Você está na página 1de 169

Quimeras em diálogo:

grafismo e figuração nas artes indígenas


carlo severi
els lagrou
(orgs.)

Quimeras em diálogo
grafismo e figuração nas artes indígenas
sociologia & antropologia
coleção
© 2013 Carlo Severi e Els Lagrou
programa de pós-graduação em sociologia e antropologia
Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico instituto de filosofia e ciências sociais
da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009. da universidade federal do rio de janeiro
(ppgsa/ifcs/ufrj)
Coordenação Editorial
Isadora Travassos

Produção Editorial
Coleção Sociologia & Antropologia
Cristina Parga
Eduardo Süssekind
Rodrigo Fontoura
Sofia Soter
Victoria Rabello
Conselho Editorial
Beatriz Heredia
Imagem de capa
Bila Sorj
Sonja Ferson
Elina Pessanha
Felícia Silva Picanço
Glaucia Villas Bôas
José Ricardo Ramalho
cip-brasil. catalogação-na-fonte
Marco Antonio Gonçalves
sindicato nacional dos editores de livros, rj
Marco Aurélio Santana
Q61 Maria Laura V. C. Cavalcanti
Quimeras em diálogo: grafismo e figuração nas artes indígenas / organização Carlo Severi;
Michel Misse
Els Lagrou. – 1. ed. – Rio de Janeiro: 7Letras, 2013. Mirian Goldenberg
il. (Sociologia & Antropologia) Yvonne Maggie
isbn 978-85-421-0181-2

1. Índios da América do Sul - Brasil - Religião e mitologia. 2. Índios da América do Sul –


Brasil – Pintura. 3. Artes. 4. Mito. I. Severi, Carlo. II. Lagrou, Els. III. Série.

13-07891 cdd: 398.2


cdu: 398.2

2013
Viveiros de Castro Editora Ltda.
Rua Visconde de Pirajá 580, sobreloja 320 – Ipanema
Rio de Janeiro | rj | cep 22410-902
Tel. (21) 2540-0076 UFRJ
editora@7letras.com.br | www.7letras.com.br
Sumário

Agradecimentos 9

Introdução 11
Els Lagrou & Carlo Severi

O espaço quimérico. Percepção e projeção nos atos do olhar 25


Carlo Severi

Podem os grafismos ameríndios ser considerados quimeras abstratas?


Uma reflexão sobre uma arte perspectivista 67
Els Lagrou

Perspectiva xamânica: relações entre rito, narrativa e arte gráfica. 111


Esther Jean Langdon

Homens, Guaribas, Mandiocas e artefatos.


Alguns sentidos da pintura entre os Wajana (Wayana) 139
Lucia Hussak van Velthem

Arte gráfica Asuriní do Xingu: Corpo, mito e pensamento 163


Regina Polo Müller

O trançado, a música e as serpentes da transformação no Alto Xingu 181


Aristóteles Barcelos Neto

Movimento e profundidade no kene


shipibo-konibo da Amazônia Peruana 199
Luisa Elvira Belaunde

Kempiro. A arte gráfica dos traços fortes


entre os Ashaninka do Oeste Amazônico 223
Peter Beysen
Figurar e desfigurar o corpo: Agradecimentos
peles, tintas e grafismos entre os Mebêngôkre (Kayapó) 247
André Demarchi

Tambor e espaço virtual no xamanismo cacasse 277


Charles Stépanoff

A máscara do animista: quimeras e bonecas russas na América indígena 305


Carlos Fausto

Os autores 333
Agradecemos às instituições e pessoas que colaboraram com este volume, possi-
bilitando sua realização. Ao PPGSA/IFCS/UFRJ pelo financiamento da publicação
e das traduções; ao convênio CAPES-COFECUB por possibilitar a organização do
seminário e das viagens que propiciaram o intercâmbio acadêmico que resultou
neste livro; aos Museus Quai Branly (Paris), Museu do Índio (Rio de Janeiro) e
Museu de Arqueologia e Etnologia (USP – São Paulo), por permitir a utilização das
imagens; aos colegas antropólogos e povos indígenas que gentilmente concorda-
ram com a utilização das imagens reproduzidas neste volume.

9
Introdução
Carlo Severi & Els Lagrou

Este livro é sobre grafismo e figuração indígena.1 A partir da relação do grafismo


(pintado, trançado ou tecido) com os diversos suportes sobre os quais se aplica e
que ajuda a constituir, propomos uma antropologia da percepção que analisa o
estatuto e a agência da imagem na sua relação com o universo cognitivo particular
no qual opera.
Constatamos na arte indígena ameríndia um particular minimalismo figu-
rativo que insiste em sugerir muito mais do que mostrar. A arte ameríndia leva
ao extremo a tensão entre imagem material e imagem mental e é por esta razão
que os grafismos que aderem aos corpos tendem a uma abstração que oculta uma
figuração virtual (Lagrou, 1998, 2007, 2011). É neste contexto que um diálogo com
o conceito de quimera se impõe.
O que é uma quimera? Há alguns anos (2003), um de nós propôs chamar
assim toda imagem múltipla que, associando em uma só forma índices visuais
provindos de seres diferentes (um pássaro e um ser humano, uma serpente e um
jaguar, ou um lobo e um leão marinho...), provoca uma projeção por parte do
olho, que faz surgir uma imagem implicando ao mesmo tempo a presença destes
seres diferentes.

1 Na origem deste livro está um simpósio organizado no Rio de Janeiro em 2011 pelos editores, Carlo
Severi e Els Lagrou, que levava o nome “xamanismo, grafismo e figuração”. Este simpósio foi reali-
zado no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais dentro do quadro do projeto de pesquisa internacio-
nal CAPES/COFECUB (convênio entre os programas do PPGAS e PPGSA, respectivamente do Museu
Nacional e do IFCS da UFRJ (com coordenação de Carlos Fausto), e a École des Hautes Études, Musée
du Quai Branly e Collège de France de Paris (com coordenação de Carlo Severi). Estavam presentes no
colóquio Esther Jean Langdon, Dominique Gallois, Regina Müller, Charles Stépanoff, Pedro Cesarino,
Isabel Penoni, Carlos Fausto, Carlo Severi e Els Lagrou. Praticamente todos os participantes no coló-
quio contribuíram com artigos para o livro. Outros especialistas no tema, cuja contribuição considera-
mos importante, foram incorporados. Deste modo surgiu um livro que não deixa de evocar um marco
na história da etnologia da arte no Brasil: o livro Grafismo indígena, editado por Lux Vidal em 1992. Os
trinta anos que separam os dois livros testemunharam uma marcada guinada na abordagem teórica
do tema: de uma ênfase na arte enquanto sistema de comunicação para uma abordagem praxiológica
onde se dá destaque à centralidade da agência da imagem (uma proposta reveladora desta guinada se
encontra em Gell, 1998).

11
quimeras em diálogo introdução

Uma quimera deste tipo é portanto uma representação plural onde o que é A fluidez das formas que povoam mundos, onde a transformabilidade dos
dado a ver apela necessariamente à interpretação do que é implícito. Esta parte corpos e a comunicação das interioridades que neles se escondem é um dado da
invisível da imagem se encontra totalmente engendrada a partir de índices dados experiência, supõe técnicas específicas de percepção e materialização das imagens
em um espaço mental. Um único princípio subjaz à estrutura destas representa- que até então foram pouco analisadas (Lagrou, 1998, 2007). São estas relações
ções: a condensação da imagem em alguns traços essenciais supõe a interpretação entre a produção e percepção de imagens, por um lado, e a figuração e desfigu-
da forma por projeção, e portanto por preenchimento das partes faltantes. ração dos corpos numa ontologia específica, por outro, que os textos neste livro
Este processo, que podemos descrever como uma intensificação da eficácia da procuram iluminar.
imagem pela mobilização de suas partes invisíveis, operada pela inferência visual, O artigo que abre o volume, de autoria de Carlo Severi, parte de uma discus-
é muito comum e seria fácil dar exemplos provindos da África, da Oceania e da são antropológica e estética sobre a natureza da imagem para chegar na conste-
América do Norte. Mas o que ocorre na Amazônia? Este livro, que reúne um con- lação específica de uma representação que pode ser caracterizada como especifi-
junto de textos consagrados à figuração e aos grafismos indígenas da Amazônia, se camente quimérica. Em resposta aos debates suscitados por seu livro Le príncipe
propõe a testar esta definição, buscando definir sob quais formas quimeras podem de la chimère, une anthropologie de la mémoire, de 2007, este artigo propõe um
existir na área amazônica. aprofundamento da noção de representação quimérica, proposta no livro citado.
O livro reúne textos que exploram dois tipos de relação entre grafismo e figu- A ideia inicial foi a de tentar elaborar novos instrumentos de análise para o campo
ração num universo marcado por uma ontologia que tem o xamanismo como sua da antropologia das imagens. A partir de uma breve incursão no estudo da pers-
prática ritual constitutiva: a relação entre grafismo e a figuração (e/ou desfigura- pectiva, convenção visual que nos é mais familiar, o autor define a apreensão de
ção) dos corpos, por um lado, e a relação entre cognição e percepção, por outro. uma imagem como uma relação, variável e específica a uma tradição, entre um
Neste último caso a imagem surge como instrumento de mediação entre os lados quadro perceptivo e o exercício da projeção de saberes adquiridos, ou das “catego-
visível e o invisível do mundo fenomenológico. rias interpretativas” (Baxandall, 1985: 48) neles implicadas.
Atenção particular é dada à relação entre ritual e criação artística, assim Num primeiro momento, a análise se concentra em noções potencialmente
como à relação entre os diferentes meios artísticos que no contexto da perfor- universais, tais como a interpretação do simbolismo por projeção, a transitividade
mance ritual revelam todo seu potencial sinestésico: constata-se, deste modo, que das imagens, a reflexividade do enquadramento e os atos do olhar. Em seguida,
as relações, correspondências e transformações entre música, ritmo, movimento e essas noções são aplicadas à representação quimérica. Esta se revelou, do ponto de
grafismo se mostram tão ou mais relevantes no contexto ritual ameríndio quanto vista morfológico, fundada em um princípio de organização do espaço que faz da
a relação entre a narrativa da experiência xamanística e o conteúdo gráfico dos relação entre uma forma exibida e uma forma imputada pelo pensamento o meio
instrumentos e corpos envolvidos. Através dos exemplos trabalhados neste livro para engendrar uma ilusão específica. Do ponto de vista lógico, o autor conclui
revela-se a especificidade e multiplicidade das relações possíveis entre o processo que o tipo de operação mental suposta nessa representação baseia-se em uma arti-
perceptivo sensorial e a narrativa verbal. O material reunido neste volume aponta, culação específica entre representação icônica e indicação indiciária. Do ponto de
deste modo, para uma produtiva complementaridade entre as abordagens praxio- vista estético, por fim, se confirmou que o espaço quimérico designa uma relação
lógicas e ontológicas. instável, de complementaridade alternada entre o tema iconográfico e seu espaço
Desde sua definição como perspectivismo (Viveiros de Castro, 1996), a liminar e entre a percepção e as operações de projeção. Na parte final do artigo,
ontologia ameríndia foi definida como estabelecendo uma tensão peculiar entre Severi mostra, a partir de dois estudos de caso, a iconografia wayana e yekuana,
interioridade (intencionalidade e agência) e exterioridade (fisicalidade) (Des- como o universo estético ameríndio ilustra de modo exemplar a lógica, estética e
cola, 2005). O xamã seria o especialista por excelência a saber transitar entre as fenomenologia da representação quimérica.
diferentes manifestações dos seres, seja por meio de uma capa/aparência animal, O segundo artigo, de Els Lagrou, dialoga de perto com a abordagem da ima-
seja como sujeito que se dirige ao Outro na sua forma humana. Neste universo gem proposta por Severi, seguindo, no entanto, um caminho inverso. Partindo
povoado por agências cognoscentes muito do que é pode estar oculto para a visão. da análise de um contexto etnográfico concreto, o papel do grafismo na cultura

12 13
quimeras em diálogo introdução

visual kaxinawa (grupo de língua pano que habita a fronteira entre o Brasil e o díades complementares, como homem e mulher, ser humano e espírito. O que se
Peru), a autora propõe uma abordagem comparativa dos grafismos ameríndios desenha é, antes que sua forma, a relação que os conecta e constitui.
da região da Amazônia ocidental, mostrando como estes partilham não somente O terceiro artigo, de Esther Jean Langdon, propõe analisar a lógica gerativa dos
um conjunto sistemático de técnicas formais, mas também uma ontologia pers- desenhos gráficos dos Siona (grupo de língua tukano da Amazônia colombiana, na
pectivista que faz do desenho abstrato uma técnica privilegiada para agenciar e fronteira com o Equador) no contexto performático no qual são percebidos e utili-
tornar perceptível/cognoscível a coexistência de mundos distintos e a eminente zados: é durante a ingestão ritual do yagé (ayahuasca) pelo xamã e seus discípulos
transformabilidade do mundo fenomenológico. Através do detalhamento dos que se aprende a ver os desenhos. A arte gráfica dos Siona, considerada autêntica
contextos rituais nos quais o grafismo desempenha o papel de focalização do olhar ou xamânica ( iko toya), é aquela que remete à experiência visionária do xamã, aos
na passagem entre o lado visível e invisível do mundo e dos corpos (apontando seres vistos durante as visões. Não se trata, no entanto, de desenhos representativos.
para a correspondência e comunicação entre seu interior e exterior), fica evidente Os desenhos atestam o conhecimento que o xamã possui do outro lado, “transmi-
o papel deste estilo gráfico, essencialmente indicial e muito pouco iconográfico, tem a identidade do artista como xamã”, mas não representam os espíritos.
numa cultura perceptiva específica onde muito do que pode ser visualizado não A autora explora a articulação entre as diferentes linguagens artísticas que
se dá a ver. É na convivência e retroalimentação deste grafismo minimalista com a constituem a performance xamanística entre os Siona. Na poética dos cantos,
prática xamânica da busca por visões, e com uma ontologia da transformabilidade nas narrativas e na música se encontra o mesmo uso de repetição e redundância
das formas corporais, que deve ser procurado sua agentividade específica. Este para expressar esteticamente a natureza do universo fractal que se encontra nos
tipo de grafismo sempre adere a corpos, revelando sua potencial transparência grafismos. A autora mostra como os artistas se inspiram nas figuras geométricas
e permeabilidade a forças que nela impingem do exterior, assim como realça o dos fosfenos percebidos durante a experiência visionária e que são resultantes da
caráter eminentemente relacional do órgão da pele. ingestão de yajé; estas são extremamente repetitivas e estão em constante reconfi-
Em diálogo com o conceito de quimera de Severi, Lagrou propõe chamar o tipo guração. A mesma lógica gerativa do desenho pode ser encontrada nos desenhos
particular de imagem sob estudo de “quimera abstrata”. A quimera abstrata amerín- pintados nos rostos dos xamãs experientes: os desenhos são sempre parecidos mas
dia se caracteriza por uma tensão constitutiva entre o que é e o que não é dado a ver, nunca iguais, indexando em vez de revelando sua experiência subjetiva. O para-
levando a economia indicial a tal ponto que o olhar é ativamente engajado naquilo lelismo, consistindo no uso extensivo da repetição, diferencia o contexto ritual da
que é dado a ver, sendo obrigado a completar motivos que foram apenas esboçados. linguagem cotidiana, na fala, nos gestos, na música e nos grafismos. Assim como
Outra característica deste estilo cognitivo e visual é a sutil transição entre imagens acontece em outros contextos rituais onde a percepção do desenho se dá num
figurativas e abstratas: o que parece à primeira vista uma imagem abstrata pode se contexto ritual visionário, como entre os Shipibo e Kaxinawa neste volume, existe
abrir, sugerindo uma figura. O que pode ser vislumbrado no desenho, sem nunca uma íntima relação sinestésica entre canto e desenho. As capacidades de “cantar”,
ser explicitado, será completado pelo olho mental, na experiência de examinar um “ver” e “pensar” estão deste modo intimamente interligadas. A arte gráfica, como
desenho assim como na experiência onírica e visionária. Como acontece com a parte de um universo intertextual que liga diferentes modos performáticos, con-
noção de quimera proposta por Severi, a quimera abstrata ameríndia é antes do tribui para estabelecer as diretrizes para os noviços sobre como entender a alteri-
que a imagem de algo, a representação das relações expressas pela imagem. Assim dade num universo fractal.
como no exame da arte abstrata (Severi, 2011), interessa aqui a dinâmica relação O artigo de Lucia Hussak Van Velthem,“Homens, guaribas, mandiocas e arte-
entre as linhas sobre o suporte que produzem uma percepção espacial própria ao fatos – alguns sentidos da pintura entre os Wajana (Wayana)” explora as caracte-
campo gráfico, capturando o olhar e projetando-o para dentro do campo da visão, rísticas cromáticas e iconográficas da pintura presente nos corpos de humanos
produzindo profundidade no campo perceptivo e dando vida ao corpo ou objeto e não humanos. A autora mostra como as diferenças estilísticas, iconográficas e
desenhado. Na arte amazônica, as linhas chamam a atenção para o que conecta e cromáticas dos corpos pintados “garante(m) a necessária diferenciação entre os
não para o que separa corpos e seres distintos, é uma arte do entre-dois: conec- corpos e faculta(m) aos Wajana os instrumentos de afirmação de sua humanidade,
tando seres humanos e animais pela qualidade de possuírem desenho, assim como face aos demais componentes cosmológicos”. A teoria de criação wajana (povo
os lados visíveis e invisíveis, pela mesma razão, além de apontar para a relação entre indígena de língua carib que vive no norte do Estado do Pará) localiza nos tem-

14 15
quimeras em diálogo introdução

pos primordiais dos demiurgos (kuiulitom) a produção de modelos tecnológicos divisão do eu, causada pela morte, a pintura com desenhos geométricos remete ao
a serem seguidos até hoje na produção de seres humanos e artefatos. A fabrica- encontro dos humanos com o ser mitológico Anhyngakwasiat, que traz a noção de
ção de cestaria com arumã, especialidade masculina, é a técnica mais valorizada e multiplicidade, carregando em seu corpo todos os desenhos possíveis, porém de
considerada a mais complexa, a última a ser experimentada tanto pelos demiurgos modo desordenado, “como uma colcha de retalhos”. Os humanos, ao realizarem
quanto pelos aprendizes. Foi com esta técnica que os demiurgos fabricaram as os desenhos aprendidos, introduzirão o princípio de ordenação, tanto em termos
primeiras mulheres, primeiros seres humanos, depois das tentativas fracassadas estruturais quanto em termos de distinção entre motivos femininos e masculinos.
com cera e argila. É por considerarem as técnicas de produção dos corpos dos Uma característica marcante do estilo asurini, identificada pela autora em
humanos, dos animais e dos artefatos tão similares que a sua diferenciação precisa 1990, é retomado aqui sob uma nova luz. Trata-se do padrão tayngava, padrão
ser garantida por meio da aplicação da sua decoração. que aponta para a inter-relação dos domínios cósmicos. Por mais que haja varia-
É através de pinturas com urucu e jenipapo, de escarificações, adornos plu- ções sobre o motivo, a regra formal das variações cujos nomes se referem a ani-
mários e outros materiais, entre os quais se destacam as miçangas e a tanga de mais, plantas, artefatos e grafismos é ditada pelo padrão tayngava – ângulo de
tecido industrial vermelho, que se marca e produz a humanidade wajana de um 90º –, cujo referente é “a figura antropomórfica, objeto ritual xamanístico cujo
corpo. Artefatos são igualmente decorados e partilham com os corpos várias de nome é traduzido como “imagem humana” (t = possuidor humano + ayng = ima-
suas características; sua grande diferença com os últimos, no entanto, consiste no gem+av (a) = sufixo formador de nome de circunstância). O traço mínimo do
fato de os primeiros serem “corpos despedaçados”. padrão tayngava pode ser considerado o braço-perna desta figura. Através dela se
Uma primeira diferenciação que pode ser notada na decoração das super- consubstancia o princípio vital, ynga, que os xamãs transmitem dos espíritos aos
fícies de corpos e artefatos consiste na diferença entre cores uniformes, motivos pacientes. Assim, para além de uma representação, a própria imagem se constitui
pontilhados e motivos listrados. Estes três motivos correspondem, grosso modo, no princípio que define humanos e outros seres viventes, isto é, os que possuem a
a três domínios, o humano, o animal e o sobrenatural. Nos artefatos os três regis- substância ynga. Vemos deste modo que, para os Asuriní, “a imagem é constitu-
tros podem ser combinados de modo que os artefatos apontam para as relações tiva da existência dos seres”.
constitutivas entre os três domínios. Se em publicações anteriores (2003) a autora O artigo de Aristóteles Barcelos retoma, a partir do material wauja (grupo de
explora a diferença entre técnicas decorativas (como pintar, gravar e amarrar), ou língua arawak do Alto Xingu), o tema das serpentes e sua ligação com as artes (a
a diferença acima citada entre motivos (uniforme, pontilhado ou listrado), neste tecelagem, a música e os grafismos), temática esta que encontraremos em vários
artigo o foco recai sobre a trilogia cromática branco/vermelho/negro e sobre como artigos presentes neste livro. Podemos afirmar, desta forma, que além da temática
esta trilogia opera como código classificador que recobre os distintos espaços quimérica que permeia a discussão teórica de vários textos aqui apresentados, a
humanos e não humanos, desde os alimentos aos animais, seguindo uma lógica cobra constitui outro conceito chave e fio condutor a unir os universos artísticos
cromática que oscila entre os polos da carência e do excesso. aqui apresentados em termos ontológicos: como entre os Wauja, os mitos de ori-
O texto de Regina Polo Müller, “Arte gráfica asurini do Xingu – corpo, mito gem da tecelagem, do grafismo e dos cantos que os acompanham entre os Kaxi-
e pensamento”, revisita a arte gráfica asurini em sua relação com a mitologia e nawa, Shipibo-Konibo e Ashaninka remetem todos às serpentes. Como mostra
com certas categorias do pensamento, através do cotejamento entre este sistema Lagrou neste livro, a figura da serpente une em sua forma e na decoração de sua
expressivo e a performance ritual. Se o corpo decorado com desenhos geométricos pele todas as possibilidades da figuração, sendo o princípio gerativo das formas e
– no cotidiano assim como no ritual – aponta para sua condição social, o corpo do gênero.
todo pintado de preto constitui a negação de seu caráter humano, sendo figurado Em seu texto “O trançado, a música e as serpentes da transformação no
enquanto Outro por ocasião do ritual de separação entre vivos e mortos, o Turé. Alto Xingu”, Barcelos explora um tema de suma importância para a etnologia
Além da pintura preta, a penugem branca enfatiza este processo liminar e perigoso. das expressões artísticas ameríndias, detectado no começo dos anos oitenta no
Cada um desses dois estilos de pintura remete a um personagem mítico dis- material etnográfico da Amazônia ocidental e do alto Xingu, mas até agora pouco
tinto. Se a roupagem liminar de pintura preta com penugem branca evidencia o explorado: a relação sinestésica entre a produção de cantos e desenhos. Entre os
estado de incorporação do personagem mítico Kavara, cujo mito traz a noção da Pano, os estudos de Gebhart-Sayer e Bruno Illius para os Shipibo-Konibo, de

16 17
quimeras em diálogo introdução

Townsley para os Sharanahua e de Lagrou para os Kaxinawa (respectivamente profundidade no espaço coberto pelo grafismo. O efeito paradoxal deste tipo de
1986, 1987 e 1988, apud Lagrou, 1991 e 2007) apontam para a intrínseca relação grafismo é o de sugerir a transparência da pele e a agência do desenho que, como
entre o canto e a visualização do desenho durante a experiência visionária: é o no caso kaxinawa, funciona como uma armadilha para o olhar que é capturado
canto que gera o desenho e vice-versa. O mesmo fenômeno foi constatado entre pela trama. A arte Shipibo se constitui deste modo num excelente exemplo da
os Siona por Langdon (neste volume). lógica da quimera abstrata identificada para a arte gráfica da região por Lagrou. A
Para o sistema ritual xinguano, Bastos propõe que “as formas verbais, sono- autora descreve igualmente como a arte gráfica, presente na cerâmica, nos corpos
ras e visuais agem em cadeias de transformações semióticas” (Menezes Bastos, e nas vestimentas das mulheres, ajuda a moldar os corpos em movimento, parti-
1990), cujo próprio pivô da transformação é a música e o campo de realização o cipando de uma estética da sedução muito presente na região e conscientemente
ritual”. Neste artigo Barcelos procura explorar esta hipótese a partir da análise de manipulada pelas artistas Shipibo-Konibo.
três mitos/artefatos wauja de origem de serpentes: o mito do herói Arakuni, do O artigo “Kempiro – a arte gráfica dos traços fortes entre os Ashaninka do
trocano (que é uma anaconda) e o mito de Kamalu Hai (a gigantesca cobra-canoa Oeste amazônico”, de Peter Beysen, parte da descrição da feitura do cushma,
que carrega nas suas costas as panelas cantoras) e o mito de Kulupiene: todos são kempiro, vestimenta paradigmática dos Ashaninka e de outros grupos da região
exemplares da complexa interdependência das imagens sonoras e visuais. do lado peruano (os Ashaninka são um grupo de língua arawak que habita a
O mito de Kulupiene retoma o clássico tema ameríndio do incesto entre região fronteiriça entre o Brasil e o Peru, são vizinhos dos Kaxinawa para o Sul e
irmãos e sua descoberta pela marca do desenho em jenipapo no corpo do trans- dos Shipibo-Konibo para o Norte). No Brasil o cushma é a marca identitária que
gressor. Uma vez descoberto o incesto, Kulupiene (em vez de se transformar em lua distingue os Ashaninka dos seus vizinhos (apesar dos Manchineri, também de
como nos mitos pano e tukano), decide abandonar os humanos transformando-se língua arawak, terem começado também a timidamente retomar a produção de
em serpente. Para tanto tece um cesto como roupa e pendura um chocalho na sua cushmas). A articulação dos mitos de origem do cushma com o modo de produção
cauda, enquanto canta sua paixão e sua dor pela perda da irmã. Este mito de ori- e de tintura do mesmo levam o autor à constatação de que a roupa dos Ashaninka
gem da serpente conta também a origem dos desenhos que surgem com a pele da é concebida por estes como sendo uma pele de serpente, que passa pelo mesmo
cobra. O mito xinguano retoma aqui um tema recorrente dos mitos de origem do processo de envelhecimento até o momento de ser descartado como o é a pele de
desenho amazônicos, nos quais desde os Waiãpi e Wayana aos Kaxinawa, Shipibo uma cobra. O texto segue mostrando como todo o universo artefatual a envelopar
e Ashaninka se atribui à cobra a origem dos desenhos. o corpo ashaninka remete ao universo das serpentes. Se as serpentes doadoras de
Através da análise dos processos de transformação sofridos pelos persona- imagens (abstratas e figurativas) entre os Kaxinawa e Shipibo pertencem ao gênero
gens dos mitos, Barcelos mostra como a sonoridade e os motivos gráficos reme- constritor e não venenoso (jiboia e anaconda), entre os Ashaninka as serpentes
tem à alteridade e à cadeia transformativa entre gente, animal e espíritos, onde se donas dos colares, do cushma e dos motivos que adornam os corpos e rostos de
nota uma “verdadeira fusão sinestésica em que o que se vê é o que se ouve e o que adultos e crianças são as mais venenosas que existem na região.
se ouve é o que se vê”. Desta maneira, entre os Ashaninka como entre os Wayana, o belo é a fera.
O artigo de Luisa Elvira Belaunde,“Movimento e profundidade no kene shi- Entre os Ashaninka beleza, perigo e sedução são conceitos intimamente ligados e
pibo-konibo da Amazônia peruana”, é focado na dinâmica do desenho Shipibo- se Gebhart-Sayer pôde falar de uma “terapia estética” entre os Shipibo (1986), onde
Konibo, assim como na sua relação com os diferentes suportes sobre os quais se a cura consiste na refeitura pelo xamã dos desenhos invisíveis que cobrem o corpo
aplica. A autora desvenda a lógica gráfica do desenho Shipibo a partir do acom- do paciente, entre os Ashaninka é legítimo falar de uma perigosa sedução estética,
panhamento do processo de produção sequencial de várias camadas de grafismo onde o objeto do desejo é capturado através de desenhos cheirosos que remetem
num vaso antropomorfo Shipibo. A arte gráfica Shipibo se caracteriza pelo colo- ao veneno da serpente. O cushma e os txoxiki, colares que são como cobras, e
rido dos seus traços e pela diferença em grossura entre as linhas. A ceramista que também descascam, são instrumentos a aproximar o guerreiro ashaninka das
pinta o vaso primeiramente com traços grossos para mais tarde preenchê-los com capacidades agentivas da cobra: a procura da imortalidade através da troca da pele,
traços curvilíneos mais finos. A produção de desenhos em camadas produz um a invisibilidade e a força para atrair a vítima. Na análise formal dos grafismos asha-
efeito de percepção de movimento entre as linhas, assim como de percepção de ninka, por outro lado, Beysen revela a mesma estética minimalista presente em

18 19
quimeras em diálogo introdução

outros grupos da região, como entre os pano vizinhos (ver Lagrou neste volume). Stépanoff, centra sua análise na organização espacial da iconografia no tambor do
Encontramos aqui, não somente desenhos onde o motivo é apenas sugerido para xamã, explorando a relação desta, não tanto com o discurso verbal e as narrativas
ser interrompido por um recorte em um desenho infinito que solicita do olho sobre o cosmos, mas sobretudo com o próprio corpo do xamã em movimento
mental que seja completado além do suporte, como nos exemplos analisados por durante a performance. O autor não observou o tambor em uso, pela simples
Lagrou, mas também desenhos pontilhados onde se requer do ato do olhar que o razão de os tambores siberianos não serem mais produzidos e usados desde sua
desenho seja completado mentalmente traçando linhas entre os pontos. proibição pelo regime comunista russo. Para a análise dos tambores, Stéponoff
O texto de André Demarchi, “Figurar e desfigurar o corpo. Peles, tintas e tem à sua disposição os tambores guardados em coleções museológicas, repre-
grafismos entre os Mebêngôkre (Kayapó)”, visa explorar a relação intrínseca entre sentações pictográficas dos tambores e textos escritos sobre eles. Os etnológicos
diferentes tipos de pintura corporal e os processos de figuração e desfiguração que escreveram sobre o tema seguem uma abordagem semiótica e cosmográfica
do corpo humano nas diferentes fases de vida e contextos rituais examinados. que consiste em tratar a iconografia no tambor como representações da visão de
Tomando emprestado de Michael Taussig o conceito de desfiguração (defacement) mundo dos grupos em questão. Stépanoff, no entanto, nota que esta representação
que “ao trazer as profundezas para a superfície, revela mistérios”, o autor procura nunca é completa e aponta as limitações de uma abordagem que considera a ico-
“entender o processo vivido pelos Mebêngôkre durante os resguardos como perío- nografia como mero “reflexo” da cosmologia.
dos de desfiguração momentânea, quando a superfície do corpo está, temporaria- Ao prestar atenção ao que consta nos documentos do que os próprios xamãs
mente, “estragada” e, por isso, vulnerável, podendo tanto ser invadida do exterior tinham a dizer sobre as figuras, surge uma leitura totalmente diferente. “Os xamãs
para o interior por agências não humanas como levar à tona aspectos de suas pro- não parecem considerar que os desenhos transmitem uma mensagem, afirmando
fundezas, como o sangue e a alma”. antes que as imagens os ajudam a “se orientar em sua viagem”, a “avançar”, a “se
Como Regina Müller e Lagrou neste volume, Demarchi parte do contraste orientar nos países obscuros”. O leitor notará a correspondência entre estas afir-
entre pinturas rituais que marcam a fabricação de um corpo socialmente inte- mações dos xamãs siberianos com as dos xamãs amazônicos neste livro, onde para
grado, pinturas estas caracterizadas por uma aplicação precisa de delicados gra- os Kaxinawa, Shipibo e Siona os desenhos servem igualmente para guiar o olhar
fismos, e pinturas usadas em estados liminares, que vão desde a cobertura da pele do xamã na sua viagem visionária. Se, diferentemente das quimeras abstratas dos
toda com a tinta preta do jenipapo ao uso do grafismo kran a mehn ‘ôk, nomeado grupos acima citados, os desenhos cacasse são figurativos, esta característica não
pelo autor como “dripping selvagem”. Esta última pintura, antes de ser a imagem de os impede de servirem mais para orientar o xamã na sua viagem do que para
algo, é analisada como a cristalização de uma performance, como a “visualização representar os seres encontrados no seu caminho. O autor prossegue: “Ora, o que
ritualística da capacidade daqueles corpos suportarem tal desorganização gráfica”. é “orientar-se” senão estabelecer uma coordenação cognitiva e sensorial particular
Se mulheres e crianças precisam da simetria do desenho, a assimetria total do gra- entre seu próprio corpo e o espaço circundante? As indicações dos usuários dos
fismo dos jovens apontaria para a construção de um corpo forte. Retomando a tambores sugerem assim que os desenhos poderiam ser esclarecidos à luz das rela-
associação dos vários motivos e estilos de pintura corporal às fases de vida e ao ções entre corpo e espaço, no contexto particular da ação ritual”. Segundo o autor,
gênero das pessoas pintadas, abordagem esta inaugurada por Lux Vidal (1992) e no ritual siberiano, os gestos do xamã contribuem tanto ou mais que seus cantos
Terence Turner (1980) e retomada por Clarice Cohn (2000) no seu estudo das pin- para evocar “o espaço não ordinário que serve de moldura mental para a ação”.
turas sobre crianças, Demarchi desloca a ênfase de uma análise da função comu- Deste modo, propõe-se uma abordagem “sensório-motora” das imagens, pois é na
nicativa do grafismo para sua agência terapêutica. O autor mostra como em con- motricidade que corpo e espaço se coordenam.
textos rituais específicos, a pintura serve para refazer paulatinamente a pele, em Em “A máscara do animista – quimeras e bonecas russas na América indí-
outros para endurecer, não somente a pele, mas também o corpo de jovens e adul- gena”, Carlos Fausto propõe uma reflexão comparativa em torno do tema das más-
tos, preparando-os para suportar o peso de perigosos enfeites durante os rituais. caras ameríndias nas Américas do Norte e do Sul. O título já anuncia o diálogo
Fechamos o livro com dois textos que retomam de modo explícito o diálogo proposto. Parte-se de um contexto animista onde as máscaras anunciam a possi-
iniciado no começo do livro em torno do conceito de quimera proposto por Severi bilidade de transformação entre humanos e animais. Em Fabrique des Images, Phi-
(2007). O artigo “Tambor e espaço virtual no xamanismo cacasse”, de Charles lippe Descola (2010) mostra como as máscaras dos povos da Costa Noroeste da

20 21
quimeras em diálogo introdução

América, nas quais uma figura de animal se abre para mostrar um rosto humano, ritual e a ontologia xamanística ameríndia – resultou em um livro surpreendente-
se constituem como uma das figurações mais claras da lógica animista, que pos- mente coeso em termos teóricos e nos modos propostos para abordar a temática:
tula que uma exterioridade animal pode esconder uma subjetividade humana. encontramos assim como fios condutores desta empreitada reflexões sobre a aná-
Animais que escondem uma subjetividade humana podem, por sua vez, esconder lise do fenômeno da sinestesia no contexto performático das artes xamanísticas,
espíritos poderosos que se ocultam em corpos humanos tanto quanto em corpos uma ênfase na análise praxiológica tanto da produção quanto da recepção dos gra-
de animais. A duplicidade deste tipo de imagens, por outro lado, foi chamado por fismos e das figurações, assim como uma análise formal aliada a uma antropologia
Severi de “um “antropomorfismo latente” que não é representado figurativamente da percepção, associando deste modo preocupações estéticas e cognitivas. O con-
como a simples presença de um humano no interior de um animal, mas antes junto dos artigos reunidos, inclusive aqueles que não dialogam diretamente com o
como uma “conjunção específica entre o animal e o humano”. conceito proposto, representam uma rica contribuição à recente reflexão em torno
Como se realiza comparativamente a representação deste tipo particular de do potencial teórico do conceito de quimera, além de contribuir de modo decisivo
subjetividade, marcada por uma capacidade de transformação e por uma iden- para uma proposta de análise da especificidade das técnicas perceptivas e expres-
tidade múltipla, é o que Fausto se propõe a explorar neste artigo, usando para sivas ameríndias, técnicas estas ligadas a uma ontologia xamanística.
este fim duas noções formais: a de “encaixe recursivo” e a de “referência múltipla”.
O autor parte do fato de a máscara sempre precisar ser vestida por uma pessoa referências bibliográficas
para apontar o primeiro encaixe, assim como o primeiro fator a produzir uma
BAXANDALL, Michael. L’Œil du Ouattrocento. Paris: Gallimard, 1985 [1972].
“instabilidade cognitiva”: cria-se uma tensão instável em torno da máscara em
COHN, Clarice. “A criança indígena: a concepção Xikrin da infância e do aprendizado”.
movimento, cuja identidade é difícil de ser decifrada. Se a face da máscara é a face
Dissertação de mestrado, São Paulo, USP, 2000.
humana de um não humano, dentro da máscara se esconde um humano. A partir
DESCOLA, Philippe. Par-delà nature et culture. Paris: Gallimard, 2005.
dos desdobramentos múltiplos entre humanos, animais e faces de espíritos pre-
______. La fabrique des images. Visions du monde et formes de la représentation. Paris:
sentes nos exemplos das máscaras norte-americanas, o autor exemplifica as duas Museu du Quai Branly-Somogy, 2010.
lógicas propostas, a do “encaixe recursivo” e a de “referência múltipla”. A parte
ILLIUS, Bruno. Ani shinan: Schamanismus bei den Shipibo-Conibo (Ost-Peru). Tese de dou-
final do artigo é reservada para a análise das máscaras na América do Sul, onde torado, Tübingen, Verlag S&F, 1987.
o desdobramento humano/animal não ocorre da mesma maneira que no Norte. GEBHART-SAYER, Angelika. “The geometric designs of the Shipibo-Conibo in ritual con-
As máscaras da América do Sul são antes máscaras onde a referência múltipla se text. In: Journal of Latin American Lore v. 2 (2), p. 143-175, 1985.
dá pela figuração pouco antropomorfa do ser, pela forma que não representa nem LAGROU, Els. Caminhos, duplos e corpos. Uma abordagem perspectivista da identidade e
humano nem animal e pela fusão das referências, o uso de diversos grafismos e alteridade entre os Kaxinawa. Tese de doutorado, São Paulo, USP, setembro de 1998.
cores que referem à presença simultânea de diversos seres. O conceito de pessoa ______. A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxi-
múltipla cunhado por Strathern para o contexto melanesiano ganha aqui outro nawa, Acre). Rio de Janeiro: Topbooks, 2007.
contexto de aplicação convincente. Outro ponto importante a assinalar é que, ______. “Le graphisme sur les corps amérindiens. Des chimères abstraites?”, Dossier Pièges
assim como vimos em outros textos neste livro, na Amazônia a pintura na pele à voir, pièges à penser, in: Gradhiva. Revue d’Anthropologie et d’Histoire des Arts., v.
13. Paris: Museu du Quai Branly, p. 69-93, 2011.
pode funcionar como um primeiro invólucro a afetar a metamorfose do ser porta-
MENEZES BASTOS, Rafael de. A festa da Jaguatirica: uma partitura crítico-interpretativa.
dor da pintura. Deste modo, afirma o autor, o portador da máscara é transformado Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade de São Paulo, 1990.
em espírito, entre os Kuikuru assim como entre os Tikuna, pela aplicação de pin-
______. “Ritual music of the Kayapó-Xikrin, Brazil”. In: Yearbook of the International Cou-
tura preta no seu corpo, antes mesmo de usar a máscara. Esta pintura servirá de ncil for Traditional Music. Nova York, v. 28, p. 231-233, 1996.
camada a separar a máscara da pele nua do seu portador. MÜLLER, Regina Polo. Os Asuriní do Xingu. História e Arte. Campinas, Unicamp, 1990.
O leitor terá notado nesta breve síntese dos argumentos apresentados pelos SEVERI, Carlo. “Warburg anthropologue, ou le déchiffrement d’une utopie. De la biologie
autores aqui reunidos que a junção dos artigos escolhidos em torno de uma temá- des images à I’anthropologie de Ia mémoire”, L’Homme 165 (numéro spécial – Image
tica bem específica – o grafismo e a figuração na sua relação com a performance et anthropologie), Carlo Severi (éd. l), p. 77-129, 2003.

22 23
quimeras em diálogo

______. Le Principe de la chimère. Une anthropologie de la mémoire. Paris, Éditions rue


d’Ulm-musée du quai Branly «Aësthetica»), 2007.
O espaço quimérico.
______. “l’univers des arts de la mémoire. Anthropologie d’un artefact mental”. In: Annales Percepção e projeção nos atos do olhar1
H55 2, p. 463-493, 2009.
Carlo Severi
STRATHERN, Marilyn. The Gender of the Gift. Berkeley: University of California Press, 1988.
TAUSSIG, Michel. Defacement. Public secrecy and the labor of negative. Stanford: Stanford
University Press, 1999.
TOWNSLEY, Graham. Ideas of Order and Patterns of Change in Yaminhaua Society. Tese de
doutorado, Cambridge, Cambridge University, 1988.
TURNER, Terence. “The social skin”. In: CHERFAS, J.; LEWIN, R. Not work alone: a cross-cul-
tural study of activities superfluous to survival. Londres: Temple Smith, p. 111-140, 1980.
Vi toda uma paisagem refratar-se no olho de uma pernalta que
VELTHEM, Lucia Hussak van. O Belo é a Fera. A estética da produção e da predação entre os
mergulhava: os mil círculos que encerram cada vida, o azul sus-
Wayana. Lisboa: Museu Nacional de Etnologia, 2003.
surrante do céu tragado pelo lago, a emergência num outro lugar
VIDAL, Lux (org.). Grafismo indígena. São Paulo: Studio Nobel, FAPESP/EDUSP, 1992. – eis o que são as imagens: a emergência num outro lugar.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo amerín- franz marc (1996 [1914])
dio”. In: Mana. Estudos de Antropologia Social, 2(2), p. 115-144, 1996.

Figura 1: Enguerrand Quarton, Coroamento da Virgem, detalhe, 1454, óleo sobre painel. Museu
Pierre de Luxembourg, Villeneuve-lès-Avignon © Musée Pierre de Luxembourg/
Giraudon/The Bridgeman Art Library.

1 Este texto foi originalmente publicado em francês na revista Gradhiva, n. 13, 2011, traduzido para o
português por Alberto Goyena, com revisão técnica por Els Lagrou.

24 25
o espaço quimérico carlos severi

O museu Pitt Rivers de Oxford possui uma argola de marfim singular, encon- Essa primeira definição, que intencionava aludir aos modos de funcionamento
trada na Sibéria (Figura 2). Veem-se nela duas formas idênticas que podem ser de certa quantidade de exemplos específicos, suscitou novos debates e pesquisas
interpretadas de maneiras diferentes: como o contorno de uma cabeça de lobo no marco de uma teoria antropológica da memória. Dentre as questões provo-
ou como o corpo inteiro, provavelmente, de um leão marinho. Esse objeto não cadas, um primeiro grupo concerne à interpretação etnográfica: como apreciar,
constitui unicamente a representação de dois animais diferentes pelos mesmos em novos campos, a capacidade heurística da noção de quimera? Seria possível,
meios visuais; ele é testemunho de um ato do olhar. Inserindo uma linha curva em a partir dessas primeiras análises, definir um tipo geral de representação, a qual
dois contextos diferentes, a imagem passa da representação pela imitação de um se poderia chamar de “quimérica”, da mesma forma como se fala, por exemplo, de
animal à interpretação complexa e plural de uma forma. Enquanto traço material, representações “realistas”, “abstratas” ou “simbólicas”? Como identificar modos de
a representação faz emergir um trabalho mental, uma série de operações mentais variação, no espaço ou no tempo, das representações quiméricas? Conforme defi-
(ou, simplesmente, de pensamentos) que se associam a uma linha e que dela fazem nida nos primeiros exemplos, a representação “quimérica” seria própria das artes
surgir, em ambos os casos, uma parte invisível ou potencial. não ocidentais? Se for o caso, como diferenciar o que seria próprio das quimeras
Há alguns anos, havíamos proposto chamar de quimérica esse tipo de repre- ameríndias, oceânicas ou africanas de tudo aquilo que a tradição ocidental deno-
sentação (Severi, 2003), assinalando que ela se caracteriza pela condensação da minou de imagem fantástica, dupla, ambígua ou simplesmente, segundo a recente
imagem em alguns traços essenciais. A condensação engendra, por projeção, definição de Dario Gamboni (2004), imagem “potencial”?
uma ou mais interpretações da forma. Aquilo que pode ser visto é considerado, Outros questionamentos concernem aos aspectos mais propriamente lógi-
implicitamente, uma parte de outra forma, cuja presença é imputada e eventual- cos desta noção. Se o essencial da ideia de quimera não diz respeito a um tipo de
mente representada. Num ato do olhar como esse, o invisível prevalece sobre o imagem definida por uma morfologia específica, mas sim ao tipo de operações
visível e parece indicar o contexto. Formulamos a hipótese de que, nas tradições mentais que a invenção e a apreensão desse tipo de imagem implicam (seleção
habitualmente chamadas de “orais”, esta estrutura, “por indícios”, confere à ima- de traços visuais, projeção, indução, estabelecimento de sequências etc.), cabe
gem um aspecto particular que lhe permite desempenhar um papel crucial nas perguntar: o que distingue a representação quimérica? Qual o exercício do pen-
práticas sociais, tanto ligadas à memorização como à consolidação de um saber. samento que a caracteriza e que permite, eventualmente, opô-la a outros modos
A saliência visual destas imagens, ligada à mobilização da inferência que elas de pensamento?
implicam, pode se tornar, assim, um traço mnemônico capaz de veicular e de Algumas questões foram também formuladas a partir de um ponto de vista
preservar sentidos. mais próximo da estética. Concordaremos, dentro dessa perspectiva, que um dos
efeitos da representação quimérica é intensificar uma imagem graças à mobiliza-
ção de seus aspectos invisíveis. Mas poder-se-ia objetar, a rigor, que toda obra de
arte suscita um trabalho do pensamento concernente ao que não está material-
mente representado. Todos os clássicos do pensamento estético moderno desta-
caram esse ponto. Em seu Essais sur la peinture (Ensaios sobre a pintura), Diderot
já descrevia com grande precisão esse jogo do olhar, essa máquina que faz surgir,
através de um cálculo cuidadoso do espaço e das proporções, a parte invisível de
um quadro:

Tentem, meus amigos – escrevia ele ao se dirigir, em particular, aos desenhistas –,


supor toda a figura transparente e foquem o olhar no centro: de lá vocês observarão
todo o jogo exterior da máquina; vocês verão como certas partes se dilatam, enquanto
outras se encurtam; como há as que encolhem, enquanto outras inflam; e, perpetua-
mente ocupados de um conjunto e de um todo, vocês lograrão mostrar, na parte do
Figura 2: Argola siberiana de leão marinho em marfim, museu Pitt Rivers, Oxford.
objeto que seu desenho apresenta, toda a correspondência com aquilo que não se vê,

26 27
o espaço quimérico carlos severi

e, oferecendo apenas uma face, vocês forçarão minha imaginação a ver a face oposta;
só então direi que vocês são desenhistas surpreendentes (1951: 1.118).

Como precisar, desse terceiro ponto de vista, o que é próprio à apreensão


estética da representação quimérica? E como conceber, posto que toda obra de
arte supõe uma reflexão, uma imagem que não fosse quimérica?
O esforço no sentido de buscar responder a esses questionamentos pode nos
permitir não apenas afinar nossas ferramentas de análise (e até esclarecer alguns
mal-entendidos), mas também renovar nossa compreensão sobre o tipo de exer-
cício do pensamento que se exprime no seio de uma tradição iconográfica. Passa-
remos, assim, da perspectiva que leva a definir uma tipologia das representações
à identificação da lógica das relações representadas pela imagem no seio de uma
tradição. Para mostrar como é possível operar essa mudança de perspectiva, tenta-
remos inicialmente precisar a definição e os desenvolvimentos possíveis da noção
de quimera, a partir dos três pontos de vista identificados: o morfológico, o lógico
e o estético. Em um segundo momento, tentaremos mostrar como essa nova abor-
dagem permite interpretar um caso etnográfico preciso.
Retomemos os questionamentos suscitados pelo debate sobre a representação
quimérica e consideremos a questão, levantada segundo uma perspectiva estética,
da singularidade do quimérico no que tange à relação estabelecida entre a obra de
arte e as operações do pensamento.
Figura 3: Anônimo, A Trindade, século XVIII, óleo sobre madeira (43,5 x 28,5 cm).
Museu Carolino Augusteum, Salzburgo.

i Nessa perspectiva, a obra ultrapassa e até se opõe à imagem. A partir daquilo


que vê, o sujeito que se constitui como observador faz emergir uma experiência
O artista deve saber oferecer mais ao espírito do que ao
olhar... é próprio da pintura poder representar as coisas
estética, a qual, ainda que parcialmente imaginada pelo artista, só se realiza plena-
invisíveis, situadas no passado ou no futuro. mente no seio do olhar do observador. De Goethe – para quem “o mundo exterior
winckelmann, Réflexions sur l’imitation carece de cor: somente a fagulha de luz que reside no olho confere ao mundo o seu
de l’art des Grecs, 1973. cromatismo” (2000 [1808: 21]) – a Lévi-Strauss – em La pensée sauvage (O pensa-
mento selvagem), que falava de um observador “que se sente, confusamente, mais
No aforismo acima, Winckelmann formula um dos fundamentos do pensamento criador que o próprio criador” (2008: 586) –, a ideia da obra como resultado de um
estético moderno: longe de mobilizar um processo de percepção passivo ou mecâ- diálogo travado por meio de um ato do olhar (e não pela simples percepção visual)
nico, a obra do artista suscita sempre no observador um ato do olhar. Numa per- desenvolveu-se ao longo de toda uma tradição de pensamento. Em L’Œil du Quat-
cepção próxima à de Diderot, Winckelmann afirma que aquilo que emerge na trocento, Baxandall (1985) formulou uma versão particularmente clara que pode
experiência estética é resultado de um diálogo entre o que é exibido sobre uma tela servir como introdução às análises propostas neste artigo. Em um breve capítulo
pintada e o processo de exploração/interpretação, onde o observador desempenha dedicado à relação entre experiência ótica e conhecimento cultural, o historiador
um papel paralelo ao do autor. inglês sugere um tipo de experimentação visual. Observemos a Figura 4. O que
ela representa?

28 29
o espaço quimérico carlos severi

das mesmas convenções – como se as convenções visuais referidas por Baxandall


constituíssem uma sorte de gramática da cultura, cujas regras seriam fáceis de
enunciar ou de fixar para sempre. Instável, variável segundo o contexto, ligada à
hipótese ou à inferência, sempre em reconstrução, a relação entre percepção pas-
siva e olhar interpretativo pode variar não somente de um indivíduo a outro, mas
Figura 4: Santo Brasca, plano do Santo Sepulcro em Jerusalém, Leonardus Pachel e Uldericus também conforme o tipo de diálogo que uma convenção visual (ou o conjunto de
Scinzenzeler, Itinerario alia Santissima ctttà di Gerusalemme, Milão, 1481: 58v. uma tradição iconográfica) propõe ao olhar de um observador. Desse ponto de
vista, se quisermos compreender o que é próprio da representação quimérica, será
Pode-se ver, por exemplo, uma forma redonda, muito vagamente traçada, necessário atentar para os tipos e as modalidades de representação que a relação
ladeada de projeções alongadas em forma de L. Ou então, de um ponto de vista entre projeção e percepção implica. Para compreender as quimeras será central
mais geométrico, um círculo chapado sobre um retângulo truncado. A percepção identificar as coordenadas do espaço quimérico. Consideremos agora a convenção
possível dependerá, para além do processo mecânico que rege a percepção visual, visual que nos é mais familiar, a da perspectiva ocidental.
“das capacidades interpretativas, das categorias, dos modelos e dos hábitos de
dedução e de analogia” que formam o que se poderia chamar de “estilo cognitivo” ii
de um dado observador (Baxandall, 1985: 48). Saber que essa imagem provém de
uma descrição da Terra Santa publicada em Milão, em 1481, e que ela está acom- A relação mais simples entre percepção e projeção é sem dúvida a de encas-
panhada da legenda “Esta é a forma do Santo Sepulcro de Nosso Senhor Jesus tramento (enchassement), que leva a inscrever o exercício de uma operação no
Cristo” traz dois elementos importantes para a percepção da imagem. Primeira- marco conceitual fornecido pela outra. Portanto, a projeção se exerce em um qua-
mente, segundo Baxandall, o observador poderá se referir a possíveis experiên- dro visual virtualmente fixo, a exemplo do observado na perspectiva ocidental.
Nesse sentido, projetar significa tornar-se capaz de traduzir indicações estáticas,
cias, por meio de certas convenções representacionais. Ele, ou ela, julgará, talvez,
dispostas sobre uma superfície, em indicações de profundidade dotadas de um
que a imagem se destaca da projeção plana. Trata-se de uma convenção de leitura
movimento implícito, antes mesmo de começar a se decifrar o significado de uma
segundo a qual, uma vez observadas verticalmente, as linhas que representam os
imagem. Tal tipo de apreensão da imagem, que nos parece tão familiar, está longe
muros periféricos de um edifício se desenham a partir do solo. Em seguida, se
de ser universal. Ele foi analisado em detalhe, sobretudo por Florensky (1992),
estivermos familiarizados com a arquitetura italiana do século XV, deduziremos
como um dispositivo cultural de funcionamento ótico. Mas é, sem dúvida, em
pelo desenho que o círculo representa uma edificação redonda, talvez coberta por
Le problême de la forme (O problema da forma), de Hildebrand (2001 [1893]), que
uma cúpula, que as alas retangulares são vestíbulos e que o quadrado no inte-
encontramos, de um ponto de vista formal, a descrição mais clara desse processo
rior do círculo designa o espaço onde se localiza a tumba (ibid.: 49). São três as
de decifração da profundidade, por meio da percepção de imagens dispostas sobre
variáveis que, ligadas à cultura, agem no modo como nosso espírito interpreta
uma superfície plana – ao qual a existência mesma da perspectiva enquanto con-
formas que, até então, poderiam parecer desprovidas de sentido: “uma variedade
venção visual nos habituou.
de modelos, de categorias, de métodos dedutivos; o treinamento numa série de
Sigamos o raciocínio do autor: a obra de arte suscita operações do pensa-
convenções para representar as coisas e, finalmente, a experiência baseada nos
mento, escreve Hildebrand, porque, longe de se basear na observação direta do
modos plausíveis de visualizar aquilo sobre o que não temos mais do que uma
real, ela resulta de um processo complexo de rememoração da imagem real:
informação incompleta” (ibid.). Chegaremos à conclusão de que em todo ato do
olhar, tal como ele se exerce em uma dada cultura, a percepção como processo Ver e representar um objeto são dois processos muito diferentes: para obter uma prova
fisiológico e a projeção de certos saberes adquiridos encontram-se estritamente disso, observe um objeto atentamente e dê-lhe as costas. O que resta em seu espírito
é muito diferente da primeira impressão que teve: uma parte da imagem desapare-
associadas. Como operações mentais, elas são indissociáveis de todo ato do olhar.
ceu, mas outros traços persistem. O primeiro ato é uma percepção; o segundo é uma
Contudo, isso não significa que essa relação entre percepção e projeção, definidora representação. O ato que preside a representação é, portanto, próprio da lembrança e
do processo de construção cultural de uma imagem, se estabeleça sempre dentro não da percepção (2001[1893]: 122).

30 31
o espaço quimérico carlos severi

trabalha sempre “lá, onde as representações do espaço são produzidas inconscien-


temente” (ibid.: 228). Atingir esse substrato, torná-lo sensível, é, ao mesmo tempo,
explorar o trabalho do olhar e suscitar o sentimento inconsciente do espaço.
Não será necessário retomar aqui outros aspectos da concepção de Hilde-
brand sobre a forma. Atenhamo-nos apenas a um ponto essencial: sua definição
oferece um modelo, ao mesmo tempo abstrato e elementar, da relação de encas-
tramento entre percepção e projeção que se realiza no seio da convenção visual da
perspectiva. No seio dessa convenção, que se tornou dominante no Ocidente, só
se pode apreender a forma (e, portanto, interpretar corretamente a perspectiva),
fazendo surgir, a partir de indicações dispostas sobre uma superfície, a profundi-
dade e o movimento implícito que caracterizam uma representação.
Fundador do formalismo, mais teórico do espaço estético do que historiador
de arte, Hildebrand apresenta apenas uma interpretação idealizada das relações
que podem ser estabelecidas entre percepção e projeção. Na verdade, a história
das práticas ligadas à perspectiva está longe de se reger apenas pelas regras da
geometria. Uma vez que o quadro se fixa sob o modelo albertiano, tais práticas
originaram progressivamente um espaço partilhado, com suas permanências,
Figura 5: Véronèse (Paolo Figura 6: Juan de Flandes, A seus problemas típicos, seus dilemas, seus reencontros e suas ressonâncias. Sua
Caliari), presumido decapitação de São João Batista, complexa evolução se situa, sem dúvida, no longo prazo (dans la longue durée).
autorretrato como caçador, detalhe, entre 1496-1499. © Dando prosseguimento à reflexão de Baxandall e de Shearman (1992), Svetlana
afresco da villa Maser, detalhe, Musé d’Art et d’Histoire, Ville de
1560-1561, Vicence © 2011. Genève, inv. no CR 365/
Alpers (2005) comparou esse espaço a um laboratório científico onde o artista, seu
Foto Scala, Florença. Foto Bettina Jacot-Descombes. modelo e seu mecenas desempenham cada um, ao seu modo, um papel essencial.
No interior desse universo (uma espécie de teatro do olhar, onde, do Quattrocento
Logo, a memória visual propriamente dita é a “matéria mental” sobre a qual aos impressionistas, todo elemento da cena pode variar: a ideologia do mecenas,
o artista intervém. O seu trabalho implica, segundo a expressão de Hildebrand, as técnicas da representação, a atitude do modelo ou mesmo, como mostrou Fried
uma constante “avaliação das aparências”. Mas essa atenção dada ao real não visa (1990), seu modo de se dirigir ao observador), diversas modalidades de relação
à imitação da natureza, mas, sim, à identificação de um princípio organizador da entre projeção e percepção são possíveis. Mesmo correndo o risco de simplificar,
percepção que se exprime pela presença de uma forma. O conceito não designa, pode-se dizer que o meio mais simples de se mobilizar uma projeção para inter-
para Hildebrand, nem um fenômeno próprio à aparência do mundo exterior nem pretar uma imagem inscrita sobre a superfície plana, desde a Renascença, consiste
um aspecto da experiência que pertenceria somente à atividade artística. O senti- em conferir-lhe um valor simbólico. Baxandall (1985, 1989) e Settis (2005) mos-
mento da forma, para ele, remete “à percepção inconsciente do espaço que orienta traram, por exemplo, que toda iconografia religiosa da Renascença italiana está
constantemente o nosso olhar”. Tal “sentimento” (que hoje chamaríamos, prefe- rigorosamente codificada a partir das instruções detalhadas que a Igreja ditava aos
rencialmente, de reflexo inconsciente) orienta constantemente nossos movimen- artistas, a fim de orientar e instigar a imaginação dos fiéis. Retenhamos aqui o
tos e marca a presença do nosso corpo no espaço. Nesse marco conceitual, toda exemplo da representação de Cristo, do qual Baxandall mostrou que ela não estava,
imagem que nos permite ver a profundidade e o movimento implícito, como na de forma alguma, relegada à imaginação. Sua figura devia acompanhar a descrição
convenção visual da perspectiva, visa à representação do espaço através das ope- dada num relatório supostamente enviado por Lentulus, governador da Judeia,
rações do olhar, e não à imitação da aparência. Hildebrand conclui que o artista ao Senado romano. Lentulus (sem dúvida um personagem legendário), que teria

32 33
o espaço quimérico carlos severi

conhecido Cristo, dizia ser ele “um homem de estatura mediana ou baixa... seus
cabelos eram da cor de castanha madura e caíam retos até a altura das orelhas e,
em seguida, formavam cachos grossos até os ombros... sua testa era vasta, polida e
serena, seu rosto era desprovido de rugas, e sua barba, da mesma cor dos cabelos,
assemelhava-se à primeira barba de um rapaz”.

Figura 7: Albrecht Dürer, Hieroglifos para o Arco do Triunfo do imperador Maximiliano,


por volta de 1515. Coleção privada/The Bridgeman Art Library. Figura 8: Jérôme Bosch, O martírio de Santa Liberata, óleo sobre painel (104 x 119 cm).
Palácio dos Dogos, Veneza. © Palazzo Ducale/The Bridgeman Art Library.
Poucas pinturas, de fato, contradizem esse modelo (Baxandall, 1985: 91).
Deve-se sublinhar, contudo, que no interior desse marco iconográfico, admitia-se A referência à antiguidade grega, latina ou egípcia produziu, naturalmente,
inteiramente que o aspecto conceitual de uma representação poderia contradi- uma iconografia convencional muito influente, analisada pela escola de Warburg
zer sua verossimilhança. Atenhamo-nos à representação de Jesus Cristo como um e sobre a qual não insistiremos aqui. Contudo, retomando Baxandall, notaremos
rapaz: em um Coroamento da Virgem, pintado por volta de 1454, perto de Avignon, que esses dados iconográficos de base não são mais do que um repertório, relati-
Enguerrand Quarton, para mostrar que não pode haver diferença entre o Pai e o vamente estável, o qual se pode citar, modificar, contradizer ou renovar conforme
Filho, os representa com rostos idênticos (Figura 1) (Baschet, 2008: 170-172). De a ocasião.
maneira análoga, Bramantino, na mesma época, pinta uma Virgem com criança, Pensemos nos “hieroglifos” desenhados por Dürer, por volta de 1515, para o
cujos traços são tão próximos aos de um rapaz que o quadro pareceu enigmático Arco do Triunfo do imperador Maximiliano (Figura 7). Neles, toda uma tradição
durante muitos anos. Suida mostrou que se tratava, para os mecenas da obra, por iconográfica neoegípcia (Barasch, 2003; Panofsky, 1943; Wittkower, 1977) foi com-
um lado, de relembrar a natureza divina do Cristo – que pode também contrariar pletamente reinventada, no que diz respeito tanto ao estilo como ao significado
as aparências e surgir através do rosto de sua mãe – e, por outro lado, de evocar, dos símbolos. Para além da tradição cristã, tais usos da imagem simbólica pare-
por meio da semelhança da mãe com o filho, uma definição canônica e mais rara cem se organizar, conforme reconheceu Warburg (2010), segundo dois eixos: ou
da Virgem como “Virgem Mãe, Filha de seu Filho” (Vergine madre, figlia del tuo remetem ao retorno do Antigo (segundo o uso italiano) ou se referem à tradição
figlio, disse Dante no Canto XXXIII do Paraíso) (Suida, 1953: 98-100). Encontramos à francesa, que Warburg identificou quando estudou as tapeçarias da Borgonha,
os mesmos jogos de “semelhança impossível” em Bosch, quando ele dá à Santa das coleções dos Medici, em Florença (ibid.: 5). Esse modo francês (rapidamente
Liberata, sacrificada na cruz, o rosto de Cristo (Figura 8). Mais tarde, um anônimo difundido em toda a Europa, incluindo a Itália) consiste em situar as cenas extraí-
alemão do século XVIII (inscrevendo-se em tradição muito antiga) não hesitará das de um texto antigo, do Evangelho ou da Bíblia, em uma época contemporânea
em representar a trindade como uma figura tripla de rapaz (Figura 3). à do artista e de seu mecenas. A Degola de São João Batista (Décollation de Saint

34 35
o espaço quimérico carlos severi

Jean-Baptiste), de Juan de Flandes (Figura 6), pintada em 1496-1499, oferece um semifictício, semirreal, no qual aquele que olha fica enredado. Descobre-se o que
exemplo marcante das variações inovadoras do simbolismo. O mestre flamengo Shearman, ao retomar a definição clássica de Riegl (2009 [1902]) e os trabalhos de
(que faz alusão a um texto de Mateus, que trata da beleza sensual de Salomé e da Gombrich (1969, 1982), chamou de transitividade da perspectiva. Trata-se de sua
crueldade que ela demonstrou ao demandar a Herodes a decapitação de São João capacidade, inteiramente formal, de suscitar a presença de um observador enga-
Batista) nos mostra a princesa acompanhada de uma dama de sua corte. Vestida, jado na imagem. Enquanto convenção visual, ela implica não somente a existência
assim como sua companheira, em um traje muito elegante, Salomé parece perfei- de um “ponto de fuga”, que organiza em um espaço coerente a percepção da pro-
tamente indiferente diante do guarda que, consternado, lhe mostra a cabeça deca- fundidade, mas também de dois campos visuais: um situado no interior do quadro
pitada de João Batista. Ao fundo, pousados sobre o muro que circunda o castelo, e outro que se projeta para o exterior do espaço pintado, marcando assim o lugar
há dois pavões maravilhosos. Em contraposição a uma luz vespertina dourada, as implícito do observador (Shearman, 1992: 36).
aves parecem elegantes, indiferentes e cruéis, assim como as damas. Essa primeira
analogia adquire uma intensidade singular, ao passo que o observador percebe
que o pintor superpõe, face ao eixo damas/aves, outro eixo análogo relacionado
às cabeças do guarda e do santo decapitado, representadas com traços marcados
pela dor, quase idênticos. A encarnação de uma crueldade controlada, sem emo-
ção aparente, se opõe a uma representação tão intensa do sofrimento que chega a
ser quase uma alucinação. Seria muito difícil encontrar exemplo mais eloquente
do estilo à francesa: inteiramente dedicado à invenção de imagens, o texto e seu
simbolismo estão presentes, sem que nada remeta explicitamente ao Evangelho.

iii
Inspirado pela antiguidade, pela tradição religiosa ou pelos costumes da vida na
Corte, o simbolismo é testemunha do trabalho de projeção de diferentes sabe-
res, os quais, na Renascença, se associam à interpretação visual de um quadro.
Mas esse trabalho da projeção (esse ato do olhar que, face à obra, mobiliza um
saber adquirido), que vimos até aqui operar no nível semântico, pode ir além da
decifração de imagens simbólicas e adentrar no espaço mesmo da representação.
O marco formal da perspectiva (e o tipo de articulação que ele supõe entre per-
cepção e projeção) deixa, então, de aparecer como um dado a ser reproduzido
mecanicamente e tende a adquirir um aspecto reflexivo. A hipótese sobre a qual
se destaca a perspectiva como convenção visual, quer seja, a existência de uma
continuidade entre o espaço pintado e o espaço real (e, em particular, da parte
do espaço real, a qual se pode chamar de liminar, na medida em que ela “designa
a fronteira do espaço representado sem dele fazer parte” [Shearman, 1992: 59]),
deixa de funcionar de modo implícito e emerge como sujeito da representação.
O olhar do observador passa, então, da decifração dos significados simbólicos
das figuras à interpretação da ação representada e do espaço que ela implica. Surge Figura 9: Andrea Mantegna, São Sebastião, em torno de 1459, têmpera sobre painel (68 x 30 cm).
Kunsthistorisches Museu de Viena. © Kunsthistorisches Museum/
uma série de gestos, de olhares e de posturas, supondo a existência de um espaço Ali Meyer/The Bridgeman Art Library.

36 37
o espaço quimérico carlos severi

torna possível a perspectiva, se mostra, como Hildebrand o definiu, “um reflexo


inconsciente do espaço que orienta inconscientemente a posição do corpo e do
olhar” (2001 [1893]: 228). Compreende-se que esse tipo de encastramento opera,
a fortiori, quando o olhar do observador interpreta uma representação simbólica,
cuja percepção da profundidade (bem como a do movimento implícito) fornece
o contexto formal. Ora, quando a estratégia da representação se torna, através
do surgimento de uma reflexividade do enquadramento, “transitiva”, a imagem
deixa transparecer um deslocamento inédito entre aquilo que é exibido e o que é
inferido por projeção. O marco da percepção e o tema iconográfico simbolica-
mente interpretado não estão mais tão estritamente associados, a ponto de um
não ser percebido sem o outro. Como nessa misteriosa nuvem que Mantegna pin-
tou em forma de cavaleiro em seu São Sebastião de Viena (Figura 9), torna-se
visível alguma coisa da ordem da convenção inconsciente que tacitamente rege a
percepção visual do espaço (Damisch, 1972; Gamboni, 2011: 147-156). Mostra-se aí
o processo da projeção. Excepcionalmente dissociado do quadro perceptivo, que
comumente oculta a existência desta, ele deixa traços sobre a imagem. O encas-
tramento entre percepção e projeção, que normalmente permanece no estado de
“sentimento inconsciente do espaço” (Hildebrand), revela suas limitações, permi-
tindo se entrever seu caráter fictício.
Tal maneira de pôr em evidência o espaço liminar aparece bastante cedo na
Figura 10: Andrea Del Sarto, Virgem com harpias, 1517, óleo sobre painel (178 x 207 cm).
Galerie des Offices, Florence © Galleria degli Uffizi/The Bridgeman Art Library. Renascença, por volta de 1530. Shearman mostrou que, nessa época, Andrea del
Sarto, em Virgem com harpias (Vierge aux harpies) (Figura 10), insere na sua com-
Quando a operação da projeção se volta para a moldura da representação, a posição estranhas “nuvens de incenso”, que só podem vir do altar originalmente
imagem inclui no espaço fictício que ela mostra certos elementos do espaço real situado sob o quadro. Logo comentado e louvado por Vasari (que fala com admi-
onde se situa. Representa então, por assim dizer, nela mesma, as condições de sua ração de uma “fumaça de nuvens transparentes sobre a arquitetura” surgindo por
própria percepção. Tal mise en abyme faz emergir aquilo que se poderia chamar trás do grupo de figuras [citadas por Shearman, 1992: 60]), essa invenção con-
de aspectos pragmáticos do ato do olhar.2 Esse tipo de composição (que inclui na fere sem dúvida “uma estranha propriedade atmosférica” (Shearman, 1992: 59) à
cena apresentada suas condições de percepção visual) marca uma relação nova composição. Mas designa também, indiretamente, um espaço liminar que marca
entre o exercício da percepção visual e o da projeção. Vimos que, no âmbito da a fronteira entre aquilo que a composição exibe e o espaço no qual essa mesma
perspectiva, eles se articulavam por encastramentos. Ora, essa relação implica composição se situa. Destarte, a presença da fumaça revela, por excesso, o estatuto
que o aspecto convencional da visão, quadro da atividade de interpretação, não ficcional da pintura e o grau cuidadosamente calculado da ilusão que ela gera.
seja representado como tal. Quando o espectador traduz indicações dispostas Veronese inventará, deste mesmo jogo, uma versão, ao mesmo tempo profana,
sobre uma superfície plana, por projeção, em termos de profundidade e de movi- elegante e vertiginosa, nos afrescos que pintou na villa Maser (Figura 5). Juan de
mento implícito, as coordenadas formais do quadro que orientam a percepção Flandes dará, por sua vez, uma versão dramática e espetacular. Morando até o
desaparecem da consciência. O “sentimento da forma”, na convenção visual que final de sua vida na Espanha, pintará uma série de composições, datadas de por
volta dos anos 1505-1506, onde um São Miguel armado, inteiramente coberto por
2 O nível de análise que Karl Bülher chamou, em sua teoria da linguagem (1990 [1934]), de EU, AQUI,
AGORA do enunciado se tornaria assim pertinente para a representação visual, o que permitiria reno-
uma couraça metálica negra, esmaga sob seus pés um animal monstruoso (Figura
var a interpretação da “agência” (no sentido Gell [1998]) atribuída à imagem. 11). Sobre a superfície preta da armadura, a qual reflete a luz, Juan pinta verdadei-

38 39
o espaço quimérico carlos severi

ras visões do Apocalipse, onde parecem surgir campos de batalha devastados e iv


cidades incendiadas, como em um espelho escuro e semiopaco refletindo o espaço
Interpretação do significado simbólico, projeção do quadro, explicitação e explo-
onde o observador se encontra. Como na Degola de São João Batista (Décolla-
ração dos atos do olhar onde percepção e projeção se articulam. Operações esté-
tion de saint Jean-Baptiste) exposta no Museu de Arte e de História de Genebra, o
simbolismo está presente, mas as condições de sua interpretação mudaram. Não ticas desse tipo não são próprias nem da Renascença nem do maneirismo nem do
se trata mais de decifrar um sentido oculto, mas de estabelecer uma nova relação período barroco. Poder-se-ia até mesmo pensar que um grande mestre do século
XX, como Barnett Newman, na esplêndida série dos Onements pintada em Nova
entre o espaço da ficção e o lugar do observador. A invenção da armadura-espelho
de São Miguel faz do observador (até então simples “leitor” do sentido simbólico) York nos anos 1950 (vide Figura 1), explora, pelos meios da pintura abstrata, pre-
um protagonista da cena representada: a cidade incendiada e suas cenas de vio- cisamente, o traço dessa dupla presença do observador. Por meio de uma calibra-
lência encontram-se, graças ao segundo plano da representação que a imagem gem exata das dimensões da tela e da intensidade da luz, o observador se situa na
espelhada situa no exterior do quadro, atrás de suas costas. frente e, simultaneamente, dentro do espaço infinito e anicônico que a imagem
apresenta. De Juan de Flandes a Andrea Del Sarto, de Bramantino a Mantegna, de
Dürer a Barnett Newman, fica claro que os deslocamentos entre tema iconográfico
e enquadramento, entre percepção e projeção, não são nem episódicos nem raros
na nossa tradição.
Uma imagem pode esconder outra (Une image peut en cacher une autre), expo-
sição dedicada à ambiguidade visual, realizada no Grand Palais em 2008, permite
dar um passo além. Jean-Hubert Martin e Dario Gamboni demonstraram que
os jogos reflexivos mobilizam, cada um a seu modo, tanto o simbolismo como
o quadro da representação, não sendo próprios a uma época ou a uma cultura
específica. A relação entre o quadro perceptivo e seu conteúdo, que rapidamente
pusemos em evidência, no que diz respeito à convenção visual da perspectiva (e
que, na nossa tradição, vai constituir um dos eixos da modernidade, de Piranesi
a Goya, de Manet a Newman, a Jasper Johns ou a Markus Raetz), pertence, sem
dúvida, aos termos constitutivos de toda representação pela imagem. Toda tra-
dição iconográfica possui sua própria transitividade, se ela for definida como a
forma implícita da ilusão (ou do apelo ao olhar) que ela implica.3 É, então, do
ponto de vista das formas da relação entre projeção e percepção que poderemos
agora voltar ao conceito de quimera, no intuito de precisar segundo quais moda-
lidades esta relação entre reflexividade do quadro e espaço liminar, por um lado,
e entre percepção e projeção, por outro, pode se estabelecer no caso da represen-
tação quimérica.

3 As análises que Gell (1996, 1998) dedicou às técnicas que em certas artes não ocidentais tendem a
capturar o olho numa representação labiríntica devem ser indubitavelmente interpretadas como caso
de transitividade. Outro exemplo é o da arte funerária chinesa e, notadamente, de certa quantidade
Figura 11: Juan de Flandes, Tríptico de São Miguel, detalhe, em torno de 1506. de monumentos funerários (datados de entre 618 e 713, dinastia T’ang), onde, como demonstrou
Museu diocesano, Salamanca © Album/Oronoz/akg-images. recentemente Jonathan Hay (2010), a representação da tumba é disposta do ponto de vista do espírito
do morto.

40 41
o espaço quimérico carlos severi

Mas detenhamo-nos ainda sobre um ponto concernente à distinção entre efeito dessa invenção é o de tornar perceptível (e, portanto, pertinente) um espaço
ambiguidade visual e representação quimérica. A imagem dupla ou potencial e, vazio. Se, por um ato do olhar consciente, concentrarmos nossa atenção no con-
de maneira mais geral, o universo de deslocamentos visuais que pode se estabe- torno dos cabelos, dispostos em volta da testa e até o queixo do guerreiro, não é a
lecer entre percepção e projeção foram utilizados, na tradição primitivista, como imagem do celebrante que aparece no espaço que devém subitamente sensível em
uma chave para interpretar tudo aquilo que, nas artes não ocidentais, mobiliza a torno do objeto, mas sim um conjunto de indícios (realizados com uma destreza
ambiguidade visual. Foi possível, nessa perspectiva, comparar um nu de Degas, extraordinária) de sua presença imputada. Quando, no seio do olhar, o elmo e o
que se revela, simultaneamente, interpretável como uma paisagem (Figura 24), a guerreiro aparecem juntos, não é uma imagem dupla que surge, de forma alguma.
uma cimeira A-tshol da tradição baga, onde vários seres são representados simul- Se recorrermos à linguagem analítica de Peirce (1978), constataremos que, para
taneamente (Figura 14). Podemos ver, de fato, se lermos a imagem da esquerda designar um ser plural, a invenção do escultor evoca, por um lado, um ícone, e,
para a direita, a cabeça de um homem, e, da direita para a esquerda, a forma de um por outro, um índice, sob a forma de fragmento visual.
pássaro. Passaríamos, em seguida, a uma pintura de Arcimboldo, e, daí, a Dalí ou Temos aqui, no que tange aos exemplos de representação dupla ou composta
a Johns. Em todos esses casos, veríamos na obra o mesmo espírito de “dupla signi- que pudemos evocar, duas transformações radicais. Por um lado, a reduplicação da
ficação” ou decifração de uma imagem implícita. Trata-se de um erro que deriva imagem nunca é encontrada no universo das representações quiméricas, do qual
de uma redução drástica, não das “significações” evidentemente diferentes de suas Elmo de Filipe V da Macedônia é um modelo memorável. Até mesmo nas situações
imagens, mas, precisamente, da estratégia de invenção visual que se faz, a cada de elaboração formais mais acabadas, a representação plural é sempre composta
momento, presente na obra. Como veremos, uma imagem dupla, ou composta, por uma imagem dada a ver e por um pensamento suscitado. Por outro lado, o
não é necessariamente quimérica. surgimento da cabeça invisível do jovem guerreiro, ainda que implícito, não apa-
rece como um deslocamento marginal em relação a um modelo de organização
v do espaço que, assim como a perspectiva, possui uma existência independente. A
pluralidade é, nesse caso, como em todos os exemplos de representação quimérica
Consideremos mais um exemplo. O museu Getty possui um elmo muito singular, que estudamos, o princípio mesmo da organização do espaço que orienta, em um
conhecido tradicionalmente como o Elmo de Filipe V da Macedônia, datado de mesmo movimento, tanto o exercício da percepção como o da projeção. Não se
entre 350 e 300 antes de Cristo (Figura 13). Trata-se, à primeira vista, de uma ima- trata, nesse caso, de um espaço fictício, regido por regras abstratas (por exem-
gem múltipla: sobre o topo do elmo surge de fato a representação de um animal plo, como visto aqui, geométricas), onde uma transgressão apareceria no nível
mítico, uma espécie de grifo com bico de pássaro. Esse detalhe levou especialis- do simbolismo ou da transitividade da imagem. O elo entre o visível e o invisível
tas a interpretarem-no como um objeto ritual, provavelmente associado ao culto coincide aqui com a definição mesma do espaço: sem essa pluralidade do olhar,
que o rei Filipe dedicava ao herói Perseu. Mas o artefato nos interessa também que é imediatamente oferecida, não surgiria nenhum espaço liminar entre aquilo
por outra razão. Nele, aparece uma invenção que nos permitirá precisar nossa que é exibido e inferido. O caminho da imagem quimérica é, portanto, diferente
linguagem e nossas ferramentas de análise, tanto no que diz respeito à morfolo- do caminho da imagem dupla.
gia da representação quimérica como para esclarecer a lógica icônica operante. Voltemos à já citada cimeira baga (Figura 14). Se é verdade que há, nessa repre-
Ao redor do rosto, nessa zona do elmo que Riegl (2009) e Shearman (1992) nos sentação, uma elaboração pela imagem de uma fronteira entre o que é mostrado e o
ensinaram a chamar de liminar (compreendendo a testa e as sobrancelhas como que é oferecido à projeção (cabeça humana ou pássaro), não se percebe aí nenhum
o limite extremo), o autor desse admirável artefato gravou, muito levemente, com desdobramento. Como no elmo (cujo princípio ela multiplica, já que podemos
uma destreza técnica extraordinária, os contornos das sobrancelhas e os rastros interpretá-la segundo diferentes direções, da direita para a esquerda e vice-versa),
de uma cabeleira. Esses cabelos, dispostos habilmente sobre a testa e ao redor das e como na quimera hopi (Figura 12), que analisamos alhures (Severi, 2007), essa
orelhas, onde se juntam aos pelos da barba, marcam a fronteira entre o artefato e cimeira não é dupla. Os contornos que marcam aqui a fronteira entre percepção
a pessoa cuja presença é imputada. Imediatamente compreendemos que, de fato, e projeção (os temas visuais “pássaro”, “nuvem”, “relâmpago” etc.) não funcionam
pertencem ao jovem guerreiro que, supostamente, deve portar o elmo. O primeiro como ícones ecoando outras imagens, mas como índices de uma presença a ser

42 43
o espaço quimérico carlos severi

decifrada. Não temos aqui, portanto, como na paisagem-mulher de Degas (Figura partida, uma definição que compreenda, nas operações de pensamento suscitadas
24), interferência ou eco entre duas representações icônicas no interior de uma pela imagem, tanto os aspectos puramente ópticos como o conjunto de processos
mesma definição do quadro visual. Onde procurávamos uma reduplicação, encon- de dedução deflagrados pela representação (assim como o conjunto de fenômenos
tramos uma articulação inédita entre a imagem de uma totalidade e a de um frag- de projeção que ela suscita). Digamos, portanto, que é quimérica toda imagem
mento, funcionando não como uma revelação do que é simplesmente implícito, que, ao designar um ser plural por meio de uma só representação, mobiliza suas
mas como a prefiguração possível de uma presença inteiramente diferente e, na partes invisíveis, por meios puramente ópticos ou por um conjunto de inferências.
maioria das vezes, antagonista. Não desvendamos aqui, nem de forma potencial,
nem materialmente realizada, a presença de dois ícones remetendo, por ambigui-
dade ou duplo sentido, um ao outro. O que caracteriza essa representação, e a torna
plenamente quimérica, é a sua remissão, mediante uma indicação icônica fragmen-
tária, a uma presença representada por índices, que só se torna imagem quando o
olhar, ao mobilizar “capacidades interpretativas, categorias, modelos e hábitos de
dedução e de analogia”, que formam “aquilo que se pode chamar de estilo cogni-
tivo” de um dado observador (Baxandall, 1985: 48), funciona por projeção.

Figura 12: Pássaro-serpente hopi, cerâmica policromada. Estilo D. Figura 13: Anônimo, Elmo de Filipe V da Macedônia, século IV a.C., bronze (28 x 20 x 66 cm)
© The J. Paul Getty Museum, Villa Collection, Malibu, California.
A leitura do Elmo de Filipe, assim como a da cimeira baga, nos permite for-
mular duas primeiras indicações sobre o grau de complexidade que caracteriza a A partir dessa primeira definição, será possível responder a três interrogações
representação quimérica. A primeira concerne à passagem da ambiguidade visual que surgiram a propósito da noção de quimera: uma questão morfológica (como
do estatuto de deslocamento entre projeção e percepção (no marco de um espaço definir um tipo geral de representação quimérica? Trata-se de uma representação
formulado por meios ópticos independentes) ao estatuto de princípio organizador típica das artes não ocidentais?), uma questão lógica (qual o exercício do pensa-
do espaço. A segunda diz respeito ao estabelecimento de uma articulação lógica mento que caracteriza esse tipo de representação?) e uma questão estética (o que é
entre uma representação icônica e uma marca indiciária de presença. Poder-se-ia próprio da apreensão de uma representação quimérica?). Do ponto de vista mor-
concluir que, se quisermos compreender as representações quiméricas, não será fológico, é próprio desse tipo de representação um princípio de organização do
suficiente assimilá-las prematuramente a um fenômeno de ambiguidade visual. espaço que, ao deflagrar diversos tipos de projeção, faz do deslocamento entre uma
Será necessário, pelo contrário, apreciar com exatidão as condições de possibili- forma exibida e uma forma imputada o meio para engendrar uma ilusão especí-
dade que caracterizam sua própria complexidade. Assumiremos, como ponto de fica (no sentido que Gombrich [1969] e Florenski [1992] atribuíram a esse termo).

44 45
o espaço quimérico carlos severi

Nessa perspectiva, em vez de uma tipologia das iconografias (que diferenciaria versa. Longe de inscrever-se em um marco visual fixo, a quimera reflete um jogo
imagens “realistas“, “abstratas“ ou “simbólicas”), será preferível uma tipologia dos constante de pressuposição recíproca entre percepção e projeção, já que, no âmago
espaços, definidos como o conjunto de formas possíveis da relação, estabelecida desse tipo de espaço, a projeção e a percepção apenas se exercem quando estabele-
pela visão pura ou pela inferência, entre forma e fundo. Concluiremos, assim, que cem uma complementaridade provisória – a forma e o fundo, o fragmento e a tota-
uma representação fragmentária, mas não plural – como o quadro n° 1, Losango lidade, o focalizado e o periférico –, intercambiando incessantemente os seus papéis.
com quatro linhas e cinza (Lozange avec quatre lignes et gris), de Mondrian4 –, ou
plural, mas não fragmentária, não são, nem uma nem outra, representações qui-
méricas no sentido que nos propomos dar ao termo.
Do ponto de vista lógico, reservaremos o termo “quimérico” à articulação
específica entre representação icônica (por imitação e convenção) e indicação
indiciária (visual, tátil ou outra) de uma presença cujo modo de existência, sobre-
tudo mental, não se realiza materialmente. Trata-se de uma imagem imputada
pelo pensamento, da qual a realização nunca é considerada mais do que um índice
(exatamente como na argola siberiana de Pitt Rivers). Tal índice pode aparecer na
forma de um fragmento indicando a região liminar da imagem, como no caso do
Elmo de Filipe V, ou segundo a ordem de uma série de fragmentos, como no caso
da cimeira baga ou da quimera hopi.
Do ponto de vista estético, enfim, o que caracteriza o espaço quimérico não
é nem uma relação estável de encastramento entre percepção e projeção, como na
representação simbólica no quadro da perspectiva, nem um deslocamento episó-
dico, onde o quadro da percepção se torna objeto mesmo da projeção. Trata-se,
acima de tudo, de uma relação instável, de forma alguma casual, de complemen-
taridade alternada entre o tema iconográfico e seu espaço liminar. No seio desse
espaço, um fragmento visual pode de fato tornar-se inteligível graças ao fundo no Fgura 14: Cimeira baga antropo-zoomorfa, Guiné.
qual ele surge. O inverso, contudo, é sempre possível. No âmbito dessa convenção © Musée du Quai Branly/Foto Thierry Ollivier, Michel Urtado.
visual específica, o fundo poderá alternar seu papel com a forma: é exatamente o
que acontece, em duas etapas, na argola siberiana dupla que nos serviu de ponto Por mais que a decifração de significados esteja sempre presente (como se
de partida. É assim que, no âmbito de um ato do olhar que visa à designação de um verá nos exemplos da Amazônia que vamos estudar), esse jogo de complementa-
ser múltiplo, uma imagem, cujo sentido é adquirido por projeção, funciona como riedade possível entre tema e enquadramento não abrange, em primeiro lugar, o
um princípio (latente ou realizado) de construção (ou de quadro organizador) da nível do simbolismo. Se o fragmento que se oferece à interpretação projetiva tem
percepção do outro. um sentido (designando, por exemplo, dentro de um sistema como o da Costa
No seio de uma representação quimérica há, no enquadramento, uma refle- Noroeste, uma barbatana, uma cabeça, um bico de pássaro, uma cauda, ou, no da
xividade que existe paralelamente a um registro de interpretação simbólica. O Amazônia, uma onça, um abutre, ou uma anaconda), o que torna possível o jogo
que é dado como marco de percepção (ainda que sob a forma elementar de um de remissões é seu caráter fragmentário e, portanto, sua relação com o marco que
fundo) pode sempre tornar-se princípio de interpretação projetiva (portanto, forma engendra uma forma específica de reflexividade; esse sentido está muito longe
enquanto testemunho das operações do olhar, no sentido de Hildebrand), e vice- daquilo que identificamos no caso mais familiar da perspectiva. É esse jogo inces-
sante entre fragmento e quadro reflexivo que, como veremos nos casos amazôni-
4 Imagem disponível em: <http://www.flickr.com/photos/99154192@N02/9327531672/>. Acesso em out. 2013. cos, torna o espaço quimérico iterativo, recursivo e potencialmente infinito.

46 47
o espaço quimérico carlos severi

Retomemos, para concluir essas primeiras reflexões sobre a representação desses caçadores e agricultores amazonenses. Trata-se de um longo ciclo de histó-
quimérica, a máscara haida, cujo estudo nos permitiu, com outros exemplos, rias que relatam os episódios sangrentos de um conflito percebido pelos indígenas
formular um conceito. A interpretação projetiva de certos traços de imagem (“é como dominando todo o universo. O conflito opõe Wanadi, personagem positivo
um rosto!”) fornece, em um primeiro momento, o marco visual para designar a associado ao sol e que preside a cultura dos humanos (técnicas de agricultura, de
presença de um ser humano, ainda que um detalhe, como o nariz, seja de difícil pesca, de caça, de fabricação de artefatos etc.), a seu irmão gêmeo Odosha, encar-
interpretação. Todavia, é sempre possível inverter o jogo: quando, ao se interpretar nação do mal, dos infortúnios, das doenças e da morte. Esse conflito cósmico não
o nariz do rosto como um bico, diz-se “é um corvo!”, o resto do rosto humano se representa, para os Yekuana, um simples esquema explicativo da origem do uni-
curvará a representar, como numa espécie de anamorfose espontânea, a cabeça de verso. Remontando à origem dos tempos, a luta entre esses dois irmãos inimigos
um pássaro ao redor desse bico. Mais uma vez, o enquadramento tornará possível nunca termina: ela marca a vida quotidiana dos homens e carrega consigo, amiúde,
a interpretação projetiva e vice-versa. Aquilo que, no sistema ocidental, não apa- consequências trágicas. Essa ruptura de equilíbrio corresponde a uma dissimetria
renta ser mais do que um deslocamento episódico ou excepcional torna-se aqui original entre o bem e o mal, e entre a existência dos humanos e de seus inimigos
um princípio de organização do espaço, que poderíamos chamar de ilusão sem potenciais, animais ou vegetais. Para os Yekuana, o mal sempre prevalece sobre
perspectiva, não mais fundado na percepção de uma profundidade, mas, acima o bem. É por isso que Wanadi, seu aliado, habita uma região afastada do céu e
de tudo, na apreensão dos limites (e das relações possíveis) de uma dada imagem. mantém poucas relações com o mundo de baixo. Seu gêmeo Odosha, cercado de
Tal princípio pode se desenvolver, seja em termos de visão, na oposição dual à seus demônios (comumente representados como “mestres” invisíveis dos animais
série, seja nas relações possíveis entre imagem, som, palavra e representações do e plantas), é uma figura sempre presente, próxima e ameaçadora. O que explica
movimento. Vale precisar: nenhum dos traços por nós identificados é suficiente também que Odosha possa ser representado mediante uma extensa série de
para definir um tipo iconográfico canônico da representação “quimérica”. O tra- seres maléficos – macacos, serpentes, onças ou canibais estrangeiros –, enquanto
balho que nos permitiu sua identificação leva a uma operação diferente: trata-se Wanadi, refugiado em seu céu, é o único a defender os indígenas. De fato, cada
de esclarecer, para além da quimera como representação, por um lado, as coor- ato ligado à pesca, à caça ou à agricultura se realiza, de acordo com os Yekuana,
denadas do espaço quimérico e, por outro, uma lógica das relações expressas pela contra a vontade de uma multidão de “mestres invisíveis” que possuem os animais
imagem. Uma quimera não representa seres, mas relações, possíveis ou pensadas e as plantas. Esse universo povoado de inimigos potenciais, sempre ameaçadores,
como tais, entre seres. A ideia de representação quimérica não se inscreve em uma é o de Odosha e seus demônios. Cada ato necessário à vida dos humanos suscita,
tipologia das iconografias, mas em uma lógica das relações icônicas, que se desdo- então, uma vingança esperada, mesmo que constantemente conjurada por cantos
bra tanto nas imagens como nos atos do olhar que elas implicam. específicos. A esse princípio de dissimetria entre o bem e o mal associa-se a ideia
de um processo de transformação constante de um no outro: toda aquisição cul-
vi tural (quer se trate de armas, de cestos, de ornamentos ou de pinturas corporais) é,
para os Yekuana, o resultado de uma transformação do mal ou dos seres que dele
Vejamos agora um exemplo dessa lógica das relações entre os seres, que a ima- dependem. Provém daí a ideia de uma constante ambiguidade que atinge todos os
gem quimérica permite formular em termos icônicos. Consideremos duas tradi- seres do universo: tudo aquilo que é útil e benéfico (incluindo a cestaria decorada
ções iconográficas ameríndias, nas quais a representação quimérica constitui sem pelos homens como preparação para seu casamento) inclui uma “parte transfor-
dúvida a convenção visual dominante: os Yekuana e os Wayana. Trata-se de popu- mada” de um ser maléfico.
lações de caçadores e agricultores tropicais, falantes de diferentes línguas da famí- Guss (1989) demonstrou que a memória visual da mitologia depende de uma
lia caribe, e que vivem hoje em dia na região do Alto Orinoco, entre o Brasil e a iconografia específica, que restitui uma espécie de “catálogo” desses seres e seus
Venezuela. O caso das cestarias yekuana, em que toda sorte de criatura mitológica nomes. De fato, em lugar de tentar representar este ou aquele episódio em um
é representada, nos permitirá introduzir os primeiros elementos de nossa análise. espaço mais ou menos “realista”, a cestaria yekuana reflete um nível mais profundo
Os trabalhos de um certo número de etnólogos (Civrieux, 1970; Wilbert, 1981) de organização do saber mitológico: cada ser encontra-se associado, por meios
nos permitiram adquirir um conhecimento relativamente detalhado da mitologia puramente gráficos, à sua parte invisível. Como vimos, os dois importantes moti-

48 49
o espaço quimérico carlos severi

vos dessa mitologia são a oposição constitutiva entre dois grandes grupos de perso- então, nessa série iconográfica aparentemente simples, uma organização do espaço
nagens e a ideia de um processo de transformação contínua que a todos afeta. Essas propriamente quimérica que se complexifica a partir de uma forma elementar, oni-
metamorfoses têm duas modalidades. Por um lado, pode-se ter a noção de uma presente e em transformação. No seio desse espaço, todo ser (inclusive o próprio
criatura múltipla que (como Odosha) “assume a forma” de toda uma série de outros Wanadi) resulta da forma de Odosha. Acréscimos, variantes, relações de inclusão,
seres. Caminha-se, conforme esse ponto de vista, do indivíduo à série. Por outro de repetição e de inversão se estabelecem entre tais formas e manifestam, assim,
lado, esse processo de metamorfose incessante (onde a ideia do bem é resultado de uma unidade profunda. O universo quimérico da mitologia é traduzido em termos
um processo de domesticação do mal) pode conduzir a dotar uma mesma criatura visuais por meio dessa técnica que interage ao mesmo tempo com o simbolismo e
de uma ambiguidade constitutiva que configura simultaneamente uma instância com um tipo específico de reflexividade do marco (cadre).
positiva e negativa. Passa-se, assim, de uma série de seres à representação de um
único ser complexo. A iconografia yekuana permite traduzir em termos visuais, de vii
forma sucinta e precisa, esses dois princípios de organização do mundo mítico. Os
termos visuais que traduzem os nomes dos espíritos derivam todos de um mesmo Esse tipo de iconografia, na qual a representação dos seres é indissociável da repre-
tema gráfico, uma espécie de “T” invertido que representa Odosha. Toda a série de sentação de suas relações, não é algo excepcional ou isolado, se considerada toda a
outros personagens da mitologia é engendrada a partir desse primeiro tema grá- região amazônica. Uma breve análise da cestaria wayana, vizinhos dos Yekuana na
fico, mediante transformações geométricas simples. Tais grafismos traduzem, ao região do Alto Orinoco, permite demonstrar que essa lógica imagética, fundada
mesmo tempo, a multiplicidade de animais (macaco, serpente e sapo) e sua uni- na noção de variação a partir de um conjunto de modelos gráficos relativamente
dade, como formas derivadas de um mesmo ser original. Os diferentes persona- elementares, pode ser adotada para atingir grande complexidade. Encontra-se
gens são assim construídos a partir de uma única forma básica, em um sistema que entre os Wayana uma concepção da representação iconográfica (e mesmo certos
permite representar não apenas seres bem identificados, mas também suas pos- temas gráficos, como o que é associado à onça [Velthem, 2003: 352-356]) muito
síveis relações. Essas relações entre figuras (analogia, inclusão ou transformação) próxima à dos Yekuana. Para eles, assim como para seus vizinhos, uma represen-
indicam uma organização interna própria de um sistema de representações que se tação iconográfica se organiza sempre em torno de motivos geométricos simples
baseia em um critério único: trata-se sempre de representar, pela via quimérica, como o triângulo, o quadrado, a espiral e as linhas cruzadas ou paralelas. Para eles,
a pluralidade potencial de cada criatura mitológica. Mas o debate não se encerra também, o universo desse tipo de representação concerne apenas ao relato mitoló-
aqui. A técnica visual descrita implica também em um jogo de forma e fundo que gico, a seu comentário e a sua memória – ainda que esse exercício de memorização
permite representar (por meio de uma interpretação reflexiva do marco que engen- das histórias tradicionais pareça menos formalizado entre os Wayana, para quem,
dra, como em toda representação quimérica, um jogo de complementaridade entre segundo Lucia Hussak van Velthem, encontramos, acima de tudo, um esquema
projeção e percepção) ao mesmo tempo um ser específico e uma de suas possíveis narrativo geral, referente à predação, que oferece, no entanto, inúmeras ocasiões
metamorfoses. Essa possibilidade de uma representação em forma de ser poten- para comentar em termos míticos experiências ligadas à vida quotidiana. Mas a
cialmente duplo diz respeito a vários personagens da mitologia: os macacos, os etnografia wayana se distingue daquela das populações vizinhas pela complexi-
morcegos ou os sapos. O exemplo mais marcante é, sem dúvida, o do tema gráfico dade do discurso relativo à representação visual. Um tema geométrico não é ape-
chamado de woroto sakedi (“máscara do onça”, Figura 15), que representa alternada- nas, para os Wayana, a marca ou o emblema gráfico de um ser mitológico. Ele é o
mente, dependendo do foco de atenção, a forma ou o fundo da imagem, Odosha ou reflexo de um conhecimento específico, denominado wayaman, que se encontra
Awidi, quer seja, uma de suas transformações em forma de serpente. Reconhece-se metaforicamente situado na pupila daquele ou daquela que conhece a técnica da
aqui a relação instável, de complementariedade alternada, entre o tema iconográ- cestaria. O wayaman é a “figura invertida” de um espírito, em forma humana, que
fico e seu espaço liminar e entre percepção e operações de projeção, que caracte- se apresenta na pupila daquele ou daquela que fabrica o objeto e que se constitui
riza o espaço quimérico. De fato, como sublinhou Guss, o verdadeiro sujeito dos como o verdadeiro “autor” do objeto. Esse tipo de conhecimento (ou melhor, essa
grafismos yekuana não é esse ou aquele personagem, mas “a relação dinâmica em perspectiva, esse tipo de olhar que revela a “verdadeira natureza” da cestaria) diz
forma de transformação latente” de um no outro (1989: 106, 121-124). Encontramos, respeito, acima de tudo, à forma dos objetos. Concebida como um “pensamento”,

50 51
o espaço quimérico carlos severi

mas também como o reflexo desse “outro” habitante dos olhos de quem constrói dos homens. A casa é um lugar “habitado pelos peixes tukuxi”, representados com
um artefato e que, por assim dizer, “guia sua mão”, tal forma não se revela ple- outros seres no pilar central da cobertura da grande casa cerimonial. Os peixes
namente, senão quando o objeto é confeccionado seguindo as regras da técnica são também representados como “colibris de bico comprido”. Quando os homens
tradicional, permitindo ao artefato revelar sua verdadeira natureza e mostrar-se mascarados “agem como peixes”, eles se tornam, ao mesmo tempo, “colibris de
“semelhante a um ser vivo”. De fato, segundo a tradição wayana, os artefatos, os bico comprido”.
humanos e os não humanos podem (e às vezes devem) partilhar a mesma deco-
ração. É assim que eles “assumem a mesma pele”. Essa noção é muito importante,
uma vez que, para os Wayana, “a pele, ou melhor, a pele pintada conforme um
esquema reconhecível representa um elemento que permite identificar a natureza
de um ser, o meio pelo qual é possível definir sua especificidade própria” (Vel-
them, 2003: 129). Na medida em que os artefatos e, notadamente, os artefatos de
uso ritual usam a mesma pele que os seres predadores ancestrais – cujos modelos
são a anaconda, o urubu e a onça –, eles são sempre pensados como “réplica” ou
“imitação”. Por conta dessa “identidade do desenho”, os artefatos podem “dançar”,
“falar” ou mesmo “atacar”, como fazem os predadores. De fato, os Wayana não se
limitam a afirmar, como os Yekuana, que a cestaria é “objeto-corpo”. Posto que seu
criador fabricou a primeira mulher humana utilizando precisamente a técnica do
trançado, segundo acreditam, um único processo “engendra”, inclusive em ter- Figura 15: O tema “máscara da onça” (woroto saketi), cestaria yekuana.
mos sexuais, os artefatos e os humanos. Diz-se não apenas que a cestaria, como
outros seres vivos, é dotada de palavra, de movimento (ibid.: 197) ou de sexo (ibid.:
135), mas também que os humanos e os animais, precisamente porque eles podem
portar os mesmos grafismos sobre a pele, são compostos da mesma matéria dos
artefatos. A ideia de “pele pintada – explica Lucia Hussak van Velthem – é indisso-
ciável das ideias de cópia e de reprodução, uma vez que é por meio desse elemento
que, conforme os Wayana, todo ser é engendrado. A produção de todo indivíduo
supõe a produção de uma nova pele, um ato técnico que se funda na observação
de um modelo preexistente” (ibid.: 240). Desse ponto de vista, a pele de um recém-
nascido está “simbolicamente associada a um tecido de plumas”. A de um adulto é
sempre pensada como um entrelaçado de desenhos, como uma cestaria decorada. Figura 16: O tema complexo “caranguejo/olho de anta”, cestaria wayana.
Em poucas palavras, no universo wayana, a identificação entre humanos e arte-
fatos não se funda em uma semelhança direta, mas sim na ideia de que todo ser Essa ideia de transformação potencial e incessante de todos os seres está
vivo é definido por uma decoração ou um desenho específico, representando ao muito disseminada no universo amazônico. Entre os Yekuana, ela se exprimia
mesmo tempo a pele, seu emblema e seu nome visual. por meio da oposição de dois irmãos inimigos, Wanadi e Odosha. Os Wayana
Contudo, nos enganaríamos ao pensar que a aparência dos seres do mundo partilham dessa ideia de uma dualidade original dos seres. Para eles, também,
está fixada, para os Wayana, conforme modelos preestabelecidos. No mundo dos os seres do mundo se dividem em predadores e não predadores. Essa foi, aliás,
Wayana tudo que existe está em processo de transformação constante. Todo ser uma das primeiras tarefas realizadas por seu criador mítico, o qual, segundo eles,
pode assumir, a cada instante, a “pele” de outro e até, por vezes, a de vários ouros literalmente construiu o universo distinguindo os predadores dos outros, tanto
seres simultaneamente. Velthem lembra o caso das danças que acontecem na casa os animais como os vegetais e os humanos. Não se trata aqui, de forma alguma,

52 53
o espaço quimérico carlos severi

assim como entre os Yekuana, de seres individuais dotados de uma personalidade que caracteriza o caso wayana é aquela que vai da representação de diferentes indi-
distinta. Enquanto os Yekuana inventam personagens paradigmáticas, os Wayana víduos (personagens, como já dissemos) à representação de membros de classes,
raciocinam por classes. Em lugar de opor Wanadi a Odosha, eles distinguem dife- e até mesmo, como no caso da dança ritual, à representação daquilo que podería-
rentes modos de existência que podem caracterizar qualquer indivíduo de qual- mos chamar de séries de séries de seres quiméricos.5
quer natureza – animal, vegetal, humana ou artefato. Profundamente enraizada Como pode essa lógica complexa, e a ontologia que ela implica, ser traduzida
no pensamento tradicional, essa categorização é também lexicalizada na língua. em termos visuais? Devemos pensar que o caso wayana não tem mais nada em
Tomemos o exemplo da anaconda, como um dos modelos do predador. “Seus atos comum com aquele, mais simples, dos Yekuana, que parecia limitar-se à tradução
predatórios – prossegue Velthem – possuem um caráter tão paradigmático que visual de uma série restrita de nomes próprios? Ou devemos admitir que essas
não apenas remete sempre à dimensão sobrenatural, mas pode também se aplicar categorias de complexidade crescente, vistas em curso durante a ação ritual, per-
a toda outra espécie animal. [...] Essa concepção permite atribuir a outros seres, tencem somente à dimensão da exegese, sendo apenas discurso, sem relação com
como às larvas de borboleta, às centopeias, aos peixes e aos pássaros, instintos de a iconografia?
predação num marco sobrenatural, associado à anaconda” (ibid.: 105). Inversa- A representação de seres individuais na forma de motivos geométricos sim-
mente, nessa ocasião, a anaconda “portará o nome e a pele desses animais”. Van ples, como identificada entre os Yekuana, não está de forma alguma ausente na
Velthem assinala que: “A identificação desse par de seres é sinalizada pelos sufi- tradição wayana. Van Velthem menciona 47 temas gráficos para as cestarias e 29
xos okoin e koimë, que significam “enquanto anaconda” e se aplicam ao nome de para a cerâmica. Ainda assim, os Wayana não se contentam, como os Yekuana,
uma espécie específica.” (ibid.) Haverá, por exemplo, sob a denominação de kia- com simples listas de temas. Eles jogam com um princípio de classificação dos
po-koimë, o “tucano enquanto anaconda”, representado como uma serpente pro- temas gráficos reagrupados em três categorias distintas: aqueles que “pertencem”
vida de um bico longo e cuja pele é coberta de plumas de cores contrastantes. Da às pinturas corporais de anaconda, os que são associados à pele da onça e os que
mesma forma, emprestar-se-á a um pássaro formigueiro, considerado “enquanto se referem à pele de “monstros antropomorfos” (uma categoria que abrange os
anaconda”, a imagem de um réptil que canta como um pássaro. Um processo aná- inimigos, logo, os Brancos). Alguns motivos visuais, que guardam sua significa-
logo diz respeito à onça, cuja presença é assinalada por outro sufixo (kaikuxin), a ção específica, são, em seguida, associados à designação de grupos ou categorias
qual engendrará seres que, como o roedor quatipuru, podem ser considerados e de seres. Consideremos um primeiro caso. “Uma das formas paradigmáticas da
denominados “enquanto onça”. Temos aqui o exemplo daquilo que gostaríamos predação é o ato de ‘ferir, picar, perfurar’” (Velthem, 2003: 327). O ato que os sin-
de chamar de “quimeras verbais”, designando seres múltiplos e cambiantes, defi- tetiza, “flechar” ou “atingir atravessando a pele”, é característico de um artefato, a
nidos como membros de uma só classe, a partir de uma categorização construída flecha, e de vários animais, como cobras, vespas, escorpiões e certas aves, entre elas
por meio de um sufixo comum. O conceito de série, também presente na tradi- a cegonha maguari (Florida caerulea). “Essa ave, reconhecida como o protótipo
ção iconográfica dos Yekuana, aparece aqui sob uma forma muito mais complexa. dos seres que picam, é representada, no seio da iconografia wayana, pelo motivo
O exemplo mais claro dessa profusão de séries nos é oferecido pelas danças de ‘bico de maguari’ (Figura 17), cujo contorno gráfico indica uma posição de vigi-
iniciação masculina, analisadas por Van Velthem, em que as máscaras vestidas lância própria desse animal. [...] De fato, o grafismo representa a flecha enquanto
pelos neófitos designam um ser múltiplo, não apenas constituído por espíritos artefato, assim como qualquer animal, enquanto predador, que deve ‘atingir sua
diferentes (arara, falcão, peixe, sol, arco-íris), mas também por formas múltiplas presa ao modo de uma flecha’. A flecha redobrada poderá, portanto, designar de
desses espíritos “enquanto” encarnações de diferentes predadores: onças, urubus maneira indeterminada ‘tudo aquilo que pica”. Temos assim uma primeira forma
ou anacondas (ibid.: 212). Passa-se assim da quimera à série de seres quiméricos. de sair da representação de um ser individual para passar à representação da série.
Com essa dupla série de marcas corporais dos neófitos, o conceito de representa- Uma vez estabelecido, esse princípio se aplica a outros casos. “Um tema gráfico
ção quimérica alcança um nível de complexidade até agora desconhecido. O ritual
torna-se lugar de transformação, onde os jovens rapazes mascarados, progressiva- 5 Os seres considerados enquanto anacondas seriam aqueles capazes de estrangular e de devorar os
humanos. Aqueles que associamos às “larvas de borboleta”, considerados “enquanto onças”, com-
mente, “portarão a pele pintada” com uma série de espíritos animais, vegetais ou preenderiam, por sua vez, todos os seres capazes, de maneira quase imperceptível, de “morder do
humanos, sujeitos também a inúmeras metamorfoses. A transição lógica essencial interior” os humanos, por exemplo, por meio de doenças (Velthem, 2003: 320).

54 55
o espaço quimérico carlos severi

wayana”, prossegue Velthem, “pode ser múltiplo e referir-se, simultaneamente, a eles mesmos híbridos (anacondas-jacarés e peixes que “possuem características
vários seres” (ibid.: 313). A imagem se decompõe, então, em diversas partes, pos- próprias dos mamíferos e das aves”), mas cuja série representa, em seu conjunto,
suindo cada uma significados independentes. É desse modo que o tema gráfico do a “raia enquanto anaconda”. Estamos diante de uma espécie de uso recursivo do
“caranguejo” (Figura 16) contém aquele que designa o “olho de anta”. A interpre- mesmo princípio de categorização. O ser quimérico wayana não se contenta em
tação se efetua, nesse caso, seguindo o que Velthem chamou de “diálogo interno” associar vários fragmentos de seres diferentes em um só corpo: graças ao princí-
das formas no interior dos temas gráficos. Essa representação de um ser por meio pio de autonomia dos desenhos em relação às diferentes superfícies onde podem
de temas gráficos que designam suas possíveis transformações também pode se aparecer, pode associar temas gráficos diferentes em um só corpo, assim como
realizar através do desenho de um só animal “portando em sua pele” os temas temas diferentes em corpos diferentes, eles mesmos combinados em sequências
gráficos que representam outros seres. É esse o caso da onça-caramujo (Figura 18). que representam coletivamente, como na maruana, seres sobrenaturais concebi-
dos como séries de transformações (a raia enquanto anaconda).

Figura 18: O tema onça-caramujo, pintura wayana.

Figura 17: O tema da cegonha maguari, cestaria wayana.


Notemos também que, mesmo quando ocorre, sob formas diversas, a pas-
Essas representações de um único “ser complexo” ecoam em diversos docu- sagem da designação de seres específicos à representação de séries de estatuto
mentos coletados por Barcelos Neto (2002) entre os Wauja do Alto Xingu, entre lógico diferente, a iconografia wayana permanece ligada à representação de listas
os quais encontramos representações de anacondas sobrenaturais definidas de nomes próprios, ponto cuja importância foi sublinhada alhures (Severi, 2007).
por sequências de temas gráficos, que se referem a outros animais (ver página Não obstante, os nomes próprios não mais designam personagens individuais
190, figura 2). Mas o sistema wayana é ainda mais complexo. Estudamos, até o (mesmo “disfarçados” ou transformados, como podiam sê-lo entre os Yekuana,
momento, casos nos quais uma única representação iconográfica se refere a vários Odosha ou Wanadi), e sim séries organizadas de seres. Os nomes traduzidos em
seres do mundo. A iconografia wayana possui também o caso inverso, no qual termos visuais por temas gráficos funcionam entre os Wayana como “definições
séries de desenhos designarão coletivamente um único ser. Encontramos aí a verbais” que mobilizam vários nomes de espécies. No que tange à memorização de
noção de predador ancestral, um ser que, manifestando-se por meio de uma série nomes, assistimos ao estabelecimento de um duplo processo. Um único tema grá-
de metamorfoses, encontra-se representado como um ser coletivo ou serial. A fico representa o nome visual de uma série de seres reunidos em uma única classe,
ilustração mais eloquente desse processo nos é fornecida pelas pinturas que deco- mediante a utilização de critérios taxonômicos distintos. Ou uma série de temas
ram, como já assinalamos, a roda de teto (maruana) da casa cerimonial (Figura gráficos, dispostos em sequências ordenadas, ilustra a série de transformações que
19). Vemos aparecer uma série de temas gráficos que remetem a diversos seres, designam a “verdadeira natureza” de um único ser.

56 57
o espaço quimérico carlos severi

Resta um terceiro caso de figura, onde o ser ancestral não é representado


diretamente, mas encontra-se designado apenas pela relação, expressa em termos
exclusivamente visuais, que ele pode manter com outros seres. É o caso, por exem-
plo, do roedor quatipuru, que pode ser representado em sua relação com outros
animais, sem ser necessariamente figurado. Veremos outra maneira de traduzir
em termos visuais o conceito de “quimera verbal”, típica da estética da predação
wayana, em que vários tipos de “passagem à série” são utilizados. Sigamos a des-
crição dada por Velthem, pois ela nos permite uma aproximação com o conceito
wayana de iconismo. Guiada, certamente, por seus interlocutores, Velthem dis-
tingue, por um lado, o ukuktop, a “imagem perceptual” do animal tal como visto
na floresta próxima à aldeia, com sua morfologia, seu comportamento típico, o
alimento que prefere, e, por outro, o mirikut, tema gráfico que designa esse mesmo
animal na iconografia tradicional da cestaria (Figuras 21). “Embora todo mirikut
seja naturalmente uma imagem, segundo a distinção formulada explicitamente
pelos Wayana, nem toda imagem tem o estatuto de mirikut”, assinala Velthem Figura 20: O quatipuru e o tema quatipuru, cestaria wayana.

(2003: 317). Isso permite de fato interpretar a verdadeira natureza (ou “decifrar a
A interpretação indígena dessas imagens advém da interpretação de um tema
pele pintada”) do animal do qual se tem uma imagem cotidiana. Vejamos como
isolado por contraposição a um grupo de temas. Uma vez reconhecida a seme-
pode se realizar essa constante operação de exegese das aparências. Tomemos o
lhança dos temas (mirikut) com as “imagens perceptuais” (ukuktop) desses dois
exemplo do quatipuru e do maguari, um pequeno roedor e uma variedade de
animais, será afirmado primeiramente que o mirikut difere da imagem dos ani-
cegonha que fazem parte do meio familiar dos Wayana. São representados na ico-
mais, por representar seus “duplos sobrenaturais”. O tema geométrico não repre-
nografia tradicional por dois temas gráficos: a dupla flecha que já conhecemos
senta (apenas) um ou outro animal (familiar e inofensivo), mas sua “réplica mons-
(Figura 17) e uma figura geométrica que poderíamos associar a uma representação
truosa e normalmente invisível” (2003: 319). Lembramos que a tradição wayana
“realista” do quatipuru (Figura 20).
distingue diferentes classes de temas, os quais pertencem a diferentes predadores.
Considerando os dois temas desse ponto de vista, reconhece-se que a dupla flecha
e o pequeno roedor denominado quatipuru “pertencem ambos” às pinturas cor-
porais que figuram no ventre da anaconda. É a esse predador que eles estão asso-
ciados. Poderão, inclusive, enquanto membros de uma série, fazer parte de sua
representação. O tema do quatipuru se traduziria, nesse caso, como escreve Vel-
them, por “imagem (ukuktup) e pintura corporal (imirikut) da anaconda” (ibid.:
317). Contudo, enquanto representação de um ser invisível, o tema do quatipuru
contém também uma possível referência a outro predador, a onça. Por quê? Basta
associá-lo ao tema da onça (Figura 21) para perceber que um único detalhe os dis-
tingue: a cauda, voltada para o exterior, no caso do quatipuru, e para o interior, no
caso da onça (ibid.: 318). Essa comparação traz um “ponto de conexão” inesperado
entre os dois temas gráficos, que permaneciam invisíveis quando se tratava de
Figura 19: Roda de teto (maruana), séc. XX, Estado do Pará, rio Paru do leste, Brasil, associar o roedor quatipuru à cegonha maguari. Esse aspecto em comum não diz
Wayana-aparaí © Musée d’Ethnographie de Genève (MEG). Foto Jonathan Watts. respeito apenas aos grafismos, mas também aos dois seres representados. Deve-se

58 59
o espaço quimérico carlos severi

concluir que esses dois animais (considerados sob o ponto de vista revelado por e de projeção, orientado pela tradição. O confronto entre os temas do quatipuru
seu mirikut) possuem “um corpo de felino”, o que confirma a natureza da onça (ou e da onça, que se desdobram simultaneamente no plano da presença marcante
melhor, o modo de existência possível “enquanto onça”) do quatipuru. Reconhe- (junção de corpos “felinos” em comum) e da saliência (cauda orientada no sentido
cemos aqui o caráter essencialmente serial da iconografia wayana: um ser nunca oposto, para o exterior ou para o interior), nos oferece um exemplo claro. O gra-
é pensado apenas em sua singularidade. Ele é sempre definido pela “pele pintada” fismo wayana (mirikut) é, portanto, uma espécie de nome visual, que utiliza traços
que ele veste, enquanto membro de uma classe ou de uma sequência de “modos icônicos provenientes da imagem natural (ukuktop) de vários seres para construir,
de existência” possíveis. serialmente, a imagem de seres complexos. Se não estivessem também presos em
um processo de encarnação constante e provisório, esses seres complexos, que
escapam à vista, seriam percebidos como puramente concebidos, porque escapam
da vista. Essa atenção dada aos aspectos potenciais e implícitos da representação
por temas gráficos, sujeitos a se fragmentarem e multiplicarem constantemente,
em uma espécie de movimento perpétuo da representação rumo à dimensão
quimérica, sugere que a lógica dessas iconografias ainda pode ser aprofundada.
Seria possível, por exemplo, transferir esses procedimentos de referência serial
de imagens a outros meios de expressão, além da visão. Tal hipótese de traba-
lho nos levaria a estudar as relações que se estabelecem, notadamente, entre os
Wayapi – habitantes da mesma região que os Wayana –, entre seus temas gráficos
Figura 21: O tema da onça, cestaria wayana. e suas “imagens sonoras”, que assumem a função de representar os predadores e
suas metamorfoses, como, por exemplo, nas suítes musicais chamadas de touré
A propósito desse tipo de representação, Van Velthem está certa ao falar de (Beaudet, 1998), função assumida até aqui somente pelos grafismos. Passaríamos
“formas mnemônicas” (2003: 319). Como foi possível constatar em outros casos assim das sequências dos Yekuana, organizadas segundo uma ordem geométrica
(Severi, 2007, 2009), diferentemente de como acontece com as relações semióticas, simples, às representações seriais dos Wayana, para atingir, em seguida, um nível
as relações mnemônicas não se estabelecem entre um signo (ou desenho) e seu de complexidade ulterior onde as séries de representações seriam compostas tanto
referente. Trata-se de um conjunto de inferências visuais baseadas na decifração de imagens visuais como de imagens sonoras. Poderíamos, em seguida, utilizar
de imagens complexas, que estabelece uma relação entre, por um lado, a memória outro meio de expressão e perceber o uso que certos cantos xamânicos fazem da
espacial relacionada aos temas gráficos e, por outro, a memória das palavras. A efi- onomatopeia verbal, deflagrada como uma verdadeira imagem sonora dos seres,
cácia das práticas ligadas à memorização das tradições iconográficas não se deve à permanecendo lexicalizada enquanto signos linguísticos na língua indígena. Em
tentativa mais ou menos bem-sucedida de imitar o caminho da referência própria suma, até aqui esboçamos alguns elementos de um campo de investigação vastís-
à escrita, mas à relação que essas práticas estabelecem entre diferentes níveis de simo, ainda a ser explorado.
elaboração mnemônica. Os casos yekuana e wayana designam, nesse sentido, dois Concluamos, por ora, que as tradições iconográficas aqui brevemente estuda-
diferentes graus de complexidade de um mesmo espaço quimérico. Claro está que das, Yekuana e Wayana, recorrem a meios comparáveis, quer se trate da represen-
reencontramos, na decifração dos temas gráficos wayana, os dois princípios que tação geométrica de séries de traços (que pode ser constantemente reduzida a seus
governam a memorização dos nomes próprios dos Yekuana, ordem e saliência. O componentes elementares ou organizada em uma configuração mais complexa),
estabelecimento de uma ordem afeta as séries iconográficas ligadas às “séries de quer da relação entre iconografia e linguagem, também variável. Em ambos os
seres” organizadas por categorias de predadores. A consolidação de uma saliência casos, a representação do mundo dos espíritos conserva sempre seu caráter semio-
própria a cada tema permite a identificação de cada termo da série e de cada série ticamente híbrido, “ao mesmo tempo representativo e conceitual” (Velthem, 2003:
no interior daquilo que denominamos de “séries de séries”. Em ambos os casos, 306), uma vez que seu iconismo, ainda que refinado e frequentemente imprevisí-
a prática da decifração de imagens quiméricas supõe um exercício de inferência vel, está sempre associado a um nome próprio ou a uma definição verbal do ser

60 61
o espaço quimérico carlos severi

representado (que poderíamos chamar de nome-série). No seio desse último sis- rico designa uma relação instável, de complementariedade alternada entre o tema
tema, do qual o universo permanece limitado ao relato mitológico, será estabele- iconográfico e seu espaço liminar e entre a percepção e as operações de projeção.
cida uma dupla relação entre a representação iconográfica e a sua definição verbal. Este trabalho de análise nos permitiu concluir que a representação quimé-
Em alguns casos, as séries de seres ou de “nomes próprios complexos” serão repre- rica é, antes de tudo, uma representação das relações expressas pela imagem. Desse
sentadas com um único tema gráfico, assim como acontece com certos predadores. ponto de vista, ela não se inscreve numa tipologia de representações iconográficas
Em outros casos, serão utilizadas séries de temas gráficos designando um único ser. (“realista”, “anicônica”, “abstrata” etc.), mas sim em uma lógica de relações icôni-
Isso se passa com a raia enquanto anaconda, mediante sua evocação como “nome cas. A análise de duas tradições amazônicas, nas quais a representação quimé-
de uma série” ou com o quatipuru enquanto onça, como o termo intermediário rica constitui a convenção visual dominante, nos permitiu mostrar até que ponto
implícito designado pela justaposição parcial de seu tema gráfico com o da onça. a designação por projeção de uma presença imputada engendra a ideia de uma
Tanto para os Yekuana como para os Wayana o espaço quimérico está pre- essência própria dos seres quiméricos. No caso yekuana, essa essência é represen-
sente, com seu característico jogo constante de complementariedade instável tada por grandes personagens concebidos como seres submetidos a uma constante
entre percepção e projeção. A diferença entre essas duas iconografias diz respeito, transformação, presentes nas narrativas mitológicas. No caso wayana, a essência
por um lado, à passagem da representação dos indivíduos “personalizados” à de daquilo que é quimérico se desenvolve em uma lógica plural onde vemos aparecer,
séries de seres em transformação constante e, por outro, à quantidade de termos no lugar dos personagens, classes (e, por vezes, classes de classes) de seres híbri-
intermediários, de caráter linguístico ou iconográfico, utilizados para designar um dos. Nessas tradições, como em outros lugares da Amazônia, a representação qui-
ser específico. Enquanto o trabalho etnográfico nos levaria a pensar em tradições mérica se associa à definição essencialista de uma classe de seres cujos traços defi-
diferentes, a análise dos temas iconográficos, tal como das operações mentais que nidores jamais coincidem com aqueles que, no seio do mundo humano, animal ou
eles implicam, revela uma unidade subjacente. Em ambos os casos opera uma vegetal, definem uma espécie. O jogo incessante entre fragmento e marco (cadre),
mesma lógica ligada à representação quimérica das relações. e entre percepção e projeção, que torna o espaço quimérico iterativo, recursivo e,
dentre os Wayana, potencialmente infinito, designa não apenas uma estética, mas
viii também um modo de existência dos seres sobrenaturais no mundo amazônico.
Concluímos que o estudo da representação quimérica permite ampliar entendi-
Para responder aos debates suscitados pela noção de representação quimérica, mentos e visões não apenas a respeito das artes, mas também da ontologia dessas
tentamos inicialmente elaborar novos instrumentos de análise para o campo da tradições. Eis aqui, sem dúvida, uma das questões antropológicas do espaço qui-
antropologia das imagens. A partir de um breve estudo da perspectiva, convenção mérico, cujos primeiros elementos procuramos esboçar.
visual que nos é mais familiar, definimos a apreensão de uma imagem como uma
relação, variável e específica a uma tradição, entre um quadro perceptivo e o exer-
referências bibliográficas
cício da projeção de saberes adquiridos, ou das “categorias interpretativas” (Baxan-
dall, 1985: 48) neles implicadas. A análise nos levou a concentrar nosso estudo em ALPERS, Svetlana. Les Vexations de I’art. Vélasquez et les autres. Paris: Gallimard, 2005.
noções potencialmente universais, tais como a interpretação do simbolismo por BARASCH, Moshe. “Renaissance Hieroglyphics”. In: ASSMANN, Aleida; ASSMANN, Jan
projeção, a transitividade das imagens, a reflexividade do marco e os atos do olhar. (ed.). Hieroglyphen. Munique: Fink Verlag, p. 165-191, 2003.
Em seguida, aplicamos essas noções à representação quimérica. Esta nos pareceu, BARCELOS NETO, Aristóteles. A arte dos sonhos. Lisboa: Museu Nacional de Etnologia,
do ponto de vista morfológico, fundada em um princípio de organização do espaço 2002.
que faz da relação entre uma forma exibida e uma forma imputada pelo pensa- BASCHET, Jérôme. L’lconogrophie médiévale. Paris: Gallimard, 2008.
mento o meio para engendrar uma ilusão específica. Do ponto de vista lógico, BAXANDALL, Michael. L’Œil du Ouattrocento. Paris: Gallimard, 1985 [1972].
pudemos concluir que o tipo de operação mental suposta nessa representação ______. Les humanistes à la découverte de la composition en peinture, 1350-1450. Paris:
baseia-se em uma articulação específica entre representação icônica e indicação Gallimard, 1989 [1986].
indiciária. Do ponto de vista estético, por fim, concluímos que o espaço quimé- BEAUDET, Jean-Michel. Souffles d’Amazonie. Paris: Société d’ethnologie, 1998.

62 63
o espaço quimérico carlos severi

BÜHLER, Karl. Theory of Language: the Representational Function of Language. Amsterdam: ______. “La parole prêtée. Comment parlent les images”. In: SEVERI, Carlo; BONHOMME
John Benjamins, 1990 [1934]. Julien (dir.). Paroles en actes. Paris: l’Herne, “Cahiers d’anthropologie sociale 5”, p.
CIVRLEUX, Marc de. Watunna. Mitología Makiritare. Caracas: Monte Ávila Editores, 1970. 11-41, 2010.
DAMISCH, Hubert. Théorie du nuage. Paris: Seuil, 1972. SULDA, William. Bromante pittore e Bromantino. Milão: Ceschina, 1953.

DIDEROT, Denis. Œuvres. Paris: Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1951. SHEARMAN, John. Only Connect: Art and the Spectator in the Italian Renaissance. Prince-
ton: Princeton University Press, 1992.
FLORENSKY, Paul. La Perspective inversée. Paris: l’Âge d’Homme, 1992.
VELTHEM, Lucia Hussak van. O Belo é a Fera. A estética da produção e da predação entre os
FRIED, Michael. La Place du spectateur. Esthétique et origines de l’esthétique moderne. Paris:
Wayana. Lisboa: Museu Nacional de Etnologia, 2003.
Gallimard, 1990.
WARBURG, Aby. “Du laboratoire au muse”. In: WAHLER, Marc-OIivier; GROSSI, Frédéric
GAMBONI, Dario. Potential lmages. Londres: Reaktion Books, 2004.
(dir.), Ou yodel à la physique quantique, v. 4. Paris: Palais de Tokyo, 2010.
GELL, Alfred. “Vogel’s Net: traps as artworks and artworks as traps”. In: Journal of Material
WILBERT, Johannes. “Warao Cosmology and Yekwana Roundhouse Symbolism”. In: Jour-
Culture 1 (1), p. 15-38, 1996.
nal of Latin American Lore 7 (1), p. 37-72, 1981.
______. Art and Agency. An Anthropological Theory. Oxford: Clarendon Press, 1998.
WINKELMANN, Johann Joachim. 1973 Il bello nell’arte. Turim: Einaudi, 1981.
GOETHE, Johann Wolfgang von. Traité des couleurs. Paris: Triades, 2000 [1808].
WLTTKOWER, Rudolf. “Hieroglyphics in the Early Renaissance”. In: Allegory and the migro-
GOMBRICH, Ernst. Art and lIIusion. A study in the Psychology of Pictorial Representation. tion of symbols. Londres: Thames & Hudson, p. 113-128, 1977.
Oxford: Phaidon Press, 1969.
______. The Image and the Eye. Further studies in the Psychology of Pictorial Representa-
tion. Oxford: Phaidon Press, 1982.
GUSS, David. To Weave and Sing. Berkeley; Los Angeles: California University Press, 1989.
HAY, Jonathan. “Seeing through dead eyes. How early Tang tombs staged the afterlife”. In:
Res. Anthropology and Aesthetics, n. 57-58, p. 16-54, 2010.
HILDEBRAND, Adolf von. ll problema della forma e altri scritti. Palermo: Aesthetica Edi-
zioni, 2001 [1893].
LAMP, Frederick. Art of the Baga. New York-Munich: Museum for African Arts-Prestel,
1996.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Œuvres. Paris: Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 2008.
MARC, Franz. Les Cent Aphorismes. Paris: Fourbis, 1996 [1914].
PANOFSKY, Erwin. The Life and Art of Albrecht Dürer. Princeton: Princeton University
Press, 1943.
PEIRCE, Charles Sander. Éctits sur le signe. Rassemblés, traduits et commentés par G. Oele-
dalle. Paris: Seuil, 1978.
RIEGL, Alois. Le portrait de groupe dans la peinture hollandaise. Paris: Hazan, 2009 [1902].
SETTLS, Salvatore. iconografia del’arte italiana: una linea. Turim: Einaudi, 2005.
SEVERI, Carlo. “Warburg anthropologue, ou le déchiffrement d’une utopie. De la biologie
des images à l’anthropologie de la mémoire”. L’Homme 165, p. 77-129, 2003.
______. Le Principe de la chimère. Une anthropologie de la mémoire. Paris: Éditions rue
d’Ulm-musée du quai Branly “Aësthetica”, 2007.
______. “L’univers des arts de la mémoire. Anthropologie d’un artefact mental”. In: Anna-
les H55 2, p. 463-493, 2009.

64 65
Podem os grafismos ameríndios
ser considerados quimeras abstratas?
Uma reflexão sobre uma arte perspectivista
Els Lagrou

Figura 1: pintura dos adultos.

67
uma reflexão sobre uma arte perspectivista els lagrou

introdução da lógica formal do grafismo kaxinawa onde mostrava que este grafismo induzia
uma focalização da atenção que visava antes agenciar e direcionar o olhar do que
Partindo da análise do papel desempenhado pelo sistema gráfico na vida percep-
representar figuras exteriores ao espaço gráfico. Tinha igualmente assinalado o
tual dos Kaxinawa da Amazônia brasileira, onde tenho mostrado como um dese-
dinamismo deste grafismo que, apesar de abstrato, podia se abrir para a percepção
nho “abstrato” opera a passagem entre o visível e o invisível num mundo amerín-
de uma figuração virtual, imagem mental que não é dada a ver no desenho, mas
dio caracterizado pela intercambiabilidade das formas, sugiro a possibilidade de
pode ser vislumbrada para quem está preparado e em circunstâncias específicas. É
estender minha hipótese a outros sistemas gráficos ameríndios aparentados.1 Pro-
a partir desta descrição que surge a possibilidade de considerar este estilo gráfico
ponho que consideremos as imagens e os grafismos ameríndios como instrumen-
como versão abstrata da lógica quimérica das imagens explorada por Warburg e
tos perceptivos que implicam operações mentais específicas sustentadas por uma
Severi para imagens figurativas e pictogramas.
ontologia na qual a transformabilidade das formas e dos corpos ocupa um lugar
Foi ao relacionar o estilo formal da arte gráfica kaxinawa com os contextos
central. O reconhecimento do caráter perspectivista (Viveiros de Castro, 1996) e
rituais de seu uso que se revelou mais claramente para mim a relação entre um
animista (Descola, 2005) das ontologias ameríndias colocou em evidência este
estilo de pensar, um estilo de perceber e um estilo particular de mostrar que con-
fenômeno da transformabilidade das formas, assim como o contraste constitutivo
siste em ocultar sistematicamente a maior parte do que poderia ser visto. A técnica
entre uma interioridade e uma exterioridade não necessariamente coincidentes,
aponta para o fato de muitas formas latentes só se darem a ver através de um enga-
onde um ser humano pode se esconder num corpo não humano e vice-versa.
jamento ativo do olhar com a trama das linhas.
Este postulado tem importantes consequências para o estudo das imagens mate-
Na minha análise da arte gráfica kaxinawa (1998a e b), isolei os seguintes prin-
riais e virtuais produzidas por estas sociedades. Pretendo mostrar como diversos
procedimentos formais característicos do grafismo kaxinawa e de outros povos cípios formais, visando mostrar como o jogo estilístico que produz um desiquilí-
da região podem ser interpretados como técnicas perspectivistas (Lagrou, 1998, brio entre simetria e assimetria aponta para a simultaneidade de mundos visíveis e
2002a, 2007), i.e., técnicas que permitem ao expectador mudar de ponto de vista invisíveis, onde o olhar não se fixa sobre uma figura delineada por um fundo, mas
graças a um enquadramento (framing) específico (Bateson, 1977). oscila entre a possibilidade de perceber uma figura simultaneamente com outra, a
Há algum tempo meu tema de reflexão tem sido o de tentar relacionar um contrafigura, produzindo um efeito kinestésico que dá vida ao suporte e que cap-
estilo de ver e de mostrar com um estilo de pensar (Lagrou, 1996, 1998). E não me tura o olhar de quem contempla o desenho. Temos assim os seguintes princípios
parece um acaso que a arte ameríndia amazônica tem se especializado mais na que pretendo explorar mais adiante:
arte de sugerir do que naquela de mostrar, de representar. Esta ideia ganha novo t4JNFUSJBBTTJNFUSJBPEVBMJTNPFNQFSNBOFOUFEFTFRVJMÓCSJP
relevo no diálogo proposto aqui. Neste artigo proponho um diálogo entre o con- t4UVEJVNQVODUVNPQFRVFOPEFUBMIFEFTUPBOUF
texto imagético marcado pelo perspetivismo ameríndio e o conceito de quimera
t&OHMPCBEPFOHMPCBOUFBQSPEVÎÍPEFQSPGVOEJEBEFOPFTQBÎPQFSDFQUJWP
como formulado por Severi em Le principe de la chimère (2007). Tomo como
t4VQPSUFHSBĕTNPBSFMBÎÍPEJOÉNJDBFOUSFPTVQPSUFUSJEJNFOTJPOBMFPEFTFOIP
ponto de partida a possibilidade, sugerida por Severi, de considerar o grafismo que adere ao corpo;
kaxinawa como uma “quimera abstrata”.2 Esta sugestão seguiu minha exposição t"CTUSBÎÍPĕHVSBÎÍPVNBSFMBÎÍPTVUJMEFUSBOTGPSNBÎÍPFOUSFVNBSFMBÎÍPFOUSF
linhas e a sugestão de uma silhueta delineando uma figura;
1 Minha pesquisa de campo com os Kaxinawa da área indígena do Alto Purus no Estado do Acre (Bra-
sil) se iniciou em 1989. O período de campo na aldeia durou aproximadamente 18 meses entre 1989
e 1995. Depois vim desenvolvendo trabalhos de curta duração com os Kaxinawa na minha casa. A exposta no colóquio “Mundos visuais e sensoriais andinos e amazônicos”, organizado por Aristóteles
população kaxinawa é estimada entre 7 mil e 8 mil pessoas. Barcelos Neto e por mim mesma em São Carlos, e agradeço aos colegas ali presentes por suas con-
2 Tive a oportunidade de discutir as ideias desenvolvidas neste artigo em vários seminários e simpósios tribuições, particularmente a Cristiana Barreto, Fabíola Silva, Luisa Elvira Belaunde, Marcia Arcuri,
organizados no contexto do Projeto Capes-Cofecub “Arte, Imagem, Memória: Horizontes de uma Denise Gomes e Aristóteles Barcelos. Esta é uma versão substancialmente alterada de uma primeira
antropologia da arte e da cognição”, em Paris e no Rio (entre 2007 e 2010), e agradeço particularmente versão desta hipótese comparativa que foi publicada na revista Gradhiva, n. 13, 2011. A hipótese foi
a Carlo Severi, Anne-Christine Taylor, Denise Vidal, Aparecida Vilaça, Bruna Franchetto, Marco posteriormente exposta no colóquio “Mostrar y Ocultar en el arte y el ritual”, na UNAM, México
Antonio Gonçalves e Carlos Fausto por seus comentários e sugestões; assim como aos participantes (2012), e agradeço a Johannes Neurath, Pierre Olivier Dittmar, Carlo Bonfiglioli e colegas pela discus-
do colóquio que deu origem a este volume. A hipótese que está na base deste artigo foi igualmente são e pelas sugestões.

68 69
uma reflexão sobre uma arte perspectivista els lagrou

ti1FSDFQÎÍPJNBHJOBUJWBwFiJNBHJOBÎÍPQFSDFQUJWBwJMVTUSBEBQFMBTJTUFNÈUJDBJOUFS- visualizado pelo participante. Deste modo, o desenho produz uma mediação entre
rupção do desenho sugerindo sua continuação além do suporte e pelo motivo umin o espaço perceptível da vida cotidiana e o espaço visionário da ayahuasca.
kene, o desenho quase imperceptível por não trabalhar com cores contrastantes.
Em dois dos três casos rituais examinados, o rito de passagem das crianças
No que segue tentarei explorar as implicações desta associação entre os con- (com desenhos colocados no corpo) e o uso ritual da ayahuasca (com desenhos
ceitos de “quimera” e “abstração” para os “povos com desenho”. A expressão “povos evocados no canto), um desenho abstrato opera a passagem entre o visível e o invi-
com desenho” é uma autodesignação utilizada por alguns grupos pano da Amazô- sível. Durante o ritual de fertilidade, por sua vez, a pintura opera como máscara.
nia Ocidental na fronteira entre o Peru e o Brasil. Os Kaxinawa, Shipibo-Konibo e
1. Nixpupima e Katxanawa: fabricação e transformação
Marubo, por exemplo, se autodesignam como huni keneya, aqueles que possuem
o desenho e estendem este reconhecimento aos seus vizinhos Piro (Yine, de língua Em todos os rituais kaxinawa o grafismo é percebido em relação com um
arawak). Sugiro que esta categoria se estenda, por razões de afinidade estilística suporte.4 No rito de passagem das crianças, o uso da pintura corporal e facial com
e de significação geral do sistema gráfico, a outras etnias produtoras de “siste- jenipapo segue a lógica da fabricação do corpo. Para que a intervenção ritual seja
mas complexos de desenho” (expressão utilizada por Gow, 1988), como os tupi eficaz, o corpo deve ser pintado. O desenho sobre o corpo das crianças em processo
Yudjá (Juruna), Asurini e Waiãpi, assim como os Kadiwéu de língua Guaikuru.3 As de fabricação aumenta a permeabilidade da pele, abrindo o corpo à intervenção
populações do complexo cultural do Alto Xingu utilizam igualmente pinturas que ritual. Enquanto os desenhos usados pelos adultos e jovens que já passaram pelo rito
cobrem o corpo inteiro com motivos entrelaçados, assim como os Kayapó. Este de passagem são feitos com traços finos e precisos, no caso das crianças que estão
conjunto de pinturas corporais contrasta com aquelas que marcam o corpo com sendo iniciadas o desenho pintado sobre a pele deve ser grosso e “malfeito” (tube
pequenos desenhos isolados que não cobrem a superfície inteira do suporte, como kene) para que os cantos, as rezas e os banhos medicinais possam penetrar melhor
encontramos entre os Ashaninka (Beysen, 2008), Ashuar (Taylor, 2003), Culina e em sua pele. Ou seja, os traços grossos tornam a pele mais permeável à ação ritual.
tantos outros grupos que habitam a mesma região da Amazônia Ocidental onde Os recém-nascidos, quando saem pela primeira vez do mosquiteiro, por sua vez,
identificamos os “povos com desenho”. têm o corpo inteiro coberto com tinta de jenipapo para fechá-lo e protegê-lo das
influências externas.
usos rituais do grafismo entre os kaxinawa Os grafismos acompanham as etapas da transformação corporal. A diferença
entre os desenhos não se manifesta, como no caso Kayapó, nos motivos utiliza-
Foi através do estudo do uso do grafismo kaxinawa em três contextos rituais dife- dos: usam-se os mesmos motivos para ambos os sexos e para todas as idades, com
rentes que pude compreender o sentido da agentividade do kene – estilo gráfico exceção dos recém-nascidos e da pintura de saída da reclusão.5 A diferença reside
kaxinawa – como instrumento de transformação da percepção (Lagrou, 1998a e b, no estilo de execução utilizado.
2007, 2009b). O primeiro destes contextos é o Nixpupima, rito de passagem para
meninos e meninas na idade da troca dos dentes de leite por dentes permanentes, 4 Boas e Lévi-Strauss, nas suas respectivas análises da pintura da Costa Noroeste (1928) e da pintura
facial dos Kadiwéu (1955), notaram a relação intrínseca entre corpos e grafismo. Lévi-Strauss relata
onde os corpos das crianças são remodelados, os dentes fortalecidos com nixpu e o caso de uma mulher Kadiwéu que, para representar a pintura facial sobre papel, desenha um rosto
os ossos estimulados a crescer através da dieta do milho e o pulo forçado. Neste em forma de coração, como se fosse necessário, para representar o grafismo numa superfície plana,
escalpar a pele e esticá-la. Boas mostra igualmente que se podem ver os mantos heráldicos dos povos
rito o desenho exerce um papel importante ao fazer da pele um mediador entre o da Costa Noroeste como “animais dissecados”. Quando se juntam as partes do corpo desenhadas no
exterior e o interior do corpo. O segundo é o rito de fertilidade, onde os partici- manto numa caixa, se obtém um “corpo” coberto por uma pele.
pantes se pintam com urucum, mascarando-se. O terceiro contexto é a ingestão 5 Se para os Kaxinawa a pintura participa no processo de fabricação, esta lógica não se verifica entre
os Piro e os Xinguanos, onde o corpo em reclusão, em processo de fabricação, é nu. Segundo Gow, a
ritual da ayahuasca pelos homens caçadores, onde o desenho é evocado no canto e pintura corporal dos Piro é considerada o resultado dos “pensamentos das mulheres”. A beleza com-
pulsiva dos desenhos focaliza a atenção na perfeição das formas da jovem mulher recentemente saída
da reclusão. Assim como os Kaxinawa, os Piro afirmam que os humanos partilham com a onça e a
3 Para os Shipibo-Conibo, ver Roe (1975), Gebhart-Sayer (1986), Illius (1987) e Belaunde (2009 e neste anaconda a qualidade de “possuir desenho” (keneya, em kaxinawa). Assim como entre os Kaxinawa
volume); para os Asuriní, ver Müller (1990); para os Waiãpi, Gallois (2002); e para os Kadiwéu, (Lagrou, 1995 e 2007) e os Ashaninka (Beysen neste volume), o resultado paradoxal da arte das mulhe-
Lévi-Strauss (1955). res é de produzir um ser cuja beleza se assemelha a de um ser perigoso – à do jaguar, no caso Piro, e à

70 71
uma reflexão sobre uma arte perspectivista els lagrou

No rito de fertilidade, katxanawa, se aplica uma pintura de urucum sobre o


rosto de homens ou mulheres por cima dos desenhos em jenipapo. Neste caso, o
uso da pintura facial equivale a cobrir o rosto humano com a pele de um animal,
transformando, para fins rituais, seres humanos em onças e/ou espíritos da flo-
resta (ni yuxin), como se se tratasse de uma máscara. Neste contexto ritual se pode
constatar que as manchas de urucum servem para diferenciar as metades, uma
adotando o motivo da onça pintada (inu kenenya) e outra, da onça pardo (txaxu
inu). Esta pintura se chama dami, transformar, mascarar, e difere radicalmente do
kene kuin, desenho ou grafismo. O grafismo (kene) com jenipapo não mascara,
não transforma a identidade do seu portador, mas a fabrica. Lévi-Strauss qualifica
o desenho com jenipapo como “segunda pele”, uma “pele social”, e afirma que
todas as pinturas corporais ameríndias obedecem à esta logica da máscara. Me
parece, no entanto, que estamos lidando aqui com dois fenômenos diferentes: um
releva da fabricação de um corpo específico, kaxinawa, e outro, das tecnologias da
“alteração”. As manchas de urucum, associadas às vestimentas de folhas de jarina e
às vezes a máscaras dentadas feitas de cuias (munti deteya), transformam a pessoa
Figura 2: pintura de neófito.
em espírito da floresta que se prepara para invadir a aldeia.
Na foto (Figura 4) vemos uma versão do katxanawa onde há inversão de papéis
quanto ao gênero: vestindo-se e agindo como homens, as mulheres “viram homem”,
e, vestindo-se e agindo como mulheres, os “homens viram mulheres”. Nesta versão
do ritual, as mulheres se tornam também yuxin da floresta a serem recebidos pela
outra metade de mulheres na aldeia, munidas de espingardas e flechas.
Este tipo de pintura com urucum se chama dami, transformar, mascarar, e
difere radicalmente do kene kuin, o desenho feito com jenipapo. O uso ritual do
dami reatualiza os processos de transformação dos tempos míticos nos quais seres
humanos se pintaram com as pinturas, marcas corporais dos animais nos quais
queriam se transformar (Capistrano, 1941 [1914]).
A utilização pelo líder do canto da “roupa do Inka” (inkan tadi), tanto durante
o rito de passagem como no ritual de iniciação do líder do canto (txidin), segue
a mesma lógica: transforma o especialista em Inka para a duração do ritual. O
líder de canto canta com a voz do Inka e invoca a presença deste durante o tempo
do ritual. A roupa do Inka é tadi keneya (roupa com desenho), uma longa túnica
Figura 3: pintura de recém-nascido. (cushma) com desenhos, sobre o qual são bordados seus dau, enfeites-feitiços,
plantas cheirosas e penas que completam a indumentária. O líder presentifica
da anaconda, no caso Ashaninka e Kaxinawa. Os Piro não se pintam na vida cotidiana, quando estão assim o inimigo prototípico, deus da morte e destino futuro dos humanos. Ves-
entre si, mas somente para se encontrar com aqueles com os quais não se vive bem (Gow, 2001: 103-
129). Também no Alto Xingu podemos notar que o grafismo marca o estágio final da fabricação do timentas, pinturas e folhas de jarina constituem assim maneiras de pôr em ação
corpo (um processo ocultado aos olhos do público) e o encontro com parceiros distantes que se quer perspectivas outras.
impressionar e intimidar pela beleza feroz.

72 73
uma reflexão sobre uma arte perspectivista els lagrou

Podemos enveredar nesta antropologia da pele por um caminho não explo-


rado por Gell e Gow, analisando conjuntamente a fabricação de artefatos e pes-
soas. Van Velthem explora o paralelo entre artefatos e corpos, mostrando como os
Wayana utilizam os mesmos termos técnicos para falar da produção e da decora-
ção de artefatos e humanos (2003). O mito de origem da mulher wayana mostra
que ela é fabricada para agir: a primeira tentativa de fabricação revelava que a argila
era pesada demais para se fazer uma mulher, a segunda que a cera derretia sob o
calor do sol. Foi finalmente a mulher cesto que se revelou apta a executar as tarefas
femininas. O corpo da mulher wayana foi trançado, como o foi o corpo da boa
entre os Kaxinawa e Wauja. Os Asuriní também dão prioridade ao trançado, que
é como aprenderam seus motivos gráficos (Müller, 1990). A associação entre tran-
çado, tecelagem, desenho e o corpo da anaconda é extremamente recorrente na
Amazônia (Lagrou, 1991, 1996, 2009 e 2011; Barcelos, 2008: 231; e neste volume).
Entre os Kaxinawa é também no mito que encontramos a ideia da pele como
tecido. A origem da anaconda/boa, dona(o) dos desenhos e de todas as imagens
Figura 4: jovem mulher vestindo-se de yuxin da floresta. virtuais possíveis, dona(o) também do fluxo do sangue, se situa no mito do grande
dilúvio. Diversos artefatos se transformaram por esta ocasião em animais; a bor-
Os diferentes usos da pintura, especialmente aquela de jenipapo, que ora veda duna (bina) se transformou em poraquê; o fuso, em arraia; o cesto com desenho
a pele inteira, ora a cobre com uma fina filigrana, ou a abre através de traços gros- (kakan keneya) se tornou a cabeça da anaconda; e o casal Sidika e Yube, que na
sos para a intervenção ritual (Figuras 1, 2, 3), nos permitem ver a pele pintada hora do dilúvio estava deitado numa rede decorada com desenhos (disi keneya),
como um tecido ou um trançado: a pele como lugar de contato e de passagem se transformou em anaconda. No interior desta anaconda, ser sobrenatural andró-
entre o interior e o exterior, entre conteúdo e continente. É a pele que possibilita a geno, se encontram as agências femininas e masculinas combinadas; sua pele é a
criação de um “corpo” suscetível de esconder uma interioridade. Na sua introdu- rede com desenho. No fundo do rio estes desenhos não são visíveis, e a anaconda
ção a Wrapping in images, Gell (1993) propõe reflexões interessantes sobre o que é chamada de anaconda branca. Os desenhos só se revelam no contato com o sol,
poderia constituir uma antropologia da pele, ligando a pele à placenta. Trata-se quando a boa sobe para a terra para revelar seu desenho aos humanos. Para os
de uma estrutura que lembra a garrafa de Klein mencionada por Lévi-Strauss na Kaxinawa, a boa e a anaconda são transformações uma da outra. Quando é jovem,
Oleira ciumenta, onde o interior se desdobra no exterior e vice-versa, onde não há a boa vive na terra para ensinar os humanos; quando se cansa porque está ficando
ruptura explícita entre interior e exterior (1985). velha, se retira para a água onde reina como “grande chefe”, como “presidente”. Foi
A relação entre pele e placenta é importante também para os Piro, que consi- o espírito da boa que ensinou às mulheres a arte do desenho (kene), enquanto a
deram a placenta, com sua superfície coberta por uma teia saliente de veias, como experiência com ayahuasca, o mundo das imagens (dami) e dos espíritos (yuxin),
“o primeiro desenho” (Gow, 1999, 2001). Esta placenta, o “primeiro desenho” da foi ensinada aos homens pela anaconda. A ayahuasca (nixi pae, cipó forte [embria-
criança, também chamado de seu “gêmeo”, precisa ser enterrada para que a criança gante]) ou nawan huni (gente estrangeiro/grande) é o sangue ou a urina da ana-
possa viver. A criança fica temporariamente sem desenho, até que as mulheres a
pintam pela primeira vez. Entre os Kaxinawa, “para que a criança possa nascer 6 Ingold (2007) propõe uma abordagem comparativa dos múltiplos sentidos da palavra “linha” e sugere
facilmente”, o canto ritual menciona suas “roupas velhas que estão queimando”. que a relação entre linha traçada e linha tecida está presente na história do Ocidente pré-moderno,
assim como em contextos culturais não ocidentais. Para este autor, a linha remete aos movimentos do
Tudo indica que esta “roupa velha” que a criança tem que trocar por um novo corpo e ela teria sido endireitada a partir do advento da impressão, que afastou o traço do movimento
tecido no qual será embrulhado é sua placenta (Lagrou, 1998, 2007). do braço que escrevia. O que nos interessa aqui, no entanto, é outro tipo de movimento, aquele da
percepção mental que opera a passagem entre o que é visível e o que não o é ainda.

74 75
uma reflexão sobre uma arte perspectivista els lagrou

conda (dunuan himi, dunuan isun), Yube, dono(a) do mundo aquático. É neste ponto de vista a outro, e todas estas técnicas têm a ver com processos controlados
último contexto ritual da ingestão da ayahuasca que podemos encontrar um dis- de percepção e produção das formas. As gotas de plantas com desenhos espremi-
curso explícito sobre a passagem da abstração à figuração na percepção daqueles das nos olhos para aumentar a capacidade perceptiva e fazer sonhar com desenhos
que tomaram a bebida e sentiram seus efeitos. é muito recorrente na região e constitui um momento importante no rito de pas-
sagem kaxinawa.
2. Ingestão ritual do nixi pae (ayahuasca) Um caçador que deseja ser eficaz como caçador precisa ver os macacos
No contexto do consumo da ayahuasca (nixi pae), o desenho não é materia- como presas (yuinaka). O xamã, por sua vez, os vê como gente, o que o impede
lizado, mas ativamente visualizado. O desenho possui um papel crucial na expe- de matá-los. Os animais mortos liberam um duplo, sua imagem. Esta imagem se
riência porque opera a passagem de uma percepção visual para uma percepção caracteriza desde então por sua relação instável com o corpo, posto que está em
visionária. “Tem que ficar dentro do desenho” é a recomendação que se dá aos busca de um, o que se traduz na capacidade destes duplos de produzirem doenças
aprendizes para que não se percam nas suas visões. “O desenho cantado é um cami- nos humanos. Para proteger sua saúde e a dos seus próximos, o caçador deve,
nho”7 e “cada desenho se abre para a revelação de uma figura (dami) e depois de depois de ter matado ou comido uma caça, ingerir regularmente o nixi pae em
um espírito (yuxin)”. A anaconda é a dona dos desenhos, das imagens e dos fluidos: contexto ritual. No caso de ter matado e cheirado a fumaça do pelo queimado
do macaco cairara, por exemplo, o caçador poderá sentir dor de cabeça. O canto
Na pele de Yube tem todos os desenhos possíveis. A cobra tem vinte e cinco malhas, ritual identificará o duplo do animal que está se vingando, dançando na cabeça do
mas cada uma dá vários outros desenhos. No fim das contas, todos os desenhos per-
seu matador, e o retirará no mesmo ato. Deste modo o caçador escapa da armadi-
tencem à mesma pele da jiboia. (Agostinho Manduca Kaxinawa)
lha montada pela sua própria vítima.
O desenho da cobra contém o mundo. Cada mancha na sua pele pode se abrir e
Segundo Leôncio, mais respeitado especialista kaxinawa do ritual de nixi pae
mostrar a porta para entrar em novas formas. Tem vinte e cinco manchas na pele de
Yube, que são os vinte e cinco desenhos que existem. (Edivaldo Domingos Kaxinawa) e filho de um importante xamã, com quem trabalhei na tradução dos cantos de
ayahuasca, é preciso cantar tudo que se ingeriu, tudo que se comeu, os macacos, as
Quando a gente toma o sangue dele, ele nos mostra tudo que ele fez na vida, sua
aldeia, sua ciência. Yube se transforma em várias coisas, várias cobras, plantas, cipós, queixadas, e também o tabaco, a pimenta, e, evidentemente ,os próprios ingredien-
em gente, em água, em pássaro. Todas as malhas dele podem se transformar em mira- tes da bebida do nixi pae, o cipó forte (Banisteriopsis caapi) e a folha kawa (cha-
ção. O kene é Yube se apresentando. Dami, as figuras, é que nem yuda baka, a sombra crona). O laço entre substância e imagem é direto: a pessoa vê o (duplo daquele)
do corpo. Você vê, mas você não segura. Vai embora depois do nixi pae. É o dami, que ingeriu. A pessoa se torna parcialmente o que comeu/matou. Para se vingar,
a transformação do nixi pae do yuxibu. Ele morreu, mas não morreu. Porque seu os duplos dos seres mortos ou comidos por alguém procuram cobrir o bedu yuxin
corpo se transformou no cipó. Yube é nosso Deus. Ele deixou essa bebida para seu
pessoal não chorar mais, não ter mais saudades dele, porque ele está aí, se mostrando. (espírito do olho) do matador com suas roupas, tadi (no caso da queixada), suas
Assim como seu filho vai ver tudo que você fez na vida, porque ele veio de dentro, o decorações corporais, seus colares e desenhos (no caso do dono da ayahuasca, Yube,
cipó, quando está dentro de você, te faz ver aquilo que é dele.” (Agostinho Manduca, a anaconda). Todos estes atributos são agenciamentos do ponto de vista do duplo
Kaxinawa). do animal ingerido que vem capturar o yuxin do agressor para aprisioná-lo em um
novo corpo, aquele que o duplo perdeu. O que vê aquele que está sob o efeito do
Estas citações se referem claramente ao tema da passagem do grafismo à
nixi pae não é simplesmente ou somente o outro sob a forma de uma humanidade
figuração virtual, imagem mental que não se dá a ver no desenho, mas que pode
comum, mas sua própria interioridade – seu espírito do olho – englobada pelas
ser vislumbrada por aqueles que estão preparados para tal a partir de um engaja-
roupas, peles e decorações corporais daqueles outros que ele acabou de ingerir,
mento real do olhar com a experiência visual sugerida, ativado pelo canto e pelo
aquele que, englobado pela ingestão, retorna para englobar seu agressor com suas
nixi pae. As frases nos remetem ao tema da técnica da transformação visual. Os
imagens. A relação entre imagens, substâncias, fluidos e corpos é portanto alta-
Kaxinawa conhecem várias técnicas de mediação que os permitem passar de um
mente relacional e transformacional. Os grafismos aderem às peles tanto durante a
7 Igualmente, entre os Siona “depois de ingerir o yagé, os cantos do xamã transformam-se em caminhos
vida cotidiana como durante a experiência visionária, tornando a pele transparente
visuais que guiam as viagens dos participantes pelo cosmos” (Ver Langdon neste volume). e permeável, e é deste modo que corpos se tornam também intercambiáveis.

76 77
uma reflexão sobre uma arte perspectivista els lagrou

a figuração dos corpos canto ritual designa o banco pela fórmula “duas pernas com um buraco no meio”,
figurando a base do corpo, que o sustenta. O banco é feito das raízes tubulares
As sociedades ameríndias, especialmente as amazônicas, produzem muito pouca
da sumaúma, considerada “árvore da vida” (Lagrou, 2002b, 2007b). Este banco é
figuração, tão pouca que poderíamos nos perguntar se os amazônicos são “ico-
esculpido pelo pai – como o é o feto na barriga da mãe – e pintado com jenipapo
nofóbicos” (Taylor, 2010; Lagrou 2005, 2007). Onde estão as imagens?8 Proponho
pela mãe – como o será a criança durante o rito de passagem e depois dele.
a hipótese de que o extenso uso da abstração e a economia no uso da representa-
A imagem sintetiza os elementos mínimos que caracterizam a maneira de
ção figurativa nas expressões bidimensionais ameríndias (pintura corporal, tece-
agir do modelo, e é por esta razão que ela é um índice antes que um símbolo ou
lagem e cestaria) se explicam pelo fato de os motivos serem aplicados e ajudarem
ícone do seu modelo (Gell, 1998; Lagrou, 2003). O tipiti entre os Wayana, por
a constituir superfícies que contêm corpos. O fato de muitos mitos de origem dos
exemplo, é um artefato que partilha com a boa a capacidade de espremer, e é isso
sistemas gráficos ameríndios fazerem o aprendizado ou a aparição dos motivos
que se quer que ele faça com a pasta de mandioca. O tipiti, no entanto, não tem
gráficos coincidir com a técnica do trançado ou da tecelagem sugere que o desenho
nem cabeça nem rabo, o artefato precisa ser incompleto para não correr o risco de
é um elemento constitutivo na fabricação da pele e da superfície do artefato em
se transformar na boa, seu modelo, um ser independente que devora seres huma-
geral. Outros mitos, por sua vez, apresentam a pintura do corpo com determinados
nos (Van Velthem, 2003: 130; Lagrou, 2009a).
motivos como técnica de transformação utilizada em tempos míticos por huma-
O mesmo entrelaçamento entre técnicas de produção de seres vivos e artefa-
nos querendo devir animais. Ambos grupos de mitos se reforçam mutuamente.
tos se encontra entre os Pirahã, que afirmam imitar, nos seus exercícios perma-
Estes sistemas gráficos coexistem com uma arte figurativa muitas vezes mini-
nentes de inventar coisas novas, as técnicas que Igagai, deus criador, utilizou para
malista que desenvolve ao extremo a lógica do “modelo reduzido” de Lévi-Strauss
criar os animais e artefatos nos níveis celestes. Como ele, os Pirahã fabricam pri-
(1964), como se pode notar nos antropo- e zoomorfismos discretos dos bancos
meiro miniaturas que serão retomadas em escala maior quando bem-sucedidas.
xinguanos e tukano, dos bonecos karajá, dos vasos shipibo, das efígies asuriní e
Os acidentes sofridos pelos humanos em consequência de agressões predatórias
dos maracás araweté, para dar apenas alguns exemplos. Estes artefatos são todos
de animais ou plantas produzem por sua vez os abaixi, seres celestes caracteriza-
considerados como quase corpos. As indicações de sua especificidade corporal
dos pelas deformações sofridas pelos corpos humanos (Gonçalves, 2001). A ori-
vão desde indícios extremamente sutis à figuração completa.9
gem dos seres celestes é assim o resultado de uma fabricação invertida, uma sorte
Para Lévi-Strauss, o conhecimento estético do mundo implica no poder de
de antiprodução que tem o evento e sua imprevisibilidade como motores.
agir sobre o mundo. A fabricação do modelo reduzido, um método privilegiado
pela arte para fazer face à complexidade cognitiva do mundo, é ao mesmo tempo
abstracionismo
um modo de obter a capacidade de agir sobre este mesmo mundo. O banco utili-
zado pelas crianças kaxinawa é um exemplo desta lógica segundo a qual os arte- Desde o final dos anos 1980, vários especialistas americanistas assinalaram a impor-
fatos são como modelos reduzidos de corpos. A fabricação deste banco reproduz tância de uma tendência à abstração nos grafismos ameríndios e colocaram em
a fabricação do corpo da criança, que é um artefato tanto quanto o banco o é. O questão a abordagem representacionalista da arte indígena.10 Em vez de se concen-
trar unicamente numa possível relação entre o grafismo e a comunicação verbal,
8 Se os criptogramas funcionam em articulação com contextos de enunciação verbal, como Severi demons-
trou para o caso Cuna, os grafismos amazônicos são, na maioria dos casos, associados a conceitos de como era a regra até então nos estudos de antropologia da arte, estes autores perce-
pessoa e corporalidade. Onde encontramos figurações iconográficas, como na cestaria dos Wayana e beram que o sentido do grafismo residia frequentemente antes nas características
Yekuana na região das Guianas, notamos a produção de imagens minimalistas dos grandes predadores
sobrenaturais trançados pelos homens em contextos associados à transmissão de conhecimentos esoté- globais do estilo do que nas unidades mínimas de significação. Os precursores desta
ricos e míticos (Van Velthem, 2003; e Guss, 1989). No caso yekuana, no entanto, Guss nota uma maior abordagem são Lévi-Strauss nos seus escritos sobre a pintura facial kadiwéu (1973
valorização da abstração do que da figuração. Na medida em que o aprendiz avança na sua iniciação na
arte do trançado e da narração dos mitos, os motivos utilizados se tornam cada vez mais abstratos.
[1955], 1974 [1958]); Boas na sua obra sobre a arte dos índios do Norte das Améri-
9 Nota-se que artes indígenas produzidas para fora, tanto no contexto educativo como no de venda, se cas (1928); e, fora do ambiente americano, Bateson no seu artigo sobre a pintura
tornam mais figurativas e alegóricas. Em estudo sobre os vasos funerários amazônicos, Barreto (2008),
arqueóloga, nota que os vasos arqueológicos da região amazônica apresentam muito mais figuração 10 Roe, 1975; Gow, 1989, 1999, 2001; Gebhart-Sayer, 1986; Illius, 1987; Guss, 1989; Lagrou, 1991, 1995, 1998,
que a cerâmica indígena contemporânea. 2003, 2005, 2007, 2009b; Taylor, 2003, 2010.

78 79
uma reflexão sobre uma arte perspectivista els lagrou

balinesa (1977). Este último argumentava que a mensagem metacomunicativa de Lá onde não se quer ver outra coisa que o vazio, uma falta de referência à natureza,
um quadro, acessível pelo estilo que faz perceber a necessária complementariedade encontra-se uma reflexão sobre o olhar. (Severi, 2012: 61)
entre os opostos, é mais importante que o tema explícito representado (ver Lagrou,
O que tenho tentado demonstrar nos meus estudos sobre os Kaxinawa ilustra
1998, 2007). Lévi-Strauss, por outro lado, focaliza a atenção sobre o estilo global do
uma ideia afim a esta expressa por Kandinsky (Lagrou, 1991, 1995, 1998, 2002a,
grafismo, a relação entre as linhas, assim como entre o grafismo e o suporte.11
2007, 2011). Este grafismo, como técnica de educação do olhar, compreende a este
A utilização do termo “abstrato” num contexto radicalmente distinto daquele
último como um envolvimento ativo do espectador com o espaço cinético criado
da arte ocidental não é evidente e precisa ser justificada. Grafismo “geométrico”
pela relação entre as linhas. Como os artistas ocidentais do movimento abstracio-
ou “anicônico” poderia ser considerado como alternativa, mas estes termos signi-
nista, os artistas kaxinawa e seus congêneres de outros povos amazônicos visam
ficariam mais uma conclusão do que um ponto de partida para a análise. O termo
produzir uma percepção espacial nova através do jogo entre as linhas que não
anicônico, por exemplo, não dá conta da especificidade de sistemas gráficos que
substitui um espaço preexistente, mas se superpõe a este. A transformação artís-
podem conter índices icônicos velados.12 Nosso caso também não corresponde a tica da percepção espacial consiste, portanto, numa superposição e não em uma
uma geometrização de imagens que possuem figuras como modelo. O modelo substituição. Esta superposição permite por sua vez passar alternadamente de
está antes em um modo de execução que veda a visualização da figura final para uma percepção a outra, como em um jogo de contraste entre figura e contrafigura.
garantir o equilíbrio da relação entre as linhas. Esta observação encontra confir- O aparecimento de detalhes assimétricos que rompem a simetria do con-
mação no fato de os sistemas gráficos serem sistematicamente associados à escrita junto do desenho é um fenômeno estético que se encontra com certa recorrência
antes do que à figuração, pelos indígenas. As figuras que se escondem nos gra- em diversos estilos gráficos (Gell, 1998: 160). Entre os Kaxinawa, este pequeno
fismos parecem antes efeitos secundários de uma lógica gráfica própria que tem detalhe assimétrico, que batizei alhures de punctum (1991, 1998, 2002, 2007),
por principal interesse as relações entre as linhas do que um fim em si. Os povos é introduzido de maneira totalmente intencional e sistemática, o que o torna
que distinguem conceitualmente grafismo e figura tendem a associar o primeiro à cognitivamente saliente. No pensamento ameríndio, a ideia de duplo implica
escrita dos brancos e a segunda ao domínio dos duplos, como os reflexos na água em diferença (Lévi-Strauss, 1991). A dualidade na singularidade é possível, mas a
ou no espelho, as fotos, os filmes e os espíritos. igualdade duplicada, não. A ideia é de criar seres de uma mesma classe, jamais a
O termo “abstrato” abre possibilidades de interpretação interessantes, porque de produzir clones ou réplicas. Uma simetria perfeita é inconcebível no mundo e
permite explorar as “conexiones parciais” (Strathern, 2004) entre arte abstrata oci- na arte kaxinawa (Lagrou, 1998, 2002, 2007).
dental e “sistemas complexos de desenho” da Amazônia ocidental, colocando em
evidência os mecanismos cognitivos do pensamento formal. Se, citando Severi, estas
tradições iconográficas não ocidentais se fundam em princípios muito diferentes
da imitação da natureza, o problema da representação “abstrata” não é “(…) nem
própria à arte moderna, nem reservada à tradição ocidental” (Severi, 2012: 60). Um
trabalho recente de Severi sobre “o que está em jogo na relação de Lévi-Strauss com
as imagens” conduz a uma análise antropológica da arte ocidental que “visa a abs-
tração”. Minha aproximação vai na direção contrária, propondo uma análise da
arte ameríndia que tende à abstração.
Para a arte espiritual (termo que para ele é sinônimo de abstrato) que professa Kan-
dinsky, o mundo não é mais o tema da representação. O que o artista deve visar,
abandonando as aparências, é o ato mental que a percepção do mundo supõe (...)

11 Ver Lagrou (2012) para uma análise das raízes do paradigma presentacionalista na etnologia ameríndia
nos escritos dos anos setenta de autores como Clastres, Deleuze e Guattari e Lévi-Strauss.
Figura 5: banco kaxinawa, punctum.
12 Para uma discussão crítica da distinção entre os termos “icônico” e “anicônico”, ver Gell, 1998.

80 81
uma reflexão sobre uma arte perspectivista els lagrou

Entre os Ameríndios, o jogo entre simetria e assimetria é variado. No gra-


fismo kadiwéu se nota uma tensão entre a aparente assimetria do desenho (cujos
surpreendentes arabescos não se repetem nunca de maneira totalmente idêntica) e
a simetria englobante da “representação desdobrada”: invertidas, as duas metades
são separadas por um eixo oblíquo como numa carta de naipe. Nos encontramos,
neste caso, frente a uma simetria disfarçada de assimetria. O mesmo jogo de des-
dobramento invertido e oblíquo pode ser encontrado na cestaria pareci, mas desta
vez trata-se de uma assimetria disfarçada de simetria aparente.

Figura 6a: foto kadiwéu (autoria: Darcy Ribeiro, Coleção Museu do Índio, Rio de Janeiro).

Figura 7: cesto pareci.

A produção de profundidade no espaço perceptivo, através de uma dialé-


tica entre as linhas mais grossas do desenho que englobam linhas mais finas que
prenchem o espaço, pode ser notada com mais clareza na arte gráfica piro e shi-
pibo-konibo, assim como em várias artes arqueológicas – na cerâmica marajoara
e de Santarém, por exemplo –, do que no grafismo kaxinawa. Esta diferença esti-
lística pode estar relacionada ao fato de estes estilos gráficos terem o corpo e a
Figura 6b: desenho kadiwéu (coleção Darcy Ribeiro, Museu do Índio, Rio de Janeiro). cerâmica como suporte e técnica original, enquanto o grafismo dos Kaxinawa e

82 83
uma reflexão sobre uma arte perspectivista els lagrou

outros estilos gráficos amazônicos têm a tecelagem e o trançado como origem


dos motivos (ver mitos citados acima). Se no caso dos tecedores a dinâmica de
inversão entre figura e contrafigura é mais desestabilizante, no caso dos ceramistas
a relação assimétrica entre dois tipos de linhas possui como efeito a produção de
mais profundidade perceptiva e de uma maior transparência do suporte (Lagrou,
2010, 2012 e Belaunde neste volume).13
A intercambiabilidade entre figura e fundo visa antes desfazer a possibilidade
de delimitar uma figura sobre um fundo do que confirmá-la. David Guss para os
Yekuana e Peter Roe para os Shipibo-Konibo foram os primeiros a notar, no uni-
verso dos grafismos ameríndios, uma afinidade entre um estilo de ver e um estilo
de pensar. Existiria uma afinidade entre a inversão de figura e fundo, consequência
de uma simetria cinética dos motivos, e a percepção indígena de uma simultanei-
dade entre os lados visíveis e invisíveis da realidade, segundo Guss (1989), e entre
esta ambiguidade estilística e uma “ambiguidade mental”, segundo Roe (1975). Na
sua análise da relação entre ver e pensar, os autores não vão além desta observação
(Lagrou 1998, 2002, 2007). O resultado deste jogo entre figura e contrafigura nos
grafismos ameríndios, no entanto, vai além, pois projeta o espectador para dentro
do espaço gráfico delineado pelo grafismo.
Este aspecto atuante dos grafismos labirínticos também foi observado por
Alfred Gell (1998: 66-95): dos labirintos gregos ao kola indiano, estes labirintos
gráficos capturam o olhar e fazem a pessoa ou o espírito que os olha se perder
como em um labirinto. O aspecto de armadilha do kene, ligado a sua estrutura
labiríntica, aparece de maneira explícita na fala kaxinawa, a começar pela pala-
vra kene, que designa desenho, escrita, cerca (o recinto onde a moça púbere está
reclusa durante sua primeira menstruação) e armadilha (Montag, 1981: 183). Se
a ideia de encerramento do kene remete à capacidade do desenho de delimitar
e desta maneira criar um espaço, a ideia de armadilha se refere ao aspecto ani-
mado do desenho. Era por esta razão que um doente não podia dormir em uma
rede coberta por desenhos; seu bedu yuxin (espírito do olho) poderia ser captu-
rado pelos desenhos e não conseguir mais voltar a seu corpo (Keifenheim, 1996;
Lagrou, 1998, 2007). Outro aspecto notado por Gell é a “viscosidade” (stickiness)
deste tipo de ornamentação. A ornamentação serviria para amarrar o proprietário
a seu objeto. Um objeto com desenhos é animado, adquire agência própria pelo
dinamismo interno ao grafismo (Gell, 1998).

13 Lagrou, 2010 e 2012: papers apresentados no seminário de São Carlos e no Quai Branly (ver nota 2). Figura 8a: tecido shipibo.
Belaunde neste volume desenvolve esta hipótese de produção de profundidade e movimento para o
caso shipibo-conibo.

84 85
uma reflexão sobre uma arte perspectivista els lagrou

Figura 9: morteiro de tabaco kaxinawa.

Quando o punctum, o detalhe assimétrico, se torna demasiadamente visível,


passa a ser o ponto de partida para a produção de um novo motivo dentro do
mesmo tecido (Lagrou, 1998, 2007). Um motivo gera outro, e nenhuma destas
imagens é imagem de outra coisa a não ser deste movimento intraimagético. Este
último princípio formal das pequenas variações que podem resultar em novos
motivos se encontra nos grafismos kaxinawa, wauja, waiãpi e sharanhua.14 Neste
sentido, vemos que o punctum constitui uma tecnologia da transformação interna
à estrutura da imagem. Barcelos notou igualmente o rendimento das pequenas
variações no grafismo wauja, onde as variações mínimas entre os motivos são uma
Figura 8b: cerâmica marajoara (Cristina Barreto GI 148 A). maneira eficaz de assinalar a proximidade das máscaras entre si (2005).
Outro aspecto formal é crucial para prosseguir com minha comparação des-
tes grafismos ameríndios com o abstracionismo. Trata-se da interrupção siste-
mática do desenho no momento em que ele se torna reconhecível, o que sugere
a continuidade do desenho para além do suporte. Este dispositivo estilístico é
um elemento importante da significação do desenho na ontologia kaxinawa: o
papel que joga na transição entre percepção imaginativa e imaginação percep-
tiva (Lagrou 1998, 2007). Atualmente os Kaxinawa produzem frequentemente,
originalmente para venda, mas também para uso próprio, tecidos inteiramente
cobertos por desenho (Figura 11), enquanto, nas coleções antigas (de Schultz, H.
1950-1951, São Paulo, usp/mae e de Kensinger, cf. Dwyer, 1975), somente uma faixa
estreita do tecido era com desenho (Figura 10). Se os desenhos são armadilhas
para o espírito do olho, somente os tecidos destinados aos brancos constituem
armadilhas completas. As armadilhas produzidas para uso interno se contentam
em dar as pistas. Notamos o mesmo procedimento na tecelagem Yudjá (Figura 16)
e na cestaria xinguana (Figura 13).

Figura 8c: cerâmica asurini (foto: Els Lagrou, coleção Regina Müller, Museu do Índio, Rio de Janeiro).
14 Wauja (Barcelos Neto, 2008); Waiãpi (Gallois, 2002); Sharanhua (Déléage, 2007).

86 87
uma reflexão sobre uma arte perspectivista els lagrou

Os Shipibo vão ainda mais longe na importância atribuída à percepção ima-


ginativa. Não existe consenso entre os especialistas sobre se, antigamente, os Shi-
pibo-konibo usavam a pintura corporal no cotidiano, como o fazem os Kaxinawa
e os Kayapó, por exemplo, ou se a pintura corporal marcava eventos rituais impor-
tantes, como a festa da moça nova entre os Piro. É fato, no entanto, que hoje em dia
não se usa a pintura corporal em dias comuns. Todas as pessoas, apesar disso, pos-
suem seu desenho corporal, mas este é invisível para os olhos humanos. Somente
os xamãs podem visualizá-lo, diagnosticar seu estado e consertá-lo quando sob os
efeitos da ayahuasca (Gebhart-Sayer, 1986; e Illius, 1987).
Também entre os Asuriní e os Karajá (Figura 15), o desenho sugere conti-
nuidade além dos limites do suporte. Dawson (1975) e Müller (1990: 232) quali-
ficam este aspecto como “janela ao infinito”. Os Kaxinawa valorizam este aspecto
de independência do grafismo com relação ao suporte, colocando o motivo de
modo oblíquo sobre o suporte. Outra maneira de jogar com a tensão entre visibi-
lidade e invisibilidade é tecer ou trançar sem utilizar cores contrastantes. O umin
kene, nome dado a esta técnica utilizada para as redes, é muito valorizado pelos
Kaxinawa por causa da sua dificuldade tanto na fabricação como na percepção.
Os cestos são trançados seguindo a mesma técnica. Quando são novos, podem ter
os contornos dos motivos realçados com urucum, mas esta ajuda à percepção se
apaga aos poucos com o tempo (Figura 14).

Figura 11: rede com motivos dunuan kene (desenho da anaconda) e hua kene (desenho de flor).

Figura 10: saia feminina com motivo de nawan kene (desenho do inimigo)
(Coleção Schultz, MAE, São Paulo, 1950-1951).

88 89
uma reflexão sobre uma arte perspectivista els lagrou

Figura 14: cesto kaxinawa sem contraste de cor.

Figura 12: rede contemporânea com faixa de desenho.

Figura 15: banco karajá.

Figura 13: cesto xinguano com faixa de desenho com cores contrastadas.

90 91
uma reflexão sobre uma arte perspectivista els lagrou

A quimera (pode ser definida) como a associação em uma só imagem de traços hete-
rogêneos provenientes de seres diferentes. A quimera grega, corpo monstruoso, que
associa serpente, leão e pássaro, é um exemplo bem conhecido (Severi, 2007: 69-70).

Segundo Philippe Descola, este tipo de imagem, ser composto no qual se


mantém a diferença entre as partes que o compõem, é um procedimento de figu-
ração que ilustra bem o pensamento analogista (2010b: 22-24). Severi observa,
entretanto, uma diferença crucial para nosso argumento entre a quimera grega e
a quimera hopi, diferença que nos coloca no caminho da transformação própria
à arte ameríndia:
Não obstante, está claro que a quimera hopi oferece aos olhos muito menos deta-
lhes, ela simplifica sua estrutura. É sobre a base desta convencionalização (…) que
ela provoca uma projeção que é realizada pelos olhos e que, desta maneira, faz ati-
vamente surgir sua imagem completando-a. Aqui temos que observar dois pontos:
não somente a imagem se divide em duas partes, uma material e outra mental, mas
o espaço no qual a imagem se completa é inteiramente mental. Na cerâmica hopi,
somente o suporte da vasilha, plana ou convexa, dá aos olhos alguma indicação sobre
o espaço no qual situar a imagem. Qualquer outra indicação é o fruto de um ato do
olhar que é feito ao mesmo tempo de projeção e de associação. Descobrimos desta
Figura 16: saia yudjá (coleção Tania Stolze Lima).
maneira uma diferença crucial entre a quimera grega e a quimera hopi. Nem sua rela-
ção com o invisível nem sua maneira de engendrar um espaço mental são do mesmo
tipo. Enquanto resultado de uma convencionalização iconográfica, a quimera hopi é,
a quimera
portanto, um conjunto de índices visuais onde o que é dado a ver convoca necessaria-
Como o movimento abstracionista da arte ocidental, o grafismo kaxinawa e outros mente a uma interpretação do implícito. Esta parte invisível da imagem se encontra
totalmente engendrada a partir de índices dados dentro de um espaço mental. Existe
estilos ameríndios induzem a uma focalização da atenção que visa mais o agen- um princípio que sustenta a estrutura destas imagens-quimeras, onde a associação de
ciamento e enquadramento do olhar – produzindo transparência, movimento e traços heterogêneos implica necessariamente uma articulação particular entre o visí-
profundidade no interior do próprio espaço gráfico – do que a representação de vel e o invisível. Esta estrutura por índices, onde a condensação da imagem em alguns
figuras externas. Mas há mais. Apesar de “abstrato”, este grafismo pode abrir para traços essenciais supõe sempre a interpretação da forma por projeção, e portanto
por preenchimento das partes faltantes, tem uma consequência importante: ela con-
a percepção de uma figuração virtual, imagem mental que não é dada a ver, mas
fere à imagem uma saliência particular que a distingue de outros fenômenos visuais
que é formalmente sugerida. É por esta razão que o grafismo kaxinawa pode ser (Severi, 2007: 70) (Obs.: Os grifos no texto são meus).
visto como uma versão “abstrata” da lógica quimérica das imagens exploradas por
Warburg e Severi para as imagens figurativas (Severi, 2007). Para além da capacidade mnemônica deste tipo de imagem, sublinhada por
O que é uma quimera? O termo pode remeter a dois tipos de fenômenos que Severi, o que me interessa aqui é a relação entre uma ontologia específica, que
é importante distinguir. A definição proposta por Severi toma como ponto de par- coloca a transformação no centro das suas preocupações, e um estilo gráfico que
tida o caso da quimera hopi, povo norte-americano estudado por Warburg. Em joga constantemente com a tensão entre o que é e o que não é mostrado. Se olhar-
um estudo de desenhos infantis, Warburg encontrou imagens de serpentes-relâm- mos para um objeto a partir das operações mentais que estão implicadas nele,
pago: o relâmpago no céu é representado por uma serpente de duas cabeças. Com perceberemos uma grande diferença entre a quimera grega, realista e híbrida, e
o propósito de generalizar o tipo de operações mentais envolvidas nestes dese- a quimera hopi, minimalista, apelando a uma capacidade cognitiva de visuali-
nhos, Severi utiliza primeiro uma definição englobante do fenômeno quimérico: zar mentalmente os aspectos latentes que não são visíveis. O caso do grafismo

92 93
uma reflexão sobre uma arte perspectivista els lagrou

kaxinawa e de outros povos com desenho dialoga evidentemente mais com a sobre seus esquemas visuais me permitem formular esta hipótese do desenho
quimera hopi que com a grega. O caráter quimérico dos grafismos ameríndios enquanto passagem para a figuração virtual, mas penso que se pode estender esta
se refere mais ao movimento de transformação entre os corpos que ao caráter hipótese a outros sistemas gráficos.
composto dos seres, apesar da tensão resultante da simultaneidade das diferenças Os Asuriní nos oferecem uma ilustração paradigmática do que acabo de
também estar presente. dizer. Em vez de distinguir conceitualmente grafismo e figuração, como o fazem
Para indicar una interioridade comum e para mostrar a possibilidade da pas- os Kaxinawa, Piro, Wayana, Wauja e tantos outros, os Asuriní percebem a figu-
sagem da figura humana à figura de um urso ou vice-versa, Descola mostra, em La ração do invisível como parte integrante da “unidade mínima de significação”
Fabrique des Images, uma escultura asiática metade urso, metade humano, como que é o motivo tayngava (um ângulo de noventa graus), presente na maioria das
que em processo de transformação (Descola, 2010). Me parece, no entanto, que na pinturas corporais. Aqui toda abstração já aponta, portanto, para a figuração.17 A
maioria dos casos ameríndios será na arte abstrata do grafismo, geralmente feita imagem aflora entre as linhas do grafismo que aderem ao corpo, mas se torna uma
por mulheres, que encontraremos os índices de uma arte da percepção que não verdadeira figura somente quando se fabrica uma efígie, boneca muito minima-
revela a transformação, mas mostra o caminho para sua percepção. O espírito, lista que representa a alma nos rituais xamanísticos.
dono das imagens fluidas, de fato nunca se deixa capturar; o que ele faz é gerar Para os Asuriní, o grafismo se transforma aqui claramente numa figuração
mais e mais imagens perceptíveis entre as linhas de sua pele.15 virtual, permitindo-os, a partir de índices mínimos, completar mentalmente a
imagem da tayngava em imagem virtual de espíritos a’anga. Cito Müller:
da abstração à figuração (N)a mitologia, os heróis criadores são humanos: os animais têm a forma humana e
os espíritos atuais são antropomorfos. Os Asuriní dizem destes seres que eles eram
Espero que os exemplos mostrados tenham convencido o leitor do interesse de se todos avá (pessoas) no passado mítico. O homem se encontra, assim, no centro do
colocar em diálogo os grafismos ameríndios com o que chamamos aqui de “qui- pensamento asuriní: o homem é a imagem do ser, tayngava (Müller, 1990: 250).
mera abstrata”. Passamos agora a examinar um dos aspectos do caráter quimérico
destes grafismos, que consiste no fato de muitos deles sugerirem a possibilidade
de passar da imagem abstrata à imagem de uma figura a partir de índices sutis.
Sugiro a hipótese de existirem continuidades para os ameríndios, sobretudo
na Amazônia, entre os modos de figuração, de um lado, e os grafismos, de outro.
Proponho abordar concomitantemente as diferenças (conceituais e fenomenoló-
gicas) e as relações entre figurações e grafismos. Sugiro que no quadro de uma
cosmologia transformacional amazônica a relação entre grafismo e figura seja
também uma relação de transformabilidade, o grafismo sendo um caminho para
a visualização de imagens virtuais. É por esta razão que os desenhos não represen-
tam outra coisa além do próprio ato de ver que se foca na superfície para ultrapas-
sá-la. “O desenho é um caminho”, dizem literalmente os Kaxinawa, assim como
seus vizinhos pano,16 uma “porta de entrada”: ele se refere a outras imagens, todas
elas igualmente em movimento. As exegeses explícitas fornecidas pelos Kaxinawa

15 La chute du ciel, de Davi Kopenawa e Bruce Albert (2010) e A floresta de cristal, de Viveiros de Cas-
tro (2006) apontam na mesma direção de uma ontologia xamanística onde, se o espírito é imagem
(os dois conceitos são usados de modo indistinto por Davi), nunca existirá a verdadeira ou única Figura 17: motivo tayngava asuriní (coleção Darcy Ribeiro, Museu do Índio, Rio de Janeiro).
imagem a representar o espírito. Ver também Lagrou (2012). A intensidade vai acompanhada de
multiplicidade. 17 O mesmo fenômeno parece ser encontrado em outros grupos de língua tupi estreitamente aparenta-
16 Para os Yaminahua, ver Townsley, 1993: 449-468. dos aos Asuriní (Fabíola Silva, antropóloga e arqueóloga especialista dos Asuriní, com. pess.).

94 95
uma reflexão sobre uma arte perspectivista els lagrou

Recentemente, um motivo muito parecido foi identificado entre diversos A arte do kene não revela sua tendência à figuração facilmente; as únicas ima-
povos do complexo interétnico do Alto Xingu. O motivo, aparentemente abstrato, gens que revelam o que a arte abstrata quimérica do kene insiste somente em suge-
recebeu vários nomes nos diferentes povos xinguanos, desde “motivo de peixe” a rir são os desenhos a meio caminho entre kene e dami feitos pelos homens para
“desenho de borboleta”, mas tanto o material wauja como o kalapalo apontam para um público não indígena. Constatamos o mesmo fenômeno no seguinte tecido
seu caráter antropomorfizante. Todo ser que recebe este desenho tem capacidade Shipibo, feito para venda:
de ação humana, e o próprio esquema do motivo aponta para os elementos míni-
mos de representação da figura humana (Barcelos Neto, 2008; Guerreiro, 2012).
O motivo nawan kene poderia ser analisado na mesma direção como um
motivo que aponta para a antropomorfização dos seres, mas é importante obser-
var que, neste caso, se trata mais de linhas que apontam para a relação entre dois
do que de uma unidade mínima de significação. O grafismo kaxinawa não é uni-
tário ou identitário: mostra que seres surgem do entre-dois,18 do tocar das linhas
entre as quais se pode vislumbrar uma figura. Entre os Kaxinawa, a arte gráfica e
a experiência visionária falam de uma mesma capacidade perceptiva que consiste
em vislumbrar o ser a partir de uma relação entre as linhas que se tocam.

Figura 19: tecido Shipibo com figura de boa e anta.

Os Kaxinawa possuem muitos nomes de motivos e desenhos, mas insistem


em afirmar que seu desenho “é um só” (habiaski) e que ele serve para assinalar o
que os “seres com desenho” (keneya) têm em comum, não o que os diferencia. Os
“seres com desenho” possuem também um yuxin forte, são os donos da transfor-
mação (Lagrou, 1995), como “a onça pintada” (inu keneya), a anaconda (yube) e a
boa (sidika), certas plantas utilizadas para modificar a percepção,19 como o bawe e
o mani pei keneya, as borboletas com desenho, a tartaruga e outros. As mulheres
me confirmavam diversas vezes que os nomes dos motivos são somente nomes, e
uma anciã me confiou: “nukun kene yuxinin hantxaki” (nosso desenho é a língua
dos espíritos) (Lagrou, 1998, 2007). Por outro lado, já que todo “ser com desenho”
(keneya) possui seu desenho, assim como seu nome e seu canto, estes três índices
funcionam como operadores mnemotécnicos: o nome, o canto e o desenho.
Figura 18: desenho nawan kene.
19 Plantas que mudam a perspectiva se encontram em toda a área pano, entre os Shipibo-Conibo (Col-
pron, 2004 ; Belaunde 2009 ; e.o.), entre os Yaminahua, Katuquina (Cofacci, 2000 ; cf. Lagrou, 2007),
18 Para uma elaboração etnográfica aprofundada do conceito “entre-dois”, ver Lima (2005). Yawanawa (Perez, 1999 ; cf. Lagrou, 2007) e Sharanahua (Déléage, 2009).

96 97
uma reflexão sobre uma arte perspectivista els lagrou

Figura 20: Isu meken (mão de macaco), desenho de Augusto Feitosa Kaxinawa. Figura 21: Viagem com ayahuasca, de Arlindo Daureano Kaxinawa.

98 99
uma reflexão sobre uma arte perspectivista els lagrou

O desenho resultante era malfeito e corria o risco de se tornar uma figura


(dami) em vez de um grafismo (kene) de verdade (kuin), o verdadeiro desenho
que segue as regras da composição estilística.20 Ficou claro para mim neste evento
que pintar desenhos sobre a pele não equivalia à projeção de um dispositivo sobre
uma superfície qualquer. Foi a partir deste momento que me pus a observar o pro-
cesso de composição de um desenho pelas pintoras kaxinawa, processo este que
reconstituo na figura que segue (Lagrou, 1991, 2007). Compreendi então que se a
desenhista se concentra sobre a relação entre as linhas, ela obtém um desenho que
é visualizado enquanto tal somente no final, desenho este que responde às exigên-
cias estilísticas de alternância entre figura e fundo. O resultado é uma percepção
labiríntica que não revela de imediato as figuras possíveis.

Figura 22: desenho sobre papel por Francisco Filó Kaxinawa, que sugere
a passagem do kene (grafismo) ao dami (figura).

A importância perceptiva da diferença entre desenho gráfico (kene) e figura


(dami) se revelou para mim quando vi a reação à primeira pintura facial que exe-
cutei em campo, depois de ter me exercitado longamente sobre um papel. A jovem
mulher que eu tinha pintado, depois de se olhar no espelho, não escondia sua
insatisfação e se apressou em apagar o desenho malfeito. Eu tinha pecado, visi-
velmente, pela técnica de composição, ao não respeitar a focalização perceptiva
que a preside normalmente. Eu tinha de fato visualizado mentalmente o motivo Figura 23: desenho reproduzindo a constituição progressiva de dois motivos kaxinawa, o isu meken
final que queria obter. E foi justamente aí que residiu o problema: ao desenhar (mão de macaco) e o xamanti (colocar no meio) (Lagrou, 1991: 142; 2007).
a figura geométrica, perdi de vista a relação entre as linhas (elas tinham que se
tocar, que manter a mesma distância entre elas), assim como entre as linhas e a 20 Ver Langdon (1992 e neste volume) sobre como os Siona distinguem “desenhos de verdade” de “dese-
nhos feitos à toa” a partir da obediência de algumas regras precisas de composição. No caso siona, a
superfície irregular do rosto. A dinâmica própria ao grafismo tinha sido, deste capacidade perceptiva do aprendiz depende da sua experiência xamanística com ayahuasca (yagé).
modo, perdida, especialmente sua capacidade de criar uma alternância entre duas Somente verdadeiros xamãs, aqueles que de fato viram os espíritos, são capazes de gerar os desenhos
que a eles se referem; estes “desenhos do yagé” seguem uma lógica estilística precisa que consiste numa
percepções alternativas, dependendo do que se identifica como fundo ou figura: relação exata entre as linhas (não se pode fazer qualquer tipo de ângulo, eles devem ser retos, não
meu desenho só dava a ver uma figura estável sobre um fundo estável. curvos etc.).

100 101
uma reflexão sobre uma arte perspectivista els lagrou

Recentemente, Déléage constatou um procedimento similar entre os Shara- lógica, aquela de combinar as linhas sem visualizar a figura, obedecendo à dinâ-
nahua, vizinhos pano dos Kaxinawa: mica da “representação desdobrada” (Lévi-Strauss, 1955, 1958; Boas, 1928). Entre os
Sharanhua e Yaminahua, contrariamente aos Kaxinawa, os desenhos não cobrem
Em vez de desenhar uma cruz pela interseção, no meio, de dois traços idênticos,
os Sharanhua traçam primeiramente um ângulo reto de 90 graus (chevron) no qual a face inteira. Eles combinam desenhos de contornos delimitados, colocados nas
colam em seguida seu reflexo simetricamente invertido (Figura 24a). O quadrado, bochechas, com motivos que cobrem partes do rosto, como o queixo e os cantos
por sua vez, não se realiza através de um traço contínuo, mas resulta da mesma ope- da boca até as orelhas. O que sugere a lógica de composição que encontramos em
ração de simetria invertida aplicada a estes mesmos ângulos retos de 90 graus (Figura Déléage, no entanto, é que estes motivos escondem uma mesma lógica combi-
24b). Uma vez isolado, este simples motivo, para o qual os Sharanahua não possuem
nome particular, permite reconstruir todos os motivos de seu repertório gráfico natória das linhas que são interrompidas desde o momento em que o motivo se
(Déléage, 2007: 100-101). torna reconhecível. Esta interpretação revela a grande continuidade formal entre
os diferentes estilos de grafismo pano.

Figuras 24 a e b: Como os Sharanahua desenham uma cruz ou um quadrado


(desenho a partir de Déléage).

Tendo deste modo identificado os elementos de base não nomeados, o autor


Figura 25a: foto de mulher com yaminahua kene nas bochechas.
menciona as operações gráficas que “colocam em jogo as leis bem-conhecidas da
composição onde reconhecemos a simetria (em espelho ou invertido), a trans-
lação e a rotação” (Wasburn e Crow, 1988) (ibid.). Mas olhemos mais de perto
a constituição dos “motivos simples”, o quadrado e a cruz. Se compararmos as
figuras kaxinawa e sharanahua, constatamos que sua composição segue a mesma

102 103
uma reflexão sobre uma arte perspectivista els lagrou

Para Lévi-Strauss, a artificialidade da ordem espacial, imposta pelo grafismo


sobre a geografia anatômica do rosto, tornava visível a dupla identidade de seu
portador, ao mesmo tempo em que transformava profundamente sua aparência.
Longe da lógica da maquilagem que serve para reforçar a fisionomia natural do
rosto e para esconder suas imperfeições, nos encontraríamos aqui na lógica da
máscara – uma máscara, no entanto, que, em vez de esconder a aparência original,
intencionava sua transformação ambivalente, deixando transparecer a dualidade
constitutiva da pessoa, que se tornaria duas em uma. O grafismo cria deste modo,
poderíamos dizer, uma “identidade complexa”, uma “quimera”.
A tensão dinâmica entre desenho e rosto, entre grafismo e suporte, pode, no
entanto, remeter à outra dualidade que não aquela da oposição entre natureza e
cultura presente na metáfora da máscara usada por Lévi-Strauss. Se levarmos em
conta o fato de o grafismo ajudar na constituição de uma pele, é importante atentar
para seu papel de mediação na constituição de uma interface entre um conteúdo
e um continente, um interior e um exterior. As linhas traçadas não deixam intacto
seu suporte, mas o transformam. Quando os Kaxinawa, Shipibo e Kadiwéu pin-
tam o próprio rosto, eles o secionam segundo eixos espaciais pertencentes à lógica
Figura 25b: yaminahua kene (benimai kene: desenhos para alegrar) a partir dos desenhos estilística em questão: horizontalmente, verticalmente ou em diagonal. As linhas
yaminahua usados pelos Kaxinawa por ocasião do ritual de caça. traçadas vão gradualmente preenchendo o espaço demarcado à maneira de uma
filigrana, de um labirinto. O grafismo, ao produzir uma dinâmica e uma espaciali-
Um último exemplo da mesma região ainda merece nossa atenção; trata-se de dade próprias e internas às relações entre as linhas constitutivas do desenho, torna
vários desenhos ashaninka, grupo de língua arawak, da teia de aranha. Esta teia é visível a permeabilidade da pele, sua proximidade com as matérias tecidas e sua
sugerida através de uma pintura facial aplicada sobre o rosto e que funciona como profundidade velada.
armadilha “para atrair energias boas” (Wenki Pianko apud Beysen, 2008). Existem
duas maneiras de sugerir uma teia, e ambas apontam para o recorte no desenho
conclusão
que se dá antes mesmo de o desenho se tornar reconhecível. A primeira usa linhas:
Neste artigo visamos demonstrar como os Kaxinawa e seus congêneres se utili-
Nos motivos da teia de aranha [reproduzidos nas figuras 8 e 9 do artigo de Peter
Beysen (p. 242)], se realiza um recorte surpreendente. O que se vê é uma faixa com zam de várias “técnicas de mediação” para concretizar a passagem entre diferentes
linhas entrecruzadas, onde a teia apenas se sugere, não se completa. A faixa faz um pontos de vista. O estudo da “quimera abstrata” pode nos ajudar a examinar com
recorte num desenho invisível que continua além do suporte, ao modo dos moti- mais atenção as operações mentais específicas que permitem a passagem entre
vos kaxinawa (Lagrou, 2007). Este tipo de motivo surge nos carimbos esculpidos na diferentes modos de conhecimento no mundo ameríndio. A condensação ritual
madeira. No desenho, Wenki Pianko fez questão de enfatizar o ponto central da teia.
Quando este desenho é transposto para a pintura facial, o ponto central é igualmente engendra uma “realidade complexa”, diferente da realidade cotidiana (Houseman
desenhado (Beysen, 2008; e neste volume). e Severi, 1994). A prática estética gera igualmente realidades complexas que não
encontramos na realidade comumente observável. Neste sentido, o ritual, a arte
Se a primeira técnica lembra o estilo dos vizinhos pano, a segunda é diferente. – enquanto produção de imagens virtuais e materiais – e o xamanismo são todos
Ali vemos somente os pontos da teia, que precisa ser preenchida com linhas pelo “técnicas de mediação” entre o visível e o invisível, mostrando uma realidade que
olhar: “Temos a impressão de ver sugerida a costura, o encontro das linhas” (Bey- não é observável a olho nu.
sen, 2008 e neste volume).

104 105
uma reflexão sobre uma arte perspectivista els lagrou

Na combinação de um antropomorfismo discreto com um grafismo em fili- ______. La fabrique des images. Catalogue de l’exposition, Paris: Museu du Quai Branly,
grana que os recobre, encontra-se uma aplicação da centralidade da transforma- 2010b.
ção e das metamorfoses no mundo amazônico. O conceito de quimera abstrata, FRANCHETTO, Bruna (ed.). Ikú ügühütu higei, Arte gráfica dos povos karib do alto Xingu.
Rio de Janeiro: Museu do Índio/FUNAI, 2003.
quando aplicado de forma seletiva ao contexto ameríndio, nos permite elaborar
GALLOIS, Dominique Tilkin. Kusiwa: pintura corporal e arte gráfica waiãpi. Rio de Janeiro:
uma abordagem precisa das técnicas formais e cognitivas que são postas em ação
Museu do Índio-FUNAI-CTI-NHI-USP, 2002.
no grafismo dos “sistemas complexos de desenho” amazônicos enquanto forma
GEBHART_SAYER, Angelika. “Una terapia estética: los diseños visionarios del ayahuasca
ativa e instrumento no aprendizado da passagem da percepção visual à percepção entre los Shipibo-Conibo”. In: America Indígena, XLVI, p. 189-218, 1986.
virtual. O grafismo aplicado aos corpos, aos artefatos e às visões é uma técnica de GELL, Alfred. Wrapping in images. Tattooing in Polinesia. Oxford: Clarendon Press, 1993.
visualização dos processos perceptivos de transformação, que nos permite pensar ______. Art and agency: an anthropological Theory. Oxford: Oxford University Press, 1998.
como se produzem as passagens entre pontos de vista, como corpos se tornam GONÇALVES, Marco Antonio. O mundo inacabado. Ação e criação em uma Cosmologia
transparentes, como se passa de uma linha a um rosto. Amazônica. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2001.
GOW, Peter. “Visual compulsion: Design and image in Western Amazonian art”. In:
referências bibliográficas Revindi. Revista indigenista Americana. Budapeste, p. 19-32, 1988.
______. “Piro designs: Painting as meaningful action in Amazonian lived world”. In: Jour-
ABREU, João Capistrano de. Rã-txa hu-ni-kui~: A língua dos Caxinauás do rio Ibuaçú. Rio nal of the Royal Anthropological Institute, (n.s.) 5, p. 229-246, 1999.
de Janeiro: Leuzinger-Livraria Briguiet, 1941 [1914].
______. An Amazonian myth and its History. Oxford: Oxford University Press, 2001.
BARCELOS NETO, Aristóteles. Apapaatai. Rituais de Máscaras no Alto Xingu. São Paulo:
GUERREIRO, Antonio R. Júnior. Ancestrais e suas sombras. Uma etnografia da chefia
EDUSP/Fapesp, 2008. (Tese de doutorado, 2005.)
kalapalo e seu ritual mortuário. Tese de doutorado, Brasília, UnB, 2012.
BARRETO, Cristiana. Meios místicos de reprodução social: arte e estilo na cerâmica funerária
GUSS, David. To weave and sing. Art, symbol and narrative in the South American Rain For-
da Amazônia Antiga. Tese de doutorado, São Paulo: MAE, USP, 2008. est. Berkeley-Los Angeles-London, University of California Press, 1989.
BATESON, Gregory. Vers une écologie de l’esprit. Paris: Éditions du Seuil, 1977.
HOUSEMAN, Michael; SEVERI, Carlo. Naven ou le donner à voir. Essai d’interprétation de
BELAUNDE, Luisa Elvira. Kené. Arte, ciencia y tradición en diseño. Lima: Instituto Nacional l’action rituelle. Paris, CNRS Éditions–Éditions de la MSH, 1994.
de Cultura, 2009. ILLIUS, Bruno. Ani shinan: Schamanismus bei den Shipibo-Conibo (Ost-Peru). Tese de dou-
BEYSEN, Peter. Kitarentse: Pessoa, arte e estilo de vida ashaninka (do Oeste Amazônico). Rio torado, Tübingen, Verlag S&F, 1987.
de Janeiro: PPGSA-IFCS-UFRJ, tese de doutorado, 2008. INGOLD, Tim. Lines. A brief History. Londres, Routledge, 2007.
BOAS, Franz. Primitive art. Nova York: Dover Publications, 1955 [1928]. KEIFENHEIM, Barbara. “Snake spirit and pattern art. Ornamental visual experience among
CAMARGO, Eliane. “Léxico Caxinauá-Português”. In: Chantiers Amerindia, n. 19/20, Suple- the Cashinahua Indians of Eastern Peru”. ms.
mento 3. Paris, 1995. ______. Untersuchungen zu den Wechelbeziehungen von Blick und Bild. Die Kashinawa-
COLPRON, Anne Marie. “Dichotomies sexuelles dan l’étude du chamanisme: le contre Indianer und ihre Ornamentik (Ost-Peru). Tese de licenciatura, Berlim, Freien Uni-
exemple des femmes chamanes shipibo-conibo de l’Amazonie Péruvienne”. Tese de versität, 1998.
doutorado, Université de Montréal, 2004. KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. La chute du ciel. Paroles d’un chaman yanomami. Paris:
DAWSON, Alice. “Graphic art and design of the Cashinahua”. In: DWYER, Jane Powell (ed.). Terre Humain, Plon, 2010.
The Cashinahua of Eastern Peru. Filadélfia: Haffenreffer Museum of Anthropology, LAGROU, Els. Uma etnografia da cultura Kaxinawá: entre a cobra e o inca. Dissertação de
p. 131-149, 1975. mestrado, Florianópolis, UFSC, 1991.
DÉLÉAGE, Pierre. “Les répertoires graphiques amazoniens”. In: Journal de la Société des ______. “Compulsão visual”. Resenha do artigo “Visual compulsion de Peter Gow”. In:
Américanistes, 93-1, Paris, p. 97-126, 2007. Antropologia em primeira mão, Florianópolis, PPGAS-UFSC, 1995.
______. Le Chant de l’anaconda. L’apprentissage du chamanisme chez les Sharanahua. Nan- ______. “Xamanismo e Representação entre os Kaxinawá”. In: LANGDON, E. J. (org.).
terre: Société d’ethnologie, 2009. Xamanismo no Brasil. Novas Perspectivas, Florianópolis, Editora UFSC, p. 197-231, 1996.
DESCOLA, Philippe. La fabrique des images. Visions du monde et formes de la représenta- ______. Cashinahua cosmovision: a perspectival approach to identity and alterity. Tese de
tion. Paris: Museu du Quai Branly-Somogy, 2010a. Doutorado, St. Andrews, Universidade de St. Andrews, 1998a.

106 107
uma reflexão sobre uma arte perspectivista els lagrou

______. Caminhos, duplos e corpos. Uma abordagem perspectivista da identidade e alteri- SEVERI, Carlo. Le principe de la chimère. Une anthropologie de la mémoire. Paris: Éditions
dade entre os Kaxinawa. Tese de doutorado, São Paulo, USP, setembro de 1998b. rue d’Ulm, Museu du Quai Branly, 2007.
______. “O que nos diz a arte Kaxinawa sobre a relação entre identidade e alteridade?”. In: ______. “L’univers des arts de la mémoire. Anthropologie d’un artefact mental”. In: Anna-
Mana. Estudos de Antropologia Social, v. 8, n. 1, p. 29-62, 2002a. les. Histoire, Sciences Sociales, 64º ano, n. 2, p. 463-493, mar./abr. 2009.
______. “Kenan, the ritual stool: a reduced model of the Cashinhua person during the ______. “A ideia, a série e a forma: desafios da imagem no pensamento de Claude Lévi
Nixpupima rite of passage”. In: MYERS, T.; CIPOLLETTI, M. S. (eds.), Artifacts and soci- -Strauss”. In: Revista de Sociologia e Antropologia, Rio de Janeiro: PPGSA, 7Letras, p.
ety in Amazonia/Artefatos y sociedad en Amazonia. Bonn: Bonner amerikanische stu- 54-75, 2012.
dien, 36 (Estudos americanistas de Bonn, 36), BAS 2002, p. 95-113, 2002b. STRATHERN, Marilyn. Partial connections, updated edition. Oxford, Altamira Press, 2004.
______. “Antropologia e arte: uma relação de amor e ódio”. In: Ilha. Revista de Antropolo- TAYLOR, Anne-Christine. “Les masques de la mémoire. Essai sur la fonction des peintures
gia, v. 5, p. 93-113, 2003. corporelles jívaro”. In: L’Homme, n. 165, p. 223-248, 2003.
______. “L’art des indiens du Brésil. Altérité, ‘authenticité’ et ‘pouvoir actif ’”. In: DONI- ______. “Voir comme un autre: figurations amazoniennes de l’âme et des corps”. In: La
SETE, L. , Brésil indien. Les arts des Amérindiens du Brésil. Paris: Galeries nationales du fabrique des images, p. 41-50, 2010.
Grand Palais, Éditions de la Réunion des Musées nationaux, p. 68-81, 2005.
TOWNSLEY, Graham. “Song paths. The ways and means of Yaminahua shamanic knowl-
______. A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxi- edge”. In: L’Homme, n. 33 (2-4), v. 126-128, p. 449-468, 1993.
nawa, Acre). Rio de Janeiro: Topbooks, 2007.
VELTHEM, Lúcia Hussak van. O belo é a fera. A estética da produção e da predação entre os
______. “Social metaphors of sociality and personhood in Cashinahua ritual song”. In: Wayana. Lisboa: Assírio & Alvim, Museu Nacional de Etnologia, 2003.
DEMMER, U.; GAENSZLE, M. The Power of Discourse in Ritual Performance. Rhetoric
VIDAL, Lux (org.). Grafismo indígena. São Paulo: Studio Nobel, Fapesp/EDUSP, 1992.
and Poetics. Berlim, Londres, Viena: LIT-Publishers, Series Intercultural Studies on
Ritual, Play and Theatre, v. 10, p. 174-200, 2007b. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo amerín-
dio”. In: Mana 2. Rio de Janeiro: Museu Nacional, Contracapa, p. 115-144, 1996.
______. Arte indígena no Brasil: agência, alteridade e relação. Belo Horizonte: Editora C/
Arte, 2009a. ______. “Floresta de Cristal: nota sobre a ontologia dos espíritos Amazônicos. Cadernos
de Campo 14/15. São Paulo: PPGAS-USP, p. 319-338, 2006.
______. “The Crystllized memory of artifacts: a reflection on agency and alterity in Cash-
inahua image-making”. In: GRANERO, Santos (ed.). The occult life of things. Native
Amazonian theories of materiality. Tucson: The University of Arizona Press, p. 192-
213, 2009b.
______. “Le graphisme sur les corps amérindiens. Des chimères abstraites?”. Dossier Pièges
à voir, pièges à penser. In: Gradhiva. Revue d’Anthropologie et d’Histoire des Arts, v.
13, Paris, Museu du Quai Branly, p. 69-93, 2011.
LANGDON, Esther Jean. “A cultura Siona e a experiência alucinógena”. in: VIDAL, L. (org.).
Grafismo indígena. São Paulo: FAPESP/EDUSP, p. 67-87, 1992.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Tropiques. Paris: Plon, 1973 [1955].
______. Anthropologie structurale. Paris: Plon, 1974 [1958].
______. La pensée sauvage. Paris: Plon, 1964.
______. La potière jalouse. Paris: Plon, 1985.
______. Histoire de Lynx. Paris: Plon, 1991.
LIMA, Tania Stolze. Um peixe olhou para mim. O povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo:
Editora UNESP, 2005.
MONTAG, Susan. Diccionario Cashinahua. Yarinacocha. Ministério da Educação-Instituto
Linguístico de verão, 1981.
MÜLLER, Regina Polo. Os Asuriní do Xingu. História e Arte. Campinas, Unicamp, 1990.
ROE, Peter. “Comparing Panoan design systems through componential analysis”. ms., 1975.

108 109
Perspectiva xamânica:
relações entre rito, narrativa e arte gráfica.
Esther Jean Langdon

Neste artigo, pretendo reexaminar meus dados sobre a arte gráfica dos índios
Siona da Amazônia colombiana, na fronteira com o Equador. Num artigo anterior,
analisei a arte gráfica siona, numa tentativa de explorar os significados dos dese-
nhos geométricos inspirados pelos rituais com a ingestão de yajé (Banisteriopsis
sp.),1 e cujos motivos adornavam os rostos das pessoas detentoras de conheci-
mento xamânico e seus objetos, tais como panelas de barro, lanças, portadores de
dardos etc. (Langdon, 1992). Aqui faço uma reflexão sobre a relação entre perspec-
tiva e arte, a partir do conceito de performance. Em vez de analisar a arte gráfica
isoladamente, os desenhos são examinados como parte da relação dinâmica entre
modos performáticos que constroem a cosmologia siona e que indexam perspec-
tivas diferentes, estes sendo rito, narrativa e arte.
Todas as expressões artísticas siona, sejam estas a literatura oral ou os dese-
nhos gráficos, podem ser consideradas arte xamânica. No caso dos desenhos, os
Siona admiram e distinguem os desenhos autênticos – desenho yajé ( iko toya) –
daqueles que não têm valor – “mero desenho” (do toya). Estes últimos não trans-
mitem o conhecimento xamânico do artista, não sendo portanto valorizados este-
ticamente. A arte autêntica, iko toya, é inspirada na experiência do artista com
o lado invisível do cosmos, que se faz presente nas performances dos ritos com
a ingestão de yajé ( iko). Através do rito, os participantes conhecem os espíritos,
relacionam-se com eles e com o lado invisível do cosmos como uma experiência
vivida, e não como ilusão ou alucinação. Os espíritos vêm cantando e identifi-
cam-se. São cheirosos, ornamentados e brilham com desenhos geométricos que

1 Segundo Uribe (2002) a grafia mais correta é yajé e não yagé.

111
perspectiva xamânica esther jean langdon

adornam seus rostos e suas roupas. As paredes de suas casas, os bancos e os outros linhas desenvolvidas por Peter Roe (2004). Ou seja, os inúmeros motivos registra-
objetos domésticos também têm toya. São estes desenhos que o participante, na dos desses dois artistas podem ser explicados como o resultado de duas operações:
sua volta para o “lado de cá” ( i kã ko), pinta no rosto e em outros objetos para seleção e combinação. Com esses dois processos, eles produziam desenhos carac-
evidenciar o que viu no “lado de lá” (yeki kã ko). terizados por alta repetição e redundância, mas, apesar da repetição marcante,
A relação entre arte, xamanismo e uso de substâncias psicoativas entre os nunca observei o mesmo desenho duas vezes. Os desenhos com motivos muito
índios das terras baixas sul-americanas tem recebido bastante atenção nas últimas semelhantes em sua combinação de elementos sempre tinham alguma diferença
duas décadas. Porém, na década de 1970, quando realizei meu primeiro estágio na simetria, fosse esta diferença quase imperceptível ou nem tanto.
de campo, os trabalhos mais relevantes para a reflexão sobre os Siona eram os de No entanto, as minhas expectativas de identificar os desenhos ou os moti-
Reichel-Dolmatoff (1972, 1978) que estudou vários aspectos da cosmologia e da vos individuais como metáforas que simbolizam os princípios da cosmologia, os
simbologia do xamanismo dos índios Desana, do Departamento de Vaupés. Este espíritos ou os reinos específicos do lado invisível foram frustradas. Quando mos-
grupo compartilha com os Siona várias características cosmológicas, tais como trei os desenhos para outros Siona, para descobrir como eles os interpretavam,
realidades visíveis e invisíveis; um universo dividido em regiões e habitado por minhas indagações sobre os significados específicos dos toya resultaram em res-
seres invisíveis, que afetam o mundo cotidiano e os processos de saúde e doença; postas vagas e gerais. Em contraste com as pesquisas de Reichel-Dolmatoff, eu não
uma visão cíclica da vida e a preocupação com os processos de vida e morte.2 Os consegui uma interpretação específica compartilhada entre os Siona e tampouco
Desana também produzem desenhos geométricos que são inspirados pela expe- pude identificar significados específicos nos motivos ou desenhos. Na avaliação
riência ritual com yajé. Reichel-Dolmatoff argumenta que estes possivelmente são da arte criada por seus colegas, meus colaboradores foram capazes de reconhecer
inspirados durante o primeiro estágio da ingestão da substância psicotrópica, um a autenticidade dos desenhos e opinar sobre seu valor estético, admirando alguns
estágio universalmente caracterizado por fosfenos ou formas geométricas que são desenhos mais do que outros. Entretanto, foram relutantes em opinar sobre os sig-
resultados de impulsos elétricos nos olhos (Noll, 1985). Após esta fase, aparecem nificados dos desenhos alheios, sempre comentando as qualidades estéticas como
cenas realistas com paisagens e figuras humanas, mas as formas geométricas sem- evidência do conhecimento xamânico do artista, mas negando-se a interpretar o
pre as acompanham como pano de fundo. A análise simbólica dos motivos dos que o desenho representava. Desenhos de yajé ( iko toya) são arte autêntica por-
Desana revela que eles funcionam como metáforas, representando os conceitos- que representam o mundo invisível, mas, segundo os Siona, só o próprio artista
chave de cosmologia, sexualidade e fertilidade, mitologia e organização social. pode falar de onde ele o viu. Os desenhos de um xamã são índices do mundo
No meu primeiro trabalho de campo, entre 1970 e 1973, havia vários anciãos invisível e de sua experiência, mas não representam para os outros nem espíritos
que possuíam a habilidade de pintar suas experiências com yajé; dois irmãos, Esta- nem metáforas específicas. Partindo do comentário de Viveiros de Castro (2006),
nislao e Ricardo Yaiguaje, eram reconhecidos como os mais hábeis. Desses dois, segundo o qual as imagens dos espíritos são representantes, e não representacio-
Ricardo era o único que por iniciativa própria conservava a prática de pintar seu nais, os desenhos siona evidenciam a experiência xamânica de seu artista, mas não
rosto diariamente e adornar certos objetos com iko toya. Seu irmão aprendeu a demonstram terem uma função comunicativa análoga à dos Desana, como apon-
fazer os desenhos em papel quando estava no internato dos missionários capu-
tado por Reichel-Dolmatoff em relação a essa etnia; ou uma função de discurso,
chinhos, mas não os reproduzia espontaneamente no cotidiano. Meu trabalho
como analisada por Munn (1962, 1966), em relação aos aborígenes australianos.
(Langdon, 1992), comparando a arte destes dois com a dos que não eram xamãs
Como arte, eles transmitem as qualidades da experiência com o outro mundo,
demonstra que a composição das formas geométricas reconhecidas como iko
mas não em forma narrativa.3 O grupo não compartilha interpretações homogê-
toya é o resultado do arranjo de elementos mínimos de desenho segundo regras
neas de o que os desenhos dos outros representam.
de combinação, gerando um tipo de análise “sintática” dos motivos, seguindo as

2 Ambos os grupos pertencem à família tucano, mas os Desana falam uma língua da seção oriental e os
Siona pertencem aos falantes de tucano ocidental, incluindo os Siona, os Makaguaje, os Coreguaje, os 3 Para uma crítica da abordagem representacionalista dos grafismos ameríndios, ver Gow, 1988, 1999, e
Secoya e outros povos localizados na região amazônica dos rios Putumayo, Caqueta, Napo, e tributá- Lagrou, 1995, 1998, 2007. Esta abordagem tem como precursores Boas e Lévi-Strauss e se consolidou
rios da Colômbia, do Equador e do Peru. com Gell (Lagrou, ibidem).

112 113
perspectiva xamânica esther jean langdon

o mundo fractal e iko toya As atividades no outro lado influenciam o desenvolvimento de pessoas, plan-
tas, animais e forças da natureza nas atividades de subsistência (agricultura, caça
Os princípios ontológicos e epistemológicos da cosmologia xamânica siona asse-
e pesca); nas relações intra e intercomunitárias; e nos estados de saúde e doença.
melham-se àquelas de outros grupos amazônicos que têm sido enfocados por dis-
Assim, para entender eventos que irrompem no fluxo cotidiano, tais como doen-
cussões etnológicas desde a década de 1970 (Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro,
ças graves ou outros infortúnios, é necessário entrar no outro lado para descobrir
1987; Viveiros de Castro, 1996, 2006). É uma cosmologia marcada pelo princípio
as atividades dos seres invisíveis e negociar com eles. Os xamãs são os principais
da transmutação de formas, a depender do ponto de vista. Neste mundo trans-
mediadores entre os mundos, pois têm o saber e a habilidade para entrar à von-
formacional, as distinções da racionalidade ocidental – natureza/cultura; animal/
tade no “outro lado” e negociar com os espíritos e as forças lá encontradas. Eles
humano; natural/sobrenatural – não operam. O cosmos é constituído por uma
têm os poderes de transformação, e suas formas mais frequentes no outro lado
multiplicidade de donos/mestres, e suas coletividades sociais se replicam infini-
são a onça, nas regiões da selva, ou a anaconda, no rio. Seu saber e seu poder
tamente numa “lógica fractal” (Kelly, 2001; Cesarino, 2010: 153). A característica
são obtidos através da frequente ingestão do yajé, de forma dirigida e controlada
transformativa das entidades do universo e a mudança de perspectiva são expres-
(Langdon, 1979, 1986) durante uma longa aprendizagem para acumular o conhe-
sas pelos Siona através do conceito de “lado” (kã ko), em que o observador se
cimento necessário.
encontra; ou seja, a percepção e a experiência têm lados diferentes: “o lado de cá”,
o visível, e “o lado de lá”, das forças ocultas que influenciam e interferem nos pro-
toya: experiência ritual
cessos do bem-estar da vida coletiva.
O lado de cá (literalmente “este lado”), que também pode ser expresso como Tradicionalmente, espera-se que todos os jovens adolescentes siona se compro-
“esta região” ( i de oto), é o mundo da consciência ordinária, aquele que normal- metam com a aprendizagem xamanística. O jovem aprendiz inicia sua formação
mente percebemos e no qual vivemos. Contém três domínios principais, cada um com um xamã conhecido e confiável, geralmente um parente, pedindo ao xamã
com seus distintos habitantes – a selva, o rio e o domesticado. A selva é a região dos que “lhe mostre sua pinta (toya)”. Durante vários anos, ele realiza reclusões na
animais. O jaguar é a figura dominante, com todo o seu poder e toda a sua força. O floresta, dietas e outras prescrições, preparando-se para o uso intensivo do yajé.
rio é o domínio dos peixes e dos animais aquáticos, e aí a anaconda é soberana. Na Quando ele está pronto, o mestre começa a administrar-lhe o líquido. Ele continua
região domesticada, encontram-se as casas e os sítios das comunidades siona, com fazendo uso da substância psicoativa até experienciar através do rito as pintas que
seus animais e plantas domesticados. O xamã é o chefe que cuida dos membros de o mestre pretende ensinar-lhe. O aprendiz passa por uma sequência de desenhos
seu grupo, estes também chamados de “seus domesticados” (hoya). que o mestre tem para mostrar-lhe, adquirindo o conhecimento sobre os vários
O lado de lá (literalmente o “outro lado”) é o domínio dos espíritos e das domínios do universo, seus habitantes e seus cantos. Depois, procura outros para
forças invisíveis que operam em espaço e tempo não ordinários. O cosmos é orga- mostrar-lhes seu toya, dentro de uma rede xamânica que se estende aos grupos
nizado em cinco níveis hierárquicos, em forma de discos planos. Os três primeiros vizinhos da região.
(o subterrâneo, o primeiro céu e o segundo céu) são reflexos uns do outros, no A aprendizagem é concebida como o desenvolvimento do conhecimento
sentido de que cada um é dividido em regiões ou territórios que são habitados por sobre os domínios do universo e seus seres, através das experiências rituais, e é
diferentes povos. Estes grupos compartilham a mesma forma de socius que existe expressa como “ver o desenho”. Conhecer o desenho, neste sentido amplo, requer o
no lado visível, cada um liderado pelo chefe-xamã-dono que cuida de seu povo. desenvolvimento de três capacidades interdependentes: “cantar”, “ver” e “pensar”;
O Sol, a Lua, as Plêiades e o Trovão constam como as principais figuras míticas a disciplina, a persistência e a coragem se fazem necessárias. Os Siona contavam
xamânicas na esfera celestial que está além do alcance dos olhos, na divisão entre que normalmente se leva três “noites” (rituais) para chegar a ver o toya desejado,
o “primeiro céu” e o “segundo céu”. Não há uma palavra única para classificar ou seja, para ver que o aprendiz chegou à região específica e se relacionou com
os habitantes no outro lado, e, dependendo da perspectiva, estes podem apare- seus habitantes, conhecendo sua roupa e sua ornamentação corporal, e escutando
cer como humanos (bãĩ), animais (wa i) ou watí; este último grupo são os seres seus cantos. Alguns reinos do mundo cosmológico são mais difíceis de alcançar
potencialmente malévolos, dependendo do contexto e de sua intenção. do que outros, e nem todos os xamãs têm as mesmas capacidades. Por exemplo,

114 115
perspectiva xamânica esther jean langdon

para chegar à lua, com seu belo povo flamingo, precisa-se de muito conhecimento. Kracke, 1987), mas, para os Siona, as performances dos ritos de yajé constroem as
Um xamã iniciado disse-me que “só vi de longe, mas não consegui chegar”. experiências coletivas de viagens ao outro lado e capacitam os homens para serem
Assim, o aprendiz passa por uma progressão de toya com seu mestre xamã, xamãs. No passado, quase todos atingiam o primeiro nível de conhecimento.
pouco a pouco experienciando os reinos do outro lado da realidade e aprendendo
a dialogar e relacionar-se com seus habitantes. Experienciar um desenho parti- toya: sinestesia e experiência
cular através do rito resulta na aquisição de conhecimento. O conhecimento é
corporal, concebido como uma substância “delicada” que se acumula no corpo No seu sentido mais amplo, toya conota a experiência da performance ritual em
e possibilita ao xamã: “ver” as atividades no mundo oculto; “escutar”, para poder que a mudança de perspectiva é efetuada. No rito, os participantes passam do lado
cantar sua música; e “pensar”, ou ter consciência de si, para poder interagir com o cotidiano para o outro lado, viajando por um universo fractal caracterizado por
mundo invisível. Essas três capacidades, em conjunto, constituem o poder xamâ- uma multiplicidade intensa que pulsa ao ritmo da experiência sinestésica criada
nico, empoderando o xamã, para que ele possa negociar com os espíritos e trans- pelos cantos xamânicos e pela ação ritual, junto aos efeitos neurofisiológicos dos
formar seu pensamento em ação. químicos psicoativos da preparação do yajé. Depois de ingeri-lo, os cantos do xamã
As capacidades xamânicas expressam-se em três categorias: “mero homem” transformam-se em caminhos visuais que guiam as viagens dos participantes pelo
(do imigi); “cantador” (sa isigi); e “onça”, “vidente” ou “bebedor de yajé” (yai, cosmos. O xamã invoca entidades específicas, sejam estas o povo yajé, os aliados
ũkigi, iyagi), considerado o mais poderoso. O cantador é o homem que já ini- mais importantes – também conhecidos como o povo tenro – ou o povo do Sol,
ciou sua aprendizagem e conhece alguns espíritos, seus desenhos e seus cantos. da Lua, da onça etc. Como humanos bem-pintados, estes descem e dialogam com
Ele tem poder para curar doenças específicas através dos cantos. Porém, não o o xamã, que se junta a seus assistentes para guiarem a performance enquanto can-
suficiente para liderar os outros nos ritos de yajé. Essa capacidade é atributo do tam, tocam flauta ou outros instrumentos e movimentarem-se no espaço ritual
último nível, em que o mestre xamã, a onça, guia a experiência dos outros num dramatizando suas ações no mundo invisível. O xamã é o guia da experiência para
mundo de multiplicidade infinita. Além disso, ele já tem os poderes para “colocar que os outros não se percam num universo em constante transmutação. O partici-
a roupa da onça”, ou de outros seres e animais, a fim de transformar seu corpo pante do rito experiencia esta viagem como se fosse a sua própria.
enquanto viaja para o outro lado. Porém, o conhecimento ou poder atribuído aos Como Townsley (1993: 466) observa em relação aos Sharanahua, o sistema
xamãs sempre é relativo e heterogêneo; cada um tem capacidades diferentes e cosmológico dos Siona não é um universo acabado, mas um universo improvi-
conhecimentos subjetivos baseados em suas habilidades e relações estabelecidas sado, guiado pelo xamã e que emerge através da performance ritual. Neste sen-
com o mundo invisível. tido, ele é sempre provisório e está sempre em construção, sendo vivido através da
A diferença entre as pessoas que experienciam incursões exitosas ao lado ação ritual realçada pelas substâncias que alteram a consciência dos participantes.
oculto e as que têm experiências desafortunadas com a alteridade é a capacidade Junto a isto, é necessário reconhecer que a experiência emergente, compartilhada
de manter a “consciência”, ou seja, a capacidade de pensar, não “se esquecendo” de por aqueles presentes no ritual, também tem uma qualidade altamente subjetiva
sua essência humana, e de ter o poder de agir adequadamente na situação em que e individual.
se encontra (Langdon, 2004). Para não se decepcionar com as aparências, é neces- É importante reconhecer que a multiplicidade e a fractalidade do cosmos
sário que o indivíduo esteja consciente de sua identidade (conhecimento de si) e que emergem na performance ritual não devem ser caracterizadas como uma
de onde ele está (conhecimento do lugar), para saber como relacionar-se com os realidade virtual nem como uma alucinação (Schieffelen, 1985). Para os Siona,
seres, que aparecem como humanos, mas que não o são. Se ele não se lembra disso, é uma mudança de perspectiva, em que o outro lado, normalmente escondido,
ou confunde este lado com o outro, “perde-se”, como eles expressam, e o resultado se torna visível, e o rito deve ser considerado como uma experiência vivida. Os
é a doença ou a morte. A habilidade de ter a perspectiva adequada da situação, ou efeitos visuais, auditivos e corporais operam sinestesicamente num modo recur-
seja, de reconhecer com quais seres se está lidando, é necessária para a interpre- sivo, transformando a perspectiva. Portanto, os Siona descrevem suas experiências
tação e o entendimento do que está acontecendo no lado oculto. Todos têm um como caracterizadas por uma qualidade luminosa com cores mais brilhantes do
pouco desta capacidade, principalmente porque todos sonham (Langdon 2004; que aquelas percebidas no mundo cotidiano, e como um mundo fractal de cená-

116 117
perspectiva xamânica esther jean langdon

rios em constante movimento e transformação, cada qual com seu povo vestido e Hwĩhagi daiya Vem pessoa tenra
pintado com os próprios desenhos. Hwĩhagi daiya Vem pessoa tenra
a hi i i i hi5 a hi i i i hi
Embora os Siona afirmem que eles experienciam os cantos como diálogos
com os espíritos que guiam suas viagens pelo outro mundo e que cada povo tem
Os Siona comentam que o xamã comunica aspectos ou elementos da viagem
sua linguagem particular, é difícil especificar o papel dos cantos e da música inde-
que ele está experienciando – identificando os nomes dos espíritos, suas cores e
pendentemente do conjunto de efeitos sensoriais do rito; não tenho exemplos
outras características –, mas que cada participante, na sua experiência subjetiva,
suficientes para conduzir uma análise mais pormenorizada deles. Durante minha
completa as sensações corporais, visuais e auditivas numa experiência pessoal e
pesquisa de campo, os Siona não estavam conduzindo rituais com yajé (Langdon,
individual. Assim, apesar da natureza coletiva dos ritos, em que cada participante
2010), e eles se recusaram a cantar seus cantos xamânicos fora do contexto ritual.4
se concentra para seguir a viagem do xamã-guia, para ver seu toya, cada indivíduo
Os poucos exemplos que foram registrados indicam que eles funcionam como
tem sua perspectiva subjetiva e pessoal. Como comentado acima, o mundo cos-
representantes ou índices do mundo fractal, através de paralelismo, mas não nar-
mológico está em constante construção, em formação contínua, e é o individuo
ram literalmente o que representam os eventos vividos pelo xamã.
que faz o sentido do que está vivendo na performance (Langdon, 2013).
Hwĩhagi daiya Vem pessoa tenra
Hwĩhagi daiya Vem pessoa tenra toya: arte gráfica e experiência
Hwĩhagi daiya Vem pessoa tenra
Hwĩhagi daiya Vem pessoa tenra Conforme descrição sobre os Campa (Weiss, 1973) e os Sharanahua (Siskind, 1973, e
Hwĩha zĩ wagi Criança tenra Déléage, 2009), as performances rituais criam uma experiência coletiva em que os
Hwĩha zĩ wagi Criança tenra participantes procuram acompanhar o xamã, enquanto ele viaja para o outro lado
Hwĩha zĩ wagi Criança tenra via ingestão de yajé, transforma-se em onça e canta e dialoga com os espíritos nos
respectivos reinos do universo. Várias estratégias contribuem para estabelecer as
Hwĩhagi daiya Vem pessoa tenra
Hwĩha zĩ wagi Criança tenra expectativas da performance. Antes do rito, o xamã anuncia o reino espiritual a ser
Hwĩhagi daiya Vem pessoa tenra visitado e escolhe qual tipo de yajé será preparado para o desenho desejado (Lang-
Hwĩha zĩ wagi Criança tenra don, 1986). O conhecimento de viagens anteriores aos reinos espirituais faz parte
Hwĩhagi daiya Vem pessoa tenra do cotidiano dos Siona. Os desenhos pintados nos rostos dos xamãs iniciados, na
Hwĩha zĩ wagi Criança tenra cerâmica e em outros objetos, são índices destas experiências nos reinos invisíveis
Hwĩha zĩ wa nã daya Vêm crianças tenras
(Langdon, 1992). Finalmente, os xamãs transmitem suas experiências através de
Hwĩha zĩ wa nã daya Vêm crianças tenras
Bãĩ wa nã daya Vêm pessoas narrativas em performance, que relatam as viagens para os outros mundos e pre-
Bãĩ wa nã daya Vêm pessoas param os novatos para o que podem encontrar. Em processos de intertextualidade
Hwĩha zĩ wa nã Crianças tenras entre performances com yajé, narrativas em performance e desenhos pintados
Hwĩha zĩ wagi daya Vem criança tenra pelos xamãs, o mundo invisível torna-se conhecido, e esses atos de performance
apresentam os índices da troca de perspectiva entre este lado e o lado oculto. O
Hwĩha zĩ wa nã Crianças tenras
Hwĩha zĩ wa nã Crianças tenras conjunto desses três modos performativos preparam os novatos para ver também
Hwĩha zĩ wa nã Crianças tenras o mundo oculto em suas experiências futuras. O conhecimento xamânico trata da
Hwĩha zĩ wa nã Crianças tenras capacidade de navegar num mundo oculto de multiplicidades infinitas e estabele-

5 Fragmento do canto de yajé de Lisandro Yocuro, na aldeia de San Diego em 1968, gravado por Carlos
4 Suspeito de que a razão disso seja o fato de que os cantos são performativos, no sentido de Austin Garibello, do Instituto Colombiano de Antropologia. Lisandro cantou a pedido do Prof. Garibello, e o
(1990), que têm ação sobre o mundo quando cantados. resto da canção segue com as repetições e variações presentes neste fragmento.

118 119
perspectiva xamânica esther jean langdon

cer relações com seus seres. Para isto, é preciso perceber e interpretar corretamente fundo na próxima fase em que passagens realistas e figuras aparecem. Estas cenas
a experiência com a alteridade, e os processos de intertextualidade e indexicalidade são indexadas nos cantos do xamã, como se vê no exemplo do canto reproduzido
presentes nas performances são centrais para a transmissão do conhecimento. acima, em que a descida do povo tenro é descrita com frases repetitivas.
Em vários artigos, tenho analisado e discutido como as narrativas xamânicas Cada grupo de seres tem seus próprios desenhos, que são pintados nos seus
dos Siona expressam a memória subjetiva associada com a experiência ritual, os rostos, roupa, bancos e paredes das casas. São estes desenhos que o artista cria
sonhos ou os eventos infortunados, quando a pessoa se encontra sozinha na selva. através de sua memória do toya vivenciado no ritual.
Sua arte gráfica, a arte autêntica, é a outra expressão performativa da experiên- Assim, a arte gráfica não deve ser analisada como uma forma discursiva ou
cia xamânica, mas ela se distingue bastante do modo narrativo. Na performance representacional, mas deve ser entendida como uma expressão comunicativa das
narrativa, o narrador assume a responsabilidade de compartilhar sua experiência qualidades estéticas da experiência e representante dos habitantes do mundo invi-
com os outros, contando-a numa sequência temporal e espacial, ligando eventos e sível. Semelhantes à fractalidade dos fosfenos estimulados pelo yajé, os motivos
espíritos com sua interpretação pessoal do que está acontecendo. A performance pintados pelos Siona são desenhos geométricos com muita repetição de elemen-
narrativa dramatiza as ações e os eventos no outro mundo através da linguagem tos, mas não dos motivos como um todo. Eles captam a fractalidade da experiência
poética, que se distingue da linguagem cotidiana. A performance narrativa, neste via duplicação dos elementos e diferenciação das combinações. Assim, iko toya é
sentido, é um evento que ressalta a experiência vivida e cria a presença do outro julgado pelos outros por sua beleza, mas não permite que as pessoas interpretem
mundo para a plateia (Bauman, 1977; Schechner, 2003). Na poética da perfor- o significado dos desenhos no sentido de identificar quais seres do universo eles
mance oral, as ações e os eventos experienciados no outro mundo são mostra- representam. A criação da arte gráfica é uma produção da memória da experiência
dos através de detalhes que descrevem como os seres aparecem como humanos subjetiva, e somente o artista pode associar seus desenhos com os espíritos que
e como são suas práticas e suas intenções. Tais narrativas também referenciam os inspiraram. O elemento de repetição nos desenhos simétricos reflete a expe-
as mudanças de perspectiva, em que a plateia é levada da perspectiva cotidiana riência fractal de yajé, sendo um diferente do outro, enquanto o artista pinta seu
para a dos mundos em constante transformação, em que as aparências dependem rosto e objetos pessoais com novas combinações do toya dos espíritos, que só ele
do ponto de vista. No modo narrativo, o contador cria o mundo invisível para os conhece.6
outros, construindo a experiência a partir de suas memórias do mundo invisível,
habitado por inúmeros seres que podem ser conhecidos através da aprendizagem memória, arte e corpo performativo
xamânica. Dada a estrutura sequencial e temporal das narrativas, a experiência
da intensa e infinita multiplicidade do mundo fractal é menos evidente que a da Ricardo e Estanislao Yaiguaje eram descendentes de uma família de reconhecidos
performance ritual. Porém, o narrador fornece informações sobre a mudança de xamãs da comunidade. Como mencionado acima, apenas Ricardo (1990-1985)
perspectiva com a entrada no mundo invisível, através de comentários explícitos e expressou ativamente seu conhecimento xamânico através da pintura de dese-
índices que contrastam perspectivas. As performances narrativas das experiências nhos delicados no seu rosto e nos artefatos que ele fabricava, tais como lança-
descrevem o mundo invisível como sendo semelhante a este lado, em espaço e dores de dardos, lanças e bordas de coroas. Fabricava também enfeites de penas
tempo, criando a imagem em que ele parece ser paralelo à realidade finita espacial. coloridas, sementes, dentes de onça, contas, além de outros objetos que represen-
É como se pudesse ser feito um mapa do cosmos. tavam também os adornos dos espíritos que ele conhecera nas suas viagens aos
Posto que a arte gráfica não tem este caráter descritivo, como o das narrativas, mundos invisíveis. Foi, em sua época, o ancião conhecido por ter mais conheci-
sua função estética transmite a experiência qualitativa do universo fractal através mento xamânico que os outros e expressou seu conhecimento e sua experiência
da produção dos motivos geométricos estimulados pelo yajé. Segundo os Siona, através de suas narrativas e seu toya. Todavia, por causa de ataques perpetrados
estes motivos são uma característica sempre presente nas viagens xamânicas, e por outros xamãs, que causavam doenças, seu conhecimento foi comprometido e
são experienciados em transformação e movimento contínuo. Estes motivos,
6 Um exemplo de arte representativa, feito por um jovem Siona com experiência xamânica, encontra-se
reconhecidos nas ciências como os fosfenos que dominam as fases iniciais após a em Mallol de Recasens (1963). Estes desenhos não seriam considerados iko toya pelos Siona, mas as
ingestão do yajé ou de outra substância psicoativa, estão presentes como pano de explicações do artista referenciam o significado dos desenhos.

120 121
perspectiva xamânica esther jean langdon

suas capacidades xamânicas ficaram limitadas. Quando seu irmão mais velho, o suas experiências recentes. Seus desenhos estavam mais complexos no número de
xamã-líder (cacique-curaca) da comunidade, morreu, os homens da comunidade combinações de elementos e também no uso de duas cores, o vermelho de uru-
juntaram-se para beber yajé, na esperança de que Ricardo demonstrasse através da cum (ma), que usava no passado, e um novo, mais brilhante, que se aproximava
performance ritual sua capacidade de assumir a liderança xamânica. Porém, con- do magenta, chamado hē he kuri.
tra todas as esperanças, Ricardo falhou na performance ritual. Ele não viu o que Esta cor é extremamente valorizada por ser mais brilhante, refletindo para
esperou, só escuridão e, para a frustração de todos, foi incapaz de guiar os outros os Siona a experiência cromática de suas viagens, e é relacionada ao verbo hē he,
nos caminhos do céu (Langdon, 1979, 2004). que se traduz como “brilhar”. Kuri é um nome que denota dinheiro, prata, ou
Ser um xamã poderoso era um objetivo importante na vida de Ricardo, e algo brilhante. Em narrativas, conota a qualidade da luminosidade da experiência
durante os quinze anos durante os quais eu o conheci, ele recomeçou suas viagens visual no rito de yajé, ou seja, a luminosidade do toya. Hē he kuri é índice da lumi-
xamânicas em ritos guiados por seu cunhado, para fortalecer seu poder xamânico nosidade e dos desenhos dos espíritos nas narrativas que descrevem as viagens
e renovar suas alianças com os seres dos domínios do cosmos. Ricardo transmitiu ao outro lado. Por exemplo, na viagem à casa das onças (Langdon, 2013), Ricardo
suas experiências tanto através da performance narrativa como da arte gráfica. Seu descreve as roupas e os enfeites corporais do povo onça que ele vira quando foi a
hábito de pintar o rosto todos os dias evidenciava sua experiência xamânica e sua esta casa com seu pai, que lhe explicara o que ele estava vendo.
identidade, e, enquanto ele renovava seu conhecimento com seu cunhado, obser-
vei que seus desenhos faciais se tornaram mais complexos. Este aumento de com- kagina iyato ai bãĩ ba i bãĩ yai domi gato de ona yai domi bai i.
Enquanto ele (o pai) falou, vi muitas pessoas, mulheres onças; muito belas mulheres
plexidade pode ser entendido dentro do paradigma da performance. A aplicação
onças havia!
dos desenhos em seu rosto e em outros objetos constituem um ato performativo,
evidenciando para os outros seu conhecimento xamânico e a memória viva de yai beto ga wanã ye bãĩra bãĩ bai i.
suas viagens e dos seres com quem ele estabelecera alianças. Com colares de coco de onça, este povo havia.
Durante minha pesquisa, Ricardo e eu nos encontramos quase diariamente,
ba ihĩ, bõsi yai bõsi gato hē he kuri, hē hesiko a bai i.
em sessões de gravação em que Ricardo contava narrativas na linguagem poética
Havia jovens onças, todas brilhando, seres brilhantes havia.
dos mitos. Das mais de cem narrativas registradas, a maioria tratava de xamãs e
suas atividades no passado mítico ou histórico. Os temas de um grande número hē hesikota bako a mi hu ba iye hē hesiko a bai i
destas narrativas tratavam de viagens para os mundos invisíveis do universo nos Brilhando assim, pessoas com seus bigodes pintados havia.
ritos xamânicos ou em sonhos, e várias destas são experiências pessoais. Estas
narrativas e nossas sessões subsequentes, nas quais verifiquei minhas transcrições Neste trecho, Ricardo enfatiza a beleza das mulheres onça e chama a atenção
e traduções, resultaram em longas discussões sobre a natureza do cosmos e seus aos jovens que brilham com o hē he kuri dos desenhos dos seres do outro lado,
habitantes. Devo uma grande parte de meu entendimento sobre a cosmologia cujos rostos têm os bigodes desenhados para indexar sua forma animal.
siona às narrativas de Ricardo e a suas explicações sobre os conceitos-chave que Adicionalmente, hē he kuri associa os desenhos às práticas instituídas pelos
me foram bastante difíceis de traduzir. xamãs ancestrais, Lua e Sol (Langdon, 1995) e relatados nos mitos. Quando anda-
Conversamos sobre arte com muito menos frequência. Durante um ano, vam pela Terra, havia entre estes dois uma rivalidade que se expressava através de
fiz esboços no meu diário sobre seus desenhos faciais, mas pouco falamos sobre truques (tricks – trickster). Em uma narrativa, a Lua é a prima mais nova do Sol
eles. Num certo período, Ricardo adoeceu, tendo uma alergia de pele, e parou de e anda com uma vara mágica que usa para transformar as pessoas em animais.
pintar seu rosto durante vários meses. Ele se curou através de uma visita a seu Numa outra narrativa, na qual ela ascende ao céu, condenada a vigiar as atividades
cunhado xamã, onde passou dois meses tomando yajé. Além de buscar a cura dos seres humanos durante a noite, ela é enganada pelo Sol, que lhe tira sua vara
através das performances rituais com seu cunhado, Ricardo também renovou suas de condão e a joga para o alto. Cada vez que a Lua pula para pegá-la, o Sol a faz
experiências no mundo espiritual e retornou otimista e em boa saúde à sua aldeia. subir mais alto, até que finalmente a Lua sobe, no último pulo, até o céu e lá fica
Retomou seu hábito de pintar o rosto, desta vez com os motivos referenciando para sempre.

122 123
perspectiva xamânica esther jean langdon

O rosto da Lua, como xamã ancestral, fornece o modelo do rosto como super- Além desta narrativa, que associa a Lua ao desenho facial, há uma outra que
fície a ser pintada. De alguma maneira, seus truques dão origem à pintura facial. O também associa o uso de duas cores a uma expressão do poder xamânico que a
primeiro é expresso no mito em que a Lua visita sua irmã à noite para com ela ter Lua usa para assustar o Sol e seu povo, que só pintavam com urucum. Um frag-
relações sexuais, e esta, a fim de descobrir quem é que a visita à noite, usa jenipapo mento deste mito foi contado por um ancião como parte da sequência de enganos
para tingir seu rosto. Para os Siona, este mito explica os desenhos na face da Lua ou truques entre os dois, antes de ascenderem ao céu. Neste, a Lua aparece com
e associa a lua cheia a uma superfície a ser pintada. Isso é visto também no modo uma cara diferente, seus motivos pintados com hē he kuri, e não apenas com uru-
como os Siona tradicionalmente preparavam seus rostos para aplicar os desenhos. cum. Esta novidade, sua “cara diferente”, era assustadora para os outros.
Retiravam todos os pelos faciais, incluindo as sobrancelhas, criando uma “tela”
limpa para aplicar motivos delicados nas bochechas, ao redor dos olhos e na testa, Tĩ ãgina iyato tĩ zia bagi ba kina, hē he kuri nakoni bõsa zia hē hēsiki nakoni bõsa zia
hē hesiki ba kiña
utilizando justamente o lugar das sobrancelhas.
Quando a Lua chegou, foi vista com uma cara diferente. Estava brilhando com hē he
kuri, com urucum; seu rosto bicolor brilhava.

Hã ãka ĩyahĩ ai kikireña si a ko a


Vendo a ele assim, todos se assustaram muito.

Assim, na sua volta à aldeia, após dois meses de ingestão de yajé com seu
cunhado, Ricardo retomou o hábito de pintar seu rosto, desta vez com motivos
mais elaborados e frequentemente com as duas cores, urucum e hē’he kuri. Além
de pintar seu rosto, também continuou a fabricar colares, brincos e outros enfei-
tes de penas, contas, cocos e dentes de onça inspirados pelos encontros com seus
aliados espirituais. Iniciou um período de maior experimentação de motivos, apli-
cando desenhos nas lanças ornamentais, coroas etc. Diferente de seu irmão, ele
sempre se negou a fazer desenhos em papel para mim, argumentando que tinha
a mão trêmula. No entanto, ele continuou pintando durante a década de 70, acu-
mulando poder xamânico e curando doenças. Quando voltei, em 1980, sua família
me mostrou vários desenhos que ele realizara com lápis em papel, expressando
sua recente experiência xamânica. Estes iko toya eram mais complexos que os
de seu rosto, com mais combinações de elementos para elaborar os motivos (vide
Langdon, 1992: 78).
Nos últimos meses da minha pesquisa de doutorado, mostrei-lhe meus
esboços de seus desenhos faciais e de outros, das lanças e coroas que ele tinha
espontaneamente criado. Perguntei-lhe o que representavam os desenhos e os
nomes dos desenhos. Obtive nomes específicos de motivos de combinações que
comunicam a forma (layout) do desenho, tais como cruzado, arredondado, qua-
drado, esqueleto e outros. Estes se referiam ao tipo de montagem ou combina-
ção para produzir o motivo, mas não necessariamente eram associados a seres
específicos (vide Langdon, 1992). Porém, quando falávamos dos desenhos apli-
Foto 1: Ricardo depois do banho.

124 125
perspectiva xamânica esther jean langdon

cados a seu rosto, como uma tela, ele indicava que cada conjunto representava figura 1
os desenhos mostrados pelos espíritos que ele conhecera em suas viagens. Ou
seja, apesar de os outros não saberem identificar onde foram vistos seus dese-
nhos, ele, como artista, pintava suas lembranças dos espíritos aliados que ele
conhecera em suas experiências com yajé. Pelos nomes que ele indicou, pode-
mos saber quais eram os espíritos que a ele se mostravam mais frequentemente
em tais ritos:

hwĩha bãĩ – o povo tenro, aliados principais dos xamãs.


yahe bãĩ – o povo yajé, uma referência alternativa para o hwĩha bãĩ.
1.1 – hwĩha bãĩ 1.2 – yai bãĩ bõsi
yai bãĩ – o povo onça.
wakara bãĩ – o belo povo flamingo.
usebo bãĩ – o povo plêiades, que fundaram as tradições de beber yajé.
ñaña bãĩ – o povo lua.
mačoko bãi – o povo estrela.
behi bãi – o povo datura, associado a esta planta, quando ingerida.
miaza bãi – o povo luminoso, possivelmente associado à estrela da manhã, uma
variedade do hwĩha bãĩ associado à madrugada.

Assim, o rosto como tela indexava, para Ricardo, os desenhos dos espíritos
que ele conhecia, e, em alguns deles, ele especificava o local onde os viu, como
na roupa, nas paredes ou nos bancos. Em outros desenhos faciais, ele indicava 1.3 – wakara bãĩ 1.4 – hwĩha bãĩ
se uma parte (bochecha ou testa), mas não todo o desenho do rosto, fora vista
num local específico. Tais especificações expressam a experiência toya no seu
sentido mais amplo, em que a fase inicial de fosfenos transformava-se na fase
seguinte, de cenas de pessoas e paisagens com os motivos geométricos presentes
ao fundo.
As figuras 1 e 2 contêm desenhos feitos antes de ele retomar seu treinamento
xamânico com seu cunhado, em 1972; e as figuras 3, 4, 5, 6 e 7 demonstram o
aumento de complexidade dos motivos e das cores, após sua retomada dos ritos
de yajé e as identificações que ele indicou.

1.5 – yai bãĩ 1.6 – yai bãĩ

Legenda: Vermelho Magenta

126 127
perspectiva xamânica esther jean langdon

figura 2 figura 3

2.1 – usebo bãĩ 2.2 – wakara bãĩ 3.1 – usebo bãĩ 3.2 – ñaña hwĩha bãĩ
ñu isaiwi (bochechas) ñu isaiwi (bochechas)

3.3 – yai bãĩ 3.4 – ñãta krusu bãĩ 3.5 – ñãta bãĩ
2.3 – yai bãĩ 2.4 – yai bãĩ wi e (testa) / ñu isaiwi (bochechas) ñata krusu (testa) / ñu isaiwi (bochechas) ñu isaiwi (testa) / hu i kãya (bochechas)

ñu isaiwi (testa) / mačoko e ñu isaiwi (bochechas)

2.5 – usebo bãĩ (testa) 2.6 – behi bãĩ 3.6 – hwĩha bãĩ kãya 3.7 – yahe
wakara bãĩ ñu isaiwi (bochechas) ñu isaiwi (testa e bochechas) ñu isaiwi (bochechas)

Legenda: Vermelho Magenta Legenda: Vermelho Magenta

128 129
perspectiva xamânica esther jean langdon

figura 4 figura 5

5.1 – wakara bãĩ wi eña 5.2 – ñaña bãĩ kãya 5.3 – yahe bãĩ
4.1 – behi bãĩ 4.2 – ñaña hwĩha bãĩ kãya
toyasi kãya ñu isaiwi (testa)
sē ke kãya toya (testa)

4.3 – behi bãĩ kãya 4.4 – mačoko bãĩ 5.4 – mačoko bãĩ 5.5 – usebo bãĩ
se ke ñu iwi (testa) kãya toya (bochechas) ñu isaiwi (bochechas) ñu isaiwi (testa) / mačoko (bochechas) hu i kãya (testa) / ñu isaiwi (bochechas)

4.5 – usebo bãĩ toya kãya 4.6 – ñaña de oto bãĩ 5.6 – ñaña bãĩ 5.7 – yai bãĩ ñu isaiwi

se ke ñu isaiwi (testa) ñu isaiwi (bochechas)

Legenda: Vermelho Magenta Legenda: Vermelho Magenta

130 131
perspectiva xamânica esther jean langdon

figura 6 figura 7

6.1 – yai bãĩ ñu isaiwi 6.2 – mačoko bãĩ te e 7.1 – miaza bãĩ / hwĩha bãĩ kuri 7.2 – yahe bãĩ
gina yariba (bochechas) ñu isaiwi (testa) / sē ke toya ba ko a kãya (bochechas)

6.3 – usebo bãĩ 6.4 – usebo bãĩ hu i kãya / yai toya ga wa 6.5 – wakara bãĩ kãya / yai
7.3 – yai bãĩ bosi 7.4 – yai bãĩ bosi he he
wi eña (testa) / ñu isaiwi (bochechas)

6.6 – usebo bãĩ 6.7 – usebo bãĩ te ewi kãya / yai bãĩ 7.5 – hwiha bãĩ 7.6 – yai bãĩ
ñu isaiwi (testa) ñu isaiwi (bochechas)

Legenda: Vermelho Magenta Legenda: Vermelho Magenta

132 133
perspectiva xamânica esther jean langdon

performance, intertextualidade e indexicalidade mente, seus adornos corporais e seus desenhos indexam suas características físicas
quando são vistas deste lado. Algumas das mulheres-onça usam colares de coco de
Este artigo examina o xamanismo como um modo performático, em que o mundo
onça (talvez a Panthera onca, com suas pintas pretas no pelo do pescoço); outras
xamânico é experienciado e construído através da performance ritual, de nar-
têm o cabelo amarrado com pentes (talvez indexando o pelo ressupino orientado
rações da literatura oral e da arte gráfica. Estes três modos de performance são
em sentido contrário ao pelo do resto do corpo do pescoço do Felis pardalis ou
interligados através dos mecanismos de intertextualidade e indexicalidade, tanto
wiedii). A roupa da onça pintada (possivelmente Felis tigrina) caracteriza-se por
para construir a cosmologia siona enquanto uma experiência vivida como para
seus desenhos. Alguns jovens são pretos, pintados com jenipapo (jaguarondi ou
estabelecer expectativas em relação à natureza desta realidade para o futuro. Estes
felis concolor), e outros pintam seus bigodes.7
três modos também têm uma relação com a produção de toya, um conceito mul-
As narrativas também indexam os diálogos entre o xamã e os espíritos que se
tivocal que tem várias conotações: (1) toyá como conhecimento que se refere à
escutam uns aos outros nos ritos através do uso da estratégia de intertextualidade.
viagem que um xamã pode mostrar aos outros no seu rito; (2) as descrições destas
Cada grupo de seres – humanos, animais ou watí, independente de sua aparência
experiências nas narrativas dos xamãs; (3) desenho gráfico que representa os seres
como humano ou não – tem sua própria língua, e a aquisição de conhecimento
invisíveis conhecidos pelo xamã.
xamânico exige a aprendizagem de sua língua ou de seus cantos. As performances
A toya, no seu sentido amplo, é, na performance ritual, a experiência mais
dos ritos são vivenciadas como dialógicas, em que os participantes escutam os
saliente e dramática. Através do uso de roupas e enfeites especiais, num espaço
xamãs dialogarem com seus aliados e outros seres com quem estejam interagindo
afastado de cotidiano e música e movimento que pulsam com os efeitos de yajé,
no outro lado. Em narrativa, este diálogo é representado como “fala citada”, uma
uma experiência sinestésica age corporalmente de tal maneira que a realidade
característica importante que evidencia a veracidade do evento.
ordinária se torna o mundo oculto, luminoso e habitado por uma multiplicidade
Vimos aqui, também, considerando os mitos sobre a Lua e o Sol, que há uma
infinita de seres. Cada participante do rito se esforça para acompanhar o xamã nos
relação intertextual entre narrativa e desenho.
seus caminhos pelo universo. Por um lado, o rito é uma experiência coletiva, em
que os participantes compartilham o toya que o xamã tem para mostrar. Por outro,
comentários finais
é uma experiência subjetiva, influenciada pelo conhecimento do participante e
por suas habilidades de ver, ouvir e pensar sua viagem particular para fazer alian- A arte gráfica dos Siona, considerada arte autêntica ou xamânica ( iko toya), não
ças com os espíritos. As experiências resultantes, coletivas e individuais, não estão deve ser vista como representativa, no sentido de que ela não comunica via metá-
isoladas da construção desta realidade que emerge das performances de narrativas fora. Ao contrário, ela expressa a emergência qualitativa do universo fractal que
xamânicas e da arte gráfica, que devem ser pensadas como atos performativos. é construído nas performances rituais. É, pois, arte performativa e faz parte das
Em particular, a arte gráfica, com suas constantes variações de motivos aparen- outras artes performativas do grupo, ou seja, as narrativas e os ritos. No caso da
temente repetitivos, indexa a experiência subjetiva e também a qualidade fractal arte gráfica, os desenhos do artista evidenciam suas experiências xamânicas e seu
do universo produzido pela ingestão de yajé, a de padrões escalares autossimilares conhecimento do outro lado. Transmitem a identidade do artista como xamã.
(Kelly, 2001: 95) que se replicam. Analogamente, os padrões de socius repetem-se Além disso, a arte gráfica compartilha com o rito a linguagem poética dos can-
através dos povos que vêm cantando e se apresentando nas passagens e nas cenas tos xamânicos e das narrativas, o uso de repetição e redundância para expressar
da experiência no mundo oculto. esteticamente a natureza do universo fractal. As figuras geométricas dos fosfenos
Como argumentei num outro trabalho (2013), a performance narrativa des- resultantes da ingestão de yajé são extremamente repetitivas e estão em constante
creve e indexa os seres invisíveis e a mudança de perspectiva que marca a pas- reconfiguração, e é nelas que os artistas se inspiram para pintar suas experiências
sagem entre a realidade visível e a oculta. Assim, onças, nas suas casas do outro subjetivas. Semelhantemente à repetição e à diferenciação entre os motivos dos
lado, aparecem como seres humanos, e suas roupas, ou peles, estão penduradas desenhos, o paralelismo opera na linguagem poética dos cantos xamânicos e das
nas paredes, esperando serem vestidas quando o povo-onça vem para este lado.
Esta roupa se refere a sua forma animal, não sendo, pois, representação. Igual-
7 Segundo as descrições das espécies da família Felidae (Emmons, 1990: 148-153).

134 135
perspectiva xamânica esther jean langdon

narrativas para expressar a qualidade da performance ritual. Ambas as expressões ______. A Fluidez da Forma. Arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica
poéticas são caracterizadas pelo uso extensivo de repetição, que as distingue da (Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro: Topbooks, 2007.
linguagem cotidiana. Os cantos, em particular, desafiam uma interpretação literal LANGDON, Esther Jean. “Yagé among the Siona: cultural patterns and visions”. In: BROW-
MAN, D.; SCHWARZ, R. A. (orgs.). Spirits, shamans and stars: perspectives from South
ou semântica de seu conteúdo. São cantados para estimular a experiência visual e
America, The Hague, Mouton Publishers, p. 63-82, 1979.
auditiva dos participantes, não para descrevê-la. Os desenhos gráficos, produzidos
______. “Las clasificaciones del yagé dentro del grupo siona: etnobotánica, etnoquímica e
nos rostos dos xamãs com alta repetitividade e redundância, mas sempre com historia”. América Indígena, 46 (1), p. 101-116, 1986.
variação, indexam esta experiência subjetiva. ______. “A cultura siona e a experiência alucinógena”. In: VIDAL, L. (org.). Grafismo indí-
Finalmente, a arte gráfica, como parte da intertextualidade entre os outros gena: estudos de antropologia estética. São Paulo: Editora Nobel, p. 67-87, 1992.
modos performáticos da ação ritual e das narrações orais, contribui para estabelecer ______. “A Morte e Corpo dos Xamãs nas Narrativas Siona”. Revista de Antropologia da
as expectativas nos outros sobre como entender a alteridade num universo fractal. USP, 38 (2), p. 107-149, 1995.
______. “A visit to the second heaven: a siona narrative of the Yagé experience”. In: LUNA,
L. E.; WHITE, S. F. (orgs.). Ayahuasca reader. Novo México: Synergenic Press, p. 21-30,
referências bibliográficas 2000.
AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médicas, ______. “Shamanismo y sueños: subjetividad y representaciones de sí mismo en narrati-
1990. vas de sueños siona”. In: CIPOLLETTI, M. S. (org.). Los mundos de abajo y los mundos
de arriba: individuos y sociedad en las tierras bajas y los Andes. Homenaje a Gerhard
BAUMAN, Richard. Verbal Art as Performance. Rowley, MA: Newbury House Publishers,
Baer. Quito: Editora Abya Yala, p. 26-51, 2004.
Inc., 1977.
______. “El viaje a la casa de los jaguares: Narrativas sobre experiencias extraordinárias”.
CESARINO, Pedro de Niemeyer. “Donos e Duplos: relações de conhecimento, propriedade
Revista Colombiana de Antropologia, 49 (1), p. 129-152, 2013.
e autoria entre Marubo”. In: Revista de Antropologia, 53 (1), p. 147-197, 2010.
MALLOL DE RECASENS, María Rosa. “Cuatro representaciones de las imagenes alucinatorias
DÉLÉAGE, Pierre. “Les savoirs et leurs modes de transmission dans le chamanisme shara-
originadas por la toma de yajé”. Revista Colombiana de Folklor, 8 (3), p. 59-78, 1963.
nahua”. In: BONHOMME, J.; SEVERI, C. (orgs.). Paroles en actes, Cahiers d’anthropologie
MUNN, Nancy D. “Walbiri graphic signs: an analysis”. American Anthropologist, 64 (5), p.
sociale, 5, p. 63-85, 2009.
972-984, 1962.
EMMONS, Louise H. Neotropical Rainforest mammals: a field guide. Chicago: University of
Chicago Press, 1990. ______. “Visual categories: an approach to the study of representational systems”. Ameri-
can Anthropologist, 68 (4), p. 936-950, 1966.
GOW, Peter. “Visual compulsion: design and image in Western Amazonian Cultures”.
NOLL, Richard. “Mental imagery cultivation as cultural phenomenon: the role of visions in
Revindi (Budapest), 2, p. 19-32, 1988.
shamanism”. Current Anthropology, 26, p. 443-461, 1985.
GOW, Peter. “Piro Designs: Painting as Meaningful Action in an Amazonian Lived World”.
REICHEL-DOLMATOFF, Gerardo. “The cultural context of an aboriginal hallucinogen: Ban-
Journal of the Royal Anthropological Institute, 5 (2), p. 229-246, 1999.
isteriopsis caapi”. In: FURST, P. (org.). Flesh of the Gods. Londres: George Allen &
KELLY LUCIANI, José Antonio. “Fractalidade e Troca de Perspectivas”. In: Mana, 7 (2), p. Unwin Ltd., p. 84-113, 1972.
95-132, 2001.
______. Beyond the milky way hallucinatory imagery of the Tukano indians. Los Angeles:
KNOLL, Max; KUGLER, Johann; HÖFER, Oskar; LAWDER, S. D. “Effects of chemical stimu- UCLA Latin American Center, 1972.
lation of electrically-induced phosphenes on their bandwidth, shape, number, and
ROE, Peter G. “Play in the fields of symmetry. Design structure and shamanic therapy in the
intensity”. In: Confinia Neurologia, 23 (3), p. 201-226, 1963.
Upper Amazon”. In: WASHBURN, D. K.; CROWE, D. W. (orgs.). Symmetry comes of age:
KRACKE, Waud. 1987. “Everyone who dreams has a bit of shaman: cultural and personal the role of pattern in culture. Seattle: University of Washington Press, p. 232-303, 2004.
meanings of dreams – evidence from the Amazon”. Psychiatric Journal of the Univer- SCHIEFFELIN, Edward. “Performance and the cultural construction of reality”. American
sity of Ottawa, 12 (2), p. 66-72, 1987. Ethnologist, 12 (4), p. 707-24, 1985.
LAGROU, Els. “Compulsão visual. Resenha do artigo ‘Visual Compulsion’ de Peter Gow”. SCHECHNER, Richard. “O que é performance?”. O percevejo, revista de teatro, crítica e esté-
In: Antropologia em Primeira Mão, 9, Florianópolis, SC., UFSC, 1995. tica, ano 11, n. 12, p. 25-50, 2003.
______. “Duplos, corpos e caminhos: uma abordagem perspectivista da identidade e alter- SEEGER, Anthony; DA MATTA, Roberto; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “A Construção
idade kaxinawa”, Ph.D., University of St. Andrews/doutorado, USP, 1998. da Pessoa nas Sociedades Indígenas Brasileiras”. In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco

136 137
perspectiva xamânica

de (org.). Sociedades Indígenas e Indigenismo no Brasil, p. 11-30, Rio de Janeiro: UFRJ/


Editora Marco Zero. 1987.
Homens, guaribas, mandiocas e artefatos.
SISKIND, Janet. “Visions and Cures among the Sharanahua”. In: HARNER, M. (org.). Hallu- Alguns sentidos da pintura entre os Wajana (Wayana)1
cinogens and Shamanism. New York: Oxford University Press, p. 28-39, 1973.
Lucia Hussak van Velthem
TOWNSLEY, Graham. “Song Paths: The ways and means of Yaminahua Shamanic Know-
ledge”. In: LÉVI-STRAUSS, C. et. al. (orgs). La Remontée de l’Amazone: Anthropologie et
Histoire des Sociétés Amazoniennes. L’Homme, 33, p. 449-468, 1993.
URIBE, Carlos Alberto. “El yajé como sistema emergente: discusiones y controversias”.
Documentos Ceso, n. 33. Bogotá: Centro de Estudios Socioculturales e Internaciona-
les, Universidad de los Andes, 2002.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. “Os Pronomes Cosmológicos e o Perspectivismo Ame-
rindio”. Mana, 2 (2), p. 145-162, 1996.
______. “A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos”. Cadernos
de Campo, 14/15, p. 319-338, 2006.
WEISS, Gerald. “Shamanism and Priesthood in Light of the Campa Ayahuasca Ceremony”,
In: HARNER, M. (org.). Hallucinogens and shamanism. Nova York: Oxford University
Press, p. 40-47, 1973. Desde os primeiros encontros entre europeus e índios na costa brasileira, a estética
corporal dos Tupinambá foi objeto da atenção dos cronistas. Assim, Pero Vaz de
Caminha, Hans Staden e Jean de Léry fazem referência às suas pinturas vermelhas
e negras, e descrevem os seus ornatos faciais de pedra. Nos séculos posteriores,
cientistas, viajantes e artistas mencionam a ornamentação corporal de inúmeros
povos indígenas na Amazônia e produzem valiosos documentos iconográficos,
entre os quais se destaca Hercules Florence, que registrou as pinturas e as tatua-
gens dos Munduruku no Pará (Velthem, 2008).
O estudo da pintura corporal dos povos indígenas foi introduzido na antro-
pologia brasileira a partir das pioneiras pesquisas de Claude Lévi-Strauss (1984)
e Darcy Ribeiro (1979) entre os Kadiwéu de Mato Grosso. Essas análises inter-
pretativas influenciaram muitas das pesquisas subsequentes, voltadas para a
compreensão dos significados dos meios de transformação corporal: pinturas,
tatuagens, escarificações, adornos de materiais diversos, com destaque para a
plumária. Enfatizaram igualmente que essas práticas precisavam ser apreendidas
de forma articulada, pois as mesmas integram, nas sociedades indígenas, uma
função cognitiva e estética global, mas que delineia visões de mundo específicas.
Constituem-se, ademais, em experiências que se legitimam através da incorpora-
ção das características estilísticas de uma filiação cultural que afirma e confirma
uma pessoa, individual e socialmente.

1 Professores wayana da Terra Indígena Rio Paru d’ Este reuniram-se recentemente a fim de estabelecer
parâmetros para a escrita desta língua e deliberaram que o etnônimo deve ser grafado como Wajana,
e não mais Wayana ou Waiana. O presente artigo acata essa decisão.

138 139
homens, guaribas, mandiocas e artefatos lucia hussak van velthem

A elaboração da corporalidade e a noção de pessoa enquanto temas centrais dotados de pinturas que apresentam características cromáticas e iconográficas. Esse
da vida indígena são enfatizados através de múltiplas referências e vários estudos.2 fato garante a necessária distinção entre esses corpos e, através dessa característica,
Existiria inclusive um princípio generalizante segundo o qual saberes e conceitos permite que os Wajana disponham de meios para afirmarem e confirmarem sua
da existência humana, para serem reconhecíveis, devem primeiro ser localizados humanidade. Partimos do pressuposto de que a necessidade de diferenciar os com-
e registrados pelo corpo (Mentore e Santos Granero, 2006). Diferentes povos indí- ponentes cosmológicos é decorrente da existência de algo que acarreta, justamente,
genas desenvolveram práticas e técnicas para modificar a natureza e o aspecto de a sua indistinção. Cabe então indagar qual seria esse elemento, como ele se apre-
um corpo e assim dotá-lo das qualidades sociais requeridas. Essas intervenções senta e, sobretudo, descrever quais são as formas de diferenciação que engendra.
exprimem a humanidade de um corpo de modo individual e, ao mesmo tempo,
remetem a uma identidade coletiva, uma vez que os membros de determinado a criação dos corpos
povo indígena reconhecem-se enquanto congêneres através do uso das mesmas
pinturas corporais e de atavios de materiais diversificados. Para os Wajana, as produções humanas pertencem ao domínio terrestre, o lugar
Tendências recentes na antropologia brasileira enfatizam análises do estatuto onde vivem e onde desenvolvem tecnologias e habilidades que precisam ser
do humano ou da pessoa a partir do estudo das relações estabelecidas com diferen- aprendidas e executadas de acordo com regras sociais. Essas ações resultam em
tes tipos de não humanos, sejam eles extraterrestres, animais, artefatos, grafismos, pessoas, artefatos e alimentos, e estão intimamente conectadas à noção de que
são exercidas a partir de modelos criados nos tempos primordiais pelos demiur-
células ou genes (Sautchuk, 2009: 1). Neste contexto, sobressai um importante
gos (kuiulitom). As tecnologias demiúrgicas são descritas no mito de criação e
campo, a cultura material, cujas abordagens destacam a corporalidade existente
são constituídas por um saber intrínseco, não adquirido, o qual se exerce pron-
nos objetos manufaturados.3 Esse aspecto emergiria de expressões formais que
tamente, adequando-se às necessidades eventuais. A sua principal característica
envolvem uma série de faculdades compartilhadas entre humanos e artefatos, tais
é a de possuir um componente de metamorfose e de expressar a grande ebulição
como a imitação, a antropormofia, a existência de um ciclo vital. Segundo essa
criativa dos primeiros tempos.
acepção, os objetos não seriam coisas que foram produzidas para terem um fim
As criações dos demiurgos são compreendidas pelos Wajana enquanto mode-
utilitário, mas expressariam antes “pontos de convergência” (Barcelos Neto, 2008:
los a serem reproduzidos na fabricação de humanos e dos bens necessários a sua
31) que aglutinariam intenções, relações, propósitos. Evocando sempre alguma
perpetuação física. Os primeiros elementos fabricados foram mulheres, modela-
coisa que está além de sua função e também de seu aspecto formal, um artefato
das a partir das matérias-primas disponíveis: cera, argila e arumã. Essas maté-
seria assim, para alguns, um “precipitado de sentido e de essência cultural” (Bazin,
rias-primas, sucessivamente experimentadas pelos seres demiúrgicos, revelam um
2002: 287), e para outros, um campo constituído por um “borbulhar de corpús-
sentido de escalonamento na elaboração e no aprendizado técnico, tanto primor-
culos que se agregam, porque sensíveis entre si” (Goulard, 2011: 14). Entretanto, a
dial como atual. Para os Wajana, o uso desses insumos delimita domínios que
própria noção de “objeto” deve ser expandida, pois entre muitos povos indígenas
opõem a infância à vida adulta e os homens às mulheres, uma vez que é próprio
esse elemento pode se expressar de diferentes formas, algumas das quais seriam
das crianças modelarem brinquedos de cera, das mulheres confeccionarem vasi-
consideradas inimagináveis.
lhas de argila e dos homens empregarem o arumã nos trabalhos de cestaria.
O propósito das páginas seguintes é discorrer sobre alguns dos sentidos e das
Dentre todas as mulheres fabricadas pelos demiurgos, a que foi tecida com
formulações da pintura entre os Wajana – povo indígena de língua carib que vive lascas de arumã logrou preencher os objetivos fundamentais de uma criação/pro-
em aldeias ao longo do rio Paru de Leste, no norte do Estado do Pará – e sobre como dução. Portanto, segundo esses ditames, ela adquiriu estrutura (forma), um corpo
ela se manifesta em corpos de diversa constituição, humanos e não humanos. Entre humano; identidade (decoração) sob a forma de uma “pintura” castanho-averme-
esses índios, os corpos dos componentes cosmológicos são compreendidos como lhada, resultante do uso do arumã com casca; e também movimento (funcionali-
dade), pois como narra o mito:
2 Como foi apontado no seminal trabalho de Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro (1979) e, entre
outros exemplos possíveis, nas reflexões de Vilaça (2005).
Aí [o demiurgo] fez mulher de arumã. Outro dia está viva, moça bonita. Como vai,
3 Como pode ser apreendido através de recentes publicações (Lagrou, 2007; Barcelos Neto, 2008; e
acordou? Vai trabalhar hoje, tu vai buscar bebida prá mim. Mandioca tu traz, eu
Goulard e Karadimas, 2011).

140 141
homens, guaribas, mandiocas e artefatos lucia hussak van velthem

estou ensinando. Aí está pau pra cavar, aí está jamanchim. Aí Arumana, nome dela,
foi na roça. Arrancou mandioca, trouxe. Ralou, fez hakula [uma bebida fermentada]
(Velthem, 2003: 399).

Em outros termos, uma produção tanto primordial como atual corresponde


à modelagem do informe para a construção de uma estrutura, a imposição de
marcas nessa estrutura para conferir identidade e a adequação de uso e de função,
os indicadores da eficácia daquilo que foi criado.
Pessoas, animais, vegetais, artefatos, produzidos segundo esses parâmetros,
são valorizados porque suas qualidades revelam corpos que foram criados, fabri-
cados e aprovados há muito tempo, aspecto que tem o poder de ampliar as suas
potencialidades. As criações demiúrgicas são paradigmáticas porque, ao reunirem
esses predicados, revelam obras estruturadas, embelezadas e dotadas de ação.
Nos tempos primordiais, determinadas matérias-primas permitiam aos
demiurgos criarem e confeccionarem seres que possuíam corpos diferenciados,
mas que comungavam de mesma essência. Os mitos Wajana relatam que naque-
les tempos os animais, as coisas, compartiam com os humanos uma mesma apa-
rência física, pois todos “eram gente”. No presente, o sentido criativo e produtivo Figura 1: A roda de teto, aliás, a arraia de água doce (IL).
Wajana conecta pessoas e coisas, e assim um mesmo verbo (tïhé) indica que a ação
humana, ao ser exercida sobre matérias corporais – como sangue e sêmen –, vai
produzir filhos, mas ao atuar sobre matérias naturais, como caniços, folhas, cipós, os corpos pintados
madeiras argila, e penas vai resultar em objetos de uso cotidiano e ritual. Entre os Wajana, prevalece o pensamento de que a humanidade de um corpo não
A estreita associação entre pessoas e coisas enquanto corpos fabricados é evi- é inata, mas deve ser construída culturalmente, de forma contínua. Através de téc-
denciada de muitas formas. Há o reconhecimento de que a construção e a manu- nicas e materiais variados são efetivadas mudanças corporais que constituem, fun-
tenção dos corpos – humanos e não humanos – depende de insumos. O termo damentalmente, elaborações que são dotadas de intenção estética, próprias de um
tëkamhe designa as trocas de coisas assemelhadas, sobretudo de alimentos: beijus, embelezamento corporal (tëpetukwai), o qual estaria associado a uma caracterís-
carnes cozidas, bebidas fermentadas, insumos de perpetuação do corpo humano tica cultural e também à saúde e à longevidade (Chapuis, 1998). Essas intervenções
e também de matérias-primas: argila, fios de algodão, pigmentos, cana de ubá, os são geralmente rotuladas pela antropologia sob a expressão “decoração corporal”,
elementos necessários para a confecção dos corpos dos artefatos. e entre os Wajana ela é efetivada através de pinturas de base vegetal, vermelha do
Os objetos produzidos revelam as características formais de seus modelos, urucu4 e negra do jenipapo,5 de escarificações, de adornos plumários e de outros
seres corporificados, de forma integral ou parcelados. Assim, o banco monóxilo materiais, entre os quais se destacam as miçangas e a tanga de tecido industrial
(kololo) representa a carapaça do jabuti e a roda de teto (maluana) da casa ceri- vermelho. Não devem ser esquecidos os constantes banhos, o corte de cabelos, a
monial, a arraia de água doce que é profusamente pintada. Por outro lado, o corpo depilação de sobrancelhas, a retirada de piolhos. Constituindo parte essencial do
humano possui algo dos artefatos, pois suas partes constitutivas podem ser refe- processo de constituição da pessoa e se transformando continuamente, esses com-
ridas, figurativamente, como objetos, como o útero que é comparado a uma cuia ponentes, essas técnicas e práticas, comunicam diferentes intenções e são impor-
(kalapi) para bebidas, e o ventre, ao cesto pïlasi. Contudo, um dos mais importan-
tes elementos de um corpo (-pun) é a coloração que ele exibe, porque é ela que vai 4 Bixa orellana.
estabelecer diferenciações fundamentais. 5 Genipa americana

142 143
homens, guaribas, mandiocas e artefatos lucia hussak van velthem

tantes meios de sustentação da identidade Wajana, e indicam o fundamental papel um mesmo domínio e entre os de diferentes domínios. Efetivando-se por inter-
do corpo e da pele nessa sociedade. médio de elementos gráficos e cromáticos que são compreendidos como “pintura
O corpo humano não detém, contudo, a exclusividade das intervenções dota- corporal”, resulta que os humanos e os demais elementos do cosmos não seriam
das de sentido estético. Essa intenção também pode ser encontrada nas roças, nas apenas dotados de peles, mas sim de “peles pintadas”, o paradigma da decoração/
aldeias, na casa cerimonial e nos objetos utilizados na vida cotidiana, tais como transformação corporal.
cestos, remos, bancos, cuias, cabaças e evidentemente em artefatos que compare- As peles pintadas dos componentes cosmológicos possuem dois níveis de
cem nos momentos rituais, como máscaras, flautas, bancos, recipientes cerâmicos. apreensão, porque cada qual deriva de uma técnica específica. No mais evidente
Humanos e objetos são igualmente decorados porque compartilham uma ela é aplicada, como ocorre na pintura corporal dos humanos e em determinados
série de faculdades, entre elas o antropomorfismo, uma vez que os artefatos são objetos, como os vasilhames cerâmicos. Na outra modalidade, a pintura e o suporte
compreendidos enquanto seres corporificados, ou melhor, constituem corpos, se entrelaçam e se tornam inseparáveis, como se verifica nos artefatos trançados,
integrais ou parcelados. Isso significa que é possível reconhecer em objetos rituais uma característica igualmente percebida na “ornamentação” dos não humanos.
e de uso cotidiano um corpo por inteiro ou apenas uma de suas partes, tal como
a cabeça, o tronco, os membros ou os olhos. Na configuração parcelada, a iden-
tificação do ser representado é conferida pelo “traço definidor” (Velthem, 2003:
306), que vem a ser a materialização do elemento crucial que permite associar um
artefato a seu modelo prototípico, permitindo, assim, identificá-lo.
Corpos integrais ou divididos, concretizados nos artefatos, delineiam uma
visão de mundo específica a partir da qual uma forma aparentemente humana não
constitui uma garantia de humanidade (Vilaça, 2005). Segundo esse pressuposto,
os artefatos Wajana não detalhariam necessariamente corpos humanos, pois seus
modelos são antes a anatomia de animais, de seres arquetípicos ou de sobrenatu-
rais, esses últimos adquirindo, por essas artes, visibilidade e a capacidade de agir.
Isso ocorre sobretudo nos momentos rituais, através dos objetos produzidos neste
contexto, tais como a máscara olok, que reproduz nos mínimos detalhes o sobre- Figura 2: Abano com pintura entrelaçada (LVV).
natural antropomorfo Olokïmë. A essa representação são agregados movimentos,
odores, sons, peculiares ao sobrenatural, e é o acúmulo de especificidades que
permite ao artefato desencadear os processos metamórficos, fundamentais para o
ritual em que é empregado.
É evidente que os humanos e os artefatos não estão sozinhos no cosmos
Wajana, pois muitos outros elementos também dotados de corpos o povoam: ani-
mais, vegetais, sobrenaturais, demiurgos. Um importante componente anatômico,
a pele (pïtpë) é compartilhada por todos esses seres, quer sejam humanos ou não,
uma vez que é indispensável a qualquer tipo de corpo a posse de um revestimento.
A ênfase conferida a este elemento deriva do fato de ele ser, para os Wajana, um ele-
mento mediador, que confirma sua sociabilidade.6 Representa, ademais, um impor-
tante meio para o estabelecimento de identidades, operante entre os membros de

6 Ver Chapuis (1998) sobre as funções gerais da pele, as representações associadas e o seu papel entre os
Wayana. Figura 3: Recipiente de cerâmica com pintura aplicada (LVV).

144 145
homens, guaribas, mandiocas e artefatos lucia hussak van velthem

A pintura corporal dos humanos é aplicada e, portanto, cambiável, pois se A epiderme do branco europeu e brasileiro é percebida como “embranque-
adapta às mudanças básicas e polarizadas da vida. Em uma época relativamente cida” (tïkoloke). Dessa mesma tonalidade é julgada a pele dos Wajana depois de
recente, essa prática era extremamente marcada, pois no cotidiano os Wajana prolongada doença, tal como a pele dos adolescentes após o resguardo, o que pode
untavam-se com uma tintura uniforme e vermelha à base de urucu, a qual se con- ser um fato ou apenas uma metáfora. A coloração preta da epiderme dos Saamaká,
trapunha aos meandros gráficos, produzidos com tinta preta do sumo do jenipapo, Ndujka, Aluku e dos brasileiros afrodescendentes é identificada como “enegre-
e apropriados para os tempos rituais até o presente. Essa alternância identifica os cida” (talilime). São considerados desta cor os Wajana que viajam expostos ao sol,
humanos enquanto seres “temporariamente pintados”. Neste caso, a pele permite a sem elementos de proteção contra os raios solares.
construção de uma identidade social e individual que é reforçada justamente pela Deve ser sublinhado que não é apenas a epiderme dos Wajana que muda de
capacidade que os humanos têm de cambiar a sua estética corporal e, desta forma, cor. A própria tintura de urucu sofre alteração de tonalidade e, assim, pode ama-
se transformar. Uma ornamentação intrínseca, ou seja, uma pintura corporal que, relar (takpiletawan), o que constitui um mau presságio – e, por esse motivo não é
em sua origem, constitui o próprio suporte, a própria pele, representa uma carac- apreciada –, ou então escurecer e tornar-se castanho-avermelhado (tamalë), um
terística dos não humanos. Esse fato indica que esses seres são “permanentemente matiz que é extremamente valorizado, pois remete à tonalidade da pele da mulher
pintados” porque não possuem meios de modificar sua estrutura epitelial, uma primordial, criada pelos demiurgos a partir de arumã com casca.
vez que ela denota a sua própria natureza. Outra forma distintiva se define enquanto uma superfície recoberta por
A pintura corporal, temporária ou permanente, constitui fundamental ele- pontos ou “pontilhada” (tïmilike), ou ainda por manchas circulares em tom
mento de identificação. Sua expressividade e sua importância decorrem do fato de contrastante. O pontilhado reproduz iconicamente a pelagem da onça-pintada,7
estarem intimamente ligadas a uma elaboração cromática. As cores, por seu turno, que representa para os Wajana um dos mais significativos animais, devido ao
proporcionam a mais fundamental das ordenações, uma vez que conectam domí- seu tamanho e à sua ferocidade. Essa configuração a representa e, metonimi-
nios inicialmente desconexos, como humanos, animais, objetos, plantas, sobrena- camente, aos demais seres que com ela convivem nas matas e nos espaços da
turais. Neste sentido, a principal função das cores é a de ser um veículo que aguça natureza. Marcas corporais similares, mas que conformam elementos gráficos,
a percepção de identificação, a qual é necessária para a ordenação cosmológica. constituem atributos de uma categoria de seres de aspecto antropomorfo (iolok),
Desta forma, são identificados os diferentes seres e domínios cosmológicos, uma cujos componentes vivem nos confins da floresta e são especialmente associados
vez que cada qual está relacionado a uma configuração específica: unicolor, ponti- às práticas xamânicas.
lhada e listrada. Reconhecidas como estéticas, essas configurações são iconográfi- Uma superfície que possui riscas ou listras de cores contrastantes constitui
cas porque descrevem com precisão a estética corporal de um ser paradigmático, o “listrado” (tëpiatse), que se diferencia em composições horizontais (tipkëlelei) e
identificando-o e, paralelamente, ao domínio a ele associado. verticais (huuman). Quando são multicores (kinoloimëman) expressam o colorido
Uma superfície recoberta uniformemente de pintura representa o “unicolor” da pele do peixe pirarara.8 As listras descrevem de modo iconográfico o arco-íris, a
(tonophe). O paradigma dessa modalidade é uma pintura de tonalidade vermelho manifestação física de uma enguia/serpente sobrenatural, Walamuïme. O listrado
vivo, obtida das sementes de urucu, e constitui a decoração corporal por excelên- encarna este ente específico, e outros sobrenaturais, pois todos comungam das
cia dos humanos. Essa tintura vegetal, por ser justamente uma elaboração cultural, mesmas potencialidades.
simboliza a própria condição social do “ser Wajana” e não propriamente do “ser Em numerosos artefatos podem ser percebidas composições que conjugam
gente”. Esta última condição se estrutura a partir de uma decoração que não é cores uniformes e elementos pontilhados e listrados.9 Apresentam-se sob diferen-
adquirida culturalmente, mas reflete a própria cor da epiderme, a qual permite tes formas, pois devem se adaptar às técnicas de cada categoria artesanal. A sua
classificar os humanos em dois grupos abrangentes. Os Wajana e os demais povos
indígenas conhecidos são os kuekëkom, pois reconhecem que têm a mesma colora- 7 Panthera onca.
ção epitelial. Os que têm peles de outros matizes são identificados como kapekom, 8 Phractocephalus hemioliopterus.
uma categoria que é integrada pelos descendentes de europeus e de africanos. 9 Trata-se de algo semelhante ao que foi referido por Müller, 1990: 233 como “unidades mínimas de
significação”.

146 147
homens, guaribas, mandiocas e artefatos lucia hussak van velthem

principal função estética consiste no preenchimento dos campos vazios, isolados aspecto uniforme ou conformar padrões iconográficos ou listrados pelo contraste
pelo tracejado dos motivos gráficos. Como é possível que a pintura corporal ou a cromático. Com pintura, os homens decoram as rodas de teto, as flechas, os talos
pintura dos artefatos, apresentem concomitantemente todas as unidades mencio- de arumã que serão trabalhados na cestaria, as bordunas cerimoniais, os saiotes
nadas, evidencia-se um sentido de recapitulação cosmológica que é a essência da para máscaras. As mulheres a aplicam no próprio corpo e no de pessoas aparen-
arte Wajana, influenciando de alguma forma o seu estilo. tadas, e ainda nas rodas de teto, na cerâmica, nos bancos cerimoniais e em utensí-
lios de cuia e cabaça, quando empregam tições. Idealmente, a pintura corporal de
urucu é suspensa quando os Wajana estão de luto ou doentes, ou por ocasião do
nascimento dos filhos e nas fases pós-ritual. A reintrodução da pintura é gradativa
e em sua fase inicial recobre apenas os pés e as pernas até os joelhos, depois o
tronco e finalmente o corpo todo.

Figura 4: Desenho de pintura corporal (Sipatae).

O revestimento corporal, ou melhor, a pele dos integrantes do cosmos consti-


tui o suporte que revela tanto uma estética atribuída aos humanos e às suas fabri-
cações, como outra, intrínseca, que é peculiar aos demais componentes. Os reves-
timentos dos humanos e dos não humanos se submetem a procedimentos que
propiciam diferentes marcas/pinturas corporais, e, por conseguinte, é através da
técnica da pintura que melhor podem ser apreciadas as potencialidades produti- Figura 5: Pintura de um banco cerimonial (LVV).

vas, destrutivas e também estéticas desses componentes cosmológicos.


Na aplicação da pintura sobre os diferentes suportes,11 homens e mulheres
Entre os Wajana, a mais importante das técnicas transformativas10 dos corpos
utilizam os dedos e diversos instrumentos. Os dedos proporcionam superfícies
é a pintura (onoptop), pela diversidade tanto dos pigmentos utilizados como dos
uniformes na pintura corporal e na cerâmica, na qual produzem um efeito que se
suportes em que é aplicada. A pintura é empregada por homens e mulheres, e se
equipararia ao de um “banho de tinta”. Em outros artefatos, sobretudo em flechas
define basicamente pela ausência de relevo. O resultado de sua aplicação pode ter
e panelas, a superfície pintada é posteriormente arranhada com as unhas, o que
10 Outra técnica é a amarração (tipumuhé), que corresponde ao envolvimento ou entrelaçamento de fios
de algodão ou de miçanga; o entalhe (pahié) é representado tanto pelas escarificações corporais como 11 Nos últimos anos, o desenho e a pintura sobre papel se tornaram importantes meios de registro e de
pelas gravuras em madeira ou em outro suporte. expressão artística entre os Wajana e os Aparai.

148 149
homens, guaribas, mandiocas e artefatos lucia hussak van velthem

permite conformar grafismos. Essa modalidade (tëwupkai) apresenta analogias


formais com as marcas produzidas pelas garras dos felinos, também designadas
por esse termo. Os grafismos produzidos com essa técnica são altamente valoriza-
dos, porque são comparáveis a intervenções estéticas produzidas por predadores
que teriam executado, com suas garras, desenhos na superfície dos mencionados
artefatos.
Os instrumentos empregados nas pinturas são variados tipos de pincéis, rígi-
dos e flexíveis. Os primeiros são confeccionados com finas talas de palmeiras pro-
vidas de pontas de algodão (tiktikmatop) e empregados na pintura de cerâmica
e de bancos. Os flexíveis, entalhados em taboca (kulupëetop), são exclusivos da
pintura corporal de jenipapo, mas os que são feitos de argila e do cabelo da pró-
pria artista (umletpë) permitem um tracejado extremamente fino e se destinam a
pintar os vasos de cerâmica e a roda de teto da casa comunitária.
Os diferentes pincéis são compreendidos como dotados de atributos especiais
porque “fazem grafismos” (miliktop), uma vez que os possuem em si, de forma
inerente. Essa característica, aproximada a uma forma de conhecimento, é pró-
pria dos pincéis e constitui o elemento que dota esses implementos de ação. Os
Figura 6: Produção de pigmentos minerais (LVV).
“saberes” dos pincéis não são indiscriminados, e, assim, os de tala de palmeira
possuem/conhecem a decoração dos grandes felinos porque são pontilhadores; os
Os pigmentos de origem vegetal fornecem duas colorações básicas, o negro
flexíveis têm em si as pinturas corporais da sucuri sobrenatural, porque propor-
e o vermelho. A tintura negra paradigmática, empregada na pintura corporal e
cionam um tracejado fino e acurado, o que representa uma característica dessas
nas hastes das flechas, é tanto originária do jenipapo (kulupë) como do jenipapim
pinturas e de sua técnica reprodutiva.
(pisusuk).13 O primeiro frutifica na mata e o segundo cresce na beira do rio e é
Outra técnica para se produzir grafismos é através do fogo e dos tições arden-
utilizado quando os Wajana não conseguem o jenipapo. Para a obtenção da tinta
tes, uma decoração que é considerada pintura. Com o primeiro elemento, os
(kulupë anon), os frutos do jenipapo são ralados e espremidos, e ficam de repouso
homens traçam grafismos em claro-escuro nas varetas de reforço dos cestos car-
de um dia para o outro; os do jenipapim são assados em folhas de bananeira e
gueiros. Tições ardentes são, entretanto, utilizados para “esfolar” (tïkuihé) cuias e
esmagados, misturados com água e postos a decantar.
cabaças verdes e assim produzir elementos gráficos contrastados, uma arte exclu-
O urucu (onot) constitui o paradigma dos pigmentos vermelhos. É cultivado
sivamente feminina. nos roçados e na periferia das aldeias, e para ser empregado sofre demorado pro-
Na pintura, os pigmentos empregados podem ter origem mineral12 ou orgâ- cessamento: as sementes são lavadas e fervidas até serem reduzidas a uma pasta
nica. A paleta dos corantes minerais, retirados dos leitos de igarapés, compreende que será moldada em forma de um “pão” alongado, posteriormente posto para
as cores branca, vermelho-castanho, ocre e preto-acinzentado. Para a formação secar. Para aplicação no corpo humano, o urucu é misturado ao óleo de andiroba
das tintas, os corantes são triturados em uma pedra plana, diluídos com um pouco ou a outras emulsões, como a gordura derretida do macaco coamba ou do peixe
de água e aplicados sobre diferentes suportes com os referidos pincéis. pacu, ou ainda de uma substância extraída do cipó waiali. O uso das diferentes
emulsões é decorrência direta de sua disponibilidade e também de uma aprecia-
ção olfativa. A pintura de urucu possui nítidos propósitos de afastamento dos
12 Caolin para o branco, óxidos e hidróxidos de ferro para o vermelho e o ocre e o óxido de manganês
para o preto. 13 Tocoyena formosa.

150 151
homens, guaribas, mandiocas e artefatos lucia hussak van velthem

odores corporais, considerados desagradáveis e desaconselhados no contato de com a tinta vermelha do urucu, mas o macaco guariba foi integralmente “passado
uma pessoa com os demais membros da comunidade. As relações sociais devem no urucu” (onotiau). O macaco coamba, por sua vez, foi inteiramente pintado
ser idealmente mediadas pelo rescender do cheiro do urucu fresco misturado a de negro (kulupeiau) com o sumo extraído do jenipapo. Este é motivo porque
uma emulsão odorante, pois esse é o paradigma do aroma apreciado pelos Wajana. esses dois símios15 constituem os arquétipos da dupla cromática vermelho/negro
A pintura facial é particularmente estruturada e complexa, e possui certa e assim representam o referencial que nomeia uma infinidade de invertebrados e
autonomia em relação à pintura do corpo. Além do urucu, são empregadas tin- muitas outras coisas, as quais possuem cores que são assimiladas a um ou a outro
turas variadas, de coloração negra e vermelha de base vegetal, algumas das quais desses símios.16
superpostas. Uma se destaca por comportar um elemento oloroso (palili), e em
sua composição entram a fuligem recolhida em uma panela de argila, o óleo de
andiroba e a seiva do breu de incenso. Outra tinta (sipê) tem coloração averme-
lhada e é composta de urucu processado, misturado ao óleo de andiroba e à seiva
de uma árvore não identificada (alakuhelë ), extremamente odorífera.
Mencionou-se anteriormente que a mais elementar identificação corporal é
a que considera um aspecto cromático. Enquanto resultado de uma pintura, essa
percepção é justamente designada como anon, “tinta”, “cor”, “pigmento”. Esse vocá-
bulo nomeia o resultado de uma manipulação técnica e estética que se traduz em
uma superfície uniformemente pintada ou em um grafismo particular ou mesmo
em um elenco de grafismos. Executados com pigmentos liquefeitos podem ser
visualizados no corpo humano e também em artefatos sem, contudo, represen-
tarem um repertório, pois essa noção está vinculada aos sobrenaturais e a outras
esferas cosmológicas.14
O termo anon possui outros regimes de percepção, mas todos estão conec-
tados a uma qualidade estética que advém de uma concepção ampla de “pintura
corporal”. Assim sendo, a tonalidade da pelagem dos mamíferos e o colorido das
plumas das aves amazônicas também são designadas como anon. Muito embora
Figura 7: Macacos coamba e guariba (Mukaia).
sejam, na atualidade, percebidos como intrinsecamente dotados de pinturas,
houve uma época em que esses seres tiveram cores indistintas, ou melhor, eram
Ao contrário dos mamíferos, as aves não foram pintadas, mas resolveram se
“descoloridos” (anonpïla). Para adquirirem especificidade, passaram por um pro-
pintar sozinhas. Um mito descreve a forma como adquiriram as suas brilhantes
cesso transformativo, e assim foram pintados ou então se pintaram.
cores, estas contidas no sangue do muçum sobrenatural, que é inteiramente pin-
tado com listas multicores por ser a manifestação do arco-íris. Na narrativa mítica,17
guariba, tucano, mandioca e outros seres pintados
o primeiro pássaro que viu o corpo do sobrenatural todo pintado foi o joão-bobo
As narrativas míticas dos Wajana enfatizam que nos tempos primordiais os ani- (tutu). Desejoso de ter penas coloridas, convidou os demais para pegarem as tintas
mais compartilhavam com os humanos uma mesma aparência física. Neste estado, e com elas se pintarem:
muitos foram pintados pelos demiurgos, como parte do processo de fabricação a
15 O macaco guariba, mais especificamente guariba-vermelho, pertence ao gênero Alouatta. O macaco
que estavam subordinados. O veado e a cotia tiveram apenas as costas untadas coamba (Ateles paniscus) é também conhecido como coatá de cara vermelha ou macaco aranha.
16 Como, por exemplo, a aranha-caranguejeira, que compreende as subespécies referidas como “caran-
14 Por esse motivo usamos a designação “repertório” para o conjunto de padrões dos sobrenaturais e guejeira guariba”, porque é avermelhada, e “caranguejeira coamba”, porque é negra.
“elenco” para os padrões empregados pelos Wajana. 17 Ver a versão completa do mito em Velthem (2003: 415-16).

152 153
homens, guaribas, mandiocas e artefatos lucia hussak van velthem

Eles [os pássaros] começaram bicando o muçum, mas não conseguiram furar. Logo, carmim, púrpura, ferrugem, fulvo e também dourado. A coloração negra (tariri-
tucano e arara desistiram. João-bobo continuou. Bicou, bicou, até que furou, espa- man) possui como paradigma uma tintura produzida com fuligem, misturada a um
lhando sangue. Ali estavam as tintas de Walamuimë: vermelho do urucu, preto do
mordente. Os matizes conectados são: cinza, marrom, azul-marinho, violeta, roxo,
jenipapo, outras tintas. Tutu pegou urucu bem vermelho, pintou seu penacho. Awök
[mutum] passou jenipapo, por isso é todo preto. Akawak [jacu] e markao [inambu] só azul rei, azul cobalto, verde escuro e também os metais escuros.
pintaram com urucu as pernas, que ficaram vermelhas. O urucu de kuiali [arara] era O cromatismo também possui uma dimensão individual, e em sua classifi-
velho, por isso ficou pintada de vermelho-escuro. O de kinolo [arara canindé] ama- cação percebe-se que ocorre uma distinção entre as tonalidades industriais e as
relou, por isso tem o peito amarelo. Kiapok e këlu [tipos de tucanos] quiseram imitar demais. As primeiras são encontradas nas miçangas de vidro para adornos corpo-
walamúimë, se pintaram fazendo listas amarelas, vermelhas, pretas (Aimore, 1991).
rais de homens, mulheres e crianças, tal como nos tecidos para tangas e mosqui-
As cores da plumagem dos pássaros são “desejadas pelos olhos” (ëwumakpe) teiros. Os diferentes matizes das miçangas possuem uma nomenclatura descritiva,
porque constituem cores que estão em harmonia e assim são agradáveis de serem extremamente detalhada. Para a cor azul, por exemplo, existem quinze designa-
vistas. Essa mesma conotação é aplicada a pessoas consideradas bonitas e a mui- ções que definem com precisão as suas diferentes tonalidades.
tas fabricações humanas, masculinas e femininas, entre as quais os adornos teci- A trilogia branco/vermelho/negro é importante para a vida dos Wajana por-
dos com miçangas, sobretudo quando associam as cores vermelho-coral e azul- que representa um código classificador que determina diferentes estados físicos e
cobalto, ressaltando assim o grafismo elaborado. sociais dos humanos, e igualmente dos não humanos de distintos espaços, tanto
terrestres como aquáticos. Essas operações classificatórias têm como base o regis-
Como narra o mito, desde os tempos primordiais as cores e a técnica da pin-
tro simbólico de cada cor e oscila entre os polos da carência e do excesso. Generi-
tura representam o paradigma da diferenciação/decoração corporal, e, por con-
camente indica que o branco está associado à carência e a situações periféricas, o
seguinte, tudo o que não está pintado, também não está decorado, pois está “sem
negro ao excesso e ao mundo não social, o vermelho à sociabilidade e à moderação.
tinta” (anonnumná). Entretanto, segundo as concepções dos Wajana, essa possi-
A trilogia cromática extrapola os âmbitos mais propriamente “decorativos”
bilidade é praticamente inexistente, porque todos os componentes do universo
para se converter em fundamental vetor de identificação cosmológica. Assim
possuem cor, a qual se manifesta através do revestimento corpóreo, permitindo
sendo, identifica e ao mesmo tempo revela a diferença existente entre os regimes
assim que todos os seres sejam dotados de alguma forma de pintura corporal.
de cheia e vazante apresentados pelas águas de rios e lagos,18 assim como a maior
A coloração percebida no revestimento dos diferentes componentes cosmo-
ou menor fertilidade dos solos em relação à agricultura e aos próprios cultivares.
lógicos tem como referência as tonalidades fundamentais, citadas em diferentes
Desta forma, para as terras cultiváveis a percepção cromática e o simbolismo atri-
narrativas míticas. Compreende o vermelho (-pile), o branco (-koloké) e o negro
buído às cores se evidenciam através de uma variação produtiva que distingue os
(tariri). Essa trilogia representa, segundo a acepção dos Wajana, os pigmentos
solos amarelados ou brancos (tilótawaman), que são de baixo rendimento, dos
mais puros, os que denominamos “cores primárias”, as que não podem ser criadas
avermelhados (tïlópilem) de média produção, e ambos dos solos escuros ou pretos
através de mistura (Cole, 1994: 62). Outros matizes, como o amarelo-alaranjado
(tïlópumen), que são de alto aproveitamento.
(tawa), de acordo com a intensidade se aproximam do branco ou do vermelho,
Esse mecanismo classificatório, ao operar em muitos domínios, assume um
resultando no que conhecemos como uma “cor secundária”.
caráter fundamental para a vida dos Wajana, pois a citada trilogia permite iden-
A percepção visual das cores primárias destaca um paradigma que é o elemento
tificar ainda cada vegetal e animal comestível, estabelecendo assim os parâme-
que contém o tom ideal. A este tom, os Wajana comparam, por aproximação, outros
tros para proibições e permissões que são inerentes ao sistema alimentar. Neste
matizes, naturais e industriais, que em conjunto operam de modo classificatório. A
sistema, o branco identifica os nutrientes que são propícios a todos, devido aos
coloração branca (tïkoloké) possui como paradigma o caolin e como matizes apro- atributos de escassez que dotam as substâncias desta cor de qualidades neutras e
ximados: bege, areia, gelo, ocre, amarelo-limão, azul-cerúleo, rosa-claro, verde-claro mediadoras. Os alimentos “brancos” são paradigmaticamente representados atra-
e também prateado. A cor vermelha (takpile) tem como padrão a tinta de urucu
quando fresca, cuja coloração é a da laca chinesa. Os matizes que se aproximam
18 Neste regime, por exemplo, as águas rasas do rio são consideradas “brancas”, as águas montantes são
desta cor são: amarelo-ouro, laranja, vermelho-sangue, castanho-avermelhado, “vermelhas” e o rio cheio, no auge do inverno, é percebido como “negro”.

154 155
homens, guaribas, mandiocas e artefatos lucia hussak van velthem

vés do beiju de mandioca, que nunca cessa inteiramente de ser consumido, e de Entre os cultivares , a mais detalhada classificação é a que recai sobre as raí-
uma espécie de peixe piaba,19 que representa a primeira proteína ingerida após zes da mandioca brava (ulu), das quais se considera, sobretudo, o revestimento
uma restrição alimentar. interno, pois este possui coloração diferenciada, ao contrário da película externa
Afastando-se desse ideal de neutralidade estão os alimentos considerados que é sempre marrom. A casca interna da mandioca é a sua “pele” (pitpë) e ostenta
vermelhos, como o são muitas frutas e muitos tubérculos, tal como algumas a sua “pintura corporal”, que pode ser branca, vermelha ou negra. Segundo esses
bebidas fermentadas, sobre os quais podem recair interdições. A cor vermelha, critérios, uma espécie de tubérculo, de casca interna rosa forte, está pintada de
ao se conectar especialmente com a humanidade e a sociabilidade, transmite aos urucu, mas outra, de cor violeta escuro, estaria pintada com jenipapo, termo que
elementos comestíveis essas características e assim só se neutralizam quando os justamente a identifica (kulupë ulu). Devido a esta “pintura ritual”, esse tipo de
comensais estão de posse de todas as prerrogativas sociais. Isso significa que as mandioca é empregado na confecção de bebidas fermentadas, ingeridas em situa-
pessoas estariam igualmente “vermelhas”, simbólica ou efetivamente, pela pintura ções ritualizadas ou cerimoniais. Mandiocas e batatas-doces de coloração averme-
corporal de urucu. As mulheres são as mais suscetíveis, devido às associações dos lhada também cambiam a sua “pintura”, pois se tornam brancas ao serem esfola-
alimentos de coloração avermelhada com o sangue menstrual, e sobre elas recaem das, mas enegrecem ao apodrecerem.
as principais interdições. Algumas das bebidas fermentadas produzidas pelas mulheres wajana com
Os alimentos negros e os arroxeados, identificados com determinados ani- beijus e batatas doces também estão subordinadas à trilogia cromática, o que con-
mais, tais como as antas, as enguias e os macacos, com tubérculos cultivados e tribui grandemente para sua apreciação gustativa e social. Uma delas é apreciada
também com os remédios industriais escuros, são marcados pelo excesso. Subs- como sendo a mais social das bebidas (hakula), por ser esbranquiçada, entretanto
tâncias desta cor são cautelosamente ingeridas porque são objeto de restrições a produção de outra bebida (umani) requer que os beijus se recubram de mofo,
severas e contínuas. Entretanto, no que se refere aos animais, outros fatores, como o qual pode se apresentar enegrecido, quando a bebida é alcunhada de “macaco
o aspecto físico e a consistência da carne, também são importantes na determi- coamba”, ou então formar um bolor avermelhado que resulta em uma bebida
nação do quadro restritivo. Muitos alimentos com essas características são o pri- muito apreciada, apelidada de “macaco guariba”.
vilégio de pessoas idosas, sobre as quais recaem poucas interdições. Aos velhos
são ainda atribuídas as espécies animais consideradas extremamente “decoradas”, os homens-urucu, passado e presente
como é o caso do peixe pirarara.20 As primeiras referências sobre os Wajana surgiram no século XVIII. Nesta época,
O sistema que rege as restrições alimentares de uma pessoa é extremamente e até o final do XIX, estes índios são designados na Guiana Francesa como
complexo, pois é diretamente influenciado pela faixa etária, pelos estados físico Roucouyennes ou Rocoyen, e como Uruguiana, no Brasil. Esses apelativos, segura-
e social, e também pelas relações de parentesco e de coabitação em uma mesma mente, tiveram origem na característica pintura corporal vermelha à base de urucu,
aldeia. As principais evitações alimentares recaem sobre os animais ingeridos, mas que tanto impressionou missionários, militares, mercadores e cientistas que os con-
incidem igualmente sobre determinados vegetais, sobretudo os de cor escura. tatavam. Entretanto, muitos outros grupos indígenas da área guianense também
A alimentação está diretamente ligada à noção de pessoa, pois apenas os empregavam uma pintura vermelha similar, mas esta não os identificou como uma
humanos têm a capacidade de estabelecer critérios sobre o que pode comido, em marca distintiva. O militar holandês Stedmann [1796] (1972: 209) testemunha a
que momentos e de que forma. Os humanos se contrapõem assim aos animais e esse respeito, pois menciona que no século XVIII a pintura de urucu era comum a
sobrenaturais, pois estes se lançam sobre seus alimentos de modo indiscriminado todos os povos indígenas das Guianas, inclusive entre os de língua aruak.
e voraz. Este comportamento seria igualmente perpetrado pelos inimigos, entre As fontes bibliográficas informam que a visão de homens integralmente pin-
os quais se inserem os não índios que, de acordo com as observações dos Wajana, tados de vermelho acarretou comentários controversos. Para o citado Stedman, os
não comem de forma seletiva nem apropriada. índios pintados que encontrava tinham “a aparência de lagostas fervidas” (Idem,
ibidem). O geógrafo francês Crevaux, entretanto, descreve que a pintura dos Rou-
19 O termo ëpi (piaba) designa os remédios ocidentais de cor branca, os únicos apreciados pelos Wajana. couyennes, com os quais se deparou no rio Jari e posteriormente no rio Paru de
20 Phractocephalus hemioliopterus. Leste, em viagens empreendidas entre 1876 e 1879, teria um objetivo embelezador:

156 157
homens, guaribas, mandiocas e artefatos lucia hussak van velthem

A tonalidade da pele [dos Wajana] é marrom-amarelada, como a cor de folhas mor- uma cor vermelho-escuro, a mesma coloração do urucu envelhecido (tamalë).
tas, o que não é agradável de ver. Tiveram a feliz ideia de se pintarem de um bonito Essa tonalidade de vermelho, levemente acastanhada, é a mesma que pode ser
vermelho chamado roucou (urucu) (Idem, 1987: 145).
observada nos trançados de arumã com casca e descreve a cor da pele da mulher
Em meados do século XX, houve numerosas menções sobre as pinturas cor- primordial que, como mencionado, foi produzida com essa matéria-prima. Esta
porais vermelhas de urucu, utilizadas pelos índios de fala carib, os Wajana, Apa- coincidência permite que essa tonalidade seja a mais social de todas as cores.
rai, Tiriyó, habitantes da região das Guianas. Entre outros, o chefe da Comissão Outra constatação ocorreu no âmbito das oficinas de valorização e gestão23
Demarcadora de Limites, que percorreu o rio Jari entre 1930 e 1940, contatando dos conhecimentos dos Wajana e dos Aparai. Os registros gráficos sobre papel, de
os Aparai e os Wajana, faz referência em seu relatório ao uso de pinturas de urucu livre escolha, retratam em geral as pessoas na cor vermelha, indicando a antiga e
e jenipapo (Aguiar, 1943). Uma descrição mais detalhada, e também romântica, costumeira pintura à base de urucu.
dessa prática pode ser encontrada no Handbook of South American Indians:
... os homens carib a cada manhã se lavam e se sentam em suas casas, as mulhe-
res untam com óleo suas cabeleiras, as penteiam e pintam seus corpos de vermelho.
(Rause, 1948: 552)

Entre os Wajana e os Aparai21 no Brasil, a pintura de urucu representava


uma atividade cotidiana, corriqueira e generalizada, que foi constatada até o final
da década de 1970. Em princípios da década seguinte essa prática persistiu, mas
foi grandemente nuançada, pois muitas pessoas apresentavam apenas a pintura
das pernas, o que indicava também que principiavam o levantamento das restri-
ções relativas ao luto ou à reclusão pubertária. A década posterior foi de grande
transformação cultural para os habitantes do rio Paru de Leste com a chegada de
famílias indígenas evangelizadas, provindas do Suriname. Suas lideranças exerce- Figuras 8 e 9: Desenhos produzidos durante as oficinas (Sapotoli/Anakare).
ram forte pressão para que os Wajana e os Aparai do rio Paru de Leste mudassem
as suas formas de vida em comunidade e seus hábitos individuais. A permanência da pintura corporal enquanto uma forma de expressão artís-
Muito embora não se pintem mais com urucu, o que é explicado por alguns tica e étnica entre os povos indígenas no Brasil está sob constante ameaça. O
indivíduos como sendo decorrente tanto das sucessivas mortes nas famílias como incremento das visitas aos centros urbanos, a introdução do vestiário, a educação
do encadeamento de nascimentos dos filhos e da introdução de vestuário, a cor escolar e a ação missionária, que busca desestruturar a estética corporal dos ame-
vermelha, simbolizada pela pintura de urucu, não perdeu completamente as suas ríndios, constituem alguns dos fatores que acarretam a perda das condições indis-
funções originais. pensáveis para a sua significação e transmissão. Entretanto, deve ser considerado
Observou-se, recentemente, que esta cor permanece como a expressão de uma que a atual posição dos índios no Brasil é delineada a partir de várias opções estra-
identificação que particulariza os Wajana, pois nas aldeias as meninas continuam tégicas (Carneiro da Cunha, 2012). Neste quadro, a estruturação da estética corpo-
a brincar com o fruto da mungubeira22 (kunan), que quando maduro adquire ral, enquanto significativo elemento de distinção pode vir a ser alterada, reforçada,
construída, em função de situações em que vai adquirir duplo sentido, interno e
21 Os Aparai mantêm estreitas relações de convivência há mais de um século com os Wajana, o que resul-
tou em múltiplos casamentos e em uma coexistência pacífica. Esse longo e estreito convívio propiciou
a troca de muitos elementos culturais entre esses povos indígenas, gerando certa homogeneidade cul- 23 De 2005 a 2008, esteve em curso nas aldeias do rio Paru de Leste o Programa de Valorização Cultural
tural, mas sem eliminar totalmente a especificidade de cada etnia. Este é o motivo pelo qual não é licito do Tumucumaque Leste em associação com o Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena. A
afirmar que os Aparai possuem a mesma percepção dos Wajana sobre a corporalidade e as pinturas partir de 2009, as oficinas de registro, documentação e gestão dos patrimônios culturais, destinadas
corporais. Esse é o motivo de não serem mencionados neste artigo. aos pesquisadores indígenas, passaram a ser desenvolvidas no quadro do Programa de Documentação
22 Pseudobombax munguba. de Línguas e Culturas Indígenas, coordenado pelo Museu do Índio – FUNAI.

158 159
homens, guaribas, mandiocas e artefatos lucia hussak van velthem

externo (Idem, ibidem: 121). Em outra perspectiva é reconhecido que a manuten- SEEGER, Anthony; DAMATTA, Roberto; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “A construção da
ção da pintura corporal, em padrões tradicionais, depende muito da estabilidade pessoa nas sociedades indígenas brasileiras”. Boletim do Museu Nacional, 32, p. 2-19,
1979.
social, territorial e ambiental de cada etnia. Esta é a condição que garante a preser-
STEDMAN, Johann. Narrative of an expedition against the revolted negroes of Surinam and
vação do sentido interno e das dinâmicas de comunicação e experimentação desta
Guiana on the wild coast of South America from the year 1771 to 1777. Massachusetts:
prática que é milenar na Amazônia, como atestam os achados arqueológicos na Massachusetts Press, 1972 [1796].
ilha do Marajó e no Estado do Amapá. VELTHEM, Lucia H. van. “Das cobras e lagartas: a iconografia Wayana”. In: VIDAL, L. (org.).
Grafismo indígena. Estudos de antropologia estética. São Paulo: Studio Nobel/Fapesp/
referências bibliográficas Edusp, p. 53-66, 1992.
______. “Comer verdadeiramente: produção e preparação de alimentos entre os Wayana”.
AGUIAR, Brás Dias. Nas fronteiras da Venezuela e Guianas Britânica e Neerlandesa. Rio de In: Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 2, n. 4, p. 10-26, 1996.
Janeiro: Serviço gráfico do IBGE, 1943. ______. A pele de Tuluperê: Uma etnografia dos trançados Wayana. Belém: Museu
BARCELOS NETO, Aristóteles. Apapaatai. Rituais de máscaras no Alto Xingu. São Paulo: Paraense Emílio Goeldi, 1998
Edusp/Fapesp, 2008. ______. “Faces da cerâmica indígena”. In: Artes da Terra. Resgate da cultura material e
BAZIN, Jean. “N’importe quoi”. In: Le musée cannibale. Neuchâtel, Musée d’Ethnographie, iconográfica do Pará. Belém: Edição SEBRAE, p. 54-63, 1999.
p. 273-287, 2002. ______. “Os primeiros tempos e os tempos atuais: artes e estéticas indígenas”. In: Artes
CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Índios no Brasil. História, Direitos e Cidadania. São Paulo: Indígenas. Mostra do Redescobrimento (Catálogo), São Paulo, p. 58-91, 2000.
Claro Enigma, 2012. ______. “Feito por inimigos. Os brancos e seus bens nas representações Wayana do con-
COLE, Alison. Cor. São Paulo: Editora Manole, 1994. tato”. In: ALBERT, B.; RAMOS, A. R. (orgs.). Pacificando o branco. Cosmologias do con-
CHAPUIS, Jean. La personne Wayana entre ciel et sang. Tese de doutorado, nouveau régime tato no norte amazônico. São Paulo: Editora Unesp/Imprensa Oficial do Estado, p.
en anthropologie, Laboratoire d’écologie humaine et d’anthropologie, Faculté de droit 61-84, 2002.
et de sciences politiques, Université d’Aix-Marseille, junho de 1998. ______. O belo é a fera. A estética da produção e da predação entre os Wayana. Lisboa:
CREVEAUX, Jules. Le mendicant de l’Eldorado. De Cayenne aux Andes 1876-1879. Paris: Édi- MNE/Assírio & Alvim, 2003
tions Phébus, 1987. ______. “Les mains, les yeux, le movement: les tressages des Indiens au Brésil”. In: Brésil
GALLOIS, Dominique. “Arte iconográfica Wãjapi”. In: VIDAL, Lux (org.). Grafismo indígena. Indien. Les arts des Amérindiens du Brésil. Paris: Éditions de la Réunion des Musées,
Estudos de antropologia estética. São Paulo: Studio Nobel/Fapesp/Edusp, p. 209-230, p. 214 – 241, 2005.
1992. ______. “Artes Indígenas. Herança viva de outros tempos”. In: FURTADO, R. (org). Scientific
GOULARD, Jean-Pierre. “Présentation: Le vertige des masques”. In: GOULARD, J. P.; KARA- American Brasil. São Paulo: Duetto Editorial (Coleção Amazônia. Origens), p. 56-63,
DIMAS, D. (orgs.). Masques des hommes, visages des dieux. Regards d’Amazonie, Paris: 2008.
CNRS Éditions, p. 9-25, 2011. ______. “Artes Indígenas. Notas sobre a lógica dos corpos e dos artefatos”. In: Textos esco-
LAGROU, Els. A fluidez da forma: arte, alteridade e agencia em uma sociedade amazônica lhidos de cultura e artes populares, v. 7, n. 1, Rio de Janeiro, UERJ, p. 54-65, 2010.
(Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro: Topbooks, 2007. ______. “Le seigneur des eaux: fabrication et productivité d’un masque Wayana”. In: GOU-
LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Tropiques. Paris: Plon, 1984. LARD, J. P.; KARADIMAS, D. (orgs). Masques des hommes, visages des dieux. Regards
MENTORE, George; SANTOS GRANERO, Fernando. “Apresentação”. Revista de Antropolo- d’Amazonie. Paris: CNRS Éditions, p. 79-105, 2011.
gia, São Paulo, USP, v. 49, n. 1, p. 12-16, 2006. VELTHEM, Lucia H. van; LINKE, Iori Leonel V. V. (orgs). Livro da arte gráfica Wayana e
MÜLLER, Regina. Os Asuriní do Xingu. História e arte. Campinas: Editora da Unicamp, 1990. Aparai. Rio de Janeiro: Museu do Índio – FUNAI/Iepé, 2010.
RAUSE, Irving. The Carib. Handbook of South American indians. Washington: Bureau of VILAÇA, Aparecida. “Chronically unstable bodies: reflections on Amazonian corporeali-
American Indians, 4, p. 547-565, 1948. ties”. In: Journal of Royal Antropological Institute (N. S.), 11, p. 445-464, 2005.
RIBEIRO, Darcy. Kadiwéu. Ensaios etnológicos sobre o saber, o azar e a beleza. Petrópolis:
Editora Vozes, 1979.
SAUTCHUK, Carlos E. “Ciência e técnica.” Texto apresentado na II Reunião de Antropologia
da Ciência e da Tecnologia, UFMG, p. 19, mai. 2009.

160 161
Arte gráfica Asuriní do Xingu:
Corpo, mito e pensamento
Regina Polo Müller

A ornamentação corporal dos Asuriní do Xingu é abordada neste trabalho com


o objetivo de se discutirem questões propostas para a realização do Simpósio
“Xamanismo, grafismo e figuração”, particularmente as relações entre o grafismo
e a escrita e entre abstração e figuração nas artes visuais de sociedades indígenas
na Amazônia. O estudo do sistema de arte gráfica Asuriní do Xingu, cujos dese-
nhos geométricos são aplicados no corpo humano e nos objetos (Müller, 1993), é
retomado em sua relação com a mitologia e com certas categorias do pensamento,
através do cotejamento entre este sistema expressivo e a performance ritual. Exa-
minam-se o corpo decorado com desenhos geométricos, de uso cotidiano e ritual,
e o corpo todo pintado de preto, negação de seu caráter humano, por ocasião do
ritual de separação entre vivos e mortos, o Turé (ibidem).
Com base no estudo sobre a mitologia, a performance ritual e o sistema de
arte gráfica Asuriní, lança-se a hipótese de que certa relação pode ser estabelecida
entre a abstração do grafismo no corpo decorado com desenhos geométricos e
a figuração no desempenho performático do corpo decorado com a pintura
ajemo’ona (corpo todo preto). Categorias de pensamento e princípios cosmológicos
estarão relacionados a escolhas estéticas destes sistemas expressivos considerados
em contexto, como o cotidiano e o ritual. Demonstra-se, por um lado, como a
aplicação do desenho abstrato e geométrico enfatiza/realiza a condição humana
e, por outro, de que forma a figuração do corpo, todo de preto e decorado com
penugem de gavião, promove a incorporação de seres míticos e sobrenaturais.
Receber esta ornamentação corporal, em rituais cosmogônicos e xamanísticos,
“... exige muita concentração. Pode-se ter tontura e até ficar doente, sinal deste
contato perigoso” (Müller, 1993: 111).

163
arte gráfica asuriní do xingu regina polo müller

No caso da pintura corporal Asuriní, temos então como eficácia simbólica


similar o corpo todo pintado de preto (ajemo’ona), cuja aplicação da tinta de jeni-
papo não respeita os limites formais que distinguem os gêneros e marcam a anato-
mia humana. Trata-se aqui da “roupagem liminar” do estado de incorporação do
personagem Kavara, cujo mito traz a noção da divisão do eu, causada pela morte.
A pintura do corpo todo preto, por sua vez, contrasta com a pintura de desenhos
geométricos, da qual a aquisição pela humanidade se dá através de outro ser mito-
lógico, Anhyngakwasiat, que traz a noção de multiplicidade.

Figura 1: Pintura com desenhos geométricos, motivo tembekwareropitá,


“detalhe do enfeite labial”, 1982 (foto Renato Delarole).

Antes de mais nada, recorro às reflexões de Lagrou a respeito das “... mani-
festações expressivas nativas (que) demonstram que a ‘eficácia da arte’ inclui mais
que forma, mobilizando uma capacidade semiótica ou comunicativa específica,
assim como uma capacidade de agência, pois tanto quanto expressam, tintas, pin-
turas e objetos agem sobre a realidade de maneiras muito específicas que precisam
ser analisadas em contexto” (2005: 73).
Para esta autora, “o que caracteriza a pintura corporal e facial ritualmente
mais eficaz e, portanto, mais apreciada no ritual de passagem de meninos e meni-
nas Kaxinawa é sua qualidade de ser mal em vez de bem-feita: as linhas grossas
aplicadas com os dedos ou sabugos de milho, com rapidez e pouca precisão, per-
mitem uma permeabilidade maior da pele à ação ritual” (idem: ibidem), consti-
tuindo, desse modo, a “roupagem” liminar dos neófitos por causa de sua suscetibi-
lidade a processos de transformação. Figura 2: A dupla de kavaryva/boakara no ritual das flautas Turé, 1978 (foto Renato Delarole).

164 165
arte gráfica asuriní do xingu regina polo müller

A pintura (e a tatuagem) atual dos humanos com desenhos geométricos dis- No corpo masculino, a aplicação da pintura obedece a uma divisão horizon-
tingue gênero e idade. Reafirma, desse modo, a natureza humana do suporte e tal, através de um desenho que une os ombros, nos quais é aplicado outro desenho,
realiza o que Lévi-Strauss (1975) chamou de “existência definitiva adquirida pela ovalado, distintivo do gênero masculino e relacionado à atividade de guerreiro.
integração entre elemento plástico e elemento gráfico”, do mesmo modo como a No corpo feminino, a aplicação obedece a uma divisão vertical, através de um
decoração da cerâmica a realiza, unindo ornato e função utilitária. A aplicação dos desenho que vai da altura dos seios ao púbis.
desenhos geométricos no vaso cerâmico obedece aos limites que identificam sua
forma (base, corpo, gargalo), que, por sua vez, se relaciona à sua função (cozinhar,
transportar e armazenar alimentos).

Figura 3: Vasilha cerâmica utilizada para transporte e depósito de água,


motivo tayngava (foto Wagner Souza e Silva).

Figura 4: Vasilha cerâmica utilizada para servir alimento, motivo tayngava, no corpo da peça, e Figura 5: Pintura masculina com desenhos geométricos, motivo ehiraimbava/favo de mel no corpo
bauré/“pelote do mingau de milho” na borda (foto Wagner Souza e Silva). e tayngava no desenho ovalar dos ombros, 1979 (foto Renato Delarole).

166 167
arte gráfica asuriní do xingu regina polo müller

Figura 6: Pintura feminina com desenhos geométricos, Figura 7: Meninas com motivo de pintura juaketé, 1978 (foto Renato Delarole).
motivo tayngava, 1979 (foto Renato Delarole).

168 169
arte gráfica asuriní do xingu regina polo müller

Os desenhos da tatuagem1 distinguem idade, pois há uma sequência obede-


cida segundo este critério. Na tatuagem das mulheres, verifica-se a seguinte ordem,
nas subsequentes ocasiões rituais em que são tatuadas: mãos, ventre, braços, rosto.
Na decoração do corpo humano, pode ser usado qualquer motivo de desenho
aplicado na cerâmica, o campo mais variado de formas e padrões decorativos utili-
zado. O padrão juaketé, entretanto, é o único usado com exclusividade na pintura
corporal feminina. Neste padrão, cujo nome se traduz por “pintura de verdade”,
a forma é parte de sua identificação e domina, portanto, o conteúdo. O desenho
subordina-se à forma do corpo. Segundo Lévi-Strauss, temos, neste caso, que “a
estrutura modifica a decoração, mas esta é a causa final daquela”, “a decoração e a
forma não podem ser, nem física nem socialmente, dissociadas” e, ainda, que “a
decoração é concebida para o rosto (leia-se corpo), mas o próprio rosto (idem)
não existe se não por ele: a dualidade é em definitivo a do ator e de seu papel...”,
(apud Müller, 1993: 229).
Os demais desenhos se amoldam à forma do suporte, sem que sejam alteradas Figura 8: Motivo de pintura juaketé, 1979 (foto Renato Delarole).
suas características formais, identificadas em qualquer suporte. O motivo juaketé,
por sua vez, só se realiza na forma do corpo humano. O círculo de onde partem as A ornamentação do corpo com desenho geométrico, além de poder expressar
linhas e os losangos que cobrem o tronco e as coxas é aplicado sobre a articulação um conteúdo relacionado à categorização social e outro relacionado à noção de
das pernas ao tronco. O fundo da panela desloca-se no corpo para o círculo da máscara, isto é, a de indivíduo biológico e personagem social, como sugerido por
articulação dos membros ao corpo, distinguindo a forma do objeto (vasilha de Lévi-Strauss (apud Müller, 1993: 230), possui também outros sentidos, tendo em
cerâmica) da forma humana. vista que o elemento gráfico é realizado em outras formas além de no corpo e que
Juaketé segue o padrão tamakyjuak (losango), cuja tradução é “pintura de não há dois estilos para diferentes suportes. Não se pinta apenas o corpo, mas os
perna” (tamaky = perna, canela; juak = pintura). Este padrão é usado preferen- objetos diversos da cultura material. E em todos eles o desenho único é abstrato,
cialmente na perna de baixo do joelho até o tornozelo. Nesta parte do corpo as decorativo, mas igualmente simbólico, ou seja, traduz noções básicas do pensa-
meninas treinam frequentemente as técnicas da pintura. mento, cujo conteúdo se encontra na própria forma do desenho e na tendência
O padrão “pintura de perna” é próprio dessa parte do corpo, e pela analogia do estilo. Neste sentido, tratei a arte gráfica Asuriní como “modelo reduzido”, uma
forma sintética da visão de mundo, de conhecimento, onde a metáfora está na
entre a forma deste e da panela de cerâmica, arredondada, é transposta para o
própria estrutura formal, no estilo da arte visual (ibidem).
objeto, obedecendo à mesma regra de divisão do espaço em superfície curva. No
Para definir características formais do desenho Asuriní, destaquei, antes de
corpo como um todo, a duplicação de padrão juaketé a partir dos dois círculos na
tudo, princípios de ordenamento do espaço para entendê-las através da relação
articulação coxa-tronco segue a anatomia do corpo, dividindo-o em dois, em dois
entre percepção visual e processo cognitivo. Desse modo, demonstrei que a geo-
sentidos: duas pernas e duas partes do corpo, membros inferiores / tronco.
metrização infinita do espaço corresponde a um modo de percepção visual tota-
lizante: a técnica do negativo/positivo encontrada na maioria dos padrões, com-
binada às outras técnicas, revela a maneira pela qual se percebe uma realidade
visual. O claro-escuro e o fundo e superfície conformam imagens.2 Por exemplo,

1 Realizada no ritual das flautas Turé, de separação entre vivos e mortos, e de celebração da guerra, 2 Neste sentido, encontramos uma grande proximidade entre os Kaxinawa e os Asuriní no que diz
quando os matadores são tatuados. As mulheres também são tatuadas nesta ocasião, acompanhando respeito à relação entre processos cognitivos e características estilísticas presentes no grafismo (ver
o rito de escarificação do guerreiro. Müller, 1990 ( 1993); Lagrou, 1991, 1998, 2007 (ver Lagrou neste volume).

170 171
arte gráfica asuriní do xingu regina polo müller

os Asuriní identificam um conjunto de constelações pela imagem de uma onça padrão, variação e desenho e natureza/sobrenatural/cultura. Isto lhe dá destaque
atacando um veado. Entretanto, não são os pontos luminosos que delineiam as na estrutura formal dos desenhos: o “padrão”, correspondente ao sobrenatural, é
figuras, mas sim os espaços negros entre eles, como os Asuriní nos ensinam a ver. eixo determinante da realização dos desenhos com vários significados relaciona-
A geometrização do infinito através de formas abstratas (cujos nomes se refe- dos à natureza e à cultura; a “variação”, correspondente ao nível do conteúdo, faz
rem aos três domínios cosmológicos) e a totalização do espaço como modo de referência aos três domínios cosmológicos; e “desenho” corresponde ao produto
percepção visual particular são tendências que definem o desenho. Estas, por sua final realizado concretamente através dos suportes.
vez, têm correspondência com um princípio estruturante da cosmologia Asuriní.
Relacionando percepção visual e princípios do entendimento na arte gráfica
Asuriní, pode-se dizer que a geometrização infinita do espaço mistura domínios
cósmicos através das abstrações visuais com conteúdo simbólico e referentes do(s)
mundo(s) que os cerca(m), como se, por exemplo, a mata e seus seres fossem vistos
através de formas ligadas ao sobrenatural (as variações “cangote de onça” e “patas
de jabuti” seguem o padrão tayngava, nome da figura antropomórfica usada nos
rituais xamanísticos). A “mistura” ou “sobreposição” de diversos domínios partici-
pam do cotidiano, e os xamãs os visitam e se transformam nessas criaturas. Sendo
assim, diferentes domínios cósmicos se sobrepõem através da percepção visual de
um mundo geometrizado em abstrações formais que os misturam para separá-los
novamente, numa classificação conforme a nomenclatura dada (nomes ligados à
natureza, à cultura e ao sobrenatural e relacionados às categorias formais da arte
gráfica, como padrão, variação do padrão e desenho).
A inter-relação dos domínios cosmológicos no desenho geométrico corres-
ponde à estrutura formal desse sistema visual: o padrão, entendido no sentido de
regra formal, corresponde ao sobrenatural, e a variação, realizada segundo este Figura 9: Vasilha de cerâmica utilizada para depósito de mingau e mel,
motivo tayngava no corpo e base da peça (foto Renato Delarole).
padrão, se refere à natureza e aos homens (à cultura), domínios submetidos a
uma relação com o mundo sobrenatural. Isto é, a regra formal das variações cujos
A preponderância formal do tayngava está relacionada à importância da
nomes se referem a animais, plantas, artefatos e grafismos é ditada pelo padrão
noção que o elemento básico deste padrão representa e que dá nome a ele: a figura
tayngava – ângulo de 90º –, cujo referente é um elemento simbólico ligado ao
antropomórfica, objeto ritual xamanístico cujo nome é traduzido como “imagem
sobrenatural.
humana” (t = possuidor humano + ayng = imagem + av (a) = sufixo formador de
Os padrões são noções abstratas, e sua realização concreta se dá através dos
nome de circunstância). O traço mínimo do padrão tayngava pode ser conside-
desenhos nos objetos e no corpo. O conteúdo semântico das variações de um
rado o braço-perna desta figura. Através dela se consubstancia o princípio vital,
padrão, o seu nome a partir de um referente do mundo real, está relacionado aos
ynga, que os xamãs transmitem dos espíritos aos pacientes. Assim, para além de
domínios da natureza e da produção cultural. Do padrão tayngava temos, por
uma representação, a própria imagem se constitui no princípio que define huma-
exemplo, o motivo “pata de jabuti”, ou o motivo do enfeite labial: trata-se de varia-
nos e outros seres viventes, isto é, os que possuem a substância ynga. Vemos deste
ções da “grega”, forma básica da maioria dos desenhos Asuriní. Os demais padrões
modo que, para os Asuriní, a imagem é constitutiva da existência dos seres.
possuem poucas variações, como o tamakyjuak (losangular) (tamakyjuagí, mytu-
Outro aspecto formal da estrutura do desenho Asuriní e deste padrão tayn-
pepá). Às vezes, as variações de um padrão apresentam mínimas diferenças mor-
gava, em particular, deve ser notado como princípio ordenador, ao lado da geome-
fológicas, como o kwasiarapara (diagonal). Assim, a forma tayngava tem prepon-
trização infinita e da totalização do espaço. Este, como vimos, está relacionado à
derância sobre as outras no sentido estatístico e semântico; cobre categorias como

172 173
arte gráfica asuriní do xingu regina polo müller

mistura e à separação de esferas cósmicas no pensamento Asuriní. O aspecto for- e anatomia humana. Como uma colcha de retalho, todo o corpo é pintado sem
mal abordado a seguir se relaciona com a noção mais ampla de diferente e igual, se respeitarem os limites que dividem tronco, mãos, pernas e pés, como é a regra,
variação e repetição. Trata-se das duas orientações formais básicas nos desenhos cobrindo todas as partes com vários padrões. Assim é descrito o ser que Anhynha-
que desenvolvem o padrão tayngava: vuí, um jovem, encontra na mata ao perambular em sua atividade de caça.

1 – Assimetria de desenhos que podem ser executados livre e infinitamente, variando


a unidade elementar do padrão (pela técnica que chamamos de extensão), a maioria mito do desenho
dos casos com as criações individuais. (Figura 3) Anhyngavuí foi caçar, ficou na espera, de manhãzinha. Quando voltou, viu Anhyn-
2 – Simetria de desenhos que repetem módulos (termo que designa a forma mais gakwasiat. Quando chegou em casa, perguntou a sua mãe: “O que eu vi? É bonito.”
codificada e mais tradicional da arte gráfica Asuriní), elementos isoláveis do sistema A mãe respondeu: “É seu tio (tutyra/irmão da mãe).” Anhyngavuí foi caçar veado,
(Figuras 4, 6 e 9). Sua execução parece exigir maior perícia da autora, pela geometri- ficou procurando, matou e chamou Anhyngakwasiat. Perguntou à mãe como devia
zação simétrica exata da área a ser decorada, isto é, a repetição da mesma forma até fazer para chamar o tio. Ela disse que deveria falar do desenho que possui na nádega.
preencher totalmente a área. Imitando o veado, Anhyngavuí falou do desenho, chamando-o. Anhyngakwasiat é
bravo, quis brigar. Anhyngavuí pôs o veado morto no caminho. Anhyngakwasiat che-
A primeira orientação é de variação, diferenciação, com a unidade elemen- gou e, enquanto brigava com o veado morto, ficou parado (assim Anhyngavuí teve
tar se apresentando de diferentes maneiras. A segunda é repetição, igualdade, tempo para observar os desenhos de seu corpo). Anhyngakwasiat bateu no veado
morto com um grande pau. Anhyngavuí ficou atrás de uma árvore olhando os dese-
a unidade elementar se apresentando a mesma. Polissemia, no primeiro caso, e nhos distribuídos pelas diferentes partes do corpo de Anhyngakwasiat: kwasiarapara,
paráfrase, no segundo. Além disso, na variação, a unidade é sempre a mesma, e tayngajovaava, ypiasinga, tembekwareropitá, uikwasiaroho, gapusiare, já’éakynga, jae-
na repetição, o segundo é o outro: mais de uma unidade são necessárias para se titarendí, tayngaveté, tayngavapyka, ajavuiaky, kaisingirakwara, akaravokirerajoaava,
comporem igualdades. Temos assim, no desenho Asuriní, simetria e assimetria, o ipiaondí, ipiaonô. A mãe de Anhyngavuí lhe disse para preparar as flechas para fazer o
trançado com amambai e akaravô (material vegetal utilizado no trançado). Anhynga-
jogo de relação entre o igual e o diferente, presente em outros sistemas cognitivos
vuí matou veado, pôs no caminho, levou a flecha. Anhyngakwasiat veio novamente,
da cultura, como a cosmologia, o ritual e a mitologia. bateu com um pau no veado morto. Enquanto isso, Anhyngavuí fez o trançado na
Procurei demonstrar, portanto, neste estudo, que entre os Asuriní encontra-se flecha olhando os desenhos no corpo de Anhyngakwasiat. Este foi embora, e Anhyn-
no próprio estilo de técnica do desenho geométrico o “conceito visual” (Arnheim, gavuí voltou para casa e disse que já havia aprendido ikwasiat (desenho). Fez um
1980) da noção de representação, que é identificada através da compreensão da desenho de cada nas flechas que levara. Fez tayngava também. Depois, foi novamente
matar um veado e chamou Anhyngakwasiat. Fez então o trançado do arco. Anhynga-
cosmologia e dos rituais xamanísticos. Tanto a arte gráfica como a ação ritual
vuí ensinou o trançado com desenho aos que já morreram (bava), e estes ensinaram
foram analisadas enquanto discursos não verbais de modo a acessar o que chamei de pai para filho. Até hoje, um homem faz filho e quando está maior ensina também.
de materialidade ou marcas formais de uma discursividade que é processual e Anhynga é dono do desenho. Ensinou também fazer biakwasiat (esteira com dese-
possível de ser contextualizada, para além de relações estruturais que uma análise nho). Agora sabemos fazer tayngava na biaava (esteira), no jandiru (porta-óleo de
semiótica poderia estabelecer. Enquanto discursos, pude dar conta de processo e coco), sabemos fazer desenho com tinta de jenipapo. Bava (mortos) faziam antiga-
mente e ensinaram, por isso até hoje não perdeu.
contextualização para detectar princípios organizacionais do que chamo aqui de
estilo e técnica. Lançando mão também, a seguir, da análise da narrativa mítica, Neste mito, os desenhos cobrem o corpo de um ancestral mitológico e foram
verificaremos propriedades como a posposição e a junção das informações no reproduzidos pelo outro no trançado, sendo os dois ancestrais identificados com
texto mítico, ou seja, concomitância de sentidos e não causalidade e hierarquiza- um sobrenatural do cosmos Asuriní atual, habitante do céu que fica acima da
ção. Este princípio corresponde à noção de par e de concomitância de estados de aldeia do mundo dos humanos, o anhynga. Este termo se refere a outro persona-
alteridade, detectadas em outras manifestações do pensamento Asuriní. gem mitológico, noção relacionada à divisão do eu (a pessoa em pedaços), causada
Na mitologia Asuriní, os humanos recebem o desenho de Anhyngakwasiat, pela morte (mito do kavara, apresentado a seguir). O mito do desenho e o mito do
um ser antropomórfico cuja pintura do corpo com desenhos geométricos não kavara, quando considerados em conjunto, tratam da relação entre representação
obedece às regras de preenchimento das partes do corpo que distinguem gênero (o desenho geométrico no corpo do anhynga) e a constituição do ser (unidade/

174 175
arte gráfica asuriní do xingu regina polo müller

divisão, kavara/anhynga), como já demonstrei anteriormente e reproduzo abaixo mitantemente à de divisão e presença (das partes do corpo-coração, sangue, braço,
(Müller: 1993). Neste trabalho, acrescentei, como anunciado na introdução, outro fígado, do mito do kavara (resumido em seguida) e dos desenhos cobrindo as
par: pintura do corpo todo preto/pintura corporal com desenho geométrico. partes do corpo, no mito do desenho).
No mito do desenho, a escolha sobre a classe de espírito que possui o dese- Na multiplicidade, são vários os inteiros, e na divisão são várias as partes de
nho e o transmite aos humanos esclarece a relação humanos-espíritos e a noção um inteiro. Quanto à ausência, a noção de anhynga está associada à morte e à
de representação no pensamento Asuriní. Trata-se de uma classe de espírito – os espiritualidade, e quanto à presença, à constituição da unidade no corpo do ser
anhynga – identificada com as noções de divisão do eu e de multiplicidade, de um mitológico ancestral.
lado e de outro, com a animalidade (os anhynga se metamorfoseiam em animais Entre os dois pares de termos, ausência e presença, divisão e multiplicidade,
para atacar os humanos) e a morte. Esta classe de espíritos está associada à morte não há oposição. O conceito de anhynga recobre todas estas noções, e, como
na atualidade (os anhynga relacionados aos mortos podem vir buscar os vivos e vimos, sua construção se realiza na intersecção dos dois textos míticos. Não há
levá-los consigo) e no tempo mítico (Anhyngavuí ensinou o desenho aos Asuriní oposição, mas uma tensão que constrói a unidade. A tensão une as partes: no
que hoje estão mortos, os bava). corpo do anhynga (Anhyngakwasiat) não há unidade, há junção de partes, mas
Bava são humanos (avá) que morreram, isto é, trata-se de um conceito que por outro lado há um corpo. Tensão entre unidade e divisão. E a tensão aparece
define o estatuto do humano que morreu, ênfase sendo dada à condição de ex- na construção da unidade através da representação: com o desenho, o anhynga
vivo, enquanto existência passada de humano. Não se trata de um morto atual, existe como unidade. Como já afirmei acima, a forma tayngava do desenho geo-
parte da pessoa que sobrevive à morte e coexiste com outras partes do eu ou com métrico Asuriní traduz a noção de constituição do ser pela imagem e em relação
os vivos. Bava é uma identidade autônoma correspondente à noção de antepas- aos humanos, a noção de que a imagem é parte constitutiva do ser uno/vivente,
sado. Pertencem ao domínio da morte (contexto dos anhynga), mas não são mor- lugar do princípio vital.
tos atuais, relacionam-se à morte passada. Sobre a relação entre a imagem elementar (a figura antropomórfica) e a
Associam-se, nesta escolha do mito sobre quem possui o desenho e a quem “grega” (ângulo de 90º, o braço/perna do padrão tayngava), pode-se dizer que esta
o transmite, espírito e morto, duas instâncias do ser que se opõem à de humano forma geométrica que traduz uma proposta abstrata torna a própria forma visual
(avá), apresentando em comum certas características: existem em esferas cósmi- parte genuína de um “conceito visual” (Arnheim, 1980: 134-146).
cas distintas daquela habitada pelos humanos e não possuem existência real. São Além disso, se na pintura corporal com desenhos geométricos o que temos
duas categorias relacionadas à ausência. são abstrações, no caso do corpo todo pintado de preto – investidura do persona-
O antepassado de quem os humanos recebem o desenho não é um avá que gem mitológico, ou seja, um corpo em ação performática –, o que temos é uma
se torna espírito (como os espíritos-xamãs primordiais, presentes nos rituais) nem (re)presentação figurativa.
um avá que era animal e hoje é espírito-animal (também nos rituais xamanísti-
cos). Não é um ancestral nem um herói cultural que continua humano, mas não mito do kavara
convive com os avá atuais, isto é, um maíra. Este último pertence ao passado
mítico e ao futuro dos xamãs.3 Kavaryma é avá (humano). Ele e seu companheiro vão à mata e são atacados por
um inimigo (tapy’ya). O companheiro morreu, e Kavaryma, sobrevivente, voltou
Os anhynga enquanto categoria são tudo isso ao mesmo tempo: o ancestral,
à aldeia. Neste retorno, foi perseguido pelo anhynga do companheiro: pedaços do
herói cultural que ensinou o desenho, animais-espíritos, forma em que se meta- corpo, como fígado, coração, braço, perna, sangue. Kavaryma e os pedaços do morto
morfoseiam para atacar os humanos, espíritos que vivem na mesma esfera cósmica chegam à aldeia, e se realiza, então, uma festa na qual cantam sobre o braço do morto.
dos espíritos-xamãs primordiais (no céu acima de nós, com os espíritos apykwara O sapo (kururu) é o kavaryva (função ritual) que canta, como Kavaryma. Cantam a
e karovara). Anhynga é uma noção dupla: a de multiplicidade e ausência, conco- noite toda, e de manhã os anhynga vão embora. A esposa do morto fala seu nome.
Por isso o anhynga dele volta e a leva com ele. Kavaryma fica. Hoje é Kavara.

3 Após a morte, os xamãs passam a viver no lugar onde a água grande se encontra com o céu e onde
vivem os maíra, tornando-se um deles.

176 177
arte gráfica asuriní do xingu regina polo müller

No ritual cosmogônico das flautas turé, os personagens dos scripts dos mitos
de origem, incorporados na ação performática, desenvolvida pelas danças e ceri-
mônias, são o morto e o matador. A dança no pátio externo em frente à casa
comunal onde estão enterrados os mortos, aos quais este ritual é dedicado, con-
siste na coreografia de um grupo de tocadores de flauta, em linha e acompanha-
dos por mulheres, que compreende evoluções num cortejo circular, no qual de
quando em vez se destaca um casal solista. Os homens se reúnem, primeiramente,
dentro da casa, onde tocam os instrumentos a fim de, em seguida, saírem da casa
para o pátio e dançarem com as mulheres acompanhantes e demais participantes
da comunidade, outras mulheres e crianças que se juntam às principais parceiras
dos tocadores. Todos os tocadores desempenham a função de executar a música
(tocando e dançando) que, juntamente com o choro ritual, afasta os mortos para
sempre da vida dos vivos, garantindo a ordem cósmica de separação e convivência
entre seres diferentes. Após um período que pode levar meses, em que esta dança
é realizada, o rito dos kavaryva finaliza um ciclo que compreende ainda a tatua-
gem dos guerreiros, a iniciação dos jovens e a celebração do milho. Desenvolvido
no pátio, entre a casa dos visitantes e a casa comunal, um cortejo é liderado por
dois indivíduos chamados boakara (guerreiros) e tocadores da flauta turé, os quais
são investidos da função de kavaryva, isto é, incorporam Kavara, o sobrevivente,
o companheiro do morto no mito. A ornamentação da pintura ajemo’ona (corpo
todo pintado de preto) com penugem de gavião na cabeça, ombros e perna, e o
arco e flecha que levam nas mãos sintetizam esta dupla incorporação de guer-
reiro/matador e vítima/morto (Figura 2). Atrás dos kavaryva/boakara seguem as
kavaryvandara, mulheres no papel de companheira do kavaryva, as quais tam-
bém recebem a mesma ornamentação. O cortejo atravessa o pátio e entra na casa
comunal. Os kavaryva lideram então o canto/a dança sobre as sepulturas, que con-
siste em rodear as mesmas em posição de cócoras, assim como fizeram os sapos e
jabutis no ritual primordial do Turé.
Na interpretação do mito e da ação ritual, pode-se dizer que Kavaryma, o
sobrevivente, se identifica com o morto. Ele e o companheiro são dois aspectos do
eu duplo atualizado nos dois kavaryva da ação ritual (Figura 2). O sobrevivente é
a unidade, o outro, o eu-dividido, a dissolução pela morte, o anhynga. Kavaryma
e o companheiro são também, respectivamente, o matador (o guerreiro boakara)
e o morto.

Figura 10: Kavaryvandara, companheira do kavaryva, no ritual Turé, 1978 (foto Renato Delarole).

178 179
arte gráfica asuriní do xingu

Além disso, pode-se dizer que o canto do sobrevivente, sobre a parte do morto, O trançado, a música e as serpentes
garante a própria unidade do eu, separando os dois domínios: vida e morte, vivos
e mortos. O canto para afastar os anhynga deve ser feito para que estes não levem
da transformação no Alto Xingu
os vivos consigo, como o anhynga, companheiro de Kavaryma, fez com a esposa. Aristóteles Barcelos Neto
Kavaryma, no tempo mítico,4 Kavara no ritual que atualiza o mito, pertence à
aldeia dos vivos e sua função é cantar os mortos, através dos kavaryva, “os que
animam kavara”, representante do morto.
O cortejo liderado pelo personagem/papel ritual do kavaryva – em dupla e
levando a flauta e o arco e flecha –, que se inicia na casa dos visitantes, dirige-se
à casa comunal e retorna à casa dos visitantes, pode ser interpretado, portanto,
como a transmutação simbólica do guerreiro (o matador) em representante do
morto (o sobrevivente Kavara), sintetizando, na ação performática, um princípio
da cosmologia e da ontologia Asuriní vivenciado no ritual do Turé. O guerreiro é
o outro lado da moeda do duplo matador/morto: o guerreiro é tatuado, e o morto
é chorado. A tatuagem separa substancialmente o matador da vítima, através da Um considerável corpus de mitos amazônicos relata como uma série de objetos
extração do sangue de seu corpo, e o choro ritual, sobre a sepultura, separa cosmi- e conhecimentos usados pelos humanos tem sua origem em relações predatórias,
camente o morto do vivo. ou não, com serpentes. Cestos e canções estão entre os mais notórios desses obje-
Retomando a hipótese inicial, tentei demonstrar que no caso da abstração do tos. Inspirado pela relação entre trançado e música nas Guianas (Guss, 1989) e
grafismo no corpo decorado, reafirmando a natureza humana do suporte, temos por uma teoria etnográfica do ritual xinguano (Menezes Bastos, 1978, 1990), este
que a aplicação do desenho sobre diferentes superfícies e formas é o exercício texto se dedica a explorar as formas de objetificação de alguns personagens míti-
expressivo da noção de imagem como constitutiva do ser, como demonstra o cos wauja – as serpentes Arakuni (cesto), Pulupulu (tambor) e Kamaluhai (pane-
estudo do padrão “tayngava”. las) – e as consequências das suas exegeses para o entendimento das relações entre
No caso do desempenho performático do corpo decorado com a pintura grafismo e som.
ajemo’ona (corpo todo preto) e em movimento pelos espaços cósmicos do ritual, Se os temas mitológicos sobre as serpentes já estão amplamente estudados, o
temos que o exercício expressivo é a figuração de Kavara, experiência performá- mesmo não pode ser dito sobre os estilos visuais relacionados às mesmas. Assim
tica de negação da condição do ser humano, vivente e uno, e, ao mesmo tempo, de como os temas, os estilos também colocam problemas complexos, alguns deles
investidura da condição mítica e sobrenatural. apenas recentemente identificados (Lagrou, 2007; Severi, 2011). Seria difícil fazer,
desde uma perspectiva antropológica, uma análise do estilo (ou, nos termos de
referências bibliográficas Alfred Gell, da cultura) sem o entendimento amplo do tema (ou, nos termos de
Viveiros de Castro, dos modos de imaginação conceitual) e vice-versa. Há um
ARNHEIM, Rudolf. “Arte e percepção visual, uma psicologia da visão criadora”. São Paulo:
Edusp, 1980. número crescente de estudos da mitologia amazônica que toma as qualidades dos
LAGROU, Els. “L’art des indiens du Brésil. Alterité, “authenticité” et “agentivité”. In: Brésil estilos visuais e materiais como particularidades da variação mítica (Gow, 2001;
Indien, les arts des amérindiens du Brésil. Paris: Réunion des Musées Nationaux, 2005. Barcelos Neto, 2002; Velthem, 2003). Se aceitamos o mito como substrato da ima-
______. A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxi- ginação conceitual ameríndia, as expressões visuais devem estar aí imediatamente
nawa, Acre). Rio de Janeiro: Topbooks, 2007. incluídas. Essa ideia, apontada por Lévi-Strauss em 1947 no artigo “A serpente
MÜLLER, Regina Polo. Os Asuriní do Xingu: história e arte. Campinas: Editora da Unicamp, de corpo repleto de peixes”, tem sido sistematicamente explorada nos materiais
2ª edição, 1993 [1990]. amazônicos. A consequência óbvia e mais direta dessa abordagem é que mito não
4 -yma é legenda de desenho nem este ilustração de mito.

180 181
o trançado, a música e as serpentes da transformação no alto xingu aristóteles barcelos neto

A riqueza de alternativas analíticas proporcionadas pelo avanço recente da Poucas categorias de objetos da cultura material amazônica exibem um traba-
antropologia da arte e da etnologia amazônica permite ampliar o entendimento lho de superfície tão complexo e extenso quanto o trançado, oferecendo metáforas
dos modos de imaginação conceitual trazendo as formas visuais para seu centro. extremamente úteis para pensar a transformacão corporal. A pele (superfície) do
Segundo Gell (1998), todas as formas visuais possuem dinâmicas agentivas inter- trançado e seu corpo (forma) são resultado de um mesmo trabalho, o que permite
nas e/ou externas. O que torna o caso da Amazônia indígena particular é que as explicar, em parte, porque o jovem Arakuni decidiu trançar uma “roupa” para ele
dinâmicas internas não apenas relacionam elementos visuais entre si, como tam- se transformar em cobra (Figura 1). No mito wauja da transformação dos homens
bém os relacionam com elementos sonoros. A questão tem desdobramentos ainda em “bicho”, deve-se também à confecção de “roupas”, basicamente máscaras de
mais complexos, pois as formas verbais, sonoras e visuais agem em cadeias de palha trançadas, ou não, a possibilidade dessa transformação (Barcelos Neto,
transformações semióticas (Menezes Bastos, 1990), cujo próprio pivô da transfor- 2008). Mas nenhum mito explora de modo tão extensivo e minucioso o trabalho
mação é a música, sendo o ritual seu campo de realização. Embora originalmente de superfície e suas relações com outros trabalhos de expressão criativa, como o
identificada e descrita para o Alto Xingu, trata-se de uma teoria de abrangência de Arakuni. Voltaremos a ele nas seções a seguir.
Amazônica (Menezes Bastos, 1996), de dimensões teóricas possivelmente seme-
lhantes à do perspectivismo. Assim como o perspectivismo, a cadeia intersemió-
tica do ritual também apresenta variações e ênfases. No Alto rio Negro, a ênfase
é sobre o mito, no Alto Xingu, sobre a música, e nos Andes, sobre a dança. Tanto
o perspectivismo como a cadeia intersemiótica do ritual são vigorosas teorias da
transformação, a primeira incidindo sobre as relações de identidade/alteridade,
e a segunda, sobre a ação ritual. Como essa teoria etnográfica, que tem a música
como pivô, se relaciona com as artes visuais?
A teoria, tal como me foi explicada pelos Wauja, diz que o mito vira música
e em seguida dança, e sobre esta estão as “coisas”, sendo que não há dança sem
tais “coisas”. “Coisas” são o que tornam o corpo dançável, são adornos e pintura
corporal, elementos que definem a identidade de quem dança.1 E essa identidade é
Figura 1: Arakuni transformado em serpente. Desenho de Aulahu, 2000.
imaginada como presença e alteração, cujo plano de orientação é o mito. A dança
é uma espacialização dessa presença no tempo ritual. Menezes Bastos observa na
Guss (1991), Velthem (1998, 2003) e Reichel-Dolmatoff (1985) dedicaram
teoria kamayurá que o corpo é onde termina a cadeia da transformação: a dança,
etnografias cuidadosas para mostrar o imenso esforço que os cesteiros amazô-
resultado da transformação do mito, é o verbo tornado corpo. E é sobre o que é um
nicos imprimem no trabalho de superfície, ou seja, nos desenhos geométricos e/
corpo que essas coisas visuais e materiais voltam seu interesse (Taylor & Viveiros
ou figurativos que recobrem o trançado. A forma dos cestos, embora importante
de Castro, 2006). A imaginação criativa sobre esse corpo que dança privilegia,
para nosso argumento, possui, em geral, um rendimento cosmológico menor do
antes de tudo, a sua superfície (a pele), e menos as suas anatomia, morfologia e
que a sua superfície. É dela que os amazônicos partem para (ou regressam de)
fisiologia; note-se que na Amazônia as transformações corporais estão antes cen-
dimensões sonoras e narrativas da cestaria (Guss, 1989). A Amazônia, civilização
tradas no controle/na troca de substâncias e imagens. O corpo que dança é aquele
da palha (Ribeiro, 1980), é, também por essa razão, a civilização do canto.
em que a sua superfície foi alterada, em geral pela aplicação de desenhos. Essa
De um ponto de vista puramente visual, os cestos parecem coisas mudas.
alteração da superfície (ou pele) é igualmente importante em outros corpos que
Porém, uma rígida divisão entre visual e sonoro se mostra inconsistente para
não humanos, artefatos em especial.
vários povos amazônicos.2 A tênue passagem entre o visual e o sonoro, ou vice-
1 Ouvi, algumas vezes, jovens wauja dizerem que tinham muita vergonha de ir dançar em outras aldeias
quando eles não podiam se apresentar com os adornos corretos e/ou completos. Sem estes, eles se 2 Vide por exemplo os trabalhos de Gebhart-Sayer (1985, 1986) e Reichel-Dolmatoff (1978), Lagrou
sentiam “feios”, um outro modo de dizer indefinidos ou incompletos. (2007). Ver, a respeito Belaunde e Lagrou neste volume.

182 183
o trançado, a música e as serpentes da transformação no alto xingu aristóteles barcelos neto

versa, ocorre num terreno em que o próprio jogo de alteridades é definidor das motivo gráfico à mais abundante das matérias-primas, nada escapa à esfera agen-
economias simbólicas dos sentidos (Lagrou, 1996, 2002, 2007). Se a transforma- tiva desses seres xamânicos. Cada elemento pode ter um ou mais donos orga-
bilidade dos corpos tem implicações diretas sobre a perspectiva, ela tem em igual nizados em posições hierárquicas ou não. E é a potência xamânica de um dono
medida sobre os sentidos. Se pus é mingau de mosca, como dizem os Wauja, dese- em particular o que faz um determinado objeto mais ou menos perigoso para os
nho não está distante de ser música de peixe. Assim, em um campo de múlti- humanos. Os donos cuidam dos recursos materiais e dos conhecimentos e punem
plas perspectivas, o que um ser apreende como visual, pode ser apreendido como os que deles fazem mau uso ou que desrespeitam propositadamente regras de
sonoro por outro ser. Não se trata, portanto, de uma ideia de representação do manufatura, apresentação e execução. Mas não só isso, muitas matérias-primas,
sonoro pelo visual, mas de que o visual se torna, de fato, sonoro de acordo com o em especial fibras, madeiras e resinas com “cheiros fortes”, são perigosas em si
ponto de vista em questão. Viveiros de Castro (1998) propõe que pontos de vista mesmas e podem levar pessoas em estado débil a estados de adoecimento grave.
existem no corpo de alguém ou algo, i.e., embodied. Este alguém, contudo, pode No caso dos Wayana, essa noção de perigo se explica por um fundo mítico, cujo
tanto ser um peixe, uma serpente ou um xamã, e este algo pode tanto ser um cesto, tema central é o corpo:
um chocalho ou uma panela.
Diariamente artefatos são concebidos como sendo “corpos transformados”. Vários
Na Amazônia ocidental, desenhos são ditos serem as melodias dos espíritos mitos os descrevem como tendo passado por um processo que conduz ao seu des-
(Gebhart-Sayer, 1986; Lagrou, 1996, 2007). E como lembra Luna (1992: 233-237), o membramento, resultando na supressão de suas características originais de caos e
poder dos icaros, canções mágicas da Amazônia peruana, está diretamente rela- descontrole. Se atividades cotidianas precisam ser levadas a cabo, os seres primevos
cionado às visões da ayahuasca e de outras plantas de enseñanza; não há icaros devem então ser desmembrados e transformados em objetos que os humanos pos-
sem uma visão ampla, o xamã tem que ver (do outro lado) para poder cantar. Tra- sam controlar. Assim, mulheres indígenas podem usar um objeto trançado (titipi)
para processar a mandioca sem o medo de serem devoradas pela serpente que lhe deu
ta-se de um verdadeiro trabalho de tradução da percepção, inclusive no sentido origem (Velthem, 2001: 206).
de tradução atribuído por Carneiro da Cunha (1998) ao xamanismo amazônico.
Como as economias simbólicas dos sentidos e da alteridade associam ces- A segunda consequência está no plano formal e na identidade dos objetos. Os
tos ao universo da cultura material da música? Como os cestos, enquanto objetos corpos de vários objetos wauja têm uma relação metafórica ou metonímica com
não classificáveis organologicamente como musicais, podem ser assim tratados? corpos de animais ou partes de seus corpos.5 Assim, aos zunidores, objetos que
Obviamente cestos não são instrumentos musicais, nem são eles pensados pelos imitam a forma anatômica de peixes, são atribuídas identidades específicas con-
amazônicos como coisas que produzem música, mas sim como coisas que a con- forme os motivos gráficos e as cores que lhes são aplicados. Ou seja, a especiação
têm em seu próprio corpo. Avancemos a questão intersemiótica sobre os objetos, ictiológica dos zunidores tem uma relação metonímica com os motivos gráficos
tomando-os, num primeiro plano, como entidades cujos corpos nos dizem algo e as cores encontrados nos próprios peixes que eles incorporam. Cestos carguei-
sobre seus pontos de vista. ros, por exemplo, podem levar motivos gráficos alusivos aos insetos e vermes que
Para os Wauja, as qualidades sonoras, formais e materiais/substanciais dos vivem nas roças de mandioca, os mesmos que comem as plantas e os tubérculos.
objetos os fazem ontologicamente mais ou menos próximos dos apapaatai, os A maior parte dos objetos de trançados wauja se divide entre o trabalho de
seres prototípicos da alteridade.3 Essa proximidade é bastante real porque as qua- transporte e processamento da mandioca, o armazenamento de seus subprodutos
lidades mencionadas acima têm invariavelmente sua origem no corpo dos apa- e a pesca; os tipos destinados a essa atividade são basicamente armadilhas. Estes
paatai ou em suas ações passadas e/ou presentes. Tal origem não humana dos são os trançados que produzem alimentos. Em uma ponta extrema, relativamente
objetos se desdobra em duas consequências importantes. distante dessa esfera de produção alimentar, estão as máscaras, “cestos” vorazes
A primeira diz respeito à noção de dono.4 Tudo que compõe um objeto wauja por comidas wauja. De um ponto de vista técnico, quase todas as máscaras wauja
possui donos espirituais, que são precisamente os apapaatai. Do mais diminuto são objetos de trançado, em especial as máscaras atujuwá e kuwahãhalu, que não
são nada mais que esteiras, de forma circular e oval, respectivamente, com acessó-
3 Alteridade se traduz aqui por excepcionais capacidades xamânicas, criativas, tecnológicas e de preda-
ção, as quais se materializam em uma extensa série de artefatos musicais e/ou patogênicos. 5 Um aspecto recorrente na imaginação conceitual da cultura material na Amazônia (Hugh-Jones,
4 Vide em Viveiros de Castro (2002) e Fausto (2008) estudos aprofundados sobre essa noção. 2009; Velthem, 2003).

184 185
o trançado, a música e as serpentes da transformação no alto xingu aristóteles barcelos neto

rios de palha que lhes dão o caráter de roupas, que de um ponto de vista xamânico intercomunitário xinguano, o funeral Kaumai (conhecido por Kwarup, corruptela
funcionam como corpos contingenciais. É sobre a tematização mitológica desses de Kwarìp, seu nome em kamayurá). Os “vovôs dos Wauja”, ou seja, os contem-
corpos que passo a direcionar meu argumento. porâneos de Arakuni, escutaram desde a aldeia toda a sequência de seus cantos,
que foi também escutada pelos xinguanos de aldeias mais distantes, porém sem a
arakuni: da pintura corporal ao cesto-cobra mesma clareza e completude; por isso os Wauja dizem ser hoje os melhores can-
tores do Kaumai.
Conta um mito wauja que inicialmente existia apenas um único motivo gráfico, Ao terminar a cobra e os cantos, Arakuni tinha criado uma série de moti-
o kulupiene, o qual foi primeiramente usado na pintura corporal masculina. Este vos gráficos. Ao corpo da cobra foram adicionados dois objetos de suma impor-
motivo é dito ser a matriz que originou todos os motivos gráficos usados na deco- tância: um cocar de penas de tucano, arara e harpia, e por fim um chocalho na
ração da cultura material wauja, incluindo o trançado e a cerâmica. Arakuni, extremidade do rabo. O primeiro, símbolo de seu status aristocrata (amunaw), e
um rapaz wauja recém-saído da reclusão pubertária, inventou para si o motivo o segundo, de suas capacidades xamânico-musicais. Logo que tudo ficou pronto,
kulupiene a fim de embelezar seu corpo de lutador. Arakuni tinha uma irmã mais Arakuni entrou no cesto-cobra, deslocou-se até um local profundo do rio, fez um
jovem, Kamayulalu, que ainda estava em reclusão pubertária. Os irmãos se apaixo- estrondoso ruído e submergiu, desaparecendo para sempre. Por isso os Wauja
naram um pelo outro e tiveram relações sexuais. Na escuridão de seu gabinete de dizem que Arakuni é como um submarino. Quando os brancos chegaram e mos-
reclusão, seu ato incestuoso parecia estar seguramente encoberto, mas Kamayu- traram fotos de submarinos, os Wauja finalmente descobriram que Arakuni tinha
lalu não percebeu que naquela tarde Arakuni deixara marcado em seu ventre e ido viver no mar.
peito o desenho de kulupiene que ele tinha pintado recentemente com jenipapo. Uma das peculiaridades mais significativas desse cesto-cobra, do ponto
A tinta de jenipapo logo depois de aplicada à pele fica praticamente invisível. A de vista wauja, é que ela contém “todo” o repertório de motivos gráficos wauja.
pintura só adquire completa visibilidade e fixidez horas depois, tornando-se então Porém, se nos limitarmos à denominação dos motivos, a cobra Arakuni tem ape-
indelével por vários dias. nas 13 (ou 14, a depender da versão), o que à primeira vista pode parecer uma
No fim daquela mesma tarde, a mãe de Kamayulau retornou da roça com contradição, pois esse número está longe da “totalidade”. Porém, totalidade nesse
um pesado cesto carregado de mandioca. Ao chegar à porta da casa, chamou a caso se define por um princípio de transformações quase sem fim, e não por um
filha para lhe ajudar, e de imediato percebeu seu corpo manchado com um dese- repertório fixo de motivos.
nho de jenipapo. Certa de que sua filha estivera com um homem em casa durante O kulupiene foi o primeiro motivo feito por Arakuni – inicialmente pintado
sua ausência, procurou sinais que provassem sua identidade. A mãe então viu, no em seu próprio corpo e depois impresso na pele da sua irmã como consequência
meio da praça da aldeia, os jovens a lutar. Entre eles estava seu filho Arakuni, o de sua união incestuosa –; os demais motivos foram feitos enquanto ele cantava
único dentre eles que levava uma pintura de motivos no corpo. Espantada, perce- (ou encantava) e trançava a sua “roupa” no sentido da cabeça para a cauda. Mas
beu que o motivo era idêntico ao que estava marcado no ventre de Kamayulalu. O não há aqui uma precedência do visual sobre o musical ou vice-versa. A produção
incesto tinha sido descoberto. de ambos é simultânea, uma verdadeira fusão sinestésica em que o que se vê é o
Finda a luta, Arakuni retornou à casa e foi ultrajado por seus pais, que quei- que se ouve e o que se ouve é o que se vê.
maram tudo o que ele possuía e o expulsaram de casa. Desolado e envergonhado, Há uma clara associação entre as técnicas do trançado e da tecelagem com
Arakuni tomou rumo à lagoa próxima à aldeia, para onde levou uma imensa as peles das cobras em várias partes da Amazônia (Velthem, 1998). Em ambas as
quantidade de fibra de taquarinha a fim de fazer uma roupa para virar “bicho” e técnicas, os desenhos surgem simultaneamente com o trançar/tecer, não havendo
fugir. Arakuni começa a trançar uma imensa cobra com as finas fibras de taquari- uma dicotomia entre suporte e desenho, como na cerâmica, no corpo ou em
nha (Figura 1). E à medida que a trançava, Arakuni cantava seu lamento e sua dor, artefatos de madeira. Ademais, o trançado e a tecelagem são técnicas de natu-
porém paradoxalmente reafirmando seu desejo e seu amor por Kamayulalu. Os reza mimética: os seus produtos são como “peles de serpentes”. Nesse sentido, o
desenhos surgem simultaneamente com essas canções, que, aliás, têm uma cono- trançado e a tecelagem são o inverso lógico da cerâmica, uma contraposição entre
tação sagrada por, desde tempos imemoriais, fazerem parte do principal ritual maleabilidade e fixidez, e entre superfícies retilíneas que apontam para um conti-

186 187
o trançado, a música e as serpentes da transformação no alto xingu aristóteles barcelos neto

nuum infinito e superfícies circulares espacialmente encerradas sobre si mesmas. los ou quadrados. O primeiro é muito recorrente nas panelas e nos torradores de
Outra imensa relevância simbólica atribuída ao trançado e à tecelagem assenta-se beiju, e o segundo, em cestos, bancos e postes. É comum que um padrão combine
sobre a ideia de que, nos seus processos de produção, ambos tornam-se “natural- dois ou mais motivos, mas ele sempre levará o nome do motivo principal, aquele
mente” desenhos, ou seja, em função das suas próprias especificidades técnicas, os que imprime um ritmo particular ao padrão. É interessante lembrar aqui uma
desenhos surgem concomitantemente aos atos de trançar/tecer. reflexão de Gell a respeito da ilusão de movimento nos padrões gráficos.
As serpentes são seres prototípicos da invenção do grafismo entre grupos
The root of the pattern is the motif, which enters into relationships with neighbour-
Carib (Velthem, 1996, 2001), Pano (Gebhart-Sayer, 1985, 1986; Lagrou, 1996) e
ing motifs, relations which animate the index as a whole. (…) Patterns can be dis-
Tukano (Reichel-Dolmatoff, 1978, 1985). O mito wayana da cobra sobrenatural tinguished from all other indexes by virtue of the fact that they have salient visual
Tuluperê (Velthem, 2001) conta como os humanos matam e retiram sua pele, e, a properties of repetitiveness and symmetry. It would be wrong to imagine that because
partir dela, criam os objetos de trançado. Arakuni apresenta uma inversão desse symmetry and repetition are mathematical properties of forms, that it is not these
tema. É do motivo kulupiene, pintado na pele do jovem Arakuni, matriz de todos properties which most readily provoke the illusion – if it is only that – of immanent
causality of the index (Gell, 1998: 77).
os motivos, que surge o gigantesco cesto-cobra. A inversão desse tema, mais do
que expor uma posição perspectivista no esquema presa-predador, nos fala de um É o ritmo, criado pelas combinações de repetição e simetria, que produz a
complexo modo de imaginação criativa cuja expressão sonora tem consequências ilusão de animação, que, de um ponto de vista material, permite a ideia de cau-
imagéticas. O chocalho no rabo de Arakuni apenas reforça seu caráter duplamente
salidade do index, cujo fundo ontológico, ao menos na Amazônia indígena, pode
musical e espiritual, cujo horizonte mais amplo é o xamanismo, menos como prá-
ser a potência xamânica dos animais, uma potência diretamente ligada ao canto.
tica terapêutica do que como uma epistemologia multinaturalista.
Em Arakuni, a combinação simultânea do visual (percebido como um motivo de
peixinhos) e do sonoro (percebido como cantos de lamento) na produção de um
arakuni: a serpente de corpo repleto de canções corpo contingente (o cesto) e de uma subjetividade animal (a cobra) expressa o
Em “A serpente de corpo repleto de peixes”, Lévi-Strauss explora, através da icono- interesse por um modo de animação sinestésico. Assim, o mesmo corpo repleto
grafia nazca, o clássico tema ameríndio presa-predador e nos remete às mitologias de peixes é um corpo repleto de canções.
das terras baixas da América do Sul, mostrando uma homologia entre modos dis- Na mitologia wauja, peixes são até mais musicais do que pássaros. Em um dos
cursivos visuais e verbais. Lik, a cobra de corpo repleto de peixes (ou de motivos mitos sobre o roubo das poderosas flautas kawoká, o virtuoso flautista é Tupato,
visuais de peixes), tem em sua mão uma lança que usa para perfurar sua presa, um peixe de boca torta. O nome de outro peixe comestível, talapi, é também o de
a qual carrega inerte, porém ainda viva, entre seus dentes. Essa imagem é tam- um pequeno clarinete de uns 22 centímetros de comprimento e 16 centímetros de
bém familiar na iconografia mítica wauja. Mas não é a partir da predação que eu circunferência. O clarinete talapi, fálico e claramente ictiomorfo, é um elemento
gostaria de continuar essa discussão. Há algo nos corpos de Lik e Arakuni que palpável de um idioma de simbolismo sexual e musical que inclui ainda flautas
merece um exame mais cuidadoso. Trata-se da elaboração visual no trabalho de e zunidores. O zunidor é outro instrumento musical xinguano que aponta para
superfície, aquilo que impregna visualmente ambas personagens. No caso de Lik, uma relação sonoro-musical explícita com alteridades animais, neste caso, tam-
são imagens figurativas estilizadas de peixinhos, e no de Arakuni são motivos geo- bém peixes. Entre os Wauja, os zunidores dão corpo à praticamente toda a fauna
métricos destes e de outros bichos. O motivo gráfico kulupiene, presente em toda ictiológica xinguana. Já para os Kamayurá, os zunidores são antes cobras (Mene-
classe de objetos da cultura material wauja, é em geral identificado como “peixe”, zes Bastos, 1978). Noto ainda que a associação entre cobras e peixes pode se dar
uma identificação que se mantém praticamente inalterada desde 1884, quando tanto por canais musicais, como no caso xinguano, como pela relação de dono/
Karl von den Steinen visitou pela primeira vez os povos do Alto Xingu. mestre, tal o caso Aalto rio Nnegrino (Wright, 1993-1994).
O motivo kulupiene pode ser disposto em dois padrões diferentes. A escolha Embora o cesto-cobra Arakuni nao seja um instrumento musical, ele não é
de um ou outro tem a ver, em geral, com a forma do suporte. O motivo pode ser conceitualmente menos musical do que flautas e clarinetes. Parece-me, seguindo
desenhado em um padrão de linhas radiais ou paralelas emolduradas por círcu- Menezes Bastos (1990), que o que apresenta sua relevância para pensar tanto a

188 189
o trançado, a música e as serpentes da transformação no alto xingu aristóteles barcelos neto

forma sonora como a visual é a cadeia completa que parte do mito para o corpo. uma visão musical da cultura material
Se a própria pintura do corpo dançante permite imaginar uma atualização do mito
Em A Musical View of the Universe, Ellen Basso (1985) desenvolve uma teoria
pela ação da música, o que permite imaginar um corpo contingente repleto de
etnográfica do ritual xinguano, cuja linha central é definida por variados modos
desenhos-canções que, além disso, dança?
Em uma versão antropomoforma de Arakuni (Figura 2), Kamo Wauja o apre- de trocas sonoro-musicais, sejam estas entre homens e mulheres, humanos e não
senta como uma xamã-cantor dançando com um chocalho na mão, com seu cocar humanos, aristocratas e não aristocratas, ou entre membros de diferentes aldeias
de amunaw e suas braçadeiras de plumas de tucano. Esse desenho é uma exegese que se visitam para a realização de rituais.6 Nesse mosaico multilinguístico e mul-
visual da teoria da cadeia intersemiótica do ritual, uma imagem síntese de dife- tiétnico, o ritual e a música dentro dele são a língua franca do Alto Xingu (Mene-
rentes modos de transformação: do humano em animal e monstro, do sonoro no zes Bastos, 1978). Esse sistema de trocas musicais, cujos intensidade e efeitos são
visual e vice-versa, da fibra vegetal em pele e do jovem lutador no xamã-cantor. muito variados, funde-se a outros sistemas de trocas, sobretudo de objetos e valo-
Passo agora a discutir alguns aspectos dos modos da produção musical wauja e res político-morais.
os demais personagens que, juntamente com Arakuni, apontam para um grande As qualidades e os valores das músicas rituais são correspondentes a suas
tema da arte ameríndia. capacidades de produção de pessoas humanas, que são basicamente de dois tipos,
porém sem qualquer sentido dualista. Há músicas rituais executadas para a pro-
dução dos notáveis/aristocratas (amunaw); as canções que Arakuni cantou para
sua irmã Kamayulalu fazem parte desse repertório. E há músicas executadas não
necessariamente para produzir um tipo específico de pessoa social, mas para man-
ter humanos como humanos. Ou seja, são músicas do complexo xamânico usadas
para curar, i.e., para recuperar o ponto de vista humano daqueles que tiveram
sua alma raptada por espíritos animais. Toda doença que não advém de feitiçaria
humana é uma transformação do humano em animal (Barcelos Neto, 2007). Esse
repertório, ao qual chamo de músicas de apapaatai, atua sobre um aspecto da ins-
tabilidade ontológica do humano.
As músicas de apapaatai são executadas em coros femininos, masculinos ou
mistos, em solo, dueto ou trio. Um outro repertório, tão extenso quanto o vocal,
é executado em uma série de “instrumentos musicais”, sobretudo aerofones, que
são, eles mesmos, apapaatai. A materialidade e a sonoridade dos “instrumentos”
têm um papel importantíssimo para a sua definição como personagens rituais e
para a sua percepção como coisas verdadeiramente indígenas.7
Em um trabalho anterior (Barcelos Neto, 2009), introduzi os materiais
etnográficos que explicam as relações entre durabilidade, capacidades musical e

6 Além do livro de Basso, os trabalhos de Menezes Bastos (1990), Mello (2005) e Piedade (2004) são as
principais referências para o sistema de trocas sonoro-musicais no Alto Xingu.
7 Lembro-me das muitas vezes em que Atamai, o principal chefe wauja, comentou sua irritação com o
interesse de alguns jovens em aprender a tocar violão e a cantar música sertaneja. Em 2002, os Yawala-
píti convidaram um grupo de índios Guarani de São Paulo para assitir a um Kwarup em sua aldeia. Os
Guarani fizeram uma breve apresentação músico-coreográfica acompanhada de violino e violão, que
Figura 2: Arakuni transformado em serpente. Desenho de Kamo, 1998. provocou certa indignação em Atamai: “Isso não é música de índio.” Para ele, o uso de instrumentos
“do branco” anulavam o caráter indígena da canção, mesma esta sendo executada em língua guarani.

190 191
o trançado, a música e as serpentes da transformação no alto xingu aristóteles barcelos neto

xamânica, e produção e consumo alimentar, e analisei os efeitos da imbricação


dessas relações materiais nas relações sociais wauja. O objeto sonoramente mais
poderoso e durável do sistema, o trocano (Pulupulu em wauja), não é fabricado
pelos Wauja desde a década de 1950, quando estes foram afetados por uma vio-
lenta epidemia de sarampo. Mesmo ausente fisicamente da cena ritual atual, o
trocano continua a integrar esse sistema, assim como outros objetos que ainda
estão “dormindo” e que algum dia poderão ser despertados (Barcelos Neto, 2011).
A noção de cura, como transformação corporal, é o eixo conceitual básico do
sistema de objetos rituais. Mas alguns deles fazem muito mais do que curar, pois
permitem mediar uma série de trocas intra e intercomunitárias. Cada um desses
objetos tem uma identidade espiritual animal específica que definirá a iconogra-
fia (no caso das máscaras e dos zunidores) e a música (no caso de aerofones) a
serem executadas. Máscaras e aerofones podem dar corpo a todos os seres não Figura 3: O trocano-anaoncda kamayurá. Foto do autor, 2000.
humanos, inclusive a fenômenos e elementos naturais, como o arco-íris e o fogo,
enquanto os zunidores, apenas a peixes. O trocano é o único objeto ritual desse
sistema cuja identidade animal se relaciona a uma “espécie” apenas, a anaconda.
Aruta, o principal xamã-cantor wauja, fez um desenho do trocano que os Wauja
queimaram na década de 1950 (Figura 3). Ele é muito semelhante ao único trocano
hoje em uso em todo o Alto Xingu (Figura 4), que fica na aldeia kamayurá de
Ipavu, a 16 quilômetros da aldeia Wauja. Ambos trocanos têm a pintura de uma
anaconda ocupando toda a extensão da sua lateral externa. O desenho de Aruta
revela, ademais, alguns objetos-animais que são guardados dentro do corpo do
trocano: quatro peixes, um peixe-elétrico e uma arraia, respectivamente materia-
lizados como máscaras, flauta kuluta e flauta mutukutaĩ, objetos que fazem parte
do complexo ritual do trocano. Enquanto Arakuni, o cesto-cobra, tem música em
sua pele, Pulupulu, o tambor-anaconda, a tem dentro de si.
A terceira e última cobra desse universo mito-musical é Kamalu Hai, a gigan-
tesca cobra-canoa que carrega em seu dorso uma longa série de panelas cantoras
(Figura 5). O tamanho das panelas decresce da cabeça para a cauda. As maiores
cantam em um tom muito alto e grave, e as menores, em um tom muito baixo e
agudo. A polifonia das panelas cantoras é materialmente análoga à diversidade de
tamanhos, formas e funções da cerâmica wauja (Barcelos Neto, 2005-6). A narra-
tiva do mito termina com uma explicação sobre por que apenas os Wauja sabem
fazer todos os tipos de artefatos cerâmicos. Kamalu Hai fez uma única aparição, e
foi na lagoa dos Wauja que ela chegou “fazendo barulho”. Os Wauja aprenderam a
fazer cerâmica porque eles viram e, sobretudo, ouviram as panelas cantarem.
Figura 4: A casa das flautas como um microcosmo de objetos-animais.
No centro o trocano-anaoncda. Desenho de Aruta, 1998.

192 193
o trançado, a música e as serpentes da transformação no alto xingu aristóteles barcelos neto

personagem recebeu. Nem mesmo a onça, tema que absorveu décadas de pes-
quisas, demonstra o extraordinário rendimento artístico das serpentes e a trama
complexa que elas tecem entre sensibilidades estéticas e noções cosmológicas. As
onças que me desculpem, mas a ferocidade das serpentes é que é bela.

referências bibliográficas
BARCELOS NETO, Aristóteles. A arte dos sonhos: uma iconografia ameríndia. Lisboa: Assí-
rio & Alvim, 2002
______. “A cerâmica wauja: etnoclassificação, matérias-primas e processos técnicos”.
Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 15/16, p. 357-370, 2005-6.
Figura 5: A cobra-canoa kamalu Hai. desenho de Kaomo, 1998.
______. A arte dos sonhos: uma iconografia ameríndia. Lisboa: Assirio & Alvim; Museu
Nacional Etnologia, 2002.
A imaginação conceitual da cultura material xinguana está profundamente
______. “Wĩtsixuki: desejo alimentar, doença e morte entre os Wauja da Amazônia Meri-
ancorada na experiência sonora: se cestos são feitos de canções, panelas, por sua dional”. Journal de la Société des Américanistes, 93 (1), p. 73-95, 2007.
vez, cantam. Parece-me que esta ênfase wauja, e xinguana por extensão, sobre a ______. Apapaatai: rituais de máscaras no Alto Xingu. São Paulo: Editora da Universidade
materialidade é um outro modo amazônico de marcar o caráter fundamental- de São Paulo, 2008.
mente musical da alteridade. Ainda que os objetos, musicais ou não, sejam feitos ______. “The (de)animalization of objects: food offerings and the subjectivization of
pelos Wauja, eles jamais deixam de ser uma população de outras “gentes”. Para os masks and flutes among the Wauja of Southern Amazonia”. In: SANTOS-GRANERO,
Araweté, essa mesma alteridade radical, representada pelos Mai (deuses canibais), F. (org.), The occult life of things: native Amazonian theories of materiality and perso-
manifesta-se como canção, mas, diferentemente dos Wauja, prefere um minima- nhood. Tucson, University of Arizona Press, p. 128-153, 2009.
lismo material, o chocalho, este adensador de espíritos (Viveiros de Castro, 1992). ______. “Le réveil des grands masques du Haut-Xingu: Iconographie et transformation”,
In: GOULARD, J. P. ; KARADIMAS, D. (orgs.). Masques des hommes, visages des dieux.
Outro extraordinário exemplo de manipulação das relações de alteridade via obje-
Paris: Éditions CNRS, 2011.
tos musicais é analisado por Menezes Bastos (2005) entre os Kamayurá: a sim-
BASSO, Ellen. A musical view of the universe. Kalapalo myth and ritual performance. Fila-
ples presença ou proximidade desses objetos pode ser definidora de importantes délfia: University of Pennsylvania Press, 1985.
traços do ethos sociopolítico. Seria o som a substância-alma dos objetos? Através CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. “Pontos de vista sobre a floresta amazônica: xamanismo
das etnografias do Alto Xingu e do Noroeste Amazônico (e.g. Karadimas, 2008; e tradução”. Mana – Estudos de Antropologia Social, 4 (1), p. 7-22, 1998.
Hugh-Jones, 2009), sabemos que quanto mais sonoros/musicais são os objetos, FAUSTO, Carlos. “Donos demais: maestria e domínio na Amazônia”. Mana – Estudos de
mais complexos são seus modos de subjetivação. Estudos comparativos sistemáti- Antropologia Social, 14 (2), p. 329-366, 2008.
cos poderiam apontar elementos que tornariam as relações entre som, desenho e GEBHART-SAYER, Angelika. “The geometric designs of the Shipibo-Conibo in ritual con-
artefatos, ainda mais complexas. text”. Journal of Latin American Lore, 11 (2), p. 143-175, 1985.
Arakuni, Kamalu Hai e Pulupulu são representantes de um grande tema das ______. “Una terapia estética: los diseños visionarios del ayahuasca entre los Shipibo-
artes ameríndias, assim como as posições de meditação do Buda e os momentos Conibo”. América Indígena, 46, p. 189-218, 1986.
da vida de Cristo o são, respectivamente, para as artes da ásia antiga e da Europa GELL, Alfred. Art and agency: an anthropological theory. Oxford: Oxford University Press,
1998.
até o fim do século XVII. A ênfase analítica em um grande tema, como as serpen-
GUSS, David. To weave and sing: art, symbol, and narrative in the South American rain
tes da transformação, permitiria um novo impulso comparativo das artes indí-
forest. Los Angeles: University of California Press, 1989.
genas da Mesoamérica ao Chaco. Certamente os materiais amazônicos teriam aí
HUGH-JONES, Stephen. “The fabricated body: objects and ancestors in Northwest Amazo-
um papel definidor. A riqueza das metáforas transformacionais das serpentes nos nia”. In: SANTOS-GRANERO, F. (org.), The Occult Life of Things: Native Amazonian theo-
mitos ameríndios recebe impressionantes traduções visuais como nenhum outro ries of materiality and personhood. Tucson: University of Arizona Press, p. 33-59, 2009.

194 195
o trançado, a música e as serpentes da transformação no alto xingu aristóteles barcelos neto

KARADIMAS, Dimitri. “La métamorphose de Yurupari: flûtes, trompes et reproduction STEINEN, Karl von den. Unter den naturvölkern Central-Brasiliens. Berlim: Dietrich Reimer,
rituelle dans le Nord-Ouest amazonien”. Journal de la Société des Américanistes, 94 1894.
(1), p. 127-169, 2008. TAYLOR, Anne-Christine; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Un corps fait de regards”. In:
LAGROU, Els. “Xamanismo e representação entre os Kaxinawa”. In: LANGDON, E. J. (org.). BRETON, Stéphane (ed.). Qu’est ce qu’un corps? Paris: Musée du Quai Branly, p. 148-
Xamanismo no Brasil: novas perspectivas. Florianópolis: Editora da UFSC, p. 197-232, 199, 2006.
1996. VELTHEM, Lúcia Hussak van. A pele de Tuluperê: uma etnografia dos trançados wayana.
______. “O que nos diz a arte kaxinawa sobre a relação entre identidade e alteridade”. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1998.
Mana, 8 (1), p. 29-61, 2002. ______. “The woven Universe: Carib basketry”. In: MCEWAN, C.; BARRETO, C; NEVES, E.
______. A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxi- (orgs.). Unknown Amazon: culture in nature in ancient Brazil. Londres: The British
nawa, Acre). Rio de Janeiro: Top Books, 2007. Museum Press, p. 198-213, 2001.
______. “The crystallized memory of artifacts: a reflection on agency and alterity in Cashi- ______. O belo é a fera: a estética da produção e da predação entre os Wayana. Lisboa:
nahua image-making”. In: SANTOS GRANERO, Fernando (org.). The Occult Life of Assírio & Alvim, 2003.
Things: Native Amazonian Theories of Materiality and Personhood. Tucson: The Uni- VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. From the enemy’s point of view. Chicago: University of
versity of Arizona Press, p. 192-213, 2009. Chicago Press, 1992.
LÉVI-STRAUSS, Claude. “Le serpent aux corps rempli des poissons”. In: Actes du XXVII ______. “Cosmological deixis and Amerindian perspectivism”. The Journal of the Royal
Congrès des Americanistes, Paris (Sociéte des Américanistes, 1948), p. 633-636, 1947. Anthropological Institute, 4, p. 469-488, 1998.
LUNA, Luis Eduardo. “Icaros: magic melodies among the Mestizo shamans of the Peruvian ______. “Esboço de cosmologia yawalapíti”. In: VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstância
Amazon”. In: LANGDON, E. J.; BAER, G. (orgs.). Portals of power: Shamanism in South da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, p. 25-85,
America. Albuquerque: University of New Mexico Press, p. 231-253, 1992. 2002.
MELLO, Maria Ignez. Iamurikumã: música, mito e ritual entre os Wauja do Alto Xingu. Tese WRIGHT, Robin. “Umawali. Hohodene myths of the Anaconda, father of the fish”. Société
de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina, 2005. Suisse des Américanistes, boletim 57-58, p. 37-48, 1993-1994.
MENEZES BASTOS, Rafael de. A musicológica kamayurá: para uma antropologia da comuni-
cação no Alto Xingu. Brasília: Funai, 1978.
______. A festa da Jaguatirica: uma partitura crítico-interpretativa. Tese de doutorado em
Antropologia Social, Universidade de São Paulo, 1990.
______. “Ritual music of the Kayapó-Xikrin, Brazil”. Yearbook of the International Council
for Traditional Music, Nova York, v. 28, p. 231-233, 1996.
______.“Leonardo, a flauta: uns sentimentos selvagens”. Revista de Antropologia, 49 (2), p.
557-579, 2005.
PIEDADE, Acácio. O canto do Kawoká: música, cosmologia e filosofia entre os Wauja do
Alto Xingu. Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópo-
lis, 2004.
REICHEL-DOLMATOFF, Gerardo. Beyond the Milk Way: hallucinatory imagery of the
Tukano indians. Los Angeles: University of California, Latin American Center Publi-
cations, 1978.
______. Basketry as Methaphor: Arts and Crafts of the Desana Indians of the Northwest
Amazon. Los Angeles: University of California Press.
RIBEIRO, Berta. A civilização da palha: a arte do trançado dos índios do Brasil. Tese de Dou-
torado, Departamento de Antropologia, Universidade de São Paulo. 1980.
SEVERI, Carlo. “L’espace chimérique. Perception et projection dans les actes de regard”.
Gradhiva, revue d’anthropologie et d’histoire des arts, 13 (n. s.), p. 8-47, 2011.

196 197
Movimento e profundidade no kene
shipibo-konibo da Amazônia Peruana
Luisa Elvira Belaunde

O kene shipibo-konibo é uma arte amazônica da envoltura. Caracterizado por


seu horror vacui e seu uso de linhas de múltiplas espessuras preenchidas por
filigranas, os desenhos shipibo-konibo tecem redes de arabescos desdobrados,
invertidos e paralelos que envolvem a superfície dos corpos. Trata-se de uma arte
aparentemente bidimensional, mas finamente ajustada às formas tridimensionais
que ela recobre. Nisto consiste a maestria das mulheres desenhistas que pintam,
bordam e tecem kene sobre todos os tipos de superfícies, inclusive sobre o corpo
humano, para embelezar o seu dia a dia. Roupas, cerâmicas, braceletes, coroas,
remos, casas, rostos, pernas e mãos, todos os volumes corporais que fazem parte
da existência cotidiana shipibo-konibo são suscetíveis a serem delicadamente
envoltos por kene. Atualmente, a produção e a venda de objetos adornados
com kene no crescente mercado turístico constituem uma das principais fontes
de renda para muitas mulheres que conseguem segurar assim uma importante
margem de autonomia econômica (Temple, 1992; Illius, 1994 e 2002; Gerbhart-
Sayer, 1985; Heath, 2002; Brabec de Mori e Mori de Brabec, 2008; Colpron, 2005;
Leclerc, 2004; Belaunde, 2009).
Tanto na sua estrutura como no seu conceito e no seu uso ritual, o kene shi-
pibo-konibo tem fortes semelhanças com a arte dos desenhos de outros grupos
amazônicos da família linguística pano, especialmente com os desenhos kaxinawa
que também são chamados kene. Na sua análise do kene kaxinawa, assim como na
proposta comparativa que tem elaborado recentemente, Lagrou (1991, 1995, 1996,
2007, 2009, 2011, 2012 e neste volume) demonstra como as diferentes característi-
cas formais da composição dos desenhos feitos com tinta de jenipapo constituem
técnicas de focalização do olhar cujo efeito cinestésico consiste em sugar o expec-
tador para dentro do espaço gráfico, fazendo desaparecer a opacidade da super-
fície e produzindo movimento e profundidade no espaço perceptivo. A autora
mostra que as diferentes composições estilísticas podem desempenhar múltiplos

199
movimento e profundidade no kene shipibo-konibo luisa elvira belaunde

papéis dérmicos, desde a função de fechar o corpo à de tornar a pele mais per- nem uma maquiagem que se superpõe ou esconde os rasgos e a expressividade do
meável ao intercâmbio com o exterior. No último caso, quando é utilizada uma rosto. Ao contrário, o kene facial enquadra o rosto, focalizando a atenção sobre a
rede larga de desenho, a pele se torna como uma malha. O acoplamento do kene área dos olhos, do nariz e da boca, e acompanhando todos seus movimentos.
ao suporte material que o envolve não é uma projeção em diapositivo (slides) de Igualmente, os panos pintados e bordados com fios coloridos, chamados chi-
um desenho estendido (Lagrou, 2011: 80). Não é questão de reproduzir uma figura tonte (Belaunde, 2011a), são usados para cobrir os quadris e as coxas, ajustando-se
preexistente, abstrata ou representativa sobre um suporte material qualquer. A à curvatura do estômago e às nádegas em movimento para que se possa caminhar
especificidade dos desenhos se constrói em relação à superfície tridimensional e sentar-se com comodidade. A plasticidade e a beleza dos desenhos nos panos se
singular que recobrem, constituindo-se em uma nova pele. Na execução do dese- destacam plenamente no seu acoplamento ergonômico com o corpo da mulher
nho importa transpor para um suporte complexo a mesma relação entre as linhas em movimento, especialmente quando ela caminha e realiza diversas atividades
utilizada em superfície plana. A aplicação de desenhos na superfície transforma quotidianas em pé e de cócoras. O kene shipibo-konibo é, então, uma espécie de
o corpo apontando para a possibilidade de percepção de figuras não reveladas, hiperpele que transforma e completa as formas tridimensionais, fazendo visível
mas apenas sugeridas, que se insinuam na relação entre a superfície desenhada e uma áurea de beleza colorida que surge da união entre a pele e o volume, e que se
o volume, entre o englobante e o englobado. Quer dizer, o kene apela a um ato da mostra plenamente quando o corpo está se movimentando. Mas, nos corpos e nos
imaginação para ser completado além do que é explicitamente dado a ver. Desse objetos em repouso, os desenhos também produzem uma impressão de animação,
acoplamento entre os desenhos da superfície e as singularidades do volume do como se o movimento estivesse sempre latente à flor da pele. Estar coberto de kene
corpo que eles recobrem surge a geometria do kene. As composições de desenhos é manifestar-se num mundo de seres animados.
também se caracterizam pela coexistência de rasgos simétricos e assimétricos, já Neste artigo examino de perto as técnicas formais de produção do kene
que há sempre um detalhe destoante, um punctum, que gera um desequilíbrio shipibo-konibo que visam criar uma impressão de profundidade e movimento
no dualismo das linhas e cria o jogo perceptual incessante entre fundo e figura nos desenhos. O uso de traços com espessuras e cores diversos, e o de múltiplos
(Lagrou, 1991, 1995, 2007). quadros de desenhos encaixotados ou superpostos resultam em composições de
O que importa reter aqui da análise do kene kaxinawa e da hipótese com- desenhos com um dinamismo ainda maior do que no caso do kene kaxinawa. Ao
parativa do grafismo ameríndio proposta por Lagrou (2011 e 2012) é o fato de o constante desequilíbrio entre linhas, curvas e retas é acrescentada a confronta-
grafismo poder ser lido como uma técnica perceptiva que aponta para a transfor- ção dos traços, das cores e dos diversos fundos e figuras contidos nos múltiplos
mabilidade da realidade percebida. O grafismo e a arte em geral são vistos aqui quadros de desenhos. O efeito de conjunto evidencia com claridade o fato de que
como instrumentos não tanto de tornar visíveis seres invisíveis, mas de percepção a superfície desenhada não é meramente bidimensional, mas tem profundidade.
que possibilitam a passagem entre mundos perceptivos. A linha produz a trans- Trata-se de uma superfície que adere ao volume, mas, longe de fechá-lo herme-
parência da pele, produz caminhos e abre para a percepção de figuras dentro do ticamente como uma parede que separa sem nuances o interior do exterior, ela
desenho. revela o quanto essa fronteira mesma é um espaço profundo onde o olhar pode
Do mesmo modo que os desenhos kaxinawa, as composições de kene shipibo- penetrar e viajar à distância.
konibo não são feitas para serem vistas estendidas a plano, e elas se constroem Minha intenção é me aproximar ao espaço liminar da pele desenhada shi-
numa relação singular com seu suporte material. Num estudo das ornamenta- pibo-konibo usando exemplos contemporâneos de cerâmicas pintadas. Examino
ções femininas (Belaunde, 2011a e 2012), mostro como os desenhos feitos e usados a construção formal do kene nas cerâmicas destacando a ordem de produção dos
pelas mulheres na pele e na roupa se acoplam às singularidades do corpo feminino desenhos durante o processo da pintura e mostrando os efeitos de profundidade
em movimento. Por exemplo, ao pintar um rosto com tinta de jenipapo, os tra- e movimento gerados pela visão dos desenhos prontos sobre o corpo das cerâ-
ços mantêm a proporção acoplando-se ao contorno do nariz, às bochechas e ao micas. Ao focalizar os aspetos formais do kene e as sequências de sua constru-
queixo, como se uma gaze de desenhos fosse finamente aplicada sobre a pele, mas ção também intento responder às interrogações sobre o significado dos desenhos
dando a impressão de que os desenhos vêm de dentro do corpo e surgem da estru- que tem gerado muitos debates teóricos, não somente na Amazônia (Illius, 1994
tura tridimensional irregular do rosto. Por isso, a pintura facial não é uma máscara e 2002; Gerbhart-Sayer, 1985 Brabec de Mori e Mori de Brabec, 2008; Brabec de

200 201
movimento e profundidade no kene shipibo-konibo luisa elvira belaunde

Mori, 2009). A minha proposta é deslocar a pergunta do campo semântico para linguística carib (Van Velthem, 2003; e barcelos neste volume). De todos os seres
o campo visual: antes de pretender decifrar o suposto significado dos desenhos é do cosmos shipibo-konibo, a anaconda é a que melhor encarna a capacidade gene-
necessário aprender a vê-los. rativa e regenerativa do kene. Trata-se da anaconda primordial, chamada ronin
(em shipibo-konibo) ou yacumama (em quéchua amazônico regional), o pode-
estruturas de caminhos roso espírito “mãe” da água e princípio emblemático da cosmologia e do xama-
nismo shipibo-konibo. Este ser resume o caráter dual da Amazônia: bosque inun-
A estrutura aparentemente bidimensional do kene modela uma lógica arquite- dável, território da água, porque sem a crescente temporal dos rios não há selva,
tônica complexa. O conceito que define a organização dos desenhos é a cánoa, não há plantas. Os rios entre as árvores da selva são, também, os melhores cami-
“estrutura”, uma palavra shipibo-konibo que designa a estrutura de madeira do nhos, e seu trajeto serve de referência aos viajantes tanto pelo curso da água como
teto das casas da Amazônia. Por sua vez, a palavra cánoa deriva de cano, que sig- pelo pedaço de céu aberto que se desenha como caminho. Segundo a cosmogonia
nifica “caminho”. Cánoa é, portanto, um circuito de comunicação e também um shipibo-konibo, o corpo da anaconda primordial forja a cama dos rios da selva,
suporte arquitetônico.1 Esta estrutura de caminhos é transposta sobre a superfície da boca até a nascente, mas antes sua pele dá origem a tudo o que existe. Segundo
dos corpos e dos objetos, estabelecendo circuitos de linhas de diversas espessuras alguns cantos xamânicos, o universo se originou quando a anaconda primordial
e cores que ressaltam sobre o fundo, o qual gera jogos reversíveis de fundo e figura.
cantou os desenhos que carregava na estrutura das escamas das suas costas. Os
O observador nunca sabe se está olhando um circuito de traços ou uma figura que
desenhos saíram da sua boca por meio do canto, se juntaram e ganharam forma
emerge dos traços, quase em alto-relevo, devido ao contraste das linhas de diferen-
tridimensional, criando o mundo, as pessoas e as plantas. Por isso, em última ins-
tes espessura e cor. O olhar passa de um registro ao outro, dando uma impressão
tância, todos os desenhos shipibo-konibo são ronin kene, “desenhos da anaconda”,
dinâmica, quase que de vida própria, oscilando sem decidir-se por uma ou outra
isto é, desenhos da mãe da água (Illius, 1994).
opção. Esse movimento do jogo de fundo e figura interno ao labirinto das linhas
As mulheres aprendem a ver estas complexas composições de estruturas de
completa uma impressão hipnótica que as mulheres shipibo-konibo se orgulham
caminhos em seus “pensamentos” desde pequenas, graças a umas plantas cypera-
de ressaltar. Hipnotizar e se apaixonar são duas noções muito próximas no pensa-
ceas, localmente chamadas waste (em shipibo-konibo) ou piri-piri (em quéchua
mento e na estética feminina (Valenzuela e Valera, 2005: 62).
regional), que, segundo a mitologia shipibo-konibo, surgiram das cinzas da ser-
O conceito shipibo-konibo de estrutura de caminhos é também uma noção
pente primordial. Suas avós colocam-lhes umas gotas de piri-piri nos olhos e no
fractal que se aplica a todos os níveis, desde o macro ao micro. Pode ser utilizado
umbigo para convertê-las em exímias desenhistas à imagem da anaconda (Tour-
para referir-se ao manto estrelado que recobre a cúpula celestial, ao desenho dos
non, 2006). Os homens também podem ver os desenhos graças ao uso xamânico
rios afluentes de uma bacia e ao curso diminuto dos nervos das folhas (Heath,
de plantas psicotrópicas, como a ayahuasca (Banisteriopsis caapi), que é também
2002). Estes elementos são exemplos de kene presentes na paisagem que inspiram
estreitamente associada à anaconda primordial, mas os homens não costumam
a criação artística das mulheres. Mas, segundo as mulheres, sua destreza artís-
desenhar suas visões. Fazer kene é uma arte feminina.2 Tratando-se do grande
tica não provém de copiar os desenhos existentes no entorno, mas dos “seus pen-
predador que caça suas presas, as hipnotiza e, depois de encurralada, as engole
samentos”, shinan. As “mulheres de pensamentos fortes”, koshi shinan ainbo, são
envolvendo-as, podemos compreender melhor por que a complexa estrutura do
aquelas que podem ver desenhos na sua mente e moldá-los com facilidade sobre
kene se exprime numa estética feminina do hipnotismo e da envoltura.
um suporte material. Esta habilidade de ver e fazer kene se adquire por meio do
A associação entre hipnotismo, desenho e sedução é partilhada pelos Shipibo-
uso de plantas ritualmente associadas à anaconda (Valenzuela e Valera, 2005: 64).
Konibo com os Kaxinawa, os Yine e os Ashaninka, que habitam a mesma região. A
O pensamento shipibo-konibo, que associa a origem do kene à anaconda,
ideia também apresenta semelhanças com as correspondências estabelecidas entre
também revela proximidade com a etnografia kaxinawa e a de outros povos ama-
zônicos onde a anaconda ocupa uma posição central, como os Wayana da família
2 Alguns homens caracterizados localmente como homossexuais também fazem desenhos kene (Roe,
1982). Atualmente, devido ao crescimento do turismo xamânico, mulheres e homens shipibo-konibo
1 Entre os Kaxinawa nota-se relação similar entre os conceitos de kene e a estrutura de reclusão (ver estão desenvolvendo uma nova modalidade de pintura xamânica visionaria que combina rasgos figu-
Lagrou 1998 e neste volume). rativos da pintura ocidental e desenhos geométricos (Belaunde, 2009, 2011b e 2012).

202 203
movimento e profundidade no kene shipibo-konibo luisa elvira belaunde

beleza e ferocidade no caso da pintura corporal Wayana do Pará (Lagrou, 2007; desenhos não são unidades discretas de figuras, eles correspondem a tramas que
Gow, 1999; Beysen, 2008; Van Velthem, 2003). Trata-se de uma predação realizada se estendem potencialmente de uma maneira infinita. Mas como a moldura é deli-
através de dispositivos que visam a exposição do corpo ao olhar do outro e, ao mitada, só é possível ver os desenhos que aparecem com essa janela aberta.
mesmo tempo, protege-lo contra o olhar do outro. O desenho corporal gera uma Segundo Heath (2002), trata-se de um tipo amazónico de “janela ao infi-
relação dinâmica e mutuamente agentiva entre perceber e ser percebido, dese- nito”, não somente por suas associações cosmológicas, mas por sua composição
jar e se fazer desejar, devorar e ser devorado pelo outro.3 O poder peculiar dos em estrutura sobre a superfície dos corpos (Ver também Dawson (1975) e Müller
desenhos reside, em grande parte, no seu poder generativo e regenerativo, sendo (1990: 232) apud Lagrou 1991 e neste volume). A trama dos traços estabelece rela-
associado à vitalidade, crescimento e saúde tanto para quem é vestido de desenhos ções estruturais que potencialmente se estendem até completar a totalidade da
quanto para quem os olha, apesar dos perigos e das armadilhas que carregam. pele aural ao redor de um corpo. Portanto, todo desenho realizado dentro de uma
moldura delimitada implica sua totalidade de maneira virtual, mesmo que só um
janelas na pele: sequência de produção dos desenhos pedaço seja visível. Ou, dito de outra maneira, todo pedaço de desenho feito sobre
uma parte de um corpo é uma materialização de um desenho invisível maior que
Como mostrou Lagrou (2007 e 2011) no caso kaxinawa, para compreender os envolve o volume inteiro do dito corpo. O kene é, então, uma arte que permite
desenhos kene é necessário deixar de lado a ideia de recolher todos os seus nomes que sejam vistos, dentro da superfície delimitada por uma moldura, os desenhos
e tentar buscar um código secreto para decifrá-los de uma maneira meramente normalmente invisíveis que envolvem os corpos e os objetos do mundo shipibo-
figurativa ou representativa. A autora sugere que o kene opera com uma lógica konibo. O kene materializa os circuitos de relações estruturais da hiperpele, visibi-
semelhante à da trama de uma tecelagem, e é necessário compreender os proces- lizando a relação entre superfície e volume.
sos de produção dos desenhos como parte da trama, explorando a lógica cinética Se olharmos com atenção a sequência em que são construídos os desenhos
da relação entre as linhas, mais do que como figuras separadas. dentro de uma moldura, veremos que há alguns princípios recorrentes. Estes prin-
No caso shipibo-konibo, o processo de produção dos desenhos geralmente cípios são demonstrados na maneira como as mulheres shipibo-konibo concebem
começa pela delimitação de um quadro ou moldura que os contém. Este quadro e realizam os desenhos sobre um suporte material. Tomemos o caso de uma pin-
não só faz parte da composição total, mas atua literalmente como moldura do tear tura sobre a superfície de uma cerâmica fresca. Normalmente, o primeiro passo
dentro do qual se tecem os desenhos. No caso dos desenhos bordados ou pinta- realizado pela mulher é cobrir de branco ou marrom-avermelhado as diferentes
dos, o quadro é o primeiro a ser desenhado sobre o suporte material – a pele, o áreas da superfície de uma cerâmica, usando cores de terra. Logo, usando um
pano, a madeira ou a cerâmica. Outra maneira de conceber este quadro utilizando pedaço de madeira para colocar a tinta preta, ela desenha as diversas molduras
uma imagem da arquitetura ocidental é pensar que ela é como uma janela: ela se nas quais pintará os desenhos que ela tem em seus “pensamentos”. Em seguida,
abre e permite que desenhos, pinturas ou bordados sobre uma superfície sejam passa a pintar dentro de cada moldura, comumente começando (de uma esquina
vistos através dela. Isto é, ao fazer a moldura, se abre um horizonte de visibilidade ou do médio) pelos traços mais espessos, até completar toda a superfície delimi-
para dentro da superfície do suporte material. À medida que se confeccionam tada no quadro. Depois, fazendo traços mais finos, pinta duas linhas que correm
os desenhos, vai-se mostrando a paisagem que a janela permite que seja vista. A paralelas a cada lado do dito traço espesso, como se se tratasse das margens de
moldura se assemelha a um mirante ou um ponto de vista para o interior da pele. um rio que vão replicando a trajetória do curso da água à esquerda e à direita.
Como a moldura só cobre uma parcela limitada da superfície de um corpo, Em seguida, fazendo traços ainda mais finos, passa a preencher com desenhos
uma tela ou uma cerâmica, e só permite que seja vista uma parte dos desenhos menores as áreas delimitadas por estas margens. No final, completa a composi-
que se encontram por trás, esta visibilidade dá a entender que se a janela fosse ção dos desenhos na moldura preenchendo com cores algumas áreas pequenas
maior ou tivesse outra forma ela permitiria uma vista sobre os desenhos ampliada (em formato de triângulos, quadrados e retângulos) na interseção das linhas mais
ou diferente, enquadrada pela moldura como se fosse uma paisagem. Isto é, os grossas. O uso de cores é opcional e pode ser realizado num momento anterior,
mas a ordem de execução, “moldura – traço espesso – margens do traço espesso
3 Ver também Lagrou e Beysen neste volume. – preenchimento dos espaços com desenhos menores”, é estrutural à composi-

204 205
movimento e profundidade no kene shipibo-konibo luisa elvira belaunde

ção dos desenhos. Estes passos podem também duplicar-se criando labirintos de
traços ainda mais complexos. Por exemplo, em alguns casos, o traço mais grosso
pode estar interiormente composto por duas margens que correm paralelas deli-
mitando um espaço colorido interior. Em linhas gerais, as mulheres seguem estes
passos, mas cada uma faz coisas diferentes segundo suas idiossincrasias e tradição
familiar (Belaunde, 2011a).

Sequência de passos durante a pintura de desenhos kene na superfície


dos corpos (cerâmica, corpo humano, tecido, objetos de madeira, etc.):

Primeiro passo: Fazer a moldura (abrir a janela).


Segundo passo: Desenhar a linha mais grossa dentro da moldura.
Terceiro passo: Desenhar duas linhas mais finas e paralelas a cada lado
da linha grossa.
Quarto passo: preencher os espaços delimitados pelas margens com
traços ainda mais finos e desenhos menores.
Quinto passo: preencher algumas áreas pequenas com cores (este
passo é opcional e pode realizar-se em outro momento).
Figura 1: Chomo com duas molduras prenchidas de desenhos. Altura: 95cm, largura: 64cm.
Origem contemporânea, comunidade Caco Macaya, Baixo Ucayali. Coleção Martin Ccorisapra.
Para ilustrar a ideia apresento aqui, com a ajuda de esquemas gráficos, a
reconstituição dos passos envolvidos na produção dos desenhos no caso de um
vaso chomo4 de cerâmica. Neste caso, o vaso tem duas molduras com desenhos
pretos sobre fundo branco, uma em cima da outra, e cada uma cobre uma faixa
horizontal completa ao redor do corpo do vaso. A parte inferior do vaso está pin-
tada com terra avermelhada.
Reconstituo graficamente a sequência dos passos de produção dos desenhos
dentro das duas molduras, mostrando a superfície do vaso como se ela estivesse
estendida horizontalmente (figuras 3-6).

4 Os vasos chomo são utilizados para fermentar a massa de mandioca doce a fim de se preparar o cauim
bebido durante as grandes festas. Atualmente, só em algumas comunidades as mulheres continuam
fazendo vasos chomo para uso ritual. Os vasos só podem ser utilizados para uma festa quando estão
novos. Depois da festa, são abandonados. Na comunidade de Caco Macaya, os vasos chomo utilizados
são vendidos a turistas e colecionadores. No passado, é provável que vasos semelhantes tenham sido Figura 2: Gráfico da fotografia do chomo (figura 1) mostrando as duas molduras com as
utilizados para se enterrarem os mortos. composições de desenhos completas em cada ma delas.

206 207
movimento e profundidade no kene shipibo-konibo luisa elvira belaunde

Figura 3: Passo 1 – Gráfico das duas molduras abertas (como janelas) na superfície do vaso. Figura 5: Passo 3 – Gráfico das duas molduras mostrando, em cada uma delas, a linha mais grossa,
as áreas coloridas e as linhas mais finas que correm paralelas ao traço grosso.

Figura 4: Passo 2 – Gráfico das duas molduras mostrando, em cada uma delas, o traçado da linha Figura 6: Passo 4 – Gráfico das duas molduras mostrando as composições de desenhos completas,
mais grossa com tinta preta e as áreas coloridas na intersecção dos traços. com a linha mais grossa, as áreas coloridas, as duas linhas paralelas à linha grossa e os espaços
preenchidos com desenhos menores.

208 209
movimento e profundidade no kene shipibo-konibo luisa elvira belaunde

Normalmente, na maioria dos vasos, uma das molduras cobre a parte mais O número de molduras na superfície de um vaso depende da composição
volumosa na parte média do vaso; a outra moldura cobre a parte superior, o pes- completa de desenhos idealizada pela mulher. Em alguns casos, os desenhos são
coço e a boca. Mas em alguns casos, especialmente para os chomo antropomorfos, realizados conjuntamente por mulheres que dividem o trabalho de concepção dos
pode haver mais molduras e cada moldura é preenchida com uma composição de desenhos. Vemos o exemplo de duas mulheres pintando um chomo antropomorfo
desenhos diferente. Estas molduras não cobrem necessariamente toda uma faixa juntas, cada uma completando um quadro diferente, no peito e nas costas do vaso:
do corpo, mas somente uma parcela maior como, por exemplo, a parte dianteira
ou traseira da vasilha, e podem ter diversas formas. Entre cada uma das molduras,
costumeiramente, as mulheres pintam umas bordas que geralmente estão ador-
nadas com desenhos retilíneos. O rosto, delimitado pelos ângulos do queixo e da
franja do cabelo, e o peito também são outras molduras onde se colocam comple-
xas estruturas de desenhos diferentes do resto do corpo.

foto: Jorge Luis Bacal


foto: Jorge Luis Bacal

Figura 9: Mãe e filha pintam desenhos num chomo antropomórfico. Cada uma trabalha numa
moldura diferente, uma no peito e outra nas costas, fazendo a linha de traço mais grossa da
composição. Cada moldura tem desenhos e dimensões diferentes.
Figura 7: Detalhe da pintura dos desenhos: os traços mais finos são pintados no final para encher as
áreas delimitadas pelas margens, que correm paralelas á linha mais grossa.
Ao longo do processo de composição dos desenhos, as mulheres não fazem
esboços nem utilizam qualquer instrumento físico para medir as distâncias e cor-
rigir os erros de simetria dos seus traços. Sua visão e seus pensamentos guiam a
sua mão. As mulheres explicam que para ser boa desenhista é preciso pensar bem
em como vão fazer o desenho. Contam que à noite passam horas imaginando e
planejando os caminhos que vão traçar no dia seguinte, como uni-los nos ângulos,
como fazer as curvas, como distribuir as distâncias etc. Sonham com os desenhos
e, assim, na hora de fazê-los, os têm claros em sua mente.
foto: Jorge Luis Bacal

olhando pela janela: paisagens de desenhos

A sequência de produção dos desenhos produz complexos jogos visuais. Isto é,


Figura 8: Pintura de um chomo antropomorfo: a moldura da parte inferior (o estômago) do vaso
já foi completado, enquanto a do peito está em branco. O quadro do rosto do vaso está sendo para o espectador, a composição mental de desenhos que as mulheres materia-
desenhado com a linha mais grossa, que se acopla ao volume dos rasgos faciais. lizam sobre uma superfície produz um efeito visual de conjunto final que não

210 211
movimento e profundidade no kene shipibo-konibo luisa elvira belaunde

é estática nem plana; ao contrário, a visão final dos desenhos sobre um corpo tem consequências chaves para a impressão visual geral produzida pelo conjunto
inclui profundidade espacial e movimento devido à impressão de superposição dos desenhos. Quer dizer, os traços feitos primeiro são os mais visíveis, enquanto
de múltiplas tramas de desenhos. Para o espectador, o efeito de profundidade os últimos a serem feitos são menos visíveis e parecem estar no fundo. Para o
e movimento se faz evidente para cada quadro de desenho devido às diferentes espectador, mais do que desenhos para preencher espaços vazios, esses traços
espessuras das linhas que parecem continuar umas por baixo das outras, como se mais finos, realizados por último, constituem uma trama mais distante de dese-
elas se encontrassem em diferentes planos. Isso dá a impressão de que alguns tra- nhos. Isto é, a composição total que se vê dentro da moldura é uma paisagem de
ços estão mais perto do espectador, ou que estão se movimentando em direção ao desenhos com profundidade onde diferentes planos de desenhos se superpõem
espectador, enquanto outros estão mais longe. Como esse efeito de profundidade ordenadamente, do traçado fino, no plano mais distante, ao mais grosso, no plano
e movimento se produz dentro de cada moldura desenhada, a visão de conjunto mais próximo. Como todas as linhas em todas as distâncias se caracterizam por
de todas as molduras desenhadas na superfície de um corpo, no nosso caso um serem ondulantes, formando ângulos retos ou em zigue-zague, a impressão de
vaso chomo, apresenta um efeito de movimento múltiplo. Não só as diferentes movimento é reforçada tanto ao longo de cada linha como entre as linhas que
linhas dentro de cada moldura, mas as próprias molduras parecem também estar parecem estar se movimentando no espaço na direção do espectador. Em alguns
a diferentes distâncias e movimentam-se em direção do espectador. casos, os desenhos mais finos do fundo reproduzem alguns aspetos dos dese-
Dentro de cada moldura, a linha mais grossa é aquela que parece estar mais nhos mais grossos dentro do mesmo quadro ou de outro quadro na superfície
perto do espectador. Ela sobressai à visão e se vê completo. As linhas mais finas, do mesmo corpo. Gera-se então um efeito fractal, no qual o desenho completo, a
que se distribuem paralelamente à linha grossa, se juntam quando se encontram paisagem na janela, está composto por figuras semelhantes em diferentes escalas.
numa esquina e nunca interceptam um traço grosso, dando a impressão de que Este efeito também acentua a sensação de movimento e superposição de desenhos
elas se encontram seja na mesma distância ou além da linha mais grossa. Já as dentro de cada moldura, e entre molduras, no corpo de cerâmica.
linhas ainda mais finas que preenchem as áreas delimitadas pelas margens estão O seguinte exercício gráfico de decomposição da visão de conjunto pelo espec-
parcialmente cobertas pelos outros traços e se encontram notadamente mais afas- tador das diferentes camadas de desenhos sobre um vaso chomo antropomórfico,
tadas. A impressão de superposição é criada pelo fato de que esses traços mais permite mostrar os efeitos visuais de profundidade e movimento gerados e seu
finos parecem continuar por baixo dos traços mais grossos. acoplamento às características singulares do volume do vaso. O chomo (figura 10),
Na literatura antropológica, ainda que o kene shipibo-konibo tenha suscitado que comprei em 2011 na comunidade de Caco Macayo, no Baixo Ucayali, tem três
grande interesse e muitas controvérsias, os estudos sobre a composição formal molduras de desenhos que cobrem, respectivamente, o rosto, o peito e o estô-
dos desenhos (Illius, 1994, 2002; Gebhart-Sayer, 1985; Heath, 2002) nunca tinham mago. Enquanto nos esquemas anteriores tentei mostrar a ordem de realização
destacado a sequência de produção das linhas de diferentes espessuras, nem o dos desenhos do mais grosso ao mais fino nas molduras estendidas a plano, nos
efeito de profundidade e movimento criado pela visão de conjunto dos desenhos seguintes esquemas intento recompor as composições de desenhos que se apre-
para o espectador, dentro e entre as diferentes molduras de desenhos. Apesar de sentam ao espectador numa visão de conjunto de uma imagem tridimensional: do
alguns estudiosos da arte shipibo terem atentado para o efeito cinestésico da rela- mais longe para o mais perto. Começo pelas molduras do rosto e do peito e depois
ção entre figura e fundo (Roe, 1982, apud Lagrou, 1996), o efeito de produção de passo à moldura do estômago para poder mostrar progressivamente a criação do
profundidade não tinha sido até então explorado através do acompanhamento do efeito de movimento geral.
processo de construção do desenho. A minha proposta é prestar atenção, por um
lado, à ordem de produção das redes de kene (desenvolvida na sessão anterior) e,
por outro lado, ao efeito visual geral que elas produzem quando estão prontas na
superfície de um corpo singular.
Quando adotamos o ponto de vista do espectador, de quem vê os desenhos
prontos sobre um corpo, a sequência de produção dos desenhos descrita acima

212 213
movimento e profundidade no kene shipibo-konibo luisa elvira belaunde

Figura 11: Visão das molduras do rosto e do peito em branco. O cabelo preto é um elemento
característico do enquadramento facial feminino. A separação entre as duas molduras está marcada
por uma linha adornada em zigue-zague simulando o efeito de um colar.

Figura 10: Chomo antropomórfico com três molduras de desenhos. Altura: 96 cm, largura: 85 cm.
2011, comunidade Caco Macaya, Baixo Ucayali. Coleção Luisa Elvira Belaunde.

Figura 12: Visão das molduras do rosto e do peito cobertas com os traços ondulantes mais finos
que constituem os planos a maior distancia do espectador. Note-se que as linhas finas do rosto são
semelhantes às linhas finas do pescoço, mas elas são menores, dando uma impressão de reprodução
fractal entre o rosto e o peito. O tamanho menor dos desenhos do rosto também produz um efeito
de movimento entre os quadros, colocando o quadro do rosto a uma distância maior.

214 215
movimento e profundidade no kene shipibo-konibo luisa elvira belaunde

Figura 13: Visão das molduras do rosto e do peito cobertas com os traços paralelos, que se Figura 15: Visão geral do chomo com as molduras do rosto e do peito quase prontas
superpõem às linhas mais finas do fundo. Note-se que não há mais uma reprodução fractal e a moldura do estômago em branco.
entre os desenhos do rosto e do peito, mas a impressão de que a moldura do peito
se encontra mais perto do espectador se mantém.

Figura 14: Visão das molduras do rosto e do peito cobertas com as linhas mais grossas
que se superpõem a todos os traços anteriores, dando a impressão de se encontrarem Figura 16: Visão geral do chomo com as molduras do rosto e do peito quase prontas. A moldura do
mais perto de espectador. estômago está coberta dos desenhos mais finos do fundo, que formam cruzes. O tamanho bem maior
desses desenhos parece indicar que a moldura do estômago se encontra mais perto do espectador.

216 217
movimento e profundidade no kene shipibo-konibo luisa elvira belaunde

Figura 17: Visão geral do chomo com as molduras do rosto e do peito quase prontos. Na moldura do Figura 19: Visão do chomo final. As três molduras estão completas com os detalhes em vermelho.
estômago o desenho de linhas paralelas se superpõe aos traços mais distantes das cruzes. Segundo as mulheres, a cor vermelho é usada para “dar alegria” às composições de desenhos.

Os efeitos de profundidade e movimento do conjunto da visão da superfície


do chomo surgem das relações dinâmicas entre as linhas dentro de cada uma das
molduras e entre as molduras. A distribuição das molduras é típica dos chomos
antropomórficos shipibo-konibo. Caracteristicamente, a moldura que delimita
uma faixa horizontal no estômago, na parte mais redonda da cerâmica, contém
desenhos com traços em escala maior, mais espessos e proeminentes, como se
todos os planos da paisagem de desenhos vistos da janela estivessem mais próxi-
mos do espectador. A moldura da faixa superior, no pescoço da cerâmica, costuma
conter desenhos em escala menor, como se todos os planos da paisagem estives-
sem mais afastados de quem o vê. Normalmente, esta moldura mostra desenhos
curvos ou mais numerosos e complexos do que na faixa inferior. Comumente, nos
vasos antropomórficos, os desenhos da moldura do peito e do rosto têm escala
ainda menor, sendo que os desenhos deste último são mais ondulados e preen-
chidos, especialmente devido ao fino encaixe dos traços gráficos com as carac-
terísticas do rosto e do contorno do nariz e das bochechas. Em cada moldura, o
espectador tem a impressão de encontrar-se diante de uma série de desenhos que
se aproximam com diferentes velocidades, ziguezagueando e ondulando à medida
Figura 18: Visão geral do chomo com as três molduras quase prontas. Na moldura do estômago, os
que chegam mais perto.
traços mais grossos se superpõem ao resto das linhas, dando a impressão
de encontrar-se mais perto do espectador. Minha sugestão é que a técnica de fazer várias molduras no corpo de uma
cerâmica tem por finalidade produzir um efeito visual de conjunto acentuado de

218 219
movimento e profundidade no kene shipibo-konibo luisa elvira belaunde

profundidade e movimento complexo, ao ponto de injetar na cerâmica uma força ser gerador e predador cósmico que outorga às mulheres a habilidade de realizar
de vida própria, como se ela estivesse respirando, comendo, gestando e pensando seus desenhos para que eles possam ser vistos pelos demais. Por isso, os desenhos
como uma pessoa humana. Minha aproximação ao kene, é que o chomo antro- não são um mero registro: têm shama, eles têm “potência acumulada” e “brotam”;
pomórfico coberto de múltiplas camadas de desenhos manifesta na pele que ele transformam e curam o mundo, embelezando-o, como os brotos das plantas.
está animado, de modo semelhante a uma mulher. Trata-se, por tanto, de técnicas Mas também no seu brotar armam armadilhas que confundem e sugam o olhar
visuais de animação. Por isso, os desenhos do estômago são maiores e parecem do expectador para dentro do espaço gráfico e seus labirintos de caminhos (ver
acercar-se do espectador. Eles sugerem que o chomo está grávido, com a barriga também Lagrou, 2007: 54-155 e neste volume). O brotar, generativo e ao, mesmo
inchada com a pele esticada como um globo. O peito também se incha um pouco tempo, predador dos conhecimentos visualizados nos desenhos condensa, assim,
com o ar da respiração, por isso os desenhos da moldura do peito são menores do a vivência shipibo-konibo da continuidade entre os vivos e os antepassados. As
que os desenhos da barriga. E finalmente, os desenhos mais pequenos, na moldura mulheres shipibo-konibo são as escritoras das mensagens ditadas por estes espí-
do rosto, parecem indicar que a mulher-chomo está pensando. ritos mães que fazem e desfazem corpos. A potência dos desenhos kene reside na
força de animação que eles criam à flor de pele, uma pele que não é uma mera
como ler – ver – os desenhos kene? superfície, mas um espaço profundo e em movimento.

A fascinação que essa arte exerce sobre os pesquisadores não é só de ordem esté-
referências bibliográficas
tica. Há quem sustente que este sofisticado grafismo pertence plenamente ao
âmbito semiótico e poderia tratar-se de uma escrita. Outros procuram decifrar BRABEC DE MORI, Bernd. “Words Can Doom, Songs May Heal. Ethnomusicological and
esse código secreto na complexa lógica formal de sua estrutura. Como eu quis Indigenous Explanations of Song Induced Transformative Proceses in Western Ama-
zonia”. In: Curare, v. 32, p. 123-145, 2009.
mostrar na seção anterior, qualquer consideração sobre o significado dos desenhos
BRABEC DE MORI, Bernd; MORI SILVANO DE BARBEC, Laidai. “La corona de la inspiración:
deve levar em consideração a visão que neles se encontra arraigada, incluindo o los diseños Shipibo-Konibo y sus relaciones con cosmología y música”. In: Indiana,
sentido de profundidade e movimento que caracteriza a superposição das cama- 25, p. 1-30, 2008.
das de desenhos. BELAUNDE, Luisa. “Diseños materiales e inmateriales: la patrimonialización del kené shi-
A meu ver, o debate sobre as relações entre desenhos e escrita deveria ser esta- pibo-konibo y de la ayahuasca en el Perú”. In: Mundo Amazónico, v. 3, p. 123-146, 2012.
belecido levando-se em consideração todos os pontos de vista. Seria interessante ______. “Una biografía del chitonte, prenda de vestir y objeto turístico”. In: CHAUMEIL, J.
inverter os papéis e, no lugar de se tentar decifrar o kene com critérios ociden- P.; ESPINOZA, O.; CORNEJO, M. (orgs.). Donde hay soplo. Lima: IFEA, 2011a.
tais, olhar a escrita ocidental com olhos amazônicos. Joxo joni kene, “desenho dos ______. “Visión de espacios en la pintura chamánica del sheripiare asháninka Noé Silva
brancos”, assim se chama a escrita ocidental no idioma shipibo-konibo (Brabec Morales”. In: Mundo Amazónico, v. 2, p. 365-377, 2011b.
de Mori e Mori Silvano de Brabec, 2008; Brabec de Mori, 2009; Colpron, 2005). ______. Kené: arte, ciencia y tradición en diseño. Lima: Instituto Nacional de Cultura, 2009.
Então, se do ponto de vista shipibo-konibo a escrita que reveste os livros e cader- BEYSEN, Peter. Kitarentse: Pessoa, arte e estilo de vida entre os Asháninka (Oeste amazô-
nos é uma forma de kene, não é tão descabido pensar que os desenhos que cobrem nico). Tese de doutorado, PPGSA/IFCS, UFRJ, Rio de Janeiro, 2008.
a pele, as telas e cerâmicas shipibo-konibo possam ser uma forma de escrita. A COLPRON, Anne Marie. “Monopólio masculino do xamanismo amazônico: o contra-
-exemplo das mulheres xamã Shipibo-Conibo”. In: Mana, v. 11 (1), p. 95-129, 2005.
diferença fundamental, entretanto, reside no propósito da escrita em questão e na
GEBHART-SAYER, Angelika. “The geometric designs of the Shipibo-Conibo in ritual con-
questão de a quem, ou a quais pessoas se dirigem as mensagens escritas.
text. In: Journal of Latin American Lore, v. 2 (2), p. 143-175, 1985.
A diferença está no fato de que a escrita ocidental é um método de comuni-
GOW, Peter. “Piro design painting as meaningful action”. In: JRAI. v. 5, p. 229-246, 1999.
cação entre humanos. O kene, ao contrário, não é um instrumento de registro de
HEATH, Catherine. Una ventana hacia el infinito: Arte shipibo-konibo. Lima: ICPNA, 2002.
palavras ou conceitos provenientes dos seres humanos. Aqueles que se expressam
ILLIUS, Bruno. “La gran boa: arte y cosmología de los shipibo-conibo”. In: Amazonía
por meio dos desenhos shipibo-konibo são a anaconda mãe da água e as mães das Peruana, 24, p. 185-212, 1994.
plantas nascidas da água e, portanto, também nascidas da anaconda, o poderoso

220 221
movimento e profundidade no kene shipibo-konibo

______. “Arte tradicional y comercial: los shipibo-conibo”. In: HEATH, C. (org.). Una ven-
tana hacia el infinito. Lima: ICPNA, 2002.
Kempiro. A arte gráfica dos traços fortes
LAGROU, Els. Uma etnografia da cultura Kaxinawa: entre a cobra e o Inca. UFSC – Univer- entre os Ashaninka do Oeste Amazônico
sidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1991.
Peter Beysen
______. “Compulsão Visual. Resenha do artigo Visual compulsion, de Peter Gow”. In:
Antropologia em primeira mão, PPGAS, UFSC, 1995.
______. “Xamanismo e Grafismo entre os Kaxinawa”. In: LANGDON, E. J. (org.). Xama-
nismo no Brasil, novas perspectivas. UFSC, Florianópolis, p. 197-231, 1996.
______. A fluidez da forma: alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa).
Rio de Janeiro: Top Books, 2007.
______. Arte indígena no Brasil: agência, alteridade e relação. Rio de Janeiro: Editora Com
Arte, 2009.
______. “Le graphisme sur les corps amérindiens, des chimères abstraites?”. In: Gradhiva,
13, p. 68-93, 2011.
A história da cobra vai muito longe, muito longe...
______. “Perspectivismo, animismo e quimeras: Una reflexión sobre el grafismo amerindio
jomanoria, março de 2006
como técnica de alteración de la percepción”. In: Mundo Amazónico, v. 3, p. 95-122,
2012.
kempiro, o modelo
LECLERC, Frédérique. “Les Noi Rao”. In: CALAVIA, O; LENAERTS, M.; SPADAFORA, M.
Paraiso abierto, jardines cerrados. Pueblos indígenas: saberes y biodiversidad. Quito: Este texto pretende apresentar a estética minimalista dos Ashaninka. Os Asha-
Abya-Yala, 2004. ninka, como a maior parte dos artistas, não gostam de falar sobre sua arte (Geertz,
ROE, Peter. The cosmic zygote: cosmology in the Amazon basin. Rutgers: The State Univer-
2002). E, tendo em vista que sua arte é sua vida, os Ashaninka não gostam de falar
sity of New Jersey Press, 1982.
sobre sua vida. Minha entrada neste universo foi marcada pelo silêncio, pelo que
TEMPLE, Dominique. “El arte cerámico shipibo”, suplemento da Revue de la Céramique et
foi apenas sugerido. Meu primeiro contato com essa estética aconteceu, portanto,
du Verre, 64, mai./jun. 1992.
através da observação. As pinturas corporais são pessoais, e somente quem as fez
TOURNON, Jacques. Las plantas, los rao y sus espíritus: etnobotánica del Ucayali. Pucallpa:
Gobierno Regional del Ucayali, 2006. sabe o que significam. O mesmo vale para os motivos escolhidos para serem pin-
VALENZUELA, Pilar; VALERA, Agustina. Koshi shinanya ainbo. El testimonio de una mujer tados nos kitarentses, a roupa que marca seu estilo de vida.
shipiba. Lima: Universidad Nacional Mayor de San Marcos, 2005. Foi através de perguntas em torno dos objetos fabricados pelos Ashaninka que
VAN VELTHEM, Lúcia. O Belo é a Fera: a estética da produção e da predação entre os Wayana. me aproximei deles e de sua visão de mundo. Somente a partir do momento em
Lisboa: Assírio & Alvim/Museu Nacional de Etnologia, 2003. que seus mitos de origem me foram contados, os objetos começaram a me revelar
seu sentido. Aos poucos fui percebendo a relação entre objetos, desenhos, corpos e
temas míticos que foram se organizando ao redor de dois grandes eixos em torno
dos quais, por sua vez, gira a cosmovisão ashaninka: a procura pela imortalidade e
a fragilidade do amor. Pode-se dizer que toda a arte ashaninka trabalha estas duas
grandes questões: como chamar para perto de si a pessoa amada e como vencer a
morte e adquirir longevidade, mantendo as doenças (e os inimigos) à distância.
Uma das espécies que mais agrega em torno de si estas duas capacidades
agentivas – a de atrair e a de rejuvenescer – é a cobra, ou melhor, os diferentes
tipos de cobra. Em suas artes e nos mitos de origem respectivos, os Ashaninka
valorizam e representam tanto a cobra constritora como as espécies venenosas: a

222 223
kempiro. a arte gráfica dos traços fortes entre os ashaninka peter beysen

maior parte dos motivos gráficos remete a cobras, assim como os diferentes enfei- Outros grupos ameríndios como os Ye’kuana (Guss, 1989) e os Wayana (Velthem,
tes que acompanham a roupa, o kitarentse, e que constituem a pessoa ashaninka. 2003) exemplificam o mesmo gosto pela beleza da monstruosidade. A pergunta
Onde a arte faz parte de um sistema de cura xamanístico, diversos etnólo- que se coloca é: os Ashaninka ficam fascinados, maravilhados, diante da mons-
gos a caracterizaram enquanto uma espécie de “terapia estética”.1 Entre os Asha- truosidade das cobras e das onças ou as cobras simplesmente seriam bonitas para
ninka–em lugar disso–, podemos dizer que a arte também se constitui em uma os Ashaninka, de uma forma mais direta?
forma de “sedução estética”.2 Ela visa alcançar leveza e invisibilidade frente aos Aportamos aqui na sintética e potente conceituação formulada por Velthem,
inimigos e sedução frente àqueles que se quer atrair. O design da roupa, a pintura que resume no próprio título do seu livro sobre a arte Wayana de forma exemplar
e especialmente a fragrância de todos os itens utilizados no make-up pessoal deles o significado complexo da arte ameríndia: “O belo é a fera” (2003). Esta expressão
visam capturar, agir sobre as pessoas no entorno. Por esta razão, cada detalhe de evoca o valor que a alteridade ganha neste sistema de signifcação: quanto mais
um txoxiki, o colar grande, ou de um cacho de sementes pendurado na cushma “feroz” é um animal, mais “belo” ele se torna. Para a autora, a valorização visual e
(kitarentse), cada desenho na roupa ou no rosto conta, faz diferença. Igualmente, a semântica se apoia justamente sobre uma correlação existente entre o sobrenatural
execução das imagens importa muito, tendo em vista que tal age em conjunto com e os seres que estão imbuídos de suas características predatórias e transformati-
a substância que a veicula e que a “cópia” mantém ligação direta com seu modelo. vas. Correlações tais, conforme são articuladas pelos Ashaninka, podem advir das
Desta forma, se um desenho de cobra for mal executado, a cobra morderá o res- mais inusitadas fontes. Entre os Kaxinawa, estes poderosos e perigosos predadores
ponsável pela cópia infiel. vêm a ser simultaneamente os mais belos personagens existentes na cosmologia,
Veremos, assim, como a arte corporal reflete uma estética de poder, uma os Inka, deuses canibais, afins potenciais da vida post mortem, como o são os deu-
admiração que é provocada, às vezes, pela beleza mais letal possível. No motivo de ses dos Araweté (Lagrou, 2007; Viveiros de Castro, 1986).
kempiro (cobra bico de jaca, Lachesis muta), iremos encontrar a essência da arte Jomanoria, Ashaninka do rio Envira, desenhou para mim a cobra kempiro,
ashaninka que cria o “belo” a partir de uma superação do medo da morte. No caso a mais venenosa que existe, como uma sucessão de vários “x”. Sua representação
deste povo, o belo consiste no equilíbrio entre pensar e fazer. A força latente que da cobra parecia, a princípio, a mais minimalista possível e a mais fácil de ser
se acarinha representa a estética ideal dos Ashaninka. A valentia está aí, guardada realizada. Mesmo assim, passou praticamente o dia inteiro a desenhar aquele “x”,
nos txoxiki, pronta para ser usada, assim como a cobra também sempre ataca a representando kempiro. Sua demora em produzir o desenho não adveio do fato de
partir de uma postura relaxada, obtendo com isso mais velocidade e impacto. ele não estar acostumado a desenhar em papel, mas do risco envolvido, porque se
Para Gell, somente existe arte quando ela está associada à agência: o arte- cometesse um erro ao desenhá-la ele poderia morrer. A cobra kempiro viria mor-
fato enquanto index tem que ser visto como resultado e/ou instrumento de uma dê-lo. O mesmo desenho, por exemplo, gravado num recipiente de xiko (cal para
“agência social”, envolvendo uma rede de interações humanas (e não humanas). mascar coca) teria levado o mesmo tempo. Este exemplo nos faz perceber como a
O kitarentse seria o “índice” de agência por excelência para os Ashaninka, pois ao arte minimalista dos Ashaninka pode ter um significado muito denso.
mesmo tempo em que é coisa física, visível e material, ele “causa”, produz agência Desta forma, seres como larvas de borboleta e mariposa, peixes e aves podem
e efeitos – engendrando o que poderíamos designar “socialidade” ashaninka e seu manifestar suas intenções predatórias em um quadro sobrenatural relacionado à
estilo de vida –, os princípios organizadores das relações com múltiplos domínios onça. Vários mitos contam como uma larva virou onça ou como um peixe rece-
sociocósmicos. beu o desenho da pele de uma onça. A larva xopa é uma das mais recorrentes
Stefano Varese (1968) descreve Nõnki como uma cobra monstruosa para os nas representações ashaninka, e seu desenho é frequentemente encontrado nos
Ashaninka. Teríamos assim entre os Ashaninka uma bela representação do feio. kitarentse. A cauda do quatipuru, pelo seu excesso de pelo, lembra a da onça e é
atada aos panos para carregar bebês. O bico do tucano é dotado de uma agência
1 Como é o caso dos Shipibo (Gebhart-Sayer, 1986), dos Kaxinawa (Lagrou, 2007) e dos Wauja (Barcelos
Neto, 2005). de pusanga (magia sexual, perfume), isto é, é ao mesmo tempo ligado ao poder
2 Apesar de particularmente explícito para os Ashaninka, a relação entre sedução e grafismo não lhes é da perfuração (flechas), à tampa do recipiente de xiko e ao cabo do cachimbo,
exclusiva e se constitui em característica importante do grafismo nesta região. Ver Lagrou, 1998, 2007, que representam bicos de aves. A capacidade agentiva da arte corporal ashaninka
para os Kaxinawa; Belaunde para os Shipibo, neste volume; e Gow, 1988, 1999, para os Piro.

224 225
kempiro. a arte gráfica dos traços fortes entre os ashaninka peter beysen

ganha sua significação maior quando é usada para “atrair” o sexo oposto. A arte Tanto os aximarentse (tipoia [kewotawontse] feita de cana braba [keepia]) de
ashaninka contém aspectos multissensoriais complexos, instaurando um jogo uso feminino como os colares txoxiki, de uso masculino, são complementos indis-
visual, auditivo e olfativo. pensáveis do kitarentse e estão associados à cobra no aspecto sensorial de suas for-
As wanenka, peças feitas com sementes dispostas como cachos, que se apli- mas visual e auditiva. Escrevo a seguir um resumo do mito de origem da tipoia,
cam ao kitarentse na altura dos ombros, são usadas pelas adolescentes com a inten- contado por Hananeri: “Uma mulher que foi tirar ‘gira’ (cana braba) viu kamatonge
ção de produzir um efeito auditivo que chame a atenção das pessoas. Andando aos (surucucu de barranco, Bothropsatrox) usando aximaierentse. A cobra disse: ‘Agora
pulos, as adolescentes revelam uma intenção deliberada de produzir o “tilintar” faça também aximaierentse.’ Depois (de fazer o que a cobra mandou), a mulher
do aximarentsi, evocando mais uma vez uma possível associação com a capaci- Ashaninka virou kamatonge. Aximaierentse é feito de cana braba (‘gira’), parece
dade de sedução das cobras, animal que tem pusanga, a agência da sedução. Ainda ‘paxua’. Aquela ‘gira’ é a flecha das cobras. ‘Não parece uma flecha aquela ‘gira’?”
evocando o paralelo com as cobras e seu poder de sedução, as adolescentes estão Se o ideal da estética masculina gira em torno de kempiro que ensinou a fabri-
frequentemente pintadas com motivos pictóricos faciais associados aos padrões cação e o uso do chapéu e do txoxiki), encontra-se na aximaierentse (tipoia feita
classificados como “cobra” que, ao se ligarem ao cheiro sutil da pusanga, segundo de cana braba) seu complemento feminino. Trata-se em ambos os casos de cobras
os Ashaninka, produzem desenhos faciais hipnotizantes. muito venenosas e “valentes”. O perigo inerente ao uso dos adornos e o papel do
Um outro conceito crucial na compreensão do padrão sensório-estético embodiment na arte corporal se completam no mito quando a mulher ashaninka
ashaninka é o conceito de “limpo” associado a sua concepção de beleza. As praias “vira cobra” depois ter aprendido o uso da tipoia feita de cana braba.
são consideradas limpas, divinas (como o lugar onde moram os deuses). A pele Joanna Overing (1991), na sua definição de estética, amplia o uso deste con-
humana deve ser lisa, limpa, sem manchas nem feridas. A pele dos jovens adoles- ceito, sugerindo sua extrapolação para outras esferas da vida ameríndia. Utilizo
centes é considerada lisa, sem rugas. Esta condição é considerada como própria esta forma singular de pensar e conceituar a estética como um guia importante
das serpentes, que têm a capacidade de ser eternamente “sem velhice”. Expressa para a compreensão do estilo de vida ashaninka. Segundo Overing (cf. idem), para
um ideal estético/ontológico almejado para a vida toda, porém vivenciado pelos os ameríndios a estética não é um fenômeno dotado de natureza autônoma. É,
humanos somente no curto tempo da juventude. O que faz das serpentes seres antes, um conceito moral e político que nos permite compreender a socialidade
sempre jovens, que não envelhecem e, por conseguinte, não morrem jamais é a ameríndia, uma vez que integra o conhecimento à atividade produtiva. Estética,
capacidade de trocar de pele, o que significa a própria metamorfose. Além disso, neste sentido, é beleza percebida como expressão de valor moral e político, um
na visão ashaninka, as serpentes representam o ideal estético não apenas pelas conceito crítico importante para uma compreensão da vida social cotidiana.
lisas membranas, mas pelos desenhos que as recobrem.3 Neste novo contexto de conceituação estética, podemos notar que o conceito
Peles lisas e pintadas representam o paradigma da beleza e da juventude, e ashaninka para se referir à “arte”se expressa pela mesma palavra empregada para
os jovens fazem uso constante de uma ornamentação corporal específica, como definir o “conhecimento”, lyorenka. Desta forma, longe de abordar a produção
um meio de potencializar esse estado. São mais profusamente adornados do que artística ashaninka stricto sensu, procuro, segundo a sugestão de Overing, captar o
quaisquer outros indivíduos e carregados de uma atração erótica.4 seu “senso de comunidade”. E isto nada mais é do que compreender seu estilo de
vida em seus múltiplos aspectos sensoriais, como o silêncio, o partilhar, o tecer, o
3 Observam-se fenômenos e respectivas classificações bastante semelhantes entre os Wayana, descritos “se pintar”, o “preparar” das pusangas. Tudo isso enfatiza o aspecto olfativo e pro-
por Velthem (2003), e entre os Kaxinawa, descritos por Lagrou (2007). duz uma determinada concepção estética do mundo reproduzida em pequenos,
4 Sem defender a existência de uma noção transcultural de estética ou do significado da serpente, não mínimos, mas não por isso menos significativos, gestos e intenções.
poderia me furtar de, neste contexto, fazer algumas associações entre o significado das cobras para
os Ashaninka e algumas representações de cobra na pintura ocidental. Noto que, neste contexto, as
cobras são usualmente apresentadas como joias ou objetos de adorno do corpo feminino. A pintura don, por exemplo, retratou a atriz Nastassja Kinski em 1981”, com seus corpos nus, envoltos apenas
renascencista de Piero diCosimo (Chantilly, MuséeCondé) oferece um destes exemplos. Piero diCo- por uma cobra. A mãe de Alexandre, “o Grande” é retratada no filme de Oliver Stone (2004) usando
simo, em 1480, pintou SimonettaVespucci com os seios desnudos, ostentando um colar de serpente cobras vivas como joias em torno de seu corpo, enquanto diz para o jovem Alexander: “Nunca se pode
viva. O simbolista Franz Stuck (1863-1928) pintou umas dezoito versões de uma femmefatale nua (1891; mostrar incerteza diante das cobras, senão elas te mordem.” Estas ideias não parecem tão distantes
com uma cobra grande em volta do corpo, como fez também o pré-raphaelita John Collier com sua da concepção Ashaninka, pelo menos quanto à posição formal da cobra em sua cultura, apesar de as
obra Lilith (1892).Isso para não mencionar a clássica imagem dos modelos–o fotógrafo Richard Ava- técnicas de representação da cobra serem muito diferentes.

226 227
kempiro. a arte gráfica dos traços fortes entre os ashaninka peter beysen

As pinturas faciais representam, muitas vezes, a folha cheirosa de uma planta centrada em atividades que associam à sua prática da vida diária, traduzida em
que possui pusanga. O desenho é feito com urucum (potote) misturado às pró- múltiplas formas de controle e organização.
prias folhas cheirosas. Sugiro que a própria lógica da pusanga expressa um senso A “festa” onde se bebe cerveja de mandioca não é um estado de comunitas ou
ashaninka de comunidade: ninguém pode resistir à pusanga. Em um mundo asha- um modo de sair do ordinário e do cotidiano. É na festa que se produzem e apro-
ninka obcecado por “controle”, algo irresistível e incontrolável como a pusanga fundam as relações sociais, discute-se política. No dia a dia, por outro lado, até
ajuda a entender o complexo mundo dos acontecimentos e dos ventos, sobretudo mesmo no ato de dormir, há uma ênfase na vigilância –por temor do ataque dos
nas trocas incessantes de namorados (as) e amantes. A pusanga controla a raiva, o índios “isolados” e dos peiari (alma morta, fantasma)–, na meditação, no planeja-
ciúme. Deste modo, pode-se ouvir com frequência frases como esta: “Meu marido mento para o dia seguinte. Os Ashaninka não ostentam grandes rituais, mas essa
estava totalmente perdido, não é culpa dele, a outra usou pusanga”. Esta lógica meditação é tão intensa que as atividades do dia seguinte são pensadas e organiza-
facilita as separações que, na grande maioria das vezes, terminam silenciosas. O das durante a mastigação da folha de coca – o silêncio que ensina. Assim, as tarefas
silêncio é um valor comunitário importante para os Ashaninka, constituindo seu diárias podem ser vistas como tarefas que demandam sempre conhecimento e que
“modo de ser”, sua “pessoa”. A pusanga é um conceito que promove um entendi- reproduzem esteticamente o cotidiano enquanto “senso de comunidade”.
mento das coisas e ajuda a controlar as emoções potencialmente mais explosivas e Os txoxiki, grandes colares feitos com sementes, talvez sejam o mais impor-
fortes contribuindo, assim, para a harmonia ou par ao que se pode designar como tante complemento do kitarentse (em si já representando a pele descamável), por-
o “senso da comunidade”. que reforça a “incorporação” da pele da cobra e, com isso, como veremos depois, o
Não são apenas os desenhos faciais que nos oferecem informações para desejo da imortalidade. Todos os tipos de txoxiki são ligados à cobra, em especial
entender o estilo de vida ashaninka; a parte do rosto na qual aplicam o desenho é os txoxiki sarioki (feitos de sementes pretas). Assim como a pele deste réptil, as
também de suma importância: é na testa ou na fronte que o “pensar” está locali- sementes do txoxiki sarioki ficam em constante estado de descascamento. Quando
zado; os olhos são o espelho do “pensar”, e a boca é o eco do pensamento. Foi neste as cascas saem, as sementes ficam foscas, ganhando brilho novamente pelo uso
sentido que Wenki Pianko me disse a seguinte frase: “A cabeça inteira é parecida e diário. Julieta me explicou que isso acontece “por causa do contato com o corpo,
está relacionada com o mundo inteiro, e por isso somos capazes de sentir algo que por causa do calor do seu corpo”, demonstrando, assim, a importância do contato
acontece numa outra parte do mundo.” entre o artefato e o corpo para entender suas qualidades sensíveis.
O rosto, sendo o único lugar onde os Ashaninka se pintam – o resto do corpo é Os Ashaninka chamam a atenção para a necessidade de o “descascamento”
coberto pelo kitarentse –, é preferencialmente coberto por um pano quando quem das sementes ser um processo “natural”. Quando descasquei algumas sementes do
o possui adormece. Hananeri explicou-me que depois das “correrias”, quando se meu próprio txoxiki sarioki durante um piarentse, Julietta advertiu-me para que
foi guerrear, quando muitos eram mortos nestes confrontos, era necessária uma não me preocupasse com o momento em que as sementes se tornariam foscas,
purificação no rosto. Para isso, utilizavam plantas que eram esfregadas contra a uma vez que isso é comum de acontecer. Pensei, erradamente, que o objetivo do
pele, até produzir sangramento. Desta forma, o sangue como memória do inimigo “descascamento” fosse a semente obter o mais rápido possível seu brilho defini-
(Belaunde, 2005) sairia do rosto do matador, que era aconselhado a dormir de tivo. Mas é justamente o processo em si mesmo, lento, que é importante: sementes
barriga para baixo e com o rosto voltado para o chão, de modo que não pudesse com cascas brilhantes, que aos poucos vão perdendo a casca, assim renascendo,
ser reconhecido pelo espírito do inimigo desejoso de vingança. se renovando.
Em algumas ocasiões, os Ashaninka cobrem o rosto por completo com a tinta Tal como os kitarentse (cushma), os txoxiki estão num constante processo de
do urucum. Na percepção ashaninka, esta pintura facial completa é usada como transformação. Na sucessão das cores do kitarentsi, o processo de transformação
uma camuflagem, algo para que não sejam notados. Esse estilo de “viver sem ser cromática é, também, importante: quando novo cushma é branco (a cor do algo-
percebido” é uma das funções ou “expressões” do kitarentse, o cushma (a túnica dão), depois de algum tempo é tingido de vermelho (com tinta de casca de iguano)
longa) dos Ashaninka. Do mesmo modo, o silêncio ou o controle das emoções e finalmente ele passa para a cor preta (quando é tingido com lama preta)–este é o
marca profundamente o estilo ashaninka de ser, em que a atenção é sempre con- último estágio de transformação cromática de um cushma, que agora será usado

228 229
kempiro. a arte gráfica dos traços fortes entre os ashaninka peter beysen

até ficar velho demais.5 Uma chave para entender a importância do processo cro- uma estética de poder, uma admiração por uma “beleza letal”. Porém, o motivo de
mático é o uso dos motivos no kitarentse que se tornam progressivamente invisí- kempiro é mais do que isso: é também uma prova da superação do medo da morte.
veis, porque, depois de cada banho com casca de iguano, as cores dos motivos vão Quando ele é feito de forma errada, a cobra vem morder aquele que se equivocou.
desaparecendo gradualmente. O mesmo processo me foi explicado com relação à Assim, no motivo de kempiro encontramos a essência da arte ashaninka.
pele da onça preta, onde os motivos são igualmente quase invisíveis.
Para Bebito Piãnko, da comunidade Apiwtxa do rio Amônia, os txoxiki (cola-
res) representam, em sentido lato, a “jiboia”. Ele me explicou que quando se começa
a usar um txoxiki, deve-se continuar com ele para sempre. Cada txoxiki transmite
um determinado poder, que é descrito como produzindo uma “sensação diferente”.
Os Ashaninka dizem que é bom usar diferentes tipos de txoxiki. A pessoa se sente
melhor com um tipo de txoxiki do que com outro, dependendo do seu ser. É como
se cada txoxiki produzisse uma personalidade ou uma adoção de atitude.
A mesma coisa, segundo Bebito, pode ser dita do chapéu, que transmite, tam-
bém, certo poder. Observa-se sobre estes objetos um tabu: as mulheres não podem
tocar nos txoxikis, nem nos chapéus. Podem, sim, ajudar no processo de criação
dos txoxiki (um trabalho que exige colaboração, pois trata-se de enfiar inúmeras
sementes num fio), mas depois não podem mais tocá-los. A complexa interação
do txoxiki (e do chapéu) com o corpo e vice-versa constitui o que designamos
“processo de embodiement”. Isto é, quando se começa a usá-lo, é preciso continuar,
uma vez que ele está virando uma parte do corpo daquele que o usa.
A imagem que Raimundinho, da comunidade de Simpatia, do rio Envira, des-
creveu de um Ashaninka pegando jiboia (depois de ter tido relação sexual com ela) Figura 1: Menina com desenho de kempiro feito com urucum.
e a enrolando em volta do braço e do pescoço “como um txoxiki” é uma imagem
prototípica que retorna frequentemente nas sessões de ayahuasca como um “sonho Há uma passagem no mito em que Jomanoria fala que “vamos virar kem-
bom” ou um pesadelo. É através desta ideia de agência que podemos compreender piro também” e logo em seguida acrescenta “mas Ashaninka não é cobra, não”. Os
o ideal da estética ashaninka, explorada a partir de três versões sobre a origem do Ashaninka querem adquirir tanto a beleza como a valentia de kempiro. Apesar da
txoxiki. Em todas as três versões, kempiro desempenha um papel preponderante. tentativa de imitar ou trazer para si as capacidades agentivas da cobra, a declara-
Neste artigo, apresentaremos somente uma das versões do mito (Beysen, 2008). ção de que “Ashaninka não é cobra, não” aponta para uma diferença crucial entre
A cobra kempiro, a mais valente de todas, ensinou aos Ashaninka o uso do ambos, os humanos e a cobra, que consiste no fato de que, afinal, os Ashaninka
arco, do chapéu e dos colares (ver mito adiante). O chapéu e os txoxiki refletem não possuem a imortalidade. A própria execução da arte corporal é prova direta
da constatação de que os Ashaninka procuram adquirir a mesma valentia de kem-
5 O dono da lama com a qual os Ashaninka pintam seus kitarentse é a cobra arco-íris. Há, neste ponto, piro: a execução errada do motivo de kempiro leva seu executante à morte. Assim,
um contraste interessante entre a batina preta da cobra e o arco-íris, que é o fenômeno natural multi-
color. A lama preta com a qual se tinge o kitarentse tem a função de proteger justamente o seu possui- aquele que produz um artefato adorna-se simbólica e visualmente com a ideia
dor contra as mordidas de outras cobras. A cor preta para os Ashaninka está associada ao poder: os de superação do medo da morte. “Vamos virar kempiro” não expressa o desejo
maribondos, prezados pela sua coragem e por serem valentes, são descritos como pretos, assim como
a onça parda e os policiais federais. Os policiais, com seus uniformes pretos, são integrados neste nível
de atacar indiscriminadamente qualquer pessoa, mas o de poder controlar a pre-
de classificação: valentes, destemidos e usuários de “batina preta”. Por este mesmo motivo, as crianças dação. Neste sentido, os Ashaninka sabem esperar o momento certo de atacar,
gostam de brincar de “federal”, e os adultos colocam um apito nos seus txoxiki (colares), sendo, por-
tanto, mais uma referência (o apito) a objetos associados aos policiais.
controlando a predação e seu potencial de agressividade. Esta questão ficou clara

230 231
kempiro. a arte gráfica dos traços fortes entre os ashaninka peter beysen

para mim quando Wenki Pianko falou sobre a ênfase dada à testa na pintura facial, aberto em cima. Foi assim que Benki Pianko, do rio Amônia, o chamou com um
mostrando que ali reside o “pensar” caracterizado por dois polos: o “escondido” leve sorriso: “Olha meu pai lá sentado com a coroa dele.” Em outra ocasião, seu
(paciência, autocontrole, meditação, camuflagem) e a “ação” (“Só pensar às vezes irmão, Bebito, me contou que assim como os txoxiki, o chapéu/ a coroa tem rela-
é fatal, é preciso também agir para poder sobreviver”, disse Wenki). Igualmente no ção com o poder.
caso dos txoxiki, considera-se que a “valentia” da cobra se encontra estocada na No rio Amônia, vi txoxiki e chapéus com o motivo de kempiro (kempiro-
conta, pronta para ser usada. No caso da pusanga, procura-se obter o olhar hipno- konta). A ausência destes símbolos de poder no rio Envira aponta mais para um
tizante e o poder de sedução da cobra, espremendo-se o líquido do olho da cobra ideal oculto (mas fortemente presente) de estética e de estilo de vida do que para
nos olhos.6 Observamos, assim, que se procura incorporar também fisicamente a um “abandono” de certas práticas artísticas. Aliás, todos conhecem bem e men-
força que reside em criaturas perigosas. cionam o txoxiki de kempiro e o chapéu de kempirokonta. Tecer o motivo com um
Encontramos outra manifestação do gosto estético pelo perigo no desenho fio de algodão preto entre as palhas da coroa, ou enfiar as sementes do txoxiki na
facial de Katsimiri, professor da comunidade de Sete Voltas que pintou a repre- forma de kempiro, no entanto, é considerado mais difícil, uma vez que é perigoso.
sentação de um peiari, a alma de uma pessoa morta, no rosto. Katsimiri contou O que encontramos com frequência no rio Envira são as incisões de kempiro em
que havia visto uma pessoa morta (a esposa de Karmelim havia morrido recente- vários recipientes, como os feitos de bambu, para a pasta de urucum, ou o mel
mente) que tinha exatamente esse desenho na pele. “Um peiari”, ele disse, “é como de tabaco e as cuias para guardar o cal que será mastigado com as folhas de coca.
um vento que te pega e morde”. Temos aqui mais um exemplo da lógica ameríndia Estas incisões são consideradas mais fáceis de serem aplicadas. Quando Maria,
que visa incorporar a alteridade para aumentar o poder do sujeito. uma adolescente ashaninka, ganhou um isqueiro, ela gravou logo um “X” nele,
Voltando aos txoxiki, notamos ainda outros processos de mudança nestes “para demorar mais”, do mesmo modo que a tatuagem de um simples X aponta
colares, além do processo de descascar: estão sempre cheios de nós, e é sempre para o desejo de longevidade. Tendo em vista a importância de kempiro para a arte
necessário consertá-los. Durante uma piarentse, quando dois homens estão ami- ashaninka – kempiro os ensinou a fazer txoxiki, chapéu, desenhos e o kitarentse–,
gavelmente discutindo, um pode quebrar a corrente do txoxiki do outro. Digamos apresentaremos agora seu mito de origem na íntegra contado por Jomanoria:
que se trata de uma quebra ritualizada, durante uma discussão tranquila: admite-
Aquele kempiro é a mais valente de todas as cobras. Uma vez, um menino se perdeu,
se o próprio erro e se dá a permissão ao outro de quebrar uma corrente do “agres- ele tinha o tamanho desse aqui (Jomanoria aponta para um menino de 8 anos), já
sor”. Na maioria das vezes, aquele que teve uma de suas correntes quebrada vai estava maior. Andava na mata, caçando, e aí chegou numa casa, numa casa que não
argumentar com aquele que quebrou até poder quebrar também a corrente dele. tinha gente: “Não tem gente, não tem ninguém.” Só tinha uma velhinha, que era a
Depois de se conseguir, dá-se um nó na corda quebrada. Os nós nas correntes nem avó da cobra. Tem muita casa, muita casinha, muita casa, muita casinha que é das
sempre apontam para a ocorrência de um ato ritualizado: correntes quebram tam- cobras, né, muita casinha de todo tipo de cobra. Cada (tipo de) cobra tem uma
casinha. Tem uma casa da avó dele, assim, grande. Ela produz muito feijão,7arroz e
bém quando as crianças brincam com os txoxiki dos pais, quando estes dançam todos as comidas deles. Vai dar de comer a ele macaxeira, batata, jerimum, milho,
e em outras ocasiões. Assim, os txoxiki não apenas vivem, mas também ostentam ingá, goiaba, muita goiaba, tem muita fruta. E ela (a avó de kempiro) dava para ele
marcas da história de vida de seu possuidor. tudinho para comer, e dava também para aquelas cobras todinhas (para todas as
Outra peça importante da indumentária ashaninka é a peça que alguns Asha- cobras que moram lá).
ninka do rio Envira chamavam de “chapéu”, utilizado por homens tanto em festas Aí, de tarde, ela saiu bem cedinho e só chegava de tarde, cinco horas. Ela anda por
todo canto. Por isso cobra anda por todo canto na mata, tardinha ela vai para a casa
como no cotidiano. Seria, na verdade, mais apropriado chamá-lo de “coroa”, por dela. E com flecha, flecha dela. Nós também aprendemos a flechar comas cobras.
causa de suas associações com a ideia de poder e por se tratar de um chapéu Flecha, por isso que temos flecha agora também, porque cobra só usa flecha, arco.
Quando morde a gente, ele está dizendo8 que está flechando, está flechando. Por
6 Entre os Kaxinawa, vizinhos dos Ashaninka, encontramos prática similar que consiste na ingestão do
olho cru da cobra para igualmente obter seu poder hipnótico tanto na caça como na sedução amo-
rosa. Os Kaxinawa também afirmam que a linha desenhada que vai dos cantos dos olhos até a raiz da 7 O cultivo de feijão é algo particular entre os Ashaninka do rio Envira. Cultivam feijão não para con-
orelha reproduz o desenho na face da cobra. Entre os Kaxinawa e os Shipibo, as mulheres espremem o sumo próprio, mas para a venda na cidade Feijó.
suco de folhas nos olhos para sonharem com o desenho da cobra, ou seja, para ficarem como a cobra 8 Entendemos esta capacidade de ação das cobras de flecharem como uma percepção perspectivista da
(Lagrou, 1998, 2007; e Belaunde neste volume). cosmologia Ashaninka (Viveiros de Castro,1996; Lima, 1999).

232 233
kempiro. a arte gráfica dos traços fortes entre os ashaninka peter beysen

isso que nós flechamos também qualquer macaco, né, aí porque nós, antigamente –a …
história da cobra vai muito longe, muito longe. Aí vem aquele, todo tipo de cobra, cobra da mata, vem cobra do não sei donde é
Depois saiu um menino, como eu estou dizendo, lá. Aí, quando ele olhou a casa, aquela cobra, tem cobra, daquele inchado, inchado, fica inchado, parece, a gente bate
disse: “Rapaz, tem uma casa aqui!” Ele foi lá; não tinha ninguém. Aí, quando a velhi- ele e sss!!! Fica inchado, valente, em nossa língua chama sambetakari, a gente bate ele
nha saiu lá: “Rapaz, o que você está fazendo aqui? Vem cá, venha logo!” Aí, ele correu e ele fica com raiva, estica, inchadinho ele (quando esta cobra fica com raiva, a cabeça
para a velhinha: “Rapaz, aonde tu vai?”, disse a velhinha. “Por aqui, pensava que era engrossa). Ela apresentou ele para todas as cobras. Aquela surucu de barranco, né,
minha casa, eu ando perdido”,disse o rapaz. “Rapaz, e agora você não vai escapar aquela que morde mesmo, aquela valente, ela chegou também. “Me mostra, mamãe,
mais não, as cobras vão te pegar todinho, vão te matar. Agora tem outras coisas (que minha avó, o quê que é, eu quero matar, eu quero matar, eu quero comer!!” “Não sei
a gente poderia fazer para dar um jeito), eu vou fazer muita comida para ele, para ele o que...” (avó), “não”, dando comida para ele (kempiro, a cobra masculina com cha-
não te comer, não te matar”, falou a velhinha. péu e txoxiki). “Come, come, come, come logo.” Ele comeu. Depois: “Tem um cara
“Então, tá”. Aí, ela fez comida, do tamanho desse tambor, muito grande, cheio de aqui.”(ela) “Como é que tu diz que não tinha?” (Surucu diz) “Não, tu ia matar ele,
comida: arroz, muita fruta e muito feijão. Aí tinha muito feijão, que eles apanhavam agora com bucho cheio tu não pode matar.” “Então fica aí mesmo, mas cuidado, vem
na casa. Aí ela disse: “Agora você, se esconde aqui, você se esconde aqui. Aí, pegou outro, mais valente que eu.” (Surucu) Kempiro, né. Aí chegou.
uma gamela (canoa) para fazer piarentse, deste tamanho assim, ela botou e ele entrou Quando os escutou, kempiro, ele trouxe apito, para assoprar. Ele assopra, assopra, ele
por dentro, né, aí tampou com feijão dela, todinho com feijão para não ver. Quando faz o apito de taboca, ele assoprou, parece passarinho (onomatopeia: ssii,sssiii), asso-
a cobra chegar, ela não vê, não, mas ela sente o cheiro da gente. Diz (a cobra) que a prando flauta dele, né, assoprando flauta dele: “Fwiii, fwiii, fffwiii. Fwiii, fwiii, fffwiii.”
gente fede, igual carne cozida, cheirosa, estava com vontade de comer, é cheiroso. Chegou bem pertinho e começou a sentir o cheiro (daquele Ashaninka): “Ah, minha
Aí, quando era assim três horas, já começou a chegar aquela cobra pequenininha, avó, o que está cheirando aqui, me apresente!”, com flecha dele assim, apontando
miudinha, né, tem cobra deste tamanhinho, é ela que chega primeiro. Aí seis horas para flechar, “rapaz, nada” (disse ela). Aí começou a chegar pertinho dele, levando
chega aquele kempiro, né, grande, com kitarentse novo também, de kempiro, né, por comida para ele, levando comida (para Kempiro). “Não, eu quero ver quem está aí,
isso que aprende: Ashaninka aprendeu chapéu com ele, aprendeu a fazer também, não sei o quê!”(Kempiro) Ele ficou doido. Passou meia hora, rodando, rodando. Aí
disse “vamos virar kempiro também”. Mas não é cobra, não, Ashaninka não é cobra, disse: “Quero ver se tem alguém, se não tem ninguém aqui, eu quero ver.” Aí tinha
não. Ele viu, o cara que foi lá, né (o rapaz que andou na mata e perdeu o caminho),ele aquela formiga, a gente chama em português, chama taioca, né, tem formiga que ferra
viu e disse: “Ah, é assim que a gente faz.” E ele fez também, por isso que agora fez cha- a gente, que morde, dói mesmo, nós chama na língua héia, fica assim um monte, aí ele
péu com pena de arara. Também kempiro txoxoki, lavrada (em losango) que a gente bateu nele assim (no ninho daquelas formigas). Aí saíram, se espalharam por todos os
faz, daí foi, aprendeu lá no kempiro, aprendeu lá, nós também aprendemos. Por isso cantos, para procurar (as formigas iam buscar o rapaz escondido pela avó), rodaram
que nós usamos, pois acha bonito, né, aquele... Agora, se fizesse errado, meu avô disse, por todos os cantos. Aí ele ficou, não mexeu, não (com as formigas em cima dele).
quando tu faz kempiro colar, quando tu não faz direitinho, aí kempiro vai te morder. Não mexeu mais. Ele ficou lá dentro, tinha pessoal lá. Eles passaram por cima dele,
Ele te morde. É. Ele vai te pegar porque tu não acertou a lista dele (os desenhos da todos na cara dele. Ele não mexeu, não. Até que ele... sai de novo, aí ficou um monte
pele da cobra). É perigoso. Por isso a gente aqui não faz chapéu, porque pode errar: (de formigas) de novo. (Kempiro:) “Ah, tem ninguém, não!!!” Ela: “Não te disse, é a
depois vai para a mata, vem kempiro e morde a gente. Tem medo de fazer (Jomanoria comida que está cheirando.” Dava comida para ele. Ele comia, comia, comia, encheu
ri com um pouco de vergonha, confessar medo é incomum entre os Ashaninka). a barriga. Caiçuma para ele, goiaba para ele. Agora: “Já vou.” E quando ele chegou(...)
(O narrador conta a chegada de todo tipo de cobra, primeiro as pequenas, depois as ela conversou com ele (sobre o Ashaninka ali escondido).Ela perguntou: “Rapaz, tu
grandes, até chegar na mais perigosa de todas, kempiro). não vai matar (ele) não?” “Não, porque, me diga?” (ele) “Tem gente.” (ela) “Tem?”
Quando deu três horas começava a chegar cobra pequena; chegou, chegou, chegou. “Tem.” “Como é que tu dizia antes que não tinha gente?” (Kokonha que assiste a
Aí, vieram outras cobras maiores, chegando. E quando chegou ele sentiu cheiro, né.“- narração do mito começa a rir neste momento). “Ah, porque tu poderia matar ele.”
Mãe, o que tá cheirando aqui, que tá cheirando, o que tu tem aí? Me dá para matar, Porque ele, kempiro, flecha a gente, é bastante venenoso, mata, ele faz isso, come,
para matar e comer.”A avó: “Não, pode comer aqui a comida. Esta é a comida que está come até cobra. Aí depois ele saiu: “Cadê? Mostra!” Ele se levantou, ficou lá. Aí ele
cheirando, vamos comer”.Aí dava comida para ele. Comeu, cheirando, cheirando, viu (o Ashaninka olhou para kempiro), em pé, né, kitarente dele branco, txoxiki dele,
até que encheu barriga.“Essa comida está cheirando, está muita boa.” Comeu fruta, todo lavrado. Com flecha dele, chapéu na cabeça. (Jomanoria descreve a aparência de
encheu a barriga, vai à casa dele, vai deitar. Aí, ela disse para ele: “Eu vou dizer alguma kempiro com muito detalhe. O fato que ele tem um kitarentse “branco” é muito enfa-
coisa: tem uma gente aqui que chegou, saiu por aqui, mas tu não vai dizer para teu tizado.) Disse (o rapaz): “Ah, é alto! Cobra grande.” Disse: “Ah, agora sim, tu apresen-
irmão, não. Porque essa gente aqui, vamos criar ele.” Ele falou para ela: “Então tá. Mas tou ele, tu não me falou antes dele, né, tu não me disse antes, agora tá bom, tá certo,
mostra!” Aí ela mostrou. (Ele:) “Ah, és tu?! Não fica com medo, eu não vou te comer, deixa aí.” Ele (kempiro) o olhou de pertinho, passou, foi embora. Ele não olhou bem,
não.” Entrou de novo. não, ficou com raiva aí. Aí, depois, ele foi lá conversar mais com ele. Aí mandou tirar

234 235
kempiro. a arte gráfica dos traços fortes entre os ashaninka peter beysen

roupa, né, todo, diz que o corpo da gente é todo fedendo. E tem igapozinho de água “para cheirar direitinho”. O cheiro é algo crucial na concepção de socialidade e no
assim. Ele joga ele dentro da água e tira aquela pele todinha, sai. Aí, dá outro kita- estabelecimento de relação social entre os Ashaninka. Neste contexto, ganhar o
rentse para ele. Aí fica cheirando como ele. É. Diz que cobra sente a gente de longe.
kitarentse9 significava a possibilidade de ter o mesmo cheiro das cobras. Quando
Aí depois nosso parente ashaninka que foi lá escapou, não morreu, não. Ele comeu lá,
ficou lá. E depois disse: “Agora já vou se embora.” Foi embora e saiu da aldeia. “Cadê perguntei a Jomanoria sobre o mito da aranha, que ensinou aos Ashaninka como
minha aldeia, sabe onde fica?” “Aí, tá bem aí.” Pensou que era longe, ele foi, rodou, fiar e fazer kitarentses, ele enfatizou que a aranha deixou o kitarentse dela quando
saiu no outro canto. Depois a cobra apontou o caminho: “Por aqui, eu vou te deixar.” foi embora. “Deixou a casca para trás”, uma imagem coma qual se é confrontado
Quando ele desceu, já estava no caminho por onde passou (Kokonha ri, porque ele diariamente quando se habita uma casa ashaninka: há sempre uma casca de ara-
estava todo esse tempo perto da aldeia dele), foi se embora para a casa dele. Quando
chegou na casa dele, ele começou a trabalhar no txoxiki, chapéu e kitarentse também.
nha presa ao teto de palha.
Aprendeu a fazer txoxiki e flecha, flecha também, mais tarde, por isso que a gente tem Quando Pawa (o deus sol) ainda vivia entre os Ashaninka, bastava comer
flecha, tem arco. Aprendemos com ele, porque antes, nós, quando deus estava aqui, coca, o sangue (menstrual) de Maria; agora, porém, com a perda do estado imor-
não matava xintori (porco da mata), não matava nada. Porque comia quando deus tal, é preciso comer carne, e é kempiro que mune os Ashaninka de arco e flecha. A
fazia, né, deus dava comida para nós; esse marikix (folha de coca), isso aí era nossa
imagem de imortalidade para os seres humanos é igual à do processo de trocar de
comida. Não podia comer carne, não comia nada, só comia aquele marikix, sangue
de Maria. Por isso, agora história de kempiro é assim. pele das cobras: “Agora, se Pawa não tivesse ido para cima, não teria acontecido
nada. Até ficar velho, quando fica bem velhinho, aí já tirava, cairia a pele, né, tirava
a pele e ficava novinho de novo.” Jomanoria continua sua narrativa:

O primeiro, ele aprendeu a desenhar nas folhas da mata. Não tem sororoca? Porque
é lá onde começou a aprender pintura nossa. Depois formou folha. Tem muita folha
que se formou, pintura nossa. Começaram a desenhar primeiro para poder desenhar
kitarentse, né. Igual quando a gente desenha no papel. Aí ficou, formou folha e ficou lá,
pintura. Também aquele pauzinho. Colocou desenho no pau, aquele potote (pintura
facial), né, desenho no pau assim, carimbozinho. Kempiro ensinou desenhando folha
e ensinou também a fazer chapéu, como tirar arikuli, aqueles cocos para fazer chapéu.

Na versão de Raimundinho, da comunidade de Simpatia, a figura do pica-pau


é introduzida no mito de origem do txoxiki: ele aparece como o primeiro a fazer o
txoxiki, depois é que veio kempiro. As sementes do txoxiki são difíceis de perfurar,10
e o pica-pau é visto pelos Ashaninka como um animal que tem uma “cabeça forte”,
motivo pelo qual é admirado. Também por esta razão, sua figura é incorporada
através das “bandanas” que são usadas pelos Ashaninka para que tenham uma
cabeça forte. O beija-flor é outro pássaro que é bastante admirado por esta mesma
qualidade do pica-pau e, aliás, no mito foi o único que conseguiu levantar a escada
de Pawaquando, que queria ir para o céu. Xomontse (beija-flor) é o nome da pessoa
Figura 2: Criança com motivo de kempiro aplicado por carimbo. na foto que está vestida com um txoxikikempirokonta e uma coroa kempirokonta.

No mito de kempiro, vemos novamente a referência à troca de pele e à imor-


talidade perdida. A cobra mandou “trocar de pele” e deu a própria pele aos Asha- 9 Lembramos aqui que, pintado com lama, o kitarentse protege contra os ataques de cobras.
ninka. Neste mito, o kitarentse é literalmente uma pele da cobra. Interessante 10 Apesar de o uso ser exclusivamente masculino, mulheres podem também ajudar a confeccionar o
txoxiki. Observei Julietta e Gregório trabalharem juntos na confecção de um txoxiki: Gregório estava
observar que a cobra kempiro fez isso para que o rapaz ashaninka não “fedesse”, perfurando, e Julieta, enfiando as sementes.

236 237
kempiro. a arte gráfica dos traços fortes entre os ashaninka peter beysen

Ao comentar as cascas deixadas pelos besouros, Hananeri afirma: “Aqueles


besouros não morrem, só rejuvenescem, como nós fazemos quando estamos com
a lua. A gente é cozido até a pele sair, deixamos o nosso couro, a nossa batina (kita-
rentse),11 e nascemos, novamente nus, num outro lugar.” Neste ponto, é importante
notar que Hananeri usa indistintamente as palavras “couro” e “batina”, para falar
tanto de pele como de kitarense, fato que aponta para o significado de pele do
cushma. Interessante é que Hananeri, depois de uma pausa, expressou sua dúvida
com relação à história que acabara de narrar: até agora, diz ele, não viu ninguém
retornando do caldeirão da Lua, não sabia como isso acontecia precisamente e
nem onde os mortos iam renascer. Num outro momento, esclareceu que, depois
da tirada do couro dos mortos na panela da Lua, “estaremos supervivos, vivos de
novo e desta vez para sempre”.

a teia de aranha como armadilha

Atxomongiro, a pequena aranha branca, é presença constante e apreciada nas


casas ashaninka. O motivo da teia de aranha não aparece nos kitarentse, pois estes
constituem, por sua própria técnica de tecelagem, verdadeiras teias de aranha. O
motivo, no entanto, é recorrente na pintura facial. Wenki Pianko, do rio Amônia,
desenhou o motivo no caderno de campo e explicou seu significado durante uma
festa de piarentsi. A teia de aranha seria o “símbolo da recepção de energias posi-
tivas”; a pessoa que a tem desenhada no rosto captura para si tudo que há de bom.
O motivo pontilhado supõe uma leitura atenta e informada do observador
que deve, na sua “percepção imaginativa” (Lagrou, 2007), constituir um desenho
que é apenas sugerido. O que se vê são pontos desenhados no queixo, nos maxi-
lares, partindo dos cantos da boca e do nariz nas bochechas e nos maxilares, além
de acima dos olhos e das sobrancelhas. A partir dos pontos, deve-se traçar cami-
nhos na imaginação que ligam estes pontos primeiro em linha horizontal, depois
seguindo as linhas circulares que ligam as linhas horizontais, constituindo, deste
modo, uma teia de aranha.
Esta teia é uma armadilha implantada para capturar energias. Funciona como
um foco que leva a informação para o rosto. Ela é, portanto, um instrumento de
captura do que há de bom em volta da face. Funciona ao modo de um dreamcatcher,
que não é, neste caso, pendurado acima da cabeça do sonhador, mas desenhado
no rosto atento da pessoa acordada. A teia de aranha dos Ashaninka funciona de
modo oposto ao dos motivos labirínticos apotropaicos dos hindus analisados por

Figura 3: Xomontse com o motivo de kempiro no txoxiki e no chapéu. 11 “Couro” e “batina” estão sendo usados aqui de forma indistinta. Assim como as pinturas faciais providen-
ciam uma segunda pele, o kitarentse (cushma, batina) pode ser também considerado uma segunda pele.

238 239
kempiro. a arte gráfica dos traços fortes entre os ashaninka peter beysen

Gell (1998), onde a captura do espírito pelo desenho protege e impede a entrada. A
teia, pelo contrário, permite a entrada de “energias”, ao modo, aliás, dos Kaxinawa,
em que o desenho funciona como filtro que deixa entrar cantos e banhos medi-
cinais no corpo do iniciando. No caso da teia de aranha dos Ashaninka, vemos
também a lógica de um filtro que capta o que está em volta, tal como o fazem os
sentidos, os olhos, o nariz e a boca, capturando sinais em torno de si.
Nos motivos da teia de aranha reproduzidos abaixo se realiza um recorte sur-
preendente. O que se vê é uma faixa com linhas entrecruzadas, onde a teia apenas
é sugerida, não completada. A faixa faz um recorte num desenho invisível que Figura 6: Desenho de um carimbo para pintura facial representando
uma teia de aranha feito por Wenki Pianko.
continua além do suporte, ao modo dos motivos Kaxinawa (Lagrou, 2007), que
surgem nos carimbos esculpidos na madeira. No primeiro desenho (Figura 4),
Wenki Pianko fez questão de enfatizar o ponto central da teia. Quando este dese-
nho é transposto para a pintura facial, o ponto central é igualmente desenhado.

Figura 4: Desenho da teia de aranha no caderno de campo por Wenki Pianko.

Figura 5: Desenho da aranha nanimonkiroi, feito no caderno de campo por Jomanoria. Figura 7: Desenho de teia de aranha através de cama de gato.

240 241
kempiro. a arte gráfica dos traços fortes entre os ashaninka peter beysen

Quando o motivo da teia de aranha contém linhas, estas não completam o No primeiro desenho reproduzido acima (8), o tripé dá a dica de leitura,
desenho. O olhar perceptivo precisa completá-lo. O desenho mostra somente o mostra o ponto de costura da teia. No segundo (9), temos a impressão de ver
que é preciso para se continuar traçando mentalmente as linhas quase invisíveis sugeridos a costura e o encontro das linhas. Cada motivo de teia de aranha se
de uma teia de aranha. refere a outra aranha.

Figura 10: Desenho por Wenki Pianko.

O motivo reproduzido acima (10) é usado tanto por mulheres como por
homens, enquanto os outros motivos de teia de aranha são usados principalmente
por esses últimos. A aranha que deu origem a este último desenho de teia vive na
taboca e possui ligação especial com os Ashaninka. Por esta razão, as “energias”
que ela capta são especialmente benéficas. Num mito resumido por Wenki Pianko,
que conta a origem dos animais peçonhentos, esta aranha age como aliada dos
Ashaninka.
Figura 8: Desenho teia de aranha Wenki Pianko.

Figura 9: Desenho pontilhado de Wenki Pianko.


Figura 11: uma das pinturas faciais representando uma teia de aranha.

242 243
kempiro. a arte gráfica dos traços fortes entre os ashaninka peter beysen

conclusão LAGROU, Els. “Caminhos, duplos e corpos: Uma abordagem perspectivista da identidade
e alteridade entre os Kaxinawá. Tese de doutorado em Antropologia, Universidade
Partindo do grafismo minimalista da cobra kempiro – cuja essência agentiva, pode- de São Paulo, 1998.
rosíssima e onipresente na vida dos Ashaninka é capturada num simples X e con- ______. A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxi-
cluída com o desenho da teia de aranha, que nos leva novamente à importância da nawa, Acre). Rio de Janeiro: Topbooks, 2007.
economia expressiva ashaninka– tentamos demonstrar neste artigo o quanto um LIMA, Tânia Stolze. “Para uma teoria etnográfica da distinção entre natureza e culturana
modo de se vestir e se decorar aponta para uma filosofia e um estilo de vida. Os cosmologia Juruna”. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 14, 1999.
grandes temas presentes nos mitos ashaninka – a procura da imortalidade e da feli- MENDES, Margarete. “Etnografia preliminar dos Ashaninka da Amazônia brasileira”. Dis-
sertação de mestrado em Antropologia, Universidade Estadual de Campinas, 1991.
cidade, a violência contida, o silêncio e o poder da sedução – estão igualmente pre-
OVERING, Joanna.“A estética da produção: o senso de comunidade entre os Cubeo e os
sentes, encapsulados, na sua arte: nos grafismos que decoram os corpos, os rostos e
Piaroa”. In: Revista de Antropologia, p. 7-34, 1991.
os artefatos, assim como na indumentária: o cushma, os colares, o chapéu e a tipoia.
PIMENTA, José. Índio não é todo igual. A construção ashaninka da história e da política
A cobra kempiro é o fio da meada do texto, assim como da vida e da arte interétnica. Tese de doutorado, Brasília, UnB, 2002.
ashaninka; ele não somente lhes ensinou, segundo o mito, a fabricação e o uso VARESE, Stefano. La Sal de los Cerros. Notas etnográficas e históricas sobre los Campa de la
do arco e flecha, do chapéu, do kitarentsi e do txoxiki, mas também é responsável Selva del Perú. Lima: Universidad Peruana de Ciencias e Tecnología, 1968.
pelos desenhos encontrados na natureza (nas folhas das árvores e em outros ani- VELTHEM, Lúcia Hussak van. O belo é a fera: a estética da produção e da predação entre os
mais), nos quais os Ashaninka se inspiram. Na figura de kempiro, a cobra bico de Wayana. Lisboa: Assírio & Alvim, Museu Nacional de Etnologia, 2003.
jaca, a cobra mais venenosa da floresta, os Ashaninka expressam seu ideal e sua VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os Araweté, os deuses canibais. Rio de Janeiro: Zahar,
admiração pela “beleza letal”. Usar a vestimenta e os adornos que a ele pertencem Anpocs, 1986a.
é também uma prova da superação do medo da morte, pois, como vimos, quando ______. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”. In: Mana 2. Rio de
se erra o motivo de kempiro, a cobra vai se vingar. Janeiro: Museu Nacional, Contracapa, 1996.

referências bibliográficas
BARCELOS NETO, A. Apapaatai: rituais de máscaras no Alto Xingu. Tese de doutorado, São
Paulo, USP, 2005.
BELAUNDE, Luisa Elvira. El recuerdo de luna. Género,sangre y memoria entre lospueblos
amazónicos. Lima: CAAP, 2005.
BEYSEN, Peter. Kitarentse. Pessoa, arte e estilo de vida ashaninka do Oeste Amazônico. Tese
de doutorado, Rio de Janeiro, IFSC-UFRJ, 2008.
GEBHART-SAYER, Angelika. “Una terapia estética: los diseños visionarios del ayahuasca
entre los Shipibo-Conibo”. In: América Indígena, XLVI, p. 189-218, 1986.
GEERTZ, Clifford. O saber local. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.
GELL, Alfred. Art and agency. An anthropological theory. Oxford: Clarendon Press, 1998.
GOW, Peter. “Visual Compulsion; Design and Image in Western Amazonian Art”. Revindi.
Revista indigenista Americana, Budapest, pp. 19-32, 1988.
GOW, Peter. “Piro design: painting as meaningful action in an Amazonian lived world”. In:
Journal of the Royal Anthropological Institute, 5 (2). pp. 229-247, 1999.
GUSS, David. To weave and sing. Art, symbol and narrative in the South American Rain
Forest. Berkeley; Los Angeles; Londres: University of California Press, 1989.

244 245
Figurar e desfigurar o corpo:
peles, tintas e grafismos entre os Mebêngôkre (Kayapó)
André Demarchi1
Para o pequeno Tàkàknhô Kayapó
(in memoriam)

Figura 1: O “dripping selvagem”. Foto: André Demarchi.

1 Durante a pesquisa e a produção deste texto, recebi bolsas de estudo do CNPq e da FAPERJ. O Projeto
de Documentação de Línguas e Culturas, realizado pelo Museu do Índio, em convênio com a UNESCO
e o PPGSA (NAIPE, NEXTimagem), financiou as viagens de campo. Agradeço os comentários de Suiá
Omim, Els Lagrou e Tiago Oliveira. As leituras atentas e instigantes de Ana Gabriela Morim de Lima
e Diego Madi Dias foram de grande importância para o acabamento final deste artigo. A eles agradeço
com o afeto de compadre.

247
figurar e desfigurar o corpo andré demarchi

A imagem que inicia este capítulo, à guisa de epígrafe, foi captada durante minha homens) os jovens casados com até três filhos, a geração precedente à dos “guer-
pesquisa de campo na aldeia Môxkarakô, uma das moradas dos Mebêngôkre reiros” que me pintaram. De manhã eles haviam capinado a pista de pouso da
(Kayapó).2 Nela, um jovem espreme tinta de jenipapo no corpo de outro, formando aldeia e agora, depois do almoço, esperavam o sol baixar para jogar futebol, ali
uma profusão de linhas aleatórias que escorrem pelas costas do rapaz. Aquele que no pátio em frente à casa dos homens. Enquanto o clima não ficava mais ameno,
espreme já está coberto dessa pintura, uma espécie de “dripping selvagem”3 que e vendo os mais velhos todos pintados, eles se reuniram e decidiram que iriam se
contraria todas as outras formas da pintura corporal mebêngôkre e todos os outros pintar com um motivo apropriado para ocasiões em que “há pouca tinta e muita
grafismos pacientemente elaborados pelas mãos femininas da aldeia. gente”. Trata-se, como se vê na imagem acima, de um motivo composto por uma
Momentos antes de captar esta imagem, eu estava atravessando a aldeia pala logo abaixo do pescoço, feito com traços aleatórios produzidos através do ato
Môxkàràkô, vindo de uma farmácia, local em que estava hospedado, em dire- de espremer a tinta para que ela goteje nas costas e na frente do corpo. Se eu havia
ção à casa do cacique Akyabôro, onde as mulheres de sua família preparavam o achado tosca a pintura dos homens mais velhos, aquela, para os meus padrões
urucu (Py), matéria-prima importante no sistema complexo de desenho mebên- estéticos de etnógrafo iniciante, era uma “antipintura”, a negação da geometria,
gôkre. Neste trajeto, obrigatoriamente eu teria que passar pela casa dos homens, um padrão cuja forma era composta por linhas desordenadas, um padrão fora
e, quando o fazia, Kroiti, um homem adulto com mais de cinco filhos (Mekrãre), dos padrões tanto dos Mebêngôkre como de outros grupos ameríndios.4 Isso foi
considerado por todos um guerreiro “brabo”, gritou em minha direção: “Ei, kuben realçado pela forma rápida e caótica com que os mais jovens se pintavam, falando
(branco), vem fazer pintura com os guerreiros.” Sem poder dizer não diante de alto, gesticulando, rindo e brincando entre si. Em trinta minutos, todos estavam
praticamente todos os homens da “comunidade”, deixei o urucu para depois e me pintados e secavam ao sol a tinta de jenipapo.5
juntei a eles. Estavam fazendo a pintura àkre ‘ôk, que me traduziram como “pin- Curioso, indaguei a um deles como era o nome do motivo. Manduca me res-
tura do pássaro”. Kokuí me disse para tirar a roupa, ficar só de cueca como eles, e pondeu em tom de piada, como que sabendo justamente o que o antropólogo que-
começou a espalhar a tintura de jenipapo no meu corpo, recortando o tronco em ria ouvir: “É a pintura da chuva (ná ‘ôk). Aqui”, disse passando a mão no pescoço,
forma de uma ampulheta e cobrindo os espaços vazios com um carimbo feito da “é a nuvem, e estes são os pingos da chuva”. Todos riram depois da explicação,
própria casca do jenipapo. Os homens se pintavam em grupo, sorrindo, contando inclusive os mais velhos que observavam a cena do outro lado do ngòb. No dia
piadas e fazendo brincadeiras uns com os outros. Não deixei de registrar em meu seguinte, Bepunu me explicou que na verdade o nome do “antimotivo” era kran
caderno de campo que “perto da pintura feita pelas mulheres, aquela feita pelos a menh ‘ôk (krãn = curto/rápido; a menh = jogar; ‘ôk = pintura ‘ôk). E comentou:
homens era tosca e desordenada, feita com a mão, sem o detalhismo geométrico e “Faz gota na mão, e pinga nele [no corpo do outro].” Trata-se de uma expressão
feminino dos grafismos produzidos pacientemente sobre a superfície da pele com que se refere ao modo de fazer, a performance necessária para realizar a pintura
o kwýký, o pincel de tala da folha de babaçu”. corporal, e não à existência de algum referente que a pintura simbolizaria – a
Quando Kokuí acabou de me pintar, eu estava prestes a escapar para regis- chuva, por exemplo, como haviam me dito de brincadeira no dia anterior.
trar o processo de feitura da pasta de urucu, quando chegaram no ngòb (casa dos

2 Falantes de uma língua do tronco linguístico Jê, os Mebêngôkre-Kayapó habitam os estados do Pará
e do Mato Grosso. Somam quase oito mil indivíduos, divididos em diversos subgrupos residentes às 4 Uma característica notória dos grafismos ameríndios é o seu detalhismo geométrico, seja na execução
margens do rio Xingu e seus afluentes. A aldeia Môxkarakô, onde realizei dez meses de pesquisa de de padrões abstratos, figurativos e decorativos pintados nos corpos, seja na execução de motivos em
campo entre 2009 e 2012, está localizada ao sul do estado do Pará, próximo à cidade de São Félix do cestaria, cerâmica e com miçanga. Das pinturas faciais que conformam o estilo da sociedade Kadi-
Xingu, às margens do Riozinho, um afluente do rio Fresco, por sua vez, um afluente do Xingu. Sua wéu (Lévi-Strauss, 1996) à estética da predação dos Wayana (Velthen, 2003), passando pela fluidez da
população é de aproximadamente 400 pessoas, de acordo com dados da FUNASA. Mais de um terço forma Kaxinawa (Lagrou, 2008), pelas pinturas corporais Mebêngôkre-Kayapó (Vidal, 1992) e pelos
da população é composto de crianças. motivos gráficos da cestaria Kayabi (Ribeiro, 1980) é possível constatar o privilégio da forma geomé-
3 “O pintor americano Jackson Pollock (1912-1945) desenvolveu uma técnica de pintura criada por Marx trica nos sistemas complexos de desenho dos ameríndios.
Ernst o ‘dripping’ (gotejamento), na qual respingava a tinta sobre suas imensas telas; os pingos escor- 5 Algo que dificilmente ocorre entre as mulheres. Suas sessões de pintura coletiva duram boa parte das
riam formando traços que pareciam entrelaçar-se na superfície da tela.” Wikipédia: http://pt.wikipe- tardes dedicadas a elas, e as pinturas feitas nas crianças no cotidiano podem demorar mais de um dia
dia.org/wiki/Jackson_Pollock. para ficarem prontas.

248 249
figurar e desfigurar o corpo andré demarchi

se referem às técnicas e performances empregadas em sua realização, como, por


exemplo, aquele descrito acima e utilizado pelos jovens na casa dos homens. Exis-
tem também grafismos que possuem dois nomes, cada um apontando para uma
dessas formas de classificação. Esse é o caso do motivo de fim de resguardo, deno-
minado me týk, cujo nome se refere tanto à forma como a pele é coberta por ele
(me týk = todo preto) como ao nome de um referente muito específico (me týk =
pintura do morto). Gostaria de privilegiar neste trabalho a primeira forma, diga-
mos, performática da pintura, seus contextos de aplicação e, consequentemente, a
produção e a alteração das superfícies nas quais são desenhadas.
Em oposição à desorganização gráfica do padrão kran a menh ‘ôk, o padrão
me týk apresenta uma homogeneidade característica: exceto pelas mãos e pelos
pés, toda a pele do indivíduo é coberta com tintura negra do jenipapo, incluindo
aí a do rosto e a da parte raspada do couro cabeludo que forma o corte de cabelo
característico dos Mebêngôkre. As duas pinturas são feitas em momentos diferen-
tes da vida. A primeira só pode ser utilizada por homens jovens que estão che-
gando no último degrau de endurecimento dos corpos – não era à toa portanto
que eles se pintavam com esse motivo diante dos homens mais velhos, como que
Figura 2: Rapazes se pintam na casa dos homens. Foto: André Demarchi. afirmando a eles que seus corpos já estariam tão duros quanto os deles, sendo
capazes de suportar tamanha desorganização gráfica diante de um sistema com-
Esta diferenciação na classificação dos nomes dos grafismos entre a forma de plexo de desenhos altamente estruturado e geométrico (Vidal, 1992; Lea, 2002).6
fazê-lo e o que ele simbolizaria já foi amplamente tematizada nos estudos sobre A segunda pintura demonstra o fim de um processo de refiguração vivido por
arte ameríndia (Boas, 1947; Lévi-Strauss, 1996; Ribeiro, 1980; Vidal, 1992). Recen- homens e mulheres nos momentos de resguardo, causado por nascimento de pri-
temente, Lagrou (2011) os definiu como duas formas distintas de os ameríndios meiro filho, luto ou assassinato.
conceituarem os grafismos. De um lado, teríamos povos que fariam a diferencia- Em ambos os casos, trata-se de formas diferentes de constituir e reconsti-
ção precisa entre grafismos e figuras; de outro, povos que só conhecem um con- tuir as superfícies que envolvem os corpos (Lagrou, 2011: 76). Este aspecto ganha
ceito para designar desenho. Essa oposição demonstra uma diferenciação entre relevo diante da ideia já difundida no americanismo tropical de que para os ame-
“decoração abstrata, onde o nome do motivo não é mais que um nome, ou seja, um ríndios o corpo “é um objeto de pensamento” e que é através de sua manipula-
termo técnico para se referir a um padrão; e decoração figurativa, cujo referente ção que pessoas são geradas e construídas (Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro,
tem uma importância semântica” (Lagrou, 2011: 96). Mas como alerta a autora, 1979). Trata-se de pensar a produção da pele e, consequentemente, do corpo ao
“nestes casos não é possível generalizar”, pois muitas vezes a possibilidade de per- longo do ciclo de vida, em sua relação com diversos tipos de grafismos e tinturas
ceber uma figura se esconde num desenho aparentemente abstrato, além do fato específicas que são aplicados a ela em contextos diversos. Gostaria, assim, de des-
de vários grupos possuírem ambas as possibilidades de grafismo. Esta afirmação tacar a agência dos grafismos na produção da pele e as transformações operadas
parece ser bem propícia para o caso mebêngôkre, pois, se por um lado conceituam por sua aplicação nas superfícies dos corpos ao longo da vida do indivíduo. Con-
de modo diverso os grafismos (‘ôk) das figuras (karõ), por outro, parece haver tam- centro-me, neste sentido, nos momentos em que pinturas e tinturas são acionadas
bém uma continuidade conceitual entre decoração abstrata e decoração figurativa. para proteger, reforçar, figurar e refigurar essa fronteira do corpo que é a pele em
Existem nomes de motivos gráficos que se referem diretamente a animais, como
por exemplo: kapran ‘ôk (pintura do jabuti), kangan ‘ôk (pintura da cobra), apiêti 6 Entre os Mebêngôkre, “as estampas de jenipapo são numerosas, mas não infinitas. Obedecem a regras
estéticas de forma e estilo, em termos do que é considerado ideal: simetria, linhas paralelas, finas e
‘ôk (pintura do tatu canastra); mas existem também motivos gráficos, cujos nomes regulares, textura fechada, proporções corretas” (Vidal, 1992: 174).

250 251
figurar e desfigurar o corpo andré demarchi

momentos como a infância e os períodos de resguardo, em que os corpos estão o homem tem que trabalhar muito com a mulher, tem que deitar todo dia pra poder
com suas superfícies enfraquecidas e por isso estão mais suscetíveis e vulneráveis fazer perna e braço, pra poder fazer a cabeça e a pele. É o meýry (sêmen) do homem
que faz. Faz até a barriga ficar grande, assim, do tamanho de um mamão. Depois que
às agências não humanas. Momentos em que eles estão desfigurados, ou ainda não
dá pra ver barriga, aí para, não pode mais deitar com a mulher. Já tá na barriga e o
totalmente figurados, não podendo ostentar os grafismos considerados “bonitos” karõ (alma, espírito) também. Aí o resto é a mulher que faz, é o sangue da mulher
(mejx) pelos Mebêngôkre. que termina de fazer, porque se o homem continua fazendo, pode nascer punu (ruim,
Utilizo o termo desfiguração a partir de um dos significados específicos conce- feio, com alguma deformidade).8
dido a ele por Taussig em seu livro Defacement (1999): “Um dos sentidos de deface-
ment é estragar a superfície ou a aparência de algo previamente existente” (Taussig, O processo de formação do feto pode ser entendido como um processo de
1999 apud Caiuby, 2006: 290). Taussig “associa a desfiguração àquilo que ocorre figuração, no sentido de dar-lhe forma humana, pois é também o momento de
quando algo muito precioso nos é retirado. A desfiguração, ao trazer as profunde- constituição de seus órgãos internos (Gordon, 2006) e de sua pele. Se ele possui
zas para a superfície, revela mistérios”. Procuro entender o processo vivido pelos uma consistência líquida, sem forma definida, sua solidez e sua forma vão sendo
Mebêngôkre durante os resguardos como períodos de desfiguração momentânea, constituídas a cada injeção de sêmen no corpo da mulher. Assim, tanto a super-
quando a superfície do corpo está, temporariamente, “estragada” e, por isso, vul- fície que dá forma ao corpo do feto, a pele (kà), como também os ossos (‘i), sua
nerável, podendo tanto ser invadida do exterior para o interior por agências não estrutura e a carne (nhin), seu preenchimento, são constituídos inicialmente por
humanas como levar à tona aspectos de suas profundezas, como o sangue e a alma. sêmen. Quanto à alma (karõ), seu elemento imaterial, é o único elemento que os
Nestes contextos específicos, é a pintura que refaz paulatinamente a pele até Mebêngôkre, seguindo uma tônica amazônica, dizem não saber de onde vem.
que a pessoa possa voltar a circular pela aldeia pintada por um grafismo previa- Cada um destes aspectos constitutivos do corpo Mebêngôkre possui uma
mente escolhido na sessão de pintura coletiva com os membros do mesmo sexo conotação específica, muito próxima daquela registrada por outros autores entre
e da mesma faixa de idade, tal como faziam os homens, velhos e novos, nas cenas os povos Jê do Brasil Central, mais especificamente entre os Timbira (DaMatta,
descritas acima. No início da vida, como nos momentos de proximidade da morte, 1976; Melatti, 1976; Carneiro da Cunha, 1978). Tanto para os Timbira como para
a pintura age sobre o corpo, protegendo-o, endurecendo-o, vedando a pele, tendo, os Mebêngôkre, o sangue é “entendido como algo que serve para sustentar o
enfim, ação profilática e terapêutica sobre ele, no sentido de figurá-lo e refigurá-lo corpo” (Carneiro da Cunha, 1978: 101). Se, para os Krahô, “um corpo sem san-
nos momentos em que a desfiguração está próxima. gue fica todo encolhido”, para os Mebêngôkre as pessoas com pouco sangue são
consideradas fracas. Isso porque o sangue é “um elemento considerado ‘duro’ e
deve ser mantido numa quantidade certa: se o indivíduo possui pouco sangue ele
pele, sangue e alma
fica mole (rérékre) e amarelo, se possui sangue demais ele fica preguiçoso” (Gian-
Certa vez, estava acompanhando os homens em uma caçada coletiva para a rea- nini, 1991: 148). A quantidade de sangue no corpo é um importante operador
lização da festa de ano-novo – cerimônia que os Mebêngôkre passaram a reali- na diferenciação de corpos segundo o gênero e a idade. Assim, velhos e crian-
zar depois do acirramento do contato com os não índios. Estávamos preparados ças possuem pouco sangue e são considerados fracos e moles (Gordon, 2006;
para ficar dez dias na mata, cada vez avançando mais floresta adentro, quando Giannini, 1991; DaMatta, 1976). As mulheres são, por sua vez, consideradas mais
no quinto dia soubemos que o cacique Akyabôro estava voltando à aldeia para lentas que os homens porque têm sangue em excesso. Os homens são considera-
acompanhar o parto de sua filha. Segundo notícias trazidas de lá, o parto havia dos preguiçosos (mykangare) quando acumulam sangue em demasia no corpo e
se complicado, e a esposa mandou chamar o cacique para o caso de acontecer sofrem constantemente escarificações para retornar à situação ideal de “balanço
alguma tragédia.7 Sem o chefe por perto, todos os guerreiros resolveram voltar sanguíneo” (Gordon, 2006: 318).
no dia seguinte. Durante a última noite no acampamento, um velho guerreiro me
contou como era o processo de produção do feto. Primeiro, 8 Esta narrativa é similar àquelas obtidas por Lux Vidal (1977), Vanessa Lea (1986, 1994), Isabel Giannini
(1991), Clarice Cohn (2000) e César Gordon (2006); seguindo um certo padrão Jê, ao menos em sua
porção setentrional, já evidenciada também por DaMatta (1976), Melatti (1976) e Carneiro da Cunha
7 Chegando à aldeia, soube que nada grave ocorrera durante o parto. (1978).

252 253
figurar e desfigurar o corpo andré demarchi

Outra característica do sangue compartilhada pelos Mebêngôkre com Outra importante característica das situações de resguardo é aquela que põe
os Timbira diz respeito ao fato de o sangue ser “o veículo e o suporte material em evidência a relação entre sangue e pele. A pele é justamente o que precisa
do karõ” (Gordon, 2006: 319). Como salienta Gordon, o balanço sanguíneo do ser violado para que o sangue exógeno penetre no corpo, provocando alteração
corpo visa controlar não apenas a quantidade do sangue, o que diferencia os e desequilíbrio. Entre os Mebêngôkre, seus etnógrafos são unânimes ao registrar
humanos entre si, mas também sua qualidade, o que diferencia os humanos dos o fato de que tanto doentes como recém-nascidos, e também pessoas em situa-
outros seres que habitam o mundo (animais, plantas, espíritos, inimigos). Por- ção de resguardo, têm a pele enfraquecida e mole (Vidal, 1992, 1977; Giannini,
tanto, sendo o sangue aquilo que transporta a alma, “o contato imediato com 1991; Gordon, 2006). Assim, um dos procedimentos necessários às situações de
sangue exógeno implica a absorção de um karõ exógeno resultando em doença resguardo ou de doença pouco comentado na literatura é justamente o restabe-
e eventualmente em morte” (Gordon, 2006: 319). O sangue é assim um elemento lecimento dessa fronteira existente entre o sangue e o mundo externo. A pala-
extremamente perigoso, e tanto no Brasil Central como “em muitas partes da vra para pele (ká) tem o sentido geral de “envoltório”, sendo utilizada para “casca
Amazônia, considera-se que o sangue derramado, e especialmente seu cheiro, de árvore”, “pele/couro de animal”, “roupa” e, em palavras compostas, “vestido”
tem um poder transformador sobre a experiência vivida” (Belaunde, 2006: 229). (kuben kà), “sapato” (pat kà ou pari kà) e “avião” (màt-kà, “envoltório de arara”),
Se o controle da quantidade de sangue no corpo visa a diferenciação de huma- por exemplo (Giannini, 1991: 152; Lea, 1986: 117; Coelho de Souza, 2002: 574). Entre
nos entre si (homens, mulheres, velhos, crianças), o controle de sua qualidade os Krahô, Carneiro da Cunha registra significados parecidos para o termo khö e
visa justamente não possibilitar a relação com agentes não humanos, o que se conclui realçando que todos “eles poderiam ser condensados na noção de ‘limite’
acontecesse ocasionaria a tão temida transformação. É por isso, e não por outro ou ‘fronteira’. (…) A pele é pois concebida como a ‘fronteira’ do organismo” (1978:
motivo, que todas as precauções relativas ao sangue evidenciam um interessante 107). Conclusão semelhante é defendida por Terence Turner quando define, para
a princípio enunciado por Carneiro da Cunha (1978) para os Krahô – e depois os Mebêngôkre, “a superfície do corpo como uma fronteira comum entre a socie-
generalizado por Belaunde em sua proposta de uma hematologia amazônica –, a dade, o self-social e o indivíduo psicobiológico” (1980: 112). Turner afirma que a
saber: sangues diferentes (de humanos e não humanos, por exemplo) não podem pintura corporal conforma uma segunda pele, social, que visa a socialização dos
ser misturados (Carneiro da Cunha, 1978: 103).9 poderes naturais presentes no interior do corpo. Destas características da pele
É neste sentido que, para os Krahô, tal como para os Mebêngôkre e os Apinajé entre os Mebêngôkre, gostaria de sublinhar sua capacidade de envolver o sangue
(DaMatta, 1976), as situações de resguardo visam justamente a tentativa de “res- do indivíduo, retendo tanto o sangue como a alma ao corpo.
tabelecimento do discreto”, isto é, de separar sangues diferentes que transportam A relação entre pele e sangue nas situações de resguardo foi explorada por
karõs também diferentes (Carneiro da Cunha, 1978: 106-7). Isso fica mais evidente Belaunde, em sua proposta de uma hematologia amazônica. A autora afirma que,
no resguardo do assassino, onde, segundo DaMatta, “o sangue indica precisamente “embora o sangramento seja em princípio definido como um atributo feminino,
a substância vital que foi tirada do morto e que contaminou o assassino” (1976: verter sangue, para ambos os gêneros, leva a uma mudança de pele/corpo” (2006:
86). Como veremos a seguir, todo o trabalho de resguardo entre os Mebêngôkre 217). Neste sentido, a autora aproxima as situações de resguardo aos momentos em
visa a retirar o sangue do morto do corpo do assassino, restabelecendo a qualidade que é necessário “trocar de pele” ou, em outras palavras, reconstituir o invólucro
correta do sangue. O sangue do pós-parto e da menstruação também são consi- pelo qual o sangue escapou ou penetrou. Quero sustentar neste trabalho que a
derados exógenos, não necessariamente pertencendo à pessoa que os expurgou. pintura corporal atua justamente na reconstituição dessa fronteira que é a pele,
Manuela Carneiro da Cunha retira daí uma importante conclusão comum à diver- possibilitando um processo que Caiuby (2006), apoiada nos escritos de Taussig
sas situações de reclusão: “Estar diretamente envolvido no derrame de sangue é (1999), denominou “figuração do corpo”. Tanto na infância como nos períodos de
expor-se a ser penetrado por ele” (1978: 106). resguardo é o trabalho de manipulação da pele através de tinturas específicas e de
grafismos também específicos que se processa a figuração do corpo no sentido de
9 Ou podem sê-lo somente em contextos excepcionais e em rituais que visam exatamente um processo dar forma a ele.
controlado de “alteração”, como no caso dos Kaxinawa e de outros grupos Pano que consomem o
coração e/ou os olhos da jiboia para incorporar suas capacidades agentivas, tornando-se parcialmente
Vejamos, primeiramente, como isso ocorre na infância, momento em que a pele
jiboia (Lagrou, 2008). da criança deve ser tacitamente preparada desde o nascimento para que seu corpo

254 255
figurar e desfigurar o corpo andré demarchi

suporte a beleza (e o perigo) dos nomes e dos nêkrêjx (bens cerimoniais), quando O urucu é aqui um importante agente na formação do corpo e sobretudo
reconectados a seus antigos donos durante as grandes cerimônias de nominação. da pele da criança. É a substância utilizada na primeira camada de tinta, espa-
lhada uniformemente por toda a superfície do corpo. Como me informou depois
nascimento, infância e nominação Mokuká, o urucu é importante neste momento para, em suas palavras, “não dei-
xar karõ (alma, espírito) sair”. É sabido, pelas etnografias de Vidal (1977) e Gian-
Quando chegamos à aldeia – depois da caçada coletiva interrompida pelo parto da nini (1991) que “desde a concepção o feto possui karõ. (…) Durante a gestação, o
filha do cacique –, manifestei minha vontade de acompanhar o nascimento de seu karõ da criança pode deixar seu corpo e brincar, perambulando pela aldeia e pelas
neto. Akyabôro desconversou e depois da minha insistência disse que ele também adjacências. Isto é considerado normal, pois o corpo ainda está fraco: tem pouco
não veria e que, aliás, homem nenhum poderia assistir ou mesmo estar próximo sangue, pouca carne, está mole”. (Giannini, 1991: 143; Crocker, 1986).13 Mokuká me
do lugar onde seria realizado o parto. Durante todo o trabalho de parto que durou explicou que o urucu agia no sentido de ser uma primeira forma de endurecer a
cerca de três horas, ele permaneceu sentado, imóvel, dentro de sua casa. Diante pele da criança, pois uma vez que ela havia nascido, o karõ deveria permanecer
da impossibilidade de acompanhar o evento, pedi à enfermeira da aldeia que me dentro do corpo: “Se karõ sair, fica fraco, pega doença e não vive, não.”14
fizesse um relato sobre o que ela tinha assistido. Ela disse que o parto é realizado Deve-se sublinhar, portanto, o caráter agentivo do urucu, no sentido de não
em um lugar afastado da casa e que o chão é coberto com folhas de palmeira. A permitir que o karõ saia do corpo. Ele age bloqueando a pele no sentido do inte-
mulher fica de cócoras e, por baixo dela, entre suas pernas, senta-se sua mãe ou rior para o exterior. A pele pintada de urucu atua como uma barreira para o karõ
uma parente próxima, para literalmente segurar o recém-nascido (rwýk nýre).10 do recém-nascido, e isso é fundamental no início do processo de maturação cor-
Outras mulheres próximas, geralmente irmãs e cunhadas, seguram os braços da poral, cujo primeiro objetivo é dar forma humana ao corpo (Vidal, 1977), figurá-lo
parturiente. Logo depois de nascer, o recém-nascido é embrulhado em um pano, aos moldes mebêngôkre. A pintura de urucu, seguida das massagens, pode ser
depois corta-se o cordão umbilical (na ocasião, segundo a enfermeira, esse proce- entendida como um primeiro esforço no sentido de humanizar a criança e endu-
dimento foi feito com uma lâmina de gilete). Em seguida, retira-se a placenta, que recer sua pele vedando a possibilidade de o karõ sair do corpo. Essa característica
é posteriormente enterrada. Enquanto isso, a criança recebe uma série de massa- específica do urucu pode ser realçada pelo fato de que assim como os Krahô, os
gens nas pernas, no tronco e na cabeça, feita pela avó no sentido de dar a primeira Mebêngôkre definem o urucu antes como tintura do que como pintura (Carneiro
forma humana a seu corpo. Essa massagem é feita com tintura de urucu, que vai da Cunha, 1978). O termo ‘ôk, que designa grafismo para os Mebêngôkre, não é
sendo espalhada pelo corpo do bebê enquanto as mãos da avó materna vão mode- utilizado para se referir ao urucu, sendo empregado apenas para os padrões rea-
lando a cabeça e os membros.11 Depois, a mãe também espalha urucu no corpo e lizados na pele com a tinta preta feita a base de jenipapo (m‘roti) e carvão (bàri
no rosto e toma um chá feito à base dessa substância para que estanque a hemor- pràn). O modo de aplicação do urucu é designado pela expressão genérica kumên
ragia do pós-parto.12
13 Entre os Bororo, “os bebês nascem com pouco sangue. Por esse motivo, seus espíritos estão conectados
de forma fraca a seus corpos, têm pouco conhecimento e podem facilmente ficar doentes e morrer”
10 Onde rwyk tem o sentido de “descer”, e nyre, de “recém”. Rwyk nyre, portanto, quer dizer literalmente (Crocker, 1986 apud Belaunde, 2006: 214).
“recém descido”.
14 Com a minha ingenuidade de etnógrafo iniciante, solicitei à enfermeira que, se tivesse oportunidade,
11 “Quando de um nascimento que pude observar, da oitava filha de um casal, não havia urucu guardado tirasse uma foto do momento recente do pós-parto. Quando a indaguei sobre a fotografia, ela me disse
na casa, e a avó paterna, que cuidava da criança logo após o parto (embora seja normalmente a avó que foi proibida não só de fotografar, mas de segurar a máquina fotográfica enquanto assistia ao parto.
materna que ajuda no parto e cuida do recém-nascido nas primeiras horas, sua nora não tinha mais As mulheres envolvidas na ação disseram terminantemente que a máquina podia capturar o karõ da
mãe), mostrou-se aborrecidíssima não só de ter que recorrer a outras casas para tingi-la com o urucu, criança naquele momento de extrema vulnerabilidade. Em outra ocasião, eu quis registrar a foto de
mas especialmente pela demora em fazê-lo. Reclamou que a criança já tinha nascido havia tempo uma mulher muito idosa. Quando empunhei a câmera, um de seus filhos veio em minha direção e
(e isso se dava em sua primeira hora de vida), mas que permanecia kà iaka, com a pele nua, sem ter entrou na minha frente, como que bloqueando o corpo da velha, cuja imagem seria capturada pela
passado o urucu” (Cohn, 2000: 145). minha fotografia. E era justamente isso que ele queria impedir, pois me disse que não podia fotografar
12 Vidal descreveu processo similar entre os Xikrin do Cateté, um subgrupo mebêngôkre: “[Depois do velhos porque, igualmente a como acontece com o recém-nascido, seu karõ poderia ser capturado.
parto] a mãe instalou-se sobre uma esteira e espalmou o rosto e o corpo com urucu. A avó também Não é à toa, portanto, que os Mebêngôkre chamam a fotografia também de karõ. Considera-se que
passou urucu no recém-nascido e, com a palma da mão esquentada sobre o fogo, massageou cons- a fotografia possa causar danos a pessoas que estão em situação muito vulnerável, recém-chegados à
tantemente a testa e o occipício da criança. A cabeça foi submetida a uma verdadeira modelagem e as vida, como as crianças que acabam de nascer e, mais próximos da morte, os velhos e as pessoas doen-
parentes se revezaram na operação” (1977: 88). tes ou de resguardo.

256 257
figurar e desfigurar o corpo andré demarchi

e pela expressão específica kunõ. Se a primeira expressa uma forma de aplicação dos. Em todos eles, o primeiro procedimento concedido ao corpo é marcado pela
genérica como na expressão me kumên, “pintar as pessoas com urucu”, a segunda aplicação de urucu na pele. Diante desse fato recorrente, pode-se estender o que
se aplica quando se quer pintar de urucu alguma parte específica do corpo, como disse Mokuká sobre o efeito do urucu sobre a pele do recém-nascido para essas
por exemplo nas expressões me kuka kunõ (“pintar o rosto inteiro [homogenea- outras ocasiões em que os corpos voltam a estar moles e fracos como o dos bebês.
mente] de vermelho”) e me pari kunõ (“pintar o pé de vermelho”). Trata-se, assim, de compreender o urucu como uma primeira ação no sentido de
Essas duas tintas mais utilizadas pelos Mebêngôkre são diferentes não apenas figurar (no caso do recém-nascido) ou de refigurar (no caso dos doentes e resguar-
no seu modo de aplicação sobre a pele, mas também no seu modo de produ- dados) o corpo, através da reconstituição imediata desse invólucro que configura a
ção. Enquanto o jenipapo é uma tintura crua, uma vez que a polpa de seu fruto pele. Não permitir que o próprio karõ saia do corpo parece ser um procedimento
é misturada diretamente ao carvão moído, o urucu pode ser considerado uma coerente quando se está em contato com sangues (e, portanto, karõ) exógenos.
tinta cozida. O longo processo de produção do urucu se inicia com a sua coleta e Outros efeitos parecem ter a pintura de jenipapo sobre a superfície do corpo.
depois com a separação das sementes, de onde será extraída a tinta vermelha. Em O bebê, por exemplo, só recebe uma primeira pintura com essa substância quando
seguida, colocam-se as sementes na água. Elas devem permanecer de molho por cai o cordão umbilical, ocasião em que já foi pintado de urucu, estando a pele já
um dia inteiro. De vez em quando, as mulheres espremem as sementes para soltar preparada para tal. Como veremos a seguir, o mesmo ocorre com outros corpos
a tinta. Depois, retiram o líquido vermelho, coando as sementes, que são pronta- em estados similares ao do recém-nascido.
mente dispensadas. O próximo passo é colocar o caldo em uma panela e levar ao Certa vez, conversando sobre esse assunto com Bepunu, ele me disse que a
fogo por cerca de quatro horas, até que se forme um líquido espesso. Esse processo primeira pintura recebida na vida de um Mebêngôkre era “toda preta, sem dese-
de cozimento faz com que reste apenas um terço da quantidade inicial do líquido. nho. Porque pintura com desenho é muito forte (àkre)”.15 Segundo ele, o corpo do
Feito isso, passa-se o líquido para um pedaço de pano, que tem a função de coador, recém-nascido não suportaria o grafismo: “Se fazer assim, com o kwýký (pincel),
e pendura-se esse pano numa árvore para que o restante do líquido escorra. Por vai ficar na pele a vida toda.” Repetidas vezes, quando conversávamos sobre este
fim, espreme-se o pano até que se obtenha uma massa dura e compacta. tema, Bepunu me disse que o grafismo de jenipapo era muito forte e que quando
Além de seu caráter eminentemente estético, quando cobre certas partes do aplicada em pessoas doentes demoraria muitos anos para sair, pois ultrapassaria a
corpo durante as cerimônias, eu gostaria de destacar o caráter terapêutico que o superfície mole do corpo, chegando ao seu interior. O mesmo parece ocorrer com
urucu possui em diversas ocasiões. Não sendo apenas expressivo, como queria o recém-nascido, por isso ele deve receber primeiramente um motivo neutro, sem
Vidal (1992), nem somente relacionado a certas partes do corpo (como a cabeça, o grafismo, feito com a mão. Sua condição liminar – ainda não sendo totalmente
rosto, os antebraços, as canelas e os pés) que estão mais próximas do contato com humano, tendo a pele mole, em fase de endurecimento – não permite que ele
a “natureza”, como aponta Turner (1980), sugiro que esta tintura tem conotações receba as pinturas consideradas bonitas (méjx), feitas com pincel muitas e muitas
de um poderoso “remédio”, utilizada não apenas para comunicar à sociedade cer- vezes durante a infância.
tas condições específicas do corpo, mas também para tratá-lo em determinados Um processo análogo a esse foi notado por Cohn (2000: 145) entre os Xikrin:
contextos. É por isso que o urucu é constantemente utilizado nos momentos de
doença, espalhado no rosto e por todo o corpo, tal como é feito com o recém-nas- Quando cai o cordão umbilical, ela [a criança] é pela primeira vez pintada com jeni-
cido, e também em forma de chá servido à parturiente no período do pós-parto. papo, com o motivo ibê, com os dedos. (…). Uma criança deve ser pintada com essa
técnica até que tenha a pele “dura”; de fato, os Xikrin sempre apontam para o absurdo
Além disso, à tintura de urucu são adicionadas outras plantas, consideradas pidjô
que seria a utilização do pincel na pele frágil (kà rérékre) de um recém-nascido.
(remédios), quando ela é aplicada em doentes, resguardados e recém-nascidos.
Aqui, tal como para os Apinajé, “a noção de processo é fundamental”, pois
15 Vidal já havia notado que, para os Xikrin, o recém-nascido era pintado com o motivo Tep ibe, “dese-
tanto “a criança é feita aos poucos” (DaMatta, 1976: 88) como também é aos poucos nho constituído de linhas paralelas, verticais ( ) aplicado a dedo [que] representa indiscriminada-
que o corpo dos doentes ou dos resguardados se recupera. Lux Vidal (1992) em seu mente a mancha do couro da anta nova, do veado novo ou do pequeno peixe” (1992: 161). Por outro
lado, Cohn (2000: 145) afirma que “quando cai o cordão umbilical, ela é pela primeira vez pintada com
trabalho precioso sobre a pintura corporal xikrin demonstrou a existência de uma jenipapo, com o motivo ibê ( ). No Bacajá, as pessoas dizem apenas ibê e explicam que esse nome se
estrutura pictórica recorrente nas peles de recém-nascidos, doentes e resguarda- refere ao modo como a pintura é aplicada, com os dedos”.

258 259
figurar e desfigurar o corpo andré demarchi

Essa passagem é bem representativa da forma como é entendida pela autora a A sequência de pinturas de jenipapo com grafismos que o bebê começa a
pintura corporal durante a infância. Segundo ela, a pintura é um importante mar- receber depois da pintura neutra, “toda preta”, age como um importante prepa-
cador temporal das fases vividas pela criança, através de sua presença constante na rador da pele da criança para o momento da transformação ritual em que terá
“transição vivida na infância”, quando a criança adquire uma autonomia relativa contato direto com agências não humanas. Trata-se do início de um processo
através da aquisição da habilidade de se movimentar sozinha (2000: 160). Embora paulatino de endurecimento da pele que visa, na verdade, o embelezamento, a
afirme que a criança “deva ser pintada com essa técnica [ibê, com os dedos] até que preparação para o ritual de nominação, em que os corpos das crianças nominadas
tenha a pele dura”, em momento algum ela se refere ao fato de ser justamente o ato devem suportar a máxima “beleza” (méjx) Mebêngôkre, quando são adornados
de pintar a pele com essa técnica, ou mais especificamente com essa tinta, que a faz com penas, cocares, colares de dentes, braceletes, braçadeiras, pulseiras, colares
endurecer. Seguindo os estudos de Turner (1980) e Vidal (1992), a autora interpreta de miçangas, máscaras de casca de ovo de azulão, penugens de periquito, dentre
a pintura corporal na infância segundo uma visão sociológica, de acordo com a outros adornos, geralmente adquiridos, roubados e produzidos através de rela-
qual as mudanças na sua “ornamentação” através da pintura e de outras técnicas ções de alteridade (com inimigos, seres animais, vegetais, sobrenaturais, espíritos;
corporais são vistas como etapas importantes na demarcação da identidade social enfim, não humanos).
da criança. Embora sejam empreendimentos diferentes, levando a resultados tam-
bém diferentes,16 os referidos trabalhos de Turner, Vidal e, consequentemente, o de
Cohn partilham um mesmo “vocabulário” sociológico, onde a ênfase recai sobre
o aspecto comunicacional e intrassocial da pintura corporal, não apenas como
importante classificador de indivíduos e grupos, mas também como uma forma
de socializar o corpo. Trata-se nestes estudos de decifrar uma linguagem: a pintura
e os demais adornos configuram um código social que deve ser interpretado pelo
antropólogo. No caso de Turner, a decifração dessa linguagem simbólica da pintura
se manifesta na ideia da “imposição de uma segunda pele, uma pele social, sobre
a pele biológica, nua do indivíduo. Esta segunda pele expressa simbolicamente a
socialização do corpo humano – a subordinação dos aspectos físicos da existência
individual aos valores e comportamentos sociais comuns” (1980: 34). Vidal, por
sua vez, afirma que “deve-se enfatizar a importância de se considerar a pintura cor-
poral como uma atividade em si, um meio de integração, controle e socialização, e
uma maneira de, a cada momento, construir e reproduzir os princípios básicos da
sociedade Kayapó” (1992: 146) “Imposição”, “integração”, “controle”, “comunicação”,
“socialização”, “significado”: é este o vocabulário comum aos trabalhos de Turner,
Vidal e Cohn. Sem querer questionar a importância das contribuições anterio-
res, gostaria de enfatizar outros sentidos da pintura corporal – mais voltados para
agência e eficácia – que parecem ter sido ofuscados pelo vocabulário sociológico
que marca a abordagem dos autores citados.

16 Grosso modo, Turner (1980, 1995) se atém a todo o processo de produção do corpo, incluindo os ador-
nos corporais, enquanto Vidal (1992) faz um trabalho mais minucioso no que diz respeito à própria
pintura corporal em si. Cohn (2000), por sua vez, está interessada na infância como período impor-
tante na constituição da identidade social da criança, demonstrando como na própria infância existe Figura 3: Meninas enfeitadas para a festa Menire Bjôk. Foto: André Demarchi.
uma sequência de pinturas que seguem o processo de crescimento da criança.

260 261
figurar e desfigurar o corpo andré demarchi

Outra característica que os Mebêngôkre compartilham com os demais Jê, cessual, da produção do parentesco no âmbito doméstico. Entretanto, enquanto
sobretudo com os Timbira, é o fato de os nomes serem apreendidos pelos xamãs no ritual o nome mostra sua face “alma”, visando a transformação devido a sua
de animais ou seres sobrenaturais (Vidal, 1977; Turner, 1995; Lea, 1986; Coelho reconexão com seus antigos donos, a pintura, neste contexto, reage a isso. Embora
de Souza, 2002; Gordon, 2006). Daí advêm a força, a potência e a beleza tanto de outros autores (como Vidal, 1992; e Giannini, 1991) tenham apontado para o que
nomes como de nêkrêjx. (Gordon, 2006: 318). Os rituais de nominação Mebên- poderíamos denominar a face “alma” da pintura, quando é usada no ritual como
gôkre são momentos em que ocorre “a ressubjetivação dos nomes bonitos [e parte das técnicas de transformação do corpo, quero realçar outra particularidade
também] de toda a parafernália cerimonial, tudo aquilo que é pensado como de seu uso nestes contextos. Sugiro que é ela a responsável por não permitir que
apropriação de outrem e que faz sua aparição no ritual. Neste contexto, eles estão as agências dos nêkrêjx colados ao corpo penetrem em seu interior, o que poderia
novamente reconectados a seus donos originais, voltam a ser animalizados e, por provocar a desfiguração máxima, que é a morte. Ela é assim parte importante dos
isso, tornam-se verdadeiramente bonitos (idem)”17. procedimentos que permitem que a criança suporte, no momento ritual, o lado
Os nomes e nêkrêjx são, portanto, altamente perigosos, e para recebê-los o “alma” do nome, sua reconexão (e à dos nêkrêjx) a seus antigos donos, uma vez
corpo deve estar devidamente preparado, com a pele endurecida pelas inúmeras que reforça ou mesmo constitui essa fronteira que é a pele.
camadas de grafismos recebidas pelas crianças durante a infância. A pintura cor- Em contraste com o urucu, que quando adicionado à pele prende o karõ no
poral de jenipapo age assim como um importante protetor da pele, acostumando corpo, o jenipapo age no sentido contrário, bloqueando a possibilidade de outros
a criança para que no contexto ritual seu corpo possa suportar o “peso” agentivo karõ (ou do karõ de outros) penetrarem em seu interior. Isso ocorre no contexto do
dos nomes e não seja violado pelas substâncias perigosas presentes nos nêkrêjx. É ritual,18 onde os corpos, além de adornados, têm sua pele longamente preparada
importante notar que no contexto do ritual as crianças, tal como os adultos, têm através de elaborados grafismos, mas também no cotidiano, quando as mulheres
a pele cuidadosamente pintada com grafismos e que é justamente sobre ela que passam boa parte do seu tempo livre pintando as peles de suas crianças.
serão postos os nêkrêjx. O uso de grafismos de jenipapo parece ter realmente um valor, não apenas
Além disso, Coelho de Souza tem apontado para a face mais especificamente estético, mas também profilático, como destacou pioneiramente Lea: “Os espíritos
“pele” do nome, no sentido de que este “veste” a pessoa. dos mortos [mekarõ] temem a tinta preta de jenipapo” (1994: 97).19 O grafismo
Esse aspecto do nome, sugiro, corresponde à objetificação das relações que consti- possui esse mesmo valor profilático quando cobre os corpos dos participantes dos
tuem a pessoa como parente e, assim, às transações entre cruzados e paralelos, nomi- rituais, e a isso se deve a importante noção de contágio existente entre os Mebên-
nadores e genitores, mentores e propagadores, bem como maternos e paternos (…) gôkre. Como vimos acima, o contato corporal com certos elementos animais pode
Mas o nome é também sob outros aspectos ‘alma’, ele sobrevive à morte e está ligado causar sérios danos à saúde, que são acentuados quando o contato ocorre através
ao ritual e a seus personagens (2002: 573). do sangue, pois na hematologia mebêngôkre o contato com sangues de outros
Minha hipótese sugere que no cotidiano, quando as mulheres da aldeia pin- implica necessariamente a possibilidade de absorção de um outro karõ (Gordon,
tam os seus filhos, maridos, sobrinhos e netos, elas compartilham com eles uma 2006: 319). Contudo, não é apenas o sangue o único veículo do karõ. Certas partes
substância a mais do que os fluidos corporais necessários para a reprodução dos de animais, como as peles, as penas, os dentes, ou representações zoomórficas
grupos domésticos (Melatti, 1976; DaMatta, 1976); compartilham a tintura de jeni- deles, como as máscaras, também podem transmitir karõ e provocar doenças atra-
papo que reage na pele em forma de grafismo, produzindo parentesco. Neste sen- vés de outras formas de contágio que não ocorrem pelo sangue. Em relação às
tido, os grafismos possuem uma face comum à dos nomes. As sessões de pintura máscaras, a própria visão delas pode acarretar sérios danos à saúde de crianças e
corporal seriam, numa chave sociológica, a própria concretização cotidiana, pro-
18 Contexto em que “até os espíritos descarnados mekarõ, os mortos mebêngôkre, voltam à aldeia”
17 “Certamente, essa ‘animalização ritual’ visa no fim das contas à distinção entre humanos (Mebêngôkre) (Gordon, 2006: 324).
e animais, e entre Mebêngôkre e kuben [branco, inimigo, indivíduo de outro grupo indígena ou de 19 E não apenas ela, outra substância utilizada para combater a possibilidade de penetração dos mekarõ
outra natureza que não a humana] – afinal o ritual está ali para contar como, justamente, os animais (e no corpo da criança durante os rituais é a resina ráp, que possui um cheiro forte e é aplicada em forma
kuben) foram os ‘donos’ desses itens no tempo pretérito, tendo-os perdido para os Mebêngôkre, seus de grafismos diagonais nas duas extremidades da parte raspada do couro cabeludo que compõe o
‘donos’ no tempo presente” (Gordon, 2006: 323). corte de cabelo mebêngôkre.

262 263
figurar e desfigurar o corpo andré demarchi

mulheres.20 E é para proteger o corpo da agência dessa outra pele, do envoltório de o contato com as penas e outros agentes relacionados aos animais como no sen-
um outro, que os homens só vestem a máscara com a pele devidamente pintada. tido de bloquear seu corpo, não permitindo sua contaminação quando esse con-
As penas, por sua vez, também possuem agência significativa entre os Mebên- tato efetivamente ocorre no cotidiano e, sobretudo, no ritual. O que estaria em
gôkre. Giannini registra que, durante o resguardo por homicídio, os homens dan- jogo, então, não seria somente a afirmação da identidade social da criança, mas
çavam com ornamentos feitos de cipó batido, para somente depois, ao fim do res- a afirmação e a reafirmação contínuas do próprio fato de que o corpo da criança
guardo, quando o corpo já estivesse novamente reconstituído, se ornamentarem suporta os nêkrêjx e os suportará por ocasião do ritual de nominação, sem perigo
com artefatos plumários (1991: 172). Neste sentido, ela destaca que a plumária é de contágio e, consequentemente, de doença e morte.
utilizada gradativamente durante a infância, devido ao seu alto teor de agência, A partir dessa hipótese, torna-se possível repensar outro fato constante na
resultante do fato de as aves serem “criação dos heróis mitológicos”, sendo os arte- etnografia de Vidal (1992) e, posteriormente, incorporado por Cohn (2000; 2009)
fatos plumários, portanto, “os últimos elementos a serem simbolicamente incor- em seu estudo sobre a infância Mebêngôkre. Trata-se da conclusão das autoras
porados”. Em relação ao uso de penas durante a infância, ela registra que de que “a criança é um agente passivo, pintada por sua mãe de acordo com sua
crianças que ainda não andam (...) não podem tocar ou manipular penas, pois isto
[da mãe] escolha de momento e motivos” (Cohn, 2000: 136). Na leitura de Vidal
causar-lhes-ia a morte. Somente depois de andar, quando já tem o corpo “duro”, a (1992: 174), “as crianças são agentes passivos que, deitados na esteira e meio ador-
criança poderá suportar os artefatos plumários e bem mais tarde (aos 8 ou 10 anos) é mecidos, ficam submetidos à carícia constante e regular do pincel materno”. Gos-
que poderá ser ornamentada com ovo de azulona na face. (Giannini, 1992: 173). taria de chamar atenção aqui para o lento processo de preparação da superfície do
corpo da criança, que exige dela também uma ação, ou melhor, uma reação corpo-
Essa dimensão processual, como vimos acima, foi destacada por Cohn (2000;
ral. Torna-se possível diferenciar então duas formas de agência: uma passiva que
2009) em sua pesquisa sobre a infância entre os Mebêngôkre. Neste mesmo traba-
se observa no comportamento da criança durante as sessões de pintura, algo que é
lho, a autora interpreta o fato de que as mães submetem as crianças, esporadica-
também um aprendizado; e outra, ativa, que corresponde a uma agência corporal,
mente, a uma pesada ornamentação – prerrogativa a que somente elas têm direito
pois a pele da criança precisa reagir às camadas de tinta que conformam os grafis-
– como uma “forma de afirmar e reafirmar continuamente” sua identidade social,
mos durante o lento trabalho da pintora. Neste segundo caso, e nos termos pro-
de modo a fazer conhecer aos demais membros da comunidade seus bens cerimo-
postos por Gell (1998), pode-se pensar a pele da criança como um “paciente”, pois
niais (2009: 25). Contudo, pode-se interpretar este fato de modo diverso quando
reage à agência da pintura. Neste sentido, a criança pode ser vista tanto como um
se nota que as mães só começam a fazer essa ornamentação quando a criança já é
“agente passivo” (tal como salientado pelas autoras) quanto como um “paciente
relativamente autônoma (já fica em pé e anda sozinha), ou seja, quando sua pele já
foi paulatinamente endurecida pelos grafismos que recebera de quinze em quinze ativo”, isto é, “another ‘potencial’ agent, capable of acting as an agent or being a locus
dias até aquele momento de seu desenvolvimento corporal. É somente depois of agency” (Gell, 1998: 22).
disso que as crianças são adornadas com nêkrêjx. Estes, por sua vez, como bem A importância mencionada acima de produzir a pele da criança para que rea-
notou Giannini, estão referidos à categoria das aves. Segundo a autora, o “termo gindo à pintura ela possa receber penas (ou enfeites que contenham penas) encon-
não pode ser empregado para máscaras, braçadeiras, franjas e hastes. Quanto a tra ressonância mitológica na história de Àkti, o Grande Gavião.
enfeites, colares, braçadeiras, cocares, cintos, chocalhos, eles serão considerados Antigamente, os índios eram mansos, fracos e não tinham armas. Eles viviam à mercê
riquezas Xikrin (nekrei) se possuírem penas de aves” (1991: 96). de Àkti, o gavião gigante, que os caçava, carregava-os pelo céu até seu ninho e os
Sugiro que além de demarcar a identidade social da criança, concedendo devorava. Um dia, uma mulher velha foi ao mato com seus dois sobrinhos (netos)
visualidade às suas prerrogativas rituais, a ornamentação esporádica torna visível pequenos para tirar palmito. Ali ela foi atacada por Àkti diante dos meninos, que
fugiram aterrorizados para a aldeia. O pai (ou tio) dos meninos (irmão da mulher
o processo de produção da pele da criança tanto no sentido de prepará-la para devorada pelo grande gavião), movido pelo sentimento de vingança, descobre um
meio de liquidar o monstro, transformando seus sobrinhos em super-homens. Ele
20 Durante a festa de nominação Kokô, quando os Mebêngôkre confeccionam as perigosas máscaras coloca os meninos dentro de um grotão, alimentando-os com beiju, banana e tubér-
Pát (tamanduá bandeira), as cômicas máscaras kubut (macaco prego) e kukôire (macaco guariba), e
as misteriosas máscaras Kokô, os homens se retiram da aldeia para a mata para produzi-las, porque
culos para que cresçam bastante e fiquem fortes. Passam-se os dias, e é como se os
mulheres e crianças não podem vê-las, muito menos tocá-las ou vesti-las. meninos fermentassem dentro d’água. Depois de um tempo, eles haviam crescido e

264 265
figurar e desfigurar o corpo andré demarchi

se tornado enormes, mais fortes e capazes que qualquer índio. Caçavam antas e outros grande predador e matá-lo, mas também inventar a plumária, a riqueza máxima
animais grandes como se elas fossem pequenos roedores. Um dia, então, Kukry-uire e mebêngôkre (e todos os perigos que ela implica), os meninos são submetidos a um
Kukry-Kakrô saem para caçar Àkti munidos de borduna, lança e um apito de taquara,
período de reclusão, durante o qual são alimentados por uma dieta específica e têm
armas feitas pelo tio. Ergueram um abrigo de palha no chão, de onde se via o ninho do
gavião. Ao pé da árvore havia uma pilha de restos humanos, como ossos e cabelos. Os sua pele tratada com substâncias também específicas: um procedimento comum
irmãos atraíram Àkti soprando o apito. A imensa ave descia pronta para o ataque, mas entre os Mebêngôkre nos momentos em que os corpos estão mais vulneráveis às
eles escondiam-se no abrigo, deixando-a desnorteada. Fizeram assim muitas vezes, agências não humanas. Seja em situações cujo objetivo é o enfrentamento direto
deixando o pássaro cada vez mais furioso e desorientado, até que mostrou sinais de com o inimigo, como no caso dos meninos heróis mitológicos, das expedições
cansaço. Os irmãos, então, mataram-no com lança e borduna. Como troféu tiraram
as penas de Àkti e puseram na cabeça. Cantaram. Celebraram. Depois depenaram a guerreiras, das caçadas coletivas e da iniciação masculina; seja em contextos em
ave e retalharam-na em pedaços pequenos. Sopraram as penas, e elas foram trans- que é necessário se resguardar ao máximo de qualquer possibilidade de contato
formando-se em pássaro. As penas maiores deram origem às aves maiores (gavião, com não humanos, como no caso dos momentos de resguardo por nascimento do
urubu, arara); as plumas menores, aos pequenos pássaros, como o beija-flor (Gordon, primogênito, por luto, por homicídio ou, ainda, por doença.
2006: 213-214).
Gostaria de me ater agora a estes contextos, para perceber a agência da pin-
Além de evidenciar, nas palavras de Gordon (2006), uma “inflexão perspec- tura nestes momentos de vulnerabilidade e sua relação com as substâncias e os
tivista” mebêngôkre, este mito reencena o processo que venho descrevendo aqui, limites do corpo Mebêngôkre.
feito e refeito pelas mães e avós em seus filhos e netos durante a infância, visando
a um momento ápice em que o corpo, depois de longamente produzido, deve ser resguardo e luto
testado. Todos estes procedimentos corporais visam, por um lado, à figuração do A morte é dura.
corpo humano e, por outro, à preparação dele para o momento em que será refi- Ainda mais dura é a tristeza.
gurado pela transformação ritual. Visam, no mesmo sentido, a produzir o “ator (Provérbio dos índios Fox)
social ordinário”, o “parente”, mas também o “agente”, aquele que pode se transfor-
mar no ritual (Turner, 1995; Coelho de Souza, 2002; Gordon, 2006). Durante minha pesquisa de campo, presenciei o funeral de uma criança de pouco
Parece-me que é justamente este último processo que está evidenciado no mais de seis meses de idade e o posterior luto obedecido pela família. Recordo
mito de Àkti. Para se tornarem agentes, os heróis (que no mito são meninos) rece- que fiquei extremamente impressionado, como outros pesquisadores dos Jê, com
bem uma dieta especial à base de bananas, beiju e tubérculos. Em outra versão a violência manifestada pelos parentes quando expressam sua dor depois da perda
desta narrativa, coletada por Vidal (1977: 225), pode-se ler que, além de à dieta, os de um ente querido. Já havia me impressionado quando presenciei o choro ritual
corpos dos garotos foram submetidos a um tratamento na pele, à base de urucu e realizado no encontro de dois parentes que não se veem há muito tempo, mas
coco, depois de serem limpos “da sujeira e do melado do peixe” com talhas de pal- nada comparado às ações de autoagressão multiplicadas durante o funeral. Trans-
meiras, as mesmas utilizadas pelas mulheres na pintura corporal. Essa preparação crevo aqui um trecho do diário de campo escrito alguns dias depois destes acon-
do corpo visa ao seu aumento e ao seu fortalecimento para um momento especial tecimentos marcantes:
de enfrentamento do inimigo. O interessante é que não só a preparação, mas o
Quando estávamos prestes a almoçar, eu e a enfermeira, ouvimos o barulho do avião
próprio rito está contido no mito. Depois de matarem o grande gavião, os heróis que traria o corpo da criança. Era por volta de duas da tarde, e eu não imaginava tudo
roubam-lhe as penas, colocam na cabeça, dançam e celebram. Apoderam-se da que iria enfrentar durante o resto do dia. Quando o avião pousou, uma multidão de
beleza do inimigo, suas penas, e rapidamente as colocam para circular no sistema crianças invadiu a pista. Rapidamente, o pai, acompanhado da mãe, saiu do avião
cerimonial mebêngôkre como sua principal riqueza. com o corpo da criança nos braços, enrolado em um manto azul-escuro, e seguiu
em cortejo fúnebre pela pista de pouso. A tristeza era geral e absoluta. Estando um
O mito de Àkti, além de demonstrar a passagem dos Mebêngôkre de pre-
pouco atrás do pai da criança momentos antes de ele entrar em sua casa, pude ouvir
sas a predadores, de fracos (rérékre) a fortes (týxt), de mansos (uabô) a bravos – no momento em que ele adentrou pela porta – o estalar dos corpos dos parentes se
(àkre) (Gordon, 2006), assinala justamente o processo necessário para atingir tal debatendo no chão. Todos se machucando muito, se jogando no chão, esmurrando
objetivo. Para que se tornem heróis mitológicos e possam não apenas enfrentar o o próprio rosto, cortando a própria cabeça com facão. A dor em toda casa era lanci-

266 267
figurar e desfigurar o corpo andré demarchi

nante. E era tudo muito tumultuado com pessoas se autoagredindo e outras tentando de desfiguração realizado através dos atos de violência empreendidos no próprio
evitar que as outras se machucassem. O corpo da criança foi sendo passado de mãos corpo, além do processo de refiguração realizado durante o luto.
em mãos entre os parentes próximos, todos eles se agredindo muito enquanto segura-
Em sua etnografia imagética a respeito do funeral Bororo, Caiuby afirma que
vam o bebê no colo. Por fim, o corpo chegou aos braços da avó materna, sem dúvida
a mulher mais alterada do funeral. Depois de chorar muito e de discursar em nome “é preciso figurar bem aquilo que será desfigurado”; por isso, ocorre todo o traba-
do neto, ela se acalmou por um tempo, despindo-o e colocando-o de bruços em seu lho de embelezamento do morto, para que com o enterro se inicie o processo de
colo para que uma outra mulher, da mesma classe de idade dela, pintasse o corpo do desfiguração (2006: 290). Mas e os parentes próximos? A eles me parece ocorrer
bebê. Aquela cena que vi muitas vezes no cotidiano da aldeia era agora encenada pela o contrário. No caso dos Mebêngôkre, é preciso desfigurar bem aquilo que será
última vez naquele corpo, envolta em uma névoa de tristeza e desconsolo. Enquanto
refigurado. É este processo que o luto desencadeia: a refiguração de corpos dilace-
a criança ia sendo lenta e cuidadosamente pintada com o grafismo do jabuti (kapran
ôk), um silêncio cortante caía sobre a aldeia. As mulheres conversavam sussurrando, rados pela dor. Tudo se passa como se para figurar pela última vez o morto, todos
e de vez em quando o silêncio era quebrado por um pranto forte de algum parente se os seus parentes próximos devessem se desfigurar, arranhar a superfície do corpo,
debatendo no chão. Assim foi durante toda a pintura, que durou cerca de duas horas. agredi-la através de socos e golpes de facão, destruí-la parcialmente se debatendo
Quando terminou, a avó, ajudada pela irmã da mãe, foi enfeitando lentamente o no chão. É como se, para pintar pela última vez a pele do morto, sacrificassem a
bebê. Primeiro, com um grosso colar de miçanga azul e amarelo (obikaniere). Depois,
própria pele, que não voltará a ser pintada por um longo período.
os brincos e as braçadeiras, seguidos das pulseiras, tornozeleiras, dos cintos e brincos,
todos feitos com miçangas. Dois shorts completavam a vestimenta da criança. Por Demonstrei acima como após o nascimento a criança tem primeiro seu corpo
fim, a avó cortou com gilete o cabelo do neto, à moda mebêngôkre, e depois raspou- tratado com urucu, cuja ação na pele do recém-nascido visa justamente prender o
lhe as sobrancelhas, arrancou-lhe os cílios e passou-lhe óleo de babaçu nos cabelos, karõ ao corpo no momento em que o bebê ainda não está preparado para supor-
enrolando-o num manto azul. Enquanto a criança era enfeitada, a mãe separou seus tá-lo. Já o jenipapo, como vimos também, age na preparação da pele durante toda
pertences, como roupas, fraldas, colchão, coisas de higiene pessoal, sua rede, roupas
a infância, no sentido de endurecê-la, bloqueando o corpo da possibilidade de
de cama, travesseiro, enfeites, tudo que seria sepultado em conjunto com o corpo.
Terminada a arrumação da criança, houve um novo surto de crises de autoagressão, penetração de karõ exógeno. Gostaria de estender essa hipótese para os casos de
com praticamente todos os parentes próximos da criança se debatendo no chão. E luto e resguardo por homicídio entendidos aqui, seguindo a sugestão de Belaunde,
tudo foi muito rápido. Quando vi, um dos tios maternos saía da casa com a criança como momentos de “troca de pele” (2006: 228), momentos que exigem um traba-
no colo. Fui atrás, junto com a enfermeira. Quando chegamos ao cemitério, o corpo lho específico sobre a superfície do corpo, seja no sentido de refigurá-lo, seja no
estava sendo colocado em um caixão doado pela FUNASA,21 que logo foi depositado
sentido de, posteriormente, protegê-lo.
na cova retangular, junto com os pertences. Depois cobriram o buraco com um col-
chão, posteriormente encoberto com lona e terra. Outra lona foi finalmente colocada No período de luto, que durou pouco mais de um mês, os pais da criança, e
por cima do monte de terra. Depois do sepultamento, voltamos à casa dos pais, que também seus avós e tios maternos e paternos, permaneceram em casa, comendo
estava praticamente destruída. Já era noite, e os parentes próximos ao morto estavam uma dieta específica à base de batata doce, inhame e banana, não saindo nem
deitados em esteiras e colchões depositados no chão do que restara da casa. Estavam para tomar banho no rio, o que era feito na torneira localizada do lado de fora
com os corpos muito machucados e com os rostos inchados de murros e lágrimas.
da casa. Alguns dias após o funeral, Mokuká me contou que na cultura deles “era
Eu estava muito cansado, completamente sujo e com a roupa rasgada. Sentei num
toco do lado de fora da casa, acendi um cigarro e, ouvindo os murmúrios de dor dos assim mesmo. Ninguém pode sair. O corpo tá fraco, fica mole de novo. Fica kanet
parentes, não pude conter as lágrimas. (Diário de campo, cinco de fevereiro de 2010) (doente)”. O perigo de ter o corpo mole é agravado pelo fato de sua superfície estar
dilacerada, coberta de feridas e hematomas causados durante o funeral.
Um ano e meio após esses acontecimentos, com o distanciamento necessário O luto para os Mebêngôkre, diferentemente do que é para os Krahô, é tam-
para voltar novamente aos fatos, gostaria de destacar o processo de desfiguração bém um momento de derramamento de sangue. Carneiro da Cunha registra que
que a morte de uma pessoa desencadeia, neste caso não no próprio moribundo para os primeiros o luto difere das outras ocasiões de resguardo porque “não
(Caiuby, 2006), mas nos corpos dos seus parentes próximos. Sem tempo nem supõe nenhuma restrição alimentar, pois não é um resguardo de sangue” (1978: 54,
espaço para analisar todo o funeral neste artigo, quero enfatizar esse processo grifo da autora). O mesmo não ocorre entre os Mebêngôkre: tal como nos outros
contextos de resguardo, os pais da criança morta observaram séria restrição ali-
21 Fundação Nacional de Saúde. mentar e permaneceram sem sair de casa por um longo período. Se, como afirma

268 269
figurar e desfigurar o corpo andré demarchi

Mokuká, os parentes não podem sair de casa, isto ocorre porque, tanto como os Processo semelhante pode ser observado durante o resguardo dos guerrei-
humanos, os mortos sentem saudade (aumá) e retornam constantemente para ros que cometeram homicídios. Dizem os Mebêngôkre que, quando um homem
tentar levar consigo, para a aldeia dos mortos, os parentes próximos. A saudade comete assassinato, o contato com o sangue do morto faz com que o karõ deste
destes, por outro lado, faz com que suas almas fiquem vulneráveis ao movimento penetre no corpo do assassino. Todo o trabalho de resguardo dos guerreiros visa
de exteriorização e desprendimento do corpo, e queiram se juntar novamente ao a retirar o karõ do morto de seu corpo, através da expurgação e da secagem do
parente morto, correndo o risco de que venham a se instalar com ele na aldeia sangue por meio de escarificações e banhos de sol, e também com aplicações de
dos mortos. Esse poder de atração pela saudade que o mekarõ do morto exerce urucu e jenipapo, banhos de ervas e dieta específica. No relato coletado por Gian-
sobre seus parentes é extremamente perigoso. É por isso que os enlutados devem nini após um ataque coletivo que ocasionou a morte de um homem Araweté, um
ser isolados do convívio social. Devem permanecer em casa, espaço que, tal como matador descreve todo o processo:
o corpo, precisa ser paulatinamente reconstituído como que numa metáfora da
Quando matamos Kubenkamrit não podíamos comer nada. Fomos para acampa-
própria reconstituição do envoltório dos corpos que ali habitam. mento no mato (…) e fomos banhar no rio e esfregar forte no corpo folhas do mato
Durante o luto, a aplicação do urucu só começou a ser realizada uma semana que só velho sabe. Depois pintou de urucu e carvão. Não pode comer nada, só depois
após o sepultamento, tempo necessário para as feridas curarem minimamente de pintado é que pode comer carne de jabuti branco: tá duro. O veado e outra caça,
através dos banhos de ervas tomados pelo casal. Marido e esposa permanecem não pode: tá mole. (...) Não pode falar com elas [mulheres e crianças], não pode olhar
senão ficam amarelas e morrem. Ao chegar na aldeia tem que buscar pedras, tem
durante um período de aproximadamente duas semanas se pintando esporadi-
que cobrir o chão do ngob [casa dos homens] e ficar sentado em cima. (…) Tem que
camente com urucu, como que reconstituindo a pele, fazendo permanecer seu ficar no sol, em cima das pedras, primeiro de frente, depois de costas. (…). Os velhos
próprio karõ no corpo, e preparando-a para a pintura de jenipapo que viria em fazem escarificação com dentes de aruanã. Os velhos e homens casados com filhos
seguida. Na última semana do luto, quando começaram a esboçar os primeiros são escarificados na frente, os rapazes atrás. Agora fica sentado secando o sangue no
movimentos para fora da casa, tanto o pai como a mãe cortaram o cabelo à moda sol. Não pode dormir, se dormir não acorda mais. De noite vai banhar no rio. Faz isto
durante vários dias. Depois vai banhar de tarde, volta e dança, usa só enfeite de cipó.
Kayapó e pintaram corpo e rosto com a tintura negra de jenipapo que conforma Depois que secou bem o sangue, os homens se pintam no ngob com jenipapo, todo de
o motivo me týk. preto. Vai dançar e depois pode ir para casa (1991: 149-150; grifo meu).

A aplicação do urucu visa permitir que o guerreiro ingira carne de um animal


específico que só pode ser consumido depois que a pele estiver devidamente pin-
tada. Ao utilizar a expressão “tá duro”, acredito que o “guerreiro” se refira ao fato
de seu próprio corpo já estar duro o suficiente, depois dos banhos de ervas e da
pintura com urucu, para comer a carne de jabuti, estando ainda mole para comer
a carne de veado e outras caças. Não se trata, assim, de a carne do jabuti ser con-
siderada dura (Giannini, 1991: 151), mas do próprio fato de que, para comer essa
carne, o corpo deve estar minimamente preparado. Sem esse primeiro endureci-
mento, sem essa proteção mínima, possivelmente, o corpo já debilitado seria total-
mente ocupado pelo karõ do morto, provocando a temida desorganização interna.
O jenipapo, por sua vez, é utilizado somente depois de o sangue ter secado, no
momento em que o resguardo está chegando ao fim, quando estão retornando às
atividades cotidianas. O motivo é o mesmo aplicado no fim do luto, no corpo do
recém-nascido e no de sua mãe e de seu pai: me tyk, “todo preto”.
Essa passagem do urucu ao jenipapo nos períodos de resguardo já havia cha-
Figura 4: Rapaz com pintura me tyk. Foto: André Demarchi. mado a atenção de Vidal (1992), que, como notei acima, foi a primeira a revelar a

270 271
figurar e desfigurar o corpo andré demarchi

existência de uma estrutura pictórica recorrente nestes contextos, atualizada pela 2000) como uma forma de comunicar à sociedade o retorno dos pais, sobretudo
pintura de urucu no início do período e pela pintura de jenipapo com o padrão a volta do pai à esfera pública e cerimonial traduzida aqui pela “casa dos homens”.
me tyk (todo preto), realizada em seu fim. Vidal interpreta o uso das duas tinturas Contudo, sua utilização parece comunicar algo mais ou, em outras palavras, sua
nestes momentos afirmando que “a pintura de jenipapo é essencialmente informa- utilização visa a comunicação com alguém a mais que os humanos. Ela parece
tiva, comparando-a com a tintura de urucu, que teria conotações mais expressivas, apontar para um momento em que o corpo já não está tão frágil quanto esteve
e está fortemente relacionada ao processo de socialização e controle social” (1992: logo nos primeiros dias do resguardo, quando a pessoa deve permanecer em casa,
174). Essa afirmação me parece importante ao diferenciar as duas tinturas mais uti- mas também ainda não se encontra totalmente protegida para que volte a circular
lizadas pelos Kayapó nos termos de seus significados. Mas, pensando em termos pelas esferas não domésticas sem a devida proteção. Aqui talvez seja mais produ-
de agência, pode-se resgatar o aspecto profilático, terapêutico e regenerativo da tivo seguir a sugestão de Ewart (2000) para os Panará de não falar em “periferia”
pintura, a partir do qual o urucu e o jenipapo, embora diferentes em cor e função, nem em “centro”, de opor o doméstico, não ao “cerimonial” ou ao “público”, mas
seriam acionados em dois momentos de um só processo de refiguração que parece à esfera do não doméstico. Em outras palavras, ao âmbito do não humano, dos
dizer respeito aos cuidados com o corpo, no sentido de restabelecer suas fronteiras mekarõ (espíritos) que perambulam pelas roças, pelas matas, pelo rio e, em oca-
nos momentos de resguardo, doença, luto, restrições pós-guerra, preparação pré e siões rituais, pela casa dos homens e pelas casas da aldeia, e cujo perigo a tintura
pós-ritual, quando os corpos estão mais vulneráveis à agência não humana. Estes negra de jenipapo busca combater.
seriam momentos em que, como afirma Cohn, “a pintura atua como marcador É importante registrar, neste sentido, uma afirmação de Lévi-Strauss sobre os
temporal das etapas internas aos momentos de transição” (2009: 26). Seguindo a Bororo, resgatada por Carneiro da Cunha em seu trabalho sobre a morte entre os
hipótese trilhada até aqui, sugiro que essas tinturas vegetais agem na refiguração Krahô. Segundo o antropólogo francês, registra a autora,
paulatina do corpo e na sua proteção nesse momento de vulnerabilidade. Neste os Bororo acreditam que a cor preta torna invisível aos mortos. Um Krahô por sua
sentido, é preciso ressaltar, como o faz Giannini (1991: 172), a importância do ele- vez afirmou-nos que os mekarõ têm medo do preto; por isso, o assassino passa car-
mento vegetal no processo de reconstituição do ser que possui sua configuração vão no corpo inteiro enquanto dure o seu resguardo, para que o karõ de sua vítima,
interna desordenada. Dos banhos de ervas, passando pelas aplicações de urucu assustado, se afaste. Assim, também, por ocasião de diversos rituais, aqueles que estão
mais vulneráveis aos ataques dos mekarõ traçam por precaução riscos pretos no canto
até a primeira pintura de jenipapo, o corpo vai sendo refigurado e a pele vai sendo da boca e no peito (1978: 117, grifo meu).
novamente endurecida, protegendo o indivíduo dos perigos que envolvem tanto
as situações de resguardo como a quebra das restrições impostas por ele. Essa passagem exemplifica com clareza a hipótese defendida até aqui. Trata-
Analisando os momentos de troca de pele em várias sociedades amazônicas, se mesmo de um uso da pintura naquelas pessoas que estão “mais vulneráveis aos
Belaunde afirma a existência de uma ideia recorrente: “Enquanto estão ‘trocando ataques dos mekarõ”. Neste sentido, os Mebêngôkre parecem estar mais próximos
de pele/corpo’, homens e mulheres ficam suscetíveis a passar por uma transforma- dos Krahô do que dos Bororo, mas, diferentemente dos dois, elaboraram outra
ção descontrolada que os transformaria em outros e os alienaria de seus parentes. forma, embora com a mesma cor preta, para afastar os espíritos. Pintam-se todos
Na pior das possibilidades, essa alienação os mataria” (2006: 229). de negro quando consideram seu corpo ainda fraco, com a pele, a fronteira do
Entre os Mebêngôkre, a “troca de pele”, ou sua completa refiguração, só se corpo, ainda não totalmente dura para voltar aos espaços não domésticos sem a
concretiza quando, de volta às atividades cotidianas, as pessoas que estavam de possibilidade de ser violada.
resguardo têm seu corpo pintado por um padrão que denominam ‘ok mejx (pin- Essas ideias permitem chegar a duas possíveis conclusões a respeito do uso
tura bonita), escolhido e aplicado coletivamente por pessoas do mesmo gênero e dessa pintura específica neste momento preciso. Primeiro, ela prepara o corpo do
da mesma faixa etária. Contudo, antes da refiguração completa, como que para indivíduo para receber a “pintura bonita”. No caso do luto, ela é o último estágio
ir testando o corpo, os resguardados (assim como o recém-nascido) são pinta- da refiguração do corpo que esse momento de troca de pele exige. Depois dele,
dos com o motivo me tyk. Como vimos, ele sinaliza o fim do resguardo, quando os corpos podem voltar a suportar o modo belo (méjx) e correto (kumrem) de se
o indivíduo volta a desempenhar as tarefas cotidianas. Não foi em vão que ele apresentar (Vidal, 1992). Segundo, o motivo me týk bloqueia a pele e protege o
foi interpretado por vários autores (Vidal, 1977, 1992; Verswijver, 1992; Cohn, corpo exatamente no período em que o indivíduo retoma suas tarefas cotidianas

272 273
figurar e desfigurar o corpo andré demarchi

e passa a estar novamente exposto aos riscos de, quando estiver caçando na flo- referências bibliográficas
resta ou plantando na roça, encontrar pela frente um mekarõ ou ser contaminado
BELAUNDE, Luisa Elvira. “A força dos pensamentos, o fedor do sangue. Hematologia e
pelo sangue de algum animal. Para que isso não aconteça, é preciso fixar uma
gênero na Amazônia”. In: Revista de Antropologia. São Paulo, USP, v. 48, n. 1, 2006.
forma homogênea, toda preta, na superfície do corpo, para que suas fronteiras
BOAS, Frans. El arte primitiva. Cidade do México: Fondo de Cultura Econômica, 1947.
sejam vedadas.
CAIUBY, Sylvia. “Funerais entre os Bororo. Imagens da refiguração do mundo”. In: Revista
O corpo, como vimos anteriormente, é fluido, e vários elementos escapam de Antropologia. São Paulo, USP, v. 49, n. 1, 2006.
dele, como a alma e o sangue, e outros podem nele penetrar, como a alma e o CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Os mortos e os outros. São Paulo: Hucitec, 1978.
sangue de outros seres. O trabalho das mulheres Mebêngôkre é dar forma a uma COHN, Clarice. “A criança indígena: a concepção Xikrin da infância e do aprendizado”.
superfície corporal, fixar nela um conjunto de linhas, com o objetivo de formar Dissertação de mestrado, São Paulo, USP, 2000.
a figura do corpo. Poucos são os corpos que suportam, para usar uma expressão ______. “A ornamentação corporal das crianças mebengôkré xikrin”. Trabalho apresen-
de Lagrou (2007), a fluidez da forma, a desorganização gráfica. Para encerrar este tado no 33º Encontro Anual da Anpocs, GT: Do ponto de vista das crianças. Caxambu,
capítulo, gostaria de retornar a eles. Anpocs, 2009.
Trata-se dos corpos dos homens, dos “guerreiros”, como gostam de dizer os COELHO DE SOUZA, Marcela. O traço e o círculo: o conceito de parentesco entre os Jê e seus
antropólogos. Rio de Janeiro: Museu Nacional de Antropologia/UFRJ, 2002.
habitantes de Môxkarakô; daqueles que tiveram que testar constantemente as
DAMATTA, Roberto. Um mundo dividido: estrutura social dos índios Apinayé. Petrópolis:
superfícies de seus corpos, destruindo casas de maribondo, fazendo escarifica-
Vozes, 1976.
ções, queimando a testa ou os braços com brasa, passando a noite dentro da água.
DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: lógica da sensação. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
Somente eles podem suportar a desfiguração gráfica da pele, através da aplicação
EWART, Elizabeth. Living with each other: selves and alters amongst the Panará of Central
de traços aleatórios sobre o corpo, sem a figuração que a ação geométrica do pin- Brazil. Tese de doutorado, London School of Economics, Londres, 2000.
cel e do dedo proporcionam. GALLOIS, Dominique. “Apresentação”. In: VELTHEM, Lúcia Hussak van. O belo é a fera:
O grafismo kran a mehn ‘ôk, o “dripping selvagem”, como o denominei, cons- A estética da produção e da predação entre os Wayana. Lisboa: Museu Nacional de
titui-se de “marcas livres involuntárias (...), traços assignificantes desprovidos de Etnologia; Assírio & Alvim, 2003.
função ilustrativa ou narrativa” (Deleuze, 2007: 14). Como vimos, o único sig- GELL, Alfred. Art and agency. An anthropological theory. Oxford: Clarendon Press, 1998.
nificado dado a este motivo – que ele seria a “pintura da chuva” – foi feito em GIANNINI, Vidal Isabelle. A ave resgatada: a impossibilidade da leveza do ser. São Paulo,
tom de piada, uma livre interpretação realizada para acalentar o ouvido atento dissertação de mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (USP),
1991.
do antropólogo. Sugeri anteriormente que ele deve ser considerado antes como
GORDON, César. Economia selvagem: mercadoria e ritual entre os índios Xikrin-Mebên-
uma performance. Aquele acontecimento na casa dos homens foi um ritual de
gôkre. São Paulo: Ed. Unesp, ISA; Rio de Janeiro: Nuti. 2006.
afirmação, ou mesmo uma visualização ritualística da capacidade de aqueles cor-
GOW, Peter. “Visual compulsion: design and image in Western Amazonian art”. In: Revindi,
pos suportarem tal desorganização gráfica. E não apenas no sentido sociológico p. 19-32, 1988.
estrito, como uma afirmação da força ou do status dos mais jovens diante dos LAGROU, Els. A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica.
mais velhos, mas também, à la Lévi-Strauss, no sentido de uma “sociologia das Rio de Janeiro: Topbooks, 2008.
fisiologias”, em que a assimetria ostensiva do padrão conforma e confirma a qua- ______. Arte indígena no Brasil: agência, alteridade e relação. Belo Horizonte, C/Arte edi-
lidade dura do corpo, um dos atributos centrais do guerreiro mebêngôkre. Não tora, 2009.
é por acaso, portanto, que mulheres e crianças nunca se pintam desta maneira. ______. “Le graphisme sur les corps amérindiens. Des chimères abstraites ?”. In: Gradhiva.
Talvez porque seu corpo não suporte tamanha falta de simetria. A exclusividade Paris, n. 13, n. s., 2011.
masculina deste antimotivo é a própria confirmação de que o longo processo de LEA, Vanessa. “Nomes e nekrets Kayapó: uma concepção de riqueza.” Tese de doutorado,
Rio de Janeiro, UFRJ, Museu Nacional, 1986.
figuração e endurecimento do corpo e de suas fronteiras foi bem-sucedido, atin-
______. “Gênero Feminino Mebêngôkre (Kayapó): desvelando representações desgastadas”.
gindo seu auge na própria desfiguração gráfica.
In: Caderno Pagu, Campinas, n.3, 1994.

274 275
figurar e desfigurar o corpo

______. “Desnaturalizando gênero na sociedade Mebêngôkre”. In: Revista Estudos Femi-


nistas, Porto Alegre, v. 7, n. 1, 2000.
Tambor e espaço virtual no xamanismo cacasse1
______. “O corpo como suporte para geometria”. In: FERREIRA, Mariana K. Leal (Org.). Charles Stépanoff
Ideias Matemáticas de Povos Culturalmente Distintos. São Paulo: Centro Mari da USP/
Editora Global/FAPESP, 2002.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
LUKESH, Anton. Mito e Vida dos índios Cayapós. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1976.
MELATTI, Julio Cezar. “Nominadores e genitores: um aspecto do dualismo krahó”. In:
SCHADEN, E. Leituras de etnologia brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
p. 139-148, 1976.
RIBEIRO, Berta. Suma Etnológica Brasileira III: arte índia. Petrópolis: Vozes, 1980.
SEEGER, Anthony; DA MATTA, Roberto; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “A Construção
da Pessoa nas Sociedades Indígenas Brasileiras”. In: Boletim do Museu Nacional de Antes do período soviético, a maioria dos xamãs das populações autóctones da
Antropologia, 1979. Ásia setentrional utilizava tambores para acompanhar musicalmente seus cânti-
TAUSSIG, Michel. Defacement. Public secrecy and the labor of negative. Stanford: Stanford cos rituais. Esses tambores têm um lado aberto e um lado fechado por uma mem-
University Press, 1999. brana, ornamentada em certas populações com desenhos compostos por várias
TURNER, Terence. “The social skin”. In: CHERFAS, J.; LEWIN, R. Not work alone: a cross-cul- dezenas de figuras coloridas.
tural study of activities superfluous to survival. Londres: Temple Smith, p. 111-140, 1980. Os estudos etnológicos dessas imagens enigmáticas foram geralmente ins-
______. “Social body and embodied subject: bodiliness, subjectivity, and sociality among pirados por um método que podemos qualificar de semiótico e cosmográfico. S.
the Kayapó”. In: Cultural Anthropology, 10, 1995.
Ivanov (1954, 1955), V. Diószegi ([1978] 1998), Lot-Falck & Diószegi (1973) e E. Lot-
VELTHEM, Lúcia Hussak van. O belo é a fera. A estética da produção e da predação entre os
Falck (1961) procuraram identificar a significação original de cada figura e integrá
Wayana. Lisboa: Museu Nacional de Etnologia, Assírio & Alvim, 2003.
-la à “visão de mundo” compartilhada pela população da qual o instrumento era
VERSWIJVER, Gustaf. The club fighters of Amazon: warfare among the Kayapó indians of
Central Brazil. Gent: Rijksuniversiteir te Gent, 1992.
originário. Diószegi tenta assim trazer à luz o “pano de fundo ideológico” que as
figuras “refletem” ([1978] 1998: 251). Da mesma forma, Basilov considera que os
VIDAL, Lux. Morte e vida de uma sociedade indígena brasileira: os Kayapó-Xikrin do rio
Cateté. São Paulo: Editora Hucitec/Editora da Universidade de São Paulo, 1992. desenhos “refletem as representações sobre o mundo circundante e os espíritos”
______. “A pintura corporal e a arte gráfica entre os Kayapó-Xikrin do Cateté”. In: VIDAL, (1984: 87). L. Potapov estima que, “mediante a linguagem dos desenhos, espécie de
L. (org.). Grafismo indígena. Estudos de antropologia estética. São Paulo: EDUSP/ escrita pictográfica, os postulados teológicos do xamanismo altai eram refletidos
FAPESP/Studio Nobel, p. 143-189, 1992. na superfície da membrana do tambor” (1991: 193).
Essa abordagem choca-se com diversas dificuldades a partir do momento
que observamos que os tambores jamais fornecem uma representação completa
do panteão da população. Não raro variando frequentemente de um xamã para
outro, eles ignoram as principais divindades e às vezes representam figuras que
os próprios xamãs têm dificuldade em identificar. A leitura cosmográfica tende
a reduzir os desenhos a uma representação icônica de uma representação mental

1 Esta pesquisa nasceu de conversas estimulantes com Carlo Severi, a quem tenho a satisfação de expri-
mir aqui minha profunda gratidão por seus conselhos e apoio constantes. O texto foi traduzido para o
português por André Telles, com revisão técnica por Els Lagrou.
Os dados apresentados aqui puderam ser complementados graças a uma temporada na região de
Minussinsk em março de 2011, financiada pelo projeto de pesquisa ANR “Anthropologie de l’art: créa-
tion, rituel, mémoire”, dirigido por Carlo Severi.

276 277
tambor e espaço virtual no xamanismo cacasse charles stépanoff

do mundo, as relações entre os níveis pictórico e mental sendo presumidos trans- serve de moldura mental para a ação. É o que nos levará a propor uma abordagem
parentes. Ao fazê-lo, ela destaca desenhos tanto dos instrumentos sobre os quais “sensório-motora” das imagens. É na motricidade que corpo e espaço se coorde-
eles foram pintados como de seu contexto prático de uso para associá-los a uma nam, e ela é sempre acompanhada de um envolvimento dos sentidos (Berthoz,
hipotética ideologia coletiva. É incontestável que os desenhos apresentam relações 1997; Warnier, 1999). Nossa hipótese é que imagens desenhadas como as dos tam-
com certas representações mentais referentes ao mundo; no entanto, a metáfora bores podem acoplar-se a esquemas sensório-motores convencionais.
do “reflexo” utilizada pela maioria dos autores está longe de oferecer uma explica- Nossa base serão os tambores cacasses, que estão entre os mais ricamente
ção satisfatória para a natureza dessas relações. decorados e mais bem documentados. Os Cacasses, antigamente denominados
As indicações dos próprios xamãs com respeito ao papel dos desenhos sobre Tártaros de Minussinsk, são um povo turcófono que reúne vários grupos, os
seus tambores não foram levadas a sério nos estudos especializados, provavel- Kačin, os Beltir, os Kyzyl, os Sagaj e os Kojbal. Vivem no vale do alto Iénisséï nos
mente porque não se coadunam com a função expressiva que lhes é conferida. entrefortes setentrionais das montanhas Saïan. Os Cacasses foram formalmente
Os xamãs não parecem considerar que os desenhos transmitem uma mensagem, cristianizados a partir do século XIX, sem que a Igreja conseguisse fazer recuar
afirmando antes que as imagens os ajudam a “se orientar em sua viagem”, a “avan- sensivelmente as práticas xamânicas. A fabricação dos tambores cessou na época
çar” – no caso dos Cacasses (Potapov, 1981: 134-135), a “se orientar nos países obs- das sangrentas repressões soviéticas dos anos 1930. Os xamãs que reapareceram
curos” (nos Evenks, Ivanov, 1954: 177). Ora, o que é “orientar-se” senão estabele- após a queda da União Soviética não conhecem o uso antigo dos tambores, que
cer uma coordenação cognitiva e sensorial particular entre seu próprio corpo e o eles não puderam observar, de maneira que essa tradição deve ser considerada
espaço circundante? As indicações dos usuários dos tambores sugerem assim que extinta nos dias de hoje.
os desenhos poderiam ser esclarecidos à luz das relações entre corpo e espaço, no
contexto particular da ação ritual. os tambores cacasses
O que está em jogo aqui, para retomar os termos de Carlo Severi, é passar
“de uma tipologia das representações à identificação de uma lógica das relações Ivanov recenseou 50 tambores cacasses portando desenhos legíveis nas coleções
representada pela imagem no seio de uma tradição”. (Severi, 2011: 11). A análise dos museus russos (1955: 178), o que constitui um bom corpus de imagens. No
realizada por Severi (Severi, 2007) dos desenhos utilizados nas tradições xamâni- total, cerca de 1.500 figuras se deixam reconhecer nesses tambores.
cas ameríndias mostra que, embora se trate claramente de pictografias, seu papel Comentários detalhados de xamãs explicando os desenhos foram notados
nem por isso é o de “representar” de maneira semiótica uma doutrina teológica. entre o fim do século XIX e meados do XX pelos etnólogos cacasses N. Katanov
Esses desenhos constituem antes uma “arte da memória” dedicada ao desempe- (1897, 1907b, 2000) e V. Butanaev (2006), e pelos russos D. Klemenc (1890), L.
nho ritual. Com efeito, sua organização espacial está em relação estreita com a Potapov (1981) e Ivanov (1955).
estrutura sequencial dos cantos rituais que eles ajudam a memorizar. O essencial, O tambor (tüür) era o principal instrumento dos xamãs cacasses. Uma pessoa
portanto, é “a relação que se estabelece entre uma iconografia relativamente está- reconhecida como detendo qualidades de xamã assumia sua função por ocasião
vel e um uso rigorosamente estruturado da fala ritual, entre iconografia organi- do ritual de animação de seu tambor, especialmente fabricado para ela por seus
zada em forma paralelista e memorização” (Severi, 2007: 198). próximos. O tambor supostamente servia de montaria para o xamã durante suas
Está claro que a compreensão dos desenhos siberianos não progredirá a não viagens através do universo e acontecia de ser cavalgado por ele (ver Figura 10).
ser que busquemos examinar seu papel no contexto ritual. Entretanto, essas ima- De forma redonda, os tambores cacasses têm um diâmetro de 70cm ou mais.
gens não se deixam ler como uma pictografia ameríndia: elas não têm ordem de A moldura cilíndrica do tambor, em madeira de salgueiro, é atravessada por uma
leitura e, acompanhadas por numerosos e variados cantos, são de pouca ajuda na alça vertical de bétula, perfurada de ponta a ponta por orifícios triangulares. É por
memorização do conteúdo de um canto. A ordem da fala não parece então ser o esses orifícios que, ao chamado do xamã, os espíritos são tidos por entrarem no
ponto de ancoragem principal das imagens no ritual, ou pelo menos não o único. tambor, saindo do outro lado após a sessão xamânica (Klemenc, 1890: 25). Uma
No ritual siberiano, os gestos do xamã contribuem tanto, se não mais, que haste metálica na qual estão pendurados sinos, penduricalhos metálicos e fitas
seus cânticos para evocar, no âmago da cena ritual, o espaço não ordinário que atravessa horizontalmente a alça.

278 279
tambor e espaço virtual no xamanismo cacasse charles stépanoff

A membrana é feita de uma pele de animal: muar, cervídeo ou camurça. O


percussor (orba) é em madeira de veado-vermelho, coberto de pele e adornado
com fitas.
A face externa da membrana é coberta por desenhos, sobressaindo-se três
cores: preto, vermelho e branco. Na composição mais frequente, o círculo do tam-
bor é dividido por uma faixa horizontal percorrida por zigue-zagues triangulares
e colocada um pouco mais alto que o diâmetro (Figura 2). Se compararmos faces
interna e externa, perceberemos que a faixa se situa aproximadamente no nível da
trave metálica no interior do tambor (Figura 1). A faixa pode ser comentada pelos
xamãs como representando as camadas superpostas da terra, os zigue-zagues às
vezes correspondendo às montanhas (Katanov, 2000: 371). O grande setor ao pé
da faixa está associado aos meios terrestre, aquático e subterrâneo, ao passo que o
pequeno setor superior corresponde ao meio celeste. O setor superior é fechado
por um arco que acompanha a borda do tambor e é igualmente percorrido por
zigue-zagues que os xamãs identificam como um arco-íris.
Os desenhos que preenchem esses setores bebem num repertório comum de
figuras recorrentes, algumas das quais em posições bastante estáveis na composi-
ção, enquanto outras são mais móveis.
Figura 2: Tambor cacasse, face externa. Museu Etnográfico Russo, no 8.761-8.301.

Figura 1: Tambor cacasse, face interna (Beltir, Atlas Sibiri (1961), prancha 20). Figura 3: Composição dominante dos desenhos cacasses. (Ivanov, 1955: 185).

280 281
tambor e espaço virtual no xamanismo cacasse charles stépanoff

O setor superior inclui vários cavaleiros: frequentemente um cavaleiro branco


sobre um cavalo branco, dirigindo-se a Kudaj, um cavaleiro vermelho sobre um
cavalo vermelho, armado com um arco. Este último representa o espírito “Senhor-
Canhoto” (Han Solagaj) ou um serviçal “dirigindo-se” à casa desse senhor. Segundo
os cânticos que os xamãs lhe endereçam, sabemos que ele é o filho do imperador
da China e que habita em país sojan, isto é, tuva. Nas proximidades dos cavaleiros,
acha-se desenhado um cervídeo, um íbex ou um cavalo: essa figura representa o
animal cuja pele foi utilizada na confecção da membrana do tambor. Indica que
a alma (čula) do animal está presente no tambor e que, portanto, este está vivo
(Ivanov, 1955: 202; Butanaev, 2006: 97).

setor inferior

No setor inferior do tambor encontram-se diferentes cavaleiros, cavalos e pedestres


negros, globalmente considerados serviçais e emissários de Erlik Khan, o senhor
do mundo inferior onde permanecem os defuntos (Katanov, 2000: 371). Entre eles
figura um cavaleiro, Tuma-o-Negro (kara-tuma), protetor dos cavalos pretos. Nas
invocações que lhe são dirigidas, ele é descrito como um “mongol negro” (kara
mool), procedente da Mongólia, atravessando o país shor com uma serpente negra
como rebenque (Butanaev, 2006: 60; Ivanov, 1955: 204). Não surpreende que esse
“mongol” seja encarregado de proteger o gado contra as doenças (Tužnov, 1902).
Bem embaixo, mais à direita e ao centro, nas proximidades das raízes das
árvores, distinguimos ursos, rãs, serpentes, lagartos, peixes, todos pretos. Rã, ser-
pente e lagarto são súditos do “senhor amarelo dos carneiros” (kojdyn saryg yzygy)
(Katanov, 1907, vol. II: 552). Podem, além disso, levar o xamã à casa de Erlik. Eles
Figura 4: Tambor cacasse (sagai). Arquivo, Museu de Minussinsk, Ivanov, 1955: 197). são solicitados especialmente para curar doenças das pernas ou doenças femini-
nas. Os lúcios curam as doenças abdominais e a hidropisia.
setor superior Outros elementos importantes parecem poder situar-se indiferentemente no
setor superior ou inferior. Por exemplo, podemos encontrar duas bétulas no alto
O topo do setor superior é ocupado por astros: o sol, a lua, as “Três Corças”, isto ou embaixo, mas quase sempre dispostas na parte direita do tambor. Segundo os
é, a constelação Órion, a Estrela Vespertina (Ir Solbany) e a Estrela Matutina (Tan xamãs, elas servem para “subir ao céu”.
Solbany), a Grande Ursa (Čedigen). Esses astros situam-se supostamente “sob” a Encontramos frequentemente nos tambores cacasses uma série de persona-
morada de Kudaj, o deus celestial criador, que não é representado. Sob os astros gens se dando as mãos. São as “7 meninas da montanha” ou “7 meninas amarelas”,
figuram pássaros, duas águias pretas, um cuco, às vezes pássaros brancos, geral- às vezes acompanhadas por “9 meninos pretos”. Esses filhos de espíritos senhores
mente situados do lado direito do tambor, junto ao topo de uma ou duas árvores. de montanhas exercem um papel de intermediários nas negociações do xamã com
Nos teleutas vizinhos, os pássaros são até mesmo colocados precisamente sobre o senhor de montanha. Por fim, como em outras regiões no l’Altaï-Saïan, o xamã
essas árvores situadas à direita. A função dos pássaros é ajudar os xamãs a viaja- por sua vez é frequentemente representado entre os desenhos. Pode estar armado
rem para o céu e a cuidarem das doenças dos olhos. com um arco ou ser reconhecido pelo tambor que tem nas mãos.

282 283
tambor e espaço virtual no xamanismo cacasse charles stépanoff

oposições genéricas
Essa disposição geral é encontrada sob uma forma mais simples num modelo de
tambor barabin do século XVIII (Figura 5). Em razão de sua simplicidade e sua anti-
guidade, podemos considerar o tambor barabin como uma Urform da qual deriva-
ram não apenas as composições cacasses modernas, como também as de povos tur-
cos tártaros aparentados como os teleutas e os shors (cf. Diószegi & Lot-Falck, 1973).
O tambor barabin e os tambores cacasses são atravessados por linhas de ten-
são de grande estabilidade. Entre a parte superior e a inferior opõem-se o celestial
e o terreno, o seco e o úmido, o claro e o escuro. A indicação, por parte dos xamãs
cacasses, das doenças nas quais algumas figuras representadas são especialistas
sugere uma correspondência entre o corpo humano e a composição do desenho.
Os pássaros, na parte superior, são associados à cabeça, enquanto os animais do
setor inferior são especializados no ventre e nas pernas.
Segundo o xamã kačin Roman, durante o ritual de animação do tambor, o
Figura 5: tambor dos turcos barabin (Sibéria ocidental), manuscrito novo xamã ouve o espírito da montanha Kara-tag dizer-lhe: “Cuidarás das pes-
de D.G. Messerschmidt, século XVIII (Ivanov, 1979: 140).
soas; cuide das doenças puras com o yzyk [protetor] dos cavalos e das doenças
impuras com o yzyk dos carneiros, lagartos e outros auxiliares” (Potapov, 1981:
133). As doenças “puras”, relativas à parte superior do corpo, ficam então sob a
responsabilidade dos espíritos-senhores dos cavalos, cavaleiros representados nas
partes mediana e superior do tambor, ao passo que as doenças impuras, situadas
na parte de baixo do corpo, mais particularmente as doenças ginecológicas, são da
esfera do senhor dos carneiros, associado aos batráquios e répteis da parte inferior
do tambor. Logo, há uma correspondência entre a verticalidade do tambor e a do
corpo humano, estabelecida por intermédio da ordem espacial da paisagem e de
seus habitantes representados na membrana.
Embora a organização vertical dos tambores seja bem conhecida, a possibi-
lidade de uma ordem perpendicular das figuras, segundo o eixo horizontal, não
foi cogitada. Ivanov observou que as árvores situam-se geralmente na parte direita
do tambor, sem todavia conseguir explicar tal regularidade (ibid.: 215). No lado
oposto das árvores situam-se os cavaleiros, ocupando a borda esquerda e esten-
dendo-se para o centro.
A oposição diametral entre o cavaleiro à esquerda e a árvore à direita é de
uma força e estabilidade impressionantes. Podemos distingui-la nitidamente no
tambor barabin do século XVIII, bem como nos tambores modernos dos teleutas
e dos altais do sul. Decerto não é um acaso o fato de os contrastes entre o animal
e o vegetal, movimento e imobilidade, acharem-se rigidamente associados à opo-
Figura 6: tambor cacasse. Museu de Antropologia e Etnografia, sição esquerda-direita, embora nenhum comentário de xamã forneça explicação
São Petersburgo, no 2.390-1 (Oppitz, 2007).
para isso. As coisas, no entanto, se esclarecem se relacionarmos essas figuras com

284 285
tambor e espaço virtual no xamanismo cacasse charles stépanoff

os gestos dos xamãs ao longo do ritual. Em sua mão esquerda, o xamã segura a
alça do tambor, que é feita de madeira de bétula, precisamente a árvore represen-
tada na borda direita. Com a mão direita, agita seu percussor, designado como
“rebenque” (hymčy). Nas técnicas de montaria turco-mongólica, é efetivamente
com a mão direita que o chicote é empunhado. Ao lado direito do xamã estão
assim associados o movimento e a montaria, e ao lado esquerdo, a estabilidade e
a madeira de bétula. Essa distribuição das tarefas das mãos é universal no xama-
nismo turco-mongol da Sibéria: constata-se que ela é suficiente para estabilizar o
posicionamento dos cavaleiros e das árvores nos tambores.
No início de seus rituais, os xamãs do Altai-Saian permanecem por um
momento diante do fogo, a cabeça dentro do aro do tambor, batendo ligeiramente
na membrana (Figuras 7 e 8). À medida que os espíritos invocados se apresentam, o
xamã bate e canta mais forte, até que se levanta, marcando assim o início de sua “via-
gem” com seus auxiliares. Quando está com a cabeça dentro do tambor, ele vê apare-
cerem os desenhos à contraluz, iluminados pelo fogo. Com efeito, as membranas dos
tambores são esticadas numa pele bem limpa, absolutamente transparente (Figura
9). Do ponto de vista do oficiante, como do ponto de vista dos presentes, a parte
direita do tambor associa-se claramente ao seu braço esquerdo, e a parte esquerda,
ao seu braço direito. É certamente esse paralelismo entre lateralidade do tambor e Figura 7: Um xamã altai invoca seus espíritos com a cabeça dentro do tambor (Radloff, 1884).

lateralidade do corpo do xamã que explica o posicionamento estável das árvores e


dos cavaleiros respectivamente à direita e à esquerda no tambor visto do exterior.
É possível observar outra regularidade impressionante no eixo esquerda-
direita: em quase todos os tambores, as figuras desenhadas estão voltadas para a
direita da moldura vista do exterior. Só podemos explicar esse fato se levarmos em
consideração a função de montaria atribuída ao tambor e, consequentemente, ao
animal que forneceu a pele para a confecção da membrana. Quando o xamã está
projetado em sua “viagem”, acontece-lhe de instalar o tambor entre as pernas e
cavalgá-lo (Figura 10). Como o tambor é sempre segurado com a mão esquerda, a
membrana se vê então escorada em sua perna direita. A parte direita do desenho
posiciona-se na frente, com relação ao xamã, e a parte esquerda, atrás. Tudo leva
a crer que, se os personagens estão voltados para a direita, e em primeiro lugar a
figura representando o animal cuja pele é utilizada, é a fim de avançar na mesma
direção que o xamã. Essa hipótese é confirmada por outro detalhe bastante revela-
dor: a pele é esticada sobre a moldura de maneira que o sentido do pelo fique em
coerência com a direção seguida pelas figuras que serão desenhadas em seguida
(Ivanov, 1955: 180). Isso significa que a frente do animal deve ficar do lado direito
do tambor, e a traseira, do lado esquerdo, de maneira que o animal olhe na mesma
Figura 8: Um xamã cacasse diante do fogo. Fotografia Olsen, 1914. Biblioteca Nacional da Noruega.
direção que o xamã quando este o cavalga.

286 287
tambor e espaço virtual no xamanismo cacasse charles stépanoff

A disposição das figuras no eixo esquerda-direita é então estruturada por


dois conjuntos de evocações. De um lado a ordem das figuras está em relação
de projeção com a lateralização funcional do corpo do xamã. Nos vizinhos altais
dos cacasses, a associação do tambor com o corpo xamânico é particularmente
explícita, uma vez que um grande xamã ancestral organiza o conjunto da compo-
sição (Figura 11). A superposição do corpo xamânico e do tambor também apa-
rece perfeitamente no petróglifo de Oglahty, na região cacasse (Figura 12). Essa
projeção aparece quando o tambor fica paralelo à linha dos ombros do xamã, isto
é, quando ele bate suavemente no tambor. Mas a orientação individual das figuras
para a direita remete a outra posição clássica, quando o tambor exerce a função
de montaria pelo xamã e se acha perpendicular ao eixo dos ombros. Portanto,
ele não é mais um duplo, mas um cavalo companheiro. Identificação paralela e
complementaridade perpendicular não estão em contradição: elas correspondem
às duas posições extremas do tambor entre as quais o xamã vai e vem ao longo de
um ritual numa alternância de pausas e excitação.
Figura 9: Tambor cacasse visto do interior. Museu de Minussinsk. À contraluz, as figuras
aparecem em transparência: do ponto de vista do xamã, a árvore está
à sua esquerda (embaixo), e o cavaleiro, à sua direita (no alto).

Figura 10: Xamã cacasse cavalgando seu tambor. Fotografia S.D. Majnagašev, Figura 11: tambor altai (Anohin, 1924, 58). A árvore está
início do século XX. Kunstkamera, no 2410-78. do lado do braço esquerdo do personagem.

288 289
tambor e espaço virtual no xamanismo cacasse charles stépanoff

A yurt e o tambor são dois círculos orientados; num plano horizontal, no


primeiro caso, e num plano vertical, no segundo. Nos povos nômades da Ásia
setentrional, a mudança constante de sítio concreto de hábitat é compensada por
princípios abstratos extremamente estáveis de orientação e organização do espaço
doméstico. Quando, ao longo do século XIX, os cacasses abandonaram as yurts de
feltro por yurts de madeira octogonais, conservaram, não obstante, sua distribui-
ção espacial.
A terminologia distingue na yurt quatro grandes zonas: a porta (izik), o canto
de honra (tör), o canto norte (altynzaryh) e o canto sul (üstünsary). A porta é
orientada de maneira turca para o levante, que é chamado “diante” (isker) em
cacasse moderno, como acontecia no turco antigo. No centro da yurt está insta-
lada a fogueira, e sobre ela um buraco de fumaça no teto. Do outro lado do fogo,
no lado oposto ao da porta, estende-se o canto de honra, tör, onde fica instalado o
leito dos senhores. Diante do leito, instalam-se os anciãos e os hóspedes de honra,
com a face voltada para leste. É o ponto de vista dessas pessoas que determina as
concepções do espaço interior. À sua direita, estende-se a parte pura e mascu-
lina, denominada em cacasse “parte sul”, üstünsaryh, termo derivado de üstüü,
“alto”. A parte oposta, feminina e impura, é denominada “parte norte”, altynzaryh,
Figura 12: petróglifo de Oglahty, Kyzlasov & Leont’ev (1980). É possível identificar a coifa típica dos termo derivado de alty, “baixo”. Nas paredes meridionais estão acomodados os
xamãs cacasses. A trave metálica com seus penduricalhos funde-se com o braço do personagem.
Como é tradicional, a árvore figura do lado do braço esquerdo do xamã. instrumentos masculinos: o fuzil no sudoeste e os arreios dos cavalos no sudeste
próximo à porta. Ao longo das paredes setentrionais estendem-se os instrumen-
tos das mulheres, armários de louça e utensílios de cozinha (Katanov, 1897: 23,
os espíritos na yurt
nota 1) (Figura 13). O conjunto espacial da yurt se acha estruturado por dois eixos
Algumas observações dos xamãs cacasses parecem indicar que existem corres- perpendiculares, o eixo leste-oeste, que opõe os caçulas aos mais velhos, e o eixo
pondências entre a ordem espacial do tambor e a da yurt onde são realizados os norte-sul, que opõe as mulheres aos homens. Se o sul é “alto”, e o norte, “baixo”, é
rituais. O xamã beltir Petrov explica que, bem embaixo do seu tambor, figura um decerto em virtude das associações ligadas no mundo turco a esses orientes, mas
personagem, o “senhor da água”, que os chefes de família cacasses homenageiam também em razão da geografia do país cacasse, montanhoso e estépico ao sul, e
deixando um prato de carne de cordeiro quente próximo à porta, “para que fume- plano e arborizado ao norte.
gue na direção do senhor da água”. Na yurt turco-mongol em geral, e cacasse em Na realidade, uma oposição vertical também se apresenta de maneira latente
particular, de fato é do lado direito da porta ao entrar, na parte nordeste, que a entre a porta e o canto de honra (tör). O tör é chamado “cabeça do fogo” (ot pazy),
água é conservada. Petrov observava também que as sete estrelas figurando no céu ao passo que o canto da porta é a “traseira do fogo” (ot soo).2 Entre os Altais, o
do tambor são nomeadas pelos xamãs no canto que estes dirigem a kök yzyk, um tör é a “cabeça do fogo” (ottyn bažy), e o canto da porta corresponde às “pernas do
talismã instalado à distância da porta, na parte sul ou sudoeste (Katanov, 1907, vol. fogo” (ottyn budy). Convida-se a sentar no tör um hóspede ilustre que está pró-
I: 565; vol. II: 549). Dois xamãs kačin, Apčaj e Roman, interrogados com 50 anos ximo à porta, dizendo-lhe: “Sente-se mais alto!” (Öru oturar) (Tadina, 2006). Essa
de intervalo, designam o urso que figura na parte inferior de seus tambores como terminologia é coerente com a disposição do corpo quando alguém se deita numa
o “guardião da entrada da yurt” (Katanov, no 66; Potapov, 1981: 135). Identificar as yurt turco-mongol: esforça-se sempre para ter a cabeça dirigida para o canto de
correspondências entre a ordem espacial do tambor e a da yurt permitirá com- honra, e os pés, para a porta.
preender melhor o papel dos desenhos no ritual. 2 V. Butanaev, comunicação pessoal, 30.9.2011.

290 291
tambor e espaço virtual no xamanismo cacasse charles stépanoff

Por conseguinte, a oposição de valor mais forte situa-se entre o quarto nor- tos ligados às mulheres. Assim, a “mulher-espírito teleuta” (tileg-tös) é responsável
deste, setor duas vezes inferior, pois feminino e caçula, e o quarto sudoeste, duas pelas doenças dos úberes das vacas e pelas dores de barriga: os homens não se
vezes superior, pois masculino e sênior. É precisamente no setor sudoeste que se aproximam dela e a qualificam de “mau espírito”, assim como o urso situado no
acha instalado o altar doméstico, chamado Kudaj pulii, “o lugar de Deus-Céu”. nordeste (Jakovlev, 1900; Katanov 1907a, vol. II: 411).
É nele que são pendurados os ícones ortodoxos e o tambor xamânico, quando Vários desses amuletos, como a raposa e os mustelídeos, não têm contraparte
um xamã está em visita. No lado oposto, no canto nordeste, são dispostos baldes no tambor. É também o caso de uma grande figura da vida religiosa dos povos tur-
contendo as reservas de água e os produtos laticínios. Também na yurt encontra- cos desde a alta Idade Média, a Mãe Ymaj, protetora das mulheres e das crianças.
mos a oposição entre o alto celeste e o baixo aquático que observamos no tambor. Situada no noroeste no canto de honra, tem apenas uma relação indireta com um
A yurt, contudo, apresenta uma particularidade: ela consuma uma projeção da elemento constante dos tambores cacasses, as bétulas plantadas na parte direita. A
ordem vertical do mundo sobre uma superfície circular horizontal. seu propósito, o xamã Tabar explica: “Quando nascemos de nosso Pai Ülgen [deus
criador, equivalente de Kudaj], eles foram enviados com a Mãe Ymaj.” (Katanov,
1907, vol. II: 552).

Figura 13: O lado feminino de uma yurt cacasse, início do século XX.

A ordem espacial da yurt é enriquecida com evocações complexas pela pre-


sença, em suas paredes, de amuletos representando espíritos protetores dos huma-
nos e do gado. Cada amuleto é especializado num cuidado ou numa proteção par-
ticular e recebe uma alimentação específica. Além disso, a cada um é reservado um
lugar mais ou menos preciso na yurt (Adrianov, 1909; Butanaev, 2003; Katanov,
1907b).
As paredes meridionais são adornadas com espíritos cavaleiros, como Tuma-
o-Negro e Senhor-Canhoto. Nas paredes setentrionais ocupam seu lugar os espíri- Figura 14: Figuração cacasse de espírito cuco. Museu do Quai Branly, nº 71.1943.27.429.

292 293
tambor e espaço virtual no xamanismo cacasse charles stépanoff

tambor e yurt inchaços nas pernas. Tuma-o-Negro figura na yurt sob a forma de um amuleto de
sete plumas negras de tetrazes fixado próximo às portas do lado sul, logo, precisa-
Existe uma correspondência entre a posição de determinados amuletos na yurt e
mente ao sudeste (Katanov, 1907: 596).
a origem geográfica do espírito que elas representam. Assim, os cavaleiros Tuma-
A mulher-espírito teleuta, instalada no norte, não figura no tambor, mas
o-Negro e Senhor-Canhoto encontram-se na metade meridional da yurt, preci-
pode ter representantes nele. Segundo a xamã Apčaj, “três homens negros”, situa-
samente no lado para onde se presume que eles se dirigem, as estepes mongóis e
dos no setor inferior de seu tambor na proximidade do urso, são intermediários
tuvas. Diante deles, no lado norte, estão a “mulher-espírito teleuta”, chamada tam-
rumo ao “espírito do norte”, isto é, à mulher teleuta (Katanot, nº66). Deste modo,
bém “espírito do norte” (Altynzary töss), e o “espírito tungusa” (toŋaza tös). Ora,
as figuras situadas no setor inferior do tambor encontram-se no leste, no nordeste e
os Teleutas estão estabelecidos ao noroeste do país cacasse, e os Tungusas povoam
no norte da yurt.
toda a taiga setentrional. O “espírito tungusa” é bastante logicamente responsável
Os pássaros (hus tös) desenhados sob os astros no tambor aparecem na região
pelos ventos frios do norte. É também no lado norte que estão instalados outros
sul da yurt com a função de cuidar da cabeça, dos olhos, dos ouvidos e dos dentes
representantes do mundo da taiga: o urso, a raposa e o furão. Em suma, toda a geo-
(Figura 15). Os cavaleiros não negros que figuram no setor superior do tambor
grafia que circunda o país dos Cacasses se acha exposta em suas casas. A yurt não
também estão presentes no sul e no oeste. Por exemplo, Kyzyl tös, “espírito verme-
é um espaço hermeticamente fechado e isolado: com seus amuletos comandando
lho”, ou Han Solagaj, o Senhor-Canhoto, é um amuleto feito de fitas vermelhas e
estradas, ela contém numerosos pontos de partida para o exterior. Além disso, os
pedaços de pele de zibelina, fixado na parede sul (Katanov, 1907: 596). A cavaleira
espíritos do nordeste são responsáveis pelas doenças ligadas às partes baixas do
branca Salyg, visível no tambor da Figura 6 bem no topo do aro, tem seu lugar no
corpo, ao passo que os do sudoeste são competentes pela parte de cima. A partir
setor oeste da yurt, entre leito e altar (Adrianov, 1909: 524; Ivanov, 1955: 204). O
da orientação da yurt para o levante, a rede de amuletos cria um conjunto de cor-
setor superior do instrumento corresponde assim às regiões oeste, sudoeste e sul
respondências implícitas entre o plano do hábitat, o corpo humano, a paisagem
da yurt. De uma maneira geral, o eixo alto-baixo do tambor tem como equivalente
circundante e uma geografia distante.
na yurt o eixo sudoeste/nordeste com as oposições corriqueiras: celestial/subterrâneo,
No círculo dos espíritos, o eixo contrastante mais forte é o que estrutura a
seco/úmido, claro/escuro. Isso não surpreende quando lembramos que o tambor é
yurt, o eixo sudoeste-nordeste. Segundo todas as fontes, lá se opõem dois elemen-
fixado na parte sudoeste do hábitat. Seus desenhos representam de certa maneira
tos de posição constante: o altar do celestial Kudaj no sudoeste e o urso no nor-
a disposição dos espíritos na yurt a partir de seu ponto de vista sudoeste.
deste. Aba-tös, o urso, acha-se efetivamente instalado no lado feminino (norte) da
O que acontece com o eixo esquerda-direita do tambor organizado em torno
porta. Hibernando numa toca, o urso é frequentemente associado no xamanismo
da oposição cavaleiro-bétula? O mundo dos cavaleiros das estepes concentrado na
siberiano ao mundo inferior, à escuridão e à feminilidade. Seu talismã cacasse é
esquerda do tambor acha-se clara e exclusivamente situado na parte meridional da
feito de um bastão revestido de pele de urso e enfeitado com um aro de bronze
yurt. Será que reencontramos na yurt as árvores e o mundo da taiga que ficam à
evocando provavelmente a entrada de sua toca e os espaços de comunicação entre
direita do tambor? Lembramos a associação entre as bétulas do tambor e a deusa
os mundos que ele vigia, a porta e os orifícios inferiores dos corpos. Alimentado
Ymaj representada na parte noroeste da yurt. Além disso, do lado norte estão con-
por uma velha, ele é invocado para lutar contra a diarreia e as doenças venéreas.
centradas referências animais e humanas ao mundo da taiga: a raposa, o furão e o
No tambor, a região associada explicitamente a Kudaj é a mais alta, com seus
furão siberiano, tal como o espírito tungusa.
astros situados “sob a casa de Kudaj”, ao passo que o urso encontra-se na zona
Na yurt, o contraste cavaleiro-bétula do tambor se vê convertido num con-
mais baixa. Essa correspondência tambor-yurt verifica-se quando procuramos, na
traste sul-norte entre animais domésticos e animais selvagens, estepe e taiga. A
yurt, as figuras situadas no céu e, no tambor, as próximas ao urso.
esquerda do tambor projeta-se então abundantemente no sul da yurt e a direita no
Vizinhos do urso na parte inferior do tambor, a serpente e o cavaleiro Tuma-
norte.
o-Negro encontram-se todos dentro da yurt de ambos os lados da porta. Čylan tös,
a serpente, é um amuleto em forma de serpente, responsável pelas entorses e pelos

294 295
tambor e espaço virtual no xamanismo cacasse charles stépanoff

336-337). Num ritual publicado por Butanaev, uma xamã dispõe nove meninos no
OESTE
lado sul da yurt e sete meninas no lado norte, e lhes pede que a ajudem repetindo
Salyg (branca) seus cânticos. As palavras que ela lhes dirige em seu cântico mostra que esses
Ymaj meninos e meninas têm como papel representar os filhos de senhor de montanha.
Leito O tambor citado constitui assim uma verdadeira modelização realista dessa cena.
A fim de enxergar mais claro tudo isso, convém agora examinarmos mais deti-
Senhor-Canhoto Altar TÖR damente o desenrolar de um ritual. Tomaremos como exemplo um ritual tal como
(vermelho) era oficiado pelo xamã Pituk no início do século XX (Butanaev, 2006: 196-207).
Feminino A disposição dos participantes do ritual cacasse na yurt obedece a uma ordem
Masculino NORTE precisa. As mulheres, como sempre, posicionam-se no norte. O lugar do xamã é
Teleuta
marcado por um colchão de feltro branco no sudoeste sob o altar. Alguém man-
tém-se perto do balde d’água no nordeste para executar libações a pedido do
Fogo xamã. Outro auxiliar mantém-se ao lado do xamã para lhe dar tabaco (Katanov,
Aves 1897: 24-25).

Água Serpentes

Tuma-o-Negro Urso

Eixo nordeste e sudoeste


LESTE = eixo alto-baixo do tambor

Figura 15: Posicionamento dos espíritos na yurt. O eixo alto-baixo do tambor permite
descobrir o posicionamento da maioria desses espíritos no tambor. Em itálico,
espíritos presentes na yurt, mas ausentes do tambor.

o ritual

Se yurt e tambor apresentam tantas correspondências é porque essas superfícies


obedecem a esquemas espaciais comuns que os coordenam a uma paisagem visí-
vel e invisível. É por essa razão que o tambor pode aparecer como uma espécie de
plano vertical da yurt. No tambor da Figura 6, vemos um xamã acompanhado, à
sua esquerda, por sete personagens vermelhos, qualificados de “meninas amare-
las”, e à sua direita por nove personagens negros chamados “meninos negros”. Era
frequente durante os rituais que os xamãs cacasses pedissem a meninos e meninas
que os rodeassem. No século XVIII, Gmelin descreve uma xamã cacasse (kačin)
Figura 16: Fotografia de ritual numa yurt cacasse. O xamã mantém-se de frente para a porta, na
executando danças com sete homens e sete mulheres (Gmelin, 1751-1752, vol. III:
área leste da yurt. Fotografia Olsen, início do século XX. Biblioteca Nacional da Noruega.

296 297
tambor e espaço virtual no xamanismo cacasse charles stépanoff

No início do ritual, mantendo-se junto à porta, o xamã Pituk chama seus assim de uma referência explícita ao vestuário para o que parece ser uma referên-
espíritos: cia implícita aos desenhos do tambor. Mas serpentes e ursos também estão pre-
sentes na yurt, junto à porta, justamente onde se posiciona o xamã. Três espaços
Espíritos adary de meu Pai-khan
Enviados de minha Mãe-khan, de referências são então mobilizados de maneira latente nesta passagem:
Minhas pessoas que sacudiram meus ombros e meu pescoço,
Meu espírito teleuta, alma do rebanho,
Vocês me fazem pular até rasgar minhas solas,
Urso marrom, que olha através de um aro,
Vocês me fazem berrar até rasgar minha voz.
Meus espíritos pássaros [hus-tös], alma do homem;
Meus espíritos odžan segurando o percussor,
Na cabeça do móvel de cabeça [pas-paraan]
Enrolem-se na minha mão direita.
Alma da cabeça do neto,
Meus espíritos tüben segurando o tambor,
Vovó Ymaj,
Cerquem minha mão esquerda.
Das conchinhas brancas, do botão de bronze,
Você puxa fio de seda vermelha.
Nessa passagem introdutória clássica dos cantos cacasses, o xamã nomeia de
maneira genérica seus espíritos, lembrando que os herdou de seus ancestrais e Dessa vez, a yurt é explicitamente mobilizada como espaço de referência suple-
rememorando os sofrimentos que eles lhe impuseram por ocasião da crise que mentar. O espírito teleuta não figura nem no traje nem no tambor; em contrapar-
precedeu seu acesso à função xamânica. Veem-se primeiro nomeados espíritos tida, está presente sob a forma de um talismã na parte norte da yurt. O urso citado
vindos do Pai e da Mãe, depois os ligados à mão direita e à mão esquerda. O para- em seguida é dessa vez claramente o da yurt, e “o aro” através do qual ele olha faz
lelismo que associa a paternidade à direita e a maternidade à esquerda é clássico parte dos elementos de seu talismã. O urso aparece então em duas oportunidades,
nos cânticos cacasses. Que o xamã se situe no canto de honra ou de frente para a uma primeira vez na companhia de serpentes e rãs, o que o situa antes no espaço
porta, ele terá efetivamente o lado feminino da yurt à sua esquerda e o lado mas- de referência do tambor, e uma segunda sob seu aspecto de talismã, o que remete
culino à sua direita. ao espaço de referência da yurt. Recorrendo ao paralelismo, o cântico associa espa-
O cântico prossegue com uma passagem reflexiva na qual o xamã descreve ços diferentes ao personagem do urso, consumando-se assim uma superposição
sua própria roupa: espacial. Com Ymaj em seguida localizada explicitamente pelo canto “na cabeça
As fitinhas syzym de minha roupa do móvel de cabeça”, isto é, nas imediações do canto de honra, essa parte tem cla-
Torceram-se como bambus, ramente a yurt como espaço de referência dominante. O cântico prossegue assim:
Cinquenta sininhos de minha roupa blindada,
Vocês cantam como pássaros. Criada pelo Khan chinês
Vindo da célebre Tuva,
Em seguida, começa a evocação precisa de espíritos individuais: Chegando do monte Sabyna,
Você, cujas flechas nunca caem por terra,
Minhas serpentes como flechas sibilantes Você atira sem errar, Senhor-Canhoto.
Como flechas são atiradas. Saído da negra Mongólia,
Minhas rãs rugosas, Amarrado ao pé de aço no centro da terra,
Voando na claridade amarela, Tuma-o-Negro de rosto mais negro que a terra.
Minhas rãs de dedos afastados, Legumes da terra negra,
Meus ursos de patas torcidas. Estrelas do grande céu,
Subindo, abram o caminho.
Essa passagem reúne espíritos situados na parte mais baixa da ordem espa-
cial: as serpentes, as rãs e os ursos. Apenas as serpentes estão presentes na parte Nessa passagem, o xamã nomeia os cavaleiros situados na parte esquerda do
de baixo do traje cacasse sob a forma de faixas de tecido. Em contrapartida, as três tambor e ao sul da yurt, os dois espaços de referência permanecendo possíveis. Os
espécies têm seus representantes na parte inferior do tambor. O cântico desliza três últimos versos sugerem um movimento de “subida” que vai da terra para o céu.

298 299
tambor e espaço virtual no xamanismo cacasse charles stépanoff

Nesse momento, a fonte indica que “tendo puxado todos os tös da porta para geral de baixo para cima corresponde ao deslocamento real, da porta ao tör, reali-
o lugar de honra, inclinando-se para o fogo, ele canta ot-ene”. O xamã realizou zado pelo xamã na yurt.
então fisicamente na yurt um movimento de leste para oeste, isto é, da parte asso- Em seguida, o xamã dá três voltas em torno do fogo, o que indica uma mudança
ciada ao mundo inferior àquela ligada ao céu. de cena. Executam-se libações enquanto o cântico evoca os espíritos das monta-
nhas circundantes. O xamã obtém deles a alma do doente e faz o gesto de instalá-la
dentro de seu tambor. Conduz então o doente para a proximidade das portas:
Transformado numa rã, pule!
Transformado numa serpente, rasteje!
Não seja mais um demônio que não separa e não parte,
Não seja mais um diabo sempre lancinante.
Que a cabeça do demônio fique embaixo,
Que a cabeça do humano lunar fique no alto,
Que os invisíveis fiquem embaixo,
Que os humanos solares3 fiquem no alto.

O espaço de referência é decerto a porta da yurt, mas também a parte inferior


do tambor, pois, ao contrário da serpente, a rã figura apenas no instrumento. O ofi-
ciante faz com que se dissociem no doente os demônios e o humano, exigindo que
o demônio retorne ao mundo inferior, de onde não deveria ter saído. Ao mesmo
tempo, deve fazer o doente subir de volta para o mundo do centro. O cântico prosse-
gue com uma invocação das estrelas, isto é, de entidades celestiais diametralmente
opostas ao urso e à serpente anteriormente citados. Esse salto do mais baixo para
o mais alto é seguido por uma nova descida através dos talismãs da yurt. O xamã
nomeia Ymaj “na cabeça do móvel de cabeça”, passando então do sudoeste para o
Figura 17: O xamã mantém-se na parte de honra, diante do altar e face ao fogo,
oeste-noroeste; depois nomeia os espíritos medianos, “a mulher-espírito teleuta no
no canto sudoeste da yurt. Fotografia Olsen. Biblioteca Nacional da Noruega.
norte [Altynzaryh Tileg tös]” e face a ela o “espírito-pássaro no sul [Üstünzaryh xus
tös]”, e a descida se consuma junto à porta com o urso dentro do “velho aro”.
Mantendo-se agora no tör face ao fogo, ele entoa então um cântico de louvor
Após essa ida e volta em palavras do mais baixo para o mais alto da yurt, o
ao espírito do fogo, seguido pela invocação: “Que as Três Corças [Órion] tragam
xamã realiza a ação capital da devolução da alma do doente. Ele o faz concreta-
felicidade!”
mente, dando de beber ao doente um leite no qual ele “despejou” a alma. Invo-
A assembleia dos profanos lhe responde: “Assim seja. Que os Céus [Kudajlar]
cando os Céus Criadores, o xamã faz então o doente realizar o mesmo percurso
a tragam para nós. Que não quebrem a alma. Somos mais simplórios que novilhas,
que ele executou no início do ritual, da porta até o altar, passando das regiões
mais tolos que bezerros.”
inferiores do urso ao espaço superior do altar. Os poucos passos do doente, que
O espaço de referência desse diálogo de preces é o Céu, representado na yurt
o levam da porta às imediações do altar, denotam uma travessia cósmica, uma
pelo altar do Céu, ao pé do qual se mantém o xamã, e no tambor, pela parte mais
subida do mundo inferior para o mundo do centro. Ao mesmo tempo, as presen-
alta, onde as três corças de Órion são quase frequentemente figuradas.
ças negativas que haviam se instalado em seu corpo são abandonadas na parte
Se resumirmos a progressão pelo cântico, vemos que passamos das criaturas
baixa, junto ao urso, que está incumbido de mantê-las em seu lugar.
mais baixas da parte norte (“baixa”), como o urso, à criatura mais elevada da parte
norte, Ymaj, antes de evocar os cavaleiros pertencentes à parte sul (“alta”), para 3 Os humanos são qualificados de “lunares” e “solares” nos cânticos xamânicos, por oposição aos habi-
alcançar as entidades celestiais, as mais elevadas da parte “alta”. Essa progressão tantes do mundo inferior, onde não há nem lua nem sol.

300 301
tambor e espaço virtual no xamanismo cacasse charles stépanoff

espaço virtual e espaço real BASILOV, Vladimir Nikolaevič. Izbanniki duxov. Moscou: Politizdat, 1984.
BERTHOZ, Alain. Le sens du mouvement. Paris: O. Jacob, 1997.
No início do ritual, o cântico do xamã enumera referências a espíritos associados a
BUTANAEV, Viktor Jakovlevič. Burhanizm tjurkov Sajano-Altaja. Abakan, Izd-vo Hakass-
uma paisagem remota, que podemos denominar espaço virtual. Essas entidades se kogo gosudartsvennogo universiteta im. N. F. Katanova, 2003.
fazem presentes no espaço real mediante projeções indiciais sobre diversas super- ______. Tradicionnyj šamanizm Hongoraja. Abakan, Izd-vo Hakasskogo gosudartsven-
fícies: o traje xamânico, o tambor, as paredes da yurt. Ao longo dos paralelismos, nogo universiteta im. N. F. Katanova, 2006.
o cântico desliza do urso do tambor para o urso da yurt e do urso da yurt para DIÓSZEGI, Vilmos. “Pre-islamic shamanism of the Baraba Turks and some ethnogenetic
outras figuras da yurt. Os pontos de conexão, que são os talismãs pendurados conclusions”. In: HOPPÁL, M. (Ed.). Shamanism. Selected writting of Vilmos Diószegi.
nas paredes, são ativados pelas evocações do cântico, transformando a yurt num Budapeste: Akadémiai Kiadó, p. 228-298, 1998 [1978].
espaço carregado de ressonâncias. Vários espaços de referência, reais e virtuais, GMELIN, Johann Georg. Reise durch Sibirien. Göttingen, v. 4, 18 pranchas, 7 mapas.
acavalam-se em relações ambíguas de identificação e projeção. Istoriko-etnografičeskij atlas Sibiri. Moscou, Leningrado: Izd. Akademii Nauk. 1961.
O tambor, círculo vertical orientado, fornece o modelo topológico que per- IVANOV, Sergej Vasil’evič. Materialy po izobrazitel’nomu iskusstvu narodov Sibiri XIX-
mite pensar a projeção da ordem cósmica vertical na lateralidade e verticalmente načala XX . Moscou, Leningrado: Iz-vo Akademii Nauk SSSR, 1954.
ao corpo do xamã, mas também no círculo horizontal da yurt. Uma vez instalada ______. K voprosu o značenii izobrazenij na starinyx predmetax kul’ta u narodov Sajano
essa regra de projeção pelas coordenações que o cântico ativa, os movimentos e -Altajskogo nagor’ja. Sbornik Muzeja antropologii i êtnografii, (16), p. 165-265, 1955.
gestos dos participantes do ritual ganham uma ressonância espacial de grande ______. Skul’ptura altajcev, hakasov i sibirskih tatar. XVIII – pervaja četvert’ XX v. Lenin-
riqueza. Cada deslocamento no plano horizontal da yurt desenha ao mesmo grado: Nauka, 1979.
tempo um trajeto na verticalidade virtual que lhe é coordenada. Quando o JAKOVLEV, E. K. Êtnografičeskij obzor inorodčeskogo naselenija doliny Južnogo Eniseja i
ob’’jasnit. katalog êtnogr. otd. Myzeja. Minoussinsk: Tipografia V. I. Kornakova, 1900.
xamã avança da porta para o altar, compreendemos que se eleva para um nível
KATANOV, Nikolaj Fedorovič. Otčet o poezdke soveršennoj s 15 maja po 1 sent. 1896 goda
superior do mundo, carregando, junto com ele, o doente. Quando volta para as
v Minusinskij Okrug Enisejskoj gubernii. Kazan, Tipo-lit. Imp. Kazanskogo Universi-
imediações da porta, desce novamente para os rios e a terra. teta, 1897.
Apreendemos melhor agora em que medida os desenhos podem ajudar os ______. Narečija urjanxacev (Sojotov), abakanskix tatar i karagasov. São Petersburgo, Impr.
xamãs a “orientar-se”. Se o espaço virtual, a yurt e o corpo do xamã obedecem a da Academia de Ciências (Obrazcy narodnoj literatury tjurkskix plemen izdannye V.
um esquema espacial, o xamã pode facilmente situar-se e viajar no universo por Radlovym. Čast’ IX.), tomo I (Teksty); tomo II (Perevody), 1907a.
simples deslocamentos na yurt. A partir de sua propriocepção, da sensação de ______. Narečija urjanxacev (Sojotov), abakanskix tatar i karagasov (2). Perevod. São
sua mão direita e de sua mão esquerda, ele pode fazer derivar assimetrias entre Petersburgo (Obrazcy narodnoj literatury tjurkskix plemen izdannye V. Radlovym.
esquerda e direita, estabilidade e movimento, árvore e cavaleiro, taiga e estepe e Čast’ IX.), 1907b.
as diferentes rotas que delas derivam. O xamã deve memorizar seus desenhos não ______. Izbrannye naucnye trudy. Ankara, 2000.
apenas visualmente, mas de maneira sinestésica, coordenando-os à percepção de KLEMENC, D. “Neskol’ko obrazcov bubnov minusinskix inorodcev (s 9 tablicami risun-
suas funções motoras e de seu senso de equilíbrio. Os desenhos xamânicos são kov)”. In: Zapiski VSOIRGO po ètnografii, 2 (2), 1890.
menos suportes expressivos do que uma tecnologia que contribui para transmitir e KYZLASOV, L. R.; N. V. Leont’ev. Nardonye risunki xakasov. Moscou: Nauka, 1980.

estabilizar modelos de coordenação do corpo e do espaço no âmago da cena ritual. LOT-FALCK, Éveline. “A propos d’un tambour de chaman toungouse”. In: L’Homme, 1 (2),
p. 23-50, 1961.
LOT-FALCK, Éveline; DIÓSZEGI, Vilmos. “Les tambours chamaniques des Turcs Barabin:
referências bibliográficas étude comparée”. In: L’Ethnographie, 67, p. 18-46, 1973.
ADRIANOV, A. V. “Ajran v žizni minusinskogo inorodca”. In: Sbornik v čest’ semidesjatiletija OPPITZ, Michael. Trommeln der Schamanen. Zurique, Völkerkundemuseum der Univer-
G. N. Potanina. São Petersburgo, p. 489-524, 1909. sität Zürich, 2007.
ANOHIN, Andrej Viktorovič. “Materialy po šamanstvu Altajcev”. In: Sbornik Muzeja antro- POTAPOV, Leonid Pavlovič. Šamanskij buben kačincev kak unikal’nyj predmet êtnogra-
pologii i êtnografii, 4 (2), p. 1-148, 1924. fičeskix kollekcij. Sbornik Muzeja antropologii i êtnografii, p. 125-137, 1981.

302 303
tambor e espaço virtual no xamanismo cacasse

______. Altajskij šamanizm. Leningrado: Nauka, 1991. A máscara do animista:


RADLOFF, Wilhelm. Aus Sibirien. Lose Blätter aus meinem Tagenbuche. 2 Aufl. Leipzig: 2
tomos, 1884. quimeras e bonecas russas na América indígena1
SEVERI, Carlo. Le principe de la chimère: une anthropologie de la mémoire. Paris: Rue d’Ulm,
Carlos Fausto
Museu du Quai Branly (Aesthetica), 2007.
______. “L’espace chimérique. Perception et projection dans les actes de regard”. In: Gra-
dhiva, 13, p. 9-47, 2011.
TADINA, N. A. Semantika vnutrennego prostranstva žilišča i ètiketnye predpisanija u altaj-
cev. Vestnik TGU, p. 122-126, 2006. Disponível em: <http://new.hist.asu.ru/naltai/ual-
taiseman.html>.
WARNIER, Jean-Pierre. Construire la culture matérielle. L’homme qui pensait avec ses doigts.
Paris: PUF, 1999.
Ne Dio, suo grazia, mi si mostra altrove,
Piu che ‘n alcun leggiadro e mortal velo
E quel sol amo, perche ‘n quel si specchia.
(michelangelo buonarroti, Sonetto LVI)

No final do século XIX, quatro expedições alemães atingiram as nascentes do


rio Xingu. As duas primeiras foram lideradas, nos anos 1880, pelo célebre etnó-
logo Karl von den Steinen; as duas outras, uma década mais tarde, por Hermann
Meyer, que não alcançou a mesma fama nem legou relatos tão notáveis quanto
os de seu predecessor. Mesmo assim, ele nos deixou alguns escritos importan-
tes sobre a região. No Congresso Internacional dos Americanistas de 1904, por
exemplo, Meyer apresentou um trabalho sobre a arte dos índios do Xingu no qual
analisa algumas máscaras. Ele escreveu notadamente sobre uma delas:
[…] por meio de determinadas linhas, o artista procura representar adequadamente
algumas das partes do corpo que lhe parecem mais importantes. Mas nessa operação
confunde duas ideias: a de reproduzir partes do corpo humano e a de representar
símbolos animais que evidenciam a finalidade especial da máscara. […] É difícil deci-
dir até que ponto as partes componentes da máscara procuram representar o corpo
humano ou um determinado animal. (Meyer, 1906, citado em Krause, 1960: 116).

Meyer toca aqui em um problema central para a análise das iconografias e


dos objetos rituais ameríndios: a aparente confusão produzida pela multiplicação

1 Este texto foi originalmente publicado em francês na revista Gradhiva, nº 13, 2011, e traduzido para o
português por Roberta Ceva, cabendo a revisão ao autor. Versões preliminares foram apresentadas no
colóquio Art-Image-Mémoire (Acordo Capes-Cofecub), realizado no Musée du Quai Branly em 2007
e na reunião da SALSA, em Oxford, em 2008. Gostaria de agradecer a Carlo Severi por nossa colabora-
ção e a Capes-Cofecub pelo financiamento do projeto. Agradeço também a Mutuá Mehinaku por seus
comentários inspiradores sobre a máscara Atuguá, assim como a Sepê Kuikuro por ter gentilmente
cedido suas fotos para uso neste artigo.

304 305
a máscara do animista carlos fausto

de referentes e a mistura entre formas animais e humanas. Naquela época, ele não mundo implícita. Parece-me mais interessante pensar a crença à maneira de Pou-
poderia abordar seu objeto senão como um esboço rudimentar de representação illon (1993), como implicando necessariamente a dúvida, e o ato de crer como um
figurativa. Daí sua indecisão: afinal, os índios queriam representar um homem ou estado mental caracterizado por uma incerteza constitutiva (Severi, 2007: 241).3 Se
um animal? adotamos esta via, vemo-nos obrigados a explicitar as condições nas quais emer-
Neste artigo, procurarei responder a esta questão, concentrando-me na eficá- gem situações de instabilidade cognitiva, nas quais um evento de máscaras pode
cia das máscaras ameríndias enquanto objetos rituais. Se aceitarmos que a agência ser interpretado como sendo “um caso de presença de espírito”.
de uma máscara resulta da atribuição de uma subjetividade qualquer ao artefato, Acabo de empregar aqui a noção de “presença”, que também exige certa
então duas questões etnográficas se colocam: em primeiro lugar, de que tipo de prudência. Ela ressurge na antropologia contemporânea no lugar do conceito de
subjetividade se trata? Em seguida, quais são as propriedades formais que fazem representação, julgado inadequado para dar conta de rituais não ocidentais por
com que uma máscara se preste à atribuição de subjetividade? Poderíamos res- ser demasiadamente “ocidental”. Contudo, longe de constituir uma novidade, a
ponder a estas questões de maneira dedutiva e particularista: a agência das másca- oposição entre presença e representação é bem tradicional e foi insistentemente
ras ameríndias seria a consequência lógica de uma ontologia que não está fundada utilizada para diferenciar a modernidade europeia dos povos primitivos. Ela é tão
na separação sujeito-objeto. Seria igualmente possível, ao contrário, adotar uma persistente que Belting, citando Erhart Kästner, a ela se refere como “a antiga antí-
perspectiva universalista segundo a qual o estatuto de pessoa que emprestamos às tese entre representar e estar presente, entre ocupar o lugar de alguém e ser este
máscaras decorre de uma resposta genérica, propriamente humana, às imagens alguém” (1994: 9).
rituais em geral. Navegando entre estes dois polos, tentarei aqui defender duas Essa oposição está no cerne da interpretação de Fritz Krause sobre as másca-
noções formais: a de “encaixe recursivo” e a de “referência múltipla”, a fim de dar ras ameríndias. Assim, ele escreve em um texto que data do início dos anos 1930:
conta da eficácia ritual das máscaras na América indígena.
Os dançarinos mascarados são verdadeiramente o ser em questão. Eles não repre-
sentam simplesmente estes seres, nem os apresentam à maneira de uma pantomima,
crença e presença como se fosse um espetáculo. […] As ações que as máscaras realizam não são sim-
plesmente simbólicas, mas compreendidas como totalmente realistas (1931: [m.s.: 13]).
A máscara é um artefato paradoxal: para ganhar vida, é preciso que alguém a vista,
mas todos sabem que quem a anima não é um espírito, e sim um parente. Como Na época de Krause, a confusão entre ser e símbolo, presença e representa-
então uma máscara pode ser efetiva? Por que o disfarce não é tomado ao pé da ção, protótipo e imagem, era um índice de uma mentalidade que ainda não tinha
letra, mas, ao contrário, dá lugar a uma atribuição deslocada de subjetividade? De acedido ao templo da razão. Hoje, utiliza-se um vocabulário similar para falar
que modo o ausente se faz presente (e o presente, ausente)? Como o visível recua sobre diferenças ontológicas – desta vez, incomensuráveis e não hierarquizáveis
para dar lugar a um invisível tornado visível por meio da máscara? – segundo as quais, lá onde “nós” (os ocidentais) veríamos uma representação, os
Para responder a estas indagações, deixo de lado o “problema da crença”, “outros” (os não ocidentais ou os pré-modernos) postulariam uma presença real.
que nos levaria a duas questões que prefiro aqui evitar: os ameríndios acredi- Esta substituição do signo pela coisa segue na contracorrente do espírito da
tam em suas máscaras? E, em caso afirmativo, como podem acreditar? Evito-as Reforma que, ao negar a presença do corpo e do sangue de Cristo na Eucaris-
para não cair em uma “etnologia tradicional das crenças dos outros” (Lenclud, tia, abriu caminho para uma leitura da pintura religiosa como “arte” nos séculos
1990), tributária de uma visão teológica da cultura, que emprega uma noção de seguintes. Não é por acaso que o retorno atual da “presença” se faça na esteira das
crença própria às grandes religiões monoteístas.2 Aqui é mister contornar tanto discussões sobre o “fim da Arte”: a ênfase na eficácia, no poder e na agência das
uma definição doutrinal de crença (enquanto adesão a um conjunto de doutrinas
explícitas) como uma antropologia que postula a adesão crente a uma visão de 3 Na antropologia, a referência clássica ao questionamento da noção de crença é Needham (1972), que,
em sua virada cética, retomou de modo sistemático uma questão que sempre assombrou a disciplina.
Para uma discussão mais recente, ver o número de Terrain organizado sobre o tema (Lenclud, 1990).
2 Contudo, como bem observa Pouillon: “A cada dia, em cada igreja, podemos ouvir: ‘Eu creio em Deus.’ Para um argumento contrário, ver Noret (2007), que rejeita a subordinação da crença à dúvida. Veja-
Crer é ter certeza, mas se é preciso dizer e repetir, não seria para persuadir a si próprio?” (1993: 22). se também minha análise sobre o caso Parakanã (Fausto, 2002), inspirada em Boyer (1994).

306 307
a máscara do animista carlos fausto

imagens é uma resposta ao declínio da tradição estética clássica.4 Ainda que este o humano no interior
artigo seja parte desse mesmo movimento, procuro manter uma distância pru-
Uma máscara ameríndia poderia ser caracterizada – para esboçar uma primeira
dente. Mesmo porque, do ponto de vista etnográfico, trata-se, antes de mais nada,
de saber se a “antiga antítese” entre signo e coisa pode ser aplicada a outras tradi- definição – como a face de um não-humano que é, simultaneamente, uma pessoa
ções iconográficas e, em seguida, de identificar a quais estados mentais correspon- humana. Esta definição está de acordo com a pressuposição mínima do animismo,
deria o que chamamos de “presença” (a fim de evitar que se recaia novamente no segundo a qual no interior de um não-humano sempre se encontra uma pessoa
“problema da crença”). que partilha a condição humana (Descola, 1992, 2005). Esta dualidade entre exte-
Feitas estas considerações iniciais, devo precisar que minha abordagem dis- rioridade não-humana e interioridade humana estaria no próprio fundamento,
tingue três níveis analíticos. O primeiro é ontológico e interessa-se pelos seres que segundo Tim Ingold (2000), de qualquer “figuração” (depiction) no mundo ani-
se procura figurar por meio de imagens em uma dada tradição; o segundo é for- mista. Podemos complexificar um pouco a definição inicial tomando as máscaras
mal e interessa-se pelas convenções estéticas que permitem a figuração adequada como objetos rituais ativos: elas revelam a virtualidade humana dos não-humanos
destes seres nesta mesma tradição; por fim, o terceiro nível, pragmático, interessa- porque são animadas de seu interior por uma pessoa humana. A presença dessa
se pelos dispositivos actanciais pelos quais estas imagens, convencionalmente pro- pessoa atualiza o que era simplesmente pressuposto (a saber, que os não-humanos
duzidas, se tornam eficazes em determinados contextos de ação. são pessoas). Para que essa operação seja possível, é preciso explorar um traço
Neste texto, concentrar-me-ei nos dois primeiros níveis, deixando o terceiro formal constitutivo das máscaras: a relação invólucro/conteúdo.
para um trabalho posterior, pois ele demandaria um desenvolvimento próprio. Não Tomemos como exemplo as máscaras do extremo norte do continente ame-
quero aqui diminuir a importância da ação das máscaras em situação ritual. Ao ricano, que ilustram, como observa Descola, “uma das maneiras mais econômi-
contrário, é necessário ter em mente que as máscaras jamais são imagens estáticas: cas de revelar uma interioridade animal” (2010: 23). As máscaras de madeira dos
elas são tridimensionais, têm odores e texturas particulares, são vestidas e anima- Yup’ik do Alasca trazem frequentemente um pequeno rosto humano esculpido
das, e sempre empregadas em contextos precisos – contextos nos quais se produz em baixo relevo sobre uma face animal. Este é o caso de um exemplar coletado
uma instabilidade cognitiva, tornando difícil dizer se estamos diante de uma sub- pelo reverendo Sheldon Jackson, em 1893. Este último indica tratar-se de uma
jetividade-outra ou simplesmente diante de um objeto manufaturado utilizado por máscara de dança “mostrando o espírito de uma raposa. No alto da cabeça, o espí-
um membro da coletividade. Esta instabilidade cognitiva é produzida ao longo da rito mostra sua face, que tem, como todos os espíritos, uma similitude humana
interação com as entidades-máscaras durante o ritual: seja pela impossibilidade de ou pode-se mostrar a si mesmo como um humano” (Fienup-Riordan, 1996: 86).
ler na máscara uma expressão facial que corresponda às suas ações; seja pela dúvida O antropólogo Jarich Oosten faz referência a uma outra máscara, desta vez inuit,
que pesa sobre quem é responsável pela ação, na medida em que o modus operandi que se abre revelando o rosto humano do dançarino no interior da face animal:
da máscara é estereotipado; seja, enfim, pelo fato de que a interação, normalmente “No contexto do ritual, o portador da máscara representava o animal, e, quando
sem palavras, coloca entre parênteses o regime normal da comunicação. Mas para ele abria a máscara, seu rosto representava o inua do animal” (1992: 116).6
que tais mecanismos interacionais se mostrem eficazes, é preciso que as máscaras
mobilizem com êxito certos princípios formais. A instabilidade cognitiva também Art/Artifactem Nova York, em 1988. A partir desta discussão e de uma análise sofisticada de uma série
de armadilhas de caça, Gell propõe uma nova definição para a obra de arte: “Eu definiria como um
é produzida pela forma, que funciona, como sugere Gell, tal qual uma “armadilha”.5 candidato ao estatuto de obra de arte qualquer objeto ou performance que potencialmente premie esse
escrutínio por corporificar intencionalidades que são complexas, que demandam atenção e que talvez
4 Sobre o fim da Arte (ou da história da Arte), ver Lang (1984) e Belting (1987). Sobre esta ideia que“es- sejam difíceis de reconstruirem-se completamente” (1999:211). A ideia segundo a qual a forma de um
tava no ar em meados dos anos 80”, ver Danto (1997). Para as novas abordagens que se seguiram à artefato pode significar um obstáculo cognitivo à reconstrução da intencionalidade responsável por
decadência da estética e da história da arte, ver os textos filosóficos de Danto (1983, 1988, 1992), que sua produção já estava presente em seu artigo sobre as tecnologias do encantamento. É neste sentido
exploram as fronteiras entre a arte e a não arte; e os textos provocadores de Mitchell (2005) sobre “a que emprego aqui a noção de armadilha cognitiva, procurando mostrar quais são os mecanismos
virada pictórica” e a nova economia da imagem no capitalismo tardio, bem como o interesse renovado formais responsáveis por esta imbricação relacional.
pelo “poder das imagens” (Freedberg, 1989; Belting, 1994) e pelos iconoclasmos, que culminou na 6 Fienup-Riordan observa que esta interpretação deve ser vista com prudência, já que o único modo
célebre exposição Iconoclash (Latour& Weilbel, 2002). seguro de interpretar as características formais de uma máscara particular seria conhecendo a
5 No artigo “Vogel’s net”, Gell critica a distinção feita por Arthur Danto entre um artefato e um verda- narrativa a ela associada. No que toca ao nosso exemplo, ela afirma: “Alguns pesquisadores descrevem
deiro objeto de arte. O objeto em questão é uma armadilha de caça zande apresentada na exposição a máscara yua típica como um rosto ou um corpo animal nos quais um rosto humano (aquele da

308 309
a máscara do animista carlos fausto

Inua (ou yua) traduz-se literalmente como “sua pessoa”, ainda que alguns e exterioridade animal não são facilmente distinguíveis, já que se estabelece uma
autores a tenham traduzido como “alma” ou “espírito”. Tudo sugere que esteja- dinâmica transformacional entre as duas condições, que não se reduz à distinção
mos diante de uma ideia tão simples quanto recorrente: a exterioridade animal invólucro/conteúdo.
contém e esconde uma interioridade humana que, apesar de representar a con-
dição ontológica de base, somente se deixa entrever durante o transe xamânico,
as experiências oníricas e as performances rituais. A relação invólucro/conteúdo
– expressa em imagem e movimento por uma máscara – seria a tradução visual de
uma noção ontológica basilar. Podemos, contudo, complexificar mais esta ideia,
reconhecendo a existência de vários níveis sucessivos de encaixe. Vejamos.
Acabo de afirmar que uma máscara é a face de um não-humano que é tam-
bém uma pessoa com características humanas. Em seguida, acrescentei que a
máscara sempre deve ser animada de dentro por outra pessoa, desta vez, visivel-
mente humana. Onde se encontra a recursividade deste encaixe? A pessoa dentro
da máscara tem também um rosto visível (tornado invisível) e um interior no qual
se espera que contenha uma “alma”, que é ela própria uma imagem. A máscara à
qual Oosten faz referência joga exatamente com esse tema: o rosto que se encon-
tra no interior não é simplesmente um rosto humano, mas um rosto humano que
contém, ele próprio, uma outra imagem-alma (“sua pessoa”). No caso da máscara
yup’ik da raposa, se o baixo relevo nos sugere a ideia de interioridade, esta é, ela
própria, um outro rosto, ou seja, uma outra exterioridade.7
Desta perspectiva, a relação invólucro/conteúdo torna-se mais complexa.
Porém, podemos ir além desse segundo nível de encaixe se ampliarmos nossa
mostra. A Figura 1, igualmente retirada do livro de Fienup-Riordan, reproduz
uma máscara-foca que apresenta um nível suplementar de elaboração formal: o
rosto principal é metade humano, metade foca (a boca em arco é um índice de
que se trata de um animal marinho). Ele se eleva de uma placa de madeira figu-
rando um corpo animal do qual saem quatro patas. Na parte de baixo, encontram-
se outras faces com características humanas, espécies de máscaras em alto relevo Figura 1: Máscara de foca yup’ik, Kuskowin Area © Courtesy of the Burke Museum of Natural
History and Culture, Catalog Number 1.2E644 (dom de Robert Gierk).
que emergem do corpo do animal, invertendo a relação entre figura e fundo que
observamos na máscara da raposa. Este tipo de máscara com função propiciatória Tomemos ainda um outro exemplo do Alasca que pode ser classificado, de
para a caça era usado por uma mulher que deveria gritar como uma foca (Fienup maneira consensual, como uma “máscara de xamã”, já que dispomos de uma ilus-
-Riordan, 1996: 88). Temos, portanto, uma máscara na qual interioridade humana tração inequívoca de seu contexto de utilização. Na Figura 2 – uma fotografia tirada
por John Edward Thwaites em 1912 entre os Aglegmiut da baía de Nushagak–,
pessoa do animal) é encaixado (nos seus olhos ou em suas costas). Este rosto humano, no entanto, ela é usada por um xamã que acabara de curar um garoto.8 Esta imagem nos dá
também pode representar o angalkuq [o xamã], e o animal, seu espírito auxiliar” (1996: 60).
uma ideia do impacto visual da máscara e de todas as vestimentas que a acompa-
7 Este tipo de máscara com a pequena face em baixo-relevo parece ter sido bastante comum no Alasca,
podendo apresentar variações que alteravam a relação entre a parte e o todo. Assim, encontramos
máscaras nas quais o rosto humano era colocado sobre um dos olhos da face animal (Fienup-Riordan, 8 Uma coleção de 396 imagens selecionadas a partir de 1.300 negativos de Thwaites está disponível
1996: 104) ou no interior de sua boca aberta (1996: 70). on-line na coleção digital da Universidade de Washington. Ver também Fienup-Riordan (1996: 189).

310 311
a máscara do animista carlos fausto

nhavam, aí incluídas as gigantescas mãos curativas. O jogo formal desta máscara


consiste em multiplicar as referências icônicas e o número de faces identificáveis:
distingue-se um corpo de pássaro de onde sai uma cabeça de pássaro e duas asas.
A cabeça do pássaro também forma o nariz de uma das faces representadas na
máscara, e suas asas, que são formalmente idênticas à boca dentada, são também
orelhas. Em seguida, onde ficariam os olhos da máscara, encontra-se uma outra
face, muito redonda, cuja boca é igualmente dentada. Na foto de 1912, percebem-
se ainda olhos suplementares – aqueles do maior rosto – figurados por pequenas
plumas listradas. É difícil decidir, diante de uma máscara como esta, quantas faces
são simultaneamente representadas, quais são manifestamente humanas e quais
são os referentes animais precisos aos quais ela nos remete.
De fato, essa máscara joga com uma representação paradoxal do animal e do
humano, manifesta sob a forma da hibridação ou de uma justaposição de zoomor-
fismo e de antropomorfismo, assim como por uma oscilação entre figura e fundo.
Lembremos que se trata exatamente das características que Hermann Meyer havia
detectado na máscara xinguana e que lhe parecia ser produto de uma confusão.
O artista desejava representar um animal ou um humano? Pois bem, nem um,
nem outro, ou mais exatamente, os dois, já que não há jamais uma relação termo
a termo entre uma máscara e um referente.
Este tipo de complexidade representacional podia ser levado ainda mais longe
por uma multiplicação icônica dos animais. Entre as máscaras gigantescas coleta-
das por Ellis Allen, em 1912, em Goodnews Bay, encontramos uma proliferação
de rostos e de membros que já foram observados anteriormente com referência
à máscara da foca. Na Figura 3, por exemplo, vemos um corpo de peixe que traz
sobre as suas costas duas outras faces: “Um animal terrestre sorridente na parte de
cima e um mamífero aquático descontente na parte de baixo” (Fienup-Riorden,
1996: 163). Esta segunda face, aliás, encontra-se no interior da boca dentada da
primeira, de um modo formalmente similar ao de outra máscara coletada por
Allen, descrita por Fienup-Riordan como “uma pequena máscara de foca fina-
mente esculpida, seu yua saindo de sua boca” (1996: 70). Vê-se, assim, como o
motivo de base com o qual comecei esta análise – o pequeno rosto humano que
deixava entrever a pessoa do animal – pode ser empregado em configurações bem
mais elaboradas.

Figura 2: “Eskimo medicine man exorcising evil spirits from a sick boy”. Alaska, 1924. Foto de John
Edward Thwaites (1863-1940) © Alaska State Library, Juneau, Thwaites Collection Neg PCA-18-497.

312 313
a máscara do animista carlos fausto

máscaras de transformação

Os melhores exemplos da combinação intensiva entre os dois princípios formais


aqui destacados – encaixe recursivo e referência múltipla – são possivelmente as
célebres “máscaras de transformação” da Colúmbia Britânica. Há aqui certa varie-
dade de motivos, mas focalizarei os exemplos que manifestam uma metamorfose
animal. Sabe-se que o interesse de Boas pela arte da Costa Noroeste nasceu do
trabalho de catalogação da coleção do capitão norueguês J. Adrian Jacobsen, que o
futuro antropólogo conduziu em 1885 para Alfred Bastian, então diretor do Museu
Real de Etnografia de Berlim. Esta coleção compreendia ao menos uma máscara
de transformação obtida entre os Kwakiutl de Tsaxis (Forte Rupert). A experiência
levaria Boas a empreender sua primeira expedição à região, no outono de 1886
(Cole, 1999: 96-97).9 Em 1909, ao publicar The Kwakiutl of Vancouver Island, Boas
incluiria uma série de desenhos, da lavra de Rudolf Cronau, de máscaras coletadas
durante a expedição Jesup North Pacific (1897-1902). Na prancha 51, são reprodu-
zidas duas máscaras utilizadas durante o Potlatch (Figura 4). A primeira mostra-
nos a cabeça de um lobo que, uma vez aberta, deixa entrever um corvo; a segunda
parece apresentar um motivo similar ao das máscaras do Alasca que representam o
inua (“sua pessoa”) como um rosto: o exterior é um corvo que, ao abrir-se, mostra
uma outra face que não é, no entanto, inteiramente humana, já que compreende o
nariz-bico de um pássaro predador, provavelmente uma águia.10
As duas transformações representadas aqui separadamente (animal-animal
/ animal-humano) podem ser encontradas em uma mesma máscara, conduzindo
o jogo de encaixes sucessivos a um nível superior de sofisticação. É o que se vê na
prancha 41 (Boas, 1909), que contém três desenhos de um mesmo artefato (Figura
5). No desenho 3, temos a máscara fechada, representando um peixe (bull-head
fish); no desenho 4, ela se abre deixando entrever a cabeça de um corvo e, no
desenho 5, abre-se novamente apresentando, dessa feita, a face de um homem.11 A

9 Ele escreveria, anos mais tarde: “Meu espírito foi inicialmente tocado pelos voos de imaginação
exibidos nas obras de arte dos habitantes da Colúmbia Britânica, quando comparados à severa
sobriedade dos Esquimós orientais” (Boas, 1909: 307).
10 Como mostra Boas (1927: 190), uma convenção distingue a representação da águia daquela do falcão.
Todas as duas possuem um longo bico curvo, mas no segundo ele volta-se para trás e toca a face, ao
passo que, no primeiro, apenas se curva para baixo. Encontramos a mesma configuração em uma
máscara de conchas, proveniente dos Heiltsuk, coletada pelo tenente George T. Emmons, no início
do século XX, e que atualmente se encontra no National Museum of the American Indian (9/2227) –
Figura 3: Máscara yup’ik com corpo de peixe, coletada por Ellis Allen em 1912, Goodnews Bay © http://americanindian.si.edu/.
Courtesy of the Burke Museum of Natural History and Culture, Catalog Number 4528. 11 Trata-se da máscara que Descola apresentou ao público por ocasião da exposição La Fabrique des
images e que se encontra no American Museum of Natural History. No catálogo, a forma exterior é
identificada como aquela de um chabot (Descola, 2010: 28-29).

314 315
a máscara do animista carlos fausto

máscara representaria, portanto, uma tripla metamorfose, sendo a solução figura- ções do Canadá (Figura 6).12 Fechada, ela mostra a cabeça de uma orca sobre a
tiva de uma ontologia que postula, como indica Descola, a separação entre uma qual se encontra uma gaivota; aberta, ela revela um rosto de homem. Contudo, se
identidade interior e uma forma aparente, entre uma “alma” e uma “vestimenta prestarmos atenção à parte interna da face externa, veremos a representação de
corporal” (2010: 25-26). uma outra face animal, desta vez, da serpente mítica Sisuitl, comumente desig-
nada “serpente marinha bicéfala”. Este motivo é muito recorrente na região e pode
ser encontrado em uma foto de Edward Curtis tirada entre os Kwakiutl em 1914
(Figura7).13 O estilo da máscara haida é mais “naturalista” que aquele da máscara
kwakiutl (Jonaitis, 2006: 127-169): o rosto humano é claramente antropomorfo,
enquanto na máscara da foto de Curtis, assim como em outra reproduzida por
Boas (1909, prancha 49), “o homem no meio” possui os mesmos chifres com que
Sisiutl é representada desde o final do século XIX.14

Figura 5: Três figurações da mesma máscara (Franz Boas 1909, planche 41).

12 Esta máscara está catalogada no CMC sob o número VII-B-23. Há um exemplo contemporâneo bas-
tante similar, esculpido em 1993, pelo artista kwakwaka’wakw Richard Hunt, filho de Henry Hunt e
neto de Mungo Martin, um dos principais artífices do renascimento da arte escultórica kwakiutl nos
anos 1950 (Jonaitis, 2006: 241-43). Trata-se de uma máscara de corvo que, ao se abrir, apresenta o
Figura 4: Máscaras Kwakiutl desenhadas por Rudolf Cronau, rosto de um homem, ao mesmo tempo em que o bico do corvo se transforma na face desdobrada da
Jesup North Pacific Expedition (Franz Boas 1909, planche 51). serpente Sisuitl. A máscara pertence ao acervo do Minneapolis Institute of Art (G259) e pode ser vista
no seguinte site: <http://www.artsmia.org>.
Como já sugeri em um texto anterior (Fausto, 2007), creio que, embora esta 13 Edward S. Curtis (1914: 214, fotogravura “Sisiutl – Qagyuhl”). A coleção completa encontra-se digita-
lizada e disponível no endereço: http://curtis.library.northwestern.edu. Para um desenho detalhado
leitura apoie-se em dados etnográficos robustos, ela pode nos conduzir a uma de uma máscara similar, ver Boas (1909: prancha 49, desenho 4), para o qual ele fornece a seguinte
distinção pouco dinâmica entre fisicalidade aparente e interioridade essencial, a descrição: “O rosto do meio representa ‘o homem no meio da serpente’, com suas duas plumas; em
cada extremidade encontram-se cabeças de serpentes emplumadas cujas línguas móveis podem, por
qual dificilmente dá conta das formas ambíguas e paradoxais de representação de meio de um jogo de cordas, ser puxadas para dentro e para fora. Os dois lados da máscara podem ser
uma pluralidade não dual. Tomemos como exemplo uma outra variante das más- dobradas para a frente e para trás. Utilizada durante as danças de inverno, por ocasião das representa-
ções pantomímicas da lenda de Mink” (1909: 521).
caras de transformação ilustrada por um exemplar haida, coletado pelo tenente
14 Ver, por exemplo, as máscaras esculpidas por Oscar J. Matilpi (1933-1999), cunhado de Henry Hunt
Israel W. Powell, em 1879, e que atualmente se encontra no museu das Civiliza- (por sua vez, neto de George Hunt e filho de Mungo Martin). Um exemplar está catalogado no Royal
British Columbia Museum, sob o número 13853.

316 317
a máscara do animista carlos fausto

Figura 7: Máscara com motivo da serpente sisiutl, Kwakiult , 1914. Foto de Edward Curtis. Courtesy
Charles Deering McCormick Library of Special Collections, Northwestern University Library.

A meu ver, o que se tenta figurar aqui não é exatamente que uma exteriori-
dade animal contenha uma interioridade humana, mas que um ser poderoso é
irredutivelmente múltiplo e capaz de transformação. A eficácia da forma não está
predicada na abdução de uma agência humana escondida por trás de um invólu-
cro animal, como sugere o modelo animista boreal na versão de Ingold (2000).
Não seria tampouco um desvelamento da “verdadeira natureza” de um animal,
como o afirma, por sua vez, Descola em relação ao tema yupiit dos animais que se
desnudam (2010: 25). O que coloco em questão neste texto é a ideia de um núcleo
duro, de uma identidade final humana que se esconde por detrás das vestimentas-
corpos animais – uma ideia que me parece implicada na noção de desvelamento e
no emprego serial de oposições binárias: interior-exterior, alma-corpo, humano-
Figura 6: Máscara de transformação Haida © Musée Canadien des Civilisations, VII-B-23, S92-4174.
-animal etc.15

15 Procurei propor, alhures, uma leitura alternativa dos dados etnográficos sobre a pessoa humana e
não-humana na Amazônia, erguida não sobre o dualismo, mas sobre a multiplicidade, a fim de evitar
a redução das relações internas à pessoa a somente dois termos (Fausto, 2007). Eu visava menos as

318 319
a máscara do animista carlos fausto

A arte da costa Noroeste distinguir-se-ia, antes, pelo que Severi chama de um nos (Fausto, 2012). Para os xamãs, no entanto, elas não são a face dos itseke, mas
“antropomorfismo latente” que não é representado figurativamente como a sim- antes a sua “festa”, uma vez que seu “corpo” é humano.17
ples presença de um humano no interior de um animal, mas antes como uma “con-
junção específica entre o animal e o humano” (Severi, 2009: 484). As máscaras de
transformação não apenas mostram humanos com características morfológicas
animais, como também apresentam faces antropomorfas recobertas por pintura
corporal, cujos motivos, como sabemos graças a Bill Holm (1965), formam um
alfabeto combinatório de formas representando animais, por meio de sua redução
a componentes elementares. O que se marca por meio da pintura no rosto humano
no interior da máscara é, decerto, a condição social, o pertencimento a um clã par-
ticular, mas também uma combinação específica do humano e do animal.

um redemoinho de imagens

Passemos agora à Amazônia, onde não se encontram máscaras como as da Colúm-


bia-Britânica ou do Alasca. As convenções estéticas são aqui bastante diferen-
tes, embora os princípios formais sejam semelhantes. Começo pelo Alto Xingu,
em particular pelos Kuikuro que conheço diretamente, onde encontramos uma
Figura 8: Desenho de O. Dinger, baseado em foto de Herrmann Meyer, datado de 1896 (Krause 1960).
grande diversidade de máscaras rituais, que vai desde mascaramentos improvisa-
dos, muito vezes cômicos, até tipos repertoriáveis, distintos uns dos outros e muito A mais impressionante das máscaras xinguanas é, sem dúvida nenhuma, a do
estáveis no tempo.16 redemoinho, cujo primeiro registro fotográfico nos é devido a Herrmann Meyer,
O termo que designa a parte principal da máscara é “face” (imütü): a máscara datado de 1896. Reproduzida em desenho por O. Dinger, a imagem foi publicada
é um rosto ao qual se agrega uma vestimenta feita de palha que esconde o corpo no artigo que Fritz Krause dedicou às máscaras do Alto Xingu nos anos 1940
daquele que a utiliza. As máscaras sempre saem em casais e combinam antropo- (Figura 8).18 Entre os Kuikuro, a máscara-redemoinho, genericamente chamada
morfismo e zoomorfismo, um fato que, como vimos, intrigou Hermann Meyer. de atuguá, pode assumir quatro formas. Duas delas (agahütanga e agijamani) não
Para a maioria dos Kuikuro, as máscaras são a forma visível de certos itseke, os fazem referência a animais, ao passo que as duas outras são designadas por um
seres extraordinários que povoam o cosmos e podem capturar a alma dos huma- nome de animal seguido de um sufixo que indica uma condição ontológica espe-

oposições afim-consanguíneo ou presa-predador do que a distinção alma-corpo e sua projeção sobre 17 Certa vez, perguntei ao principal xamã kuikuro se a máscara era a aparência do itseke. Ele me res-
o par humano-animal. Minha inspiração inicial fora uma passagem de Marilyn Strathern sobre a pondeu: inhalü, isunduhugu higei, ihü bahüle kugei (“não, isto é a sua festa; o corpo, ao contrário, é
pessoa múltipla e o “dividual” (1988: 275), mas também se tratava de um pequeno gesto deleuziano, na humano”). O termo kuge designa a corporeidade humana, em particular xinguana (Fausto, 2012).
medida em que dava prioridade à multiplicidade em relação aos binarismos estruturais. Dito isto, é Esta questão aparentemente simples surpreendeu meus interlocutores não xamãs. Não somente pela
preciso observar que, se a formulação do animismo por Descola e a do perspectivismo por Viveiros de resposta, que não lhes parecia tão evidente assim, mas também pelo fato de eu ter posto a questão:
Castro são tributárias destes binarismos, o regime da metamorfose funciona aí como um dispositivo “Nós não teríamos coragem de perguntar essas coisas a um pajé”, me disseram. A imagem mental do
de desestabilização das oposições duais. não especialista sobre os itseke não é, pois, a de um humano tout court, um fato que vai ao encontro
16 Entre os Kuikuro, há cinco tipos principais: as máscaras ahasa feitas de grandes cabaças, as pequenas das imagens que os Wauja produziram a pedido de Barcelos Neto (2008), mesmo que muitas delas
máscaras aga feitas em madeira, as máscaras kuambü confeccionadas sobre uma tela de malha fina, tenham sido feitas por xamãs.
as enormes máscaras atuguá e, finalmente, as máscaras em madeira jakuikatu. Estas últimas, por sua 18 Steinen dedicou cerca de 30 páginas de seu livro Entre os Aborígenes do Brasil Central, relato da expe-
vez, são acompanhadas de outras máscaras que formam a sua “corte”. Com exceção das máscaras aga, dição de 1887, às máscaras jakuikatu e kuambü. Ele chega a descrever uma máscara atugua na aldeia
ainda não descritas na literatura, todas as outras aparecem em descrições etnográficas desde o final do Kamayurá, sem relacioná-la, contudo, a um desenho no solo, na saída de uma aldeia mehinaku, que
século XIX. Para uma descrição detalhada das máscaras arawak xinguanas, ver Barcelos Neto (2004). ele mesmo descreve como representando a face de aturuá (1940:306).

320 321
a máscara do animista carlos fausto

cial: eginkgokuegü (hiperpacu) e asutikuegü (hipersapo).19 A forma destas másca- Mas isto não acontece com frequência. Havia muitos anos que atuguá não se
ras, uma estrutura concêntrica com as linhas de fuga desenhadas pela palha, reen- fazia ver na aldeia kuikuro de Ipatse. Em 2009, porém, após quase um ano doente,
viam de maneira icônica a um redemoinho. Durante a performance, elas realizam Ipi foi diagnosticada como tendo sido vítima do Redemoinho. Pediram-lhe, então,
movimentos circulares rápidos, de modo que seu “chicote” (uma longa trança de que se tornasse dona da máscara e, em consequência, responsável pelo ritual no
palha fixa na parte posterior da máscara) atinja os espectadores à maneira dos qual estes artefatos fazem a sua aparição. Como de costume, houve primeiro o
turbilhões de poeira, muito frequentes na região durante a estação seca (Figura 9). que se chama de itseke inhenkgutoho, “o aportar do espírito”, que consiste em apre-
sentar, sem grande sofisticação formal, os espíritos patogênicos ao paciente ainda
convalescente. Uma vez curada, a família saiu para pescar e duas grandes máscaras
Agijamani foram confeccionadas no interior da casa dos homens. Isto impede que
todos conheçam a identidade de seu portador. Considera-se de mau gosto tentar
adivinhar quem esta lá dentro, uma vez que tal atitude faz com que a pessoa mas-
carada perca seu “valor”. Este jogo de dissimulação passa também pela voz: Rede-
moinho só fala por meio de uma pequena flauta e, sendo extremamente voraz,
unicamente para solicitar mais comida.
Há ainda outro requisito que, como veremos na próxima seção, é de extrema
importância: quem veste a máscara deve pintar de negro sua face e seu torso, e
de vermelho seus cabelos. Isto é necessário para a metamorfose do mascarado
em “espírito” – transformação que os Kuikuro designam itseketilü, uma verbaliza-
ção de itseke e que poderíamos traduzir como “espiritizar-se”.20 Entre os Kuikuro,
o mascarado não é somente “um acessório mecânico” da máscara, como sugere
Taylor (2010: 43) para o caso amazônico, pois mesmo que não seja possuído pelo
espírito, ele se torna ele próprio um espírito.21 Temos aqui um nível suplementar
de complexidade, já que a máscara que contém um humano contém agora um
humano transformado em não-humano. A pintura corporal, que também apare-
Figura 9: Casal de máscaras do Redemoinho, coleção Sepê Kuikuro. cia de modo elaborado nos rostos humanos das máscaras de transformação, acres-
centa um novo invólucro situado entre a máscara e a pele não decorada.
Se a máscara inteira é um redemoinho, ela é também uma pessoa com traços Ora, esta pele nua não é exatamente o invólucro de uma interioridade aní-
antropomorfos: possui olhos, um colar de conchas no lugar da boca e um dia- mica única.22 Não há, entre os Kuikuro, uma imagem unitária da pessoa: após o
dema de plumas, o que caracteriza a ornamentação ritual típica no Alto Xingu.
Ela porta ainda o motivo gráfico do tronco humano (os dois arcos em elipse), mas 20 A tradução de itseke como “espírito” é inexata, mas eu a utilizo aqui por economia de espaço (ver
Fausto, 2012). Eu tomei de empréstimo “espiritizar-se” de Cesarino (2011).
este tronco contém também um ícone animal (peixe ou sapo). Temos, assim, um
21 Ao ver uma foto de um dos mascarados segurando um cigarro, quando só os pajés Kuikuro fumam,
redemoinho, que é um animal, que é um humano e que é animado de dentro por perguntei a Mutuá a razão disto. Ele me respondeu: itseke hõhõ egei itsagü, “ele tinha estado espírito”.
uma pessoa que tem outro rosto e outro corpo. E é justamente em razão do fato 22 Como sói acontecer entre outros povos amazônicos, alma e imagem são designadas pelo mesmo termo:
de o corpo humano conter uma imagem (uma “alma”) que devemos personificar akunga. Contudo, em kuikuro, há um termo adicional, hutoho, que designa todo desenho ou toda
escultura figurativa, bem como a fotografia. Assim, o poste do kwarup é o hutoho do chefe homena-
e alimentar os turbilhões, já que eles podem roubar as imagens dos humanos que, geado, e o boneco do javari é kuge hutoho, “a efígie de pessoa humana” (ver Fausto e Penoni, no prelo).
em seguida, se tornam eles próprios turbilhões. Há também representações figurativas de animais no ritual, que são igualmente ditas x-hutoho ([nome
do animal]+escultura). Máscaras, no entanto, jamais são designadas como itseke hutoho. Há uma única
representação figurativa que, por sua vez, pode ser chamada akunga: trata-se da boneca antropomórfica
19 Para a tradução de kuegü como “hiper”, ver Franchetto (2003). usada pelos xamãs para recuperar as almas dos doentes capturadas por espíritos.

322 323
a máscara do animista carlos fausto

nascimento, o bebê permanece ligado à placenta, chamada de “avó”, que cuida da Vemos, assim, que o princípio do encaixe recursivo supõe uma sofisticação
criança, mas também pode capturar sua alma-imagem; ao longo da vida, cada específica da própria superfície. Há 80 anos, Fritz Krause já chamara a atenção
doença causada pelo roubo da alma-imagem conduz a uma consubstancialização para este fato, ao referir-se ao “motivo do invólucro” e ao “princípio da forma”
com a entidade que a rouba; os adolescentes do sexo masculino que sonham com em um artigo recentemente recuperado por Viveiros de Castro (2002: 348) no
o “dono da raiz” sempre são acompanhados por sua imagem que os transforma contexto da sua teoria perspectivista (1996) – teoria que atribui à corporalidade
em grandes campeões de luta, e os xamãs, naturalmente, têm sempre seus auxilia- a produção de uma descontinuidade em um mundo de continuidade subjetiva:
res presentes a seu lado. Por ocasião da morte, nossa imagem divide-se em múl-
De acordo com a concepção da unidade interna do homem com o resto do mundo
tiplas singularidades: uma imagem parte para o céu dos mortos, outras se juntam vivo – apesar da essência distinta que repousa na diversidade de corporalidade –
aos seres que causaram doenças em vida e, no caso dos campeões, vão viver com resulta a opinião de que homens e animais se relacionam como semelhantes, podendo
os “donos da raiz”.23 transformar-se reciprocamente através da mudança de forma física. O corpo e a sua
Os princípios formais que procuro colocar em evidência aqui, por meio da forma são os portadores da essência (1931: ms. 2).
análise das máscaras, têm uma clara afinidade com o modelo compósito e múlti- Dizer que a forma é portadora da essência significava, para Krause, a pre-
plo da identidade pessoal que foi proposto por vários colegas amazonistas. Não é valência do “motivo do invólucro”, cuja ilustração mais clara se encontrava nas
por acaso que esta matriz é empregada na figuração de seres extraordinários: se máscaras e nos mitos de metamorfose. E não é por acaso que seus melhores exem-
atribuímos uma subjetividade a objetos rituais, em particular uma subjetividade plos sejam justamente aqueles que estiveram no cerne de nossa discussão: as más-
poderosa, devemos construí-los, na América indígena, como seres múltiplos e caras  de transformação da Colúmbia britânica (que ele chamava de “máscaras
capazes de transformação. duplas”) e as máscaras da América do Sul, em particular os exemplares descritos
por Koch-Grünberg. Em sua análise, Krause recorre aos mitos para afirmar que
a pele e suas almas “a máscara representa o equivalente perfeito da pele animal”, vestida e despida,
conforme deseje transformar-se em humano ou em não-humano.24
Gostaria, agora, de me debruçar sobre um último ponto que diz respeito à noção
Krause não podia imaginar, no entanto, que o motivo do invólucro se mos-
de pele ou de invólucro na Amazônia. Vimos que, para os Kuikuro, a ação ritual de
traria ainda mais  imbricado do que ele supunha. Os dados de Koch-Grünberg
Redemoinho requer que o mascarado receba antes uma pintura corporal – neste
sobre as máscaras de entrecasca coletadas ao longo de sua expedição ao rio Negro,
caso, não um motivo gráfico sofisticado, mas um enegrecimento do corpo similar
entre 1903 e 1905, não permitiram à Krause ir mais longe. Um século mais tarde,
àquele aplicado pelos lutadores xinguanos antes do combate. Este invólucro de
no entanto, Irving Goldman provou que essas máscaras contêm uma multipli-
pintura é necessário para a sua transformação em itseke.
cidade desconcertante. Em seu livro póstumo, ele analisa algumas máscaras dos
Esta mesma ideia pode ser encontrada na Amazônia entre os Tikuna, para os índios Cubeo do Noroeste da Amazônia, que fazem a sua aparição em um ritual
quais a eficácia das máscaras depende da pintura corporal da pessoa que a veste. de lamentação funerária. Os dançarinos mascarados personificam as “gentes-ves-
Goulard relata um mito no qual um jovem caçador encontra um grupo de imor- timenta-de-entrecasca”, uma classe de animais primordiais associada ao persona-
tais mascarados. Levantando um pouco sua vestimenta, o caçador percebe que gem mítico Kuwái, que está na origem das flautas do Yurupari.25 Eis o que Gold-
estão todos decorados com pintura de jenipapo. O narrador tikuna conclui, então, man diz sobre estas máscaras:
que sem esta pintura as máscaras não serviriam para nada (Goulard, 2001: 77). Sua
eficácia é assim associada ao fato de conterem várias camadas de invólucros: no 24 Um bom exemplo disto é sua referência aos mitos kwakiutl coletados por G. Hunt, nos quais se atribui
interior da máscara, encontra-se a pele decorada, mas a pintura é ela também uma a origem dos clãs à vinda de um ser animal que retira sua máscara, se transformando, assim, em um
homem ancestral do clã e fazendo da máscara um dos emblemas clânicos. É preciso notar, no entanto,
outra pele (e uma outra máscara) que envolve uma imagem-alma. que Boas se refere também a outros temas míticos que narram, de modo diverso, como cada clã obteve
seus emblemas (crests) ([1897] 1970: 335-338).
23 O “dono da raiz” é um espírito inteiramente antropomorfo, com todas as características do homem 25 Segundo os povos arawak da região, estes aerofones têm sua origem na morte de Kuwái, que foi inci-
ideal altoxinguano. Ele possui o domínio sobre os vegetais utilizados pelos jovens em reclusão, que nerado por seu pai Iñapirrikuli (literalmente, “feito de osso”). De suas cinzas nasceu uma palmeira que
servem para fabricar seus corpos. está na origem de todos os aerofones utilizados ritualmente pelos humanos. Kuwái era um verdadeiro

324 325
a máscara do animista carlos fausto

Enquanto máscara de dança, takü (tawü, no plural) é uma cobertura externa e é como conclusão
uma pele. Como a pele orgânica, ela não é uma simples vestimenta. Com seus orna-
mentos, seus motivos gráficos e suas cores – cada qual representando uma substância Comecei este texto por uma breve discussão acerca das noções de crença e de pre-
vital diferente –, possui uma “pele” própria a ela. Os pigmentos são certamente sua sença. Ela seria supérflua não fosse o registro no qual minha análise se move: eu
pele e constituem um dos elementos que lhe dão vida (Goldman, 2004: 277).
não viso somente à análise da forma, mas também à resposta a esta forma. Uma
A máscara é a pele de um animal, que é uma “pessoa-vestimenta-de-entre- teoria da resposta às imagens tornou-se um elemento analítico central na antro-
casca”, e cada parte da máscara representa uma substância vital que possui sua pologia, ao menos desde o livro de Freedberg (1989) e sua reescritura, em chave
própria pele. Cada par de máscaras tem propriedades anímicas particulares, já não-ocidental, por Gell (1998). No caso que nos ocupa, as convenções estéticas e
que a manufatura humana lhes confere “sua ‘pele’, que é equivalente à forma-alma; os princípios formais que governam a manufatura das máscaras buscam, mais do
seu pigmento, que contém seu úme ou sua vida-alma; seus motivos gráficos, que que comunicar uma crença, extrair uma resposta. E esta resposta depende da pro-
revelam seus nomes; os cantos, que são a sua voz; os dançarinos, que são a sua dução de uma zona de incerteza, de uma instabilidade cognitiva na qual se pode
vida ativa; seus ornamentos, que os articulam às outras espécies do universo” abduzir uma agência (Gell, 1998) que não se sabe se é humana ou não-humana.
(Goldman 2004: 278). Vemos o quanto a noção de exterioridade designa aqui uma Em certa medida, esta ideia pode ser aplicada a todos os objetos rituais, de qual-
superfície composta por múltiplas partes animadas, de tal modo imbricadas umas quer tradição – o que nos conduziria a um destes universais tão triviais quanto
nas outras que não é possível encontrar uma identidade essencial, final, elementar infalsificáveis que constituem os limites epistemológicos de nossa disciplina. A
escondida sob o invólucro. variação intervém, no entanto, ao nível do regime iconográfico, ou seja, das con-
Esta conclusão vai ao encontro do que afirmei alhures sobre a corporalidade venções estéticas que presidem à produção de imagens em uma dada tradição.
nas ontologias ameríndias, ao escrever que o corpo dos animais não é uma “uni- Permitam-me uma breve comparação, tão preliminar quanto geral, que pode
dade monolítica, o substrato mecânico habitado por uma essência humanoide”, nos ajudar a melhor compreender o que o regime ameríndio de imagens tem de
mas, ao contrário, que cada uma de suas partes é “um edifício de almas múltiplas” singular. Segundo Hans Belting, que constituirá nosso ponto inicial de compa-
(Fausto, 2007: 512). Minha intenção era então a de sofisticar a distinção entre rou- ração, o princípio formal que desencadeia a atribuição de subjetividade a uma
pa-animal e alma-humana, sugerindo que na Amazônia existia uma tensão entre imagem na tradição cristã é a semelhança e, em particular, a verossimilhança. A
dois modos de pluralidade: o dual e o múltiplo. O primeiro modo corresponderia percepção da presença do divino a partir de uma imagem seria função da corres-
à distinção que critico aqui – não por ser incorreta, mas por contar apenas parte pondência exata entre a imagem e o protótipo (o que seria universalmente válido
da história, uma parte que me parece menos produtiva, sobretudo quando se trata segundo Freedberg).
de pensar as formas de representação de seres extraordinários em contexto ritual. Esta questão remete a uma longa e complexa história que não tenho nem
Ao longo deste texto, procurei mostrar que, ao contrário, as máscaras, assim como espaço nem a competência para investigar aqui.27 Gostaria simplesmente de
outros objetos rituais ameríndios, operam antes no registro da multiplicidade e assinalar um ponto que diz respeito à representação da dupla natureza, divina e
do encaixe recursivo do que na distinção dual entre uma interioridade humana e humana, de Cristo. A este problema, o cristianismo respondeu com uma antro-
uma exterioridade animal.26 Para concluir, gostaria de fazer uma breve digressão pomorfização e uma simplificação radicais da imagem. Cristo reúne, em uma
comparativa que talvez permita que essa ideia seja melhor entendida. única pessoa, um corpo humano passível de representação e uma essência divina,
intangível e irrepresentável. O paradoxo teológico colocado pelo fato de Cristo ser,
Arcimboldo sonoro, uma vez que continha em seu corpo todos os sons dos animais: “Kuwái ‘fala’ com
ao mesmo tempo, homem e Deus (e Deus simultaneamente pai, filho e espírito)
todas as partes de seu corpo – pés, mãos, costas, pescoço, braço, pernas e pênis –, não somente com
seus órgãos fonatórios. E cada parte do corpo é dita ser uma espécie de peixe, de pássaro ou de animal
da floresta [ ] Kuwái é, assim, um ser antropomorfo cujo corpo é, ao mesmo tempo, uma síntese zoo- 27 Levo em conta somente a tradição hegemônica no Ocidente, tendo em mente que há contraexemplos
morfa de todas as espécies animais” (Hill 2011). nas tradições populares no Velho e no Novo Mundo. É preciso lembrar que sempre houve mecanis-
26 Além disso, é preciso notar que nos habituamos muito rapidamente a pensar somente no motivo da roupa mos poderosos de normalização, como nota Schmitt a propósito da condenação pelo papa Urbano VII
zoomorfa dissimulando uma alma antropomorfa. Há, no entanto, exemplos etnográficos nos quais a pró- da “figuração da Trindade sob a forma ‘monstruosa’ de um homem com três rostos” (2002: 139). Para
pria forma humana é uma roupa. Entre os Kuikuro, por exemplo, quando um itseke aparece sob a forma uma “compatibilidade equívoca” (Pina-Cabral, 1999) desta representação “monstruosa” da Trindade e
humana em sonho, diz-se que ele vestiu uma roupa humana (itseke etinhundelü kuge ingü atati). a concepção asteca da pessoa no contexto da colonização do México, ver Furst (1998).

326 327
a máscara do animista carlos fausto

foi evacuado em favor de uma representação figurativa, naturalista e unitária da BOAS, Franz. The Kwakiutl of Vancouver island. Leiden/New York: E. J. Brill-G.E. Stechert,
divindade enquanto homem. 1909.
O caráter transformacional dos seres, a ambiguidade das formas e o zoomor- ______. Primitive art. Oslo-Cambridge (Mass.): H. Aschehoug & Co./Harvard University
Press, 1927.
fismo foram, todos, associados ao demoníaco. O diabo e os demônios capturaram
BOAS, Franz; HUNT, George. The social organization and the secret societies of the Kwakiutl
esta possibilidade de  “saliência” formal, mas como negativo da representação legí-
indians. Nova York: Johnson Reprint Corp, 1970 [1897].
tima. Não é sem razão, como nota Schmitt (2001: 211), que a cultura hegemônica
BOYER, Pascal. The naturalness of religious ideas.Cambridge: Cambridge University Press,
da Igreja tenha, desde a origem, violentamente condenado as festas de máscaras. 1994.
Não por se tratar de uma falsa aparência, mas por produzir uma similitude ile-
CESARINO, Pedro N. Oniska: Poética do xamanismo na Amazônia. São Paulo: Perspectiva,
gítima que “fere, de fato, a única similitude legítima: aquela do homem criado à 2011.
‘imagem de Deus’ (Gênesis I, 26)” (ibid.: 217). E essa ruptura não é sem conse- COLE, Douglas. Franz Boas: the early years, 1858-1906. Vancouver-Seattle: Douglas &
quências, pois o mascarar-se não resulta em simples disfarce, mas sim em transfi- McIntyre/University of Washington Press, 1999.
guração que é própria ao Diabo, o qual por vezes é representado justamente como CURTIS, Edward. The North American Indian. Norwood (Mass.): Plimpton Press, v. 10, 1914.
uma multitude de máscaras: DANTO, Arthur Coleman. The transfiguration of the commonplace: a philosophy of art.
Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1981.
Desse modo, a iconografia da baixa Idade Média o representa frequentemente exi-
bindo no baixo ventre e no posterior as réplicas fiéis de seu rosto. Mas estes rostos ______. Art/Artifact: African art in anthropology collections. Nova York: Center for African
multiplicados não são máscaras que o diabo usaria: eles são a sua barriga, seu traseiro, Art-Neueus Pub. Co., 1988.
suas articulações, como a lembrança delirante do que ele é, a Máscara, por excelência ______. After the end of art: contemporary art and the pale of History. Princeton: Princeton
(Schmitt, 2001: 219). University Press, 1997.
DESCOLA, Philippe. “Societies of nature and the nature of society”. In: KUPER, A. (dir.).
A associação entre o rosto, a transfiguração e o demônio fez-se sentir diversas Conceptualizing society. Londres, Routledge, p. 197-226, 1992.
vezes durante a colonização das Américas, em particular na condenação violenta ______. Par-delà nature et culture. Paris: Gallimard, 2005.
do uso das máscaras e da pintura corporal (em particular no rosto) feita pelos mis- ______. “Un monde animé: présentation”. In: DESCOLA, P. (dir.). La fabrique des ima-
sionários. Não era de se esperar outra coisa, uma vez que a tradição iconográfica ges: visions du monde et formes de la représentation. Paris, Somogy-Museu du Quai
ameríndia floresceu em um solo muito diferente daquele cristão: seu problema Branly, p. 23-38, 2010.
jamais foi a semelhança e a forma humana, mas o modo de representar a transfor- FAUSTO, Carlos. “The bones affair: knowledge practices in contact situations seen from an
mação, de transpor em imagens o fluxo transformacional que caracteriza os seres Amazonian case”. In: Journal of the Royal Anthropological Institute, 8 (4), p. 669-690,
2002.
poderosos. A resposta a este problema não podia ser encontrada na reprodução a
______. “Feasting on people: eating animals and humans in Amazonia”. In: Current
mais exata possível das formas naturais; mas, ao contrário, era preciso buscá-la na
Anthropology, 48 (4), p. 497-530, 2007.
geração de imagens as mais complexas e paradoxais possíveis, nas quais as identi-
______. “Masques et trophées: de la visibilité des être invisibles en Amazonie”. In: GOU-
dades estão encaixadas e os referentes são múltiplos. LARD, J. P.; KARADIMAS, D. (dir). Le regard des masques: agents et objets en Amazonie
indienne. Paris: CNRS Éditions, 2011.
referências bibliográficas ______. “Sangue de Lua: reflexões ameríndias sobre espíritos e eclipses”. In: Journal de la
Société des Américanistes, 96, p. 63-80, 2012.
BARCELOS NETO, Aristóteles. “As máscaras rituais do Alto Xingu um século depois de Karl
FAUSTO, Carlos; PENONI, Isabel. “L’effigie, le cousin et le mort: Un essai sur le rituel du
von den Steinen”. In: Bulletin de la Société Suisse des Américanistes, 68, p. 51-71, 2004.
Javari (Haut Xingu, Brésil”. In: Cahiers d’Anthropologie Sociale. (no prelo)
______. Apapaatai: rituais de máscaras no Alto Xingu. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2008.
FIENUP-RIORDAN, Ann. The living tradition of Yup’ik masks: Agayuliyararput (our way of
BELTING, Hans. The end of the history of art? Chicago: University of Chicago Press, 1987. making prayer). Seattle: University of Washington Press, 1996.
______. Likeness and presence: a history of the image before the era of art. Chicago: Univer- FRANCHETTO, Bruna. “L’autre du même: parallélisme et grammaire dans l’art verbal des
sity of Chicago Press, 1994. récits kuikuro (caribe du Haut Xingu, Brésil)”. In: Amerindia, 28, p. 213-248, 2003.

328 329
a máscara do animista carlos fausto

FREEDBERG, David. The power of images: studies in the history and theory of response. Chi- PENONI, Isabel. Hagaka: ritual, performance e ficção entre os Kuikuro do Alto Xingu. Rio de
cago: University of Chicago Press, 1989. Janeiro, Museu Nacional-UFRJ, Dissertação de Mestrado, 2010.
FURST, Jill Leslie McKeever. “The nahualli of Christ: the trinity and the nature of the soul PETRULLO, Vincent M. “Primitive peoples of Matto Grosso, Brasil”. In: The Museum Jour-
in ancient Mexico”. In: Res. Anthropology and Aesthetics, 33, p. 208-224, 1998. nal (Philadelphia), 23 (2), p. 83-173, 1932.
GELL, Alfred. Art and agency. An anthropological theory. Oxford: Clarendon Press, 1998. PINA-CABRAL, João de. “Trafic humain à Macao. Les compatibilités équivoques de la
______. The art of anthropology: essays and diagrams. Londres: The Athlone Press, 1999. communication interculturelle”. In: Ethnologie Française, XXIX (2), p. 225-236, 1999.
GOLDMAN, Irving. Cubeo Hehénewa religious thought: metaphysics of a northwestern Ama- POUILLON, Jean. Le cru et le su. Paris: Seuil, 1993.
zonian people. Nova York: Columbia University Press, 2004. SCHMIDT, Max. Indianerstudien in Zentralbrasilien. Erlebnisse und ethnologische. Ergeb-
GOULARD, Jean-Pierre “Le costume-masque”. In: Bulletin de la Société Suisse des América- nisse einer Reise in den Jahren 1900-1901. Berlim: Dietrich Reimer, 1905.
nistes, 64, p. 75-82. SCHMITT, Jean-Claude. Le corps des images: essais sur la culture visuelle au Moyen Age.
HILL, Jonathan. “Soundscaping the World: the cultural poetics of power and meaning in Paris: Gallimard, 2002.
Wakuénai flute music”. In: HILL, J. D.; CHAUMEIL, J. P. (dir.). Burst of breath. Indi- ______. Le corps, les rites, les rêves, le temps: essais d’anthropologie médiévale. Paris: Galli-
genous ritual wind instruments in Lowland South America. Lincoln: University of mard, 2001.
Nebraska Press, p. 93-122, 2011. SEVERI, Carlo. Le principe de la chimère. Une anthropologie de la mémoire. Paris: Rue
HOLM, Bill. Northwest Coast indian art: an analysis of form. Seattle: University of Washington d’Ulm/Presses de l’École Normale Supérieure, 2007.
Press, 1965. ______. “L’univers des arts de la mémoire: anthropologie d’un artefact mental”. In: Anna-
INGOLD, Tim. The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling & skill. lesHSS, 2, p. 463-493, 2009.
Londres; Nova York: Routledge, 2000. STEINEN, Karl von den; SCHADEN, Egon. Entre os aborígenes do Brasil central. São Paulo:
JONAITIS, Aldona. Art of the Northwest Coast. Seattle-Vancouver: University of Washing- Departamento de Cultura, 1940.
ton Press/Douglas & McIntyre, 2006. STRATHERN, Marilyn. The Gender of the Gift. Berkeley: University of California Press, 1988.
KRAUSE, Fritz. “Maske und ahnenfigur: das motiv der hülle und das prinzip der form”. In: TAYLOR, Anne-Christine. “Voir comme un autre: figurations amazoniennes de l’âme et des
Ethnologische Studien, 1, p. 344-364, 1931. [citado a partir de uma tradução manus- corps”. In: DESCOLA, P. (dir.). La fabrique des images : visions du monde et formes de la
crita de Angela Rodrigues disponível na Biblioteca Francisca Keller, PPGAS, Museu représentation. Paris: Somogy/Museu du Quai Branly, p. 41-52, 2010.
Nacional – UFRJ].
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo amerín-
______. “Máscaras grandes no Alto Xingu”. In: Revista do Museu Paulista, 12, p. 87-124, 1960. dio”. In: Mana. Estudos de Antropologia Social, 2 (2), p. 115-144, 1996.
LANG, Berel (org.). The death of art. Nova York: Haven Publishers, 1984. ______. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
LATOUR, Bruno; WEIBEL, Peter. Iconoclash. Beyond the image wars in science, religion and
art. Karlsruhe-Cambridge (Mass.): ZKM-MIT Press, 2002.
LENCLUD, Gérard. “Vues de l’esprit, art de l’autre”. In: Terrain, 14, p. 5-19, 1990.
MITCHELL, W. J. Thomas. What do pictures want? The lives and loves of images. Chicago:
University of Chicago Press, 2005.
MEYER, Hermann. “Die kunst der Xingú-Indianer”. In: Internationaler Amerikanisten-
Kongress (14a conferência, Stuttgart, 1904), v. II, Berlim-Stuttgart-Leipzig: Kohlham-
mer, p. 455-473, 1906.
NEEDHAM, Rodney. Belief, language and experience. Oxford: Basil Blackwell, 1972.
NORET, Joël. “En finir avec les croyances? Croire aux ancêtres au Sud-Bénin”. In: NORET, J.;
PETIT, P. (dir.). Corps, performance, religion. Études anthropologiques offertes à Phili-
ppe Jesper. Paris: Publibook, p. 283-307, 2007.
OOSTEN, Jarich. “Representing the spirits: the masks of the Alaskan Inuit”. In: COOTE, J.;
SHELTON, A. (dir.). Anthropology, art and aesthetics. Oxford: Clarendon Press, p. 113-134,
1992.

330 331
Os autores

ANDRÉ DEMARCHI
Professor de Antropologia na Universidade Federal do Tocantins, doutorando em
Antropologia no PPGSA/IFCS/UFRJ.

ARISTÓTELES BARCELOS NETO


Professor no Sainsbury Research Unit for the Arts of Africa, Oceania and the
Americas (University of East Anglia).

CARLOS FAUSTO
Professor em antropologia no PPGAS-Museu Nacional-UFRJ.

CARLOS SEVERI
Professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales e pesquisador do Labo-
ratoire d’anthropologie sociale, Collège de France, Paris.

CHARLES STÉPANOFF
Professor de antropologia da École Pratique de Hautes Études, Paris.

ELS LAGROU
Professora do Progrma de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA,
UFRJ).

ESTHER JEAN LANGDON


Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS,
UFSC).

333
LUCIA HUSSAK VAN VELTHEM
Pesquisadora do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG/SCUP – MCTI).

LUISA ELVIRA BELAUNDE


Professora Visitante Senior pela CAPES, PPGSA/IFCS, Universidade Federal de Rio
de Janeiro, Pontificia Universidad Católica del Perú.

PETER BEYSEN
Doutor pelo PPGSA/IFCS/UFRJ, Pesquisador associado ao Museu do Índio Projeto
Prodocult/UNESCO.

REGINA POLO MÜLLER


Professora do Instituto de Artes, Unicamp.

334
impresso eletronicamente
na gráfica singular digital
para viveiros de castro editora
em dezembro de 2013.

Você também pode gostar