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IDENTIDADES INTERSECCIONAIS E MILITÂNCIAS POLÍTICA


Vanilda Maria de Oliveira

INTRODUÇÃO
se configura-
No feminismo cont emp orân eo, _a raça ' e a lesbianidade
desagregação
ram temas visivelmente problemáticos , responsáveis pela
nom os de luta
de grupos de mulheres e pela form ação de espaços autô
gêne ro, raça
(Alvarez, 2000). Debates relacionados ao cruzamento entre
feminis~
e orie ntação sexual contribuíram para o surgimento dos
-~
- - -
negro e lésbico. Porém, a_c;r_~:~cente visibilização política
de mulheres
ncias de que,
qµe se assumem com o lésbicas I}fgta~ trouxe à tona d~nú
cas opressivas
tamb ém estes femi nismos, têm sido cúmplices de práti
Atua lmen te, a
com o a lesbofobia, de um lado, e o racismo, de outro.
tem ganh ado
discussão em torn o da lesbianidade de mulh eres negras
Rege N3::
visibilidade política especialmente devido à criação2 de uma
.
cional de Lésbicas Negr~s e da_Rede Afro LGB TT em 2006
perceber
Kimberly Crenshaw (2002) ressalta a necessidade de se
conj unto de
as várias form as pelas quais o gênero cruza-se com um

como categorias nativas, quanto como categorias


' Os termos ~ e identidade racial serão utilizadqs, canto
so de racialização, e, consequentemente, do
de anál ise sociológica, impor tante para se tratar do i:iroces
o de autores que mantém o uso dessa catego ria
racism o na socieda de brasileira. Compartilho a opiniã
houver uma percepção racializad:i dos sujeitos,
porque acredit am que não se pode haver racismo se não
relações sociais no Brasil (Ver Bernardino, 2004;
portan to , esse termo ainda faz sentido para se analisar
Costa, 2002; G uimarães, 1999; lanni, 2004)
travestis e transexuais.
' Sigla utilizada para se referir lésbicas, gays, bissexu ais,
C homossexualidadaje[r=:
cu,..lt-ura
_ _ _

CONJUGALIDADES, PARENTALI DADES E IDENTIDADES l~S BICAS, GAYS ETRAVESTIS

outras identidades, e a m an ~ira como essas interseções cont ºb


·1·d d n uem para
a vu l nera b I l . a e de diferentes grupos d e m Ih segredo estão ~ oly.idas r_elaçõ~.s;.der. Para Sedgwick, tornar a
. . u eres e sugere O uso do
conceito de mterseccionalidade a fim captura . homossexualidade secreta e evidenciar a heterossexualidade é uma ma-
dº A • • r os aspectos estruturais
'
nobra que visa à reiteração da heteronormatividade. Da mesma forma,
e 1~am1cos da _m ~eracão entre dois ou mais eixos da subordinação. A
partir deste conceito, pode-se pensar sobre a fo rma pela tornar a identificação -racial problemática torna-se uma forma de não
. 1
q ua o cruza- identificar lugares sociais resultantes das relações racistas sob as quais se
me~ t? do !ªCls..!_119, do sexismo e d a homofobia cria desigualdades que
construíram a sociedade brasileira e, dessa forma, mantê-las.
pos1c10nam social e politicamente alguns grupos.
D éborah Britzman (1996) alega que o "armário" está relacionado
. Crens~a"'.' mos_tr~ _dois E_rohl.e;.m as decorrentes d e não se atentar para
ao aprendizado, por parte de gays e lésbicas, das maneiras de esconder
a mtersecçao 1dent1tana. Um deles , ~ nc:lusa-_0-,-que d i·z· respeito
· ao
· os significantes da homossexuali1ade de quem não a tolera e, ao mes-
movim_ento feminista, e acontece quando uma condição es~ ífica de
mo tempo, de como torná-los perceptíveis a quem tem o interesse e o
determinadas mulheres g ponrada como um nroblema geral das mulh ·
d · i;;; - _ • eres, conhecimento para reconhecê-los, como a comunidade gay e lésbica.
não eixando claro que alguns grupos de mulheres estão ~ ais sujeitos a A expressão "saída do armário", por sua vez, indica que a a~oç~~
abusos ~o que outros. Outro problema6sllb ~ que d iz respeito uma identidade homossexual exige, além da maniP..0 ~ de sma!.§..ill!e
ao movimento negro, e que acontece, quando os homens e m ulheres que ~ i; ~ -s~~ri~ntaç ã ~.tl, _g__~~_?- i~1~f~u~ ~tido
fazem parte do mesmo grupo racial entendem que a sua subordinação seja de_Í~vel~-;-e~t ''s~egred~", tO_!DM _p_@>Jifa_!i ua_hQ.mossexu~ idade. Segundo
resultado exclusivo da identificação racial, ~ do invisível as questões de Britzman (1996), d~ve~~s~eçonhecer gu~~s i.9~n1_idade~_g_az:s e lésbicas
~ - Dessa forma, a d iferença' torna-se invisível e, com ela, a percepção atuam no interior _de~i!?es_discursivos de normatividad~ de violência
de que distintos gru~-s vivenciam opressões de ·formas diversificadas. simbólica e material e_çl~_ibilidade polic~ad~:.Envolvem Ufllprocesso
Assim, deve!Ilos estar atentos para as diferenças .!.!!li e im ragruP..º· d;id~~~ifi~ação, d~si demili,c:~ção eJ<;'. articulação, de con~trução_de um
Este artigo trata do modo como um grupo de fiministas negras de nov~di~~urso do eu, dos outros e do desejo.
Goiânia está envolvido na militância_feminis_ta, com foco na questão --- Para Jeffrey Weeks (1999) as_identidades sexuais ~ão ~i~tór!ca e
r~ quais os significados g_ue elas atribuem à lesbianidade...e qual a. culturalmente específicas! seleciona_da_!i de um grande núm_ero de iden-
rels1ção d.elas com as feministas lésbicas. Apresenta, ainda, com_.2_elas tidades sociais p o~síveis. Não são atributos necessários de 1mpuls~s-ou
di ~ utem a co nstruçã,Q d a identidade e da militância das mulh eres ~tjos sexuais particulares, mas surgem da busca de fixar _e estabilizar
negras lésbicas. tais identidades, para dizer q uem somos ao contar a respe1_to de nosso
sexo. Weeks esclarece que as identidades ~e~uais, espec1alme~ te as
esti_gmª t_izJ das pela sociedade, são escolhas feitas co':'.1 ~m mawr 0 ~
IDENTIDADES E ARMÁRIOS i~enor grau de liberdade individu ais. Muitas pessoas sao e'.npur~ada:
- - a identidade são forçadas a escolhas, através da esugmauzaçao
Diversas/os autoras/es têm atentado para a relação dos sujeitos com os para ' •d ·d d b rtas
armários, especialmente no que se refere à homossexualidade. C onforme ou descrédito público, enquanto outras adotam i_ enu a _es~ :ma
por razões políticas. Isso porque sentimentos e deseJ~S sexu~1s ~ao
Sedgwick (1990) , a sexualidade e, mais especificamente, a hom ossexu -
coisa enquanto que a aceitação de uma posição social parncu ar eu~
alidade, tornou-se, a partir do século XJX, tema de interesse público
e, ao mesmo tempo, um assunto íntimo , privado, que possibilitaria
aos homossexuais d ecidir ou não por revelar-se. M as ela ressalta que é
::f~~:;;;;.:o~::~h::;;~,:;;'::C~:,:t: ~i'~::~P:~:;,~::
evidente que i:1ª definição do q ue deve ou não adq uirir a fo_rm a de um e identidade sexual.

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homossexuahdadeleicultura ) 11
CONJUGA LIDADES, PARENTALIDADES EIDENTIDADES LtSBICAS
, GAYS ETRAVESTIS
Luiz Mello (2005 ) destaca que no Brasil, gay, lésbic a e homos
sexual como , no Brasil, as esferas política, cultural, econômica, jurídic
são categorias identitárias e sociop olíticas, larga e indisti ntame a e social
nte utiliza- estão racializadas e mostra como o menci onado reconhecime
das por milita ntes, intelectuais, jornalistas, religiosos, polític nto social
os, médicos, do mestiço se deu às custas da depreciação dos pretos.
psicólogos e muito s outros , quand o fazem referência aos sujeito
s que ele- Guim arães (1999) explicita como a categoria 'cor'
gem outros de seu própr io sexo como objeto de amor funcio na como
e de desejo . Mello uma imagem figurada da raça, pois, segundo ele, para que
ressalta, no entan to, que essas identi dades são definidas politic alguém possa
amente e ser classificado pela cor é necessário que a cor tenha
que envolvefi?. ~ivet~O§ fatores , como respostas ã a um signifi cado social.
êmãnd as-e; pec rfiêãs, Segun do Guim arães, ainda que o termo cor seja defend ido
às interpretaçõ es errôneas da homossexualidade, a conflitos grupai como uma
se auto-descrição das pessoas, ele baseia-se em uma hierarq uia
a fatos impor tantes como , por exemplo, o surgim ento da classifi catória
epidemia de em que o branco seria concebido como melho r e o preto
HIV/A IDS, que, ainda que tenha influenciado fortemente como pior.
o ativism o Assim, a liberd ade de assumir-se negra pode
homo ssexual no Brasil e no mund o, por outro lado, não ser questi onada .
propo rciono u, Berna rdino (2004) explica a necessidade da identificação
da mesm a forma, a visibilidade de gays e lésbicas, pois ficou racial
conhecida reafirm ada pelo movimento negro devido ao fato de que,
como a peste gay. mesm o com
o desmantelamento de teorias biológicas e crenças mal-in
No entan to, ao tratar dos armár ios, é necessário lembr formadas que
ar que esta contri buíram para consti tuir raças humanas a partir de traços
não é uma particularid ade dos homossexuais. D evido à morfoló-
forma como se gicos, como cor da pele, tipo de cabelo e forma to do nariz,
estabeleceram as relações raciais no Brasil, as/ os negras / os a noção de
também têm raça contin ua fundamenta ndo hierar quizações e discrim
uma forte relação com o armário. Como resultado do racism inaçõe s entre
o, dos ideais indiví duos. Bernardino enfati za que o fato de a raça não
de miscigenação e embra nquec iment o, não apenas tem enco ntrar
feito sentido subsíd ios científicos não imped e que ela não tenha eficáci
pergu ntar se alguém é ou não negra/ o como também a social, ao
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é recorrente a contrá rio, ela consti tui um critério significativo nas relaçõ
tentativa de negação da negrit ude, própri a ou de outra es sociais
1
pessoa, mesmo e de poder. Em razão disso, para o movimento negro
quand o as marcas corporais são muito visíveis. As image , a criação de
ns do mestiço medidas anti-racismo deve passar pela admissão de que
e dos morenos, com diferentes graus de moren idade, eviden existem raças,
ciam isso. ou melhor, de que existe uma percepção racializada dos
Nesse sentido, Lilia Schwarcz ( 1998) mostra como se criou sujeitos que
1\ no Brasil influencia demasiadamente na produ ção de desigualdade
um discurso em que a classificação racial é apresentada como s sociais e de
contextual, preconceitos. Assim , uma das principais preocupações do
não sendo vista como significativa em todas as relações sociais movim ento
, nem tam- é que as pessoas que possam ser consideradas negras, seja
pouco impregnada nas estruturas sociais , mas, algo que pelas marcas
pertenceria ao corporais, ou pela ancestralidade, que o façam.
domín io da intimi dade, já que só teria impor tância em algum Segundo H anchard (2001 ), a eficácia do racismo no Brasil
as relações se dá
interpessoais. De acordo com esse ideal, segundo Schwa pelo modo peculi ar em que ele tanto é produzido quant
rcz, o peso do o negado.
contexto social daria origem a um sistema classif icatóri Hanch ard percebe que a hegem onia racial dos
o multir racial, branco s no Brasil ft.m-
em que se encon tra um predo mínio de auto-classificações ciona de modo a estruturar a desigualdade racial, negar
em torno sua existência
das categorias br~ ca, parda, preta, moren a, marro m, por meio da ideologia da democracia racial e da criação
moren a-d ara, de vários me-
morena-escura, mulata, entre tantas outras. Portan to, a negrit canismos para garantir sua perpet uação , inclusive a desleg
ude teria itimação da
tanto a ver com discursos públicos quant o com a intimi dade e, dessa identificação racial.
forma , a pessoa teria o "direito" de decidir sobre publicizar Assim, apropriar-se de identidades tem sido útil para ressalt
ou não algo ar di-
de caráter tão pessoal. Schwarcz ( 1998) critica esse discur ferenças sociais em um contexto político-cultural em que
so e evidencia a igualdade
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hõmo>sexualiêl.í&jelculfura ) CONJUGAUOADES, PARENTALIDADES E IDENTlDADf.5 usa.lCAS, GAYS 1 ~YUTI}'
formal entre as/os cidadãs/ãos é afirmada retóricamente, ao m esmo tem- haja vista o quanto essas construções são interligadas. Os negros, por
po em que são garantidas posições de privilégios constituídas ao longo sua vez, podem disfarçar as m arcas d e sua negritude aproximando-se
, da história. Assim, tanto a orientação sexual - homossexual - quanto d os padrões es téticos brancos e adotando classificações baseadas em
o pertencimento racial - negro - estão relacionados a discursos q ue co r, ao invés de raça.
envolvem a intimidade. A ironia é que homossexuais e negros podem Mas Sedgwick (1990) também discorre a respeito d a existência de
optar por fu.lar a respeito de si da forma que heterossexuais e brancos um ti po de "arm ário de vidro", que surge quando as m arcas corpo rais
não necessitam, afinal de contas, a heterossexualidade e a branquitude socialmente definidas, e defin idoras são, d e tal forma , visíveis que difi-
são publicas e prestigiadas. culta a permanência nele, pelo m en os diante de quem tem capacidade
Há outras questões apontadas por Sedgwick, importantes para pensar os d e ler certos significantes. Portant9, há a possibilidade de que outros
armários negro e homossexual. Sedgwick (1990) destaca que, na medida em descubram quem o sujeito é e aponte-o. Sendo assim, o sujeito nunca
que o pensamento ocidental passa a conceitualizar o desejo e a idenàdade tem a autoridade total da definição de si m esmo, podendo ser alter-
sexual, considerando as classificações hetero/homossexual, e a adotar um iden tificado co mo homossexual ou n egra/o.
discurso que é, ao mesmo tempo universalizador (porque aceita que há uma
orientação estável do desejo sexual que pode definir uma identidade sexual) ,
O FEMINISMO NEGRO EM GOIÁS E A DISCUSSÃO DA
por outro lado, é um discurso minorizador de pessoas, porque é capaz de
definir uma minoria de sujeitos que orientam seu desejo para pessoas do LESBIANIDADE
mesmo gênero. Assim, no discurso universalizador, a divisão hetero/homos- Segundo Cinthya Sarei (2 004 ) e Céli Pinto (2003), o movimento
sexuais é determinante na vida de todas as pessoas. Já no discurso minori- de mulheres no Brasil se distingue entre movimento fem in ista e
zador, parece que essa divisão só é importante para homossexuais, que são movimento de mulheres. O feminismo foi um movimen to que se
os sujeitos marcados pela orientação sexual. Acontece que, no Brasil, a idéia construiu com marcas sociais precisas, formado por mulheres com
de mestiçagem gera argumentos recorrentes de que todas/os resultamos do educação universitária, pertencentes a camadas médi as , moradoras
cruzamento das três "raças originais brasileiras": branca, indígena e negra e de centros urbanos, associadas ao exíl io político ou à formação
que, portanto, as raças e cultura se misturaram de forma a não ser possível educacional e profissional, recursos de ordem material e simbólica
mais a identificação de diferentes grupos raciais. Assim, as/os negras/os, da não acessíveis a todas as mulheres, sobretudo na sociedade brasi-
mesma forma que as/os homossexuais, vêem-se entre um discurso univer- leira, marcada por profundas desigualdades sociais (Sarei, 2004;
salizador e minorizador. Todas/os as/os brasileiras/os seriam, de acordo com Pinto, 2003). O movimento de mulheres se constimiu a partir da
esse discurso, descendentes de africanas/os, mas menos da metade delas/es organização de mulheres de classes populares na luta pela melhoria
é afro-brasileira ou negra. das condições de vida das mulheres em movimentos populares, tais
Por outro lado, como destaca Sedgwick, ninguém está o tempo como organizações de bairro e pastorais da Igreja Católica, espaços
todo dentro ou fora do armário, e sair ou entrar dele faz parte dos em que discussões a respeito do aborto, sexualidade, planejamento
cálculos dos custos e benefícios da ação. Essa é mais uma caracterís- familiar, entre outras, eram evitadas.
tica do armário comum a homossexuais e negras/os no Brasil, já que, É a partir da década de 1990, que começa a se conscituir, em todo
ainda que as estratégias utilizadas para disfarçar sua condição sejam o Brasil, o movimento das mulheres negras, denunciando como o cru-
diferentes, a possibilidade existe para ambos. Homossexuais escondem zamento de subordinações poderia intensificar as desigualdades sociais.
sua homossexualidade por meio da subordinação às normas de gênero, ' Suely Carneiro (2003) destaca como a emergência de um movimento de
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homossexuaildad•!-taalfura 1 CONJUGALIDADES, PARENTALIDADES E IDENTIDADES LtSBICAS, GAYS E TRAVESTIS
mulheres negras, ao trazer para a cena política as contradições resultante.~ de Mulheres Negras apenas oito co ncordaram em criar uma ONG de
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da articulação das variáveis ' raça', 'classe' e 'gênero', promove a síntese fe mi nistas negras em 1999 •
das bandeiras de luta historicamente levantadas pelos movimentos negro N o entanto, essa militância "n unca teria sido fácil" . Com o dem o ns-
e de mulheres do país, "enegrecendo", de um lad o, as reivindicações tram as integrantes da O FNG, além de influenciar na q ualidade de
das mulheres, tornando-as, assim, m ais representativas d o conjunto de vida das mulheres negras, a gravidade das desigualdades raciais entre as
mulheres brasileiras e, por outro lad o, promovendo a feminização das m ulheres brasi leiras também se refletiu na militância feminista. Enu e as
propostas e reivindicações do movimento negro. Carneiro salienta que, conseqüências da onguização e da profissionalizaç ão do feminismo está
assim como o racismo estabelece a infe rioridade social d os segmentos a criação de novas h ierarquias entre feministas e entre grupos. Organi-
negros da população em geral, e das m ulheres negras em p articular, zações de m ulheres com menor esçolaridade não conseguem competir
ele opera como fator de divisão das mulheres pelos privilégios q ue se por financiam entos e espaços de debates com os grupos de profissionais
brancas, de classe m édia e com formação acadêmica, fato que acaba por
'
instituem para as brancas.
A construção do movimento de mulheres negras em G o iânia está conformar e reconfigurar antigos p rivilégios das m ulheres brancas de
relacionada às Pastorais da Igrej a Católica, espaço privilegiado de mu- classe m édia (Alvarez, 2000).
lheres e homens negros e pobres. Segundo m inhas entrevistadas, da O trabalho da O FN G passa a envolver, especialmente, uma ressig-
Organização de Feministas Negras de Goiânia (OFNG) , da m esma nificação do papel das mulheres negras na sociedade brasileira, a luta em
forma que acontecia nos demais movimentos sociais, as mulheres negras prol da geração de ren da e d a saúde das mulheres negras e uma revalo-
das Pastorais não se sentiam contempladas pela atuação das Pastorais rização da estética afro-descen d ente. Além d e estar atuando sempre ao
do Negro e da Mulher e resolveram , então, se organizar em um a As- lado de gestores e profissionais de saúde, as integrantes da OFNG rea-
sociação de Mulheres Negras, que contava inclusive com freiras n egras lizam palestras e oficinas em que tratam da estética das m ulheres negras
da Igreja Católica. e procuram contribu ir para a construção de uma im agem positiva das
Personagem importante nesse processo foi Daniela3, que não fazia mulheres negras a partir da criação d e uma estética femin ina que valo-
parte da Pastoral do Negro, mas comparecia às reuniões p ara fazer rizava o pertencimento racial. No trabalho pela ressign ificação positiva
anotações para o pai, que era analfabeto. Daniela se aproximou dessa dos corpos das m ulheres negras , as integrantes da OFN G demonstram
Associação porque também se interessava em lutar pelos direitos das como estes estão associados a determ inadas m arcas resultantes de relações
mulheres negras. No entanto, ela já tinha contato com o movimento sociais específicas, e como seria necessário apropriar-se de novos sinais,
feminista e passou a trabalhar, nessa Associação de Mulheres Negras, a códigos e atitudes a fim de p rod uzir novas refe rências.
idéia de formarem um grupo de feminista negras, haja vista que os grupos No grupo assume-se que os corpos são classificados pelo olhar exte-
feministas dessa cidade não tinham o combate ao racismo como ponto rior a eles, pelo que se diz a essas mulheres e sobre elas, mas, também,
importante de sua atuação política. Porém, ainda segundo Daniela, a se reconhece que investimentos podem ser feitos n esses corpos, fisica-
idéia de que feministas eram "sapatonas" 4 acabou por afastar as mais mente - cabelos estilo rastafari, vestimentas em estilo étnico africano,
temerosas de serem assim identificadas. D as 35 mulheres da Associação maquiagens, saúde - e simbolicament e - resistência e alta auto-estima
- a fim de transformar seu significado social e as relações sociais d essas
mulheres. Assim, elas contribuem para produzir um tipo de feminili-
' Todos os nomes de pessoas utilizados aqui são fictícios.
• Será uá lizada no texto a sigla OFNG (O rganização de Feministas Negras de Goiània) para identificar o
• Termo uti lizado pelas mulheres do grupo. G rupo pesquisado
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hõmouuu.aw.a.)9lãilívra l COWIJGAllOAOt!i PAJWf TAIUOAOU l l00ffll>AOU LálJCAS. GAYS f f~VESTlS
dade que subn·rtt os modelos de raça e gênero, a partir da resisténcia Segundo Danie la , que sempre fo 1 a coorden.1dora ge r.il dJ
ao ra.ci_smo com o qual tem se criado modelos de fe minilidades negras. OF NG, quando ela propós que se fo rmasse um grupo de mulhe res
Assim. procura-~--e evidenciar como as marcas que se fixaram nos co rpos para lu tar por d ireitos espedficos de mul heres negras . o .ugu menro
das mulheres negras advêm de relações históricas e políticas, da escravi- qu e conve nceu a todas e que . segundo da . manreve-,15 unid as acé
dão. do rac-ismo e da desigualdade social. Ao mesmo tempo, enfatiza-se hoje, fo i a "questão da sa úde''. Como afirmam as incegnn ces do
como o corpo da mulher negra também é marcado por uma histó ria de Grupo, na Associação de Mulhe res Negras , questões rcfe rences aos
lura. de transgressão, de expressão própria. direitos das mulheres deve ri am se r tratad as pelas pautas da Ig.reJa
Nesse contexto, a afumação de uma identidade racial é-apontada como Católica. Falar de qu estões feministas nas pastorais era moc ivo ,nra
imprescindívd para a militância das mulheres negras. É importante desta- ser taxada de "revo luci onária", te rm o que tinha um forc e senrido
car que por sofrerem um tipo de racismo que vem acompanhado de uma pejorativo. A homossexuali dade, po r sua vez, praticamen ce não era
insistência de grande parte da sociedade para que essas mulheres não se discutida e quando se discutia era em termos de cond enação moraJ
auto-identifiquem como negras, a auto-dentifü:ação como tais se tornou, de e pecado. De aco rdo com dep oimentos de várias das encrevistadas.
tal furma, central em sua militância que exigiu, inclusive, uma forte carga de a homossexualidade era considerada um "tabu" no gru po e assim se
essenciafuação. As.sumir que são negras, sim, mesmo diante da possibilidade e manteve na OFNG.
d.a expectativa para que se identifiquem como "morenas"6, tornou-se estratégia O catolicismo tem grande influência na manutenção da imagem
imprescindívd para o reconhecimento do grupo e de sua luta. da homossexualidade como um "desvio", entre as mulheres da OFNG,
As mulheres da OFNG demonstram acreditar, portanto, que "para mas, ainda assi m, elas têm uma interpretação um pouco d.iferenciada
que se torne visível que você assume a sua raça", seria preciso adotar da imagem difundida pela Igrej a: ao mesmo tempo em que faz com
um discurso racialista, por um lado, e anti-racista, por outro. Portanto, que a lesbianidade pareça anormal, já que Deus criou a mulher para
adquirir uma identidade racial seria importante em um país que nega a o homem, também proporciona que ela seja representada como algo
existência de raças humanas, mas, que, na prática, produz e reproduz o também permitido, já que, por ser Deus seu criador, não colocaria no
racismo. Segundo as integrantes da OFNG, a atitude de afirmar orgu- mundo algo a ser condenado pelos humanos.
lhosamente a negritude se tornou uma grande resposta ao preconceito. Procuradas por mim em 2004 para dar encrevisca para uma pesquisa
Além disso, assumir uma identidade negra envolveria investimentos nos de mestrado cujo tema seria a militância de mulheres negras de Goiània
corpos para que não só mostrassem que são negras, mas que é assim que e as discussões de lesbianidade feita por elas, as integrantes da OFNG
esperam ser vistas pelos outros. Por isso, o uso de penteados, roupas e inicialmente se mostraram relutantes e justificaram que a discussão
acessórios que evidenciem a adoção de uma "estética afro". Tal atitul1e, da lesbianidade no Grupo nunca foi tarefa fácil porque a maioria das
segundo elas, demonstraria a consciência de que se está envolvida em mulheres vinha de movimentos da Igreja (das pastorais da juvenrude e
determinadas relações de poder e se assume um compromisso com a do negro). A preocupação central do Grupo seria o combate ao racismo
luta contra a opressão. e o sexismo. Além disso, havia o evidente receio de que, ao tratar do
tema, pudessem ser "confundidas" com lés bicas. cedendo emrevistas
apenas quando esclarecidas de que a pesquisa visava a discuss:io sobre
Apcs,r da otegori.a 'morcni não ser ui.iliz.ada pelo sistema de classificaç:io do IBGE e ser fo rremcnrc
lésbicas e não co m lésbicas. Isso, no entanto, não quer dize r que em
crnic..,.da pdo movimento negro . porque demonsua uma ênfase na miscigenaç.ío e uma tentativa de dcs- vários momentos o grupo não renha co nr:ido com co nsulrori as, apoios,
racializ.ação da população br.1.1ilcira , há uma grande variação de morcnidadcs constantemente utilizadas oficinas e capacitações em que mulheres lésbicas estivesse m direramente
no Brasil e uma insisténcia para a adoção dessa categoria pela população negra.
394 395
C homossoxualidadeíe@fuírã 1
CONJUGALIDADES, PARENTAUDADES EIDENTIDADES ÚSBICAS, GAYS ETRAVESTIS
envolvidas. O que acontece é que nesses momentos de inceração, ess:1 e pela sociedade como wn todo, porque, afinal de contas, para utilizar a
"diferença"7 era silenciada.
expressão de Flávia, "existe, e quem a pratica são seres humanos" .
Mas, as integrantes da OFNG afi rmam que o fato de lesbianidadr Louro (2002) destaca que devemos considerar a assimetria que está
não ter se tornado uma pauta do Grupo não quer dizer que não tenh:1 implícita na idéia de 'tolerância aos diferences' . A tolerância está relacio-
sido um problema, devido à consta.me relação, no senso comum, entre lBf
~
,
nada à condescendência, à permissão, à indulgência, atitudes que são
feminismo e lesbianidade. A visível necessidade de que, em alguns
momentos, as feministas sentem de negar a lesbianidade, própria ou
de alguém do grupo a que pertencem, para obter reconhecimento ou
para não afastar ou eras mulheres que sentem medo de passar por lésbicas
também foi vivenciada na OFNG . Flávia, wna das entrevistadas, afirma,

-·~ . .
~.
''--llll"IF•
exercidas, quase sempre, por aquele ou aquela que se percebe superior.
A lesbianidade é percebida pelas mulheres da OFNG ainda como algo
com o qual a sociedade deve se "conformar" e aprender a respeitar. Esse
respeito, no entanto, seria conqui~tado por meio da adoção da identidade
lésbica por mulheres homossexuais e pelo seu empenho para esclarecer a
inclusive, que, para mulheres que já eram estigmatizad as em razão do sociedade a respeito de seus desejos e práticas afetivo-sexuais. Nesse sen-
posicionamento raci al, do sexo e da classe social, afastar a imagem da tido , as palestras e seminários temáticos ajudariam na compreensão, nos
lesbianidade era visco como estratégia importa.me para se garan tir a dois sentidos do termo. Assim, em um processo contraditório, ao mesmo
sobrevivência política do Grupo. tempo cm que as lésbicas podem "contan1inar" a imagem das feministas,
8
De acordo com Nava rro-Swai n (1999), os caminhos plurais do po r não co rresponderem ao socialmente concebido como "bonitinho" ,
movimenco feminista envo lvem dinâmi cas de cruzamento, de opos ição a presença atuante delas é o único modo de acabar, não apenas com o
ou de imbricação com o lesbianismo. Torn ou-se um a preocup:1ção do preconceit o na sociedade, como também no movimento.
movimenro encontrar um a man eira de se relacionar co m as 16 bi c._L\ ou Contrariando idéias como essas, Scdgwick ( 1993) sugere que co-
trabalhar em conjunro com elas sem "se co ntaminar", )Cm panilh ::tr o nh ecimento e ignorância n:io são categorias binárias e excludentes, mas
estigma das radicai s, sexista.s, rnachonas , feiosas, mal amad as. anorn1 :11\ co mtruíd a.s cm tum cstrcira relação. Sed.gwick argumenta que a ignorância
e tantas outras imagens forjadas no senso co mum . não é neutra, não é um:i ausência de conhecimento, mas um efeito de
Para as incegrames da OFNG , urna reco nstru ção da fcm111il1J adc um upo de co nh eci mento. /\ ignorância é produzida por co nhecimentos
exigia, primeiro, romper co m es tereó ti pos vio lent os cm rdaçiio ao) )CII-" parncuhrcs. A ignor:inci:i sobre a homossex ualidade, como a autora dis-
corpos negros porque o racismo brasil eiro também foi respom:ivcl por cute, n.ão é .1pcn:is um efeito de não se conhece r os homossexuais, mas a
construir uma imagem nega tiva d.as mulh eres negra-'>. fa ta_., t:1mbé111 ge- 1gnor:in ci::i ~obre a fo rma como a própria sex ualidade é construída.
ralmente são apresentadas como feios~. mal amad:u, anorrn:m, 11norJ1} , /\ m;i ioria das cn1rev istadas afi rma se nti r vo ntade, curiosidade e até
dentre outras rep resent ações. Vale res)alt ar que esta é a dcd:iraç-:10 Jc um 11ccos1dadc de conheu:r 16.bicas, m,LS, para Jlgum as delas, essa aproxi-
grupo em que rodas as mulheres se identifica m co mo hetcro,_.,cx u:11}. 111.1~ 10 dc-vcn,1 mspir,tr cuidados. bso porque, rüo só a aproximação, mas
Nos discursos a respeito de lesbianidade, o que -"C pertcbt' é l lU <-' , .1 .ué mo mo ,1 Vt),10 de te nas homo-".'iCX Uíli~ explíc it as inco moda, porque
maior parte d.as mulh eres da OFNG , procura cau_.,~ brológ,~ p:ir:i ::i ho- é cn1cnJ1Ja co mo fa lt,t de rc.!> petto w m os v,1lores morais dominantes
mossexualidade. Mas acrediram que. mo.mo rompendo wm ~ "ordcrh do e to m o~ c.o rnpon amento!> dito~ ··11orrn,11 t . Ao mes mo tempo, pode-se
biológico", a lesbianidade é al go yue d.('."Vcria m .. tolcrJJo" pd.o lcn11n1~t:l.), notJr que .1 homo~scxu,d1ll.1de 1nt0moJJ porque mosrra a possibilidade
Jc rurnp1rnc111u l,011\ n)J) ruo rn.1~ lllJrtll J.!I, ,1 possibilidade da ultrapassa-
' Expre.ssáo também unliu da pelas mulhcro do gn.&f)<) "° "" ,dau ; k.h,=dad< Alrum,- J,, rnt 1n 1>1;,
• l .1.p,O>l<> uulu...L pu< J= ,mrvm<n J., grupu se rcícnr w mpo rnmcnro hcr.c rossaual.
se referiam à lesbianidade como ' o outro Lodo d. mull1r1 ' JO JO
197
396
ho mossexual,da.de)elcultura \
CONJUGALIDADES, PARENTALIDADES E IDENTIDADES W BICAS, GAYS E TRAVESTIS
gem das fro nteiras que estão bem definidas, m as que não são naturais ou Heilborn (1996) e Medei(o~ (2004) nos mostram q ue fatores
fixas. Bia, uma d as entrevistadas, afirm a que sentia m ed o de ver lésbicas como classe, relações de parentesco e d e vizinhança podem ser bastante :ii
trocando carícias e não conseguir m ais se relacion ar com homens. D esse
modo, a manutenção de fronteiras torna-se importante para man ter a
sign ificativos na d ecisão de identificar-se ou não como sen do h omosse-
xual. H eilbo rn entrevista m ulheres de classe média que afi rm am q ue a
i
segurança em relação à própria heterossexualidade. Por essas razões, as
integrantes da OFNG demonstram entender que, para a militância das
lesbianidade é uma experiência incapaz de defi nir quem a pessoa é de
fato, n o máximo indicaria algo q ue ela esteja fazend o ou vivendo. São
'
lésbicas, é importante assumir a homossexualidade m ais po r m eio d a mulheres que diziam "estar lésbicas" . Medeiros, por outro lado, entre-
adoção da identidade do que por meio de atitudes e m arcas corpo rais. vista m ulheres da periferia, para quem, há a necessi dade d e afirm ar uma
Sobre não ser a lesbianidade u ma das pautas do grupo, as integrantes inevitabilidade da lesbianidade par;i. conseguir escapar da estigmatização
da OFNG afirmam que, por não haver lésbicas no quad ro executivo do e da violên cia por par te de parentes e vizinhos.
grupo, não teriam sido instigadas a fazer essa discussão , até porque, se- A interseção d e categorias identitárias elucida como n em todas as
gundo elas, não seria possível dar conta de tantas opressões que atingem pessoas gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais se vêem afetadas
as mulheres negras, especialmente para um grupo pequeno e com poucos pela opressão e pela d iscriminação da m esma maneira e n um m esmo
recursos. Elas reconhecem que as pautas do grupo são d efinidas de acordo grau . Também permite o reconhecimento d e q ue, po r exem plo, as
com as prioridades das próprias integrantes, que também são influenciadas pessoas LGBTT negras podem experimentar a opressão por o rientação
por suas dificuldades para trabalhar com determinados tem as como a les- sexual/ identidade de gênero d e uma maneira diferente d as pessoas que
bianidade, pois, para isso, teriam que lidar com os próprios p reconceitos. não enfrentam o racismo.
Esse fato nos leva a considerar que as opressões são interseccionais para
os sujeitos que as sofrem, mas, para os grupos militantes, lutar contra o
racismo, o sexismo e a homofobia representaria deparar-se com uma soma CONSIDERAÇÕES FINA IS
de opressões sociais difíceis de combater ao mesmo tempo. As integrantes da O FNG apontam para d uas coisas impo rtantes. Pri-
Ao tratar das negras lésbicas, as entrevistadas se preocup avam espe- meiro, q ue uma pessoa que tenha uma relação com do is armários, no
cialmente com a carga d e discriminação que essas mulheres enfrentavam caso, o homossexual e o negro, pode d ecidir por sair apenas d e um, de
e com as expectativas sociais de que negras e lésbicas, e negras lésbicas, acordo com o contexto. É evidente que a pessoa pode se sent ir pouco à
"não se assumam". Elas afirmaram acreditar que revelar um "segredo" vontade para revelar sua homossexualid ade entre negras, tanto quanto
e assumir uma identidade estigmatizada já é difícil, no caso d e duas ou pode hesitar em assumir sua negritud e entre h om ossexuais. A revelação
mais, os custos seriam ainda m aiores. Identificar-se como uma mulher vai depender do tipo de reação esperada e do n ível de opressão que ela
negra lésbica é saber que sua identidade envolve o enfrentamento de cause naquele contexto. Segundo, q ue mulheres negras lésbicas podem
uma opressão que envolve dois estigmas. decidir por afirmar sua negritude porque acreditam que a lesbianidade
,1 É importante perceber que a forma como a homossexualidade é esteja visível e a negritude não , ou vice-versa. Alguém pode não apenas
vivenciada tem a ver com o modo como a raça, o gênero, a religião, a ter uma relação com dois armários, m as com do is armários de vidro.
!
geração e a estética são expe rimentadas. Portanto, a identidade de uma Sobre a adoção da identidade, ainda que aparentem ente não faça
11
11 pessoa ou grupo de pessoas e seus privilégios ou d esvantagens respec- muito sentido nos preocuparmos se a denominação m ais apropriada
t
1l
tivos variam dependendo da interseção ou combinação d e uma séria
complexa de fatores.
seria "lésbica negra" ou "negra lésbica", haj a vista que estamos tratando
de interseccionalidade, em que há o cruzamento e não a soma ou sobre-
398 399
~
homossexuahdadele)cultura )
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CONJUGA LIDADES, PARENTAU DADES E IDENTIDADES 1.tSBICAS, GAYS ETRAVESTIS
'
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posição de categorias identitárias, as feministas negras entrevistadas se nas, geradas a partir de assimetriás de poder. Outra razão importante para
referiam quase sempre às negras lésbicas. Isso talvez se explique pelo fato
de terem construído toda a militância em torno da questão de gênero
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' assumir uma identidade negra, lésbica ou negra lésbica seria expressar a
consciência de que se está envolvida em determinadas relações de pod er
e racial e nunca do questionamento da h eteronormatividade. Outras que exigiriam um compromisso com a luta contra a opressão. N o que se
militantes com quem tive contato referiam-se a si m esmas como lésbicas refere às n egras lésbicas, que teriam uma relação, tanto com o armário
negras. Assim, a decisão de que categoria viria primeiro na adoção de n egro, quanto com o homossexual, para as integrantes da OFN G, seria
uma identidade interseccional pode estar relacionada com a experiência a adoção de uma identidad e "negra lésbica" que tornaria visível tanto a
de opressão e/ou de militância das mulheres. posição particular de sujeito, quanto à necessidade de uma resistência
Outro fato considerado importante para as mulheres da O FNG interseccional ao racismo, ao sexismo e à lesbofobia.
no que se refere à adoção da identidade por negras lésbicas é a fo rma Performances de resistências e discursos de resistência são, de acordo
como são apresentadas as imagens de mulheres negras e de lésbicas no com Pinho (2004), aqueles que se engajam na luta contra-hegemônica
Brasil. Elas falam de como as imagens das mulheres negras têm uma para desmontar e desconstruir os discursos hegemônicos. Mas, ain da
expressão altamente heteronormativa enquanto, por outro lado, são que haja a hegemonia masculina branca e heterossexual, h á também
apresentadas na mídia imagens de lésbicas brancas, o que faz parecer hegemonias masculinas e femininas , hegemonias heterossexuais e ho-
que a heterossexualidade das mulheres negras é ainda mais "natural" mossexuais, hegemonias negras, entre tantas produzidas por discursos
do que das brancas ou, sob outra perspectiva, que em decorrência do que partem de diversos lugares e sujeitos.
racismo as lésbicas negras não escapem às normas.
No entanto, deve-se considerar que o lugar das lésbicas negras não
M uitos grupos quando se vêem diante da contradição imposta pela
interiorização do preconceito e, por outro lado, da expectativa de que
,l
é só o da opressão. Se adotarmos a perspectiva de Curie! (2004) de que os atores envolvidos na luta pelos direitos humanos não reproduzam
o caráter mais subversivo da adoção de uma identidade subalterna é preconceitos, encontram uma m aneira de apoiar uns aos outros, sem til
fazê-lo orgulhosamente, podemos concluir que quando uma mulher se ter que defender suas bandeiras. Afirma-se uma simpatia à causa alheia,
assume orgulhosamente negra lésbica, ela frustra as expectativas de que baseada na explicitação de que solidariedade n ão significa equivalência.
um sujeito marcado pelo gênero "dominado", pela raça "inferiorizada" É importante reconhecer que, m esmo os movim entos sociais que lutam
e pela sexualidade "anormal" seria uma mera vítima das desigualdades pela diversidade, contribuem, muitas vezes, para a construção de mode-
sociais. A mulher negra lésbica questiona discursos construídos durante los feministas, negras/os, homossexuais. Sujeitos com identidades inter-
séculos em torno das mulheres, das negras e das lésbicas. Ela subverte o seccionais não são, necessariamente, pessoas totalmente questionadoras,
feminino, rompe com a heteronormatividade e transgride o espaço de- livres de preconceitos e não opressoras. Como bem destaca Pinho (2004),
,1
terminado à negra numa sociedade racista. Ela desconstrói e ressignifica exis~em também não-conformismos conservadores, porque os sujeitos
categorizações e demonstra a possibilidade de resistência e transforma- podéin~r subversivos, progressistas, ou não-conformistas, de um certo
ção, individual e social, porque sua identidade é construída a partir do ângulo, mas, de outro, reproduzir privilégios e desigualdades.
engajamento na luta contra o racismo, o sexismo e o heterossexismo. É importante destacar que essa não é uma particularidade do femi-
Assim, para as mulheres da OFNG, a não identificação como mu- nismo negro. Afinal de contas, as feministas negras explicitam muitas
lher, negra e/ou lésbica, ao contrário de uma estratégia questionadora possibilidades de composição de narrativas dos sujeitos e exigem um
e subversiva, demonstraria cumplicidade com um sistema que produz olhar mais elaborado das diversas formas de subjetivação. Não há dúvidas
opressões e tenta evitar identificações com posições de sujeitos subalter- de que as mulheres do GFN têm dado uma contribuição significativa
400 401
homosso.ual1dade)el=cu=ttu=•~•--~ CONJUGALIDADES, PARENTAUDADES E IDENTIDADES LúalCAS, GAYS E TRAVESTIS

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