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DANÇA MACABRA

Naquela manhã ela esbravejou, silenciosamente em sua mente, como sempre fazia posto que,
os pensamentos são a única liberdade que realmente temos:

Saia dos meus sonhos! Por quê tenho que sempre sonhar com vocês e ver tanta
felicidade e prosperidade?

Nunca era ouvida, lá estávamos eles a se mostrarem, no plano astral, para ela como se o
alimento de seu furtado destino dependesse da ira de outrem para jamais deixar que a chama
da ilusão se apague.

Estavam atados num macabro feitiço de amarração, até hoje, jamais desfeito.

Os anos se passaram, cada vez mais solitária, foi trabalhar e uma Biblioteca de Artes
frequentada apenas por fantasmas e outros enganos como sempre. Karma, sina e destino do
qual soube, através de seus parcos estudos auto didáticos que só se livraria após os sessenta e
cinco anos. A idade exata de sua aposentadoria.

Dois jovens professores de violino praticavam, belamente, sua arte num país escroto de quinto
mundo, sim país digno dos quintos dos infernos assim como seu calor dantescamente
insuportável.

Sutilmentente, achando que os jovens professores, não era velhos o suficiente para executar
uma peça que ela mesmo, na altura de sua madureza, recentemente conheceu fez um pedido:

Vocês conhecem Camille Saint-Saëns - Danse Macabre?

Curiosamente, era a peça predileta dos jovens professores que pareciam mais brancas
entidades vindas de um distante país, talvez de um outro mundo. Seriam eles de um outro
mundo? Afinal, era estranho que eles haviam interagido esfuziantemente com a perdida e
triste servidora que, devido a pequenez da humanidade, há tempos, já mantinha distância
segura a fim de proteger seus sentimentos e sanidade.

Mas só temos um pedido, disseram os dois excêntricos jovens. Como estamos aqui sozinhos.
Executaremos a peça somente se você deixar a música tocar o seu espírito e se elevar.

Surpresa e tímida ela pergunto? Como assim? O que vocês imaginam que eu deva fazer?
Apenas toquem!

Os jovens, silenciosamente se entreolharam e sorriram. A senhora deve, como nós, aprender a


se entregar. Nós tocaremos Camille Saint-Saëns - Danse Macabre desde que a senhora se
entregue a música como faremos e dance.

E ela disse: mas eu não sei dançar e, além disso, tenho vergonha. E se alguém chegar?

Os jovens pareciam seguros sobre o que diziam:

Fique tranquila! Ninguém chegará! Estamos no horário de almoço! Ninguém


costuma vir a este lugar. Há anos ensaiamos aqui. Pode confiar!
Ela, timidamente riu, nunca havia feito algo do tipo, a não ser quando muito jovem, quando
era livre e tinha a vida toda pela frente.

Mas, disseram os jovens professores, a senhora conhece a história desta belíssima peça?

Não, respondeu a mulher. Mas estou curiosa. Já que vocês irão tocar e eu irei dançar e que
realmente garantem que não seremos surpreendidos e tidos como três loucos por uma gente
costumeiramente maledicente e hostil, do que se trata a história?

O mais velho dos violinistas começou a contar:

Camille Saint-Saëns foi um importante compositor erudito do século XIX. Em 1874,


escreveu o sombrio e dramático poema sinfônico Danse Macabre, inspirado em um poema
homônimo de Henri Cazalis. No poema, à meia-noite, a morte toca um violino em um
cemitério, enquanto os esqueletos dançam à sua volta, num festim que dura até o cantar do
galo, ao nascer do dia.

O professor mais jovem, retirou de dentro do bolso de sua calça um velho papel amarelado
pelo tempo. Era justamente o poema de Henri Cazalis e em tom respeitoso e solene começou
a declama-lo em sua íntegra:

Dança macabra

Zigue e zigue e zigue, mas que sarabanda! / São rodas de mortos que se dão a mão! / Zigue e
zigue e zague, vejam: aqui anda / Aos pulos o rei, junto do vilão! // Mas ei-los que fogem,
todos, de repente, / Que já canta o galo, surge a claridade / Que noite de festa foi p’ra toda a
gente! / Viva a morte, pois, viva a igualdade!

Notei que o mais velhos dos rapazes, estranhamente, parecia ter se tornado mais velho. Talvez
eu não tivesse percebido direito, de início, mas isso fez com que eu me assustasse e pensasse
secretamente: devo estar ficando mesmo louca como andam dizendo. Afinal, é a sina do qual
padece os poetas malditos e desconhecidos. Que bobagem! Ando tão desgostosa e absorta em
meus pensamentos que não devo ter reparado direito. Henrique, era o seu nome e não é tão
jovem como eu pensei inicialmente. Talvez tenha, aproximadamente, a minha idade e talvez
isso explique o seu grau de conhecimento sobre artes, literatura e música erudita. Gostos
extravagantes, atualmente, para um país como o Brasil, cuja a educação encontra-se na UTI
em coma eterno, desde os anos de 1990.

Por um lapso de tempo que não sei precisar, nos fitamos por algum tempo. Os rapazes
estavam ansiosos e curiosos perante minha prudência e disseram:

Ah! Mas de louca você não tem nada! Quem diz isso sobre você, seguramente não sabe o
que fala.

Respondi: não é bem isso. Além de ter que me apresentar com a devida postura, existe o
decoro. Estamos em um equipamento público, esqueceram? Mesmo sendo horário de almoço.

Deixa de onda, disse Luís, o violinista mais jovem, já dissemos que neste horário não vem
ninguém aqui. Só estamos nós três e os mortos!
Entendi o humor negro escorpiano e o natural gosto pelo horror e o bizarro, afinal este é o
meu signo e de mortos eu entendo muito bem e nunca os temi. No entanto, o antigo poema
tenha soado um tanto amedrontador. De fato, eu não conhecia, nem o compositor, nem a
peça muito menos o poema. Além disso, estávamos no final do mês de outubro e, apesar de
não pertencer mais a nenhum grupo de estudo ocultista, eu o fizera por anos. Em grande parte
do tempo, como autodidata e praticante solitária. Era época de Samhain, o ano novo das
bruxas, mais conhecido no Brasil como Halloween, Dia das Bruxas e, em sequência, dia de
Todos os Santos e Finados, ambos feriados religiosos e nacionais.

Bem, não cabia relatar todo meu conhecimento e vivência no ocultismo. O tempo era curto.
Logo acabaria o intervalo para o almoço e qualquer tentativa de ousadia de tocar e dançar com
a morte. Corajosamente eu pensei, por que não? A ideia era absurdamente tentadora, há
muitos anos não faço nada que me contente minha triste alma. Para que tanto decoro se nada
muda e eu sigo cada vez mais morta e mais triste. É uma proposta única e sedutora demais
para se recusar. Além do mais, a oportunidade, talvez não batesse a minha porta duas vezes.

Pois bem, disse aos rapazes, está decidido! Eu dançarei para a Morte.

Eles se entreolharam e sorriram, o sorriso mais brilhante e mais belo que já vi em toda a minha
vida.

Antes de iniciarem a peça, Luís explanou:

Søren Kierkegaard disse que, mesmo em plena contemplação grave da morte, pode
sorrir-se, não da igualdade de todos, mas de haver, apesar dela, diferença.
De fato, pode tratar-se da valorização diferença: E assim a vida: às vezes nem a morte,
senhor Cazalis, nos faz iguais...

Respirei fundo e fechei os meus olhos e pensei em Persephone, a esposa de Hades, Deusa e
Rainha do submundo e dos mortos.

Lentamente, levantei minha cabeça e os meus olhos tomaram um tom de verde diferente. Os
arcos dos violinos de Henrique e Luís laminas afiadas e brilhavam como a mais reluzente prata.

Por um momento, em respeito a todo o meu conhecimento e sabedoria. Se íamos fazer


realmente aquilo, que fizéssemos direito então.

Como eu havia tido alguma experiência, eu sabia não ser necessário tanta pompa e
circunstância. Eu não havia trazido o meu velho punhal, símbolo do ar, há anos guardado
dentro do velho altar de madeira de lei para traçar o círculo. Eu entendia a empreitada como
um ritual, já que para mim, tanto a peça clássica, como o poema, a história e a época do ano.
Como eu tinha a sabedoria eu sabia que o meu dedo indicador poderia perfeitamente traçar o
círculo magicko além do meu caminhar em sentido horário por três vezes. Só que, por se tratar
da roda do ano em que, no final de outubro é celebrado o sabath maior de Sam-hain, dois
círculos deveriam ser traçados: um para nós, os vivos e outro para os mortos afim de que
estaríamos todos em segurança, na época em que o véu do Entremundos está mais tênue.
Ocasião em que todos aqueles que estão vivos como aqueles que não estão mais entre nós,
mais ainda sim, dentro de nós, se reencontram visto que o amor é maior do que a morte.

Então, como sacerdotisa dos Antigos Deuses que um dia eu fui, comecei a traçar os círculos
mágickos. Evoquei os guardiões das torres de observação, seus elementais e finalmente, o
Casal Sagrado, a Deusa e o Deus dos bruxos.

Henrique e Luís pareciam entender, melhor do que a mim mesma, que era desta forma, que
tudo deveria ser perfeitamente executado, em amor e confiança.

Os primeiros acordes de Danse Macabre de Camille Saint-Saëns lembram passos que, num
repente, se elevam num melodioso Allegro. O timbrar das notas rápidas e secas parecem
lembrar um valsar de esqueletos. É praticamente impossível não deixar-se sucumbir ao ritmo e
literalmente dança-la. E lá estava eu, sem decoro e totalmente apartada do ambiente pois
estávamos mesmo no Entremundos. Eu me deixava levar pela melodia, rápida e intensa.
Num repente, eu vi qu não estavámos mais sozinhos. Não haviam mais dois violinista,
Henrique e Luís dedilhavam freneticamente os acordes de Danse Macabre junto a uma
orquestra sinfônica completa com direito a condução de um velho e experiente maestro.

No círculo traçado para aqueles que não mais respiram, primeiro em forma de espiral, as mais
belas damas, ricamente vestidas, penteadas e adornadas subitamente podiam ser vistas como
se estivessem novamente jovens e vivas. Elas dançavam junto aos mais belos e garbosos
cavalheiros. Eu estava extasiada? O que havia de macabro nisso? A rara visão de um tempo
ancestral, belo e rico. Perfecto! Como eles diriam em seu elegante linguajar.

Dança Macabra

O vento frio sopra e a noite é só sombra,


choros gemidos correndo dos galhos;
vão-se esqueletos brilhando na sombra
correm e pulam seus restos tão pálios,

Tum tá tá tum, cada um se estremece


um osso tilinta no outro em cantigas
lascivo um casal sobre o musgo se assenta
como a provar das doçuras antigas

Tum e a morte tá tá continua


raspa sem pausa o seu acre instrumento
foi-se um véu! e a dançarina está nua!
Abraça seu moço danceiro co’ alento

A dama é, comentam, marquesa ou barona.


viu-se atraída a um pobre cabrão
Horror!
E voilà como a ele se abandona
como se o bronco versasse um barão!
Tum tá tá tum tá, mas que sarabanda!
as rodas de mortos, comum direção,
Tum tá tá tum tá, se vai com a banda
o rei saltitando colado ao vilão!

Mas psiu! Toda a ronda se vai em um segundo


se empurram, se fogem, é o galo que nasce
oh! Quão bela noite para um pobre mundo!
Três vivas à morte e também à igualdade!

Trad. de Vinicius Ferreira Barth

Não pude precisar por quanto tempo a fantástica, mística e sobrenatural experiência
durou. Eu estava extasiada! Percebi que o mesmo ocorria entre todos que bailávamos no
círculo. A alegria, a comunhão, a beleza, a certeza de que a vida não acaba e a gratidão.

A música foi terminando. Não duraria eternamente assim como são o melhor do amor e
os raros momentos de felicidade suprema.

O que parecia real, foi se tornando sonho, nebuloso, tudo foi desaparecendo lentamente.
Inclusive Henrique e Luís.

De repente, eu ouvia vozes gritando e alguém pedido por socorro. Um outro ligando
para a emergência. Havia uma mulher caída no meio do salão. Era funcionária da
Biblioteca de Artes.

Eu ouvia mas não me ouviam. Eu via, mas não me viam. Eu não me via como eles me
viam. Mas parecia que tudo estava diferente. Na verdade, tudo estava diferente.

No meio da dança, tomada pelo frenesi, pela beleza, pelo intenso prazer e felicidade. Eu
não percebi enquanto girava rapidamente pelo salão que uma das damas me trouxe para
o círculo traçado para os mortos para que eu pudesse também valsar com o mais belo de
todos os cavalheiros.

E assim eu nunca mais acordei, eu nunca mais respirei. Foi assim que parti da vida, feliz
para a morte.

Simoni Dimilatrov
Apátrida, 19 de fevereiro de 2017.

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