter e colaboradores ocorram ao nível da recuperação da informação
(1985) não terem verificado directamente se a (e.g., Wyer e Srull, 1979) não pode predizer
sua tarefa de sobrecarga cognitiva tinha quaisquer disparidades no desempenho mnésico
efectivamente reduzido os recursos cognitivos em função de diferentes condições de codifica-
dos participantes5. Uleman e colaboradores ção das frases implicativas de traço. Neste
responderam a esta crítica da melhor forma: sentido, acresce a evidência de que as infe-
com mais estudos experimentais. Por exemplo, rências espontâneas de traço ocorrem efectiva-
Uleman, Newman, e Winter (1992) voltaram a mente durante a codificação. Mas, por outro
usar o paradigma de Winter e colaboradores lado, o mesmo estudo mostra que afinal estas
(1985) mas desta vez usando mais um nível de inferências de traço não são assim tão espon-
sobrecarga cognitiva mínima e incluindo uma tâneas, no sentido em que são afectadas pelos
medida directa de sobrecarga cognitiva6. recursos cognitivos disponíveis durante a leitura
Contrariamente ao esperado pelos autores, das frases. Estudos posteriores levaram este
maior sobrecarga cognitiva levou a pior argumento mais longe mostrando que a
recordação quando os traços implicados pelas ocorrência de inferências espontâneas depende
frases eram usados como pistas de memória do nível de profundidade a que as frases são
(Uleman et al., 1992). Por outro lado, quando as processadas. No limite, se tudo o que as pessoas

5
Isto permitia uma interpretação alternativa dos seus resultados segundo a qual os participantes poderiam ter-se
esforçado tanto a memorizar os números de múltiplos dígitos como a memorizar os números de um dígito, não havendo
assim uma verdadeira condição de sobrecarga cognitiva.
6
Esta tarefa consistia na apresentação aleatória de sinais luminosos durante fase de apresentação de frases e números
(no mesmo ecrã) com instruções para (sempre que estes sinais surgissem) carregar o mais rapidamente possível num botão
previamente definido. Se, de facto uma condição em que se usavam múltiplos dígitos levasse a maior sobrecarga cognitiva
do que uma condição de memorização menos exigente (e.g., memorizar números de um dígito), então os participantes na
condição múltiplos dígitos deveriam apresentar tempos de reacção maiores a carregar no botão.
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 138

138

fizerem for dar atenção a aspectos superficiais resultados iniciais de Winter, Uleman e
das palavras usadas na construção das frases colaboradores efectivamente mostraram que os
implicativas de traços (e.g., localizar os “Hs” traços de personalidade usados como pistas de
que existem numa frase), as inferências memória eram melhores pistas de memória para
espontâneas (tal como medidas no paradigma de as frases do que para o sujeito das frases, ou
recordação com pistas) deixam de ocorrer seja, os actores dos comportamentos (e.g.,
(Uleman e Moskowitz, 1994; Uleman, Newman, Winter e Uleman, 1984).
e Moskowitz, 1996). Em suma, estudos como
estes, embora tenham salvo a noção de
inferências espontâneas de traço de uma morte O paradigma de ganhos de reaprendizagem
conceptual prematura, introduziram constrangi-
mentos e especificações relativamente à natu- Donal Carlston, um psicólogo social interes-
reza automática destas inferências. Poder-se-á sado em percepção social e formação de impres-
assim dizer-se que uma inferência espontânea sões, inventor de jogos de mesa de relativa
de traço é espontânea no sentido em que ocorre popularidade, e um acérrimo crítico da ideia de
sem a necessidade de uma intenção explícita de que as inferências espontâneas de traço se
compreensão do comportamento dos outros e de referem aos actores, resolveu participar neste
forma largamente inconsciente. Mas não é debate. Para o efeito pensou num novo para-
verdadeiramente espontânea no sentido em que digma experimental que lhe permitisse demons-
depende de objectivos de processamento gerais trar que a noção de que inferimos traços de
de dar sentido à informação social que nos personalidade sobre outras pessoas sem termos
rodeia e de um nível mínimo de recursos explicitamente esse objectivo e sem sequer
cognitivos gerais disponíveis. estarmos conscientes disso era pura fantasia.
Uma segunda objecção de peso dizia O paradigma experimental proposto (Carlston
respeito ao referente das inferências espontâ- e Skowronski, 1994) baseia-se numa descoberta
neas de traço. Ou seja, quando inferimos de Ebbinghaus tão antiga como a própria
“aventureiro” a partir da frase o “o João saltou investigação experimental em memória humana.
da ponte 25 de Abril atado a uma corda elástica” Ebbinghaus (1885) que era simultaneamente o
estamos a inferir um traço de personalidade que experimentador e o sujeito das suas próprias
se refere ao João (“o João é aventureiro”) ou experiências, verificou que depois de aprender
estamos simplesmente a inferir um traço que se uma lista de estímulos (tripletos de letras) a
refere ao comportamento (“o João teve um sua capacidade de recordação destes estímulos
comportamento aventureiro)? Como já vimos, a decaía progressivamente até ao esquecimento
noção de que usamos traços para identificar e completo da lista. No entanto, quando rea-
descrever o comportamento não era nova e prendia as mesmas listas, demorava con-
portanto é altamente provável que descrevamos sistentemente menos tempo do que da primeira
espontaneamente o comportamento do João vez. Ou seja, há ganhos na reaprendizagem
como “aventureiro”. Mas será que a actividade (mesmo após ter-se esquecido tudo o que se
inferencial se resume à identificação das frases? estudou) que parecem resultar da memória
A questão fazia tanto mais sentido quanto os implícita para os itens da lista. O insight de
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 139

139

Carlston foi pensar que, mutatis muntantis, se as dentes), outros emparelhados com traços
pessoas espontânea e implicitamente inferem implicados por descrições iniciais feitas por
traços referentes aos actores quando lêem outros actores (ensaios não correspondentes); e
comportamentos implicativos de traço, estas outros ainda emparelhados com novos traços
inferências poderão funcionar como uma (não implicados por nenhuma das descrições
primeira instância de aprendizagem dos respec- iniciais). Por fim, numa terceira fase, passa-se à
tivos pares actor-traço. Se, posteriormente tarefa de recordação. As fotos são apresentadas
pedirmos às pessoas para memorizar pares sequencialmente e, por baixo da foto de cada
actor-traço correspondentes aos pares actor-frase actor os participantes devem escrever o traço
implicativa do mesmo traço que leram numa que estava associado aquele actor na fase
primeira fase, espera-se uma facilitação da anterior.
aprendizagem porque implicitamente trata-se de Os resultados obtidos surpreenderam muita
uma segunda instância de aprendizagem destes gente mas provavelmente ninguém mais do que
mesmos pares. Dizemos implicitamente porque o próprio Carlston. É que contrariamente ao que
as pessoas não se recordam das inferências ele esperava, a aprendizagem dos pares
espontâneas de traço que realizaram inicial- actor-traço foi facilitada no caso dos ensaios
mente, não exactamente porque se tenham correspondentes (por comparação com os pares
esquecido delas (como no caso de Ebbinghaus) não correspondentes e com os pares que
mas porque, em princípio, não as realizaram envolviam novos traços) mesmo quando os par-
conscientemente. ticipantes foram instruídos para meramente se
Mais especificamente, o paradigma proposto familiarizarem com o material. E mais, esta
(Carlston e Skowronski, 1994) consiste na facilitação foi de igual magnitude à dos
apresentação sequencial de fotos de faces de participantes instruídos para formar impressões.
diversos actores cada uma das quais com uma
Ou seja, ocorreram “ganhos de reaprendi-
breve descrição comportamental (e.g., “eu odeio
zagem” sem qualquer referência explícita às
animais. Ainda outro dia ia a andar a caminho
descrições comportamentais iniciais ou à pri-
da sala de bilhar e vi um cãozinho, dei-lhe logo
meira fase da experiência, revelando que a
um pontapé para o tirar do meu caminho”)
ligação inferencial implícita actor-traço não está
fortemente implicativa de um traço de perso-
dependente de processos conscientes de recupe-
nalidade (“cruel”). No início desta apresen-
ração de informação. Carlston e Skowronski
tação, os participantes são instruídos para
meramente se familiarizarem com os estímulos (1994) mostraram ainda que os efeitos desta
que vão ser apresentados ou para formar associação implícita actor-traço são duradouros
impressões. Numa fase posterior, após uma (pelo menos uma semana). No entanto, os
tarefa distractora, há uma tarefa de aprendi- participantes não conseguiam um desempenho
zagem explícita de pares actor-traço. Os ensaios melhor do que o acaso numa tarefa de reconhe-
desta tarefa incluem os mesmos actores (fotos), cimento explícito das frases inicialmente
alguns emparelhados com os traços implicados apresentadas logo após o fim da fase de teste.
pelas descrições iniciais que estes actores A explicação mais parcimoniosa para um tal
fizeram de si próprios (ensaios correspon- padrão de resultados é a de que as inferências
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 140

140

espontâneas de traço têm uma natureza implí- traços de personalidade, associados semânticos,
cita e referem-se aos actores dos compor- palavras-sumário) apresentadas, uma por cada
tamentos implicativos de traço. linha, e só depois recordava as restantes frases
livremente (sem quaisquer pistas) tendo, para o
efeito, linhas em branco no fim da folha de
Reavaliação da evidência a favor das resposta. O resultado de um tal procedimento é
inferências espontâneas de traço que os itens previamente recordados (no caso,
sempre com a ajuda de pistas) vão prejudicar a
Em suma, com o passar dos anos a rápida e recordação livre e isto nada tem a ver com
efervescente investigação em inferência de traço inferências de traço supostamente realizadas
convergia em evidência experimental cada vez durante a codificação. Ou seja, os resultados
mais convincente. Eis senão quando D’Agos- obtidos nestes paradigmas tanto podiam ser o
tino e Beegle (1996) puseram água na fervura, reflexo de inferências espontâneas durante a
apresentando uma crítica e dados empíricos que codificação como um mero efeito de inter-
punham em causa a interpretação dos resultados ferência de pistas durante a recordação.
decorrentes do paradigma de recordação com D’Agostino e Beegle (1996), resolveram esta
pistas (e.g., Winter e Uleman, 1984; Winter et sobreposição de explicações alternativas utili-
al., 1985) assim como levantaram problemas zando uma vez mais o paradigma de recordação
conceptuais quanto à interpretação que Carlston com pistas mas incluindo condições em que os
e Skowronski (1994) faziam dos resultados participantes ou faziam só recordação com
obtidos com o seu paradigma experimental dos pistas ou faziam só recordação livre. Desta
ganhos de reaprendizagem. forma não havia possibilidade de interferência e
A crítica dos paradigmas de recordação com portanto se a superioridade da recordação com
pistas era simples e, num certo sentido nem era pistas se devia às inferências espontâneas
nova uma vez que se baseia no efeito de realizadas durante a codificação das frases
interferência na recordação de múltiplos itens implicativas de traço, os participantes que recor-
de uma mesma lista de estudo, há muito davam com pistas deveriam ter melhor desem-
investigado em memória (e.g., Roediger, 1974). penho mnésico. Curiosamente, não tiveram.
De acordo com este efeito, os primeiros itens Pelo contrário, o desempenho mnésico tendia a
que são recordados de uma lista tendem a ser pior quando se forneciam os traços impli-
interferir com os que ainda não foram recor- cados pelas frases como pistas de memória do
dados dificultando ou mesmo impossibilitando que quando os participantes recordavam as
a sua recordação. Ora, nos estudos em infe- frases sem pistas. De acordo com o princípio da
rências espontâneas de traço que usaram o codificação específica se uma dada informação
paradigma de recordação com pistas os (e.g., traço de personalidade) é codificada com
participantes primeiro recordavam com base nas o resto da frase (neste caso, inferida na altura
pistas e só depois faziam recordação livre. Quer que se lê a frase) então o uso desta informação
dizer, um mesmo participante começava por como pista de memória deve facilitar a
recordar um subconjunto das frases previamente recordação da frase. No entanto, se a mesma
lidas com a ajuda de pistas de memória (e.g., informação não é codificada com a frase o seu
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 141

141

uso como pista de memória não só não deve que esta fornece evidência clara que as
facilitar a recordação como pode prejudica-la inferências de traço são codificadas e associa-
(e.g., Tulving e Thompson, 1973). Por outro das ao actor do comportamento na ausência de
lado ainda, os dados reportados por D’Agostino instruções explícitas. Mas questionam, serão
e Beegle (1996), sugerem que o aumento do estas inferências realizadas sem intenção e sem
número de pistas (de metade das frases com consciência? É que, como vimos, as descrições
pistas para todas as frases com pistas) piora o que Carlston e Skowronski (1994) apresentam
desempenho mnésico. O que quer isto dizer? de cada actor não são curtas frases implicativas
Antes de mais, é preciso reconhecer que de traço como no caso de Uleman e cola-
D’Agostino e Beegle (1996) têm razão na sua boradores. São descrições relativamente longas,
crítica. A superioridade da recordação com incluindo múltiplos factos sobre o compor-
traços de personalidade como pistas em relação tamento do actor e por vezes até sobre as suas
a recordação livre que foi identificado como um atitudes (e.g., “eu odeio animais…”). D’Agos-
dos critérios de demonstração da existência das tino e Beegle (1996) chamaram a atenção para a
inferências espontâneas de traço (e.g., Winter, possibilidade de uma tal riqueza de informação
Uleman, e Cunniff, 1985) é definitivamente um sobre a personalidade do actor levar os par-
critério inválido. Já não é contudo tão claro que ticipantes a formar impressões mesmo quando
conclusões retirar no caso das comparações do instruídos para memorizar. Esta crítica tem
desempenho mnésico em função do tipo de razão de ser sobretudo porque uma outra
pistas usadas. Com efeito, uma interpretação investigadora, Bernadette Park, já tinha mos-
dos argumentos de D’Agostino e Beegle (1996) trado que a exposição a faces acompanhadas de
segundo a qual todas as pistas de memória que descrições de personalidade auto-referentes
não são codificadas (inferidas) com as frases ricas e consistentes desencadeia, espontanea-
prejudicam o desempenho não se coaduna mente, objectivos de formação de impressões
facilmente com uma análise mais detalhada da (Park, 1989)8.
investigação que usou o paradigma de recor- Como se isto não chegasse para complicar a
dação com pistas7. demonstração da existência de verdadeiras
No que diz respeito ao novo paradigma dos inferências espontâneas de traço, os próprios
ganhos de reaprendizagem (Carlston e Skow- Carlston e Skowronski (1995) ao fazerem um
ronski, 1994), D’Agostino e Beegle (1996), na follow-up da sua investigação de 1994, não só
reavaliação que fazem da investigação sobre confirmam os resultados originais como vão
inferências espontâneas de traço, reconhecem ainda mais longe (ou talvez longe demais)

7
A explicação da interferência das pistas na recuperação dificilmente dá, só por si, conta dos efeitos de variáveis como
o grau de profundidade semântica com que se processam as frases implicativas de traço (Uleman e Moskowitz, 1994).
8
Os resultados de Park (1989) e outros mais recentes (e.g., Bargh e Chartrand, 1994) sugerem que objectivos de
processamento como formação de impressões podem ser desencadeados sem que os participantes sejam explicitamente
instruídos para o efeito e sem que estes estejam conscientes dos factores desencadeadores. No entanto, isto não quer dizer
que os processos envolvidos na formação de impressões (e.g., inferências de traços) ocorram sem consciência ou mesmo
sem intenção.
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 142

142

mostrando que mesmo quando se informam ções traço-actor. Note-se que se as inferências
explicitamente os participantes que as des- espontâneas de traço pudessem ser reduzidas a
crições não se referem às pessoas que aparecem meras associações estaríamos a falar de uma
nas fotos (e.g., dizendo aos participantes que a montanha de investigação que pariu um rato.
pessoa da foto descreve o comportamento de Pelo menos no sentido em que modelos
outrem), o traço de personalidade implicado associativos de aprendizagem animal seriam
pela descrição continua a ficar associado à provavelmente suficientes para explicar estas
pessoa. Um fenómeno que os autores apeli- associações.
daram de transferências espontâneas de traço.
As transferências espontâneas de traço não se
distinguem das inferências espontâneas de traço O Paradigma dos falsos reconhecimentos
excepto que as últimas correspondem normal-
mente a ligações implícitas actor-traço mais Mas, como se pode calcular, a coisa não
fortes. Pouco tempo depois Brown e Bassili ficou por aqui. Alexander Todorov, outro
(2002) num artigo intitulado “Associações estudante de Jim Uleman, desenvolveu no
espontâneas de traço e o caso da banana âmbito do seu projecto de Doutoramento um
supersticiosa” mostram que os traços inferidos a dos mais recentes paradigmas experimentais em
partir das descrições comportamentais ficam
inferências espontâneas de traço que, como
não só ligados ao actor mas são igualmente
veremos, consegue responder a muitas das
associados a quaisquer outros alvos que co-
críticas levantadas acima. Todorov baseou-se
ocorram com o par actor-descrição comporta-
numa abordagem da investigação em memória
mental mesmo quando estes alvos são objectos
humana que parte da noção de que as recor-
inanimados. Assim, se uma descrição compor-
dações de memórias passadas não incluem
tamental implicativa de um traço de perso-
informação sobre a fonte ou origem destas
nalidade como “supersticioso” for apresentada
memórias (Johnson, Hashtroudi, e Lindsay,
com uma foto do actor do comportamento,
forma-se uma ligação implícita actor-supersti- 1993). Assim, a identificação da origem de uma
cioso (e.g., Carlston e Skowronski, 1994). memória (e.g., foi algo que imaginei ou
No entanto, se ao lado da foto do actor se aconteceu mesmo?) é um processo de decisão
apresentar a foto de um outro alvo, por exemplo que tem por base certas características da
uma banana, forma-se igualmente a ligação própria recordação, (e.g., “é uma história tão
banana-supersticiosa (Brown e Bassili, 2002). implausível que devo ter imaginado”). Decorre
Em suma, o debate estava relançado. A questão daqui que quanto maior for a semelhança
central já não era exactamente se os traços semântica entre potenciais fontes internas e
espontaneamente inferidos se referiam aos externas de uma mesma memória mais difícil é
actores dos comportamentos ou não mas sim se identificar a fonte correcta (e.g., “será que sonhei
se tratavam de verdadeiras inferências no ou estava tão embriagado que tudo parecia como
sentido em que o traço de personalidade é um sonho?” Ou “será que o Carlos me disse que
codificado como um atributo do actor ou, como precisava de ovos ou eu inferi que ele queria ovos
alguns novos dados sugeriam, meras associa- porque sabia que ele ia fazer um bolo?”).
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 143

143

Consideremos agora um paradigma experi- implicados por estas frases (Filipe – distraído),
mental que usa um conjunto de frases impli- outras vezes ainda com traços que não só eram
cativas de traço, cada uma apresentada com um implicados pelas frases mas também faziam
actor (foto) diferente. Durante a fase de estudo efectivamente parte destas frases (André – agres-
(onde os participantes são instruídos para sivo). Especificamente, a tarefa dos partici-
memorizar a informação que vai ser apresen- pantes é a de dizer, para cada par, se a palavra
tada), cada uma destas frases pode ser apre- (traço de personalidade) estava ou não presente
sentada incluindo o traço (e.g., O André é tão na frase que descrevia aquele actor na fase de
agressivo que ameaçou bater-lhe se ele não estudo. Se, os participantes inferem espon-
retirasse o que disse) ou não incluindo o traço taneamente os traços implicados pelas frases
(e.g., O André ameaçou bater-lhe se ele não durante a sua leitura (fase de estudo) então terão
retirasse o que disse)9. Ou seja, duas versões maior dificuldade em identificar a fonte das
semanticamente muito parecidas com a excep- suas memórias (i.e., ter lido ou ter meramente
ção da presença/ausência do traço implicado. inferido a palavra traço) quando a palavra
Imagine agora que três das frases de estudo emparelhada com a foto do actor na fase de teste
são justamente a frase “O André é tão agressivo é implicada pela frase anteriormente associada
que ameaçou bater-lhe se ele não retirasse o que ao mesmo actor. Assim, nestes casos devem
disse”; a frase “O Filipe ganhou o torneio de ocorrer mais falsos reconhecimentos (e.g.,
xadrez da sua escola” (traço implicado: reconhecer erradamente que a palavra amável
inteligente) e a frase “O Paulo ajudou a velha estava na frase que descrevia o Paulo) decor-
senhora a atravessar a rua (traço implicado: rentes da confusão das fontes interna (palavra
amável). Cada uma destas frases é então meramente inferida) e externa (palavra lida).
apresentada emparelhada com uma foto do actor O paradigma experimental que acabámos de
do comportamento descrito na frase. Os par- descrever foi proposto por Todorov e Uleman
ticipantes são instruídos para memorizar estes e (2002) e é normalmente conhecido pelo para-
outros pares foto-frase num total que pode ir de digma dos falsos reconhecimentos. Os resul-
36 a 120 pares conforme os estudos (ver tados repetidamente obtidos em diversas expe-
Todorov e Uleman, 2002). riências (Todorov e Uleman, 2002, 2003)
A fase de teste consiste numa tarefa de confirmam a predição central dos autores – frases
reconhecimento da fonte ou origem mnésica implicativas de traço levam a mais falsos
de cada traço de personalidade. Assim, nesta fase, reconhecimentos. Estes resultados, embora não
as fotos dos actores aparecem emparelhadas sejam isentos de crítica (ver caixa 4) são mais
com palavras referentes aos traços de per- difíceis de explicar sem considerar que as
sonalidade que por vezes tinham sido só pessoas inferem espontaneamente traços durante
implicadas pelas frases (Paulo – amável), outras a leitura inicial das frases. Fica também
vezes aparecem emparelhadas com traços não demonstrado que os traços não só são implici-

9
Note-se que na prática cada frase implicativa de traço tem, neste paradigma experimental, duas versões. Um que inclui
o traço implicado e outra que não inclui este traço. Como é evidente cada participante é exposto apenas a uma das versões
de cada frase.
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 144

144

CAIXA 4

Paradigma de Reconhecimento on-line.

Os paradigmas experimentais referidos e discutidos ao longo deste capítulo não são, só por
si, totalmente satisfatórios na demonstração de que as inferências espontâneas de traços
ocorrem online, i.e., logo durante a codificação da informação comportamental e de maneira
largamente automática. Isto porque estes paradigmas baseiam-se todos em tarefas de memória
relativamente complexas que certamente envolvem muito mais processamento controlado da
informação do que os paradigmas clássicos usados para estudar processos automáticos (ver,
Bargh, 1984). De facto, com a excepção de tarefas que envolvem tempos de execução na ordem
dos 200 ou 300 ms, será difícil encontrar qualquer tarefa em psicologia experimental que não
seja realizada por uma combinação de processos automáticos e controlados. Assim, embora, os
resultados obtidos por estes paradigmas estejam de acordo com uma noção de relativa
automaticidade das inferências espontâneas de traço, diversos autores sentiam que era
necessária evidência mais directa a favor da hipótese de que realizamos inferências de traço
online e de forma espontânea (não intencional).
Foi justamente no sentido de encontrar tal evidência que Uleman, Hon, Roman e Moskowitz,
(1996) adaptaram um paradigma experimental tipicamente usado na compreensão de texto (McKoon
e Ratcliff 1986) ao estudo das inferências espontâneas de traço. Este paradigma baseia-se no
reconhecimento de palavras previamente apresentadas ou implicadas nas frases de um texto. Assim,
por exemplo, McKoon e Ratcliff (1986) mostraram que ao lermos uma história onde a certa altura
surgem frases como “o super-homem agarrou as grades da prisão e começou a puxar” fazemos
inferências preditivas automáticas como “dobrar”. Ou seja antecipamos que o super-homem vai
dobrar as barras de ferro da prisão. Como é que os autores chegaram a esta conclusão? É que em
testes de reconhecimento surpresa onde se pedia aos leitores para, logo após a leitura desta frase,
indicar o mais rapidamente possível se a palavra inferida “dobrar” estava na frase que tinham
acabado de ler, os tempos de reacção (medido em milissegundos) das respostas “não” (resposta
certa) foram em média substancialmente maiores (883 ms) do que num grupo de controlo que lia
frases que envolviam as mesmas palavras (e.g., “o Super-homem agarrou no vilão e pô-lo por trás
das grades da prisão”) mas que não implicavam a palavra-alvo (853 ms). A rapidez de resposta que
é exigida aos participantes neste procedimento (em geral menos de 1 segundo por resposta)
permite descartar com alguma confiança explicações alternativas baseadas nalgum tipo de
processamento controlado ou estratégico. Note-se que para que este procedimento possa funcionar
algumas das frases têm que incluir de facto a palavra-alvo (cerca de 1/3), caso contrário os
participantes rapidamente aprendiam que as palavras-alvo nunca estavam nas frases e
responderiam de acordo com esta regra independentemente das inferências realizadas durante a
codificação das frases.
Assim, se se obtivesse evidência a favor das inferências espontâneas de traço neste paradigma,
esta seria fortemente sugestiva da natureza verdadeiramente espontânea destas inferências. Não é
portanto de estranhar o interesse de Uleman e colaboradores por este paradigma que tudo o que
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 145

145

fizeram foi usar o mesmo procedimento de maneira tão próxima da sua utilização original quanto
possível mas substituindo as frases inicialmente usadas por frases implicativas de traços de
personalidade. Assim usaram frases teste como, “ele perguntou-lhe de onde vêm as estrelas”
(traço implicado: curioso) cuja frase controlo foi “ele perguntou-lhe onde as estrelas vão às
compras”. Os resultados foram muito interessantes. No estudo inicial verificou-se que embora não
demorassem mais tempo a reconhecer as palavras-alvo (traços) após as frases implicativas de traço
do que após não implicativas de traço, os participantes deram em média mais erros (i.e., diziam que
o traço estava na frase anterior quando de facto não estava) no primeiro caso (ver fig. 8). Num
segundo estudo onde se introduziu feedback (se a resposta estava certa ou errada e qual o tempo de
reacção) os resultados foram iguais aos de Mckoon e Ratcliff (1986) – não houve diferenças nos
erros mas o tempo de reacção médio de resposta “não” (a resposta correcta) foi maior para as frases
implicativas de traço do que para as frases congéneres não implicativas de traço. Mas talvez ainda
mais interessante, num terceiro estudo onde Uleman e colaboradores compararam inferências
espontâneas de traço e inferências preditivas (acrescentando ao segundo estudo o material
desenvolvido por Mckoon e Ratcliff) verificaram que não havia diferenças nas respostas dos
participantes (erros e tempos de reacção) em relação a estes dois tipos de inferências. Assim, talvez
uma das conclusões mais interessantes destes estudos que foram ao âmago da natureza automática
das inferências espontâneas de traço é que elas parecem ser apenas mais um dos tipos de inferências
que nós realizamos durante a compreensão de um texto, ou de forma mais geral, do mundo que nos
rodeia.

FIGURA 8
Resultados referentes ao primeiro estudo de Uleman e colaboradores (1996).
Comparação dos erros (dizer que o traço de personalidade estava na frase quando de facto
não estava) para frases implicativas de traço e não implicativas de traço

3
Percentagem média de erros

2,5

1,5

0,5

0
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 146

146

tamente associados aos actores (Carlston e então na presença de duas pessoas (fotos) sendo
Skowronski, 1994) como também explicita- uma identificada com o actor do comporta-
mente associados aos actores10. Por outro lado, mento (descrição comportamental) e a outra
os resultados obtidos com o paradigma dos como mera testemunha, deverão ocorrer
falsos reconhecimentos reforçam a natureza não inferências espontâneas de traço referentes ao
intencional e não consciente das inferências actor mas não à testemunha. Numa nova série de
espontâneas de traço. Efectivamente, não só as estudos os autores (Goren e Todorov, 2009;
frases usadas são breves descrições comporta- Todorov e Uleman, 2004) usam uma versão
mentais que não possuem a riqueza informativa modificada do paradigma dos falsos reconhe-
em relação ao actor capaz de, só por si, desen- cimentos onde apresentam duas faces com uma
cadear objectivos de formação de impressões, descrição comportamental. Os resultados mos-
mas também Todorov e Uleman (2003) mostram tram de forma consistente que quando uma das
numa série de estudos que as inferências faces é identificada como sendo o actor do
espontâneas de traço, tal como medidas pelo comportamento descrito não só ocorrem infe-
paradigma dos falsos reconhecimentos, ocorrem rências espontâneas de traço relativas ao actor
mesmo quando os participantes dispõem de do comportamento como as transferências
pouco tempo para ler cada descrição com- espontâneas de traço (i.e., associações teste-
portamental (2 segundos); quando processam munha-traço) tendem a desaparecer. Todorov e
estas descrições de forma superficial (contar os colaboradores concluem que as inferências
substantivos de cada frase); e mesmo quando espontâneas de traço não se resumem a meras
lêem as descrições em condições de sobrecarga associações mas que são verdadeiras inferências
cognitiva (e.g., enquanto memorizam simulta- no sentido em que envolvem também processos
neamente números de 6 dígitos). atribucionais espontâneos.
No que diz respeito à questão, são as infe-
rências espontâneas de traço meras associações
actor-traço ou verdadeiras inferências (i.e., o Inferências espontâneas de traço, a história
traço passa a ser um atributo do actor), Todorov continua
e Uleman (2004) começam por notar que de
acordo com o princípio da codificação espe- Para todos aqueles que gostam de finais
cífica (Tulving e Thompson, 1973) qualquer felizes ou, pelo menos, de encerrar os assuntos
estímulo (mesmo uma banana) que esteja em aberto (ver Kruglanski, Webster, e Klem,
presente quando uma inferência de traço é 1993), seria bom se agora estivéssemos a chegar
realizada deverá facilitar a recuperação do traço ao culminar deste longo e polémico debate
inferido. Contudo, se as inferências espontâneas sobre a natureza das inferências espontâneas de
de traço não se resumem a meras associações traço. Feliz ou infelizmente, não é o caso, a

10
Com efeito, no paradigma dos falsos reconhecimentos os participantes tentam explicitamente recordar-se se os traços
estavam nas frases iniciais ou não. No paradigma dos ganhos de reaprendizagem a fase de estudo e de teste são apresen-
tadas aos participantes como não estando relacionadas entre si, pelo que os efeitos da primeira na segunda (e especifica-
mente a ligação em memória actor-traço) ocorrem a nível implícito.
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 147

147

história continua. A investigação e confronto de causal (e.g., Jones e Davis, 1965; ver fluxo-
posições teóricas sobre inferências espontâneas grama superior da Figura 9) para explicar a
de traço continua a ser um importante pólo de forma como realizamos inferências de perso-
atracção e de troca de ideias com consequências nalidade era evidente. Por outro lado, como
extremamente positivas para o avanço do nosso vimos nas páginas anteriores, as contribuições
conhecimento sobre os mecanismos de percep- da então recente investigação em sócio-cogni-
ção social e formação de impressões (para uma ção, acumulavam-se de forma mais ao menos
síntese recente ver Uleman, Saribay, e Gonza- dispersa. Faltavam portanto modelos sócio-cogni-
lez, 2008). No entanto, se é verdade que várias tivos capazes de integrar num todo coerente o
questões sobre a verdadeira natureza das conhecimento acumulado. Este esforço de
inferências espontâneas de traço estão ainda a integração teórica teve vários autores (e.g.,
ser respondidas existe pelo menos uma contri- Quattrone, 1982) e traduziu-se em diversas pro-
buição crucial da investigação aqui revista que é postas teóricas (e.g., Trope, 1986). Mas foi sem
importante reter. A de que as inferências espon- dúvida Daniel Gilbert (tal como Quattrone, um
tâneas de traço e, de forma mais geral, as antigo estudante de doutoramento de Edward
primeiras fases ou subprocessos do processo Jones) e os seus colaboradores que avançaram o
inferencial em percepção de pessoas (Quattrone, modelo teórico que melhor articulou as diversas
1982), não se esgotam em meras identificações peças do puzzle inferencial humano. Gilbert,
de acções mas também não implicam elabo- Pelham e Krull (1988) pegaram na visão de um
radas inferências disposicionais tal como Jones processo atribucional sequencial de Quattrone
e Davis (1965) propuseram. Isto é, qualquer que (1982), juntaram-lhe os argumentos sobre
seja a natureza exacta dos processos inferenciais identificação de comportamentos em termos de
iniciais que conduzem à atribuição de um traço traços (e.g., Trope, 1986) e sobre a esponta-
de personalidade ao actor de um comporta- neidade das inferências disposicionais (e.g.,
mento implicativo de traço, estes não são neces- Winter e Uleman, 1984). Subsequentemente,
sariamente o resultado de deliberação reflectida polvilharam tudo com as ideias dualistas
mas antes parecem possuir várias características vigentes sobre processos automáticos alta-
do processamento de informação automático: mente eficientes versus processos controlados
dependentes da atenção e de recursos cogni-
ocorrem sem intenção, de forma largamente
tivos gerais, e propuseram um modelo de
eficiente e instantânea, e quando somos expos-
inferências de traço que consiste em três
tos a comportamentos implicativos de traços de
operações ou estágios sequenciais: um estágio
personalidade.
de identificação comportamental a que cha-
maram “categorização” (do comportamento);
2.2. Integrando contribuições teóricas: um estágio de inferência disposicional a que
um modelo sócio-cognitivo de inferências chamaram “caracterização” (do actor); e um
de traço de personalidade estágio de ajustamento situacional a que chama-
ram “correcção” (da caracterização do actor).
Recapitulemos, no final da década de 80 a De acordo com Gilbert e colaboradores, os dois
falência dos modelos clássicos de atribuição primeiros estágios ocorrem de forma largamente
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 148

148

automática enquanto que o terceiro estágio a discutir tópicos mundanos. Mas como se pode
ocorre sob o controlo do sujeito envolvendo saber que se trata verdadeiramente de uma
deliberação consciente e esforço cognitivo (ver correcção de uma inferência disposicional
fluxograma inferior da Figura 9). prévia? Bem, é que havia ainda um terceiro
Assim, quando observamos uma certa grupo de participantes que observou os mesmos
pessoa a roer as unhas na sala de espera do vídeos enquanto ensaiava mentalmente um
dentista identificamos automaticamente o com- conjunto de frases para uma tarefa de memória
portamento de ansiedade e inferimos que se posterior. O ensaio mental destas frases funcio-
trata de uma pessoa ansiosa, ou na linguagem do nou na prática como uma tarefa de sobrecarga
modelo de Gilbert, categorizamos este compor- cognitiva que, de acordo com o modelo
tamento como ansioso e caracterizamos esta sequencial de Gilbert e colaboradores, deveria
pessoa como sendo ansiosa. Depois, de forma impedir a correcção deixando os estágios de
deliberada e mais ou menos laboriosa corri- categorização e caracterização incólumes. Com
gimos a inferência disposicional considerando efeito, os participantes deste terceiro grupo
as circunstâncias em que a pessoa foi encon- consideraram a mulher do vídeo uma pessoa
trada a roer as unhas: a pessoa está na sala de ansiosa independentemente do tópico que esta
espera de um dentista...afinal não se trata de estava a discutir (ver Figura 10). A ironia deste
uma pessoa tão ansiosa quanto isso. resultado é que as frases que estes participantes
Na experiência que serviu de teste empírico tinham que ensaiar enquanto viam os vídeos
inicial ao modelo de Gilbert e colaboradores eram justamente as descrições dos tópicos que a
(Gilbert, Pelham, e Krull, 1988), os partici- mulher do vídeo estava a discutir! Por outras
pantes viam um conjunto de vídeos sem som de palavras, aqueles participantes que deram mais
uma mulher que se comportava de forma ansio- atenção aos tópicos de discussão e que inclusi-
génica enquanto alegadamente discutia diversos vamente os memorizaram para um teste de
tópicos com um estranho. Os tópicos eram na recordação posterior foram aqueles que não
realidade experimentalmente atribuídos pelo conseguiram usar esta informação para corrigir
experimentador. Assim, por exemplo, para um as inferências disposicionais iniciais. Porquê?
mesmo vídeo, diferentes participantes foram Porque o acto de ensaiar e memorizar esgotou
levados a querer que o tópico de discussão era os recursos cognitivos disponíveis necessários
fortemente ansiogénico (e.g., discutir com um à execução do terceiro estágio do modelo:
estranho as suas fantasias sexuais mais íntimas) correcção.
ou mundanos (e.g., discutir a sua opinião sobre O efeito de correcção insuficiente foi
jardinagem). Depois, todos os participantes posteriormente replicado por um conjunto
estimavam até que ponto consideravam a alargado de estudos experimentais que imple-
mulher uma pessoa ansiosa. Tal como esperado, mentaram diversas manipulações comporta-
os participantes que pensavam que a mulher mentais (ver Gilbert, 1989) mostrando ser um
estava a discutir tópicos ansiogénicos corri- fenómeno psicológico robusto.
giram as suas inferências iniciais e conside- Algum tempo mais tarde Douglas Krull
raram-na uma pessoa menos ansiosa do que os (1993), um dos autores do modelo inicial,
participantes que pensavam que a mulher estava propôs uma versão mais flexível do mesmo,
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 149

149

FIGURA 9

Ilustração esquemática da perspectiva atribucional clássica (fluxograma superior) e do modelo


sequencial de atribuição desenvolvido por Gilbert e colaboradores (fluxograma inferior).

Atribuição  Caracterização

Comportamento disposicional disposicional
observado OU

Atribuição
situacional

Comportamento
 Categorização  Caracterização  Correcção
observado
do comportamento disposicional situacional



Processamento automático Processamento controlado

argumentando que o comportamento pode ser de discussão. Em vez disso foram levados a
espontaneamente usado como um indicador das acreditar que a mulher do vídeo era uma pessoa
disposições do actor mas também da própria ansiosa ou uma pessoa calma, sendo-lhes depois
situação, dependendo dos objectivos de conhe- pedido para avaliar até que ponto os diversos
cimento do observador. De facto, a literatura tópicos que a mulher discutia com um estranho
clássica em psicologia social é rica em exemplos (nos vídeos) eram ou não ansiogénicos. Tal
em que o comportamento é usado não para como esperado, aqueles participantes que
inferir traços de personalidade sobre os seus acreditavam que a mulher era uma pessoa
actores mas para compreender a situação em ansiosa consideraram os tópicos menos
que estes se encontram. Basta lembrar os ansiogénicos do que os que estavam conven-
estudos sobre conformismo social de Asch cidos que a mulher era uma pessoa calma. Mais
(e.g., 1951, ver capítulo “O inferno são os interessante ainda, um terceiro grupo de
outros: O estudo da influência social“ neste participantes que realizava exactamente a
Manual) ou o fenómeno de diluição da mesma tarefa em condições de sobrecarga
responsabilidade estudado por Darley e Latané cognitiva considerou todos os tópicos igual-
(1968). Para testar a sua ideia, Krull e colabo- mente ansiogénicos independentemente da
radores (Krull e Erikson, 1995) apresentaram natureza disposicional da mulher. Estes resul-
aos participantes os mesmos vídeos usados tados sugerem que para além de usarmos
originalmente por Gilbert e colaboradores informação situacional para corrigir caracteriza-
(1988). Mas desta vez os participantes não ções largamente automáticas dos actores que
foram informados sobre a natureza dos tópicos observamos, somos também capazes de usar
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 150

150

informação disposicional sobre os actores para humana: o enviesamento correspondente (Jones


caracterizar situações desconhecidas. Os sub- e Harris, 1967) ou, como mais tarde Ross
processos envolvidos neste processo (categori- (1977) lhe chamou: o erro fundamental de
zação; caracterização; e correcção) são for- atribuição causal. Porque é que muitas vezes
malmente equivalentes, os “conteúdos” (pessoa fazemos inferências de traço baseadas no
ou situação) que preenchem os estágios do comportamento do actor ignorando situações
modelo sequencial é que mudam em função dos que, só por si, explicam o comportamento
objectivos do observador. observado? Porque a correcção situacional
Em suma, no final dos anos 80 a Cognição envolve deliberação e esforço que são condicio-
Social tinha fornecido um modelo de percepção nais à disponibilidade de recursos cognitivos
de pessoas que se baseava numa explicação gerais e de motivação para corrigir. Sempre que
processual da forma como realizamos inferên- um destes factores estiver ausente não há
cias de traços de personalidade com base no correcção (suficiente) das inferências iniciais
comportamento. Ao ter como um dos seus que assim prevalecem.
elementos fundadores a heurística da ancora- Mas será que esta é a única explicação para
gem e ajustamento (Quattrone, 1982; Tversky e os enviesamentos correspondentes? Por outras
Kahneman, (1974), o modelo sequencial de palavras, sempre que disponhamos de recursos e
Gilbert e colaboradores incorpora em si mesmo motivação vamos evitar este erro de julga-
a capacidade de explicar o que continuava a ser mento? Não, neste ponto a investigação e
até então um dos grandes enigmas da psicologia sobretudo a reflexão teórica pré abordagem

FIGURA 10

Resultados referentes ao estudo 1 de Gilbert e colaboradores (1988). Valores mais elevados indicam
maior ansiedade percebida (medida em escala bipolares de 15 pontos).

Tópicos
relaxantes
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 151

151

sócio-cognitiva combinam-se com os dados e mente de ocorrer enviesamentos correspon-


modelos da era cognitiva para nos fornecer uma dentes (e.g., Jones e Harris, 1967). Seguida-
perspectiva multifacetada das razões deste erro. mente são abordadas outras três potenciais
É dela que falaremos seguidamente. causas que permitem explicar a ocorrência deste
enviesamento na percepção de pessoas aquém e
além da noção de correcção incompleta.
2.3. Explicações para o enviesamento
correspondente
Falta de consciência do contexto
Correcção situacional incompleta situacional

Num notável trabalho de revisão de mais de Como já discutido no início deste capítulo,
seis décadas de investigação sobre enviesa- as acções humanas são tão salientes aos nossos
mentos correspondentes Gilbert e Malone olhos que tendem a dominar a percepção social
(1995), consideram o termo “enviesamento tornando as circunstâncias de ocorrência destas
correspondente” (i.e., a inferência de dispo- acções (a situação) largamente invisíveis. Com
sições ou traços de personalidade a partir de efeito, actores e comportamentos podem ser
comportamentos induzidos pelo contexto situa- imediatamente observados mas quando alguém
cional) enganador no sentido em que diferentes tenta chamar a atenção para uma situação
mecanismos psicológicos podem estar na sua muitas vezes refere-se a algo que não corres-
origem. Mais especificamente, os autores iden- ponde a nenhuma manifestação física directa-
tificam quatro potenciais causas para os envie- mente observável. Frequentemente, os cons-
samentos correspondentes: correcções situacio- trangimentos situacionais desenrolam-se no
nais incompletas; falta de consciência do tempo que antecede o comportamento obser-
contexto situacional; expectativas irrealistas; e vado (e.g., observar alguém a responder a
categorizações inflacionadas do comporta- perguntas num jogo de trivial pursuit sem saber
mento. que estas foram previamente escolhidas pelo seu
A primeira destas causas: correcção situa- elevado grau de dificuldade – ver Ross,
cional incompleta, foi extensamente discutida Amabile, e Steinmetz, 1977) ou num espaço que
acima quando apresentámos o modelo atribu- não faz parte do campo de visão do observador
cional de Gilbert e colaboradores (e.g., 1988). (e.g., a gravação de um discurso pró-terrorista
Como vimos, de acordo com este modelo, os verbalizado por um refém que tem uma arma
enviesamentos correspondentes decorrem da apontada à cabeça que não é captada pela
falta de recursos cognitivos e/ou motivação para imagem). Nestes casos, os constrangimentos
corrigir de forma deliberada as inferências situacionais podem não ser adequadamente
largamente espontâneas que ocorrem na pre- levados em conta pela simples razão que foram
sença de comportamentos implicativos de traços temporal ou espacialmente removidos dos
de personalidade. No entanto, mesmo quando as episódios comportamentais que constrangem.
pessoas estão motivadas e possuem recursos Por outro lado, os constrangimentos situa-
cognitivos suficientes não deixam necessaria- cionais são muitas vezes de natureza psicológica
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 152

152

e não de natureza física. Ou seja, existem forte pressão psicológica em que se encon-
somente na mente do actor. Expressões como “a trava”). Ou seja, expectativas irrealistas face ao
pressão da audiência” que uma pessoa sente comportamento do actor levam à subestimação
quando está num concurso de televisão ou o do poder constrangedor das situações. E embora
“peso da multidão” que se avoluma quando um não seja possível determinar o verdadeiro poder
jogador se prepara para marcar um penalty constrangedor de cada situação (e assim deter-
decisivo num estádio de futebol cheio, reflectem minar exactamente quando as expectativas que
justamente este tipo de constrangimento situa- possuímos sobre o desempenho dos outros são
cional psicológico. Para levar em conta cons- ou não irrealistas) é possível demonstrar que
trangimentos a mera observação da situação do aquilo que tipicamente achamos que nós
ponto de vista do percepiente normalmente não próprios faríamos em certas circunstâncias não
chega, é necessário considerar ou “construir” a corresponde ao que na prática estamos dispostos
situação do ponto de vista do actor, isto é, tal a fazer. Por exemplo, embora décadas de inves-
como o actor a está a viver. Contudo, empatizar tigação tenham demonstrado que quando se
com o outro revela-se frequentemente difícil. pede aos participantes para escrever um ensaio
Expressões como “como é possível alguém se contra-atitudinal a esmagadora maioria aceita
enganar a responder àquela pergunta tão fácil” fazê-lo, quando Sherman (1980) pediu a
ou “aquele até eu marcava” tipicamente vocife- estudantes universitários para predizerem o que
radas do conforto dos nossos sofás quando fariam se lhes pedissem numa Experiência para
assistimos a um concurso de TV ou a um desa- escrever um tal ensaio cerca de três quartos
fio de futebol, são bons exemplos da dificul- disseram que nunca o fariam. Ora, como nos
dade de reconhecer a situação tal como é vivida baseamos naquilo que achamos que faríamos
pelo actor. A invisibilidade física ou psico- para estimar aquilo que os outros farão em
lógica dos constrangimentos situacionais é iguais circunstâncias, tendemos a realizar envie-
suficiente para a ocorrência de enviesamentos samentos correspondentes quando os outros
correspondentes. violam as nossas expectativas. Tais expectativas
irrealistas levam a resultados curiosos e
Expectativas irrealistas paradoxais como no caso das experiências de
Milgram sobre autoridade e obediência11. Como
Mesmo quando o observador está totalmente sabemos, a maioria dos participantes do estudos
ciente das circunstâncias que constrangem o de Milgram obedeceram ao experimentador,
comportamento do actor pode ainda assim mas quando se pede às pessoas para predizer se
realizar enviesamentos correspondentes por ter em geral os participantes vão obedecer ao expe-
expectativas irrealistas sobre como a situação rimentador infligindo choques eléctricos de
pode afectar o comportamento do actor (e.g., alta voltagem que supostamente põem em risco
“claramente um jogador de futebol profissional a vida do aprendiz, a resposta maioritária é
não devia ter falhado aquele penalty apesar da claramente que não (ver Bierbrauer, 1979).

11
Discutidas no capítulo “O inferno são os outros: O estudo da influência social”.
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 153

153

O resultado disto é que vamos tender a fazer comportamento quer as inferências disposicio-
inferências disposicionais com base num nais baseadas no comportamento dependem do
comportamento de obediência que é claramente conhecimento do observador sobre compor-
explicado pela situação experimental criada e, tamentos prévios do actor e sobre o contexto
ainda mais curioso, não vamos fazer inferências situacional corrente. E embora o conhecimento
disposicionais relativamente aquela pequena sobre comportamentos prévios do actor (e.g.,
mas consistente minoria de pessoas que rapida- “comporta-se frequentemente de forma ansiosa”)
mente se recusou a continuar nas experiências de facilitem quer a identificação do comporta-
Milgram (Gilbert e Malone, 1995). mento actual (comportamento de ansiedade)
quer a inferência disposicional (trata-se de uma
pessoa ansiosa), a informação sobre o contexto
Categorizações inflacionadas do comportamento tem efeitos opostos na fase
do comportamento de identificação do comportamento e na fase de
inferências de traço. Assim, o contexto em que
Heider (1958) notou que a atribuição de um actor se encontra (e.g., a sala de espera de
significado ao comportamento se baseia não só um dentista) facilita a identificação do seu
na observação da acção física inerente ao comportamento de roer as unhas como “nervo-
comportamento mas também naquilo que sismo”. O mesmo contexto impede que se
pensamos e sabemos sobre a situação – um realize neste caso uma inferência disposicional
sorriso num encontro entre amigos leva-nos a de nervosismo justamente porque o comporta-
inferir “simpático”, o mesmo sorriso numa mento é explicado pelo contexto (e.g., a maioria
situação de confronto pode levar-nos a inferir das pessoas neste contexto exibem alguma
“ameaçador” ou “provocador”. Ou seja, a ansiedade sem que por isso sejam especialmente
compreensão do comportamento faz-se pela ansiosas no seu dia-a-dia). No entanto, a assimi-
assimilação deste pelas expectativas desenca- lação do comportamento pelo contexto pode
deadas pelo contexto situacional. Yacov Trope levar o observador a “ver” no comportamento
(1986; Trope e Alfieri, 1997; Trope, Cohen, e do actor manifestações de um nervosismo
Maoz, 1988) desenvolveu um modelo sequen- absolutamente excepcional, de tal forma que, na
cial de percepção de pessoas que explica como fase de inferência disposicional a consideração
a assimilação do comportamento de um actor do contexto torna-se insuficiente para evitar o
pelas expectativas situacionais do observador enviesamento correspondente (e.g., “isto já é
pode conduzir a enviesamentos correspon- um exagero ninguém se comporta assim no
dentes. De acordo com este modelo, existe uma dentista a menos que seja uma pessoa espe-
primeira fase de identificação da acção cialmente ansiosa”). Ou seja, mesmo quando a
(semelhante ao estágio de categorização do correcção das inferências automáticas iniciais é
modelo de Gilbert) seguida por uma fase de perfeita os enviesamentos correspondentes
inferências disposicionais (que, grosso modo, podem continuar a ocorrer sempre que ocorram
engloba as fases de caracterização e correcção efeitos de assimilação na identificação do com-
do modelo de Gilbert). Quer a identificação do portamento pelas expectativas do observador
psicologia-social-cap.3 7/27/12 2:58 PM Page 154

154

baseadas na situação. Como vimos anterior- zados no âmbito da investigação em cognição


mente, os processos de identificação do com- social (e.g., Gilbert et al., 1988). Um aspecto
portamento (ou categorização) são largamente recorrente neste capítulo foi o erro fundamental
automáticos ocorrendo fora da nossa atenção e de atribuição causal (Ross, 1977). De forma
controlo consciente. Consequentemente, quando algo irónica, a procura de explicações para este
ocorre assimilação pela situação na identifica- enigmático fenómeno psicológico levou a
ção do comportamento este é um processo desenvolvimentos e descobertas sobre os pro-
opaco à nossa consciência tornando particular- cessos sócio-cognitivos subjacentes à percepção
mente difícil para o observador reconhecer que e interpretação do comportamento humano que
ele identificou o comportamento do actor de ultrapassam em muito a mera explicação do
forma enviesada. fenómeno. Mas, é claro, muita coisa ficou ainda
Em suma, os enviesamentos correspondentes por explicar. Por exemplo, como são integrados
têm várias causas e provavelmente persistem em impressões coerentes os diversos traços e
entre nós por diversas razões. Porque são fáceis atributos pessoais que inferimos sobre os
de realizar e porque são uma das principais outros? Para encontrar respostas a estas e muitas
formas de interpretação e descodificação da outras questões relacionadas sugerimos desde já
realidade social (sobretudo na cultura ocidental) como ponto de partida, a leitura do capítulo
permitindo extrair as invariantes do comporta- sobre formação de impressões neste manual.
mento e fornecendo ao percepiente uma forma
eficaz de ganhar controlo sobre o seu ambiente
social. Claro que tudo isto tem custos. Embora Resumo
procuremos ver os outros como eles realmente
são, os potenciais erros de julgamento decor- O estudo da Percepção e atribuição causal
rentes dos enviesamentos correspondentes e ganha uma dimensão claramente social quando
sobretudo a falta de reconhecimento do seu falamos de percepção de pessoas e identificação
impacto fora do laboratório levam à negligência dos atributos que as caracterizam. O presente
dos constrangimentos históricos e situacionais a capítulo versa sobre estas temáticas. No mundo
que Ichheiser (1949) eloquentemente chamou as social complexo em que vivemos, a previsão e
prisões invisíveis da acção humana. compreensão das acções dos outros com quem
interagimos é essencial para darmos significado
à nossa experiência pessoal e ganharmos con-
Conclusões trolo sobre o nosso ambiente. Como diria Fritz
Heider (1958), não somos meros observadores
Percorremos um longo e atribulado caminho passivos da actividade social mas sim procura-
desde as ideias iniciais de Heider sobre mos inferir os factores causais que levam a
percepção social e atribuição causal (Heider, determinadas acções. Designadamente, Heider
1944, 1958), passando pelas primeiras tentativas falava de dois tipos de atribuições: à pessoa
de formulação de modelos empiricamente (disposicional) ou ao contexto que a rodeia
testáveis (e.g., Jones e Davis, 1965), até aos (situacional). Partindo destas premissas e de
desenvolvimentos teóricos mais recentes reali- uma aplicação mais ou menos sistemática do
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 155

155

principio da covariação (entre causas e efeitos) natureza implícita das inferências espontâneas
Kelley (1967) desenvolveu o que é provavel- de traço, foi necessário desenvolver novos e
mente ainda hoje o mais popular modelo de imaginativos paradigmas experimentais para as
atribuição causal. Numa outra abordagem das estudar. O resultado final de toda esta inves-
mesmas premissas originais, Jones e Davis tigação (ou pelo menos até ao momento em que
(1965) desenvolveram a noção Heideriana de acabámos de escrever o presente capítulo) foi
que as pessoas inferem disposições a partir da duplo: por um lado conduziu ao aparecimento
observação dos resultados ou efeitos do com- de diversas propostas integradores dos resul-
portamento. tados obtidos onde se destaca a noção de que a
Ao longo do tempo e à medida que a atribuição de um traço a partir da observação
investigação nesta área avançou, um tipo par- do comportamento baseia-se em processos
ticular de disposições, os traços de perso- inferenciais largamente automáticos cujo
nalidade, ganhou relevância. Com efeito, as resultado pode ser (ou não) posteriormente
inferências de traços de personalidade corres- corrigido em função da situação em que o
pondentes aos comportamentos assume-se comportamento ocorre (Gilbert, Pelham e
como uma área de investigação autónoma Krull, 1988); por outro lado, produziram-se
sobretudo a partir do momento em que se não uma mas diversas explicações para o erro
demonstra que estas antecedem a própria atri- fundamental de atribuição causal que enrique-
buição causal e não dependem (nem se confun- cem o nosso conhecimento sobre a psicologia
dem) com a atribuição de causas comporta- ingénua do senso-comum.
mentais, como inicialmente avançado pelas
abordagens clássicas (e.g, Kelley, 1967; Jones e
Davis, 1965). Simultaneamente, as mesmas Sugestões de leitura
abordagens, mostravam-se incapazes de expli-
car a acumulação de resultados experimentais Clancy, S. (2007). Abducted: how people come to
que indicam que as pessoas sistematicamente believe they were kidnapped by aliens. Harvard
sobrestimam as causas disposicionais e subesti- University Press.
mam as causas situacionais do comportamento. Garcia-Marques, T. e Garcia-Marques, L. (2005).
Fenómeno que, pela sua importância, se veio a Processando Informação Sobre os Outros II.
chamar o erro fundamental de atribuição causal Lisboa, ISPA, 2005.
(Ross, 1977). Garry, M. e Hayne, H. (Eds.) (2007). Do Justice and
Com o advento da cognição social no início Let the Sky Fall:Elizabeth F. Loftus and Her
do anos 80, a investigação em percepção social Contributions to Science, Law, and Academic
passa a centrar-se na identificação e descrição Freedom. Erlbaum.
dos processos cognitivos que subjazem às Gilbert, D. T., e Malone, P. S. (1995). The correspon-
inferências de traços de personalidade. Neste dence bias. Psychological Bulletin, 117, 21-38.
contexto, verifica-se que, em certas condições, Gilbert, D. T. (1998). Ordinary personology. In D. T.
as pessoas realizam inferências de traço Gilbert, S. T., Fiske, e G. Lindzey, (Eds.) The
espontaneamente, isto é, de forma não intencio- handbook of social psychology (4th edition).
nal e sem ter consciência que o fizeram. Dada a New York: McGraw Hill.
psicologia-social-cap.3 7/27/12 9:21 AM Page 156

156

Gilbert, D. T. (1989). Thinking lightly about others: Uleman, J. S., Blader, S. L., e Todorov, A. (2005).
Automatic components of the social inference Implicit impressions. In R. R. Hassin, J. S. Uleman,
process. In J. S. Uleman e J. A. Bargh (Eds.), e J. A. Bargh (Eds.). The new unconscious
Unintended thought. New York: Guilford. (pp. 362-392). New York: Oxford University Press.

Você também pode gostar