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5° Seminário Nacional de Língua e Literatura: Teoria e Ensino – Leitura, produção

discursiva e multimodalidade

OBSERVAÇOES SOBRE LINGUA, LITERATURA E LEITURA, NAS OBRAS “A


MAIOR FLOR DO MUNDO”
E “O CONTO DA ILHA DESCONHECIDA” DE JOSÉ SARAMAGO.

OBSERVATIOS ON LANGUAGE, LITERAUTE AND READING, THE WORKS


“THE BIGGEST FLOWER IN THE WPRLD " AND “THE TALE OF THE
UNKNOWN ISLAND BY JOSÉ SARAMAGO

Jucélia Ferreira Loebens 1 (Universidad de Alcalá – España)


Lilian Cláudia Xavier Cordeiro2 (IFRS/IMED)

RESUMO

Este trabalho pretende tecer algumas observações à luz da teoria literária, nas obras “A maior flor do mundo” e
“O Conto da Ilha desconhecida” de José Saramago. O objetivo consiste em perceber significados a respeito das
obras sob o viés da teoria da literatura e da análise do contexto, no qual se insere a obra. As reflexões versam
sobre Literatura, sobre o fazer literário e as construções de sentido que a ele se podem inferir. Também,
consideram-se alguns dados sobre o autor e seu mundo particular. Assim, procurando abranger o geral da
história escrita. Trata-se, sobretudo, de Leitura, no sentido de um olhar sobre as possíveis intenções do autor e as
prováveis interpretações do leitor, num mundo de complexidades de significados e de simbologias através da
língua em si mesma, em suas nuances, inclusive gramaticais. A partir da análise, infere-se que o leitor pode
chegar a romper os limites do real, já que o valor da obra de Saramago tornou-se de uma importância que
ultrapassa os paradoxos entre tradição e originalidade, entre forma e conteúdo, ao mesmo tempo em que agrega o
belo a sua arte.
Palavras-chave: Literatura. Língua. Leitura.

ABSTRACT
This work aims to make a few observations in the perspective of literary theory in the works "The biggest flower
in the world" and "The Tale of the Unknown Island" by José Saramago. The objective is to understand meanings
about the works under the theory of literature and context analysis, which incorporates the work. Reflections
deal with literature on the literary writing and constructions of meaning that it can be inferred. Also, consider
some data on the author and his private world. Thus, trying to cover the general history of writing. It is, above
all, of reading, to a look at the possible intentions of the author and the likely interpretations of the reader in a
world of complexities of meanings and symbols through language itself, in its nuances, including grammar.
From the analysis, it is inferred that the reader can get to break the limits of reality, since the value of the work of
Saramago has become relevant beyond the paradoxes between tradition and originality, form and content, the
same time that adds the beauty in your art.
Keywords: Literature. Language. Reading.

1 INTRODUÇÃO

1
Graduada em Letras, Master en Enseñanza de Español Lengua Extranjera pela Universidad de Alcalá
Doutoranda em Linguística Aplicada pela Universidad de Alcalá de Henares – Madrid – Espanha.;
jupoesia@yahoo.es.
2
Bel. em Desenho e Plástica, Me. em Educação; lilian.cordeiro@ibirubá.ifrs.edu.br.
5° Seminário Nacional de Língua e Literatura: Teoria e Ensino – Leitura, produção
discursiva e multimodalidade

A literatura, como toda a arte, é uma


confissão de que a vida não basta.
Fernando Pessoa

Este artigo pretende fazer algumas interpretações referentes às obras “A maior flor do
mundo” e “O Conto da Ilha desconhecida”, ambas criadas pelo escritor português Nobel de
Literatura, José Saramago. O objetivo consiste em perceber alguns significados a respeito dos
textos, através da metodologia da pesquisa bibliográfica, remetendo à Teoria da Literatura.
Observa-se na obra de José Saramago uma bastante contestação da vida e da História
como um todo. As histórias contadas por ele não tratam apenas de inquirir sobre os fatos,
sobre o passado, mas muitas vezes, intencionam negar o acontecido, subjugando-o,
interferindo e relatando outra versão, diferente daquela já histórica e socialmente aceita.
Num primeiro momento, o artigo versará sobre o livro infanto-juvenil “A maior flor
do mundo” (SARAMAGO, 2001). Já na segunda parte, aborda o livro “O Conto da Ilha
desconhecida” (SARAMAGO, 1998). As ponderações versam sobre Literatura, sobre o fazer
literário e as construções de sentido que a ele se podem inferir. Sob a luz da teoria literária,
pode-se afirmar que ambas as histórias constam de uma estrutura de narrativa com uma
trajetória de herói linear. Nelas há um deslocamento para a busca, uma iniciação e um
desfecho satisfatório para os personagens, no que diz respeito a desvelar o fim, como a
concretude das soluções buscadas no decorrer do enredo.
Trata-se, sobretudo, de Leitura, no sentido de um olhar sobre as possíveis intenções do
autor e as prováveis interpretações do leitor, num mundo de complexidades de significados e
de simbologias através da língua em si mesma, em suas nuances, inclusive gramaticais.
Assim, procurando abranger o ato da leitura e valer-se do seu significado.

2 OBSERVAÇÕES EM “A MAIOR FLOR DO MUNDO”

A maior flor do mundo é uma história para crianças, no melhor estilo de Saramago.
Posicionando-se como personagem, o autor nos conta que uma vez teve uma ideia para um
livro infantil, idealizou uma história sobre um menino que fazia nascer a maior flor do mundo.
No entanto, não se julga capaz de escrever esse tipo de literatura, e tem pena disso. Ele
acreditou que se soubesse colocar a ideia no papel, ela seria admirável: "seria a mais linda de
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todas as que se escreveram desde o tempo dos contos de fadas e princesas encantadas...".
(SARAMAGO, 2001, p.3)
Saramago narra a história do menino e da flor como se fosse apenas o esboço do que
ele teria contado se tivesse o poder de fazer o impossível: escrever a melhor história de todos
os tempos. Ele nos ensina que a literatura é o lugar do improvável, pois o menino desta
história faz uma simples flor dar sombra. Depois, quando ele "passava pelas ruas, as pessoas
diziam que ele saíra da aldeia para ir fazer uma coisa que era muito maior do que o seu
tamanho e do que todos os tamanhos". Como nos velhos livros de literatura infantil, Saramago
conclui: "E é essa a moral da história". (SARAMGO, 2001, p. 4)
No que se refere a possível interpretação, “A maior flor do mundo”, já no seu título,
nos apresenta algo que insere a beleza de trato delicado, a flor, que também é a alegoria das
virtudes da alma e igualmente o amor e a harmonia ligados à infância. Além disso, pode-se
inferir sobre a simbologia do caráter efêmero da vida. Por mais que a representação do título
seja melindrosamente delicada, percebemos tratar-se de algo grandioso pela locução adjetiva
“maior do mundo”.
Saramago, nesse caso, alude à Literatura, no exemplo, a própria flor representaria a
leitura (ou livro), que deve ser regada, tratada. Sabendo-se que a flor é o órgão reprodutor das
plantas, forma-se, então, um paralelo com a renovação e renascimento de um mundo literário.
Nesse lugar, onde se possa criar literatura, assim como os polens se espalham formando mais
flores, sejam também os leitores, principalmente os infantis. Para tanto, José Saramago ensina
como fazer Literatura para os pequenos, modestamente, ou se preferimos ir além,
ironicamente salientando que não o sabe fazer.
Através da metalinguagem, Saramago inicia, caracterizando, e de certa forma, como
lhe é peculiar, atacando a maneira como são feitas as histórias infantis até então: “As histórias
para crianças devem ser escritas com palavras muito simples.” (2001. p. 1) Por exemplo, os
contos de fadas têm a obrigação de assumir essa naturalidade de linguagem, deixando
entrever que se assim não o for, as crianças seriam inábeis para produzir sentido. No entanto,
o contrário se observa nesta história infantil, pois preserva as palavras difíceis, além de
subverter alguns aspectos, como introduzir um narrador, o próprio escritor. Porém, segue a
questão da narrativa tradicional, ou seja: introdução, clímax, desfecho.
O estruturalismo já não vigora nos aspectos textuais, ou seja, a estrutura não significa
isoladamente, mas a partir de suas relações com o mundo. Pois, agora, os temas de uma obra
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são os modos como essas relações produzem sentido. Dessa forma, parece interagir
Saramago, já que sua arte literária não é um monólogo, estando sujeita a várias interpretações.
Compreender a intenção do autor é compreender a intenção da obra, e assim poder delimitar
um pouco a interpretação, dentro de um conceito determinado, para que se torne mais clara a
reprodução do pensamento.
No caso do estruturalismo, segundo Eagleton (s. d.), o leitor era apenas uma espécie de
espelho refletor da obra. Cabia apenas encontrar os códigos, apenas decifrar, não levava em
consideração que o mesmo texto torna relativo o seu próprio significado, em determinadas
circunstâncias, como é este caso. E há que se considerar o contexto completo.
Saramago, em sua história infantil, conserva algum aspecto das formas tradicionais
das narrativas, ou seja, usa um narrador em primeira pessoa, ora conversa com o leitor, ora se
inclui nos comentários, mas não salta a regra geral. Também mantém o tempo verbal
(imperfeito do indicativo, usado no “era uma vez”), como no exemplo: "havia uma aldeia”
(2001, p. 2). Além disso, conserva o uso da metalinguagem dos parênteses para as reflexões.
Com isso, nos induz a concluir que na literatura infantil deve ser uma constante o fazer
linguístico qualitativamente belo e significativo, dentro de um conteúdo ficcional, que poderá
ser adequado para todas as idades.
Apesar de criticar o fazer da literatura dos contos de fada, por outro lado Saramago
mantém a tradição de que o herói sai do seu lugar comum para o decorrer da aventura. “Logo
na primeira página, sai o menino pelos fundos do quintal...” (2001, p. 5). Estrutura essa que
também é mantida em “O conto da Ilha desconhecida”, com a diferença de que o herói adulto
tem vontade consciente da busca, da procura de algo, no caso a ilha, e sabe que isso implica
um deslocamento, uma saída. Já o personagem-menino não tem consciência disso, então ele
sai por obra do narrador.
Em “A maior flor do mundo”, Saramago reflete o fazer do texto literário ao dizer-nos
que se responsabiliza por uma palavra colocada para “aconchegar a frase”, como explicou.
Em nenhum momento abre mão do bom português europeu, tanto que foi sempre exigência
pessoal, que seja respeitado todo o escrito por ele, ainda que as palavras estejam
desconformes em outros países lusófonos.
O autor faz uso de uma adjetivação perfeita e sublime ao belo: “um cheiro de caule
sangrado de fresco” (2001, p. 7). O menino-herói salva a flor (cuja representação pode ser a
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literatura clássica), como se fosse tarefa desvinculada de obras infindáveis, pois toda criança
crê que o mundo pode ser melhorado e que cada um tem capacidade para tal.
Na página nove, em “A maior flor do mundo”, há uma estrutura sintática e
diagramação gráfica de poesia, induzindo o leitor a observar, a necessidade que o herói tinha
de agir rapidamente, a isso se devem as frases curtas, por exemplo. O menino também teve
trabalho intensificado para alcançar o objetivo, para isso o autor serviu-se dos numerais:
“Cem mil viagens à lua” (SARAMAGO, 2001, p. 9). O pequeno herói foi aclamado, quando
regressou ao lar, pois tinha cumprido a sua missão, que era maior do que o seu tamanho.
Muitas histórias infantis, ao contrário desse conto, apregoam a parcimônia e a
obediência às regras, pois, acreditando que jamais se deve ultrapassá-las. Em Saramago houve
controvérsias, pois sim vale a pena contrapor-se, por um objetivo nobre. Lema este, que se
pode perseguir em “O conto da Ilha desconhecida”, em que o conflito somente acontece,
porque o personagem principal inverte a ordem e os bons costumes.
Segundo Dominique Maingueneau, “as obras emergem em percursos biográficos
singulares, porém esses percursos definem e pressupõem um estado determinado do campo”
(1995, p. 131). A experiência do autor e as suas concepções constituem a obra, que participa
da vida dele, porque a sua identidade como sujeito está dentro do contexto social, sendo
impossível dissociá-los.
Importante, ainda sob a luz de Maingueneau, é a maneira peculiar como o escritor se
relaciona com as condições de exercício da literatura de sua época, pois segundo ele, o
escritor está fora do lugar comum, sendo imprescindível, por isso, estudar o lugar-comum de
cada escritor. Da mesma forma, a literatura participa da vida da sociedade. E em Saramago a
ficção ultrapassa os limites do real, deixando o leitor estagnado em meio a essa ficção
notoriamente evidente e por outro lado, divisa a realidade repensada ou revisada de maneira
estudadamente criativa. Além de, possivelmente bem próxima da verossimilhança vivenciada
por todos os leitores.

3 OBSERVAÇÕES EM “O CONTO DA ILHA DESCONHECIDA”

“O conto da Ilha desconhecida” versa sobre um homem que vai ao rei e lhe pede um
barco para viajar até uma ilha desconhecida. O rei reluta em doar, já que a ilha é
desconhecida. O homem argumenta que assim são todas as ilhas até que alguém desembarque
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nelas. Depois de insistir muito, ele consegue do rei uma embarcação para procurar uma ilha
desconhecida. "O homem nem sonha que, não tendo ainda sequer começado a recrutar os
tripulantes, já leva atrás de si a futura encarregada das baldeações e outros asseios" (1998,
p.24). Era a mulher da limpeza que decidiu abandonar a vida enfadonha que levava para
segui-lo. Mas, o homem se depara com a dura realidade: ninguém mais quer acompanhá-lo na
sua missão. Mesmo assim ele, com o apoio da mulher, empenha-se em sua “busca”.
Dormiram no barco. Ele sonhou que tinha uma tripulação com homens, mulheres e crianças.
Eles levavam sementes, terra, animais e árvores. Os homens diziam não ver ilha nenhuma
ilha. Então, quando passaram por terras habitadas, exigiram o desembarque. O homem viu
todos descerem, mas também viu a terra se expandir-se pelo barco e as árvores e sementes ali
brotarem. Acordou e tinha nos seus braços a mulher da limpeza. No dia seguinte, batizaram o
barco como “ilha desconhecida” e partiram.
E começam as reflexões logo no título, uma vez que o autor insere a seguinte
dualidade de sentido, usando alguns recursos gramaticais: algo desconhecido, mas por outro
lado usa o artigo determinado “a”, se é desconhecida não deveria ser determinada, justamente
aí transparece a ambiguidade. Já o início se dá com o artigo indefinido “um”, que poderia ser
qualquer personagem, mas depois ele se torna “o” homem, que queria um barco,
determinando-o através do artigo.
No começo, o autor dispõe da palavra “porta” como metonímia para designar
instituição. E dentro das simbologias do vocábulo deixa evidente, que somente se manterá o
poder com a subordinação de muitos, embora poucos sejam úteis. Isto é, obedecerá apenas
aquele que não mais tiver outro recurso:

Então, o primeiro-secretário chamava o segundo secretário, este chamava o terceiro,


que mandava o primeiro-ajudante, que por sua vez mandava o segundo, e assim por
aí fora até chegar à mulher da limpeza, a qual, não tendo em quem mandar,
entreabria a porta das petições e perguntava pela frincha, Que é que tu queres.
(SARAMAGO, 1998, p. 6).

Estabelecida então, a crítica aos padrões de instituições governamentais, pouco ou


nada funcionais em praticidade e excelência.
Destaca, também, os benefícios ou prejuízos das atitudes autoritárias: “No caso que
estamos narrando, o resultado da ponderação entre benefícios e prejuízos foi ter tido o rei, ao
cabo de três dias, e em real pessoa, à porta das petições, para saber o que queria o intrometido
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que se havia negado a encaminhar o requerimento pelas competentes vias burocráticas.”


(1998, p. 11).
Um ponto controvertido dos estudos literários é o da intenção do autor, mas segundo
Compagnon, na relação entre texto e seu autor está a responsabilidade pelo seu sentido e
significação. Dentre as possíveis intenções do autor, há a possibilidade de demonstrar que o
governo deveria estar próximo a seus cidadãos. Ele cria a imagem de um rei que poderia, se
fosse querer, colocar-se no mesmo nível dos seus subalternos, na passagem em que o rei,
embora se sentindo incômodo, tenta sentar-se na cadeira da mulher da limpeza, isto é,
acomoda-se à altura dos seus ouvintes. O diálogo, posto da forma tipicamente saramaguiana,
representa a forma igualitária de se tratarem mutuamente, tanto o emissor como o receptor,
neste caso, alternadamente o rei e o homem que queria um barco.
O rei evidencia o seu poder de mando, como onipotente, traduzido na simbologia do
dinheiro. Poder este, a que mais pertencem os homens ao dinheiro do que vice-e-versa. Como
no trecho: “Sou o rei deste reino, e os barcos do reino pertencem-me todos, Mais lhes
pertencerás tu a eles do que eles a ti, Que queres dizer, perguntou o rei, inquieto, Que tu, sem
eles, és nada, e que eles, sem ti, poderão sempre navegar [...].” (1998, p.18). Em verdade,
assim acontece na sociedade de todos os tempos. E Saramago faz questão de não deixar
passar em branco.
A população desse reino, pronunciando uma desordem, se mobiliza para que o rei, por
fim, dê o barco ao suplicante - que era apenas “um homem, depois aspirante, depois pedinte e
agora já suplicante” (SARAMAGO, 1998, p. 18). O uso desses vocábulos e seus significados
vão ampliando os sentidos do texto.
Com perspicácia e adequação, Saramago cria e recria significados das palavras. Brinca
com os atributos do dicionário, deixando o leitor perplexo e ao mesmo tempo relativiza o
conhecimento de mundo (termo difundido por Saussure), embora em contextos diferentes,
mas de todo adequados às palavras. É o caso da já citada palavra “porta”, que num primeiro
momento, refere-se a repartições de uma mesma instituição. Depois, volta a trazer o vocábulo,
no sentido literal, segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (2004), numa das acepções:
“Abertura lateral de um pavimento [...]”, no texto de Saramago assim está: “O homem desceu
do degrau da porta [...]” (1998, p. 23).
Logo, ele designa diferentes entendimentos, por exemplo, remete à simbologia de
oportunidades, vê-se bem em: “todos a quererem chegar ao sítio em primeiro lugar, mas com
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tão má sorte que a porta já estava fechada outra vez.” (p. 23) Ainda, usa a palavra para dizer
das decisões, que se tomam na vida, das escolhas que se fazem necessárias. Agrega a ironia,
opinando que poucas vezes decidimos verdadeiramente, mas quando o fazemos é para valer
de verdade. No caso, a mulher da limpeza saiu pela outra porta, a das decisões: “que é raro ser
usada, mas quando o é, é.” (p. 23).
Faz uso dos artigos, agora, como forma de precisão e grau de importância ao que se
está determinando. Como no exemplo, “a” das decisões, ou seja, uma escolha somente
poderia ser feita, e se pode inferir que teria que ser a correta, já que era uma decisão
importante na vida da personagem.
Outra das possíveis leituras se refere ao destino das pessoas, fazendo alegoria com a
vocação de cada um, demonstrando a coragem nos personagens. Refere-se à mulher da
limpeza, que escolheu deixar seu ofício de limpadora de palácios para limpar barcos. O autor,
outra vez, traz nova significação para a palavra “porta”, aqui, denota liberdade, oportunidade
de escolha livre. Dessas escolhas, em que o destino é que leva as pessoas pela mão até o seu
rumo, quando elas creem que merecem. Um caminho bom, evidenciando que mesmo que
assim não o quisesse, assim seria. De uma maneira especial ensina Saramago: “Também é
desse modo que o destino costuma comportar-se connosco, já está mesmo atrás de nós, já
estendeu a mão para tocar-nos o ombro, e nós ainda vamos a murmurar, Acabou-se, não há
mais que ver, é tudo igual.” (1998, p. 24).
No conto, a simbologia do barco merece atenção especial, eis que este se refere a um
estado de passagem, de transposição de uma vida à outra. O barco é o emblema da morte.
Segundo Chevalier e Gheerbrant (2002, p. 121) “a barca é símbolo da viagem, de uma
travessia realizada seja pelos vivos, seja pelos mortos.” O barco dos mortos é encontrado em
várias civilizações e parece que Saramago se vale disso para fazer o leitor acompanhar os
personagens nessa ida a um lugar desconhecido. Também remete ao útero, nossa primeira
embarcação e, no conto, aparece a figura da mulher que, resoluta, incentiva e apoia o homem
a continuar na viagem, na busca de si mesmo e da ilha desconhecida. Por fim, o barco reveste-
se ele mesmo na ilha, e a busca se configura na própria viagem. O barco é a ilha e
desconhecida é a trajetória que ambos vão realizar dentro dele:

Depois, mal o sol acabou de nascer, o homem e a mulher foram pintar na proa do
barco, de um lado e do outro, em letras brancas, o nome que ainda faltava dar à
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caravela. Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao
mar, à procura de si mesma (SARAMAGO, 1998, p. 51).

Seguindo na análise do conto, a atenção se eleva para a distinta maneira com que
Saramago compõe seus diálogos, a pontuação sempre entre vírgulas. Ele apenas coloca ponto
quando entra o narrador. Letras maiúsculas interagem para que saibamos quem está falando, e
o sabemos sempre. Assim, é a principal característica do estilo saramaguiano, este vastamente
conhecido: o uso inesperado da pontuação (a subversão das regras, diriam alguns). Assim é
texto próprio de Saramago: pontuação quase abolida, discurso direto ligado ao indireto, vozes
intercaladas do narrador e dos personagens, sem indicação clara de quem fala a cada
momento.
Sobre o imaginário e o fictício, observamos em Wolfagng Iser (1996), que o ato de ler
é que vai construir os sentidos, já que não existe imaginação no vazio, ou seja, o imaginário
precisa do fictício. E essas manifestações devem estar na perspectiva do texto. No processo da
leitura, o sentido se deve à articulação da interpretação pessoal, já que o ponto de vista não é
fixo e pode ir mudando, no decorrer da ação de ler. Esses atos, somados ao conhecimento de
mundo do leitor, vão proporcionar a interação entre ele e o texto, e a boa interpretação
pressupõe respeito entre ambos.
O texto é um objeto que se apresenta através da leitura, um objeto de muitas
perspectivas e mudanças no sentido, inclusive do autor. Há que recordar que a vida do leitor
também é um texto. Ainda em Iser: “A interação entre fictício e imaginário pode então ser
vista como uma encenação deste processo, cuja forma paradigmática reside na literatura”
(1996, p. 75). Já a leitura é um ato em que o leitor assume um papel ativo na cena do texto.
Por isso, é que em Saramago se identificam com facilidade as bastantes significações.
Emprega-se em “O conto da Ilha desconhecida” toda a sorte de ideias sobre
sentimentos pessoais, relativizando-os por advérbios, num contexto inteiramente adequado.
Afirma que uma coisa é tal coisa, mas relativiza-a com o uso de advérbios: “Gostar é
provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar.” (1998, p. 32) A
exemplo da passagem em que a mulher da limpeza instalou-se no barco, que ela tinha
gostado, limpou, organizou, tratou de providenciar um ambiente adequado para a nova vida
que teriam. Ofereceu seu trabalho, sua amizade e sua vida ao homem que queria encontrar a
ilha desconhecida, para saber quem era ele seria quando nela estivesse. Ela o ajudou a
conhecer a si mesmo e ir em busca do seu próprio eu.
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A filosofia apresenta um papel importante na obra de Saramago: “Quero saber quem


sou eu quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és [...]. O
filósofo do rei [...] dizia que todo homem é uma ilha [...], Que é necessário sair da ilha para
ver a ilha, que não nos vemos se não saímos de nós, se não saímos de nós próprios, queres tu
dizer [...]” (1998, p. 40-41).
Então, o homem deve ser o navegador de si mesmo, infere-se de Saramago, os
navegadores de agora são esses, que querem encontrar-se como indivíduos, num mundo de
iguais. Também se pode recordar o herói de “A maior flor do mundo” que saiu em busca de
algo maior do que aquilo que já conhecia.
Saramago propõe que é possível reconhecer quem somos no outro, que sozinhos não
construímos nada. Sucede que nós nos observamos a nós mesmos na ficção, nos momentos
em que nos afastamos do que nos dava segurança para nos aventurarmos. Também, aconselha
que há que sair viajar para ver outras verdades, que não somente a dos mapas, e a dos outros,
mas a nossa percepção. Ainda nos mostra que para se fazer grandes coisas, precisa-se
afastamento, quer de si, quer da sua verdade, e mais ainda da sua realidade.
Parece que o importante é sempre buscar, embora o personagem-menino de fato salve
a flor, alcançar o objetivo é estar sempre à procura dele. E continuar a vida, apesar dos medos,
a exemplo do homem, que buscava a sua ilha, sonhava com tudo o que pretendia fazer como
se já estivesse realizado. Sonhou com a ilha desconhecida. Sonhou com tudo que era possível
sonhar. Até há um resquício de intertextualidade em relacionar seu barco com a arca de Noé,
entrevendo a leitura de algo que prenunciaria um novo mundo. Saramago profere a
importância de crer nos sonhos, pois as nossas buscas são o que nos impulsiona a continuar
vivendo. Tanto que o texto pode ser lido como uma parábola do sonho realizado, devido ao
seu otimismo, à vontade e à obstinação. Ele nos recorda que “O mar não ensina navegar”
(1998, p. 57). Assim como a vida não ensina viver. Mas que ”há sempre uma vez”. (p.58). E
que “[...] bastará que o vento sopre nas copas e vá encaminhando a caravela ao seu destino.”
(p. 61).
A obra retoma um tema valioso a Fernando Pessoa: "Para viajar, basta existir". Ali o
sonho e a imaginação permitem a aventura possível e a ficção é capaz de levar o homem para
onde ele desejar, seja realidade ou imaginação.
Saramago delineia metaforicamente o mundo, nessas poucas linhas do conto, ensina
um pouco da vida, da contestação da história, da revisão dos mitos impostos pela cultura.
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Duvida das verdades da humanidade, do fazer literário, pelo qual perpassam os fatos do
mundo. O seu leitor rompe os limites do real em contato com o fictício e com a própria
experiência. A obra de José Saramago propicia incentivos ficcionais para buscar a realidade e
ver muito além dela.
Saramago é um clássico, um cânone, instituído não só pelo valor social dominante,
mas também por ser sempre atual. E se adequa perfeitamente definição de clássico de Sainte-
Beuve:

Um verdadeiro clássico é um autor que enriqueceu o espírito humano, que realmente


aumentou seu tesouro, que lhe fez dar um passo a mais, que descobriu alguma
verdade moral não equívoca ou apreendeu alguma paixão eterna nesse coração em
que tudo já parecia conhecido e explorado: que manifestou seu pensamento, sua
observação ou sua invenção, não importa de que forma, mas que é uma forma ampla
e grande, fina e sensata, saudável e bela em si: que falou a todos num estilo próprio,
mas que também é o de todos, num estilo novo, sem neologismos, novo e antigo,
facilmente contemporâneo de todas as idades (SAINT-BEUVE, 1957, p. 137).

Compactuando com essas idéias, se pode atribuir à luz delas, o valor estético à obra de
Saramago. Parece tratar-se de uma beleza que ultrapassa os paradoxos entre tradição e
originalidade, entre forma e conteúdo, num universo em que o belo liga o homem ao que vai
além, ao que transcende do plano terrestre. Talvez, por isso existe a arte, para que, através da
beleza, possamos voar acima da nossa precária vida cotidiana.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse trabalho foram abordadas algumas leituras possíveis em duas das obras de José
Saramago. Não obstante, sabe-se que a tarefa de ler, no sentido de descobrir significações, é
infindável, pois as interpretações pressupõem pretextos diversificados, como o entendimento
pessoal, a revisão do contexto, a releitura da época, a intenção do autor, e depende do
conhecimento de mundo de cada um, diante dessas questões.
Além disso, ler Saramago é encontrar definições dispostas a mudar segundo cada
leitura nova, transformando a cotidianidade do leitor. No entanto, à luz da Teoria Literária foi
possível encontrar algumas interpretações prováveis e contribuir para a completude do ato de
ler. Sem embargo, ler é trabalho árduo de observação. Também é mediação, no sentido de
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interferir nas metáforas. Ler é julgamento, e sem dúvida, não é imparcial, pois faz parte do
universo do leitor.
A partir dessas interpretações, infere-se que o leitor pode chegar a romper os limites
da interpretação e da realidade instituída, pois o valor da obra de Saramago tornou-se de uma
importância que ultrapassa os paradoxos entre tradição e originalidade, entre forma e
conteúdo, ao mesmo tempo em que agrega o belo a sua arte.

REFERÊNCIAS

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria. Belo Horizonte: Ed. Da UFMG, 1999.

CHARLES, Augustin de SAINTE-BEUVE. Da tradição e do clássico em literatura. Rio de


Janeiro: Ed. Progresso, 1957.

CHAVELIER, GHEERBRANT. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio,


2002.

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, s.d.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. O Novo Aurélio Século XXI: o Dicionário da


Língua Portuguesa. São Paulo: Nova Fronteira, 2004.

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