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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


INSTITUTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA

Magia e Gênero na Literatura Grega:


uma análise comparada do uso do phármakon pelas
feiticeiras Circe e Medeia (séculos VIII e V a.C.)

Stéphanie Barros Madureira

Rio de Janeiro
2017
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
INSTITUTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA

Magia e Gênero na Literatura Grega:


Uma análise comparada do uso do phármakon pelas
feiticeiras Circe e Medeia (séculos VIII e V a.C.)

Stéphanie Barros Madureira

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


História Comparada do Instituto de História da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-UFRJ)
como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre.

Orientador: Prof. Dr. Fábio de Souza Lessa

Rio de Janeiro
2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
INSTITUTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA

Magia e Gênero na Literatura Grega:


Uma análise comparada do uso do phármakon pelas feiticeiras
Circe e Medeia (séculos VIII e V a.C.)

Stéphanie Barros Madureira

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


História Comparada do Instituto de História da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-UFRJ)
como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre.

__________________________________________________________
Prof. Dr. Fábio de Souza Lessa (Orientador)

__________________________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Santos de Moraes

__________________________________________________________
Prof.ª. Drª. Andréia Christina Lopes Frazão da Silva

Rio de Janeiro
2017

3
CIP - Catalogação na Publicação

B178m Barros Madureira , Stéphanie Magia e Gênero na


Literatura Grega: uma análise comparada do uso do
phármakon pelas feiticeiras Circe e Medeia
(séculos VIII e V a.C.) / Stéphanie Barros
Madureira . -- Rio de Janeiro, 2017.
146 f.

Orientador: Fábio de Souza Lessa.


Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Instituto de História, Programa de Pós-
Graduação em História Comparada, 2017.

1. Magia. 2. Gênero. 3. Homero. 4. Eurípides. 5.


História Comparada. I. de Souza Lessa, Fábio,
orient. II. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os


dados fornecidos pelo(a) autor(a).

4
Dedico esta dissertação a todas as
mulheres, bruxas ou não, que
diariamente subvertem os estereótipos de
gênero e recusam veementemente a
abandonar o protagonismo de sua
própria história.

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Agradecimentos

Enquanto sento em frente ao computador, neste dia incrivelmente frio e chuvoso para a
cidade do Rio de Janeiro, mal posso acreditar que chegou a hora de escrever os agradecimentos
desta dissertação. A caminhada entre o primeiro e o quarto semestre no Programa de Pós-
Graduação em História Comparada foi concluída com muitas lágrimas, unhas roídas, noites em
claro, remédios para dor e sangue, muito sangue – e talvez esses ingredientes pudessem se
tornar um phármakon muito poderoso! Entrego esta dissertação, com mais dúvidas do que
respostas, o que talvez seja um sinal do meu amadurecimento como pesquisadora. Dito isto,
torna-se imprescindível agradecer a todos aqueles que tornaram este sonho em realidade.
À Hécate, divindade mitológica que me inspira a continuar pesquisando sobre práticas
mágicas na antiguidade grega, pelo fascínio que exerce nesta pobre mortal que lhes escreve. “À
Hécate dos três caminhos / e encruzilhadas eu canto; No céu, na terra e no mar, / de açafrão é
seu manto. Nas tumbas celebrando Baco, / se une às almas dos mortos; Filha de Perses, solitária,
/ ela se delicia em cervos. Irresistível rainha, / à noite ela os cães assiste; Em grito às feras,
desarmada, / a ela ninguém resiste. Rainha e senhora do mundo, / de touro é sua tiara; Líder das
chaves, cuidadora, / pelas montanhas ela caça. Seja presente, ó donzela, / em prece aos sagrados
ritos; Ao devoto sê propícia, / ó sempre alegre espírito.” (Hino Órfico a Hécate)
Aos meus pais, Roberto e Cláudia, por todo o apoio emocional, econômico e material.
Pelas cervejas aos domingos, por escutarem todas as minhas angústias e dúvidas durante esses
dois anos. Sem todo o amor, carinho e cuidado que vocês dedicaram a mim, nada disso seria
possível. Às minhas irmãs caçulas, Catherine e Nicole, por serem melhores do que eu, interna
e externamente. O apoio de vocês foi imprescindível para que eu pudesse chegar ao final dessa
jornada com as faculdades mentais quase intactas. Agradecimentos especiais a você, Catherine,
por ter ido várias vezes até a Biblioteca de Paris, fotografar livros que eu precisava muito e não
possuía acesso. À minha tia Maria Milagros, por me amar, me trazer doces e se preocupar
comigo, mesmo nos momentos em que eu estava estressada demais para te responder
decentemente. Amo vocês, família!
Ao meu namorado, Arthur Balbino Câmara Canto, por se manter nos últimos quatro
anos e sete meses como o meu maior apoiador. Obrigada por ter secado minhas lágrimas nas
madrugadas etílicas dessa cidade, por aturar meu mau humor inevitável, e por cuidar de mim
com carinho e paciência extremas nos momentos que adoeci. Obrigada pelos pequenos e
grandes mimos, presentes, distrações e por compartilhar de um amor que transcende meu corpo

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e alma. Que os deuses nos permitam muitos anos juntos e que nosso amor cresça de maneira
exponencial.
Ao meu melhor amigo Diego Ferreira Rosas, por estar disponível 100% do tempo para
me conseguir livros impossíveis e imprescindíveis para esta pesquisa. Você foi até a Deep Web
procurar livros que eu não conseguia encontrar em nenhum lugar! Se isso não é amizade
verdadeira, eu não sei o que é. Obrigada por ler todas as versões dos meus capítulos, por me
aguentar chorando e responder todas as mensagens inbox/SMS que a crise de pânico me fazia
mandar de madrugada. Não há palavras o suficiente no dicionário para explicar a sua
importância na minha vida e para agradecer todo o apoio que recebi, sem o qual essa dissertação
não seria escrita. “De Elêusis até aqui” e até quando o universo e a divindade permitirem. Amo
você e tenho gratidão do fundo da minha alma.
Ao Professor Fábio de Souza Lessa, agradeço pela oportunidade, confiança e amizade.
Este trabalho final só foi possível graças a sua orientação e paciência, e espero que eu tenha
correspondido ao menos a parte de suas expectativas. Muito obrigada por todos esses seis anos
de caminhada acadêmica, espero um dia ser capaz de alcançar apenas uma parte do que você
conquistou na sua. De coração, obrigada.
Ao Professor Alexandre Santos de Moraes, agradeço a paciência, amizade e por se
dispor a fazer parte da banca examinadora da minha defesa. Não canso de contar que meu
primeiro trabalho em Antiga I, ministrada pelo Professor Fábio, foi uma resenha crítica de um
artigo seu. Você fez parte da banca examinadora de minha monografia e agora está avaliando
minha dissertação. Espero ter conseguido mostrar amadurecimento e evolução. Muito obrigada!
À professora Andréia Christina Lopes Frazão da Silva, agradeço pela paciência, as
discussões na disciplina obrigatória do Mestrado e por abrir meus horizontes acerca da
metodologia comparada, a qual eu pouco sabia quando iniciamos esta caminhada. A boa
vontade aliada à sua competência como pesquisadora e sua didática como professora foram
responsáveis por momentos de importante reflexão para a construção do meu trabalho. Muito
obrigada!
À Bruna Moraes da Silva e Renata Cardoso de Sousa: meninas, vocês são as melhores
amigas e companheiras de Laboratório que alguém poderia pedir. A amizade de vocês, dentro
e fora do LHIA, foi essencial para que eu conseguisse chegar até aqui. Obrigada por ouvirem
meus temores, por me acalmarem em todos os momentos e por estarem disponíveis para tirar
minhas dúvidas ou ler meus trabalhos. Vocês são pessoas sensacionais, que eu vou levar do
LHIA para a vida!

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Aos amigos Mariana Villanova, Marina Villanova, Raquel Anne, Juliana Conrado,
Vítor Alberto Correia, Rômulo Machado, Mariana Castro, Amanda Mesquita, Maby Tavares,
Pedro Beja, Anne Chalão: por todo o amor, as saídas, as bebedeiras, as visitas-de-doente, os
ombros-amigos e alegria que vocês me proporcionam todos os dias. Conforme vou
envelhecendo, olho para vocês, pessoas que permaneceram junto a mim, e agradeço por tê-los
em minha vida. Todo o amor do mundo por vocês!
Finalmente, agradeço à CAPES pelo financiamento desta pesquisa, sem o qual eu não
conseguiria realizá-la.

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Resumo

Esta dissertação analisa as relações entre a prática mágica e os estereótipos de gênero


no século V a.C., demonstrando a existência de um processo discursivo que interliga os temas
em curso desde o século VIII a.C.. Utilizando como principais referências documentais a
Odisseia, de Homero, e a Medeia, de Eurípides, propomos compreender de que modo a
documentação era utilizada pela comunidade ateniense com propósitos educativos, sobretudo
no que concerne à manutenção dos valores políades em contraponto à função social das práticas
mágicas.
A partir da proposta teórico-metodológica de Marcel Detienne, mostraremos através da
comparável “significados/perspectivas paidêuticos(as) do uso do phármakon na poesia de
Homero e Eurípides”, qual o discurso que perpassa os documentos e seu possível uso pelos
atenienses. Por meio da leitura dos mitos narrados nas duas obras, podemos perceber, apesar
da distância temporal entre as obras e a transformação do pensamento político, a maneira pela
qual a persona da feiticeira bárbara é apresentada e consolidada na sociedade clássica. As
práticas mágicas obscuras são percebidas como femininas e, dessa forma, carregam um caráter
submisso, apesar de subversivas. Circe e Medeia, personagens que envolvem o universo
mágico, recebem destaque por representarem os temores da civilização frente ao estigma da
magia. Suas habilidades obscuras, inversão dos valores femininos e a amargura da mulher
abandonada contribuíram para a transformação das figuras míticas em feiticeiras temidas e
execráveis. À vista disso, temos por objetivo buscar similitudes, diferenças e singularidades
entre aquilo que os gêneros literários selecionados (épico e trágico) apresentam e o que a
sociedade ateniense do período Clássico atribui como socialmente condizente ao gênero. O
debate comparativo, ao colocar as personagens e suas atitudes sob uma nova ótica, nos elucida
novas oportunidades e uma pluralidade interpretativa.

Palavras-Chaves: Magia; Gênero; Homero; Eurípides; História Comparada; Análise de


Discurso.

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Abstract

This thesis analyzes the relationships between magical practices and gender stereotypes
in the 5th century BCE and demonstrates the existence of a discursive process that interconnects
the themes since the 8th century BCE. I use Homer’s Odyssey and Euripides’s Medea as the
main document references in order to understand how documentation was used by the Athenian
community for educational purposes, especially regarding the maintenance of polis values in
opposition to the social function of magical practices.
Based on Marcel Detienne’s theoretical-methodological proposal, I will show, through
the comparable “paideutic meanings/perspectives of the use of phármakon in Homer and
Euripides’s poetry”, which discourse pervades the documents and its possible use by the
Athenians. By reading the myths narrated in the two works, we may perceive, despite the
temporal distance between them and the transformation in political thinking, the way through
which the barbarian sorceress persona is presented and consolidated in classical society.
Obscure magical practices are perceived as feminine and, thus, carry a submissive, though
subversive, character. Circe and Medea, characters who involve the magical universe, have
prominence because they represent the fears of civilization along with the stigma of magic.
Their obscure skills, the inversion of feminine values and the bitterness of the abandoned
woman all contribute to the transformation of the mythical figures into feared and execrable
sorceresses. In light of this, I seek similarities, differences and singularities between what the
literary genres I have selected (epic and tragedy) present and what the Classical-period
Athenian society attributed as gender-appropriate. The comparative debate, by casting the
characters and their attitudes in a new light, elucidate new opportunities and an interpretative
plurality.

Keywords: Magic; Gender; Homer; Euripides; Comparative History; Discourse Analysis.

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Sumário

INTRODUÇÃO _________________________________________________________ p. 11

CAPÍTULO 1| Homero e Eurípides:Paideía, Intertextualidade e Processo discursivo p. 23

1.1|Paideía: uma escolha conceitual e interpretativa ______________________________p. 24

1.2| Musa e poeta: a sacralidade do discurso_____________________________________p. 27


1.3| Homero______________________________________________________________p. 31
1.3.1| O aedo_______________________________________________________p. 35
1.4| Tragédia grega: a divindade, a pólis e o poeta________________________________p. 38
1.4.1| Eurípides___________________________________________________________p. 45
1.5| Relação epopeia-tragédia________________________________________________p. 48
CAPÍTULO 2| Práticas de Magia Grega: o phármakon em destaque ______________p. 54
2.1| Magia na Grécia Arcaica e Clássica ________________________________________p. 54

2.2| A magia do phármakon: da epopeia à tragédia _______________________________p. 71

2.2.1| O phármakon de Circe e Medeia: magia como realização da métis________p. 81

CAPÍTULO 3| Circe e Medeia: representações sociais de feiticeiras _______________p. 88

3.1| Circe e Medeia relacionadas _____________________________________________p. 89

3.2| As esposas legítimas dos cidadãos e a magia do phármakon: magia feminina _______p. 99

3.3| Circe e Medeia: Representações sociais de feiticeiras _________________________p. 110

CONCLUSÃO _________________________________________________________ p. 123

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ______________________________________p. 130

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Introdução

Propomos, na presente dissertação, realizar uma análise comparada do uso da magia do


phármakon por duas feiticeiras da literatura grega – Circe, personagem da Odisseia de Homero,
e Medeia, da tragédia homônima de Eurípides – de forma a verificar como as mesmas se
constituiriam como representações sociais do gênero feminino em meio à sociedade grega do
período Clássico (V-IV a.C.). Defendemos que as obras aqui analisadas possuíam um viés
paidêutico, isto é, traziam para o seu público, através das atitudes fictícias de suas personagens,
o que seria ou não apropriado para uma mulher virtuosa (modelo mélissa1), uma vez que as
feiticeiras funcionariam como representações do feminino na Grécia Antiga. Seguindo a
metodologia proposta por Marcel Detienne para a História Comparada buscaremos elucidar
esse processo discursivo e a construção das personagens evidenciando seu viés educativo.
No que concerne às crenças em relação à magia, Eurípides e Homero nos revelam
questões relevantes sobre a temática. Homero se inspirou em uma tradição mito-poética e a
representou em sua narrativa, de forma a construir suas epopeias no período Arcaico2 (séculos
VIII-VI a.C.). Vivendo na sociedade grega, tendo acesso aos poemas homéricos e aos mitos
desde a mais tenra idade, Eurípides também se apropriou dessa mesma tradição, sendo os
poemas homéricos arquitextos3 para o tragediógrafo. A tradição cantada na epopeia foi utilizada
pelos tragediógrafos para ambientação de suas peças de forma que os dois gêneros literários
mantêm uma relação intrínseca com a sociedade clássica, e sendo assim, são uma ferramenta
para a proliferação dos ideais políades. Ao analisarmos a produção bibliográfica acerca do
nosso objeto de estudo, verificamos que os trabalhos se dividem em dois campos de abordagem:
Magia e Gênero, sendo escassas as obras que trabalham a conexão entre as duas temáticas.
Em se tratando do conceito de gênero, as investigações de Joan Scott (1986, p. 1067-
1075) foram um marco nos estudos sobre a temática. A autora foi uma das primeiras cientistas
sociais a propor uma busca pela construção das análises históricas através de um estudo e
conceituação de gênero, se distanciando de uma perspectiva centrada na História das Mulheres.
Propôs o entendimento de gênero como uma categoria cheia de nuances e variáveis, moldada

1
De acordo com o modelo de mulher ideal do Período Clássico, as mulheres estariam condicionadas ao exercício
das atividades domésticas, à submissão ao homem, à abstinência dos prazeres do corpo, ao silêncio, à fragilidade
e debilidade, à reprodução de filhos legítimos, à vida sedentária no interior do oîkos, exclusão da vida social,
política e econômica, ou seja, reduz a condição feminina a um agente passivo.
2
A cronologia por nós selecionada é proposta por Claude Mossé em sua obra A Grécia Arcaica de Homero a
Ésquilo (1984).
3
Estes são, para o poeta clássico, portadores de “um estatuto exemplar, que pertencem ao corpus de referência de
um ou vários posicionamentos de um discurso constituinte” (CHARAUDEAU; MAINGENEAU, 2012, p. 64).
12
tanto na contemporaneidade, quanto na antiguidade por fatores sociais (idade, identidade
sexual, status, riqueza, etnicidade). Assim, dividiu sua explicação conceitual em duas partes: 1)
constituição de relações sociais entre os sexos e 2) relações de poder, cunhando a ideia de que
homem e mulher não são categoriais essenciais ou fixas. Aplicaremos a sua proposta de gênero
como sendo subordinado às relações sociais entre os sexos biológicos e também às relações de
poder, que, em nossa concepção, existiam entre esses sexos.
Pauline Pantel (1990, p. 597) igualmente contribuiu de forma relevante nos debates
acerca da História de Gênero, afirmando que a definição desse conceito é uma noção muito útil
para os pesquisadores da Antiguidade, não apenas para que se faça um estudo sobre as
condições e a vida das mulheres, mas porque as relações dicotômicas entre os gêneros são
também relações sociais, concordando com Joan Scott nesse aspecto. Entretanto, sua análise
apresenta uma crítica ao conceito, destacando a carência metodológica, divergência de posições
e controvérsias em geral, apontando esses como alguns dos problemas enfrentados por aqueles
que decidem trabalhar com a História de Gênero.
Yuval-Davis (1997, p. 5 e 9), nos explica que a opressão das mulheres se deve ao fato
de estarem localizadas socialmente em uma esfera diferente daquela ocupada pelos homens,
como exemplo: público x privado e natural x civilizado. Essa constatação pode ser aplicada ao
caso do modelo mélissa, uma vez que, classificadas como pertencentes ao que é selvagem, as
mulheres não gozam dos mesmos direitos que os homens. Estes possuem o domínio
público/político porque são civilizados. A autora se aproxima de Scott e Pantel ao sugerir que
o gênero é construído pela cultura, uma vez que ele e suas prerrogativas são socialmente
divididos pela distinção sexual, acrescentando ao debate historiográfico ao propor que o
conceito seja analisado como um modo do discurso.
Já Lin Foxhall (2013, p. 1 e 3) caracteriza o gênero como uma questão central para o
entendimento da Antiguidade, além de frisar o papel do ambiente social e da aculturação para
a formação das expectativas, convenções e comportamentos do mesmo. Discordando de uma
análise do gênero dissociada da diferenciação biológica entre homens e mulheres, que considera
o mesmo puramente construção social, para Foxhall as sociedades antigas não o compreendiam
da mesma forma que nós, fazendo do gênero algo inato e natural, inseparável do sexo biológico.
Concordamos com a helenista quando afirma que o gênero estava presente em todas as situações
que permeavam a vida dos antigos e que os princípios do mesmo haviam sido completamente
internalizados pela maioria das pessoas. No que concerne à análise da documentação, Foxhall
frisa que, apesar de produzida por homens da elite ou de status social superior, isso não significa
que tenhamos de aceitar seu discurso sobre as mulheres como seres completamente subalternos
13
e sem nenhuma voz. A pesquisadora propõe que procuremos ouvir e interpretar as vozes do
gênero feminino apesar do silencio documental.
Trabalhando com uma proposta investigativa similar, Fábio de Souza Lessa (2004 e
2010) baseou suas pesquisas na aplicação de uma História de Gênero procurando
principalmente na imagética e na arqueologia os desvios e transgressões do modelo mélissa.
Através da documentação iconográfica, buscou demonstrar que a realidade era distinta da
impressão apresentada pela documentação escrita, e que mesmo nela foi possível descobrir
informações complementares. As exceções explicitam que as esposas vivenciavam
experiências que lhes permitiam agir quando lhes era dado espaço ou mesmo que, muitas vezes,
elas criavam esses espaços. A partir dessas conclusões, torna-se possível interpretar as críticas
e a dualidade das mulheres, na epopeia e na tragédia, como uma tentativa de imposição
comportamental a um corpo social menos subjugado do que se imagina.
Quanto à magia, as primeiras análises acerca desse fenômeno e sua interação com a
religiosidade surgiram no âmbito da Antropologia, trazendo um debate infindável sobre da
diferenciação entre as duas. Um dos principais estudiosos a se debruçar sobre o estudo da magia
foi James Frazer (1917), mas ele nos apresenta uma visão evolucionista da relação magia x
religião, argumentando que a prática mágica não passaria de um estágio inicial das crenças dos
homens, sendo, portanto, primitiva e anterior ao desenvolvimento da religião. Essa diferença
podia ser percebida principalmente porque a religião exigiria do indivíduo uma abstração de
conceitos e uma reflexão mais profunda e complexa do que a magia, que por sua vez demandava
uma reflexão mais superficial do que a Ciência. No que compete à religião grega, a fronteira
entre magia e religião era muito difícil de se distinguir, pois certas práticas existentes não
permitiam a dissociação entre o religioso e o mágico. Essa teoria não engloba as nossas
considerações acerca da relação magia/religião da Grécia Antiga.
Bronislaw Malinowski (1954, p. 70-84), evita a reflexão de Frazer sobre magia ser um
estado primitivo da religião e, por conseguinte, da Ciência, afastando-se de uma perspectiva
evolucionista. Em suas pesquisas propõe uma diferenciação entre atividades “sagradas” (nas
quais se encaixavam tanto a religião quando a magia) e atividades “profanas” (nas quais se
incluíam a Ciência e as realizações tecnológicas). O antropólogo acredita que a prática sagrada
começava onde não existia a profana, de forma que a magia só existia em sociedades nas quais
não havia tecnologia ou essa tecnologia era insuficiente. Essa visão, como a de Frazer, foi
refutada. Mas o que permanece relevante para nós, em sua análise para o estudo da magia, é a
característica psicologicamente satisfatória da mesma: a memória individual e a coletiva tinham

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um papel essencial no sentimento de sucesso da magia. Cada mágica que funcionasse era
relembrada pela comunidade mais vividamente do que as que não funcionavam.
Lucien Lévy-Bruhl (1979) se contrapõe às ideias evolucionistas de Frazer, defendendo
a racionalidade das sociedades antigas. Em sua concepção, o homem primitivo vive e atua em
uma realidade em que tanto seres quanto objetos possuem propriedades e atributos místicos. A
magia existe em sua lógica porque ele está inserido em uma sociedade que é organizada
seguindo seus próprios princípios de coerência. Dessa forma, vislumbra sua realidade objetiva
misturada a uma outra: a dos deuses, dos mortos, de entidades invisíveis, que participam
ativamente na vida da comunidade dos vivos. Esse conceito de participação é profícuo para
entender como, na religião grega, tanto os deuses, quanto os mortais, e os mortos compartilham
da mesma realidade física, do mesmo espaço e, assim, no caso da magia, eram responsáveis
pela realização do objetivo do praticante.
Já o historiador Daniel Ogden (2002) apresenta seu primeiro livro no campo de estudo
da magia na Antiguidade, Magic, Witchcraft and Ghosts in the Greek and Roman Worlds.
Através de trezentos textos com novas traduções e breves comentários, seu manual nos oferece
descrições de feiticeiras, bruxas4 e fantasmas nos trabalhos de escritores antigos, reproduz
tábuas de imprecação, feitiços de livros de receita antigos e inscrições de amuletos mágicos.
Parte de seu trabalho se concentra na análise de feiticeiras da literatura grega, as quais destacam-
se Circe e Medeia. Em sua análise da relação magia-literatura, conclui que a maior parte das
feitiçarias é praticada por mulheres. Apesar disso, defende que não havia nenhuma
especificidade feminina que as fariam mais propensas ao uso da magia do que os homens, o
que nós pensamos que possa ser diferente. Em nossa concepção, o uso recorrente de
personagens mulheres praticando magia pode significar o entendimento de uma espécie de
“natureza feminina” – ao menos na imaginação dos poetas – mais propensa a despertar os
mistérios da magia.
Derek Collins (2003 e 2009) apresenta as dificuldades de se trabalhar com o conceito
de magia e desenvolve uma estrutura para a compreensão do papel da magia na vida grega da
Antiguidade. Seu trabalho elucida os dois vieses de análise da prática mágica: a imaginação
social – ou seu sentido psicológico – e a realidade ritualística – ou o sentido material da prática.
Concordamos com suas considerações de que essa dicotomia entre o viés do pensamento e ação
seja artificial, uma vez que as duas não são facilmente separadas e que a ação mágica ocorre
num contexto cultural de conceitos específicos de causalidade e efeito. O autor também

4
Nós estamos cientes de que há toda uma discussão, sobretudo no que concerne documentações medievais, acerca
da definição de bruxa. Nesta dissertação, usaremos a palavra como um sinônimo do feiticeira.
15
argumenta que, como fenômeno elusivo, a magia deriva de processos da cultura helênica,
inserida numa concepção de natureza subordinada a uma divindade tanto abstrata quando
antropomorfizada. O mito se encarrega de mostrar as divindades praticando magia, de forma a
funcionar como uma espécie de modelo. Derek Collins afirma ser algo frequente na mitologia
grega que os deuses – sejam eles masculinos ou femininos - sejam os primeiros a praticar
qualquer tipo de tradição, de forma legitimá-la (COLLINS, 2009, p. 18 e 56).
De acordo com Maria Regina Candido (2004, 2010a, 2010b), a magia durante o período
Clássico, vista em um período anterior como parte integrante dos rituais oficiais, retorna ao
status do cotidiano dos atenienses, levando-se a acreditar que os mesmos se defrontaram com
situações novas e inusitadas no que compete sua relação com a comunidade cívica. A autora
afirma que novas práticas mágico-religiosas e o surgimento de novos deuses entre os atenienses
nos foram apontados em Medeia de Eurípides e nos discursos de acusação de Demóstenes e
Andócides (CANDIDO, 2010a, p. 33-101). Sendo assim, para tratarmos da magia, precisamos
também delinear estudos da religião grega, uma vez que o heleno acredita nessas forças
invisíveis que dividem com ele o mundo: em sua concepção elas são completamente reais e
participam ativamente do cotidiano.
Para tanto, nos aproximaremos das concepções de Jean-Pierre Vernant em seu Mito e
Religião na Grécia Antiga (2006, p. 4) quando afirma a comunidade grega não se constituía
apenas da parte “viva e mortal”, mas também da comunidade imortal dos deuses, que são
múltiplos, estão no mundo material, dele fazem parte, nele nasceram. Relacionando-as com as
considerações de Collins sobre a prática mágica, entendemos que há outra metade invisível na
sociedade, composta pelos mortos e pelas divindades do panteão grego: “A magia antiga opera
dentro desse mundo, em que as forças invocadas, mesmo quando são explicitamente definidas
por uma personalidade, são invisíveis e imperceptíveis, e podem ser sentidas somente depois
que seu efeito de manifesta.” (COLLINS, 2009, p. 26-28).
Consideramos importante ressaltar que obras acerca de magia sob uma ótica de gênero são
ainda reduzidas no Brasil. Nos deparamos com algumas análises internacionais engendradas
para essa proposta, tendo sido estruturadas por historiadores como Christopher Faraone (2001)
e Kimerly Stratton (2007). Dessa forma, consideramos que se torna relevante a existência de
novas investigações, para levantar questões ainda não apreciadas pelos historiadores.
Uma vez que estudaremos a representação de mulheres feiticeiras em dois gêneros
literários diferentes, precisamos também definir o que entendemos por representação social.
Segundo Denise Jodelet (2001, p. 17) as representações são criadas pelos seres humanos de
forma a estabelecer modelos comportamentais: tem o objetivo de ajudá-los a se ajustarem ao
16
mundo e se relacionarem com ele, resolvendo os problemas de convivência em sociedade.
Como sintetizou Rafael A. Sêga (2000, p. 128-129) em seu estudo do conceito de Jodelet: “a
representação social é um conhecimento prático, que dá sentido aos eventos que nos são
normais, forjam as evidências da nossa realidade consensual e ajuda [sic] a construção social
da nossa realidade”: é o “processo pelo qual se estabelece a relação entre o mundo e as coisas”.
A representação é social, pois é a partir dela que se forjam as maneiras convenientes de
comportamento em uma determinada sociedade, e diz respeito a algo ou alguém: quando
representamos, representamos um sujeito ou um objeto. E essa representação é oriunda do
contato que temos com eles (JODELET, 2001, p. 17-18). Como sintetizou Marcus Alexandre
(2004, p. 130) é:

a ciência do conflito entre o indivíduo e a sociedade. O indivíduo só existe dentro da rede


social e toda sociedade é resultado da interação de milhares de indivíduos. [...] são objetos
de estudo da Psicologia Social: os fenômenos da ideologia (cognição e representações
sociais) e os fenômenos da comunicação, todos vinculados aos diversos níveis das
interações humanas.

A representação social só pode se dar através da comunicação e esta incide sobre aquela
de três maneiras, segundo Jodelet (2001, p. 30): a) na sua emergência (quem sabe e de onde
sabe?); b) nos processos de formação das representações (o que e como sabe?) e c) na
edificação da conduta (sobre o que sabe e com que efeitos?). Representações sociais estão,
dessa maneira, presentes nos discursos que norteiam as crenças, os valores e as regras
socialmente aceitas pelos diversos segmentos sociais. Elas funcionam através da simbolização
e interpretação dos objetos que o cercam, de forma a construir uma realidade em conjunto a um
corpo social. Denise Jodelet sistematiza de maneira bastante eloquente essa relação intrínseca
e necessária entre comunicação e representações (JODELET, 2001, p. 36 e 40).
Objetivando analisar as interpretações e as construções simbólicas que os poetas fizeram
sobre as feiticeiras e a magia que praticam, utilizando essas personagens como representações
de condutas a não serem praticadas pelas mulheres dos cidadãos, podemos afirmar que o
conceito de representações sociais nos auxilia na elaboração das nossas hipóteses. Sabendo que
as representações sociais são utilizadas “para agir sobre o mundo e o outro, o que desemboca
em suas funções e eficácias sociais” (JODELET, 2001, p. 28), seremos capazes de perceber
como as representações de mulheres são capazes de revelar as distinções de gênero, atuando
sobre a organização da comunidade na qual os esses discursos são proferidos.
Para realizarmos uma História Comparada do uso da magia pelas personagens femininas
no contexto literário e social apresentados a nós por Homero e Eurípides, no que tange aos

17
pressupostos de gênero e magia na sociedade ateniense, baseamos nossa pesquisa nas propostas
de Marcel Detienne. Através de sua análise sociocultural, tal como Jean-Pierre Vernant, o
helenista defende a investigação da Antiguidade através das relações entre os homens, suas
crenças, seus costumes, suas leis, mitos e ritos. Como já disse Vernant (2006, p. 7): ao tratar
sociedade grega, devemos ter em mente que “entre o religioso e o social, o doméstico e o cívico,
portanto, não há oposição nem corte nítido, assim como entre sobrenatural e natural, divino e
mundano”. Dessa forma, nossa busca é pela análise das relações sociais existentes e sua
validação através das produções culturais no que diz respeito à magia e ao gênero.
O método da História Comparada proposto pelo autor é sintetizado em sua obra
Comparar o incomparável, na qual apresenta-nos um comparativismo construtivo, propondo
que as representações culturais das sociedades sejam comparadas, mesmo que suas localizações
espaço-temporais sejam as mais distintas possíveis. Através da construção de objetos
comparáveis, como procedimento metodológico, torna possível refutar a ideia de que apenas
comunidades vizinhas que compartilham o mesmo espaço-tempo podem ser comparadas. Essa
ideia que Detienne procura refutar é a metodologia primeiramente proposta por Marc Bloch,
cujo trabalho é aclamado por historiadores das mais diversas correntes políticas (DETIENNE,
2004, p. 30 e 35). A partir de uma nova perspectiva para a comparação de sociedades, Detienne
nos convida a “comparar o incomparável”. Essa construção comparativa citada se torna real a
partir de uma escolha inicial, uma categoria: através dela, torna-se possível a construção das
comparáveis, que o autor define como todas as relações em cadeia causadas por essa
problematização, ou seja; o objeto de estudo delimitado pelo pesquisador definirá a
problemática a ser analisada (DETIENNE, 2004, p. 58).
A categoria magia feminina, é o ponto de partida para a criação da comparável
significados/perspectivas paidêuticos(as) do uso do phármakon na poesia de Homero e
Eurípides. Aplicando-a às narrativas selecionadas, buscaremos analisar o discurso que está
sendo passado pelos autores. Após estabelecermos essa comparável, nossa pesquisa se propõe
a buscar as semelhanças, diferenças e singularidades entre o que os gêneros literários
apresentam e o que a sociedade ateniense do período Clássico atribui oficialmente como
condizente com o gênero – que são em nossa concepção, culturalmente selecionados e
atribuídos em cada sociedade que o mesmo se insere, com base nas diferenças biológicas.
A metodologia selecionada para a análise documental é a Análise de Discurso proposta
por Eni P. Orlandi. A proposta de investigação do texto através dessa metodologia objetiva
analisar o discurso de forma dessuperficializada, diferenciando-se da Análise de Conteúdo onde
o texto é analisado por si mesmo. Na Análise de Discurso, destacam-se os processos e as
18
condições da produção do discurso, uma vez que linguagem e exterioridade estão relacionados
(ORLANDI, 2012, p. 16). A busca de como o texto significa é a proposta da autora, que
relaciona a língua à uma ideologia e historicidade presentes no mesmo.
O processo discursivo é alcançado pelo analista do discurso através da
dessuperficialização documental. Como se diz, quem diz e em que circunstâncias algo foi dito,
torna-se mais importante do que aquilo que foi dito. Alcançado o processo discursivo, torna-se
possível entender a forma de como o discurso analisado se textualiza, qual a ideologia que ele
sustenta (ORLANDI, 2012, p. 65). Dessa maneira, existe um trabalho simbólico no discurso,
tornando possível que efeitos de sentido sejam provocados entre os locutores (ORLANDI,
2012, p. 21). Assim, tanto as condições de produção do discurso, quanto os processos que
levaram a sua elaboração, ganham destaque para a análise. O discurso é formado por
interdiscursos, isto é, dialoga com discursos pré-existentes. Estes discursos estão presentes em
tradições literárias pré ou concomitantemente existentes, e os sentidos deles são resultado das
relações entre os mesmos: “um discurso aponta para outros que o sustentam, assim como para
dizeres futuros” (ORLANDI, 2012, p. 39). Existe, dessa forma, um processo discursivo ainda
maior que os textos selecionados, e ele é contínuo.
Através da análise da discursividade entre Homero e Eurípides, buscaremos interpretar
de que forma o nosso comparável é construído nas obras selecionadas. Para tanto, é preciso
delinear a relação entre os textos e seus contextos, assim como a posição social ocupada pelos
enunciadores, buscando compreender a ideologia perpassada, uma vez que o discurso é
socialmente constituído de sentido (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2012, p. 24-30).
Dessa maneira, nos atentaremos aos destinatários e receptores desse discurso, objetivando
construir uma interpretação do mesmo, a partir dos conceitos previamente elucidados,
relacionando-os a partir de uma perspectiva comparativa, que visa a comprovação de três
hipóteses:

a) Homero e Eurípides fazem parte de um mesmo processo discursivo cujo objetivo


era transmitir os valores a serem seguidos para o bom funcionamento da sociedade
grega que os ouvia, ou seja, suas obras possuíam um viés paidêutico para os
ouvintes: através de suas narrativas, transmitiam e reafirmavam valores gregos.
b) Circe e Medeia são representações sociais do gênero feminino na Atenas do período
Clássico. Elas são apresentadas possuindo características usualmente atribuídas às
mulheres, mas, através do uso da magia, elas personificam uma espécie de contra-
modelo aos ideais femininos, cumprindo o propósito paidêutico mencionado na
19
nossa primeira hipótese. Os poetas reafirmam as características e as divisões de
gênero a partir de exemplos considerados ‘negativos’.
c) O uso do phármakon é apresentado na poesia como uma inversão da ordem natural:
através da astúcia (métis) e da manipulação das ervas mágicas, a mulher (frágil,
sedentária e passiva, de acordo com o modelo mélissa) se torna capaz de subjugar
os inimigos, que lhes são superiores – seja em condição social, força física ou beleza.

Acerca do nosso corpus documental, ressaltamos que a Odisseia é uma poesia épica,
marcada pela oralidade, que transmitia aos gregos os valores, costumes, mitos e narrativa dos
grandes feitos dos heróis em batalhas (MORAES, 2009, p. 62-73). Sendo obra cantada pelo
aedo através da inspiração pelas deusas das artes, as Musas, o canto da poesia épica possuía,
além do valor cultural, também um valor sagrado. A personagem Circe teve sua importância
por nós destacada, uma vez que aparece como uma das primeiras representações ocidentais de
uma feiticeira talentosa, especialmente no que diz respeito a manipulação de poções e ervas.
A tragédia de Eurípides escolhida, Medeia, é diferente da epopeia no que diz respeito a
sua duração e formatação, visto que é mais curta que a obra homérica e foi escrita para ser
apresentada no teatro em 431 a.C., no festival das Grandes Dionisíacas, onde ganhou o terceiro
lugar. Em suma, escolhemos essa peça, porque compactuamos com os vieses interpretativos de
Shirley Barlow (1989) e de Maria Regina Candido (2010), nas quais Medeia pode ser
interpretada como crítica ao modelo mélissa e às expectativas de cumprimento do papel social
feminino, gerando empatia das mulheres da plateia, e, ao mesmo tempo, reforçando os
estereótipos de gênero.
Nenhuma análise histórica pode ser realizada sem a contextualização do corpus
documental selecionado para a realização da pesquisa. No que diz respeito às obras de Homero,
mais precisamente a Odisseia, é de conhecimento geral que sua fixação foi firmada durante a
tirania de Pisístrato, no século VI a.C. Apesar disso, diferentes pesquisadores fomentaram
discussões que procuraram definir a verdadeira época na qual suas obras teriam sido criadas.
Uma grande parte dos estudiosos do épico, entretanto, atribuem as obras homéricas ao VIII
século a.C. Dentre eles destacam-se Redfield (1975) e I. Morris (2003), de cuja datação
proposta nós nos utilizamos para a construção da nossa pesquisa, uma vez que características
desse período na história grega antiga podem ser relacionadas às obras de Homero. Assim como
Bruna Moraes da Silva, não nos afiliamos às intepretações dos autores quando limitam as obras
à puro arcaísmo ou fantasia (SILVA, 2015, p. 15), uma vez que, para nós, a obra é imbuída de
valor histórico, ademais ao literário.
20
A Grécia do século VIII a.C. sofreu uma série de mudanças estruturais, principalmente
políticas. É nesse momento que a pólis começa a ser formada, o enfraquecimento da aristocracia
já é sentido, e surge a alternativa à organização social, numa proposta em que os homens se
reuniam em assembleia para dar rumo à estrutura política da sociedade. Além disso, houve
mudanças na religião, com o desenvolvimento dos santuários pan-helênicos, aumento
demográfico e o início às colonizações gregas (SILVA, 2015, p. 15). As epopeias de Homero
não podem ser analisadas como descrições fieis do século VIII, tendo em vista que se trata de
uma documentação literária, uma obra de ficção. Apesar disso, aspectos da conjuntura política
e social do momento em que foram escritas estão presentes nos versos. A própria forma das
obras, poesia épica, é um dos resultados (THEML, 1995, p. 147) dessas mudanças sociais que
ocorreram durante o período.
Dessa forma, localizamos a sociedade de Homero no período Arcaico, mesmo sabendo
que a organização social do poeta possui suas próprias características, que são peculiares em
relação ao que historicamente sabemos do período, como a presença de uma aristocracia
tipicamente micênica. Ainda assim, permeiam as obras diversas questões relacionadas aos
diferentes costumes do período Arcaico (a afirmação da aristocracia que se desagrega, por
exemplo, é um elemento discursivo bastante presente no cotidiano da Odisseia).
A tragédia de Eurípides, por sua vez, está situada no período Clássico, tendo sido escrita
e apresentada para o público da pólis de Atenas, na qual a democracia, o comprometimento
coletivo, o debate, o espírito crítico, e a transformação do homem em ser político são
características em destaque. No ano de 431 a.C., a obra foi encenada para o público ateniense
num momento de importância para a Antiguidade Clássica: o início da guerra do Peloponeso.
Esse embate entre as póleis lideradas por Atenas e Esparta foi uma intensa e devastadora guerra
na Hélade, e sua influência nos conflitos internos da sociedade civil podem ser identificados
nas mais diversas obras do tragediógrafo, de forma que o mesmo foi identificado como pacifista
e até mesmo patriota5, ao frisar a necessidade do sacrifício individual em prol da comunidade
(ROMILLY, 1999, p. 103).
Quanto à tragédia Medeia, podemos perceber as respostas do tragediógrafo aos conflitos
sociais causados pela guerra através de um discurso de exaltação de uma vida em equidade
(sem excessos ou luxos), livre de uma tirania (vv. 119-127), o arrependimento e os males de

5
O período por nós estudado não tem uma noção de pátria como a contemporânea. Quando utilizamos essa palavra
para definir o discurso de Eurípides em prol da comunidade, estamos de acordo com Violaine Sebillotte Cuchet
(2006), que defende que a palavra pátris se refere ao apego aos ancestrais, à terra e aos laços entre os membros de
uma comunidade.
21
abandonar a pátria (v. 328, v. 463), os males de não ter pátria (v. 650-651) a superioridade do
estilo de vida grego (vv. 536-540). Já o que diz respeito ao nosso objeto de estudo, como
mencionamos anteriormente, Medeia é um texto profícuo para a análise da condição feminina
na sociedade ateniense. Usando-se da protagonista homônima à peça e de um Coro feminino, o
poeta dá voz às inseguranças e infortúnios que poderiam ser compartilhados tanto po uma
mulher ateniense quanto por uma estrangeira.
À vista do que foi explicitado, demonstrando o comportamento feminino e a utilização
da magia dos phármaka por duas personagens mulheres, defendemos que os dois poetas
imbuíram suas obras de forte valor instrutivo, conduzindo à plateia que os escutaria ou assistiria
os ideais a serem seguidos na sociedade políade, além dos conflitos e questionamentos
presentes em sua época. Fazendo parte de um processo discursivo amplo, mito e tragédia se
relacionam, tendo nosso objeto perpassado pelo conteúdo das obras, levando-nos a apresentar,
através da metodologia da História Comparada, as singularidades, diferenças, rupturas e
repetições evidenciadas por cada um dos poetas em relação ao uso da magia e ao gênero
feminino.
A partir de nosso corpus documental analisaremos as semelhanças e as diferenças da
representação da feiticeira apresentada a nós por cada um dos poetas gregos. A partir delas,
proporemos interpretações e correlações entre as personagens e o modelo de esposa legítima da
sociedade ateniense. Analisando comparativamente o comportamento de Circe e Medeia sob a
ótica do ideal de esposa clássica, objetivamos demonstrar de que forma ambas se
caracterizavam como desvios deste modelo, e como elas poderiam ser relacionadas com as
mulheres reais.
Assim, acreditamos ter sido possível apresentar nesta introdução de que forma a análise
comparada pode ser profícua para o estudo das sociedades antigas, visto que nos permite
compreender suas transformações ao longo da História. Analisando duas produções culturais
poéticas e de que forma a magia e as feiticeiras foram nelas representadas, evidenciaremos quais
são as semelhanças e as diferenças entre essas representações de um poeta para o outro, pondo
em pauta as conexões de suas obras com a realidade e a conjuntura social da Atenas do período
Clássico.
De forma a alcançar nossos objetivos e comprovar nossas hipóteses, dividimos o
presente trabalho em três capítulos. O Capítulo 1, intitulado Homero e Eurípides: Paideía,
Intertextualidade e Processo discursivo foi dedicado primeiramente a apresentação dos
autores, de modo a frisar a importância de Homero e Eurípides tanto para a literatura ocidental
quanto para os períodos selecionados para comparação. Colocamos sob uma ótica comparativa
22
as funções sociais dos poetas e elucidamos de que maneira suas obras seriam utilizadas sob um
viés educativo. Ademais, sustentando-nos na metodologia complementar da Análise do
Discurso, evidenciamos as relações discursivas entre as obras selecionadas.
Já no Capítulo 2, intitulado Práticas de Magia Grega: o phármakon em destaque,
dedicamo-nos a uma análise do conceito de magia e sua aplicação no mundo grego antigo. Em
seguida, buscamos compreender as práticas de magia grega, sobretudo o que concerne o uso do
phármakon e sua relação com a sociedade ateniense do período Clássico, destacando a
existência de uma noção de continuidade, desde o período Arcaico, entre as reflexões acerca do
objeto mágico e sua aplicação cotidiana. Ademais, evidenciamos uma predominância literária
de feiticeiras femininas, enquanto outros textos do período parecem indicar que não havia um
gênero específico para os praticantes de magia. Ao final, apresentamos e comparamos o uso do
phármakon em Circe e Medeia com a categorial mental métis, já delineando previamente as
maneiras que ambos os usos podem ser utilizados de forma educativa para elucidar as
características a serem evitadas pelo gênero feminino, sobretudo o que concerne as esposas dos
cidadãos.
Finalmente, o Capítulo 3, intitulado Circe e Medeia: representações sociais de
feiticeiras, foi dedicado primeiramente a apresentação mítica das personagens selecionadas,
juntamente com as características e especificidades selecionadas pelos autores. Ademais, a
partir de outras documentações do período Clássico, apresentamos o modelo ideal das esposas
legítimas (mélissa), e seguidamente a estas informações, apresentamos as nossas considerações
para que Circe e Medeia sejam interpretadas como contra-modelos para as esposas legítimas,
ainda que nenhuma das duas tenha obtido esse status oficialmente. Finalmente, a partir de um
estudo do uso da magia do phármakon pelas esposas atenienses, elaboramos nossa
argumentação para a interpretação das personagens como representações sociais de feiticeiras
na Atenas clássica.

23
Capítulo 1
Homero e Eurípides:
Paideía, intertextualidade e processo discursivo

Desde a mais tenra infância, jovens crianças são nutridas em seu aprendizado por Homero e,
mergulhados em seus versos, nós molhamos nossas almas com eles como se fossem leite materno.
Ele permanece ao lado de cada um de nós enquanto começamos a gradualmente nos transformar
em homens, ele floresce enquanto florescemos, e até a mais avançada idade nós nunca nos cansamos
dele, pois assim que o colocamos de lado, sentimos avidez por ele novamente; poderíamos dizer
que o mesmo limite nos é imposto tanto por Homero quanto pela vida. (HERÁCLITO, Homeric
Problems, I vv. 5-7)6

Ao propormos uma comparação entre duas personagens femininas da literatura grega


Arcaica e Clássica (séculos VIII e V a.C.), consideramos profícuo dedicar um capítulo
exclusivamente para a análise dos poetas Homero e Eurípides, buscando compreender a relação
entre seus ofícios como poetas e suas narrativas, além de delinear suas importâncias e
influências nas sociedades em que estavam inseridos. Jacqueline de Romilly (1999, p.21) afirma
que “A tragédia só teve existência literária no dia em que a sua matéria foi, também ela,
igualmente literária, e em que se inspirou, directa e amplamente, nos dados de que a epopeia já
tratava”. Essa afirmação sugere a existência de um interdiscurso entre os dois gêneros literários,
o que iremos analisar ao longo da presente dissertação, além de atribuir a poesia épica um
patamar de referência e importância que possibilitou o prestígio alcançado pela tragédia na
Atenas clássica.
A partir de uma breve explicitação entre as semelhanças, diferenças e singularidades dos
poetas e suas obras, utilizando-nos da metodologia da Análise de Discurso, poderemos
classificar as epopeias de Homero como arquitextos para os tragediógrafos clássicos, pois foram
utilizadas como obras de referência de um ou de vários posicionamentos, e possuíam um
estatuto exemplar, sendo consideradas “clássicas” (CHARAUDEAU, MAINGUENEAU, 2016,
p. 64). De forma a embasar a nossa hipótese do estatuto educativo e instrutivo da epopeia
homérica no período Clássico (séculos V-IV a.C.), e da tragédia na Atenas clássica, torna-se
necessário elucidarmos nosso entendimento do conceito de educação e as escolhas
interpretativas que fizemos para podermos aplicá-lo às sociedades dos períodos explicitados.

6
Tradução do grego para o inglês realizada por Hunter. Tradução nossa para o português.
24
1.1- Paideía: uma escolha conceitual e interpretativa

Paideía é comumente traduzida como educação, mas na documentação refere-se


principalmente a educação dos meninos. Para Claude Mossé (2004, p. 107-8), é um conceito
bastante amplo, que inclui todo o processo educacional da pólis ateniense, constituindo-se de
todas as práticas intelectuais, culturais, físicas, militares e a ética que eram necessárias ao
cidadão para a existência da vida em comunidade, o que corrobora a visão de Werner Jaeger
(1995, p. 3), na qual a educação pertence por essência à comunidade. Ou seja, eram as práticas
que diferenciavam o cidadão dos demais integrantes da pólis. O conceito surge primeiramente
na tragédia de Ésquilo, Sete contra Tebas, no século V a.C., englobando todas as exigências
físicas, mentais e espirituais que tinham por objetivo final a formação dos cidadãos que faziam
parte da elite ateniense, os kaloì kagathoí.
Esses cidadãos da elite não precisavam trabalhar para garantir seus rendimentos e o
sustento de seu oîkos: eram ricos o suficiente para empregar pessoas ou possuir escravos. Desse
modo, os kaloì kagathoí e seus filhos homens dispunham de uma prerrogativa muito importante
para a formação de sua paideía: skholé7. Graças a essa skholé, os filhos dos cidadãos podiam
ser educados nas atividades culturais e intelectuais que deles eram esperadas: iam ao ginásio
para desenvolver força física e equilíbrio, aprendiam a ler e escrever e frequentavam banquetes
e simpósios, de forma a aprender a conversar e se comportar como era esperado dos homens de
sua condição – em suma, que fossem equilibrados interna e externamente, conservando os ideais
da aristocracia guerreira (JAEGER, 1995, p.20).
Os cargos políticos, honrosos na democracia e prerrogativa dos homens livres maiores
de idade, na prática eram ocupados apenas pelos ricos, uma vez que para seu exercício também
era necessária uma quantidade de tempo livre que o cidadão comum não dispunha
(CHEVITARESE, 2000, p. 157-158). Os gregos acreditavam que quanto melhor educados
fossem os homens aptos a governar, melhor seria sua administração da pólis: dessa forma,
exerceriam seus cargos com justiça.
Essa era a paideía dos cidadãos bons e belos, a preocupação de tratados filosóficos e
discussões profundas no contexto democrático dos séculos V e IV a.C.. Apesar de sabermos
que o conceito foi usado pela primeira vez na obra de Ésquilo, não é possível considerar que

7
Skholé é um conceito que perpassa as práticas educativas formais gregas. No presente trabalho, o utilizaremos
relacionado ao modo de vida daqueles que não trabalham com as mãos, tratando da questão do tempo livre, ocioso,
na Grécia clássica (MASI, 2014, p.116). É prerrogativa imprescindível para a educação, uma vez que ir à ginásios,
aprender a ler e escrever, frequentar banquetes – atividades paidêuticas - despendia longos períodos de tempo, que
só poderiam ser utilizados por aqueles cuja condição social e financeira lhes garantia tempo ocioso.
25
não existiam bases educacionais antes disso, ou que as práticas que as elas fazem referência só
passaram a existir depois da menção do poeta. Em nossa dissertação, propomos a existência de
uma outra educação que alcançasse indivíduos além do círculo masculino da elite ateniense.
Toda vida em sociedade pressupõe organização: é preciso decidir como as coisas serão
administradas, pensadas e produzidas, quais serão as prerrogativas da divisão do trabalho, como
a natureza e a divindade são compreendidas e cultuadas, enfim, qual a maneira correta de inserir
os indivíduos na comunidade e como eles se socializarão. Essa organização é passada adiante
através de instruções. Nesse sentido, antes mesmo dos próprios gregos fazerem uma reflexão
acerca da educação, sua forma “tímida” era corriqueira: a instrução é intrínseca à educação.
É essa educação, instrução quotidiana, a qual nos focaremos para responder a
problemática da nossa pesquisa. Vivendo em coletividade, os seres humanos são influenciados
pelo meio: pelas produções culturais, as pessoas com quem entram em contato, as suas
obrigações cívicas, a natureza, as coisas... A observação e a interação moldam o caráter, o
comportamento, a fala e a ação dos homens, nas mais diversas situações: construímos
representações, figuras mentais, para compormos o mundo.
O conceito de representações sociais de Denise Jodelet (2001, p. 17) nos ajuda a
entender essa relação entre a vida em sociedade e os comportamentos humanos, uma vez que
as representações são criadas para que consigamos nos ajustar ao mundo físico, entendê-lo
intelectualmente, sabermos nos comportar, resolver os problemas que a comunidade enfrenta.
E elas são sociais, porque vivemos em sociedade, em uma noção coletiva que nos guia para que
sejam conjuntamente definidos os modos de tomada de decisões e os de nos posicionarmos
frente aos outros indivíduos. Aplicando-o ao mundo grego antigo, podemos considerar que
muitas pessoas se instruíam sobre o mundo através do que viam, ouviam e das experiências
pelas quais passavam. Dessa forma, aprenderiam sobre um ofício, sobre a maneira correta de
cultuar os deuses, sobre a ética comunitária, ou o que mais se tornasse necessário para essa
integração comunitária (CODEÇO, 2010, p. 37).
Propomos que o conceito de paideía seja compreendido de forma mais ampla, como
educação, instrução, qualquer que seja ela, e não apenas os ideais filosóficos que circundavam
o quotidiano dos filhos dos cidadãos ricos. Nesse sentido, entendemos a educação como o faz
José Carlos Libâneo: fenômeno social, atividade humana imprescindível para a vida em
sociedade, que ocorre de forma intencional ou não. A partir dela, os valores a serem celebrados
pelo meio social são estabelecidos e se manifestam através de conhecimentos, crenças, modos
de agir, técnicas e costumes, que são transmitidos, assimilados, acumulados e recriados pelas
novas gerações dos grupos e indivíduos (LIBÂNEO, 1990, p. 16-18). No processo formativo
26
de um indivíduo, estão presentes atividades sociais e práticas que derivam da organização
econômica, política, social e cultural de uma comunidade. A instrução é direcionada pelos
familiares e pelo Estado, de forma a garantir uma certa ordenação social. A educação dos
cidadãos comuns e das esposas dos kaloì kagathoí se encontrava inserida nessa premissa,
mesmo que fosse informal.
Havia um conjunto de virtudes e de obrigações que eram esperadas dos cidadãos do
período Clássico: força, virilidade, coragem, culto aos deuses, beber o vinho misturado com
água, comer o pão, entre outros (LESSA, 2001, p. 22). De acordo com a historiografia, essas
características foram estabelecidas e reafirmadas geração após geração, advindas da tradição
oral e legitimada primeiramente pela aristocracia guerreira, sendo reafirmada pela elite
ateniense (SEGAL, 1994; FINLEY, 1963; LESSA, 2003; VERNANT, 1991). Além da elite,
era esperado que todo cidadão possuísse essas características e, se não possuía riqueza e tempo
livre para receber uma educação formal, aprendia com as relações sociais os costumes que o
integravam à comunidade.
Quanto às esposas dos cidadãos kaloì kagathoí, aprendiam com suas mães e outras
mulheres a fiar a lã, tecer, cozinhar e administrar o oîkos. Além disso, por possuírem origens
aristocráticas, participavam dos corais que acompanhavam as festas religiosas, de forma que
adquiriam conhecimento de música e poesia (MOSSÉ, 1998, p. 108). E as características a
serem almejadas por elas também estavam presentes na poesia (especialmente na tragédia), de
forma que a festa de integração cívica também funcionaria como ferramenta educativa para
elas.
Dessa forma, partimos do pressuposto de que as práticas cívicas8 tinham, no período
Clássico, um apelo paidêutico forte. Dos cidadãos (ricos ou não) era esperada a participação em
todos as práticas cívicas, com exceção àqueles festivais que eram de exclusividade feminina,
como as Tesmofórias. Quanto às mulheres, também participavam de festas de integração física
da pólis, como a ida ao teatro, e nelas poderiam ter contato com a poesia e receber essa instrução
informal. Diversas documentações do período expressam verdadeira preocupação dos cidadãos
acerca dos padrões comportamentais a serem seguidos por suas esposas, e nós chegaremos até
eles em nossa dissertação. Em nossa pesquisa, procuraremos perceber de que forma a epopeia
e a tragédia traziam para outros componentes do corpo social clássico (principalmente às
esposas atenienses) uma instrução que estava de acordo com os ideais políades.

8
As práticas cívicas da pólis eram: os festivais religiosos, as competições atléticas, os debates na agorá e na
assembleia, a Pnýx, as idas ao teatro e aos banquetes. Selecionamos os festivais religiosos porque neles a
participação feminina se vê comumente presente.
27
1.2– Musa e poeta: a sacralidade do discurso

Inicialmente, torna-se necessário elucidar o caráter mágico-religioso do discurso do


poeta na sociedade arcaica, aquele que recebe das Musas o dom de cantar e, por conseguinte,
contar a verdade9 do mundo divino para os homens. Segundo Claude Mossé (2004, p. 239), a
poesia foi a primeira forma de literatura da Grécia, normalmente acompanhada por música, e
possuía um caráter cerimonial. A narrativa dos poetas trazia à luz as façanhas das potências
divinas e suas relações com os heróis de tempos longínquos, apoiando-se numa realidade em
que tradição oral foi capaz de manter vivos os costumes políticos, religiosos e sociais, uma vez
que a escrita, apesar de existente, não havia ainda sido amplamente difundida10.
Não havendo profeta, livro de dogmas ou separação entre o âmbito religioso e o civil,
inexiste uma separação definida entre o que é sagrado e o que é profano, e Vernant (2006, p.
59) define a religião helênica como sendo: “ ‘intramundana', no sentido de Max Weber, (...)
‘política' na acepção grega do termo”. Dessa maneira, a sacralidade reside em maior ou menor
grau nos objetos, nos discursos (proferidos por quem “tem direito”), na natureza, na vida
privada (refeição, viagem, relações de hospitalidade – xénia) e na vida social (assembleia,
sacrifício, festival). Presente nos âmbitos privado e público, em todas as esferas da convivência
em sociedade, para o heleno a religião era um dos aspectos fundamentais de sua identidade:
rejeitar o conjunto de crenças que a tradição oral mantinha vivo através das gerações seria o
mesmo que deixar de ser grego.
No universo dos poetas arcaicos, o contato com o divino era realizado através das Musas.
Segundo Hesíodo, poeta originário da Beócia, que escreveu sua obra no período Arcaico, as
Musas são divindades, filhas de Zeus com Mnemósyne, a personificação da memória. Para cada
uma das nove noites que o Crônida se deleitou com a companhia da divindade, uma filha foi
gerada. Na Teogonia, o beócio inicia a narrativa do nascimento dos deuses e a ordenação
cósmica clamando por essas divindades, fazendo-lhes elogios e cantando em sua honra. Em
seguida, descreve suas atuações divinas, terminando por pedir-lhes que o ajudem a cantar a
história dos deuses como ela de fato aconteceu. É interessante se atentar para o significado da

9
Para Foucault (1971, p. 17): o discurso dotado de verdade é aquele “proferido por quem de direito e segundo o
ritual exigido”. Aqui não se utiliza de uma noção cientificista de verdade, e sim o discurso verdadeiro numa
configuração de sociedade em que a ordem é mítico-religiosa.
10
A escrita e a transmissão oral caminharam de forma paralela do VIII ao IV século (THEML, 2002, p. 11). O
alfabeto foi desenvolvido no final do século VIII, mas a tecnologia escrita era limitada e a tradição oral muito
presente, de forma que “a expressão oral (e cantada) continuava a ocupar uma posição privilegiada” (SEGAL,
1994, p. 181).
28
palavra Môusa, que nomeia as filhas de Zeus: além de uma potência divina, a palavra como
substantivo comum significa “palavra cantada” (DETIENNE, 2013, p. 11).
Não é estranho, para os estudiosos da religião grega, que as divindades possuam nomes
de uma qualidade intelectual, paixão humana ou um local: a própria terra, Gaia, Titã e mãe de
Zeus, é também o espaço físico onde os seres humanos, os animais e as plantas vivem e se
desenvolvem. Dessa forma, na perspectiva arcaica, as Musas eram divindades e a própria
palavra cantada: sem elas, não poderia se fazer o canto (TORRANO, 2009, p. 21). Nessa
interpretação mágico-religiosa, as histórias cantadas pelo poeta têm força, sentido e poder, pois
as Musas lhes dão isso: não é apenas a techné11 humana – habilidade de memorização e
treinamento vocal – que domina o canto e o torna real, mas sim a presença da divindade que é,
além de potência, a própria palavra.
As deidades personificam o que é luminoso, divino: a música, a dança, a festa, a
eloquência, a glória, e através da sua palavra sagrada contam e recontam os acontecimentos do
plano divino e terrestre: sabem o que é, o que já foi e o que ainda será. Filhas da deusa que
personifica a Memória, as Musas possuem o poder de trazer à luz, revelar, des-cobrir,
desocultar, fazer presentes as potências divinas, os heróis do passado, lugares, pessoas e
entidades que se mantinham cobertos no domínio da Noite12. Aquilo que é desconhecido é
invisível, como as trevas nebulosas que inundam a terra antes da aurora (HOMERO. Odisseia,
X, v. 190)
São elas as responsáveis por, através de sua presença sagrada, fazer também presente
tudo aquilo que sem elas estaria ausente: “o discurso do poeta, a forma como se desenvolve na
atividade poética é inseparável de duas noções complementares: a Musa e a Memória”
(DETIENNE, 2013, p.10). Dessa forma, como nos salienta Torrano: “Assim, passado e futuro,
equivalentes na indiferença da exclusão – tudo aquilo que se contrapõe ao presente – pertencem
do mesmo modo ao reino noturno do esquecimento até que a Memória de lá os recolha e faça-
os presentes pelas vozes das Musas” (TORRANO, 2009, p. 27).
Estão as duas – Memória e Musa – relacionadas, porque para a sobrevivência de uma
tradição oral, sem o artifício da escrita para a preservação das informações, era necessário um
esforço monumental e o uso exacerbado de técnicas de memorização, ou as poesias épicas não
teriam chegado até nós. Mas, ademais ao artifício humano de preservação daquilo que se deseja

11
A falta de exaltação da técnica do poeta é um discurso incluído no gênero épico e na tradição religiosa. Como
veremos mais a frente, esse ofício requer técnicas específicas.
12
Ao passo que as Musas representam o Ser, aquilo que é, a Noite é a expressão do Não-Ser, filha do Kháos,
“geradora de todas as forças que marcam pela privação e não-ser a vida do homem” (TORRANO, 2009, p. 23).
Assim, aquele que é esquecido está sob o domínio da Noite.

29
lembrar, a Memória é o poder religioso ao qual o poeta tem acesso privilegiado (DETIENNE,
2013, p. 15).
De forma complementar, a Memória trazida pela Musa pressupõe o esquecimento:
apenas lembramos de algo na medida em que esquecemos alguma outra coisa, somente as
potências divinas tem acesso à totalidade e possuem o poder de tornar algo presente. Assim, a
partir do discurso sagrado que lhe é inspirado pelas musas, o poeta domina o poder de, ao
mesmo tempo, fazer lembrar e fazer esquecer, uma vez que as Musas são geradas por
Mnemosýne “para oblívio de males e pausa de aflições” (HESIODO, Teogonia, v.55).
Alexandre Santos de Moraes (2009, p. 100) propõe uma interpretação interessante
acerca do aspecto mítico que o canto proferido pelo poeta possuía na sociedade arcaica: além
do discurso ser relevante e sagrado por chegar ao poeta através de uma ação direta das Musas
– e, como já elucidamos, ser a própria personificação das divindades – a poesia épica também
foi responsável por exemplificar a manifestação dos poderes encantatórios da palavra cantada.
Ela é, então, capaz de provocar na audiência enthousiásmos, êxtase, frenesi, evidenciando o que
Moraes denomina de investimento tipicamente religioso na cultura oral, na medida em que o
canto produzido é percebido pelo público como um veículo, através do qual a deidade entra em
contato direto com os sentidos humanos.
Traçando um paralelo com o phármakon13, o helenista afirma que as palavras atuariam
sobre o sentimento dos homens de forma a seduzir, anuviar, acalmar, os problemas do cotidiano
(MORAES, 2009, p. 100), agindo da mesma forma que o phármakon egípcio utilizado pela
personagem Helena, na Odisseia de Homero. Adicionado ao vinho de seu marido e convidados,
o artifício da mulher atuou como mágica, fazendo com que nenhum dos presentes chorasse ou
sofresse durante o dia inteiro, mesmo tendo acesso às notícias funestas que chegaram ao palácio
(HOMERO. Odisseia, IV, vv. 219-232).
Chamada de “os dons das deusas” (HESÍODO, Teogonia, v. 103), essa característica da
extrema beleza da palavra cantada como forma de sedução/distração dos males também é
evidenciada em passagens da Ilíada e da Odisseia, quando os convidados escutam o “canto
doce-mel” (HOMERO, Ilíada, XIII, v. 637) ou Odisseu faz um elogio ao ofício do aedo ao
afirmar ser “delicioso, de fato, podermos ouvir tão sublime e inolvidável cantor, cuja voz se
assemelha à dos deuses” (HOMERO, Odisseia, IX, 3-4).
No que compete à transmissão de conhecimento e valores através dos poemas, na
religião grega, a sabedoria tradicional, atrelada a narrativas específicas sobre o mundo dos

13
Droga, remédio, feitiço ou poção. Uma discussão acerca do significado e do uso do phármakon na Antiguidade
Arcaica e Clássica será produzida no capítulo 2 desta dissertação.
30
mortos, a genealogia dos deuses e suas áreas de atuação, objetos rituais e poderes respectivos é
transmitida através da oralidade. Primeiramente no oîkos, as narrativas míticas são transmitidas
informalmente para as crianças pela mãe, avó, irmã ou ama, de forma que elas são instruídas
desde a mais tenra idade sobre essas características intrínsecas da religião grega: cultuar os
deuses, saber suas histórias e honrá-los. Essas atitudes são tão constituintes da identidade
helênica quanto falar a língua grega, cultivar o trigo, comer pão e beber vinho misturado com
água. Em segundo lugar, essa instrução do caráter sagrado e as narrativas míticas acontecem
através do ofício do poeta, que, cantando em banquetes e festivais públicos, contribui para
moldar o caráter helênico, reafirmando todas as atitudes e crenças que compõem seu estilo de
vida.

É na poesia e pela poesia que se exprimem e se fixam, revestindo uma forma verbal fácil
de memorizar, os traços fundamentais que, acima dos particularismos de cada cidade,
fundamentam para o conjunto da Hélade uma cultura comum – especialmente no que
concerne às representações religiosas, quer se trate dos deuses propriamente ditos, quer
dos demônios, dos heróis ou dos mortos. Se não existissem todas as obras da poesia épica,
lírica, dramática, poder-se-ia falar de cultos gregos no plural, mas não de uma religião
grega (VERNANT, 2006, p. 16 - grifo do autor).

Inseridos nesse sistema religioso, os poetas possuíam liberdade o suficiente para inserir
nas narrativas tradicionais seus próprios padrões estéticos, perspectivas políticas, interesses
diversos. De fato, Moraes nos refere acerca da autoglorificação: não é por acaso, que
encontramos nas mais diversas poesias épicas alguma referência à atividade do aedo14. O
recurso de colocar sua atividade em evidência foi largamente utilizado para reafirmar a
sacralidade mítica da influência das Musas (MORAES, 2009, p. 13).
Nesse sentido, podemos perceber que o patamar elevado do poeta parte de uma noção
de complementariedade entre o que a tradição já considera como sagrado (as Musas) e o que o
aedo insere em sua poesia (sua autoridade ao ser o responsável por essa palavra cantada). Ao
responsabilizar uma fonte que está fora do mundo mortal, o poeta dá a si mesmo um espaço
para divergência/reinterpretação, e essa é uma estratégia política e prática: política, ao agregar
valor divino àquilo que pensa ser conveniente, e prática, na medida em que uma versão
alternativa não necessariamente seria considerada errada (SCODEL, 2006, p. 54)
Nessa parte inicial, propomos uma breve apresentação e análise do valor da palavra
cantada pelo poeta na Antiguidade Arcaica. Através das concepções previamente estipuladas
por estudiosos acerca do modus operandi da religião grega, pudemos perceber a conexão entre

14
Ser aedo era um ofício poético na Antiguidade grega, que consistia na declamação cantada da epopeia. Ver
página 35 deste capítulo.
31
o poeta e os deuses. Neste momento, torna-se profícuo para nossa pesquisa complementarmos
a análise, tratando do ofício do aedo, através daquele que se tornou o mais conhecido de toda a
Antiguidade: Homero.

1.3- Homero

A Homero foi atribuída a autoria das duas epopeias que definem o gênero épico por
excelência: a Ilíada e a Odisseia. No entanto, pouco se sabe sobre ele, além de que era um aedo,
inspirado pelas Musas. Embora existam as mais variadas histórias sobre a vida de Homero e
diversas cidades tenham tentando reclamar para si a origem do poeta, não existe nenhuma
evidência material de sua existência. Mesmo sua cegueira tem propósito na cultura grega: para
os antigos, quando um homem não possuía a visão do mundo material, sua memória era mais
extraordinária (VIDAL-NAQUET, 2002, p. 13). Dessa forma, as próprias epopeias homéricas
que apresentam um aedo de prestígio como cego, estão servindo para reafirmar um discurso
religioso em que as Musas – que inspiram os poetas e legitimam o discurso por eles proferido
– possuem uma relação intrínseca com a Memória.
Devido a sua fama e prestígio, a quem muitas vezes é atribuído o título de “pai fundador”
de toda a literatura produzida após sua existência e “fonte original” de onde os outros poetas
retiraram seus objetos e estilo (HUNTER, 2006, p. 235), a questão da sua real existência e a
autoria das epopeias suscitou um grande debate denominado Questão Homérica, acerca do qual
qualquer estudioso que se propõe a estudar as epopeias precisa se posicionar. No que diz
respeito à existência de Homero e a composição das obras a ele atribuídas, há um imenso debate
historiográfico que foi iniciado no século XVIII d.C. e até hoje não alcançou um consenso. A
Questão Homérica envolve, além de uma dúvida sobre a existência real do aedo, questões
acerca do período de criação das duas epopeias e sua autoria (sendo diferentes entre si, existe a
possibilidade de terem sido criadas por indivíduos distintos).
Tanto a Ilíada quanto a Odisseia foram copiadas e recopiadas ao longo dos séculos,
desde a tradição Alexandrina até o Medievo, passando por transformações – propositais ou não
– tendo em vista que, antes das inovações tecnológicas que permitiram as primeiras edições
impressas das epopeias (por volta do século XV), o trabalho dos copistas estava constantemente
sujeito a erros humanos: falta de atenção, ‘cortes' acidentais da narrativa, grafia errada, etc. F.
A. Wolf em 1795 reiniciou o debate instaurado no século XVIII d.C. pelo abade de Aubignac,
questionando a veracidade dos poemas, tendo em vista as inconsistências que as diferentes
“edições” possuem entre si.
32
A partir desse questionamento, M. Parry e A. Lord sugeriram que a complexidade do
sistema de fórmulas15 que compõem a poesia não as permitiriam ser atribuídas a somente um
poeta, e que os pedaços conflitantes da narrativa seriam um resultado direto da tradição oral,
uma vez que a apresentação do poeta permitiria uma certa margem interpretativa e criativa, e,
marcada pela oralidade, não haveria possibilidade de correções (SILVA, 2015, p. 13). Em
contraponto a essas primeiras análises propostas, surgiu a escola dos unitários, estudiosos que
não aceitariam as considerações analistas como forma de modificar a impressão geral que se
tem das obras homéricas. Segundo eles, a unidade do texto seria perceptível para além das
inconsistências ou adições tardias (ROMILLY, 2001, p. 22).
Concordando com Sourvinou-Inwood (1995, p. 13), consideramos que os dois poemas
pertencem e são resultado de um ambiente cultural compartilhado, uma vez que possuem o
mesmo estilo, a mesma inspiração geral, suas histórias são intimamente conectadas e se
complementam – esses fatos relacionam as epopeias, independentes da existência de um
indivíduo chamado Homero. E apesar dos poemas apresentarem dois mundos distintos, a
maioria dos gregos antigos, pelo que podemos perceber na documentação, creditavam a sua
composição a apenas um poeta.
Diversos pesquisadores atribuem ao século VI a.C., e a uma ordem do tirano Pisístrato,
a “versão final”, isto é, escrita, das duas obras mencionadas. M. West (1999) no entanto, propõe
que Hiparco de Atenas (V séc. a.C.) tenha sido o responsável que estabeleceu a recitação de
Homero nas Panatenéias. Seu argumento se baseia nas evidências demonstradas pela cerâmica
ática, nas quais por volta de 520 a.C. os artistas começaram a demonstrar conhecer a Ilíada em
sua completude, e não apenas alguns episódios esporádicos. Segundo o pesquisador, Hiparco
teria convidado os Homeridai16 para Atenas e organizado uma apresentação completa do épico
nas Grandes Panatenéias que começaram no ano de 522 a.C..
Ademais a essa questão da cristalização dos épicos como os conhecemos, uma gama
diversa de pesquisadores da antiguidade continua a discutir qual seria a verdadeira época
responsável pela produção das narrativas. No século XIX, as escavações arqueológicas de
Schlieman (1881) acabaram por influenciar a atribuição das poesias aos séculos XV-XII a.C.,

15
“Essas fórmulas são meios mnemotécnicos para uso do declamador e do ouvinte que, graças a elas, reconhece
imediatamente a personagem de quem se fala; eles a tornavam como que presente à imaginação. E tais fórmulas
variam de acordo com as necessidades do poeta: é, pode-se dizer, uma reserva de onde ele vai fazer sua escolha”
(AUBRETON, 1968, p. 83).
16
Também conhecidos como homéridas: em A República, Platão (599e) alude aos homéridas como pessoas que
proclamam as histórias de Homero e visam espalhar sua fama. Segundo West (1999, p. 367) no período Clássico
são compreendidos como um grupo de rapsodos que recitavam a poesia homérica, contavam histórias sobre sua
vida e visavam espalhar a fama do poeta. “Parece que as ideias das pessoas acerca do que Homero foi e do que fez
foram muito determinadas pelo que os Homeridai escolheram contar a elas”.
33
aderindo à hipótese que ela seria contemporânea aos eventos nelas narrados, particularmente à
guerra de Tróia (ROMILLY, 2001, p. 11).
A partir de uma análise das escavações, entretanto, chegou-se à conclusão de que esse
núcleo micênico era pequeno demais em comparação à estrutura descrita na poesia épica
(FINLEY, 1982, p. 43), além disso, as epopeias eram marcadas pela presença de objetos e
práticas posteriores à Sociedade Micênica, dentre eles a incineração dos mortos e o uso do ferro
para confecção de armamento. Tomando como base essas considerações, M. Finley (1982, p.
45) propõe que as sociedades mais próximas das descritas na poesia foram as dos séculos X e
IX a.C., uma vez que não existem dórios de quem falar, Jônia, armas de ferro, a classe, não se
menciona a colonização grega do Mediterrâneo e não existem comunidades sem reis.
Já Snodgrass (1971) e Nagy (1996) propõem o estabelecimento dos poemas a partir de
uma tradição oral longa, de forma que o poeta que as fixou manteve certas características dos
mais diversos períodos pelos quais a tradição perpassou. Assim, não se torna possível, em suas
análises, atribuir as obras completas a apenas uma época histórica, visto que sua composição
não seria homogênea, embora a agregação dessa tradição oral pudesse, sim, ter sido obra de
apenas um homem. Grande parte dos estudiosos do épico, entretanto, atribui as obras homéricas
ao VIII século. Como estabelecemos na introdução, Redfield (1975) e Morris (2003) são
exemplos entre os pesquisadores que fazem essa escolha. Aproximando-nos de suas
considerações, a datação proposta por ambos é utilizada na construção da nossa pesquisa. A
essa escolha devemos o fato de características pontuais do período selecionado estar presente
nas obras de Homero.
De acordo com Neyde Theml (1995, p. 147), as obras homéricas estão inseridas no
conjunto de mudanças da sociedade grega durante o século VIII a.C., pois foi nesse momento
da história grega que a forma épica se consolidou. O século VIII a.C. foi palco de grandes
transformações para a sociedade grega, especialmente o que diz respeito a sua organização
política. É nele que a estrutura políade começa a se formar, o que pressupõe uma vida mais
integrada em sociedade, uma vez que os indivíduos precisam se unir em assembleias para tomar
decisões em conjunto. Nesse contexto, os reis, que no passado mantinham grande parte do poder
político em suas mãos e eram responsáveis pelas decisões que afetavam a comunidade,
gradualmente começam a perder sua influência.
A colonização grega que segue à exploração marítima também é uma das consequências
desse novo contexto. Possibilitando uma maior integração entre os gregos e o contato com
outros povos, acabou por incentivar a criação dos santuários pan-helênicos e está intimamente
associada ao desenvolvimento de uma tradição épica desligada de uma raiz local (CARLIER,
34
2008, p. 59-60; VERNANT, 2006, p. 42). Ademais, de acordo com P. Carlier (2008, p. 247),
a Odisseia apresenta uma narrativa que é resultado de embates mais intensos entre o rei que está
gradualmente perdendo poder e a aristocracia ascendente do Período Arcaico. Assim:

Uma síntese arqueológica feita por Anthony Snodgrass demonstrou que o século VIII,
época em que a Ilíada e a Odisseia se aproximaram de seu formato final, foi um marco
decisivo na evolução da civilização helênica; ao lado da emergência da cidadeEstado
políade como uma instituição geral com uma tendência forte das tradições localizadas
(culto, lei, etc.), emergiu uma tendência proporcionalmente forte da intercomunicação
entre a elite das cidades-Estados, a tendência do Pan-helenismo. Algumas manifestações
específicas desta última tendência são o estabelecimento dos Jogos Olímpicos, o
estabelecimento do santuário do Apolo Pítico e Oráculo em Delfos, as colonizações
organizadas e a proliferação do alfabeto (NAGY, 1986, p. 6-7).

Em nossa análise, não propomos que as narrativas homéricas sejam analisadas como
relato fidedigno do período a elas atribuído. Isso não significa que não seja possível perceber
suas características nos versos que narram a guerra de Troia e o retorno de Odisseu. Embora o
poder aristocrático ainda estivesse em vigor na Hélade, a estrutura políade começava a se
formar, como já mencionamos. Sabemos que um dos princípios da pólis (iségoria) não
concordava com uma organização aristocrática que possuía como princípios as diferenciações
entre os homens e a manutenção de privilégios.
Assim como, Morris propõe, defendemos que a consolidação dessas poesias possa ser
interpretada como uma expressão do estilo de vida aristocrático, uma tentativa de reafirmar sua
legitimidade e potência, uma vez que a estrutura política que os mantinha estava ruindo
(MORRIS, 2003, p. 45). Assim, a narrativa épica que exalta os reis, o estilo de vida grego, os
heróis guerreiros, que por feitos individuais – e não coletivos - se equiparam aos deuses, seria
uma tentativa discursiva de legitimação e de exaltação.
Dessa forma, mesmo admitindo que as narrativas homéricas não podem ser atribuídas a
apenas um período da história grega, concordamos que sua composição é uma mescla de
diversas tradições orais que se mantiveram vivas através das mais diversas gerações, fazendo
alusão a um passado mítico e heroico, distante do cotidiano da audiência. Em nossa pesquisa,
fixamos essas narrativas juntamente com a consolidação da poesia épica, trazendo para nossa
análise traços das questões sociais, políticas, econômicas - ideológicas, por fim - que estavam
em disputa no período, sendo um documento profícuo para elucidar as questões que propomos.

35
1.3.1 – O aedo

Já sabemos que as epopeias atribuídas a Homero eram herdeiras de uma tradição


longuíssima de improvisação oral. Dessa maneira, é necessário que nós estudemos aquele que
era responsável pela manutenção dessa tradição: o aedo. Como já mencionamos, o aedo se
encontrava em contato direto com as Musas. Não era ele quem cantava as histórias dos corajosos
heróis da Guerra de Tróia e das astúcias de Odisseu: a Musa o fazia, através dele.
Através da epopeia, o aedo que canta a Odisseia relata a súplica de Fémio: “O que eu
sei vem de mim, e deus, em meu juízo, enredos de todo o tipo plantou” (HOMERO, Odisseia,
XXII vv. 347-348). Reiterando a tradição que o coloca em um patamar mais próximo dos
deuses, essa passagem reafirma o que mencionamos anteriormente: dar credibilidade exterior –
e de uma força maior- ao que foi cantado é um recurso de legitimidade e autopreservação.
Mesmo que seu canto cause insatisfação, a culpa pelo que é dito não é sua. Dessa forma, o ofício
do aedo é reafirmado como um ofício sacralizado, intermediário entre o mundo divino e o
mundo dos homens.
Segundo Émile Mireaux (s/d, p. 92), o ofício aédico tem raízes religiosas ainda mais
profundas do que a ligação direta com a divindade pela palavra cantada por si mesma.
Afirmando que os antepassados dos aedos eram os cantores dos templos, responsáveis pela
cadência e pelo ritmo que ordena as cerimônias religiosas, Mireaux diz que os primeiros aedos
foram responsáveis por conservar as regras da prosódia sagrada que ditava o compasso das
danças ou as cadências rítmicas rituais. Essa prosódia era acompanhada de canto ou melopeia,
tendo um valor místico e virtude própria. Assim, os primeiros aedos teriam composto ou
renovado uma série de hinos sagrados que contavam as histórias dos deuses e dos homens, suas
conquistas, proezas, desventuras e relações, e faziam parte de uma recitação ritualística,
compondo uma espécie de elite intelectual e religiosa – estariam, dessa forma, em sua essência,
conectados ao serviço dos deuses.
Mireaux (s/d, p. 92-95), no entanto, propõe em sua análise da vida cotidiana no “tempo
de Homero”, que, embora o status sacralizado do aedo ainda estivesse associado aos poetas do
século VIII, em seu íntimo eles não mais estavam preocupados com esse aspecto de seu ofício.
O autor defende que a epopeia, seguindo a magnitude que conhecemos nos dois poemas
homéricos, é composta a partir de então sob uma perspectiva autônoma e diferenciada da poesia
religiosa. A preocupação essencial dos compositores tornou-se a récita da poesia como modo
de ganhar a vida, fama e prestígio. Apesar disso, também afirma que os aedos não romperam
abertamente com o passado porque a autoridade incutida no ofício aédico pela relação com as
36
divindades trazia a eles glória e possibilidades lucrativas, como podia ser notado ao
participarem de concursos de hinos aos deuses, por exemplo.
O aedo cujo trabalho forneceu mais informações sobre si mesmo é Hesíodo, que nomeia
a si em seu próprio canto, permanecendo conhecido pela posteridade, tendo a autoria de seu
trabalho reconhecida (HESÍODO, Teogonia, v. 22). Não possuímos outro exemplo, pois o nome
de Homero nem mesmo aparece nas obras atribuídas a ele. Consideramos que a proposta de
Émile Mireaux tem validade ao supormos que o poeta de ofício aédico poderia estar buscando
a fama e o prestígio passageiros da vida mortal, sem perspectiva de ter sua identidade
reconhecida pela posteridade, já que ao processo de criação não se seguia uma reivindicação
autoral.
Como qualquer outro ofício, a prática da recitação poética possuía regras específicas,
técnicas e critérios de execução, peculiaridades próprias. Esse conhecimento e sua execução no
mundo arcaico pressupunham um árduo treinamento e técnica de memorização, todos
transmitidos de geração em geração, sem o auxílio da palavra escrita, porém com o artifício de
fórmulas bastante complexas que se aperfeiçoaram conforme esse conhecimento se construía
(CARLIER, 2008, p. 64). Os textos recitados eram improvisados sobre temas recorrentes,
através de fórmulas conhecidas, que os ajudavam a construir um Canto satisfatório, seguindo
regras previamente estabelecidas. Algumas vezes, o público fazia pedidos ao aedo, requisitando
os temas que mais lhe agradavam. Como exemplo disso, Odisseu, na corte dos Feácios, pede a
Demódoco que cante sobre a conquista de Tróia (HOMERO. Odisseia, VIII, vv. 492-496).
Havia um sistema de medição formal e rigoroso conhecido como hexâmetro17,
relacionado por estudiosos como Gentili (1990) e Havelock (1966) a passos de dança que
originalmente contariam com a presença de dançarinos. O que para nós se torna importante
frisar é que cada tradição poética possuía uma versificação própria, seguindo critérios
rigidamente definidos: forma (métrica) define a tradição poética em que o texto se encaixa. Aos
hexâmetros e suas complexas fórmulas e combinações, uma também complexa rede de
vocábulos e epítetos ajudavam o aedo na formulação dos versos durante as suas apresentações.
Diferentemente do que aconteceria numa forma escrita (como a Teogonia foi, apesar de
ainda fazer parte da tradição épica), as narrativas do aedo não estão fechadas em si mesmas: o
enredo, por mais que siga um repertório já tornado amplamente conhecido pela tradição, está
sendo construído e reconstruído constantemente. Os cantos destes poetas, dessa forma, nunca
estão finalizados, pois a tradição oral cede espaço para a existência de várias versões (SEGAL,

17
Para um debate aprofundado sobre a métrica grega, ver: MORAES, 2009; HAVELOCK, 1966; PEABODY,
1975; TORRANO, 2003.
37
1994, p. 182). Caso a sociedade grega tivesse permanecido marcada pela oralidade com a
mesma força no período da fixação escrita das narrativas, os gregos que viveram esse tempo
poderiam ter visto a Odisseia e Ilíada transformarem-se ainda mais.
Quando se apresentava em banquetes, o aedo esperava que todos terminassem de comer
e se levantava, para então começar a cantar as narrativas míticas em meio aos convidados do
rei. Quando as festas eram públicas e ao ar livre, mantinha-se de pé no meio da arena dos jogos,
acompanhando seu canto um grupo através de evoluções de dança ou récita no meio do círculo
dos auditores. O compasso das suas palavras é marcado com seu cetro ou a cítara de três ou
quatro cordas (MIREAUX, s/d, p. 95).
Os aedos aparecem na epopeia apresentando-se nos banquetes oferecidos em grandes
palácios, são contratados pelos grandes reis e estão presentes para, assim que todos acabam de
comer, distraí-los com sua palavra cantada. Mencionamos anteriormente o caráter sagrado do
discurso do poeta e vimos com Mireaux que suas raízes os conectavam às divindades pelo
trabalho essencialmente religioso – de exaltação dos deuses - do qual a sua tradição derivara,
mas que não era sua principal preocupação ao exercer o ofício.
Contratados - dentro e fora do relato mítico - pela aristocracia palaciana para
entretenimento de sua plateia, seria demasiado ingênuo acreditar que o objetivo da contratação
não envolveria o aedo em nada além da arte declamatória como distração pós celebração.
Defendemos, em meio a tantas mudanças políticas, culturais e estruturais que o VIII século a.C.
se torna palco, que o ofício do poeta era necessário para garantir aos nobres aristocratas a
legitimação da sua superioridade, uma vez que o discurso do aedo ainda possuía um status
sacralizado. A plateia era lembrada pelo poeta de que a elite aristocrática era descendente
daqueles mesmos heróis louvados nos cantos, ou mesmo dos próprios deuses, e não havia
espaço para dúvidas em relação a sua autoridade. O canto poético era, na cultura oral em que
estava profundamente enraizado, exibição da ordem social: o rei como representante dessa
ordem é uma característica intrínseca à cultura da oralidade (SEGAL, 1994, p. 177).
A palavra cantada do aedo era fundamental para que a glória – kléos- fosse alcançada
por esses nobres, uma vez que a glória é, como a memória, oposta ao esquecimento e quem
possui o poder de impedir que algo fosse esquecido era a Musa (e o poeta, ao ser usado pela
divindade). O esquecimento – léthe, parte das trevas da Noite - é oposto ao esplendor e a glória.
Heitor menciona, como a menção do seu nome o impedirá de cair no esquecimento: “Assim
dirá alguém, e a minha fama não perecerá” (HOMERO. Ilíada, VII, v. 91). O dever do poeta
contratado, dessa forma, era divulgar para os outros estratos sociais os feitos dos grandes
governantes. Sendo assim, pode-se inferir que a prática estava subordinada aos desejos da
38
aristocracia que ansiava pela reafirmação de sua origem guerreira, heroica e divina. O aedo está
ciente de que a fama e glória (kléos) dos heróis mortais são perpetuadas e mantidas por seu
canto, o responsável por sempre memorá-los (FOWLER, 2006, p. 227).
Atingindo seu auge no começo do período Arcaico, a poesia marcou de forma profunda
as sociedades helênicas dos períodos que o seguiram. A sua récita continuou possuindo um
espaço de prestígio na vida cultural de forma que até no período Clássico as histórias míticas e
ordenação propostas pelos poetas épicos continuaram a ser celebradas em jogos e festivais.
Mantendo-se diferenciados das outras manifestações poéticas que sucederam o final do século
VIII a.C., os aedos cantavam tendo como recurso exclusivo a oralidade. A linguagem
tradicional do épico é a base da linguagem de toda a poesia hexâmetra e de elegia, assim como
um componente vital da linguagem da tragédia, de forma que Homero está intrinsecamente e
especialmente presente na poesia grega a ele subsequente (HUNTER, 2006, p. 238).
Assim,

É com a Ilíada e a Odisseia que a poesia heroica grega atingiu seu ponto mais alto. Bem
depressa o aedo, que compunha ao mesmo tempo que recitava, veio ceder lugar ao
rapsodo18, que a princípio recitava versos aprendidos de cor, depois ao escrevinhador que
retomava os velhos temas com escasso talento literário. Novas formas de literatura escrita,
o curto poema lírico19, depois o drama, substituíram como veículos de expressão artística
a epopeia oral (FINLEY, 1982, p. 30).

Mesmo que a tradição aédica tenha eventualmente findado, os rapsodos, a lírica e o


drama continuaram a cantar e encenar as histórias épicas em festivais públicos e jogos, ou seja,
a sociedade ateniense estava embebida nessa tradição mítica consolidada em Homero, assim
como esteve a sociedade arcaica. Dessa forma, suas histórias possuíam alto prestígio e, em certa
medida, a ideologia ali depositada também. É o que nos propomos identificar ao analisar a
tragédia grega.

1.4– Tragédia grega: a divindade, a pólis e o poeta

Na Antiguidade, os espetáculos que possuíam a maior importância na vida helênica eram


aqueles em que as pessoas saíam de suas casas e se reuniam publicamente para ouvir música,
celebrar festivais, jogos atléticos e ritos religiosos. Segundo Dabdab Trabulsi (2004, p. 141),

18
Poeta que decorava a épica de Homero e a declamava em festivais públicos (HORNBLOWER; SPAWFORTH,
2014, p. 129).
19
Manifestação literária que envolvia a música e o canto de pequenos poemas pelos poetas que os escreveram
(HORNBLOWER; SPAWFORTH, 2014, p. 476).
39
“A pesquisa antropológica já nos mostrou de forma suficiente que as manifestações teatrais têm
uma incidência quase universal, muitas vezes derivadas de cerimônias mágicas e religiosas”.
Assim como a epopeia, a tragédia grega tem uma origem religiosa, e está relacionada ao
culto de Dioniso (ROMILLY, 1999, p. 15). Esse deus estrangeiro está associado ao vinho, às
comemorações, à loucura, a hýbris (desmedida) e às encenações. Dioniso é o deus do teatro na
Grécia e o gênero de mais prestígio na Atenas clássica era a tragédia, de forma que estavam
intrinsecamente relacionados. Como afirma Detienne (2003, p. 76-77), o vinho de Dioniso é
um phármakon – e roga-se que ele seja remédio e cura, e não fogo e veneno. O vinho “fogo que
se acende espontaneamente nas profundezas do líquido” poderá levar o homem ao êxtase ou
condená-lo à selvageria bestial. Seu efeito pode tanto sublimar o homem quanto leva-lo a
condição animalesca.
Por que estrangeiro? Dioniso é caracterizado como estrangeiro pois sua origem mítica
não é a mesma dos outros deuses. Diz-se que Zeus apaixonou-se por Sêmele, uma mortal, e a
engravidou. Hera, ao descobrir da traição do marido, é inundada pelo ciúme e decide vingar-se
da mortal: disfarçada de ama, desce do Olimpo e convence a pobre filha de Cadmo e Harmonia
a pedir que seu amante se revele a ela em todo o seu esplendor. Seguindo os conselhos de Hera,
alheia ao fato de que isso a mataria, insiste para que Zeus lhe revele sua verdadeira aparência.
Contrariado, o Crônida cede depois de muita insistência e sua epifania faz com que a mortal
seja fulminada. Dioniso, que estava ainda em desenvolvimento no ventre materno, é acolhido
por Zeus, que o coloca em sua coxa para terminar a gestação. Assim que a formação se
completa, o deus o tira da coxa e ele recebe o nome de Dioniso: aquele que nasceu duas vezes
(GRIMAL, 1997, p. 121). Marcel Detienne (2003, p. 19) o caracteriza como “o deus que vem
de fora (...) vem de Outro lugar”, o que o caracteriza como estrangeiro, porém não é um bárbaro
– a despeito de sua selvageria – pois descende de Zeus.
Dioniso é o diferente, o estrangeiro que surge e impõe ao mundo toda a sua arrebatadora
força, o que Kerény (2002) caracteriza como zoé, infinita vida, inerente a todos os seres vivos,
a energia compartilhada que não perpassa pela experiência da aniquilação. Os rituais
dionisíacos simbolizavam a alternância das estações e dos ciclos naturais, assim como a história
mítica do deus que escapa da morte, renascendo através de Zeus (SANTANA, 2011, p.1). Este
deus e sua energia simbolizam, segundo Chevalier e Gheerbrant (1994, p. 341), "o esforço de
espiritualização da criatura viva, desde a planta até o êxtase: Deus da árvore, do bode, do fervor
e da união mística, ele sintetiza, em seu mito, toda a história de uma evolução".
Kerény (2002) também nos apresenta que Dioniso assumiu seu lugar na genealogia
divina após Cronos e Zeus, de forma que sua história mítica faz um paralelo com os estágios de
40
alimentação dos deuses: quando Cronos reinava, o hidromel foi criado e, a partir de Dioniso, o
vinho. “Como um deus da vegetação, Dioniso mantém estreita relação com o sofrimento, a
morte, a ressurreição e a iniciação, sendo dinâmico e soteriológico, isto é, trata da salvação
humana” (SANTANA, 2011, p. 5). É o deus que traz aos homens o prazer, a embriaguez, a
música e a dança. Ao mesmo tempo, está ligado a ritos cthônicos e agrários, sendo responsável
por trazer a loucura, o esquecimento e a morte. Segundo Jacqueline Romilly (1999, p. 16),
Dioniso é o paradoxo que se reflete no próprio jogo da vida e da morte.
É uma divindade que inspira cuidado por sua face destrutiva: muitas vezes Dioniso
aparece como um mal que atinge várias pessoas e lhes acomete uma loucura desmedida
(DETIENNE, 2003, p. 38-39). É classificado pelo autor como o mais epidêmico dos deuses,
pois: “vem; aparece, manifesta-se, faz-se reconhecer” e não possui um templo ou santuário de
repouso, está em constante movimento e não programa sua chegada. Surge de forma misteriosa:
“sua efígie cai do céu, sua nave surge na linha do horizonte no mar; a frente de um comando de
mulheres ataca as portas da cidade, ou ainda, solitário, emerge das águas abissais” (DETIENNE,
2003, p. 21).
Originárias do período Arcaico, as festas em celebração a Dioniso se fortaleceram e
fixaram no Período Clássico, sendo originalmente três: Dionisíacas Rurais, as Lenéias e as
Antestérias. As Grandes Dionisíacas, realizadas na primavera – entre os meses de março e abril
– foram criadas pelo tirano Pisístrato no VI século e consolidaram-se como as festas de maior
integração na comunidade políade. Assim como as tradições originais, havia procissões,
sacrifícios, faloforias e concursos trágicos (TRABULSI, 2004, p. 203-204). As três primeiras
atividades citadas aconteciam no primeiro dos 5 dias de festival, e eram seguidas de um
banquete e do transporte da estátua de Dioniso para o teatro. Os outros dias dividiam-se em
competições de ditirambo20, tragédia e comédia.
De acordo com Aristóteles (Poética. IV 1449a), a genealogia da tragédia possui sua
origem no ditirambo, partindo de pequenas fábulas jocosas, do gênero satírico, ‘evoluindo’ para
assuntos mais elevados, graves e trágicos. Dessa forma, numa perspectiva arquetípica: “O ato
sacrificial da morte de Dioniso, que representa a indestrutibilidade da vida em meio à destruição
deu origem à tragédia grega, sendo o mais universal dos ritos dionisíacos” (SANTANA, 2011,
p. 9).
Relacionado a tudo que é irracional, à loucura, às mulheres, às danças, à música, à
mascara usada para encenação, Dioniso é o deus mais apto a presidir a tragédia e todas as suas

20
O ditirambo era um canto-dança ritual dionisíaco, sendo o grego dithurambos um epíteto ou uma forma de
chamar o deus (TRABULSI, 2004, p. 142).
41
peculiaridades: espetáculo mimético carregado de emoção, sentimento de identificação entre a
plateia e os atores mascarados21 que habitam um mundo mágico, o confronto entre a alteridade
e a identidade - de modo controlado, a tragédia sob a égide da máscara de Dioniso permite a
liberação e o expurgo dos medos, anseios, irracionalidade e todas as emoções que se encontram
no âmago humano.
Ademais aos aspectos religiosos da tragédia grega, que imbuíam de prestígio e valor
sagrado as narrativas encenadas, julgamos que seus aspectos estruturais devem ser igualmente
considerados para a análise, pois sem eles não seríamos capazes de compreender amplamente a
relação entre a plateia, a cidade, a poesia e o poeta. De forma a entender as circunstâncias que
propiciaram sua consolidação como festa cívica, precisamos direcionar nossa análise para além
da sua relação com as divindades e oferecer um panorama da sua integração com a vida na pólis.
Quanto ao início da tradição como festa, Téspis é considerado o precursor da tragédia
grega, de forma que o marco inicial desse fenômeno seria entre 536 e 533 a.C. Sob o governo
tirânico de Pisístrato, escreveu e apresentou a primeira tragédia após ser incumbido de organizar
a procissão do festival. Apesar do início tirânico, a tragédia foi retomada e aperfeiçoada na
época da nova democracia (século V a.C.). Como festival oficial e cívico, envolvia toda a pólis
ateniense, todos os aspectos da sua organização eram fiscalizados pelo governo. A encenação
era também organizada às custas do poder público da pólis, que escolhia os poetas a competirem
e os cidadãos da elite que seriam encarregados de arcar com as despesas das apresentações. Esta
contribuição dos mais ricos chamava-se liturgia e destinava-se à indumentária, seleção dos
coreutas e o que mais fosse preciso para a apresentação. Além disso, havia o theorikon,
arrecadação que oferecia auxílio financeiro às camadas mais baixas da sociedade, de forma a
garantir sua ida ao teatro (OLIVEIRA, 1993, p. 87).
Os três tragediógrafos escolhidos pelo arconte22 eram encarregados de compor três
tragédias e um drama satírico, a serem apresentados no mesmo dia. Dessa forma, os três
principais dias do festival se caracterizavam pela apresentação das quatro obras dos autores,
sendo um autor por dia. Um dia após o fim das festividades, os cidadãos que possuíam cargos
públicos se reuniam no edifício público do teatro, numa espécie de assembleia, para debater e
decidir se a festa, em todas as suas etapas, havia ocorrido de maneira correta.

21
A máscara está associada aos ritos de Dioniso, que era venerado por intermédio dela. A máscara possibilita a
representação mimética, no palco, dos mitos na forma do drama: o ator mascarado pode usufruir das mais diversas
identidades: homem, mulher, divino, humano, sagrado e profano. Segundo Detienne (2003, p. 31) a máscara é a
insígnia que tanto esconde quanto revela Dioniso.
22
Autoridade pública nomeada por sorteio que era encarregado de escolher os três dramaturgos que competiriam
no festival.
42
O material da tragédia constitui-se, principalmente, do passado mítico que a tradição
oral dos aedos e rapsodos consolidaram e mantiveram vivo até o período Clássico: “o mito é o
princípio e como que a alma da tragédia, o elemento mais importante, entre todos os que
constituem a imitação23 com arte poética” (ARISTÓTELES. Poética, VI 1450b). A linguagem
tradicional do épico é a base de toda a poesia hexâmetra e de elegia, assim como um componente
vital da linguagem da tragédia, de forma que Homero está intrínseca e especialmente presente
na poesia grega a ele subsequente (HUNTER, 2006, p. 238). Os elementos que compunham a
tragédia são uma herança direta da tradição oral dos poetas do passado: o material-base (os
mitos), os recitativos longos poéticos dos mensageiros que narravam os acontecimentos, os
cantos corais que exprimem medo, alegria ou lamento. A tragédia é, a partir dessa afirmação,
composta pelos antigos coros dionisíacos que foram misturados aos mitos de nobreza, saídos
dos cultos heroicos da Grécia arcaica (TRABULSI, 2004, p. 143).
Mas, ao contrário do que ocorria na declamação poética dos rapsodos em jogos atléticos,
a tragédia não representava em cena uma história ampla em moldes mais ou menos conhecidos.
Isso não significa que a tragédia tenha rompido com a tradição oral, as narrativas eram apenas
imbuídas de outro significado: a partir da seleção de aspectos críticos, em uma noção temporal
e espacial limitadas, a narrativa mítica era transformada e utilizada como metáfora para
descrever a experiência dos homens e as situações que a cidade enfrentava. Na época clássica,
usar dos textos homéricos ou de ideias sobre Homero se transformou em um caminho de
construção e tentativa de entendimento do presente (HUNTER, 2006, p. 237).
Vernant e Vidal-Naquet (2008, p. 23) caracterizam a tragédia como a cidade que se faz
teatro, sendo, dessa forma o local onde a emoção da comunidade se manifesta de forma plena,
conjunta. É um espetáculo urbano, completamente integrado à cidade e as instituições
democráticas, apresentam para os espectadores também o que é marginal, diferente, o Outro,
levando a cidade a refletir sobre os conflitos internos, o que deve ser excluído, reprimido,
debates acerca de temas políticos e morais, sendo os seus ideais próprios o crivo a ser utilizado
para guiar essas reflexões.
O teatro é um outro lugar, entre o real e o imaginado, obtido através da potência divina,
onde a cidade se projeta e discute sobre si mesma, em narrativas de deuses e heróis. Mesmo
sabendo que temos acesso a uma ínfima parte do que foi produzido no período, a maior parte
das peças que possuímos não figura Atenas como o lugar da narrativa. Além disso, relacionadas
aos mitos, se passam em tempos longínquos, não no presente. O momento de mania (loucura),

23
Em Aristóteles, mimesis, imitação, é uma parte da personalidade humana. O autor trágico imita a ação, os mitos,
produzindo sua poesia (ARISTÓTELES. Poética, III).
43
de absurdo, onde tudo é possível e projetado para que construa e se exalte a sophrosyne (justa-
medida). Através da alteridade e do lugar do outro (GOLDHILL, 2007, p. 206), a pólis discute
sobre si mesma e por meio da kathársis, expurga seus conflitos internos ou, ao menos, reflete
sobre os mesmos. A kathársis é, para Aristóteles, o efeito desencadeado pela tragédia ao seu
público: uma mistura de alívio e prazer, porque demonstra para a plateia as consequências das
ações egoístas, da insubordinação às leis e aos deuses, da transgressão (ARISTÓTELES.
Poética, VI, 1455b, 27). Os sentimentos desencadeados e expurgados por esse efeito são
também uma forma instrutiva, de reafirmação da ordenação da comunidade como forma de
impedir que a vida se torne uma tragédia.
Esta se relaciona às instituições democráticas por causa de sua forma inovadora: o herói
trágico se relaciona diretamente com a comunidade (representada pelo Coro), seguindo os ideais
democráticos de debate dialético e de clareza e publicidade das relações entre os cidadãos. É
claro que o ethos aristocrático, herdado da poesia épica, ainda está presente na tragédia: as
motivações de honra pessoal, glória e fama também guiam as atitudes dos protagonistas, mas
ele é utilizado como recurso para que esses comportamentos sejam reexaminados sob uma ótica
de compromisso mútuo e cooperação inerentes aos ideais democráticos, ou seja, do esforço
renovado de reelaboração da ideologia aristocrática e elitista (SEGAL, 1994, p. 195;
TRABULSI, 2004, p. 153)
Dessa forma, o teatro é, como a epopeia, utilizado pela elite governante para exprimir e
legitimar seus ideais. É Dioniso que se relaciona à tragédia e a “influência do teatro [na
sociedade ateniense que] faz dele um verdadeiro aparelho ideológico do Estado” (TRABULSI,
2004, p. 145). Os valores da boa e correta cidadania são reafirmados frente à transgressão
apresentada no palco: funcionam como advertências e críticas austeras ao comportamento
humano, frisando que a vida em comunidade depende intrinsecamente do cumprimento de leis
e costumes.
Como nos diz Aristófanes (Acarnenses, vv. 496-507), o festival das Grandes Dionisíacas
era a oportunidade anual da cidade exibir a si mesma perante seus aliados e as cidades vizinhas,
gerando um olhar espetacular sobre si. A estrutura políade era reproduzida no espaço do teatro,
de forma que a cada grupo componente da mesma (servidores públicos, embaixadores,
visitantes, generais, cidadãos, metecos, mulheres, crianças e escravos) eram pré-estabelecidos
lugares específicos, de acordo com a sua importância: “o teatro, instrumento incomparável de
cultura popular, podia utilizar os velhos mitos para exprimir a realidade das relações sociais”
(CARRIÈRE, 1979, p. 18).

44
Simon Goldhill (2007, p. 203) apresenta que, além dessa divisão do espaço físico, havia
quatro rituais que aconteciam antes das apresentações trágicas, e eles existiam para demonstrar
que, além de um festival religioso, o espetáculo possuía suas intenções políticas, de forma a
reafirmar o poder e a superioridade de Atenas e sua democracia. Em primeiro lugar, aconteciam
as libações e sacrifícios a Dioniso. Os dez generais, eleitos como líderes políticos na
democracia, sacrificavam leitões e ofereciam vinho à divindade demonstrando a estreita ligação
entre a religião e a política. Depois, os cidadãos que haviam contribuído monetariamente para
a execução do festival público tinham seus nomes anunciados e exaltados, recebendo honrarias
na forma de coroas.
Em seguida, o tesouro da cidade – toda a arrecadação que a poderosa pólis havia
recebido das cidades que lhe eram aliadas – era exibido para a plateia. Os embaixadores das
outras cidades eram colocados na primeira fila da plateia, estavam mais próximos da exibição
do tributo e eram lembrados enfaticamente da superioridade ateniense (GOLDHILL, 2007, p.
204). O quarto e último ritual antes da encenação se consistia em exibir os órfãos de guerra:
seus pais, mortos a serviço da pólis, eram lembrados e honrados em discursos públicos. Além
disso, a educação desses meninos era custeada pelo poder público e eles tomariam os lugares
de seus pais quando completassem o treinamento.
Dessa maneira, a religião, o poder político, a riqueza e sua eficiência militar eram
demonstrados à todas as camadas que compunham o heterogêneo corpo social ateniense, tendo
o teatro como lugar central para essa celebração da própria democracia políade:

O fermento inovador da tragédia consiste no fato de que ela refrate os velhos mitos no
prisma do contemporâneo. Ela é assim um meio incomparável de cultura popular, pelo
discurso antitético que ela instaura entre as personagens (que são os nobres de outrora) e
o coro (que representa o povo). Ela se evidencia em um dos lugares privilegiados do
debate político, onde se afirma o espaço conquistado pelo dêmos na cidade, ao mesmo
tempo em que, através de um jogo sutil de recuperações, ela contribui para organizar o
consentimento e a alienação das massas em proveito dos aristocratas. (LÉVÊQUE, 1985,
p. 210)

Em conjunto, a pólis ria, atemorizava-se, chorava, lamentava e reafirmava, através dessa


manifestação cultural, suas próprias concepções democráticas e tradições, ordenação
comportamental. Dessa forma, como a epopeia, a tragédia está imbuída de valor instrutivo,
segundo os critérios estabelecidos pela elite dos cidadãos.

45
1.4.1– Eurípides

Ao estudarmos a tragédia grega, três tragediógrafos se destacam: Ésquilo, Sófocles e


Eurípides. Isso não acontece por algum deles ser o percursor do fenômeno, mas porque, de
todos os tragediógrafos que a Atenas clássica conheceu, foram as obras dos três que chegaram
até nós: e tudo nos indica que suas obras foram preservadas pelo alto prestígio que estes três
tragediógrafos possuíram na Grécia antiga. Através delas, podemos conhecer uma ínfima parte
do que foi a tragédia clássica, uma vez que, nos 80 anos de duração da mesma, centenas foram
escritas e estão perdidas (até o momento).
Eurípides, cuja Medeia analisaremos nos capítulos subsequentes, teria escrito 92 peças
em toda a sua vida, das quais apenas 19 foram preservadas 24. Sua primeira tragédia chamava-
se As Pelíades e foi apresentada por volta de 455 a.C., ano que marca a morte de Ésquilo. Nos
anos subsequentes de sua vida, escreveu as mais diversas tragédias e dramas satíricos. Ao
pesquisarmos sobre sua vida, nos deparamos com a dificuldade de elucidar alguns aspectos,
uma vez que há muitas diferenças em suas biografias, que foram construídas muitos anos depois
de sua morte. Os registros nos informam que seu nascimento teria acontecido em 480, no mesmo
dia em que os gregos venceram os persas no que ficou conhecido como “a vitória de Salamina”.
Esta, inclusive, é a cidade associada a seu nascimento. No fim de sua vida, Eurípides abandonara
a democracia de Atenas e fora viver na corte do rei macedônio, onde teria morrido em 406 –
dois anos antes do fim desastroso da guerra do Peloponeso.
Enquanto é sabido que os outros tragediógrafos mencionados pertenciam à estratos
sociais elevados, há dúvidas acerca de qual Eurípides teria pertencido. Chamado de o filho da
feirante por Aristófones (ARISTÓFONES. Arcanenses, v. 457, 487; As Rãs. V. 840), alguns
interpretam-no como possuindo origens humildes. Apesar disso, outros estudiosos sugerem que
esse rótulo se devesse ao destaque que o dramaturgo deu a grupos subalternos, ao conceder o
protagonismo de suas obras a personagens não pertencentes ao grupo de cidadãos kaloì kaì
agathoí (belos e bons), além de atribuir aos heróis da tradição mítica, quando utilizados,
características pouco honrosas, como percebemos em Medeia: Jasão é seduzido pela
possibilidade de ascender socialmente e quebra o juramento feito à sua mulher. Um ímpeto
pouco nobre para o que se entende como herói, desde a tradição homérica.
Ao contrário de Sófocles, que atuou na vida política da pólis, Eurípides não possuiu
nenhum cargo público, tendo contribuído com a pólis de Atenas apenas através de sua poesia.

24
As peças remanescentes são 19 se contarmos com Reso, cuja atribuição ao poeta não é um consenso entre os
estudiosos.
46
Também suas obras possuíam um caráter oposto ao de seu predecessor, uma vez que Eurípides
não demonstra uma fé muito viva no homem, parecendo possuir uma personalidade um tanto
melancólica. Nascido juntamente com os primeiros sofistas e fazendo menções a essa arte
retórica em suas obras, Eurípides foi aberto à todas as influências e não se filiou unicamente a
nenhuma corrente filosófica. Sendo suscetível às influências intelectuais e políticas, mostrava-
se com opiniões inconstantes: suas posições mudavam de uma peça para outra de acordo com
as novidades (ROMILLY, 1999, p. 101 e 103). Curiosamente, possuímos preservadas o maior
número de peças de um dramaturgo que alcançou o primeiro lugar somente 6 vezes em vida.
Participou de mais de 20 festivais e durante as Dionisíacas de 431 a.C. apresentou a trilogia de
Medeia, Díctis e Filoctetes, seguidas pelo drama satírico Segadores, quando o poeta recebeu a
terceira colocação no concurso.
Aberto às inovações, o teatro de Eurípides trouxe novidades, rupturas e mudanças para
a tragédia grega: rebaixou o herói mítico, dando-lhe características muito mais humanas do que
épicas; diminuiu a importância do Coro, retirando deste a centralidade, de forma a ampliar a
participação dos personagens; introduziu o prólogo explicativo; fez uso constante do deus ex
machina para resolver as situações conflitantes de seus enredos, enquanto em outros a atuação
divina é questionada ou substituída por abstrações (Razão, Ar, Éter); liberou a música;
aumentou o número de personagens.
Todas essas inovações decerto causaram perplexidade e rejeição, tendo em vista, como
já mencionado, que das mais de noventa peças escritas, apenas seis alcançaram o primeiro lugar.
Considerado muito controverso e moderno25 para sua época, recebeu o reconhecimento
póstumo que lhe assegurou o kléos e o prestígio nos séculos subsequentes. Não tendo conhecido
a glória das guerras Greco-Pérsicas (por volta de 490-480 a.C.), pois nasceu no fim delas,
Eurípides vivenciou a guerra do Peloponeso, intensa guerra de gregos contra gregos, que
culminou com a ruína de Atenas e seu império. Essa vivência provavelmente exerceu grande
influência em suas diversas obras, de forma que a situação de desordem em que se encontram
os seus personagens representava os diversos problemas enfrentados pela pólis durante o
embate civil.
No entanto, os desencantos com a guerra e os problemas por ela causados não se
tornaram assunto central de suas obras, ainda que possamos perceber as suas marcas ao abordar
de forma mais destacada as emoções que guiam os seus personagens e os infortúnios por elas

25
De acordo com Gilbert Murray (1949, p. 12), Eurípides era “um homem moderno em cuja mente se agitam
nossos mesmos problemas, nossas mesmas dúvidas e ainda nossos ideais; um homem que sentia os mesmos desejos
e sublevações de muitos homens atuais”.
47
gerados. Dessa forma, é chamado por Romilly de “o poeta das paixões” (ROMILLY, 1999, p.
101-134). Os heróis e heroínas de Eurípides se aproximam mais da realidade do seu tempo e
dos humanos comuns, afastando-se daqueles criados pela tradição dramática e épica, em que os
personagens possuem uma força moral maior e a justiça divina se mostra constantemente
presente. A temática continua a ser mítica, mas desenrola-se seguindo uma lógica e ordenação
diferenciadas:

Nota-se em suas peças uma consciente dessacralização do mito com uma consequente
proletarização da tragédia. Das trevas de Elêusis de Ésquilo aos píncaros do Olimpo de
Sófocles, a tragédia de Eurípides desceu para as ruas de Atenas. Moira, a fatalidade cega
de Ésquilo, e Lógos, a razão socrática de Sófocles, transmutaram-se em Eurípides, em
Eros, a força da paixão (BRANDÃO, 2007, p. 57).

Enquanto os personagens de outros poetas são guiados por seus deveres, os de Eurípides
seguem seus interesses com o mesmo afinco. Acabam por provocar uma identificação maior
com a plateia, pois não são diferentes dos outros homens: sua vida é tão comum quanto a dos
outros, sujeita às leis, aos deuses e cujo destino é selado pelas escolhas causadas por suas
paixões. Eurípides é o primeiro a representar o amor em cena (ROMILLY, 1999, p. 110 e 117).
Medeia, como analisaremos mais adiante, é um dos maiores exemplos de uma
protagonista euripidiana guiada pelo amor e por suas paixões. E seus sentimentos e emoções
são os responsáveis por seus atos e, por conseguinte, as catástrofes que deles são consequência.
Mulher abandonada, com a honra ferida, dominada pelo sentimento de vingança, aqui Eurípides
nos demonstra novamente sua inovação: a sede de vingança e a busca pela restauração da honra
maculada são elementos heroicos normalmente atribuídos a personagens masculinos nas
tragédias e literatura gregas. Em Eurípides, “as paixões arrastam (...) todas as espécies de
violência devidas ao desejo de retribuir um golpe com outro golpe, de fazer sofrer porque se
sofre” (ROMILLY, 1999, p. 112).
Mas, ao contrário do que poderia se esperar em uma tragédia guiada pelas emoções, a
vingança em Eurípides não é apenas violência e derramamento de sangue – embora esses
elementos estejam presentes. Antes de serem concretizados, os atos de violência são precedidos
por diálogos de confronto, emotivos, mas lúcidos. A influência da sofística que está presente na
comunidade ateniense fora do palco pode ser notada nas peças do poeta. A retórica é utilizada,
de forma apaixonada, pelas personagens para que os outros (e até mesmo, a plateia) possam
compreender os motivos pelos quais sua vingança deve ser realizada: o ardor do discurso é
correspondente ao ardor da paixão.

48
A partir dessa breve explicitação da sua vida e dos fios condutores de sua obra, podemos
compreender porque Eurípides causou espanto e perplexidade, mas também fascínio nos
séculos que seguiram sua morte. O júri da festividade, composto pelas elites atenienses, poderia
preferir histórias que fizessem referência a um passado e uma tradição míticas estruturadas, sem
inovações, à coragem dos heróis míticos, homens viris, cujos ideias de beleza e justiça poderiam
ser equiparados aos dos cidadãos kaloì kaì agathoí. O que não se encaixava com a proposta
dramática de Eurípides, não alcançando a vitória por diversas vezes. Segundo W. Jaeger (1973,
p. 399), Eurípides “pertence a dois mundos: o mundo antigo, que estava destinado a derrubar,
mas que brilha na sua obra. A poesia conserva o papel de guia, mas abre o caminho ao novo
espírito que a havia de arredar da sua posição tradicional”.
Ao mesmo tempo, a plateia heterogênea – que além dos cidadãos, era composta por
estrangeiros em viagem, metecos, mulheres e escravos – poderia ser capaz de se identificar com
mais afinco aos personagens euripidianos. Almas atormentadas, distantes dos modelos
comportamentais, em oposição aos heróis de Homero que só hesitam ao que é certo em
situações pontuais, são muito humanos, estavam sujeitos aos seus próprios sentimentos: que,
sendo mesquinhos ou nobres, acabavam por trazer consequências à altura.

1.5- Relação epopeia-tragédia

Como pudemos perceber ao longo do capítulo, os mitos, para os helenos, representavam


uma realidade associada a um passado longínquo, eram socialmente construídos, preservavam
as memórias e sobreviviam à passagem do tempo por meio da tradição oral: assim, a narrativa
mítica era responsável por manter vivo tudo aquilo que possuía valor. Esses mitos tornaram-se
a principal fonte de onde os tragediógrafos beberam para construir suas histórias trágicas.
Vimos que apesar de sua relação estreita, a tragédia não é uma continuidade da história mítica:
ela não é o mito em si, mas uma interpretação proposta por poetas, de forma a elucidar questões
e produzir reflexões que considerassem importantes.
Postos sob uma perspectiva comparativa acerca de seu ofício, existem pontos de
convergência e divergência nos ofícios do aedo e do tragediógrafo. Ambos eram incumbidos
da tarefa de contar para uma audiência as histórias e os grandes feitos dos heróis míticos e das
divindades, que, como mencionamos, faziam parte da vida grega desde a infância. Os dois eram
patrocinados pela elite de suas épocas para realizarem seu trabalho, e, dessa forma, difundiam
os ideais dominantes nas comunidades. Assim como a plateia do aedo e do rapsodo, aquela que
ia ao teatro já conhecia a tradição mítica que originara a encenação em questão. Dessa forma, o
49
tragediógrafo não poderia deixar de incluir alguns elementos-chave para que a tradição mítica
fosse devidamente representada.
Porém, mesmo partindo de uma tradição oral compartilhada, o tragediógrafo possuía a
possibilidade de modificar a maneira que essa narrativa mítica seria apresentada para a
audiência. Ainda inspirado pelas Musas (afinal, elas continuam a ser a palavra cantada), mas
possuindo menos tempo para a narrativa e, adicionado a essa mudança, usando dos recursos
visuais que o teatro proporciona, o poeta da tragédia tem a liberdade de contá-la associando os
mitos ao seu próprio presente: sem deslegitimá-lo, apenas atualizando-o.
Os tragediógrafos eram pessoas que sabiam ler e escrever, possuíam conhecimentos
diversos como a Filosofia, detinham de skholé para terem aprendido todas as suas técnicas e
participado de banquetes e simpósios. Dessa forma, ademais a sua condição de indivíduos
ligados às musas, possuíam prestígio o suficiente para serem legitimados como os mais aptos
da comunidade a narrar os mitos sob a forma da tragédia. A influência e o prestígio da tragédia,
e, por conseguinte do poeta, na Atenas clássica podem ser medidos pelas duras objeções de
Platão (SEGAL, 1994, p. 186).
O filósofo considerava a diversidade de sentimentos causados pela katharsis trágica
demasiado perigosa, uma vez que o tragediógrafo formava opiniões, pois mostrava sua visão e
reflexão dos problemas compartilhados e provocava intensas emoções na plateia. Em suas Leis
(III, 701a)., em contraponto com a exaltação da tragédia, Platão nos diz que “a musa mais bela
é a que dá prazer aos homens melhores e àqueles que são adequadamente educados”. A sua
pólis ideal não poderia comportar os poetas: nem aedos, nem líricos, nem trágicos. Como
percebemos na primeira frase por nós destacadas, a única poesia que Platão poderia exaltar era
a poesia da escrita filosófica. Podemos perceber, através dessa centralidade ressaltada e
rechaçada por Platão, que a tragédia tinha muito prestígio e influência na vida dos atenienses,
da mesma maneira que a epopeia possuía nos palácios do período Arcaico. E sendo a última um
arquitexto, torna-se explícita a relação paidêutica que ambas possuíam na Atenas clássica.
Especificamente tratando de Eurípides podemos perceber o estatuto de arquitextos dos
poemas épicos em suas diversas obras d'O Ciclope às As troianas. Quanto à Medeia, por nós
selecionada, a referência não é óbvia. Entre o canto X e a tragédia nós podemos perceber
assuntos e posicionamentos que se relacionam, tratando-se do uso da astúcia e da magia, a
condição mítica da mulher, a civilidade versus a barbárie. Sobretudo no que concerne a última
correlação, estão intrincadas as noções de identidade/alteridade. Tanto Homero quanto
Eurípides fazem uso de seus personagens e as situações em que os heróis se encontram para

50
ressaltar as diferenças entre o comportamento/estilo de vida desejado (grego/civilizado) e
aquele que deve ser rechaçado (outro/bárbaro).
Como foi mencionado na introdução deste trabalho, o antropólogo Marc Augé (1998, p.
14) foi capaz de demonstrar quais funções as alteridades fundamentam na vida e na dinâmica
social em que os indivíduos estão inseridos. A realidade e a ficção são caracterizadas sob uma
perspectiva que coloca em análise o imaginário individual, definido pelo antropólogo como
sendo o imaginário coletivo – o sonho: os mitos, os ritos e a obra de ficção, sendo as três formas
simbólicas desenvolvidas pela sociedade para a organização subjetiva.
Sob este aspecto, tanto o rito quanto o mito representam mecanismos cujo objetivo é a
produção de uma identidade através do reconhecimento daquilo que se desvia dela (a
alteridade): através de um Outro (divindade, ancestral ou oráculo, por exemplo), estabelecem-
se relações responsáveis pela ordenação dos grupos sociais aos quais os indivíduos pertencem.
Buscar compreender a dinâmica dos ritos e mitos de uma cultura é, dessa forma, tentar
compreender que ambos são referências construídas com um caráter externo (outro) em relação
a qual o indivíduo e o grupo constroem sua identidade (AUGÉ, 1998, p. 19-20).
A dialética entre identidade e alteridade funciona como um mecanismo coeso cuja
estruturação nos permite afirmar que a pertença de um coletivo não é atribuída nem como
exclusiva de outros pertencimentos e nem como exclusiva na afirmação da identidade do
indivíduo (AUGÉ, 1998, p. 32). Assim, as especificidades possuídas por cada indivíduo e
àquelas que constroem quem eles são, transforma os homens em criaturas diferentes dos deuses
e personagens míticos que criaram, uma vez que ambos são formas de expressar tanto as
ambições quanto as virtudes que o indivíduo procura em si mesmo.
Alargando nossas referências bibliográficas para autores que não trabalham o conceito
de alteridade na antiguidade, Tzvetan Todorov em sua obra A Conquista da América, indica
que a identidade (chamado de o Eu) só existe quando há uma visão da alteridade (o Outro) que
remeta a si mesmo. Assim, para Todorov (1982, p.2): “Podem-se descobrir os outros em si
mesmo, e perceber que não é uma substância homogênea e radicalmente diferente de tudo o
que não é si mesmo, o eu é um outro. Mas cada um dos outros é um também, sujeito como eu”.
Já para Bartolomé de las Casas, em sua obra O Paraíso Destruído, existem três planos de
entendimento para a relação da alteridade/o outro. O primeiro plano é caracterizado pela
questão do julgamento de valor, onde pode-se observar as questões ligadas à dicotomia Eu x
Outro. No segundo plano a relação se caracteriza pela aproximação ou distanciamento do que
é definido como eu e como outro. Por fim, no terceiro plano a relação estabelece o binômio do
conhecimento: você conhecer ou ignorar o outro.
51
O conhecimento do Outro é construído, desse modo, a partir de sua subjetividade. É
necessário ampliar a visão para compreender que o Outro não é apenas um indivíduo ou grupo
com o(s) qual(is) o Eu se relaciona na sociedade, mas que o Outro está presente no Eu. Como
nos disse Ciampa (1989, p. 8): “essa expressão do outro que também sou eu consiste na
‘alterização’ da minha identidade, na supressão de minha identidade pressuposta e no
desenvolvimento de uma identidade posta como metamorfose constante”. Andréa Vieira Zanela
(ZANELA, 2005) usa das aventuras de Marco Polo para concordar com essa perspectiva da
relação entre a identidade e a alteridade, na medida em que a identidade é definida a partir da
alteridade: o indivíduo só é capaz de definir e reconhecer a sua essência ao coloca-la em relação
com suas próprias definições da essência do Outro.
Em suas aventuras, o herói Odisseu, por exemplo, está sempre à procura de homens
comedores de pão26 (Odisseia, VIII, v. 222; IX, v. 89; X, v. 101), porém seu caminho é
perpassado apenas por humanos servindo de alimento (para os ciclopes, os lestrigões e o
monstro marinho Cylla) e por alimentos que prejudicam a existência mortal (o lótus consumido
pelos lotófagos, o nefasto phármaka ofertado por Circe e o gado do divino Helios). Como
Vernant (2006, p. 66-68) já havia delineado, as regras alimentares são de extrema importância
para os gregos, uma vez que lhes serviam para delimitar o lugar mortal na Cosmologia.
Ao consumir a carne cozida e o pão, o homem se diferencia dos animais selvagens (que
não cozinham e não praticam a agricultura) e dos deuses (que são imortais, não sentem fome):
é uma maneira de estabelecer barreiras entre ele e o que ele não é. Os encontros de Odisseu são
marcados por essa diferenciação escancarada, possivelmente óbvia para aqueles que escutavam
a poesia: o herói mantém-se como única e última lembrança dos valores gregos. Também não
há, neste mundo, sacrifício aos deuses, como nos dá a entender o cíclope Polifemo (Odisseia,
IX, vv. 273-276) e o próprio poeta ao narrar o insucesso do herói e seus companheiros quando
tentam praticá-lo (Odisseia, IX, vv. 550-555).
Ademais, a xenía, hospitalidade, não é praticada de maneira correta, o que seria
reprovável na existência grega. A xenía ausente no encontro com os Cíclopes, os Lestrigões e
Cylla é diretamente responsável pela morte dos companheiros de Odisseu; enquanto a tentativa
exagerada de agradar os hóspedes, como fazem os lotófagos, Circe e Calipso, acaba por fazer
com que os homens esqueçam não só das dores e aflições que a jornada lhes causou, mas

26
O pão é feito a partir de cerais e estes são um “(...) alimento especificamente humano, que implica o trabalho
agrícola, representam aos olhos dos gregos o modelo das plantas cultivadas que simbolizam, em contraste com
uma existência selvagem, a vida civilizada” (VERNANT, 2006, p. 65).
52
também de sua terra pátria, havendo o perigo de que permanecessem nesse mundo transitório27
e não mais voltassem ao convívio com seus pares.
Na tragédia de Eurípides, a alteridade é delineada através de outros artifícios.
Primeiramente, a história se passa numa pólis que, de maneira diferente a Atenas, não vive sob
um regime democrático. Em Corinto há Creonte, um rei déspota – essa característica nos salta
à vista principalmente quando o analisamos sob a perspectiva da protagonista, Medeia. A
mulher e feiticeira recebeu exílio em Corinto e retribuiu a hospitalidade ofertada criando laços
de amizade e colocando ao dispor da população coríntia suas habilidades mágicas, de forma a
melhorar a vida cotidiana da comunidade.
Medeia não cometeu qualquer tipo de crime e lhe foi retirada a hospitalidade
previamente ofertada: o exílio (EURÍPIDES, Medeia, vv. 271-276) foi o pagamento que a
feiticeira recebeu por todos os anos de tranquilidade e auxílio à pólis coríntia. A isso soma-se
o infortúnio maior da feiticeira: a traição de Jasão, uma vez que o herói acaba por abandoná-la
e trocá-la (EURÍPIDES, Medeia, vv.18-19), por uma esposa mais jovem, quebrando o
juramento de fidelidade feito à Medeia no templo cuja divindade é a protetora das feiticeiras –
Hécate (EURÍPIDES, Medeia, v. 492).
Eurípides nos apresenta e critica um herói que não honra suas palavras ou
compromissos, abandona a esposa leal por uma que lhe oferta riqueza material (EURÍPIDES,
Medeia, vv.559-562) e uma situação social mais vantajosa (EURÍPIDES, Medeia, vv.591-592).
A única correlação com o sacrifício aos deuses se dá quando Medeia, já completamente
transformada na feiticeira implacável e mulher incontrolável, tira a vida dos próprios filhos
(EURÍPIDES, Medeia, vv.1272-1281), sacrificando sua felicidade em prol da vingança
(EURÍPIDES, Medeia, vv.1249-1250).
Fica explicitado que tanto o mundo das narrativas de Odisseu quanto Corinto (que
primeiramente abriga Medeia e depois a expulsa), são lugares em que a ordenação do mundo é
subvertida/pervertida: os valores gregos de civilização (a agricultura, a hospitalidade, a
honradez dos juramentos, o sacrifício) inexistem ou são praticados de maneira incorreta. Assim,
há nas obras dos poetas uma polarização entre a norma e o desvio, cujo objetivo perpassa de
forma consistente as nossas considerações acerca da função educativa do épico e da tragédia
nos períodos selecionados. Isso se chama interdiscursividade, também conceito da Análise de
Discurso e está presente entre os autores: cada e todo discurso proferido é atravessado por ela,

27
NAGLER, 1996, p. 144 ; TRACY, 1997, p. 376 ; MOST, 1999, p. 490.
53
tendo a propriedade de estar em relação múltipla com outros discursos, pois no dizer há algo
que permanece (ORLANDI, 2012, p.35-36).
Como nos diz Orlandi (2005, p. 32):

O fato é que há um já-dito que sustenta a possibilidade mesma de todo dizer, é


fundamental para se compreender o funcionamento do discurso, a sua reação com os
sujeitos e com a ideologia. A observação do interdiscurso nos permite remeter o dizer da
faixa a toda uma filiação de dizeres, a uma memória e a identificá-lo em sua historicidade,
em sua significância, mostrando seus compromissos políticos e ideológicos.

Assim, procurando a relação existente entre o já dito e o que está sendo dito, propomos
que a tragédia de Eurípides e a epopeia de Homero foram, ademais ao seu valor educativo para
quem possui skholé, instrumentos utilizados pelos homens para dizer às suas mulheres quais
exemplos elas deviam ou não seguir. Através de uma análise do uso do phármakon (que é a
materialidade da formação discursiva) pelas feiticeiras Circe e Medeia procuraremos, então,
demonstrar a formação discursiva entre os dois poetas acerca do feminino, uma vez que são
personagens que se encontram em muitos pontos, protagonizam uma aparente inversão,
divergem entre si em outros e possuem suas próprias singularidades como mulheres e feiticeiras.

54
Capítulo 2
Práticas de magia grega: o phármakon em destaque

Você conhecerá todos os remédios (phármaka) que existem para as doenças e para a
defesa contra a velhice, já que apenas por você realizarei tudo isso. E você impedirá a
força dos ventos incansáveis que varrem a terra e arrasam os campos com suas rajadas; e
então, se quiser, você trará de volta as brisas para compensar. Após a chuva negra, você
provocará seca para os homens na estação devida e então, depois da seca do verão,
trazendo córregos que nutrem as árvores e habitam os ares. E você trará do Hades a força
vital de um homem morto. (EMPÉDOCLES, fr. 111)28

No capítulo anterior explicitamos as relações paidêuticas entre as obras de Homero e as


de Eurípides. Estes poetas possuíram sua parcela de responsabilidade no incentivo, perpetuação
e abandono de comportamentos e ideais nas sociedades arcaica e clássica. De forma a
corroborar a nossa hipótese de que há semelhanças, diferenças e singularidades no que concerne
aos discursos paidêuticos dos dois autores que apresentam referências à magia no mundo grego
antigo, especificamente no que condiz ao uso do phármakon por Circe e Medeia, torna-se
inevitável fazer uma análise da magia na Grécia arcaica e clássica, uma vez que poderemos
comparar suas condições de surgimento no território ático, seu desenvolvimento e consolidação
como parte da religiosidade helênica.

2. 1- Magia na Grécia Arcaica e Clássica

Para se fazer um estudo histórico no qual procura-se analisar e entender o


comportamento de uma sociedade em relação à magia, primeiramente torna-se necessário
definir o que é magia. As primeiras análises acerca desse fenômeno social e sua interação com
a religiosidade surgiram no âmbito da Antropologia, trazendo um debate infindável sobre a
diferenciação entre as duas. Torna-se necessário, dessa forma, apresentarmos primeiramente as
teorias que a separavam da religião e que foi utilizada por diversos estudiosos da magia da
antiguidade, para depois apresentarmos as soluções mais recentes para o embate, soluções essas
com as quais concordamos.
Sir James Frazer foi um dos principais pesquisadores a se debruçar sobre o estudo da
magia e em The Golden Bough (1917) nos apresenta sua definição para o termo. Ao longo da

28
Tradução do grego para o inglês realizada por Derek Collins. Tradução para o português por Lúcia Sano.
55
obra, define dois tipos gerais de magia: a imitativa ou homeopática e a simpática ou contagiosa.
Na magia imitativa ou homeopática, que se baseia no princípio da similaridade, o mágico imita
os atos que ele deseja que ocorram, como soprar fumaça aos céus para que nuvens apareçam.
Essa é a lei de que o semelhante afeta o semelhante. Já na magia simpática há a convicção de
que tudo que se faça a um determinado objeto afetará a pessoa a quem ele pertence ou com
quem tem ligação (FRAZER, 1978, p. 34). Para o autor a ação mágica pressupõe a lei da causa
e efeito, sendo que seus atos visam atingir determinados fins esperados. Esse fato leva o autor
a aproximá-la da ciência, argumentando que ambas as instituições reconhecem uma sucessão
de eventos determinada por leis de causalidade (que podem ser previstas e calculadas), e agem
de acordo com elas. Então, a magia é, mais que um conjunto de crenças, uma técnica para se
atingir certos fins.
Para o antropólogo, a magia se dividia em teórica e prática, sendo a teórica um conjunto
de regras estabelecidas que era capaz de determinar a sequência dos acontecimentos em todo o
mundo, o que a classificava como um sistema de lei natural. Já a magia prática se caracteriza
como uma coleção de princípios a serem praticados por seres humanos que objetivavam
alcançar um propósito (FRAZER, 1978, p. 35). Em sua concepção, o mago era um indivíduo
de mente “subdesenvolvida”, que utilizava da magia prática por desconhecer os processos
mentais que a compõem, de forma que funciona como uma arte, e não uma ciência, para o
praticante.
Frazer afirma que arte e ciência estão em polos opostos, assim como magia e ciência.
Porém, não considera que a prática mágica possa ser classificada como arte: ela é percebida
como arte pelo mago, que é um indivíduo limitado, e, por isso, ela é uma falsa arte. Quanto à
magia teórica, que busca explicar o funcionamento do universo em que o indivíduo está
inserido, é uma falsa ciência: parte de premissas errôneas, também resultado das limitações do
praticante. O antropólogo então sugere que a magia é apenas um estágio do desenvolvimento
de uma sociedade, antecipando a religião – que, por sua vez, anteciparia a ciência. Dessa
maneira, a magia seria classificada como pré-científica.
Seu argumento de que a prática mágica não é nada além de um estágio inicial das crenças
dos seres humanos, da qual se desenvolveria a religião, parte de uma perspectiva evolucionista
que condiz com o contexto em que desenvolveu suas teorias. Segundo ele, a diferença entre
magia e religião poderia ser percebida porque a religião exigiria do indivíduo uma abstração de
conceitos e uma reflexão mais profunda e complexa do que a magia – e ainda assim esta
demandava uma reflexão mais superficial do que a Ciência.

56
No que compete à religião grega arcaica e clássica, a distinção entre magia e religião é
muito difícil, como demonstra a existência de certas práticas nas quais não era possível dissociar
o caráter religioso do mágico. As teorias de Frazer não englobam e muito menos satisfazem as
nossas considerações acerca da relação magia/religião na Grécia antiga, pois a oposição
proposta por ele é um produto típico das classes médias vitorianas, com sua forte necessidade
de auto definição positiva em contraponto aos indivíduos colonizados no exterior e aos
camponeses de seu próprio país: não há lugar para essa oposição numa discussão de magia na
antiguidade (BREMMER, 1999, p. 12).
Também discordamos de Mathew Dickie (2001, p. 23), cujos estudos tendem a alegar
que, frente a inexistência de um termo específico para magia, as práticas análogas e
indiscrimináveis do que posteriormente foi classificado como magia, não são magia. Partimos
do princípio de que aquilo que os gregos denominavam como magia é frequentemente
impossível de se distinguir de suas práticas de culto cívico. Logo, o que conhecemos como
religião grega engloba também as práticas “desviantes” da religião cívica. Por vivermos em
uma sociedade permeada por conceitos pós-cristianismo29, compreendemos que muitos
classicistas não classificariam as práticas mágicas como religiosas (COLLINS, 2009, p. 47) e
ao discordarmos desse posicionamento mais largamente aceito, firmamos nossa escolha por
abandonar as noções pré-concebidas de magia como diametralmente oposta à religião,
procurando compreender a prática grega em sua própria área e contexto de ação.
Para nos aproximar do que os helenos acreditavam ser magia, nos pautaremos em parte
nas considerações de Fritz Graf acerca do tema, que não compactua com a visão dicotômica de
Frazer. Ao estudar textos mágicos como o Papiry Graecae Magicae, o autor destacou a
existência de orações em contextos mágicos e a oração, como quintessência da religião,
demonstra que a dicotomia proposta por Frazer e que foi largamente aceita pelos classicistas é
suscetível ao questionamento (GRAF, 1991, p. 188). A partir de Graf frisamos a importância
do discurso mágico como o principal meio de realizar esta prática. Dessa forma, os atos mágicos
de invocação sobrenaturais implicam uma intenção, de modo que, por trás do ato, alguém
pretende transmitir uma mensagem (GARF, 2002, p. 93). A magia grega, assim, expressa a

29
Nossa escolha em posicionar magia e religião em polos separados, tendência entre os pesquisadores ocidentais,
começou no século XIV d.C., fortalecendo-se no século seguinte. Os teólogos da Reforma Protestante começaram
a definir o ritualismo e sacramentalismo das igrejas católicas como magia, buscando distinguir suas próprias
práticas daquelas da Igreja de Roma (THOMAS, 1971, p. 51-77). Essa é uma longa discussão (THOMAS, 1971;
CLARK, 1977), encabeçada por pensadores protestantes que empregaram de modo tendencioso os termos romanos
antigos para criticar os sacramentos católicos, exaltando o quão parecido com magia eles eram. Não sendo o foco
de nossa pesquisa, consideramos importante citá-la, pois tendo-a em mente, nos afastamos da distinção absoluta
entre a magia e a religião.
57
tensão social pelos mais diversos meios, e, apesar de englobar causas físicas como seus efeitos,
ganha sentido profundo ao estar inserida numa rede complexa de relações sociais, na qual a
comunidade integrada não é só composta por vivos, mas também pelas mais diversas divindades
e os mortos. O ato da magia em si registra o desejo mais profundo de alguém, sua intenção real
e objetivo perene (COLLINS, 2009, p.23-100).
Fritz Graf nos traz a definição de Apuleio, afirmando que a base da magia é o discurso
mágico entre um humano e os seres que lhe são superiores, os deuses imortais, e sua forma de
agir se caracteriza pelos feitiços. Portanto, o mago seria aquele com capacidade de se comunicar
com a comunidade invisível que divide o mundo consigo, e essa definição, para ele, reflete o
pensamento helênico da época: “a magia tem sua fundação na possibilidade de contato entre
humanos e seres super-humanos, e seu principal veículo é o discurso, a poderosa palavra - e
não o ritual, o poderoso ato -” (GRAF, 2002 p. 94).
Dessa forma, a comunicação entre os vivos e os deuses tem como aquele que reza,
aquele que fala, aquele que pede, no papel de seu principal agente para que haja a comunhão
entre os deuses e os homens (GARF, 2002, p. 94). E esse contato e cuidado devido com os
deuses, é também parte imprescindível para que a religião grega funcione, de forma que separar
o que é puramente magia (em uma visão permeada por conceitos do século XIX) e o que é
puramente religião não se torna possível na prática religiosa helênica, uma vez que não há
separação ou corte nítido entre elas.
Já Christopher Faraone (2001, p.16), de quem nos aproximamos, define magia como a
utilização de ferramentas/objetos e rituais práticos pelos antigos gregos em seu dia-a-dia, com
o objetivo de controlar ou influenciar de forma sobrenatural as forças da natureza, os animais
ou outros seres humanos. Além disso, afirma que esse tipo de prática era tradicionalmente
comum aos gregos, de forma que:

(...) quando Hera usa um cinto mágico para ajudá-la a seduzir Zeus, ou quando Dejanira
esfrega uma poção mágica na camisa de seu marido para torna-lo mais afável, essas
atividades não se destacariam para uma audiência grega (...). Em ambos os caos, os poetas
estão simplesmente colocando ferramentas práticas (amuletos mágicos e unguentos) nas
mãos de personagens literários (normalmente deuses ou heróis), da mesma maneira que
os vestem em roupas típicas do período em que escrevem ou os armam com armas
familiares às dos humanos (FARAONE, 2001, p. 17).

Os gregos percebiam a magia a sua volta, acreditavam nela e temiam a eficácia prática
dos feitiços, poções, amarrações e quaisquer outras formas de manipulação das forças
sobrenaturais. Ademais, contrapondo-se a teóricos como Frazer, Faraone traz um ponto
importante para que compreendamos o porquê de não fazer sentido separar religião e magia:

58
partindo da premissa de que os gregos eram politeístas amplamente tolerantes, podemos dizer
que eles possuíam um senso de ortodoxia religiosa bem flexível, em suma, artificial, de forma
que era completamente possível venerar divindades diversas e praticar rituais variados
(FARAONE, 2001, p. 17). As reflexões de Faraone são extremamente satisfatórias para nossa
investigação da magia, uma vez que ele opta por observar a magia dentro de seu contexto de
atuação, buscando não adicionar significados e fazer distinções “alienígenas”, que
simplesmente não existiam na antiguidade.
Assim, nossa compreensão de magia se aproxima das considerações de Christopher
Faraone, Robert Fowler, Derek Collins e Maria Regina Candido (2008, p. 48), pesquisadores
que propõem o estudo da magia como associada à religião, uma vez que ambas estão contidas
uma na outra, e tendo em mente que os gregos não definiram claramente o conceito de magia,
muito menos o opuseram à sua religião (FOWLER, 1995, p. 1-22). Quanto às práticas mágicas,
devemos frisar que o que difere os rituais considerados cívicos pelos pesquisadores e os rituais
classificados como mágicos, é muito mais uma questão de seu contexto social do que dos atos
que os compõem (FOWLER, 1995, p. 2; GARF, 1991, p. 196).
Além disso, não consideramos a magia uma forma negativa de utilização da religião -
embora, como veremos mais adiante, haviam críticos da magia que consideravam algumas
práticas nocivas para a vida em sociedade -, uma vez que as trocas culturais do Mediterrâneo,
aliadas à tolerância explicitada mais acima, proporcionaram um ambiente fértil para a
criação/absorção e o desenvolvimento de diversas práticas de culto diferentes das oficialmente
sancionadas.
Com o objetivo de entender como a magia e seus praticantes eram vistos, ressaltamos
que as práticas rituais na Antiguidade poderiam não receber denominações explicitas, ou seus
nomes poderiam ser alternados por conveniência (PHILLIPS, 1986 e 1991). Dessa maneira,
nem sempre encontramos respostas satisfatórias em investigações acerca das práticas da magia,
e nesse sentido a metodologia comparativa se torna muito útil: lembrando-nos das
particularidades que definem as interpretações da magia em determinado contexto cultural, ela
nos auxilia a entender o que deve ser procurado para construir uma nova interpretação em outro
contexto (COLLINS, 2009, p. 50). Aliado a isso, destacamos o fato de que a maioria dos
usuários de magia grega poderia não refletir demasiado acerca de como ela funcionava, mas
concordavam que era real.
Outro grande dilema encontrado pelos pesquisadores de magia grega, principalmente ao
que se refere às suas práticas anteriores ao V século a.C. diz respeito ao fato de que o termo
grego mageia, do qual deriva-se a palavra magia, era inexistente. Entretanto, apesar da palavra
59
ter surgido no período Clássico, indícios de práticas, feitiços, poções e substâncias consideradas
mágicas, ademais a indivíduos percebidos como magos/feiticeiros, já existiam no imaginário
grego muito antes do termo mageia se popularizar (COLLINS, 2009, p. 51).
Na pesquisa, fixamos os épicos de Homero30 por volta do VIII século a.C., sendo assim,
trabalhamos com o pressuposto de que suas histórias e as situações explicitadas nas mesmas já
eram cantadas em público ao menos três séculos antes da palavra mageia ser consolidada. Ao
cantar os versos do Canto XI (vv. 23-37) da Odisseia, o aedo ou rapsodo repetiam as seguintes
palavras:

Lá, os animais do sacrifício, Perimedes e Euríloco


Seguraram; e eu puxei a afiada espada da coxa,
Cavei um fosso, cerca de um cúbito de altura e largura,
E em sua borda verti libação a todos os mortos:
Primeiro, misto com mel, depois com vinho doce
E a terça com água; em cima aspergi branca cevada.
Com zelo supliquei às tíbias cabeças dos mortos
Que, uma vez em Ítaca, iria vaquilhona, a melhor,
Sacrificar no palácio e encher o fogo de valores;
A Tirésias, só para ele, imolaria, à parte, ovelha
Toda negra, a que sobressaísse entre nossos rebanhos.
Após eles, ao grupo de mortos, com voto e súplica
Suplicar, peguei as bestas e cortei seu pescoço
Na direção do fosso, e fluía sangue escuro. Elas se reuniram,
As almas de finados defuntos subindo do Érebo;31

Nessa passagem, encontramos Odisseu na Casa de Hades, buscando evocar os espíritos


dos heróis falecidos, de suas mulheres e de suas mães. Para tanto, ele cava um grande buraco e
o preenche com mel, vinho, água e cevada, sacrificando ovelhas em seguida, deixando que seu
sangue escorresse para dentro do mesmo. Ao ritual sacrificial, somam-se as preces e promessas
feitas pelo herói, e então os mortos aproximam-se da cavidade para beber a mistura de sangue
ofertada, de forma se comunicar com ele.
O termo grego que caracteriza as atitudes que Odisseu realiza no Canto XI de Homero
é a psychagogia32, a “invocação das almas dos mortos” (BAILLY, s.v.) - porém, este termo é

30
Ver capítulo 1.
31
A não ser quando explicitada outra autoria, todas as traduções da Odisseia são de Trajano Vieira.
32
O ritual para a invocação das almas dos mortos variava de lugar para lugar, mas a chamada “incubação” tinha
um papel fundamental e comum entre eles. A forma mais antiga de “incubação” era o sono (ou o transe) na tumba
de um antepassado. Aqui era necessário estar completamente esticado, tocando a terra o máximo possível. Formas
posteriores envolviam o sono ou o transe em cavernas, debaixo de arvores ou nos triodoi, pontos em que as três
estradas se encontravam (LUCK, 2006, p. 12). Na Grécia antiga, as encruzilhadas eram compostas pelo encontro
das três estradas, que também eram locais de culto da divindade Hécate, associada à magia (RONAN, 1992, p. 5).
Daniel Ogden (2001, p. 110) e Sarah Johnston (2008b, p. 14) frisam a relação entre a psychagogia e a goeteia
(feitiçaria). A palavra goeteia deriva do verbo goos (“cantar um lamento” ou “canção de lamentação”). Assim,
evidenciam a ligação entre a magia e os mortos, pois goeteia está etimologicamente ligada ao ato de se comunicar
com os mortos, tendo em vista que deriva do termo utilizado para descrever o ato de chorar os mortos/lamentar a
60
inexistente no período em que sua história foi consolidada em forma épica, surgindo apenas no
período Clássico (JOHNSTON, 1999, p. 85), onde aqueles que garantiam conhecer os meios
para invocar e estabelecer comunicação com os espíritos dos mortos eram magos/feiticeiros que
trabalhavam com a necromancia. Ao trazermos essa passagem como exemplo, evidenciamos a
presença de rituais mágicos mesmo antes da existência de uma palavra que sintetizasse ou
classificasse os mesmos, de forma que, ao serem entoados no século V, os helenos que
participavam da audiência reconheceriam naqueles versos o ritual necromântico de Odisseu e
as conotações mágicas imbuídas no mesmo, além apresentar Circe como primeira feiticeira
(ODGEN, 2001, p. 95). Além disso, torna-se importante ressaltar que, de acordo com Johnston
(2008b, p. 14), a essência da magia grega antiga envolvia a comunicação com os mortos.
Outro exemplo, que será analisado adiante é o encontro de Odisseu com a feiticeira
Circe: denominada polyphármakos (hábil em muitas drogas/remédios), a deusa protagoniza um
embate com o herói de Ítaca, de forma que, ao tentar enfeitiça-lo com uma poção (onde derrama
seu phármakon) e transformá-lo em suíno, é derrotada com a ajuda do móly, o phármakon
portado por Odisseu, presente do deus Hermes, que possuía o poder de neutralizar a magia da
deusa. Aqui novamente temos uma palavra (phármakon) que existe antes do termo mageia, e
também se refere a práticas de conotações mágicas: “de fato, os phármaka ‘drogas/remédios’,
são uma das características principais da prática de magia ateniense no século V a.C. e, por
volta do século IV a.C., Circe e outras figuras literárias, como Medeia, tornaram-se sinônimo
de prática de magia” (COLLINS, 2009, p. 54). A magia de Circe, Hermes e aquela utilizada por
Odisseu são, para a mentalidade do século V a.C., análogas às dos praticantes do período, que
alegavam poder curar ou infligir os mais diversos males através da manipulação de ervas
específicas, além de afirmarem saber contatar os mortos.
O terceiro exemplo que trazemos para corroborar a nossa abordagem sobre a magia se
encontra no Hino Homérico II a Deméter, datado entre os séculos VII e VI a.C. Narrando o
mito da deusa, a passagem por nós destacada se refere ao momento em que, desolada com o
rapto de sua filha, Deméter vaga pela terra disfarçada de anciã, e é recebida pelo rei de Elêusis
para servir em seu oîkos como nutriz de seu filho recém-nascido, Demofonte. Ao anunciar o
zelo que terá para com a tarefa lhe reservada, a deusa das belas coroas (Hino Homérico a
Deméter, v. 225) faz questão de mencionar seus conhecimentos mágicos, que a qualificam para
o serviço de ser ama de um príncipe:

morte de alguém em um funeral. Assim, podemos perceber como esta cena descrita por Homero se caracteriza
como mágica.
61
Eu cuidarei dele e não espero que um feitiço ou que o Corta
Por Baixo faça mal a ele pela negligência de sua ama. Pois eu conheço
Um encanto mais cortante que o Corta Madeira; eu conheço uma
Proteção mais poderosa contra a feitiçaria nociva (v. 227-230)

Essa tradução33 de Foley (1994) nos traz os termos peculiares do hino que foram
utilizados por seu autor para se referir à magia. O primeiro, epelusie, traduzido como feitiço,
aparece apenas duas vezes: nesse hino e no Hino Homérico a Hermes (v. 37). Sua tradução
literal é “vir sobre” e sua relação com as práticas mágicas se dá pelos termos que o seguem, e
não por ter se tornado um termo comum em referência à magia na posteridade. São eles o “Corta
por Baixo” e “Corta Madeira”, que segundo Richardson (1974, p. 228-229) e Collins (2009, p.
56-57) tem intrigado os pesquisadores há mais de um século. Existem duas interpretações
propostas para os termos, e ambas fazem referência à magia e/ou seus praticantes.
A primeira delas propõe que ambos os termos se referem a seres humanos que poderiam
buscar prejudicar o recém-nascido através de drogas/remédios ou ervas. Essa hipótese é baseada
em um vocabulário posterior, pois no período Clássico a palavra rhizotomoi, traduzida
literalmente como “cortadores de raiz” ou “aqueles que colhem plantas medicinais” (BAILLY,
s.v.) era utilizada para denominar os homens e mulheres que cortavam raízes e estudavam as
ervas para manipulá-las sob a forma de poções, além de servir como um sinônimo para
mágicas/feiticeiras. Supondo uma comparação implícita da criança com um vegetal, pode-se
pensar em uma erva, um veneno, ou mesmo um feitiço “tala-brotos”, capaz de “cortar” o viço
de um rebento, de um menino. A kourotrophós que fala nesses versos é a deusa também
invocada como Khloê, a Senhora da erva tenra, dos brotos, neste hino, no verso 187, compara-
se a criança a um broto, um neófito. Dessa forma, o filho de Metanira, tornado pupilo de
Démeter, faz a deusa reconhecer-se como um antídoto ao veneno, aos encantos - ékhma – uma
proteção mágica (HUMBERT, 1967, p.49).
A segunda, mais recente, aponta que os dois termos possuem paralelos em textos de
magia posteriores, onde são apresentados como forças maléficas e sobrenaturais que agem
sobre os bebês em processo de dentição, fazendo com que suas gengivas se cortem (FARAONE,
2001). Quando Deméter anuncia aos mortais possuir o conhecimento específico para lidar com
os males sobrenaturais que possam recair sobre o bebê, muito pode ser compreendido: em

33
Já a tradução de Jair Gramacho faz uma referência mais direta às práticas mágicas, ao substituir os termos “Corta
por Baixo” e “Corta Madeira” por magias e poções. Segue a passagem: “Por seu turno, falou-lhe Deméter das
belas coroas:/‘Eu também te saúdo, mulher, propiciem-te os deuses./De teu filho cuidado terei como bem tu me
ordenas./Criá-lo ei e jamais por descuido de sua nutriz/por feitiço afetado será, nem poções nem magias,/porque
sei de um antídoto forte de hilótomo feito,/e também de um remédio que anula os mais vis sortilégios.’ ” (vv. 225-
227).
62
primeiro lugar, que os mortais do relato mítico sabiam da existência desse mal e não se
surpreenderiam que uma candidata à nutriz de um príncipe possuísse meios de combatê-lo. Em
segundo, que o autor do poema conhecia tais males e encantos, e os colocou na fala da deusa.
E, em terceiro, que aqueles que escutaram o hino também estavam cientes da existência tanto
dos “Corta por Baixo” e “Corta Madeira”, quanto de encantamentos que os venceriam. Uma
aproximação ao primeiro termo, utilizada por Collins (2009) Dillon (2002), Humbert (1967) e
que também consideramos mais apropriado para a semântica do hino, é “Corta pela Raiz”.
Relacionando as poesias com aqueles que as ouviam do período Arcaico ao Clássico,
podemos dizer que a magia praticada pelos deuses (Circe, Hermes e Deméter) e a pelos homens
(Odisseu), é essencialmente a mesma. Esse tipo de afirmação pode causar discordância
(EDELSTEIN, 1967, p. 222) entre os pesquisadores de magia, principalmente se partirem da
premissa de que o mundo divino deve ser separado do mundo humano/mortal, uma vez que os
próprios gregos reconheciam a diferenciação e distância entre humanos e as potências divinas34.
Contudo, o uso do mesmo tipo de magia (seja ela de invocação dos mortos ou o uso de
drogas mágicas) não seria um fator que igualaria homens e deuses: na verdade, seria uma
representação literária dos deuses que legitimaria o uso da magia. Sabemos que os poemas
(sejam eles épicos ou hinos) não são o mito em si, mas uma interpretação que, como visto no
Capítulo 1, pode conter informações-chave sobre quem o cantava e a audiência que o escutava.
Dessa forma, o mito e suas interpretações se encarregam de mostrar as divindades praticando
magia, de forma a funcionar como uma espécie de modelo que legitima a prática, isto é, a
tornando socialmente aceita. Derek Collins (2009, p. 56) afirma ser algo frequente na mitologia
grega que os deuses – masculinos ou femininos- sejam os primeiros a praticar qualquer tipo de
tradição, ratificando-as.
Podemos perceber a interação divina com os humanos quando o deus Hermes não
apenas oferece a Odisseu o phármakon que o salvará da magia de Circe, mas o ensina como
usá-lo e lhe diz qual o comportamento a ser adotado por ele ao interagir com a deusa (Odisseia
X, vv. 397-301). Isto, sob a ótica da religião e da mitologia gregas, é usual: o âmbito mortal e
o divino não estão separados no pensamento heleno, pois não são domínios opostos; eles estão
ligados, pois os deuses são do mundo e o mundo é dos deuses (VERNANT, 2006, p. 5). A
diferença encontra-se, reforçamos, na própria constituição dos deuses: eles não compartilham

34
Os sacrifícios aos deuses, como ressalta Vernant (2006, p. 63), são um forte exemplo ritual que frisa a separação
entre deuses e homens. Enquanto os homens são “uma criatura cujas forças pouco a pouco se desgastam e se
esgotam, uma criatura condenada à fadiga, ao envelhecimento e à morte”, os deuses “são os Imortais, sempre
vivos, eternamente jovens, cujo ser não comporta nada de perecível, e que não tem nenhum contato com o domínio
do corruptível”.
63
de males humanos como fadiga, fraqueza, doença ou a morte. Imortais e poderosos, os deuses
são Potências, não pessoas (VERNANT, 2011, p.32-33).
Vimos no canto XI da Odisseia, o herói conjurar as almas dos mortos, o que é
essencialmente um ritual mágico, e suas instruções vieram de Circe, que é descrita como uma
feiticeira. Mas não há nenhuma indicação, no texto, de que o ritual praticado por Odisseu seja
algo subversivo, ilegal ou mesmo tabu35. Inclusive, o fato de que ele, Odisseu, herói
reconhecido por toda a Hélade, é o responsável por performar tal ritual, o torna legítimo
(LUCK, 2006, p. 22). No canto X, Circe e Hermes são divindades que entendem e manipulam
o phármakon de acordo com suas vontades interiores, não havendo qualquer tipo de crítica ou
censura pela parte do poeta narrador. No Hino Homérico a Deméter, a deusa menciona sua
sabedoria em contrafeitiços para uma mortal, como forma de enaltecer sua presença como
protetora do bebê.
Através dos três exemplos trazidos, concordamos que as evidências são parcas, mas
podemos dizer que elas sugerem que, do ponto de vista dos poetas gregos desde o período
Arcaico, as sociedades para as quais essas poesias eram endereçadas pareciam aceitar as
práticas mágicas, lado a lado com os rituais religiosos, sem quaisquer tipos de discriminação,
recriminação ou restrição (LUCK, 2006, p. 22), não importando se elas eram praticadas pelos
deuses ou pelos homens.
Em se tratando de magia, precisamos estar atentos a dois aspectos: como funciona e
quem/o que a torna eficaz. Baseando-se em forças sobrenaturais e invisíveis, que dividem o
mundo com aqueles que a praticam, compreender a magia requer a compreensão dessas forças.
De acordo com Fowler e Collins, cada cultura define seu próprio conceito de magia que, como
a religião específica de cada sociedade, possui suas próprias qualidades: o que é considerado
mágico para uma sociedade pode não ser em outra, e vice-versa (COLLINS, 2009, p. 48;
FOWLER, 1995, p.21).
No mundo grego, a magia era entendida e se manifestava através das práticas mágicas,
que se caracterizavam por feitiços e encantamentos a partir de palavras, filtros e poções de
amor, estatuetas humanas/eróticas de cera, argila ou outros materiais, lâminas de imprecação e
drogas/venenos – muitas vezes envolvendo aspectos da religião cívica, tais como os seus
deuses, seus rituais, suas datas comemorativas e suas oferendas votivas. E era principalmente
uma maneira de lidar com todos os tipos de problemas da vida corriqueira expressando os
conflitos e as tensões que se desenrolam nas relações sociais.

35
Como disse Sara Johnston (2008, p. 148): “Antes da Cristandade, os antigos poderiam temer feiticeiros porque
eram poderosos, mas não porque eram imorais”.
64
Na Atenas clássica, principalmente no V século a.C., vemos o surgimento ou
consolidação de vários termos que especificam os mais diversos tipos de magia, além de um
aumento da prática mágica através de placas de imprecação. Considerando a proposta de
Candido (2008, p. 50), localizamos na guerra do Peloponeso as condições de insegurança que
podem ter contribuído para esse crescimento das práticas mágicas já existentes em períodos
anteriores. Este foi um período extremamente turbulento para os áticos, causada em especial
pelas ambições expansionistas de Atenas, e o embate entre espartanos e atenienses não foi
apenas uma disputa de poderio bélico, mas também uma disputa que colocou em oposição dois
discursos: o democrático versus o oligárquico.
Ademais à morte de cidadãos em guerra, o conflito bélico coincidiu com uma epidemia
de febre tifoide que, de acordo com Tucídides (II. 52-53) assolou Atenas, causando a morte de
um terço de sua população. A estratégia elaborada por Péricles para o combate consistia em
mantê-la encerrada na ásty, o que ocasionou falta de alimentos, de forma que a fome, ademais
à doença, se espalhou. Esses dois eventos confluentes expuseram toda uma sociedade à morte
de maneiras extremas. Além da maior proximidade com o mundo dos mortos, Candido (2010a,
p. 51) também aponta como um dos fatores que levavam ao sentimento de insegurança a
dificuldade em realizar negócios lucrativos durante o período da guerra, de forma que os
habitantes foram levados a interagir com novas formas de culto, consolidando uma progressão
vista desde as guerras Greco-pérsicas do início do V século a.C., quando tornam-se mais
interessados nos cultos persas e suas afiliações mágicas (COLLINS, 2009, p. 93).
Dessa forma, Atenas passou por mudanças substanciais, tendo criado um novo contexto
que deu margem a desvios e inovações nas relações sociais, sejam com outros habitantes da
pólis, sejam com os deuses olimpianos ou com novas divindades trazidas por estrangeiros ao
espaço urbano de Atenas (CANDIDO, 2004, p. 101). Assim, além das práticas mágicas do uso
do phármakon, dos goeteíes e filtra, a prática mágica dos katádesmoi também tornou-se
comum. Com o objetivo de prejudicar outrem, um inimigo ou adversário, dos mais diversos
âmbitos: esportivo, judicial, amoroso, comercial, etc. Sendo uma prática individual que não
previa o bem da comunidade (CANDIDO, 2002, p. 23), as placas de imprecação também se
aproximavam da religião políade por muitas vezes conter fórmulas que invocavam os deuses
ctônicos36 para ajudar nos propósitos mágicos de fazer mal a alguém. A magia grega, assim,
expressa a tensão social pelos meios mais diversos, englobando causas físicas como seus

36
Tais divindades se referem à esfera mortuária e ao lugar que os mortos ocupavam socialmente. L. Preller (1985,
p. 183) nos indica que os deuses ctônicos são muitas vezes considerados como a fonte da maldade que os homens
procuram evitar e que seu caráter benfazejo é, muitas vezes, esquecido sobre os temores de seus muitos castigos.
65
efeitos, e ganhando um sentido mais profundo por estar inserida numa complexa rede de
relações sociais que incluem também a comunidade dos mortos, espíritos e deuses. “Enquanto
as intenções dos vivos puderem convergir com as do divino, do demoníaco e dos mortos, a
mágica permanece como um meio vital para a realização de objetivos práticos” (COLLINS,
2009, p. 100). Além disso, como Johnston (2008b, p. 14) frisou: cada pessoa que vivia na
Hélade antiga tinha como preocupação diária manter boas relações não só com outros humanos,
mas também com os mortos; garantindo a boa ordenação do mundo.
Nesse contexto, identificamos os praticantes de magia grega no período Clássico como
divididos nos seguintes grupos: os magos (mágoi), purificadores (kathartaí), sacerdotes
mendicantes (agurtai), adivinhos (mánteis) e charlatães (alazones). Esses grupos nos foram
apontados por Platão e pelos Hipocráticos em seus tratados que criticam extensivamente os
indivíduos que alegavam saber manipular o divino (ODGEN, 2001, p. 106). Apesar disso,
ambos autores não deixaram claramente para nós se essa denominação era exclusiva, uma vez
que não são poucos os casos em que um adivinho performa purificação, ou que um mago invoca
os mortos e faz previsões a partir do seu encontro com os mesmos (JOHNSTON, 2008, p. 144-
145).
A esse problema, Collins (2009, p. 81) propõe uma solução clara: todos esses grupos
podem ser classificados como empreendedores religiosos, que estendiam seus serviços mágicos
às mais diversas classes sociais que compunham a pólis, especialmente para resolver
dificuldades que a participação regular na religião cívica e o auxílio medicinal não haviam sido
capazes. Além dele, Matthew Dickie (2001, p. 60-63) e S. Johnston (2008, p. 178-179)
demonstraram que embora existam nomes diferentes para as diversas categorias de itinerantes
que ofereciam seus serviços mágicos, as fontes possuem uma certa uniformidade geral quanto
as suas características: são especialistas religiosos autoproclamados, autônomos, itinerantes e
socialmente inferiores. Apesar desses pontos congruentes, cada um desses grupos possuía
especificidades, como veremos adiante.
Os alazones, eram todos os curandeiros pretenciosos, mentirosos, que não ofereciam
nada que fosse de fato ligado à magia, eram apenas enganadores profissionais. Já os argutai
frequentemente eram originários da Ásia Menor e alguns alegavam dispor de dons proféticos.
Os devotos de Reia/Cibele, a mãe dos olimpianos, também compunham um grupo diferenciado
de argutai, os mêtragurtai ou mênagurtai, que tiveram sua origem na Frígia, sacerdotes
mendicantes que deslocavam-se em grupos grandes e possuíam a fama de venerar a deusa de
forma barulhenta, através de delírios arrebatadores (DICKIE, 2001, p. 65; ODGEN, 2001, p.
107; COLLINS, 2009, p. 82).
66
Os manteis eram um grupo heterogêneo, especificamente em se tratando do Período
Clássico, havendo adivinhos associados a templos e exércitos que formavam uma espécie de
“classe profissional” (COLLINS, 2009, p. 82), que, diferentemente de médicos e mágicos,
estava melhor incorporado ao mito grego (JOHNSTON, 2008, p. 113). Heródoto (IX. 33-36)
menciona Tisâmeno e Hegesístrato, de Élis, como famosos adivinhos militares, cobiçados
inclusive pelos espartanos e Collins (2009, p. 82) aponta a Pítia de Delfos como exemplo de
mantis consagrada e de boa reputação, cujo ofício vitalício no templo era herdado por
merecimento37. Ao contrário dos manteis que pertenciam a uma classe profissional, os
adivinhos itinerantes ofertavam seus serviços conforme vagavam de cidade em cidade e há
indicações literárias38 de que eles eram desonestos e tapeavam os mais inocentes (COLLINS,
2009, p. 83). Porém, Platão (República, II 364e-365a) nos indica que mesmo os manteis
itinerantes possuíam um nível básico de instrução formal, de forma que sabiam ler e utilizavam
em seus serviços poesias como os hinos órficos. Segundo Dickie (2001, 72-73), isso pode nos
indicar que mesmo os manteis itinerantes – através de sua habilidade e acesso a poesias
oraculares- possuíam uma vantagem e exerciam fascínio sobre a população iletrada de Atenas.
Os kathartai, como os manteis, também poderiam ser diferenciados entre aqueles que
gozavam de prestígio social e os que eram considerados inferiores. A necessidade de
purificação era extremamente comum em Atenas, e a literatura nos aponta exemplos desde a
época arcaica, principalmente Epimênides39, famoso purificador de Creta que gozava de status
e prestígio. Diz-se que em meados do século VII a.C., o ateniense Cílon tomou a Acrópolis e,
com o apoio de seus amigos, tinha como objetivo reinar de forma despótica. Os cidadãos não
aceitaram pacificamente o golpe de estado e fizeram uso da força para derrotar Cílon, que
escapou, mas cujos amigos foram mortos sobre um altar. Os templos e altares eram lugares
sagrados e que não poderiam ser violados com assassinatos, principalmente de suplicantes que
os procuravam para refúgio, de forma que a pólis ficou maculada, suja, poluída e amaldiçoada
pelo derramamento de sangue (DILLERY, 2005, p. 181, JOHNSTON, 2008, p. 178-179),
necessitando das habilidades de Epimênides que além de purificador, também era adivinho

37
Dillery (2005, p. 171-172) apresenta que a principal diferença entre o adivinho itinerante (independente) e outras
figuras religiosas (como a pítia de Delfos) era que a competência do primeiro estava mais ligada às suas habilidades
(como exemplo, saber ler e interpretar as entranhas de animais sacrificados) do que à inspiração divina. Um dos
principais pontos que diferenciam os manteis itinerantes dos oráculos (que estavam ligados aos templos) era a
dicotomia dependência x independência. Os primeiros ofereciam seus serviços em troca de dinheiro para quem
quisesse contratá-los, não estando subjugados ao serviço ou culto de uma única divindade. Os demais exerciam
uma espécie de sacerdócio: era seu dever comunicar a vontade divina.
38
Deífono da Apolônia, por exemplo, foi descrito por Heródoto como um adivinho que mentia acerca de sua
linhagem e conseguiu diversos trabalhos pela Hélade devido às falsas alegações (HERÓDOTO, IX, vv. 93-94).
39
FGrH, 457
67
(ARISTÓTELES, Retórica, 1418a 23-26), para purificar toda a cidade40. O ato da purificação,
segundo Vegetti, consiste em trazer o indivíduo sujo e impuro, contaminado pelo mìasma41, de
volta à pureza, à limpeza, à civilização. O indivíduo sai do mìasma através da kàtharsis42.
Já na Atenas clássica, um exemplo mensal acontecia na lua nova, as donas de casa
atenienses costumavam varrer o chão de suas casas e levar o que fosse varrido até as
encruzilhadas, onde elas deveriam depositar o conteúdo e retornar para o oîkos sem olhar para
trás (PATIL, 1974, p. 39). O que elas depositavam era conhecido como kathármata, que
significa lixo, e era composto não só por dejetos do lar, mas também pelos restos dos sacrifícios
que não eram utilizados nos rituais, como exemplo, o sangue do animal sacrificado e água que
tivessem sobrado. Os helenos acreditavam que todos os excrementos e restos varridos de sua
casa eram carregados de magia e perigo e, portanto, eram depositados nas encruzilhadas
(PATIL, 1974, p. 39 e 59). As encruzilhadas eram locais de transição, de caos, sagrados à deusa
Hécate43, e detinham, por si mesmas, magia e perigo; dessa forma, o ato de depositar os
kathármata nesses locais tinham por objetivo expurgar os males e purificar o oîkos com a ajuda
da deusa (JOHNSTON, 1991, p. 221).
Além dos kathármata, Smith (1992, p. 59) nos apresenta katharsia, outras sobras que
também eram levadas às encruzilhadas no mesmo período. O katharsia era especificamente
composto do que sobrava do ritual de purificação à Hécate, e este era realizado dentro do oîkos
ateniense: além de sangue e água, incluía também ovos e o corpo do cachorro usado no
sacrifício à deusa. O sacrifício de cães à essa divindade era bastante comum na Atenas clássica
(MARQUARDT, 1981, p. 251; DILLON, 2002, p. 140), e em rituais domésticos os animais
eram ofertados à deusa após serem tocados por todos os membros da família, com o objetivo
de purificá-los. Além desses artigos, era comum defumar a casa com a queima de incensos e
levar o incensário até as encruzilhadas, descartando-o ali.

40
“Epimênides era conhecido por ter purificado diversas cidades-Estado e diziam que ele poderia, por meio de
ritos, purificar as pessoas de qualquer dano, fosse ele físico ou mental, e que poderia até determinar as causas do
problema” (COLLINS, 2009, p. 84).
41
Mìasma: literalmente; “contaminação” (BAILLY, s.v.). O indivíduo contaminado por quebrar um juramento aos
deuses, derramar sangue humano ou não respeitar as regras do rito (e nesse momento encaixa-se o manuseio errado
das oferendas, encostar nela ou ter qualquer outra conduta que vá contra o explicitado no ritual). O indivíduo
contaminado está preenchido de uma culpa que ultrapassa os limites da ordem jurídica e moral. Não pode se
aproximar do sagrado nas práticas rituais e deve ser banido de sua comunidade (VEGETTI, 1994, p. 236).
42
kàtharsis: “purificação”, “purgação” (BAILLY, s.v.), que visa reconduzir o indivíduo impuro ao nível de pureza
e ao convívio em sociedade (VEGETTI, 1994, p. 236). Como vimos no capítulo anterior, a ida ao teatro também
era realizada com objetivos purificadores.
43
No Panteão grego, Hécate era descendente dos Titãs e deusa nutriz da juventude, na época mais antiga. Aos
poucos o mito a considerou ctônica, sendo a que preside à magia e aos encantamentos. Nas tradições mais tardias
fizeram-na mãe de Circe e tia de Medeia. (BRANDÃO, 1991, p. 273). É, sobre todas as outras divindades que
praticam magia, a mais venerada (LOWE, 1992, p. 11).
68
Todos esses restos eram, então, sagrados à Hécate e depositados nos hekataia44. Aquele
que os depositava não olhava para trás, com medo, pois era dito que a divindade conduziria à
loucura aquele que perturbasse seus locais sacralizados e aquilo que lhe era ofertado. Tal era o
receio, que caso alguém pisasse acidentalmente em algum dos dejetos, deveria procurar algum
sacerdote ou sacerdotisa para ser purificado e aplacar a fúria da divindade (SMITH, 1992, p.
60), recomeçando o ciclo e reafirmando a necessidade dos serviços dos kathartai na pólis. Essas
oferendas nas encruzilhadas eram denominadas Ceias de Hécate e, segundo Johnston (2008b,
p. 16), elas também estavam ligadas à necromancia, uma vez que seu depósito também tinha
como objetivo aplacar os espíritos dos mortos.
Finalmente, torna-se necessário apresentar o grupo dos magoi, termo do qual deriva a
palavra magus, em latim, e o termo magia. No singular magos, pode significar uma das tribos
de Media45, ou um sacerdote da mesma que era capaz de interpretar sonhos: originalmente, os
magoi eram os servos diretos do rei persa, sacerdotes altamente respeitados por seus
conhecimentos e influência religiosa no Império Persa. Entre os gregos adquiriu o significado
pejorativo de feiticeiro charlatão, mas não se referindo à classe de profissionais persas
mencionado anteriormente, uma vez que os magoi persas são comummente representados de
maneira positiva46 pelos helenos, sendo respeitados como sacerdotes religiosos que
manipulavam a magia. Percebemos na tragédia47 do século V os casos em que o significado de
feiticeiro charlatão qualifica o mago não-persa, e essa acepção do termo não é similar às
atividades dos os magoi originais, os “sacerdotes persas” (BAILLY, s.v.), que faziam
sacrifícios, “interpretavam sonhos em meio à tribo de Médes” (BAILLY, s.v.) e eclipses,
cantavam e declamavam teogonias, adoravam o fogo e sol, além de realizar diversos rituais
sacralizados (COLLINS, 2009, p. 90).
Quanto às críticas literárias feitas aos praticantes de magia, devemos destacar dois
autores: o hipocrático que escreveu Sobre a Doença Sagrada e Platão, que fez menção à magia
em diversas obras. Em Sobre a Doença Sagrada (HIPÓCRATES, I), um tratado hipocrático
direcionado aos curandeiros que não faziam parte da escola hipocrática de Medicina, o(s)

44
Representação iconográfica de Hécate do V século a.C., que consistia de três mulheres, três corpos e três cabeças,
carregando tochas eleusinas, e comumente se encontrava nas encruzilhadas e na frente das casas de Atenas
(MARQUADART, 1982, p. 253). Ali eram depositadas oferendas e as figuras representavam os três planos de
existência: telúrico, infernal e celeste (BRANDÃO, 1991, P. 486).
45
Região nordeste do Irã, parte do Império Persa.
46
Collins (2009, p. 90) aponta que os magoi persas eram considerados legítimos, e não charlatães, pela
documentação antiga. Segundo o historiador, há apenas três exemplos em Heródoto e Plutarco nos quais os magoi
demonstram-se agindo de maneiras muito diferente dos gregos, sendo um tanto nebuloso definir o sentido dos
mesmos. Para saber mais: HERÓDOTO, VII, 113-114 e PLUTARCO, Moralia, XIII, 171d.
47
SÓFOCLES, Édipo Rei, v. 382.
69
autor(es) atacam as visões e métodos daqueles que tratavam da epilepsia como uma doença
diferenciada das demais, e cujas abordagens misturavam noções básicas de cura com a ideia de
que esta doença possuía origens divinas. Mesmo sendo um dos mais importantes tratados que
contém uma crítica à magia, é preciso frisar, como já foi amplamente debatido por outros
estudiosos, que o mesmo não causou nenhuma influência notável no comportamento de seus
contemporâneos (STRATTON, 2007; COLLINS, 2009, p. 60). De forma a defender seu ponto
de vista, de que a epilepsia possuía as mesmas causas que as outras doenças 48 e deveria ser
tratada como tal, o(s) autor(es) constroem sua argumentação sob a forma de crítica àqueles que
a tratavam como uma doença enviada pelos deuses e que demandava uma série de
rituais/purificações próprios para a cura. Importante também ressaltar que essa visão, criticada
pelo tratado, era amplamente aceita pelos gregos.
De todo modo, para o tratado hipocrático, aqueles supostos magos/bruxos que
encaravam a epilepsia como sagrada o faziam de forma maliciosa, pois os homens não são mais
poderosos que os desígnios divinos (COLLINS, 2009, p.61). Assim, caso a cura mágica
oferecida fosse incapaz eliminar a doença, esses curandeiros não possuiriam nenhuma culpa; se
o deus que mandou a doença não quisesse ser aplacado, não haveria mais nada a fazer, não
haveria cura possível, o que lhes deixava em uma posição bastante confortável.

(...) aqueles que pela primeira vez consagraram essa doença são as mesmas pessoas que
até hoje são chamadas de magos (magoi), purificadores (kathartai), sacerdotes
mendicantes (agurtai) e charlatães (alazones); os mesmos que fingem que são
particularmente piedosos e muito sábios. Dessa forma, esses indivíduos, ao esconder-se
atrás da divindade e ao expor isso como um pretexto para a sua impotência, fazem uso da
superstição e sua ignorância não é exposta; por isso eles chamam essa doença de
“sagrada”. Através de uma história plausível, eles fazem com que seu método de cura seja
seguro para eles mesmos, ao escolher palavras adequadas e prescrever purificações e
encantos (epõidai), ao aconselhar abstinência de banhos e de muitos alimentos não
adequados para os doentes. (Sobre a Doença Sagrada, II, vv.10-12).49

É interessante notar que nos dois fragmentos apresentados, o autor não está preocupado
em negar qualquer origem divina à epilepsia, mas sim em deixar esclarecido que ela não tem
uma origem mais divina do que as outras: todas elas, inseridas na visão de mundo do autor,
possuem origens tanto humanas quanto divinas, porque o divino não é separável da natureza e
é também responsável pelos fenômenos naturais. (COLLINS, 2009, p. 62). A crítica encontra-

48
“Essa suposta doença “sagrada” origina-se das mesmas causas que as outras, do que chega até nós e do que parte
de nós, do frio, do Sol e dos ventos incessantes que se alternam. Pois essas coisas são divinas, de modo que não é
necessário que alguém distinga essa doença, considerando-a mais divina do que as outras, mas todas são divinas e
todas são humanas. Cada uma tem uma natureza e uma força próprias e todas elas possuem tratamento e remédio.”
(Sobre a Doença Sagrada, XVIII, vv.1-2)
49
Traduzido do grego por W. H. Jones. Tradução nossa para o português.
70
se na declaração desses praticantes de magia, que diziam poder tratar a epilepsia graças a seus
conhecimentos mágico-religiosos.
Outro ponto criticado pelo autor é o fato de esses praticantes afirmarem “saber como
atrair a Lua e provocar um eclipse do Sol, tempestades e tempo bom, chuva e seca, deixar o
mar intransponível e a terra infértil, e todas as outras coisas desse tipo” (Sobre a Doença
Sagrada, 1, 29), o que não corresponde a sua alegação inicial de que a vontade dos deuses é
soberana no quesito de curar a epilepsia: afinal, se eles controlam o divino, deveriam também
ser capazes de controlar a doença. Para além das outras críticas feitas pelo tratado hipocrático 50,
consideramos importante destacar o fato de que o(s) autor(es) não coloca(m) a divindade/a
existência do sobrenatural em questão (Sobre a Doença Sagrada, I, 44-46). O que ele
principalmente questiona, do início ao fim de seu texto, são os poderes e a cura afirmados por
esses praticantes (COLLINS, 2009, p. 63).
Compartilhando dessa desconfiança das alegações dos praticantes de magia, temos os
tratados de Platão, no IV século a.C. Porém, assim como o autor do tratado hipocrático
analisado anteriormente, o filósofo não aborda claramente quais seriam os motivos pelos quais
os consumidores dos serviços de magia eram levados a acreditar que esses eram mais adequados
para resolução de seus problemas do que os cultos oficiais. Mais uma vez, nos trabalhos de
Platão, ele não se mostra preocupado em discutir a existência ou eficácia da magia, mas sim
questionar os indivíduos itinerantes que oferecem esse trabalho aos cidadãos ricos da pólis, uma
vez que, em sua visão, esses serviços de magia não têm nada a agregar ao interesse público,
servindo apenas aos desejos individuais:

Adivinhos e charlatães põe-se à porta dos ricos e os convencem de que alcançaram os


deuses, por meio de sacrifícios e encantamentos, o poder de delir com folguedos e festas
as faltas que eles ou seus antepassados tivessem cometido. No caso de querer alguém
causar dano a seus desafetos, mediante remuneração insignificante, será fácil prejudicar
indiferentemente o bom e o mau; com encantos e fórmulas mágicas conseguem, segundo
afirmam, convencer os deuses a servi-los. (PLATÃO, República, 2.364b-c)51

O filósofo elogia as parteiras e doulas que se utilizam do conhecimento dos phármaka


e de cânticos/encantos mágicos para induzir o parto e acalmar suas dores (PLATÃO.Teeteto,
149c-d) e exalta os instrumentos de trabalho dos médicos, que também incluem phármaka e
encantos (PLATÃO, República, 426b), ao mesmo tempo em que critica indivíduos que afirmam
conseguir direcionar a vontade divina através da evocação dos mortos (PLATÃO, Leis, 909b).

50
Ver: COLLINS, 2009; GANSCHINIETZ, 1919; LEWIS, 1989; LLOYD, 1979.
51
As traduções de A República são de Carlos Alberto Nunes.
71
Tanto em Sobre a Doença Sagrada quanto nos escritos de Platão o que se verifica é que
os praticantes de magia são acusados de utilizar de seus conhecimentos para ganho pessoal,
como a fama e a riqueza material. Aproveitando-se da fé daqueles que aceitam seus trabalhos,
esses “especialistas em magia” garantem sua permanência na comunidade grega, alegando agir
e resolver problemas/desejos que tanto os sacerdotes quanto os médicos oficiais não foram
capazes. Prometendo realizar os mais diversos desejos individuais de seus contratantes (cura,
envenenamento, doença, amnésia, moléstia física, conquistar o amor de outrem, etc.), esses
praticantes que vendem trabalhos de magia fazem uso das crenças enraizadas no imaginário
grego e garantem seu lugar e necessidade na sociedade helênica, mesmo que a maioria não goze
de muito prestígio social. Enquanto o hipocrático se revolta com a questão de as pessoas serem
enganadas com uma promessa vazia de cura, Platão (Leis, 933a) alega não haver espaço para
esse tipo de serviço em sua pólis ideal, uma vez que a magia utilizada desta forma não auxilia
a comunidade pública. Ainda assim, nenhum dos autores nega a existência de magia ou a
possibilidade de manipulá-la, apenas duvidam das capacidades/promessas feitos por esses
indivíduos de pouco prestígio social (COLLINS, 2009).
Apresentamos a magia para os gregos e nossas escolhas metodológicas para analisá-la,
pois consideramos profícuo compreender e vislumbrar de que forma a magia operava na Grécia
arcaica e clássica, isto porque só poderemos estabelecer nossas hipóteses ao considerar a
importância e a participação da mesma no dia-a-dia helênico. Das inúmeras maneiras de praticar
magia na antiguidade (adivinhação, necromancia, purificação, placas de imprecação, estatuetas
eróticas, entre outras), partiremos agora para análise específica do phármakon, buscando
ressaltar em seu significado as semelhanças, diferenças e singularidades que o termo possuiu
entre os séculos VIII e Va.C. Isso se torna necessário para que possamos compreender Circe e
Medeia em sua totalidade, e justificar nossas hipóteses de que o uso do phármakon pelas
feiticeiras literárias possui conotações paidêuticas nos discursos de Homero e Eurípides. Antes
de podermos compreender e comparar as escolhas dos autores pelo uso específico do
phármakon como materialização de seus discursos, precisamos colocá-lo em destaque.

2.2- A magia do phármakon: da epopeia à tragédia

Na aproximação das práticas mágicas gregas, sobretudo no que concerne aos períodos
Arcaico e Clássico, nos afastamos das ideias propagadas por grande parte dos especialistas
modernos. Estes constantemente assumem os discursos filosóficos e racionalistas – pejorativos
no que diz respeito ao uso da magia – como discursos compartilhados pelos cidadãos, de forma
72
que tais práticas “idiotizadas” seriam mais apropriadas a indivíduos de status social inferior,
como mulheres, bárbaros e escravos (FARAONE, 2001, p. 4). Isso não é verdade.
Embora concordemos que as representações de práticas mágicas na literatura
frequentemente sejam realizadas através de personagens marginalizadas, se analisamos
minuciosamente os mais diversos documentos dos períodos, aliados à arqueologia e ao método
comparativo - que enxerga nos períodos mais tardios a comprovação material de uma tradição
mais antiga - poderemos perceber de que forma os usos da magia estavam enraizados nas mais
diversas camadas mundo grego. E a manipulação dos phármaka, não é exceção a este fato.
Adiante, quando discutiremos as razões para a escolha de tais características para personagens
feiticeiras, seremos capazes de entender, com mais profundidade, as relações sociais que
permeavam o mundo grego e como elas estão conectadas com a literatura.
Homero foi quem deixou em registo a primeira prática da magia em grego, na qual a
feiticeira Circe, tendo atraído os nautas aqueus até sua morada, os oferece um phármakon
(poção) à base de queijo, vinho, mel e farinha, que, aliado ao uso de sua varinha mágica, acaba
por transformá-los em porcos (Odisseia X, vv. 230-240). Sozinha, a palavra pode significar
magia, feitiço ou encantamento, mas Homero se utiliza de adjetivos para dividir o phármakon
de acordo com os seus mais variados efeitos, de maléfico a benéfico (SCARBOROUGH, 1991,
p. 139).
O termo phármakon, pode ser simplesmente definido como: “planta de uso medicinal”
e “preparação mágica” (BAILLY, s.v.). Dessa forma, expressando por extensão “droga”
(BAILLY, s.v.), em contextos medicinais o termo carregava um significado ambíguo,
remetendo tanto a remédio quanto a veneno. Para a cura de doenças, o phármakon era
administrado em poções, unguentos ou emplastres e esse significado tornou-se usual depois de
Homero e foi frequentemente empregado no sentido figurado em Hesíodo (SCARBOROUGH,
1991, p. 139 e 143).
O termo refere-se a drogas mágicas, quando utilizado em contextos de magia, e pode
também significar feitiços em geral: da palavra phármakon derivam-se as palavras pharmakis
e pharmakeia, que traduzem-se, respectivamente, como “feiticeira” e “enfeitiçar” ou
“intoxicar” (BAILLY, s.v.). Tratando-se de magia erótica, o termo aparece se referindo a poções
de amor, conhecidas como filtros amorosos52. A precisão necessária, portanto, é muitas vezes
definida pelo adjetivo que a acompanha: em suas primeiras aparições, nas epopeias homéricas,
os phármaka costumam ser seguidos por adjetivos que os qualificam – e isso é um indício de

52
Em Hipólito, v. 509, Eurípides refere-se a “poções do amor encantatórias”, para depois chama-las de
“phármakon”, no verso 516.
73
que, mesmo em um contexto mágico, os gregos faziam distinção entre os usos do phármakon
como droga mágica, pois a intencionalidade é um fator importante (COLLINS, 2009, p. 197).
As poesias de Homero são o registro de uma longa tradição oral, cujos mitos que
integram à narrativa eram conhecidos e cantados muito antes de serem consolidados em sua
forma épica. Dessa maneira, podemos afirmar que o conhecimento das ervas e sua atribuição
mágica era e anterior ao período Arcaico. Corroborando a hipótese de conhecimento prévio do
poeta, na Ilíada (XI, vv. 842-48; XII vv. 1-3) encontramos uma passagem sobre o uso de ervas
como remédios, quando Pátroclo presta assistência a Eurípilo, ferido na batalha:

[Pátroclo] tomando-o [Euípilo] por baixo do peito o levou para a tenda


onde o escudeiro cuidoso estendeu grande pele bovina.
Sobre ela fê-lo deitar-se e com a espada tirou-lhe da coxa
o dardo agudo e pungente. Depois limpa o sangue anegrado
com água morna depondo na chaga raiz amargosa
que machucara nas mãos bom calmante que todas as dores
logo tirou. Pára o sangue secando de pronto a ferida.
Enquanto dentro da tenda cuidava de Eurípilo o ilustre
filho do grande Menécio os guerreiros aqueus e os Troianos
em confusão combatiam.53

A tradição que seguiu a essa primeira prática nos mostra que, com o objetivo de curar
os mais diversos males, os helenos faziam uso dos phármaka das mais diversas maneiras: como
amuletos54, ataduras, poções, filtros amorosos e cataplasmas, associados à encantamento e
orações, desde a Idade do Bronze (WICKKISER, 2008, p. 10). Isso significa que, apesar do
phármakon de Circe ter sido fabricado com o objetivo de prejudicar àqueles que ela considerava
inimigo, ele também poderia ser elaborado para cura/benção, como nos diz Górgias (V séc.
a.C.) em seu Elogio a Helena, 14:

O poder do discurso sobre a disposição da alma é como a disposição de drogas(phármaka)


sobre a natureza do corpo. Assim como drogas diferentes retiram humores diferentes do
corpo e põem fim à doença ou à vida, o mesmo ocorre com o discurso: algumas palavras
podem provocar um mal; outras, prazer; outras, medo ao passo que outras podem
encorajar os ouvintes. Ou ainda, por meio de alguma persuasão nociva, as palavras podem
enfeitiçar (pharmakeuein) e lançar um encanto sobre a alma. 55

Ainda em Homero vemos mais um episódio em que o phármakon é utilizado por uma
personagem sem o consentimento daqueles que o bebiam. No canto IV da Odisseia, Telêmaco
e Pisístrato estão em Esparta, visitando o rei Menelau e sua esposa, com o objetivo de conseguir

53
Tradução do grego para o português de Carlos Alberto Nunes.
54
Amuletos feitos de plantas e ervas eram extremamente comuns, e eram frequentemente diferenciados por sexo:
os homens carregavam plantas entendidas como femininas e as mulheres as masculinas (LONG, 1973, p. 154).
55
Tradução do grego para o português realizada por Daniela Paulinelli.
74
informações acerca do herói Odisseu após a guerra de Tróia. Participando da conversa e
compartilhando do lamento e choro de seus convidados, a mulher, com o objetivo de
tranquilizá-los, adiciona um phármakon ao vinho que bebem, antes que possa contar-lhes sobre
seu encontro com Odisseu em Tróia:

Mas então teve outra ideia Helena, nascida de Zeus;


De pronto lançou droga no vinho do qual bebiam,
Contra aflição e raiva, para oblívio de todos os males.
Quem a tomasse, após ser misturada na ânfora,
Nesse dia não lançaria lágrimas face abaixo,
Nem se a mãe e o pai tivessem morrido,
Nem se na sua frente irmão ou filho querido
Com bronze tivessem matado, e a ele, visto com os olhos.
(Odisseia IV, vv. 219-226)

Nesses versos, Homero demonstra a utilização positiva do phármakon, mesmo sendo


sem o consentimento daqueles que o utilizaram. Este detalhe condiz com o imaginário da
prática mágica: o praticante o faz sem o conhecimento das pessoas a serem enfeitiçadas,
buscando um objetivo que partiu de escolhas individuais. No caso de Helena, a mulher
presenciou e compartilhou das lágrimas dos homens no banquete, e já sábia que Telêmaco e
Menelau conversariam, no dia seguinte, sobre as desventuras de Odisseu. Procurando garantir
ao menos algumas horas de paz, a anfitriã usa o phármakon em benefício de seus hóspedes.
Para Scarborought (1991, p. 140) o phármakon em questão é provavelmente a papoula,
mencionada anteriormente na Ilíada no episódio acerca da morte de Polidoro por uma flecha
de Teucro (Ilíada. VIII, vv. 306-307), como droga que é capaz de acabar com as dores, e
argumenta que a audiência que escutava a canção do poeta provavelmente sabia exatamente
qual era a droga que Helena misturava ao vinho: tanto poetas quanto, mais tarde, tragediógrafos,
certamente faziam alusões àquilo que seria familiar à sua audiência, de forma que não é de todo
incoerente supor que os ouvintes do VIII século a.C. já conheciam bem os poderes e as
propriedades soníferas/alucinógenas da papoula.
Os versos que seguem a esses também possuem informações relevantes acerca do
phármakon no período em que o épico foi consolidado:

A filha de Zeus possuía tais drogas astuciosas,


Benignas, que lhe deu Polidamna, esposa de Tôn,
No Egito, onde o solo fértil produz inúmeras
Drogas, muitas benignas, misturadas, muitas funestas,
E cada um é médico habilidoso, superior a todos
Os homens: sim, são da estirpe de Peã
(Odisseia, IV, vv. 227-232)

75
Esses versos nos demonstram que o poeta possui algum conhecimento sobre ervas e
drogas, uma vez que lhes dá uma procedência específica e evidencia a sua existência e utilidade
dual. A sua narrativa de misturar o ópio com o vinho em um contexto onde este poder e
conhecimento é empregado com o propósito de fazer o bem está em oposição com àquele de
Circe: o phármakon benfazejo produz a cura, o funesto envenena. Ademais, é interessante
destacar que o conhecimento das ervas e o acesso a elas foi garantido à Helena por uma
estrangeira, uma egípcia. São mulheres que possuem esta habilidade especial, novamente,
fazendo uma ligação, mas em oposição, ao phármakon utilizado por Circe.
Os versos também se referem aos egípcios, como um todo, de forma peculiar: no que
tange à manipulação de ervas, são superiores aos demais; e, ao contrário da Hélade épica, onde
este conhecimento é específico e partilhado por poucos personagens, no caso desses
estrangeiros específicos “cada um é médico habilidoso”. Tal verso indica que o conhecimento
das drogas, para além dos “cortadores de raiz” e feiticeiros/magos da antiguidade, era partilhado
pelos médicos. Lidando com as mais diversas enfermidades e procurando curas, essa conclusão
faz todo o sentido para o ofício da medicina, mesmo a da antiguidade. Ademais, os egípcios são
chamados de descendentes de Peã (ou Péon), cujo nome significa “a cura”
(SCARBOROUGHT, 1991). Em Homero, Peã é o médico dos deuses, aquele que na Ilíada
cura Ares e Hades com ervas medicinais. A tradição transformou seu nome em um tipo
específico de hino reservado a Apolo, que também se tornou responsável pela cura (COLLINS,
2009, p. 160).
Segundo Helen Bancroft (1932, p. 241), foi entre os gregos que o estudo e o uso das
plantas com propósitos médicos estabeleceu-se como uma tradição, que foi manipulada através
dos séculos. Para a pesquisadora, é evidente que os gregos antigos estavam familiarizados com
o uso medicinal de plantas desde o muito cedo: ela aponta o mito de Iapis, um pupilo do deus
Apolo, como origem da tradição do uso medicinal das plantas e ervas. A Iapis foi oferecida
grande habilidade em vidência, música ou arquearia, de acordo com sua escolha. Mas, ao invés
de qualquer um desses dons, ele pediu ao deus o conhecimento das ervas que curariam as
doenças e, em posse desse conhecimento e com a ajuda de Afrodite, salvou a vida de Enéas,
quando este foi ferido por um arco na batalha de Tróia.
Bancroft (1932, p. 242) também cita a figura mítica de Asclépio 56, filho de Apolo e
Corônis, deus da cura. De acordo com o mito, o deus foi instruído por seu pai na arte da cura,

56
"Para Apolo e Coronis, que geraram Asklepios (Asclepius), que aprendeu com o pai muitos assuntos que
pertencem à arte curativa, e então passou a dedicar-se a arte da cirurgia e as preparações de drogas e unguentos, e
76
e diz-se que a origem de seu conhecimento foi a observação das plantas procuradas pelos
animais que estavam sofrendo e, por causa dessa observação, Asclépio viveu uma vida
peregrina de longos anos vagando em locais selvagens. De seu mito surgiram templos dedicados
ao deus, cujos sacerdotes dedicavam a vida a cuidar e curar os doentes, de forma que havia um
intenso tráfico de plantas para abastecer tais templos, conduzido pelos rhizotomoi (“cortadores
de raiz”).
Apesar de os versos homéricos fazerem uma referência direta ao conhecimento de ervas
por parte dos médicos, Collins (2009, p. 198) nos aponta que não há quaisquer tipos de registro
indicando a fabricação de phármaka por parte dos mesmos. Segundo o historiador, é possível
que eles prescrevessem as drogas e o modo de manipulá-las para os pacientes, que ficariam
encarregados de fazer sua própria mistura, mais ou menos como hoje em dia vamos até o
farmacêutico para obter nossos remédios, portando uma receita médica. Para Bancroft (1932,
p. 242), os verdadeiros fundadores da medicina grega e os compiladores do conhecimento das
ervas não eram os sacerdotes de Asclépio, mas pessoas comuns que vagavam de lugar em lugar,
garantindo seu sustento curando pessoas doentes por onde quer que passassem; uma das mais
reconhecidas e até mesmo famosas herbalistas desses tempos mais primórdios foi uma mulher
chamada Agaméde.
Em História das Plantas de Teofrasto de Eresos (IV-III sec. a.C.), o primeiro trabalho
de farmacologia que sobreviveu da Grécia, o Livro IX trata de “fatos” oriundos de fontes
medicinais folclóricas, dos rhizotomoi. Os cortadores de raiz possuíam seus próprios padrões
de conhecimentos e folclore acerca das mais variadas raízes e ervas espelham as tradições
gregas mais antigas e profundas, em diversos níveis que simultaneamente abordam os aspectos
mágicos e ‘científicos’ das plantas (TEOFRASTO, História das Plantas, IX, 18.2). Enquanto
essa mistura de informações pode parecer confusa para pesquisadores que se propõe a olhar
para a antiguidade, essa multicombinação de visões (mágico-religiosa e medicinal) acerca do
assunto é uma característica do pensamento grego desde o tempo de Homero
(SCARBOROUGH, 1991, p. 138).
No entanto, na visão de Bancroft (1932, p. 242), as ervas adquiriram poderes mágicos
por uma estratégia comercial dos “cortadores de raiz”, e não por motivos religiosos. Como
deviam sua subsistência ao ato de coletar, preparar e vender as ervas que eram utilizadas para
curar doenças, não gostariam que esse ofício se tornasse banal, de forma que mais pessoas

a força a ser encontrada nas raízes e plantas, falando em geral, ele introduziu tais avanços na arte da cura, onde é
honrado como fonte e fundador” (DIODORUS SICULUS, V. 74. 6)

77
decidissem fazer o mesmo. Então, os rhizotomoi começaram a inventar histórias supersticiosas,
objetivando fazer com que o ato de recolher as tais ervas medicinais parecesse perigoso,
contribuindo assim com toda a esfera de misticismo e superstição que rodeava àqueles que
lidavam com ervas numa base diária.
Discordamos dessa proposta, porque figurava tanto no período Arcaico quanto no
Clássico uma visão fundamentalmente pré-socrática do mundo. Explicamos: os filósofos que
propuseram o entendimento do universo que os cercava tinham uma posição irredutível acerca
da natureza e da divindade. Para os pré-socráticos, uma estava inerente à outra: os elementos
que compunham a natureza eram, por si só, divinos. Essa visão vai além da existência de
divindades como Zeus, Ares e Athená, e percebe na água, na terra, no raio, na pedra, etc, a
presença da divindade. Por isso, mesmo quando entramos em contato com suas críticas aos
praticantes de magia57, como vimos, ressalta-se que a possibilidade da magia – ou seja, a sua
existência- não é refutada completamente (COLLINS, 2009, p. 57).
A manipulação de ervas em drogas com o intuito de prejudicar os inimigos, reconquistar
um amante, entre outros usos, sem o conhecimento e consentimento da vítima –ou seja, o uso
em seu aspecto mais negativo - foi amplamente difundida a partir do V século a.C., sendo
associada aos praticantes de magia. Já o aspecto numinoso do saber das ervas, ou seja,
empregado com o objetivo de curar enfermidades, foi associado principalmente à prática da
medicina - mesmo que os médicos, como vimos, não fossem os responsáveis por literalmente
fabricar as misturas- ainda assim, eram eles que as receitavam, mas também cabia à sabedoria
doméstica feminina seus usos medicinais, a partir de tradições passadas pela mulher mais velha
às suas filhas e netas, garantindo a resolução de problemas e enfermidades “menores” que
eventualmente apareciam nos oîkos.
Portanto, mesmo que o conhecimento específico para a manipulação do phármakon em
todos os seus variados aspectos (remédios, venenos, drogas alucinógenas, filtros amorosos) não
fosse completamente popularizado, acreditamos ser possível afirmar que os gregos possuíam
bem internalizados dentro de si mesmos a noção de que todas esses phármaka não só eram
poderosos e possíveis, mas cotidianos: a parteira que usa de orações e feitiços para aliviar a dor
do parto, a prostituta/concubina que pretendia reconquistar um cliente faz uso de certas ervas
por suas propriedades mágicas, um comerciante que desejava adoecer o concorrente pode tentar
drogá-lo, entre outros.

57
Platão (Teeteto 149c-d; República II 364b-c ; VI 426b, Leis X 909b) e os Hipocráticos (Sobre a Doença Sagrada,
1 10-12 ; 29-30, 18 1-2 ) foram os mais importantes críticos da magia grega no V e IV século, como vimos
anteriormente neste mesmo capítulo.
78
Isso se torna mais coerente se consideramos de que forma a religião fazia parte da vida
cotidiana dos mesmos, e como abria precedentes para que as interações do sobrenatural/oculto
pudessem ser sentidas a todo o momento. A magia era aceita não só porque a atuação divina no
mundo era algo normal – afinal, estamos tratando de indivíduos que acreditavam que os deuses
e suas potências interagiam com eles em uma base diária-, mas porque as causas físicas não são
excluídas por causas intencionais (COLLINS, 2009, p. 112). Uma dor de cabeça pode passar
naturalmente, mas também pode ter obedecido a um feitiço, da mesma forma que um acidente
pode ser obra do acaso ou de magia.
As diversas discussões e investigações enciclopédicas58 elaboradas na antiguidade, tanto
medicinais quanto naturalistas dos poderes mágicos das plantas, ervas, animais e minerais
constituem-se como as melhores fontes para estudarmos o phármakon, e devemos nesse
momento concentrarmo-nos sobretudo no que concerne a magia erótica, na qual podemos
perceber os motivos e os desejos humanos mais crus que levavam os gregos a usar de plantas
sob a forma de amuletos, philtra e afrodisíacos para satisfazer suas ambições (FARAONE,
2001, p. 3).
Em Catálogo das Mulheres, poema épico perdido de Hesíodo (frag. 76, 18-23), há a
história de Atalanta, seduzida pelas maçãs de Hippomenes, e embora o poema não descreva
detalhadamente os efeitos da fruta sobre a mulher, séculos mais tarde as fontes helenísticas
atestam que as mesmas foram responsáveis por provocar o desejo erótico na mulher. A isso
corresponde ao uso de maçãs, romãs, marmelos e outras frutas enfeitiçadas com o objetivo de
exaltar os desejos das noivas, tanto nos mitos mais antigos quanto em casamentos 59 de fato
(FARAONE, 1990, p. 70-78).
Píndaro (Píticas IV, vv. 213-219) apresenta Afrodite ensinando a Jasão um amuleto e
um encantamento de forma a acender a paixão no coração de Medeia, tornando-a escrava de
seu próprio desejo e, portanto, ajudante de Jasão. Em períodos posteriores ao arcaico, por
exemplo, os gregos interpretaram tanto a canção60 das Sereias quanto a poção de Circe como
formas perversas (FARAONE, 2001, p. 6; PAGE, 1973, p. 51-69; SCHEIN, 1995, p. 20-21) de

58
Aristóteles (Magna Moralia, I, 1188b, 30-8) e Teofrasto (História das Plantas, IX) discutem o poder afrodisíaco
de certas plantas em seus textos.
59
Interessante notar que alguns dos afrodisíacos também possuíam pretensões de fertilidade, para além da
consumação sexual. Tratando de épocas em que certos contraceptivos existem, mas não tem sua produção ou efeito
refinados como nos dias atuais, não é absurdo pensar que um afrodisíaco implicará em aumento de fertilidade
(FARAONE, 2001, p.70).
60
Todos os tipos de música possuíam, no imaginário grego antigo, um poder mágico próprio (JOHNSTON, 2008b,
p. 19).
79
magia erótica, fazendo uma alusão indireta a temas e crenças acerca da magia feita contra a
vontade da vítima, como veremos em Plutarco mais adiante.
No que diz respeito à tragédia, para além de Medeia que será analisada adiante, nas
Traquínias de Sofócles temos uma menção ao uso do phármakon para despertar o amor de
Hércules, havendo consequências desastrosas ao fim da peça e na Andrômaca, Eurípides nos
apresenta Hermione acusando Andrômaca de fazer uso de phármaka para seduzir seu marido,
atrapalhar a sua vida sexual e a torná-la infértil. Não possuímos fontes materiais do período que
atestem os reais ingredientes de amuletos e philtre utilizados como afrodisíacos, uma vez que
eram compostos de elementos perecíveis. No entanto, existem evidências arqueológicas61 que
atestam a crença e o uso de bebidas enfeitiçadas, como a inscrição da Taça de Nestor e de uma
outra taça encontrada em escavações.
A primeira, encontrada em Nápoles, data do VIII século a.C. e é uma das primeiras
alusões escritas aos poemas homéricos, além de um dos primeiros exemplos de escrita grega,
que Pierre Vidal-Naquet chama de objeto falante, uma vez que traz inscrita em si mesma
(VIDAL-NAQUET, 2002, p. 16; FARAONE, 2001, p. 12): “Eu sou a taça de Nestor62, a que é
boa para beber. Aquele que daqui beber será imediatamente arrebatado pelo desejo que inspira
Afrodite, a deusa da bela coroa”. Esta taça, para além da importância de atestar que os temas e
as formas da poesia épica já existiam escritas no período Arcaico, é um importante exemplo do
uso de afrodisíacos no mesmo contexto temporal. A segunda, data do VI século, e traz em si a
inscrição philtron, que pode ser traduzida como “feitiço/poção do amor”. Esta taça, como a
anterior, também era dedicada a Afrodite e foi encontrada em um templo devotado à deusa em
Naucratis (FARAONE, 1996, p. 106), podendo também ser interpretada como um exemplo da
aceitação/lugar comum da manufatura de poções mágicas, filtros de amor e o uso de
afrodisíacos.
Para além da taça de Nestor, que inspiraria em qualquer homem que dela bebesse o
desejo sexual, outro uso comum dos phármakon, especialmente para os homens gregos, era a
cura da impotência sexual. Substâncias mágicas combinadas com técnicas e feitiços falados
eram procurados como forma de automedicação ou autoajuda para problemas de ereção, como
nos diz Faraone (2001, p. 18). Sobretudo no período Clássico, cremes, unguentos, óleos e

61
Já quando se tratando de feitiços de amarração e placas de imprecação, que utilizavam placas de metal ou papiros,
nós temos uma enorme gama de fontes materiais. Infelizmente, o mesmo não se aplica ao phármakon, de forma
que temos poucos exemplos além da poesia e prosa áticas (FARONE, 2001, p. 12).
62
Personagem importante da Ilíada e Odisseia que possui uma taça cuja descrição encontra-se no canto XI da
Ilíada.
80
líquidos desenvolvidos63 para serem esfregados no pênis prometiam causar ereções ou fazê-las
mais duradouras, e em algumas vezes prometiam aumentar o desejo feminino (FARAONE,
2001, p. 19). Aristófanes (Os Acarnenses, v. 1048) menciona de forma jocosa uma noiva e um
noivo que são ensinados a utilizar um certo vinho dessa maneira e Teofrasto menciona uma
erva que, utilizada desse modo produziria doze ereções em sequência (História das Plantas,
IX, 18-19).
Como pudemos perceber nos mais diversos exemplos que permearam esse capítulo, o
phármakon usado pelos gregos sob a forma de philtra, poções, afrodisíacos e amuletos, era
empregado com os mais diversos objetivos: restaurar um amor ou despertar o amor em alguém,
acalmar os ânimos dos que estão tristes ou irritados, despertar paixões arrebatadoras e desejos
eróticos, curar dores, curar doenças, induzir o sono ou alegrar outrem. Manipulado sem o
consentimento daquele que o beberia, podemos interpretar seu caráter mágico se encaixando
sob a ótica teórica do nosso entendimento de magia grega: o phármakon era empregado para
suprir necessidades e cessar angústias, principalmente em casos que a religião cívica ou o
auxílio medicinal não possuíam respostas ou mecanismos de auxílio. Praticado dentro da lógica
social e sacralizada dos gregos, estava mais conectada à esfera individual do que coletiva, ao
oîkos e não à pólis, mesmo ocasionalmente utilizando de deuses ou espaços (encruzilhadas,
templos e cemitérios) que são públicos.
Percebemos que a fusão mágico-religiosa e medicinal, no que concerne ervas e drogas,
recebeu sua primeira forma na Ilíada e na Odisseia, uma forma que permaneceria típica do
pensamento grego acerca do conhecimento e manipulação de drogas, desde o período Arcaico
até os séculos em que o Papyri Gaecae Magicae foi composto (SCARBOROUGH, 1991, p.
138). Alargando nosso recorte temporal pontualmente, com o objetivo de corroborar a nossa
hipótese de que Homero e Eurípides fazem parte de um mesmo processo discursivo muito maior
do que suas obras podem atestar, temos a personagem Samanta de Teócrito64, no Idílio II, v.
15: “Saúdo-te, Hécate, atenda-me nesta empreitada e torne meus procedimentos mágicos tão
fortes quanto os de Circe e de Medeia”. Essa evocação do III século a.C. demonstra a
preservação dessas três figuras mitológicas femininas como conhecedoras do saber-fazer
mágico, feiticeiras por excelência, numa tradição que remonta desde o Período Arcaico
(CANDIDO, 2009, p. 47-50). Já na Antiguidade Tardia, Claudio Galeno65 (129-210 d.C.) cita

63
Há uma longa lista de plantas (sobretudo as bulbosas) que possuíam efeitos afrodisíacos em homens. Ver, para
maiores informações: TEOFRASTO, História das Plantas.
64
Poeta grego de maior destaque no Período Helenístico.
65
Médico e filósofo romano de origem grega.
81
Herófilo66 (335-280 a.C.) ao dizer que “as plantas são as mãos dos deuses” (GALEN,
Compound Drugs According to Place of Ailment, VI, 8).
Assim, a medicinal e divino continuam sendo características dos estudos farmacológicos
científicos da cultura Greco-Romana, as “explicações” acerca do funcionamento das drogas se
encontravam em padrões intelectuais de teoria natural que derivaram gradualmente da filosofia
pré-Socrática (SCARBOROUGH, 1991, p. 139). Os feitiços e propriedades mágicas das
plantas, deixados pelos gregos em suas compilações textuais enciclopédicas ou em placas de
imprecação enterradas nos cemitérios e templos da acrópole, são largamente moldados por
convenções genéricas e certas expectativas sociais, e nos servem, da mesma forma que o fazem
a poesia lírica ou a tragédia, como fontes de informação passíveis de interpretação acerca do
estado psicológico dos autores, praticantes e clientes que utilizavam tais conhecimentos
(FARAONE, 2001, p. 5).

2.2.1 – O phármakon de Circe e Medeia: magia como realização da métis

Especificamente tratando de nossa documentação, em leituras direcionadas pela ótica


da comparável significados/perspectivas paidêuticos(as) do uso do phármakon na poesia de
Homero e Eurípides, propomos que o uso do phármakon por Circe e Medeia possa ser
interpretado como um discurso que alerta ao uso da astúcia, sobretudo por parte das
mulheres67.Como explicitamos na introdução, Orlandi propõe que pensemos o discurso que
pode ser interpretado nos objetos simbólicos selecionados (canto X da Odisseia de Homero e
tragédia Medeia de Euípides), e de que forma (como) o mesmo produz sentidos, ao invés de
buscarmos a mensagem direta na escrita de alguém. Assim, para construir nossa proposta de
interpretação e explicitar os processos de significação que estão presentes nos textos a partir
dela, nós buscaremos demonstrar de que maneira as atitudes e interações das personagens em
seus respectivos textos se relacionam com a categoria mental 68 métis, apesar de não ser
explicitamente mencionada pelos poetas.
De forma a demonstrar como as atitudes de Circe e Medeia podem ser constituídas por
um processo de significação que as relaciona com a métis, precisamos nos ater primeiramente
ao verbo thelgein e sua proposta interpretativa de Marcello Carastro (2006), uma vez que são

66
Famoso médico grego do Museu Ptolomaico nos anos 270-260 a.C. (FRASER, 1972, p. 348-357).
67
No Capítulo 3 faremos uma análise, sob a ótica de gênero, dos discursos que envolvem Circe e Medeia, de forma
que a análise apresentada no presente capítulo se complementa com a do seguinte.
68
A métis é definida por Detienne e Vernant (2008, p. 11) como categoria mental. Os autores hesitam em chamá-
la de conceito, uma vez que ela nunca foi explicitamente formulada como tal.
82
profícuos para a construção da relação entre o uso da magia e a métis. O pesquisador constrói
sua tese através do verbo thelgein, que aparece em diversas passagens da Odisseia, e pode ser
traduzido como “encantar, transformar ou paralisar através de magia/encantamento”,
“amarrar/ligar” também podendo significar “abusar da confiança de alguém”, “dissimulação”
no que diz respeito ao amor e relacionar-se metaforicamente a “adormecer” os sentidos (razão,
vontade, etc.).
Ao longo deste capítulo, argumentamos através da bibliografia e de uma análise
comparativa da poesia e prosa dos períodos Arcaico, Clássico e Helenístico os motivos pelos
quais identificamos o uso da magia em um período tão anterior à consolidação do termo mageia
quanto o Arcaico. A essas argumentações somam-se as propostas de Carastro (2006, p. 100-
217): após demonstrar as correspondências de significado entre a noção arcaica de thelgein e o
conceito de magia do período Clássico, sugere que as representações clássicas dos sacerdotes
persas magoi foram desenvolvidas e ancoradas a partir da noção grega de thelgein, uma vez que
este verbo já englobava significados relacionados às formas de culto e os poderes atribuídos a
eles. Assim, a concepção de mageia não se fundamentou em noções orientais recém-conhecidas
pelos helenos do V século: as raízes de seu significado e o sistema de representações que a
caracteriza já estava amplamente estruturado, sendo relativamente autônomo no épico e no
Período Arcaico (BRACKE, 2009).
O verbo tem conotação de impedir forçosamente outra pessoa de pensar ou agir por si
mesma, de minar sua vontade própria, deixar alguém estupefato, paralisar, o que só é possível
de se atingir através de uma aproximação indireta, logro/sedução e não um ataque direto
(BRACKE, 2009, p. 50). Essas características aproximam thelgein do que definimos como
magia, pois o indivíduo se utiliza de elementos naturais e suas propriedades sobrenaturais para
atingir um objetivo, sem a mínima suspeita da vítima. Essa aproximação semântica é inclusive
atestada pelas escolhas interpretativas dos tradutores da epopeia: ao que Emely Brack traduz os
versos 213-215 (Odisseia X, vv. 213-215) como: “Ela os paralisou (stupefied) através de suas
drogas maléficas/Eles, por sua vez, não correram para cima dos homens, ao
contrário,/Balançando suas longas caudas, apoiaram-se em suas pernas traseiras”; Trajano
Vieira propõe: “Lobos monteses a circundam e leões/enfeitiçados por apavorantes
fármacos./Ao invés de atacarem os marujos, sobre-/agitam as longas caudas” e Christian
Werner: “No entorno, havia lobos da montanha e leões,/que ela enfeitiçara após lhe dar nocivas
drogas” (Odisseia X, vv. 212-213).
Havendo estabelecido nossas razões para interpretarmos a ação de thelgein de Circe
como magia, torna-se necessário relacionarmos o verbo à métis, para depois percebermos de
83
que maneiras a magia também está ligada a ele e como ambos (thelgein/magia e métis) são
utilizadas por Circe e por Medeia na documentação selecionada. Como bem explicitado por
Evelien Bracke (2009, p. 60), thelgein é utilizado por vários personagens nas epopeias de
Homero e principalmente por aqueles que são possuidores da métis por excelência (Odisseu,
Penélope, Zeus, Hermes, Atena e Tétis).
Como exemplo dessa relação, temos um símile utilizado por Eumeu, que descreve sua
reação ao encontrar Odisseu disfarçado de estranho cretense: “assim ele me enfeitiçou, sentado
no meu salão” (Odisseia XVII, v. 521). Eumeu está estupefato, hipnotizado, enfeitiçado pela
narrativa e disfarce de Odisseu – habilidades que estão diretamente conectadas com a sua
qualidade tradicional e o que o possibilitou disfarçar-se e elaborar uma narrativa convincente:
a métis. Já no Canto XIII, Athená sorri e reconhece no herói a métis que compartilham, quando
ele lhe conta uma história muito parecida (Odisseia XIII, vv.296-297). O uso da linguagem
persuasiva e hipnotizante de Odisseu é então identificado pela deusa como métis e é capaz de
hipnotizar, enfeitiçar, paralisar aquele que escuta suas palavras, como se fosse mágica (e a
noção de thelgein) (BRACKE, 2009, p. 61).
Enquanto Helena (BERGREN, 1981) e Penélope (CLAYTON, 2004), já foram
estudadas em relação à métis desde a publicação dos trabalhos de Vernant e Detienne, Circe e
Medeia só foram analisadas sob essa ótica no trabalho inovador de Evelien Bracke69 (2009),
que deu continuidade às observações de Carastro acerca das relações do verbo thelgein (que
entendemos como análogo à magia) e da categoria da métis. Assim como Carastro e Bracke,
concordamos que as duas categorias não são a mesma coisa, mas que existe entre elas uma
relação contígua (CARASTRO, 2006, p. 107-108; BRACKE, 2009, p. 62). Dessa forma, as
duas categorias podem ser percebidas na documentação de nossa pesquisa. No entanto,
primeiramente devemos apresentar sinteticamente algumas considerações sobre a métis.
Em Métis: as astúcias da inteligência, Detienne e Vernant (2008, p. 50) exploraram
extensivamente o domínio e as funções da divindade homônima, assim como as mais diversas
manifestações da astúcia no mito e na literatura grega. Definiram-na como o oposto da
violência, sendo uma inteligência que abarca a habilidade de lidar com o imprevisto, a partir de

69
No entanto, o trabalho literário de Bracke propõe que Circe não deve ser classificada como bruxa em Homero,
uma vez que, sem um termo consolidado, as próprias noções de magia no período Arcaico eram nebulosas; e
também que o seu uso do phármakon é apenas métis e não magia. Em nossa interpretação, as duas noções não são
mutuamente exclusivas, de forma que compreendemos a personagem de Circe como uma bruxa e seu phármakon
como magia (uma vez que se pode perceber a existência da magia antes da consolidação de um termo, como
explicitamos anteriormente no presente capítulo). Também propomos que o raciocínio da personagem para o uso
do phármakon, na epopeia, seja desencadeado por sua ligação com a ideia de métis. O mesmo, consideramos, pode
ser aplicado à Medeia.
84
certas qualidades intelectuais: “prudência, perspicácia, prontidão e penetração de espírito,
artimanhas ou mesmo mentira”. Os aspectos-chave da semântica do termo, apresentados pelos
autores em sua obra, podem ser sintetizados da seguinte maneira, como Bracke demonstrou: 1)
a métis se constitui em uma aproximação indireta com o objetivo de atacar, através de truques,
enganos, mentiras e traição; 2) ela se adapta a qualquer situação, atráves da combinação de
conhecimento de experiências passadas e premeditação; 3) é capaz de criar a ilusão de que não
é métis; 4) é capaz de contornar pessoas e situações, encurralando a vítima, podendo ser
relacionada à rede-de-pesca, teia, e ao círculo70 (BRACKE, 2009, p. 63-64).
Dessa forma, o principal paralelo entre a ideia de thelgein em Homero e a da métis
encontra-se na aproximação indireta do adversário: assim como as Sereias cantam para atrair
as vítimas, usando da bela voz, de suas palavras e conhecimentos para atraí-los até à destruição,
Circe utiliza-se dos phármaka para transformar e aprisionar aqueles que chegam em sua ilha,
ou como os gregos disfarçam a ruína dos troianos de oferenda para Poseidon, as palavras
sedutoras e o phármaka são meios de paralisar, domar, enfeitiçar, enganar e dobrar o outro à
própria vontade. Nesse sentido, as duas noções estão interligadas com a magia (BRACKE,
2009, p. 66), principalmente a praticada pelas personagens em nossa documentação.
Diferentemente de arquétipos de bruxas da modernidade, onde versões cada vez mais
fantasiosas e elaboradas nos oferecem saídas um tanto “práticas” através da mágica, Circe e
Medeia precisam contornar as adversidades e enganar as vítimas antes de fazerem uso do
phármakon aterrorizador (BRACKE, 2009).
Primeiro, foquemos na interação de Circe com os aqueus:

Postaram-se no pórtico da deusa belas-tranças


E ouviram Circe dentro, cantando com bela voz,
Ativa junto ao grande tear imortal, tal como
São as finas, graciosas e radiantes obras das deusas.
Entre eles começou a falar Cidadão (Polites), líder de varões,
Para mim o mais próximo e devotado dos companheiros:
‘Amigos, dentro alguém, ativa junto ao tear,
Com graça canta, e todo o solo em torno ressoa,
Ou deusa ou mulher; vamos, gritemos sem demora’.
Assim falou, e eles chamaram com brados.
Ela, logo saindo, abriu as portas resplandecentes
E convidou-os. Seguiram-na todos em ignorância.
Euríloco deixou-se ficar, pois pensou ser um ardil.
Fê-los sentar-se, dentro, nas cadeiras e poltronas,
E para eles queijo, cevada e mel amarelo
No vinho prâmnio mexeu; e ao alimento misturou

70
“Esses valores [a métis] culminam com a imagem do círculo, liame perfeito, porque inteiramente voltado e
fechado sobre si mesmo, não tendo começo nem fim, nem frente nem verso, cuja rotação torna simultaneamente
móvel e imóvel, movendo-se ao mesmo tempo num sentido e no outro.” (DETIENNE; VERNANT, 2008, p. 52).

85
Drogas funestas, para de todo esquecerem a pátria.
Mas depois que lhes deu e beberam, de pronto,
Com golpes de vara, no chiqueiro os confinou.
Eles, de porcos, tinham a cabeça, o som, as cerdas
E o corpo, mas a mente era firme como antes.
Assim pranteando foram confinados (...)
(Odisseia X, vv. 220-241)

Assim como no episódio de Helena que ressaltamos anteriormente neste capítulo


(Odisseia, VI, vv. 219-226), Circe mistura o phármakon na bebida que oferece aos aqueus, sem
o seu conhecimento. Ao fazer isso, ambas as mulheres estão em conexão com a categoria da
métis, uma vez que, como nos definiram Vernant e Detienne, usam de um meio indireto e
invertem as regras do jogo: as personagens mais fracas erguem sua vontade própria e subjugam
a dos fortes que nada sabem. No entanto, enquanto Helena –grega e esposa legítima – tem por
objetivo acalmar os corações dos homens em seu oîkos, antes da conversa difícil que desejam
travar, Circe – a feiticeira estrangeira que vive às margens do mundo grego - tem intenções
destrutivas: desumanizar e subjugar aqueles que recebe em sua casa. Ademais ao phármakon
disfarçado de alimento, Circe ainda os atraí com seu canto que, como o das Sereias, seduz as
vítimas que ignoram a iminente destruição.
Circe, no começo do canto X, está em total desvantagem: é uma mulher isolada que se
depara com vinte aqueus em sua porta. Atraindo-os com seu canto, a promessa de comida e
hospitalidade, ardilosamente trai as expectativas gregas e é capaz de preservar-se e estabelecer-
se em vantagem71: “O seu canto enfeitiçador combinado com a aparência caseira de sua tarefa
doméstica [a fiação], que também era a ocupação diária de uma mulher mortal, conduziram os
homens de Odisseu à armadilha da deusa” (BUITRON-OLIVER & COHEN, 1995, p.36).
Assim como a deusa de belas-tranças, a personagem de Medeia também se encontra em total
desvantagem no início da narrativa, pois seu oîkos fora abandonado por seu marido. Porém,
após lamuriar-se constantemente e refletir bastante fora das vistas de todos, Medeia decide
arquitetar vingança contra aqueles que lhe fizeram mal, possuindo o Coro de Mulheres do seu
lado (v. 267). Em seu encontro com Creonte, o rei de Corinto a expulsa da pólis (vv.271-276),
mandando-a partir no mesmo dia e diz que a teme por ser “sábia e experta em muitos males”
(v.285). O diálogo que se segue entre os versos 286 a 323, Medeia tenta, em vão, conseguir
mais tempo em Corinto, fingindo-se uma mulher fraca e desolada, suplicando piedade por parte
do rei, sem sucesso. Quando finalmente percebe a prioridade do rei, a felicidade e o bem-estar

71
Sabemos, no entanto, que a métis de Odisseu e o phármakon de Hermes lhe são superiores, uma vez que a
feiticeira é subjugada e torna-se aliada do herói. Essa segunda parte do encontro de Odisseu e Circe será analisada
no capítulo 3, uma vez que interpretamos uma depreciação do uso da magia e métis feminina frente à masculina.
86
de sua prole (v. 329), age e fala como mãe zelosa e pede, em favor dos filhos, mais um dia para
arranjar-lhes provisões (vv. 340-347) e consegue. Assim que o rei parte, revela seus planos ao
Coro:

Crês que teria eu o lisonjeado


Se não tivesse em vista de algum lucro ou trama?
Sequer o abordaria ou tocaria!
E ele a um tal grau chegou de parvoíce
Que, podendo paralisar-me os planos
Se me exilasse, um dia permitiu-me
Ficar, no qual cadáveres farei
De três inimigos meus: pai, filha e esposo
(EURÍPIDES. Medeia, vv. 368-375)72

A protagonista está afirmando seu caráter astuto: sua métis permite que use de mentiras
para dizer exatamente aquilo que Creonte precisa ouvir para mudar de ideia. Pegando seu ponto
fraco e utilizando-se contra ele (o amor aos filhos), Medeia aos poucos vai galgando seu
caminho para a vingança plena, enquanto envolve os outros personagens em sua terrível teia.
Ao encontrar Egeu (vv. 663-664), explica a situação em que se encontra e pede asilo, usa do
ponto fraco do rei ateniense (a falta de herdeiros) e dispõe de habilidades mágicas para suprir-
lhe essa falta (vv. 708-718). Quando se apresenta a Jasão como mulher tola que finalmente
sucumbiu a razão (vv. 900-908), a feiticeira da Cólquida mais uma vez usa da mentira e
persuasão e finge ter sido derrotada pelos mais fortes e sábios, apenas para amarrar o último
laço que envolve a todos na terrível teia de sua vingança. Convencendo Jasão a persuadir a
esposa, Glauce, a aceitar os presentes magníficos de Medeia e permitir a estadia de seus filhos
em Corinto, o herói é utilizado pela feiticeira para sua própria perdição. Envenenados com o
phármaka de Medeia, a bela veste e diadema, assim com o Cavalo de Tróia, são a ruína
disfarçada. Elevando-se sobre aqueles que são menos astutos e inteligentes, Medeia de uma vez
só mata Creonte e Glauce, trazendo ruína à felicidade de Jasão (vv.1185-1222).
Dedicamos o presente capítulo primeiramente a uma análise da magia e sua interação
com a sociedade grega, dos períodos arcaico ao clássico. Pudemos perceber as formas que a
integravam ao cotidiano: seja no imaginário, seja nos rituais cívicos ou nos privados – com a
oferta de serviços dos mais diversos praticantes – todas as camadas sociais aceitavam a
existência da magia sem questioná-la, e embora Platão e o tratado hipocrático nos tenham
deixado registrado as dúvidas existentes acerca da veracidade daqueles que se proclamavam
magos/feiticeiros, não havia como questionar a magia em si.

72
Todas as traduções de Medeia são de Flávio Ribeiro de Oliveira.
87
Em seguida, analisamos passagens das personagens fazendo o uso do phármakon e,
submetendo-as a uma ótica comparativa, ressaltamos as relações que seus atos possuem com a
categoria da métis propondo que as mesmas são uma das formas dos poetas explicitarem sua
preocupação com as mentes astuciosas que utilizam a magia para fins escusos. Embora Odisseu
e Jasão73 sejam exaltados em suas respectivas histórias pelas suas habilidades em utilizar a
astúcia contra a forças que lhe são muito superiores, Medeia e Circe carregam um caráter
tenebroso e negativo quando utilizam-se da astúcia combinada a seus poderes mágicos para
derrotar seus inimigos. Descontroladas, animalescas e más, elas personificam o Outro, o
selvagem: aquilo em que nenhum grego (ou grega) deve se espelhar. Através desse contato com
exemplos negativos de feiticeiras, tanto a plateia do teatro do Dioniso quanto a plateia do
rapsodo eram lembradas daquilo que elas não gostariam de ser.
Outra informação relevante que podemos concluir da análise é o fato de que, mesmo
havendo as mais diferentes classes de praticantes de magia – com mais ou menos credibilidade,
além do usuário “amador” – não havia um gênero específico para eles: muitos deles eram
homens que vendiam seus serviços ou que buscavam auxílio mágico das ervas. No entanto, ao
tratar da magia em suas obras, Homero e Eurípides escolheram narrar seus usos através de suas
feiticeiras estabelecidas na tradição mítica. Com o objetivo de compreender e elucidar nossas
hipóteses acerca dessa escolha, no próximo capítulo apresentaremos e analisaremos cada uma
das personagens, colocando-as sob uma ótica comparativa, buscando explicitar a maneira pela
qual uso do phármakon pode revelar-se como escolha narrativa que carrega significados
paidêuticos para a sociedade que escutava essas histórias, tanto por parte do aedo quanto do
tragediógrafo, sob uma ótica de gênero. Para tanto, elucidaremos o tipo de magia mais praticado
por mulheres, sobretudo as esposas do cidadão, uma vez que a consolidação74 de Circe e Medeia
como feiticeiras por excelência no século V pode indicar, na Atenas clássica, uma preocupação
com esse aumento das práticas mágicas por parte das mulheres.

73
Embora Jasão, como veremos, não seja o que se espera de um herói na tragédia de Eurípides, em textos
anteriores, como as Píticasde Píndaro, sua figura é celebrada e há referências de sua métis ao matar a serpente que
guarda o Velocino de Ouro (PÍTICAS. IV, vv. 249-50). A plateia que assistia Medeia na Acrópole muito
provavelmente estava familiarizada com as histórias do período, e, portanto, conhecia os antecedentes heroicos de
Jasão.
74
No que concerne à Literatura grega, enquanto mulheres usando phármakon em contextos não mágicos apareçam
em algumas peças e poesias, com uma conotação mágica, nos períodos posteriores ao Clássico - principalmente
no Helenístico e Romano - encontramos narrativas sobre outras feiticeiras, e ainda assim fazem referências diretas
a Circe e Medeia (BRACKE, 2009p. 7 e 41).
88
Capítulo 3
Circe e Medeia: representações sociais de feiticeiras

Saúdo-te, Hécate, atenda-me nesta empreitada e torne meus phármaka tão fortes quanto
os de Circe e de Medeia. (TEÓCRITO, Idílio II v. 15)75

De forma a estabelecer quais interpretações podemos construir entre as personagens de


Homero e Eurípides e as mulheres que escutavam a epopeia e assistiam76 à tragédia, também
precisamos apresentá-las como personagens e construir a relação entre ambas. Em sua
metodologia para a Análise do Discurso, Eni P. Orlandi nos apresenta suas reflexões acerca dos
vínculos que um discurso mantém com aqueles que foram proferidos antes dele. Concordando
com essa premissa, objetivamos demonstrar de que formas as personagens selecionadas em
nossa pesquisa se relacionam. Através da documentação literária produzida entre os séculos
VIII e V a.C., podermos destrinchar essas relações, à primeira vista, inexistentes.
Em seguida, a partir do conceito de representações sociais proposto por Jodelet,
relacionaremos as personagens e sua habilidade mais notável – o uso do phármakon – com as
práticas mágicas mais comuns às esposas dos cidadãos no Período Clássico. Propomos que
ambas poderiam ser interpretadas como representações construídas discursivamente, de forma
a preencherem um papel educativo à audiência, sobretudo a porção feminina. Este é, por fim, o
momento de nossa pesquisa em que a análise da magia tangencia diretamente as questões de
gênero, uma vez que não interpretamos como aleatória a escolha dos dois poetas, em períodos
distantes cronologicamente, de relacionar a magia ao gênero feminino.

75
Tradução do grego para o português realizada por Maria Regina Candido (2010b, p. 41).
76
Como mencionamos no Capítulo I, Mossé (1998, p. 108) apresenta a tese de que as mulheres, por acompanharem
corais em festas religiosas, tinham acesso à música e poesia. Já Carrière (1978, p. 18) aponta a existência de um
lugar para o público feminino no teatro, ao diferenciar a alocação da plateia na apresentação da comédia grega. J.
Henderson (1974, p. 144) apresenta que, apesar das considerações de alguns estudiosos sugerirem que as mulheres
não estavam incluídas na plateia do drama ático, não há fontes documentais que confirmem esta hipótese. Para o
autor, o conhecimento acerca das condições religiosas, políticas e sociais de Atenas encorajam as suposições de
que as mulheres poderiam participar dos festivais teatrais – caso seu marido ou kurios considerasse aceitável. Além
disso, há uma série de documentações clássicas que sugerem não só a ida ao teatro, mas o interesse feminino no
drama. Em Gorgias (502b-d), o Sócrates de Platão, ao discursar sobre a tragédia, nos diz que o drama é “uma
modalidade de retórica que se dirige ao povo, esse composto de crianças, mulheres e homens, de escravos e de
cidadãos livres num só todo” e compara o demos teatral com “o demos de cidadãos atenienses e outros demoi livres
em outras cidades”. Em Leis, a tragédia é classificada como uma retórica para agregar “mulheres, crianças e toda
a multidão” (PLATÃO, Leis, 817c) e as preferências das audiências dos festivais são descritas da seguinte forma:
“Se fossem garotos mais velhos premiariam o cômico, enquanto as mulheres educadas, os homens e, creio, o
conjunto do público premiariam o trágico” (PLATÃO, Leis, 658a-d), o que sugere que as mulheres participavam
sim do drama ático. Para complementar a discussão acerca da participação feminina no teatro, sugerimos a leitura
de FOLCH, 2015 e GOLDHILL, 1994 e 1997.
89
3.1 – Circe e Medeia relacionadas

Circe, ou Kirke é, na mitologia grega, uma divindade menor, reconhecidamente uma


feiticeira associada à pharmakeia (preparo de poções), extremamente habilidosa, suas áreas de
atuação incluíam a magia da transmutação/metamorfose, ao poder da ilusão e à arte obscura da
necromancia. Como pudemos notar em nossa análise dos praticantes de magia grega, controlar
os mortos – entidades que são por si mesmos assustadoras e diferentes – era tarefa daqueles que
se diferenciavam da sociedade “normal” (JOHNSTON, 2008b, p. 20). Circe, como divindade
distante da comunidade dos olimpianos, é um exemplo mítico desta associação. Descendente
direta de Hélios, deus do sol, e de Perseida, a oceânide, Circe é também irmã de Aeetes
(Odisseia, X, v. 135), rei da Cólquida. Circe, além de feiticeira, é algumas vezes considerada a
grande criadora da magia e dos feitiços. Em sua tradução literal, o termo Kirkê é a forma
feminina de kirkos e significa “falcão” (BAILLY, s.v.). Uma vez que os falcões fazem parte do
grupo de aves de rapina, o termo associa Circe à agressividade e a natureza particularmente
voraz possuída por esses animais. Essa etimologia também a relaciona com seu irmão Aeetes,
pois seu nome pode ser derivado do termo aetós, e se traduz como “águia”, outra ave de rapina
(BAILLY, s.v.).
Uma tradução para o termo kirkôo, que deriva de kirkos é “segurar com anéis” ou
“prender ao redor” (BAILLY, s.v.) – o que pode ser interpretado como uma referência direta
aos seus poderes mágicos e sua capacidade de dobrar coisas e pessoas à sua vontade – e kirkos
também traduz-se como “círculo” (BAILLY, 2000, s.v.). De acordo com D. Frame (1978, p.
50) esse significado pode conectar a feiticeira a seu pai, Hélios, uma vez que o círculo pode ser
interpretado como o astro solar e sua jornada diária ao longo do céu. Em outra interpretação, o
círculo também conecta a deusa com a métis, uma vez que Vernant e Detienne (2008, p. 13) já
relacionaram esta categoria mental com este símbolo. Assim, seu próprio nome – ademais às
suas qualidades e atitudes – a faria uma “portadora arquetípica” (BRACKE, 2009b, p. 72) da
astúcia, uma vez que a Circe é o círculo: impenetrável, porém completamente capaz de
prender/dobrar os outros.
Assim, o movimento circular que as aves de rapina fazem antes de atacar a presa – aves
como o falcão – também a conectariam com a métis, já que sua caçada não se resume a
movimentos impulsivos, mas sim a calcular o momento certo para atacar a presa (BRACKE,
2009b, p. 72). Ademais, o nome de Circe pode ser associado ao termo kirkés, que significa
“roca” (NAGLER, 1996, p. 152). A roca é um objeto que também indica associação com a

90
métis, uma vez que é através dela que se realiza a atividade humana da tecelagem 77. Assim,
falcão, círculo e tecelagem apontam para o poder de amarração da deusa: enquanto o falcão
referencia a sua natureza agressiva, a roca a conecta com a habilidade doméstica associada à
métis e às mulheres gregas, na Odisseia principalmente associada com a astuta Penélope
(BRACKE, 2009b, p. 72). Já de acordo com os Epigramas de Homero (Épico, VIII séc. a.C.),
a deusa é invocada quase como um daimona (espírito) da magia: “[Invocação à Circe:] Filha
de Hélios, Circe a bruxa (polypharmake), venha conjurar feitiços cruéis, fira tanto esses homens
quanto sua obra” (HOMERICA, Homer’s Epigrams, v. 14)78.
No canto X da Odisseia, quando o herói está prestes a narrar o episódio de Circe, ele a
descreve da seguinte maneira:

E fomos dar na ilha de Eeia, lar de Circe


De belas tranças, deusa hórrida e canora,
Irmã germana de Eetes, ânima-sinistra,
Prole dupla do Sol, luzeiro-de-homens; Persa,
A mãe, provinha da linhagem do Oceano
(Odisseia X, vv.135-139)

Qualificada como uma divindade bela e habilidosa na arte de cantar melodiosamente,


Circe é também monstruosa e intensa. A descendência direta dos Titãs, por parte de seus
genitores, aponta a Odisseu que a mesma se configura distante dos humanos e dos deuses
olimpianos, aproximando-a das características mais titânicas, como sua inconstância e seu
incontrolável temperamento. Como Bracke (2009, p. 88) e Parry (1992, p. 73-74) destacam, os
Titãs eram amplamente conhecidos na mitologia por terem sido derrotados e humilhados pela
linhagem dos olimpianos, de forma a serem usualmente retratados como seres rancorosos,
rebeldes e raivosos e, por conseguinte, também o serem todos aqueles que compartilham essa
linhagem sanguínea.
A feiticeira é descrita usando um vestido longo, belo e finamente bordado, e em sua
cintura há um belo cinto de ouro (Odisseia, X, vv. 543-545) e possui, em sua luxuosa morada,
utensílios de ouro e prata e tapetes de cor púrpura. Sua companhia na ilha, além dos homens
enfeitiçados, eram as ninfas que a serviam. A sua figura era de uma deusa cruel, ardilosa,
pavorosa (Odisseia, X, v. 136) não só por suas habilidades em magia, mas pelo que fazia com

77
Tecelagem e métis estão relacionadas por sua conexão com a virgem deusa Athená: estrategista e guerreira
astuciosa, a filha de Zeus é também a deusa tecelã por excelência e conecta-se, dessa forma, com a atividade
feminina no interior do oîkos. Como nos diz James Redfield (1982, p. 194): “A tecelagem é uma imagem da
métis feminina. De Circe a Calipso cantando em seus teares, à Penélope tecendo e destecendo sua rede, a mulher
astuta em Homero é uma tecelã (...)”.
78
Texto retirado da base theoi, em inglês (tradutor não especificado). Tradução nossa para o português.
91
aqueles que ousavam perturbá-la. Em suma, Circe é ameaçadora e Odisseu passará por ainda
mais sofrimento em sua ilha. Porém, quando de fato os homens de Odisseu a encontram, não
há nenhum sinal aparente de periculosidade. Ao contrário, Circe é descrita como estando no
interior de seu oîkos, entoando cânticos em sua voz encantadora e tecendo, com a qualidade e
o esmero que apenas uma deusa seria capaz de ter. A divindade de belas-tranças é,
momentaneamente, a descrição de uma mulher dedicada à vida doméstica:

(...) Os sócios miram


Com medo os animais. Pararam em frente ao pórtico
Da deusa de belas-tranças. Ouvem do interior
A voz de Circe que cantava afinadíssima,
Enquanto urdia enorme tela ambrósia, rútila.
Obra sutil, qual soem entretecer as deusas
(Odisseia X, vv. 220-223)

Além de ser apresentada pelo poeta como uma divindade de belos cabelos trançados
(euplokamos) e doce voz (opikalēi) (Odisseia, X, v. 136 e 221), ele também nos informa que
ela habita um vale estreito na floresta (X, v. 210) e um palácio cercado por lobos, leões e ursos
(X, v. 212) que garantem a proteção de sua vida e de seus tesouros, na ilha de Eeia, localizada
na Costa da Sicília. Antes de encontrá-la, Odisseu explora inicialmente a ilha, procurando por
mortais. Porém, seus olhos só repousam sobre florestas (X v. 150-197) e, como nas aventuras
anteriores, a terra não é cultivada. À distância, Odisseu nota fumaça subindo aos céus (X v.
196-197), o que indica uma fogueira e a presença de alguém. Tudo isso lembra Odisseu do
encontro com Ciclope (IX v. 167) e com os Lestrigões (X v. 99), e os resultados funestos de
suas experiências nessas ilhas. Apolônio de Rodes, seguindo a tradição de Hesíodo, diz que
Circe veio para a ilha além da Toscana na carruagem de seu pai Hélios (RODES, Scholiast, 3,
v. 311). Conforme a narrativa de Homero avança, Euríloco 79 indica que os belos animais que
vagam pela ilha de Circe são, na verdade, suas vítimas: marinheiros que, como Odisseu e seus
companheiros, atracaram em sua ilha e tiveram este triste fim.
Homero (Odisseia, X, vv. 230-238) a caracteriza como sendo extremamente habilidosa,
e isso nos é explicitado quando ela enfeitiça, quase sem esforço, os aqueus que adentraram sua
morada. Combinado ao seu poder de manipulação das ervas, Circe usa apenas da sedução: sua
bela aparência, sua bela voz, sua mansão e os luxos que a mesma contém - comida, vinho, ouro,
belos tecidos. Todas as possibilidades que seu o oîkos oferta são irresistíveis para os aqueus,
uma vez que se encontram no percurso de uma longa jornada – jornada esta que lhes causou

79
Ele diz: “Buscai desgraças? Infelizes, onde ides?/ À moradia de Circe, para nos tornarmos/ porcos, lobos, leões,
alçados à função/ de involuntários guardas do solar imenso,” (X, vv. 431-433).
92
imensos infortúnios e perdas. Como vimos no capítulo anterior, Circe usa uma poção mágica
para transformar os aqueus em porcos, como faz com todos os homens que seduz e cruelmente
amaldiçoa. A divindade tenta fazer o mesmo com Odisseu, mas o herói obteve ajuda do deus
Hermes:

Já prestes a chegar, cruzando os vales sacros,


Ao lar de Circe, polypharmakos,
Hermes lançou-se à minha frente, caduceu-
-de-ouro, pouco antes da morada enorme, ícone
De um moço imberbe cuja adolescência é grácil.
Tomou-me a mão e dirigiu-me tais palavras:
(...)
(...) Desejo
Te poupar, ou melhor, salvar da atrocidade.
Entra com este phármakon no lar de Circe,
Que afastarás o dia fatal de tua cabeça.
Eis uma das ciladas típicas de Circe:
Há de ofertar-te um drinque, drogar teu manjar,
Mas não conseguirá te enfeitiçar com este
Phármakon diverso que recebes como antídoto
(Odisseia X, vv. 275-292)

Dessa maneira, Odisseu consegue subjugar Circe na própria arte que a divindade
domina:
(...) O coquetel me preparou
Na taça de ouro, sem deixar de acrescentar
A droga, ruminando atrocidades no íntimo.
Sorvi o líquido sem me narcotizar;
Golpeou-me com a verga, me ordenando assim:
‘Vai repousar com teus amigos na pocilga!’
Nem bem falou, saquei da coxa a espada afiada,
E, em sua direção, ameacei matá-la.
Urlando corre para me abraçar os joelhos
E então profere, às lágrimas, palavras-asas:
(...)
Devolve a espada à bainha, para então subirmos
Nós dois ao tálamo! A união de nossos corpos
No amor há de aumentar a mútua confiança!
(Odisseia X, vv. 315-335)

Nesse momento da narrativa, Circe transforma-se: se antes era hostil e inimiga, agora
oferecia o leito ao aqueu. Circe foi vencida em sua métis e em sua techné: pretendendo
transformar o favorito de Athená, falhou, pois este obtivera ajuda divina, a ajuda de um
phármakon que superou o seu. Odisseu e Hermes, juntos, foram capazes de subjugar àquela
deusa conhecida como polypharmakos. As figuras masculinas, nessa cena, se sobrepõem à
feminina: todo o ardil de Circe não foi páreo para a força viril de Odisseu ajudado por Hermes.
A partir de então, Circe adquire/demonstra um caráter completamente domesticado, pois, de

93
maneira similar à outras mulheres que oferecem hospitalidade na narrativa da Odisseia
(PEDRICK, 1988), Circe oferece banho, alimento e presentes80 ao seu convidado.
Antes de partir, porém, o herói vive em sua companhia por um longo ano. Esse tempo
funciona como um hiato na condição de pavorosa feiticeira: Circe vive feliz com Odisseu, dá a
seus companheiros um lugar para habitar, alimento farto para consumir e descanso para os
corpos cansados da árdua viagem. Ao final deste ano, quando ele deseja deixá-la, ela o
aconselha a descer até o Hades e consultar o espírito de Tirésias, usando da magia necromante
que analisamos previamente. Quando Odisseu retorna, ela o explica todos os perigos que ele
ainda terá de enfrentar e depois o manda seguir seu caminho de volta à Penélope. E não há
qualquer tipo de despedida: Circe simplesmente usa do “manto invisível” que os deuses
possuem, para despistar as vistas dos mortais, e eles nunca mais se encontram. Tal como um
sonho, o ano de Odisseu com Circe fica para trás.
A Teogonia (vv. 963-1020) de Hesíodo, outro texto que apresenta uma narrativa sobre
a feiticeira, menciona Circe juntamente com Medeia, ao explicitar um catálogo de deusas que
praticam atos sexuais com heróis e os frutos gerados dessas relações. Elas são também
mencionadas primeiramente na narrativa das uniões divinas e sua descendência (vv.956-962):

Do Sol [Hélios] incansável a ínclita Oceanina


Perseida gerou Circe e o rei Eetes.
Eetes, filho do Sol ilumina-mortais,
Desposou a virgem do Oceano rio circular
Sábia de belas faces, por desígnios dos Deuses.
Ela pariu Medeia de belos tornozelos,
Subjugada em amor graças à áurea Afrodite.81

Nesse momento, consideramos importante frisar o parentesco de Circe e Medeia, pois


elas não apenas possuem origens divinas, são duas das “quantas deitando-se com homens
mortais/ imortais pariram filhos símeis aos Deuses” (v. 968), mas Circe é tia de Medeia. Assim,
ambas estão conectadas pela linhagem sanguínea e na especialidade, pois, como já informamos
anteriormente, Medeia compartilha a arte da manipulação do phármakon. Ambas são
mencionadas por Hesíodo somente mais uma vez, separadamente. A união de Circe e Odisseu
é narrada perto do fim da lista (vv. 1011-1016):

Circe, filha do Sol Hiperónida,

80
A divindade dá ao herói um quíton e uma túnica (Odisseia X, v. 542), um navio escuro, um carneiro e uma
ovelha negra, que deveriam ser sacrificados na entrada do Hades (X, vv. 571-572) e provisões para o resto de sua
jornada à Ítaca (XII, vv. 18-19).
81
Todas as traduções da Teogonia são de Jaa Torrano.
94
Amada por Odisseu de sofrida prudência, gerou
Ágrio, Latino irrepreensível e poderoso,
E pariu Telégono, graças à áurea Afrodite.
Bem longe, no interior de ilhas sagradas,
Eles reinam sobre os ínclitos tirrenos todos.

Assim como sua tia, Medeia é uma figura mitológica antiga e desenvolvida pela
literatura grega séculos antes de se tornar a personagem principal na peça homônima de
Eurípides, em 431 a.C.. Como Bracke (2009, p. 73) ressaltou, seu nome tem origens na raiz
estendida indo-europeia *med-, que Chantraine (s.v.) define como “tomar as medidas
apropriadas com autoridade” e que foi desenvolvida em dois verbos na Grécia antiga. O
primeiro desses verbos é mêdomai, que se traduz como “pretender” e “planejar”, e tem o
substantivo tamêdea associado a si, cujo significado habitual é “planos” ou “esquemas”
(CHANTRAINE, s.v.), e, curiosamente, possui um homônimo que se refere à genitália
masculina. O segundo verbo é mêtiaô, “deliberar” ou “inventar” (CHANTRAINE, 1968, s.v.),
que foi derivado do substantivo métis, a astúcia. Todos esses termos carregam em si a mesma
noção que a definição de Chantraine nos oferece para a raiz indo-europeia, de forma que as
conotações explicitadas são evocadas no nome Medeia. Assim, a origem do nome da feiticeira
sugere não apenas o conhecimento e a autoridade para agir, mas acima de tudo astúcia; assim,
o nome Medeia pode ser traduzido como “mulher astuciosa” ou “inventiva” (BRACKE, 2009,
p. 73).
Ela é personagem presente na história dos Argonautas e sua empreitada, a busca pelo
Velocino de Ouro. Sua história está inscrita no modelo de outras viagens marítimas perigosas,
tendo por objetivo a conquista de um tesouro inestimável e impossível, desenvolvidas por
antigas culturas do Mediterrâneo Oriental (FIALHO, 2015, p. 13). O mito dos Argonautas é,
inclusive, mais antigo do que as épicas aventuras de Odisseu narradas por Homero. Isto é
observado no canto XII da Odisseia, vv. 69-70, que dizem: “Por ali só uma nau passou, das que
navegam no alto mar:/a nau Argo, por todos cantada, ao regressar da terra de Aeetes”. No
entanto, apesar de sabermos de sua existência mítica anterior, não chegaram até nós quaisquer
fragmentos que contenham o mito original em sua totalidade.
Uma vez que não possuímos fragmentos anteriores à Teogonia de Hesíodo, é por ela
que começaremos a apresentar Medeia. No mesmo catálogo que menciona a união de Circe e
Odisseu, o casamento de Medeia e Jasão também é narrado (vv. 992-1002):

Virgem do rei Eetes sustentado por Zeus,


O Esonida por desígnios dos deuses perenes
Levou-a de Eetes após cumprir gemidosas provas,

95
As muitas impostas pelo grande rei soberbo
O insolente Pélias estulto e de obras brutais.
Cumpriu-as, e chegou a Iolco após muito penar
O Esonida, levando em seu navio veloz
A virgem de olhos vivos, e desposou-a florescente.
Ela, submetida a Jasão pastor de homens,
Pariu Medeu, criou-o nas montanhas Quíron
Filírida, e cumpriu-se o intuito do grande Zeus.

Concebida primordialmente como sobrinha de Circe, a princesa da Cólquida, filha de


Aeetes, tem um caráter imortal análogo ao de sua tia e divindade homérica, como nos dizem
Hesíodo (Teogonia, vv. 992-1002) e Píndaro (Píticas. IV, vv. 71-251), além do último aludir
aos seus poderes mágicos, enquanto o primeiro atribui a vontade divina o fato de Medeia chegar
até Iolco e sugere um final feliz para o herói e sua esposa. Essa versão contrasta completamente
com a tragédia clássica, em que Medeia é abandonada por Jasão. Eurípides, demonstrando seu
caráter inovador como tragediógrafo, apresenta ao público ateniense – conhecedor do antigo
mito de Medeia – uma figura feminina humana e, por conseguinte, mortal. De acordo com W.
Allan (2002, p.17), Eurípides apresenta para o público ateniense uma personagem
extremamente humana, com quem é possível se identificar, compreender as lamúrias e a sede
de vingança - por mais que não seja possível perdoar sua atitude vil para com os próprios filhos.
Apesar dessa grande diferença, na tragédia em questão, a personagem compartilha do
mesmo passado mítico de sua origem: sua vida e a de Jasão se cruzaram no momento em que o
herói e seus companheiros chegam à Colquida, através da nau Argo, com o objetivo de
recuperar o Velocino de Ouro, em posse do rei bárbaro Eetes. O rei impôs a Jasão tarefas
humanamente impossíveis, que o herói deveria realizar a fim de obter o velocino, as quais o
filho de Éson cumpriu, apesar das dificuldades. Contrariando o acordo firmado por ambos,
Eetes negou-se a entregar o velocino de ouro, o que frustraria os planos de Jasão e dos
Argonautas, que só poderiam voltar à sua terra natal, Iolco, em posse do objeto mágico. Não
era possível tomá-lo à força do rei, uma vez que o objeto era guardado por um feroz e imenso
dragão.
Apaixonada pelo herói heleno e compadecida por seu infortúnio, Medeia, princesa da
Cólquida e filha de Eetes, decide oferecer seus talentos mágicos para favorecer Jasão, em troca
de matrimonio e fidelidade. Jasão prontamente aceitou sua oferta e jurou no templo de Hécate
que seria fiel e desposaria a princesa, levando-a com ele para Iolco. Assim, Medeia produziu
uma poção mágica para Jasão, que a utilizou para derrotar o feroz animal e roubar o velocino
de ouro. O casal e os argonautas então fogem para Iolco em seu navio, levando Absirto, príncipe
e irmão de Medeia, na fuga. Porém são perseguidos pelo pai, que parte em sua busca

96
imediatamente ao descobrir a traição de sua filha. Querendo despistar o pai, Medeia –
completamente apaixonada e disposta a fazer tudo pelo herói – mata e esquarteja o irmão,
jogando seus restos mortais no oceano. A maldade da princesa tem fundamento e objetivo:
sabendo que Eetes também os perseguiria, atirou os restos do irmão com o objetivo de frear o
avanço do pai. O plano surtiu efeito e, desolado com a morte do filho, o rei não foi capaz de
alcançar Jasão e Medeia, que conseguiram chegar a Iolco (APOLLODORO, I, 9, 24).
Jasão retornara com o velocino prometido a Pélias - seu tio e regente de Iolco - como
requisito para que este cedesse o trono ao herói. O regente, no entanto, recusa-se a entregar ao
argonauta o trono que lhe é de direito, e mais uma vez Medeia age em auxílio e benefício de
seu amado, astutamente arquitetando a destruição do novo inimigo. A feiticeira então convoca
as quatro princesas de Iolco, filhas de Pélias, para uma demonstração de magia: disse-lhes que
era capaz de transformar um carneiro idoso em novilho e, através de truques ilusionistas, a
feiticeira esquarteja e cozinha o animal em um caldeirão, “tirando” de dentro dele um filhote.
Três das filhas de Pélias ficam encantadas com o poder da feiticeira, e pedem para que
ela lhes ensine o encantamento, de forma que elas sejam capazes de rejuvenescer o pai. Medeia
lhes orienta a esquartejar e cozinhar Pélias no mesmo caldeirão, de onde ele sairia jovem, belo
e forte. As três princesas seguem as instruções de Medeia, mas só descobrem tarde demais que
o pai não sairia rejuvenescido do caldeirão. A revolta das princesas foi compartilhada pelos
habitantes de Iolco que, cheios de repulsa e revolta pela atitude de Medeia, expulsam a feiticeira
e Jasão de seu país. Os dois fogem e obtém asilo em Corinto, onde se casam e vivem em paz,
em troca dos serviços mágicos de Medeia: Corinto vivia uma difícil época de seca, infertilidade
e fome, e a feiticeira usou de seus conhecimentos mágicos para cessar os males que assolavam
a região. Aclamada pela população por causa de suas habilidades e toda ajuda que ofereceu para
agradecer a hospitalidade, Medeia viveu em Corinto por 10 anos com Jasão, a quem deu dois
filhos. A paz e a felicidade o casal, no entanto, é destruída quando Egeu, rei de Corinto, oferece
a mão de sua filha Glauce ao herói, que prontamente aceita a oferta. É justamente nesse
momento que a peça de Eurípides começa.
A tragédia foi primeiramente encenada durante o festival da Grande Dionísia e se centra
na história de uma mulher estrangeira que transpassou todas as barreiras possíveis daquilo que
os gregos antigos entendiam como sendo o comportamento esperado de uma esposa, e a versão
de Eurípides carrega diferenças marcantes e importantes em relação às versões mais antigas e
talvez por isso tenha se tornado a versão mais conhecida na contemporaneidade: o senso comum
nos faz pensar, sempre que a citamos, na feiticeira infanticida do dramaturgo ateniense.
Eurípides é quem primeiro a coloca como assassina da própria prole, reconstruindo seu mito a
97
partir da tradição do culto aos filhos de Medeia em Corinto. O culto em questão, no templo de
Hera Acraia, tem um caráter reparador pela morte dos filhos da feiticeira, que originalmente
teriam sido assassinados pela população raivosa de Corinto, encontrando o fim de suas vidas
após Medeia tê-los escondido no templo para protegê-los (FIALHO, 2006, p. 17). Eurípides
ressignifica ao final de sua peça a tradição ao culto dos filhos de Medeia, fazendo de sua nova
origem uma forma de expiar todos os males causados naquela terra, que terminou com o
assassinato de seus governantes e foi banhada de sangue através do terrível crime do
infanticídio.
No início da peça vemos a Ama dos filhos de Medeia, no portão da casa da princesa da
Cólquida, compadecendo-se da condição de sua mestra, ouvindo suas lamúrias e choro, ao que
segue a entrada do Pedagogo responsável pela prole da mesma. Maria do Céu Fialho (2006, p.
18) nos apresenta que a escolha de Eurípides pelo uso dessas duas personagens que participam
do oîkos tem um significado marcante na narrativa, pois a Ama é a personagem que nos remete
à intimidade do lar, ao gineceu, espaço feminino por excelência, enquanto que o Pedagogo
funciona como o elo de ligação entre o oîkos e o espaço público. Fazendo parte desse lar que
se desagrega e se desgraça pelas atitudes de Jasão, a Ama e o Pedagogo são personagens
relevantes para a ambientação da infelicidade de Medeia, de quem ouvimos o choro, mas não
vemos em um primeiro momento.
A Ama, por ser íntima de Medeia e por conhecê-la bem, é capaz de perceber sinais em
suas atitudes e olhares, sinais esses que a preocupam e a fazem comentar para o público e o
Pedagogo suas desconfianças. Justamente por saber que o caráter e temperamento de Medeia
são extremamente fortes, autônomos e fulminantes, e que ela havia feito um esforço tremendo
para agradar a Jasão e os cidadãos gregos cuja terra chegou para habitar (EURÍPIDES. Medeia,
vv. 12-13), a Ama é capaz de imaginar que sua senhora não ficará entregue ao choro por muito
tempo: não é do feitio de Medeia deixar uma ofensa sem retaliação.
Medeia fez o possível e o impossível para se adequar as exigências sociais, sendo para
Jasão uma esposa sem defeitos: honrou seu lar, não se contrapôs ao marido em nenhum
momento, ajudou a comunidade com seu saber-fazer mágico e deu à Jasão filhos para a
continuidade de sua linhagem. Ou seja: seu lar era respeitoso e estava integrado à comunidade
pelos laços de philía (BONGIE, 1977, p. 28; FIALHO, 2006, p. 19). A estratégia do poeta ao
utilizar um Coro feminino é uma maneira de conduzir o discurso que merece destaque. Na
lógica do teatro grego, o Coro era a voz da pólis apresentada no palco: todas as indagações,
afirmativas, conselhos e emoções que apareciam na apresentação eram representantes das
questões que a comunidade compartilhava/vivenciava como um todo. O Coro das mulheres de
98
Corinto se compadece dos infortúnios de Medeia e reconhece em suas falas os seus próprios
dissabores, uma vez que também pertencem ao gênero feminino.
E é durante a demonstração de sua indignação, destacando os versos 238-240, que
Medeia expõe uma das condições sociais de seu gênero inserido na dinâmica de uma pólis:
deixar seu lar e integrar o oîkos do marido, sem saber o que dele esperar e como agir. Essa
situação é facilmente identificável pelas mulheres de Corinto (e pela plateia ateniense), pois
elas também passaram por isso quando se casaram. Esta é a Medeia de Eurípides: a mulher que,
em desacordo com aquilo que o destino lhe reservou, usa de toda a sua sabedoria do phármakon
e seu caráter astuto para tramar sua vingança. Mais adiante no capítulo analisaremos mais
profundamente as suas atitudes, uma vez que neste momento buscamos entendê-la como figura
mítica82.
Torna-se importante mencionar, neste momento, que Circe continuou a ser mencionada
e associada primordialmente com a magia, muito séculos depois de Homero e Hesíodo terem
cantado sobre ela. As tradições mais tardias mantêm a conexão que Hesíodo menciona entre a
feiticeira de Eea e Medeia, apenas com uma pequena diferença: enquanto no século VIII a.C.,
Circe é irmã de Eetes e tia de Medeia, sete séculos mais tarde, ambas são irmãs e filhas da deusa
Hécate. O importante é destacar que suas histórias são intimamente ligadas para aqueles que
viveram em um mundo governado pelos deuses olimpianos e suas forças ocultas e que Circe,
como primeira representação ocidental de uma feiticeira talentosa (OGDEN, 2002, p. 98),
mantém sua relevância através do tempo: mesmo os poetas latinos usam de seu histórico e as
habilidades que lhe foram atribuídas, tanto que a responsabilizam por metamorfosear a ninfa
Cilla em monstro marinho e o Picus, rei da Ausônia (OVIDIO, Metamorphoses, XIV, v. 1-74
e 320-396).As poesias helenística e romana mantiveram a noção de mulheres mágicas como
geograficamente marginais, fazendo referência à criação do termo mageia (BRACKE, 2009b,

82
Séculos depois de Homero e Hesíodo terem mencionado Circe em sua poesia e de Eurípides e Píndaro terem
escrito sobre Medeia, o historiador Diodoro Sículo (I século a.C.) nos diz: “[Uma tardia racionalização grega do
mito de Circe:] Ela [Hekate (Hécate, filha de Perseida e irmã de Eetes] casou-se com Eetes e pariu duas filhas,
Kirke (Circe) e Medeia, e um filho Aigialeus. Embora Circe também, é dito, devotou sua vida ao estudo de todas
as formas de drogas e descobriu raízes de todas as maneiras e potências que são difíceis de creditar, foi também
ensinada por sua mãe Hécate sobre muitas drogas, contudo ela descobriu por estudo próprio um número ainda
maior, de forma que a outra não lhe é superior no assunto dos mais diversos usos das drogas. Ela foi dada em
casamento para o rei dos Sármatas, e primeiro ela envenenou seu marido e depois disso, sucedendo ao trono,
cometeu muitos atos cruéis e violentos contra seus súditos. Por essa razão, ela foi deposta de seu trono e, de acordo
com alguns escritores de mitos, fugiu pelo oceano, onde ela se estabeleceu em uma ilha deserta e, lá se fixou com
as mulheres que fugiram com ela, embora de acordo com alguns historiadores ela deixou Pontos e se fixou na
Itália, num promontório que foi nomeado em sua homenagem Kirkaion (Circaeum) e até hoje mantém esse nome”
(DIODORUS SICULUS, Library of History, IV, v.45). Tradução do grego para o inglês de C. H. Oldfather.
Tradução nossa para o português.
99
p. 91). Como estabelecemos previamente, o termo foi cunhado em grego derivando dos magoi
persas, indicando que a magia tem um quê de alteridade/o Outro.
Circe e Medeia têm origem na Cólquida, um lugar geograficamente afastado do mundo
grego, servindo de referência para as bruxas de tradições posteriores, que se mantiveram como
estrangeiras. Na poesia romana, a Cólquida foi de fato construída como um local mágico
(BRACKE, 2009b, p. 93), pela associação com as duas feiticeiras: o poeta Horácio, em Epodos
(XVII, 35), menciona a existência de venen...Colchica – venenos da Cólquida – e podem ser
interpretados como uma referência às feiticeiras, embora apenas a região geográfica esteja
especificada. A própria associação das mulheres da Tessália como bruxas foi baseada na
conexão de Medeia com essa terra no mito da Argonáutica (PHILLIPS, 2002, p. 380-381). A
ancestralidade compartilhada por ambas as associa a poderes mais primitivos e sombrios do
que os Olimpianos, e em conjunto com a qualidade astuta implicada no significado de seus
nomes, as figuras míticas se integram em um simbolismo duplamente ctônico e celestial,
servindo como referência arquetípica para as bruxas que vieram depois (BRACKE, 2009, p.
94).

3.2- As esposas legítimas dos cidadãos e a magia do phármakon: magia feminina

Antes de nos dedicarmos à análise da magia utilizada pelas esposas legítimas dos
cidadãos atenienses, consideramos importante apresentarmos a noção de esposa ideal para os
padrões do período Clássico e demonstrar como o discurso do período mantém uma estrutura
de continuidade com relação a sociedade arcaica. Para isso, nos pautaremos em documentações
de ambos os períodos tendo em vista que a literatura é um meio de reforçar ou rechaçar modelos.
A poesia de Homero foi utilizada como base para a formulação da educação grega, de forma
que o épico se manteve relevante e presente no quotidiano da antiguidade, do período Arcaico
ao Clássico, assim tanto os homens quanto as mulheres eram familiarizados com os personagens
da queda de Tróia e da jornada Odisseu (LEFKOWITZ, 1987, p. 503).
De acordo com documentação ática e a historiografia subsequente que a analisou, no
que concernem às atividades femininas no contexto da pólis clássica, sabemos que eram
consideradas legalmente eternas “menores”: não possuíam direito à propriedade, nem ao voto,
e seus movimentos eram restritos (LEFWOTIZ, 1987, p. 503). Dessa forma, os principais
ofícios das mulheres atenienses eram aqueles da vida doméstica, no interior do oîkos,
especialmente os de esposa e mãe. A sociedade ateniense, principalmente a partir dos ideais
dos homens da elite, os cidadãos, incentivava a seleção de modelos para suas mulheres,
100
baseados na mitologia e nos épicos, de forma que se constituíam como exemplos da existência
feminina na imaginação masculina (POMEROY, 1999, p. 8). Assim, as visões expostas acerca
das mulheres, atenienses ou estrangeiras, na literatura ática são àquelas dos homens das elites
econômicas, uma vez que às mulheres era negada uma educação formal. Não havendo
geralmente um ensino focado no aprendizado da leitura e escrita, tornava-se inviável a
existência de escritoras no período, de forma que não possuímos meios diretos de acessarmos
suas próprias reflexões sobre si e a sociedade (O’NEAL, 1993, p. 116-117).
Porém, isso não significa que estão ausentes nas histórias e mitos. Ao contrário, como
nos disse A. W. Gomme (1925, p. 4): “Não há, de fato, outra literatura, ou arte de qualquer país,
em que as mulheres são mais proeminentes, mais cuidadosamente e interessadamente estudadas
do que na tragédia, escultura e pintura da Atenas do V século”. Em pleno século XXI, torna-se
difícil – para não dizer impossível – concordar em totalidade com a afirmação de Gomme, uma
vez que o movimento feminista proporcionou e estimulou a produção de estudos interessados
nas vidas das mulheres das mais diversas épocas, nos mais diversos campos de estudo, sejam
eles antropológicos, biológicos, literários, históricos, etc. Dito isso, concordamos que há uma
abundância de fontes documentais da sociedade ateniense que, ao passo que não nos permitem
compreendê-las em sua totalidade, trazem-nos vislumbres e possibilidades de interpretação
acerca das interações sociais femininas do período.
No Período Clássico, Xenofonte (Econômico. VII-X; VII, 6) escreveu as diretrizes a
serem seguidas para a correta educação de uma jovem noiva ateniense. Em sua percepção, a
esposa ideal deveria ter em torno 15 anos, de forma que sua educação seria completada no oîkos
do marido, onde ela deveria chegar sabendo o mínimo, conhecendo o mínimo e falando o
mínimo possível. Além disso, sua maior virtude deveria ser a moderação, sobretudo no que se
refere à alimentação. A jovem noiva ateniense de Xenofonte é o contrário da má esposa de
Hesíodo (Os Trabalhos e os Dias, v. 704-705), que, interessada sempre em consumir cada vez
mais os frutos da terra do marido, o desgasta física, mental e economicamente.
O lugar da mulher, segundo Xenofonte, é o oîkos, e sua educação deve ser voltada para
os assuntos domésticos e para a manutenção do lar: ela deve gerar herdeiros masculinos para
seu marido, criá-los, ser discreta, comedida, manter a casa em ordem, ser responsável pelo
armazenamento de comida e sua duração, supervisionar o trabalho dos escravos domésticos,
saber fiar e tecer, cuidar dos doentes, obedecer e ser submissa ao marido e seu único exercício
é o trabalho do lar, pois: “a bondade e a beleza aumentam nesse mundo através da prática das
virtudes” (XENOFONTE, Econômico VII, 43). O modelo mélissa é sem dúvida, uma
construção cultural da sociedade masculinizada ateniense do Período Clássico, portanto é antes
101
de tudo um ideal. Mesmo que a epopeia homérica esteja situada em um período anterior à
formação políade, encontramos em suas histórias elementos coesos que demonstram
comportamentos dentro desse padrão, que explicitaremos posteriormente. Esse modelo
constituía-se de um conjunto de virtudes que deveriam ser cultivadas pela boa esposa, a qual
Simónides de Amorgos (Iambos, vv. 83-89) associou a abelha obreira:

a ela – qualquer é feliz – conquistando;


pois só a ela censura não se liga,
florescem por sua causa e crescem os bens da casa.
Amiga, com o que a ama envelhece, com o esposo,
gerando uma bela e celebre prole.
Notável entre as mulheres torna-se,
Entre todas; divina em torno corre-lhe a graça.
(Semônides de Amorgos, Iambos, vv. 83-89).83

Tal modelo comportamental ideal foi propagado para as mulheres atenienses e


expandiu-se para algumas outras regiões fora de Atenas, representando, essencialmente, as
virtudes que as esposas e pretendentes a esposas deveriam exaltar e possuir. Tais elementos
podem ser observados pela grande forma de difusão social e cultural que eram evocados, como
o teatro, a imagética, a literatura. Também no Econômico (VII, 35-37) de Xenofonte
observamos Iscômaco descrevendo à sua esposa as diversas atividades que lhe são incumbidas:
permanecer no lar, mandar os serviçais ao trabalho, supervisionar os criados domésticos, ser
responsável e econômica com as despesas domésticas, fiar a lã, fazer roupas, cuidar da despensa
e garantir aos doentes o tratamento adequado.
Iscômaco alude também à reclusão das mesmas dentro do oîkos (onde haveria o gineceu,
espaço tipicamente feminino), subentendendo a exclusão da vida social, pública e política.
Outra importante expectativa era a procriação legítima, principalmente de filhos homens. A
reclusão feminina no oîkos, enquanto parte do modelo mélissa, subentendia também a ideia de
submissão, silêncio e fragilidade como virtudes femininas. As mulheres não deveriam aparecer
em público, pois para estas era mérito que nada se soubesse acerca delas. Mesmo no teatro, às
personagens femininas, bastava aparecerem em cena, para que, pelo fato de o público as ver,
estivessem em certa medida já desacreditadas ou em perigo (REDFIELD, 1993, p. 148). Dessa
forma, as esposas respeitáveis não deveriam aparecer em público, a não ser em ocasiões
especiais como funerais e festivais onde lhes era permitido o desempenho legítimo de um papel
social em público (JONES, 1997, p. 168-169). Essa descrição, todavia, é uma generalização,

83
Tradução de Daisi Malhadas.
102
uma vez que a manutenção das mulheres no gineceu era dispendiosa e, por conseguinte,
possibilitada apenas aos segmentos mais abastados.
O modelo mélissa era, portanto, a idealização da esposa perfeita, o enaltecimento das
virtudes a sociedade ateniense considerava apropriadas para elas. Todavia, acreditamos que
esse modelo não representasse de fato a vida das mulheres atenienses, pois através da análise
de documentos, percebemos nas ações cotidianas, algumas “transgressões” ao modelo
idealizado. É a esse cotidiano que transgrede a idealização que se refere Marta Mega de
Andrade (2002, p.41) quando afirma que “a vida cotidiana desmascara os ideais de uma
civilização”, e quando a autora cita Agnes Heller, para quem: a imediatidade das relações
cotidianas consolida toda e qualquer sociedade, pois as mesmas são responsáveis pela criação
da coesão social. Esta coesão é alcançada através dos processos de educação, assimilação e
mesmo de coerção.
As funções que foram aludidas anteriormente nos demonstram que é esperado que a
mulher cumpra suas funções como mãe, esposa e administradora do lar, porém sentimentos de
felicidade e phylía não são mostrados ou atestados como necessários a um bom casamento. A
forma com que Homero e Eurípides abordam certas personagens femininas nos leva a pensar
nas discussões propostas acerca do próprio modelo mélissa: um ideal de conduta e
comportamento formulado pelos homens para esposas que poderia não corresponder de fato à
realidade cotidiana, uma vez que “a realidade não pode ser copiada pelo artista/autor assim
como ela é ou como ele a vê, já que ela é uma manifestação ideológica, pois pressupõe uma
seleção” (LESSA, 2010, p. 24)
O silêncio e a reclusão ao oîkos fazem parte das atribuições esperadas por uma esposa,
sendo assim sua vinculação está diretamente associada a um âmbito privado da vida. Quando
somos apresentados a personagens femininas, estas se relacionam intrinsecamente ao gênero
trágico. Estas figuras surgem no mundo masculino e sofrem as consequências de sair de seu
anonimato (LORAUX, 1988, p.24-26). Frequentemente, as ações que as personagens femininas
são colocadas, exigem das mesmas decisões, atitudes, o que em um mundo de primazia
patriarcal, não era previsto no estatuto feminino.
O modelo mélissa foi concebido pela sociedade masculinizada ateniense, mas seu eco
veio de um período anterior, onde nas próprias bases da cultura e da identidade helênicas,
difundidos por Homero (POMEROY, 1975, p.28-31), já encontramos raízes sólidas. A partir
da associação entre a abelha e a mulher, buscando descrever melhor a phýsis feminina,
observamos que tal associação se faz visto que ambas, mulher e abelha, saem de seus
“domicílios” acompanhadas ou em ocasiões especiais, visto que em última instancia cuidar do
103
perfeito funcionamento de seus lares é sua atribuição final. Dessa forma, podemos inferir que
o trabalho de ambas, abelha e esposa, buscam essencialmente o funcionamento de suas
comunidades. Na sociedade grega, particularmente em Atenas, homens e mulheres possuíam
seus próprios espaços de atuação, onde ambos buscavam executar suas atividades visando
sempre o melhor para sua comunidade. Esta constatação nos permite perceber a idealização de
modelos diferenciados de conduta, ligados por um objetivo comum, o bem-estar social de sua
pólis. Ao se evocar personagens femininas distintas e temporalmente distantes, podemos
perceber que a construção de um modelo ideal de esposa, ‘cidadã’, perpassa a história grega em
seus diversos momentos.
Como exemplo do modelo ideal de esposa que permeia o imaginário helênico desde o
período Arcaico até a pólis democrática de Atenas, podemos apontar a personagem Penélope
(O’NEAL, 1993, p. 117), esposa de Odisseu. No canto I da Odisseia (vv. 320-59), Homero a
descreve acompanhada por duas servas, nunca sozinha, e pede ao aedo que cante alegremente
os feitos dos deuses e homens, pois ela, chorosa, vive a dor incessante da saudade de seu marido.
Ela chora constantemente pela dor lacerante de sua perda, até dormir (I, vv. 360-64), e em
público (XIX, v. 56 e 330). Já no canto XXIII (vv. 205-07), a mulher permanece prudente e não
age de forma impensada, só aceitando a volta de seu amado marido quando enfim o reconhece,
e chora de felicidade.
Entre os versos 300 e 343 do mesmo canto, Odisseu e Penélope encarnam os modelos
de marido e esposa atenienses (O’NEAL, 1993, p. 117): conversam no leito compartilhado e
contam um ao outro todas as provações pelas quais passaram. Enquanto Penélope manteve-se
fiel ao marido e não aceitou que nenhum outro homem subisse em seu leito, Odisseu vagou
pelos mais diversos lugares e partilhou do leito da deusa Circe e da ninfa Calipso: cabe à esposa
aceitar a infidelidade do marido, mas jamais praticar o mesmo. Penélope é, por fim o exemplo
de esposa “perfeita, sempre devotada” (XXIII, v. 232) desde o período Arcaico, juntamente
com Alceste, de Eurípides, filha de Pélias que demonstra ser a mais dedicada ao oîkos e ao
marido, uma vez que aceita a morte em seu lugar. As duas são modelos de honradez e virtude,
arquétipos de verdadeiras boas mulheres, aquelas que a tudo suportam e tudo fazem por seus
maridos (LESSA, 2010, p. 27).
Assim como Penélope e Alceste, o modelo de esposa ateniense enfatizava a submissão
e a fragilidade, cujo bem-estar de seu marido e o cumprimento de seus deveres eram sinais de
honra e virtude. Já outras personagens da literatura, como Circe, Clitemnestra e Medeia,
personificavam as imperfeições do gênero feminino e serviam como molde do que as gregas
não deveriam ser (O’NEAL, 1993, p. 115). Em Medeia as construções que são engendradas
104
surgem numa interação que é pensada de acordo com uma perspectiva políade ao passo que na
Odisseia, refere-se a um momento anterior, aos quais certos padrões e modelos estavam sendo
discutidos e idealizados. Porém, partimos do princípio de que, abordando de forma mais atenta
às leituras de ambas as obras, esses modelos não são vislumbrados e realizados de acordo com
a própria conduta socialmente esperada. Tanto Circe quanto Medeia são figuras da mitologia
que confrontam a superioridade masculina e ameaçam sua dominação (O’NEAL, 1993, p. 119),
pois representam o arquétipo da bruxa.
Esse arquétipo deveria ser carregado de conotações negativas, afastando-se ao máximo
do modelo ideal de esposa. Os homens não ignoravam os saberes das mulheres, aquelas que,
mesmo confinadas ao oîkos, aprendiam com outras fêmeas da família a manipular e misturar as
mais diversas ervas e plantas. Através de exemplos literários negativos, o gênero masculino
buscava conter e repreender esse tipo de prática. Josebel Fares (2007, p. 72) associa essa
“articulação da mulher com as feiticeiras” como principal causadora dos temores que envolvem
o homem em relação ao feminino: os mistérios da natureza feminina. Segundo ainda a autora
(2007, p. 72-73):

A mulher aproxima-se da natureza, [...], por isso conhece melhor os seus segredos, não
só o de profetizar, mas o de curar ou de prejudicar por meio de misteriosas receitas. O
feminino associa-se a terra-mãe, que é ventre nutridor, ao mesmo tempo em que é o reino
dos mortos sob o solo ou nas águas profundas. Daí inumeráveis nominações da deusa
Morte ligada ao mundo das fêmeas. Considerada impura, porque expurga o sangue
menstrual, misteriosa como as lunações, ela atrai e repulsa seu parceiro, pois é capaz de
propiciar prazeres e trazer toda espécie de malefícios.

Aproximada a figuras como Circe e Medeia, a mulher-feiticeira conhece, faz uso e


cultiva plantas que são um lócus para a consolidação e transmissão de conhecimento,
conhecimentos mágicos que a aproximam da negatividade e da selvageria, distanciando-a dos
valores sociais positivos. Buscamos compreender essas associações, verificando as práticas
mágicas femininas no contexto da Atenas clássica. A partir de trabalhos como os de Chirstopher
Faraone (1999), Kimberly Stratton (2014), e David Frankfurter (2014), pudemos fundamentar
as nossas análises e, portanto, torna-se necessário apresentar suas contribuições historiográficas
ao tema.
Ambos, mulheres e homens, faziam uso de magia no período Clássico. Haviam os mais
variados motivos que levavam um indivíduo a procurar o auxílio da magia em seu cotidiano:
curar doenças, proteger seus filhos (especialmente os recém-nascidos), ganhar uma disputa
judicial, adquirir vantagens comerciais, prejudicar os inimigos e conquistar o amor de outra
pessoa. Essa última categoria é capaz de oferecer um panorama das relações entre o masculino

105
e o feminino no âmbito mágico, uma vez que as práticas de magia do amor podem ser
discriminadas de acordo com o gênero do praticante (FARAONE, 2001). Em nossas
investigações acerca das práticas de magia realizadas pelas esposas legítimas dos cidadãos, essa
foi a categoria mais rica em documentação literária e material, o que nos possibilitou vislumbrar
dois pontos importantes: (1) em que exatamente elas se consistiam e (2) o que os homens/poetas
do período e de períodos posteriores tinham a dizer sobre elas.
Nesta pesquisa, a partir das considerações de Faraone (2001, p. 19), definimos “magia
do amor” como um vasto corpo de técnicas-rituais tradicionalmente utilizadas pelos gregos para
manter ou instigar as mais variadas formas de desejo e afeto. Nessa perspectiva, as mais comuns
e mais conhecidas seriam aquelas performadas com o objetivo de conquistar o amor ou desejo
de outra pessoa, embora haja evidências históricas de uma tradição mediterrânea em que
homens costumavam aplicar substâncias mágicas e técnicas em si próprios84, provavelmente
em casos de impotência (FARAONE, 2001, p. 19-20). Segundo o autor, a magia de amor grega
pode ser dividida em duas categorias: a de feitiços normalmente praticados por homens85 e a
dos usualmente praticados por mulheres.
A categoria dos feitiços praticados por mulheres é denominada pelo autor de magia de
philía86, possuindo um contexto social específico: era praticado por donas-de-casa em seu oîkos,
com objetivo de melhorar a relação e fazer brotar bons sentimentos do chefe da família em
relação àqueles com quem dividia o lar, ou então para melhorar o relacionamento entre marido
e mulher. No que concerne os feitiços para melhorar a convivência do homem da casa com os
outros moradores, a magia de philía tinha fins no nível dos sentimentos humanos de afeto. Já
aqueles praticados mantendo em foco o casamento muitas vezes visavam também realizações
sexuais (FARAONE, 2001, p. 28).
Porém, o autor propõe essa denominação porque os feitiços realizados pelas mulheres
não tinham na realização do ato sexual o seu fim – ao contrário dos feitiços normalmente
praticados por homens. Elas recorriam à magia sexual para manter a afeição e devoção do
esposo e às maldições para afastar amantes e afins. As técnicas tinham raízes nas esferas
femininas de atividade: amuletos, anéis, pomadas e unguentos faciais – todos esses produtos

84
Consistiam basicamente em esfregar o pênis com várias ervas, óleos e/ou líquidos, de forma a conquistar o
interesse feminino e promover ereções mais duradouras (FARAONE, 2001, p. 21).
85
Esses feitiços masculinos são classificados como feitiços de erós, cujo principal objetivo era despertar o desejo
sexual incontrolável, e o objetivo se limitava à consumação desse desejo (FARAONE, 2001, p. 41-95).
86
Retirado do tratado de Ética a Nicômaco de Aristóteles, o termo é usualmente traduzido como “amizade” ou
“amor”, sendo o último mais comum. Os livros VIII e IX exemplificam a philía como os amantes novos (1156b2),
os amigos para a vida toda (1156b12), as cidades com os outros (1157a26), os pais e as crianças (1158b20), em
suma, todos os relacionamentos que envolvem o bem-estar entre as partes. Para a diferenciação entre philía e erós,
ver: DOVER, 1984.
106
são parte essencial dos adornos femininos, e tanto as poções feitas para serem ingeridas pelos
homens, quanto unguentos a serem espalhados em suas roupas ou corpos compõem a função
tradicional das mulheres gregas como aquelas que preparam remédios, alimentos e
manufaturam as roupas87 (FARAONE, 1999, p. 120).
No que concerne ao uso do phármakon pelas esposas legítimas, sobretudo no período
Clássico, para a magia de amor e ou magia sexual, nos deparamos com a informação de que
elas eram usuárias habituais das poções do amor, philtra, e que seus maridos eram suas
constantes vítimas (FARAONE, 1999, p. 146). Como exemplo, os afrodisíacos mais famosos
utilizados pelas esposas em preparações a serem bebidas eram a mandrágora (mandrágora), a
trombeteira (daturastramonium) e a cantárida (cantharides), e seus efeitos farmacológicos
foram atestados não só pelo folclore, mas por experimentos científicos. A cantárida se consistia
de um pó feito de um inseto conhecido como “spanish fly”, e poderia ser usado como abortivo
ou diurético, mas um dos efeitos de sua ingestão é o alargamento dos vasos sanguíneos na área
genital (LONG, 1973, p. 156). A mandrágora era recomendada como cura para impotência e
esterilidade, mas seus efeitos característicos se consistiam por: secura da boca, confusão e
exagero da percepção sensorial, excitação, insônia; e em doses maiores agiria como um
narcótico. Já a trombeteira, também torna a boca e a garganta secas e entorpecidas, causa
tremedeira dos membros e causa letargia (TEOFRASTO, História das Plantas, IX, 9.11.6)
Era uma crença comum acreditar que os narcóticos, em pequenas doses, agiam de forma
estimulante e eram de grande ajuda em práticas eróticas. Percebemos isso no catálogo de
Teofrasto: além das citadas acima, o filósofo aponta mais duas ervas que também eram
narcóticos utilizados como afrodisíacos. Eram elas o oleandro e o cíclame. Segundo o filósofo,
o oleandro misturado ao vinho faria com que o temperamento de um homem ficasse mais gentil
e alegre, e da mesma forma, a raiz do cíclame, misturada ao vinho, é responsável por acelerar
o processo de embriaguez e é útil em poções do amor (Hisotria Plantarum, IX 9, 3 e 19, 1). O
farmacologista Peter Taberner (1985, p. 120-198) em seu Aphrodisiacs: the Science and the
Myth discute as tradições e crendices populares que classificam o álcool e outros narcóticos
como afrodisíacos poderosos: a análise clínica demonstrou que as crenças não têm
fundamentação científica. Segundo o autor, há duas explicações sobre o efeito químico das
plantas no organismo que podem ter contribuído para essas crendices: 1) o álcool e outros
narcóticos relaxam o corpo e reduzem as inibições sociais, quando utilizados em pequenas

87
A técnica aparece em rituais de proteção e cura populares, tradicionalmente passados de geração em geração
pelas mulheres da família: os feitiços eram geralmente passados através da oralidade (BREMMER, 1987;
FARAONE, 2001).
107
doses, e 2) essas mesmas drogas atrasam a ejaculação e, portanto, prolongam a ereção
masculina, o que aumenta a possibilidade do orgasmo feminino - e isso poderia ser
compreendido pelo casal como um aprimoramento sexual.
Podemos perceber como essas plantas e narcóticos são agentes que
destruiriam/inibiriam a vontade própria daquele que as ingerisse. De acordo com Eleanor Long
(1973, p. 155) havia dois tipos de possessão mágica procurados pelo uso do phármakon: um
consistia em buscar despertar o desejo sexual e o outro buscava o relaxamento das inibições
contra as tentativas lascivas de alguém. Dessa forma, poções e bebidas são associadas à sedução
das mais variadas formas: no mundo contemporâneo, as pessoas solteiras costumam oferecer
bebidas alcóolicas àqueles que desejam conquistar, contando que seus efeitos relaxantes irão
facilitar sua aproximação – seguindo, talvez, uma tradição mais longa do imaginam. Porém, no
contexto da Grécia Antiga, o philtron de amor buscava produzir philía, e não mero apetite
sexual ou desinibição: o philtron se consistia no uso do phármakon com o principal objetivo de
despertar amor e verdadeira afeição, sem renegar seus outros efeitos. Por isso, ao drinque
contendo o afrodisíaco, também eram misturadas outras substâncias que “personalizavam” a
poção mágica: sangue menstrual, pelos pubianos, suor, entre outros (LONG, 1973, 160-161).
A correlação entre venenos debilitantes e poções do amor é aludida diversas vezes
(FARAONE, 2009, p. 113) em fontes literárias. O primeiro exemplo de documentação que
traremos é As Traquíneas de Sófocles. Na tragédia, o herói Héracles está voltando para casa
depois de uma longa campanha militar, e interrompe sua viagem para fazer um sacrifício aos
deuses. Ele manda Iole, uma escrava que havia capturado recentemente e que se tornara sua
favorita, à frente. Dejanira, sua esposa, já havia lidado com a infidelidade do marido em outras
ocasiões anteriores, mas ele nunca havia trazido outra mulher para dentro de seu oîkos, o que a
amedronta.
A esposa teme ser ultrapassada pela escrava, em sua própria casa, e decide realizar um
feitiço de amor, a partir de um phármakon que manteve guardado por diversos anos: o sangue
de centauro envenenado. Dejanira acredita que esse philtron faria com que seu marido nunca
mais olhasse para outra mulher e não amaria ninguém mais do que amasse a esposa
(SÓFOCLES, As Traquíneas, vv. 576-577). Ela espalha o phármakon em uma peça de roupa e
manda para seu marido. No entanto, o feitiço de amor de Deianera não tem os resultados
esperados: acaba por envenenar Héracles, que sofre, chora e sente dores até, por fim, morrer.
Séculos mais tarde, Plutarco (Moralia, X, 139a) faz o seguinte comentário:

108
Pescar com phármaka é um jeito rápido e fácil de conseguir peixes, mas os torna não-
comestíveis e insignificantes. Da mesma forma, mulheres que utilizam poções do amor
(philtra) e feitiçaria (goeteia) contra seus maridos, e que os subjugam através do prazer,
acabam por viver com homens atordoados, sem sentidos, aleijados. Os homens
enfeitiçados (katapharmakeuthentes) por Circe não lhe serviam, e ela não possuía
nenhuma utilidade para eles após terem se tornado porcos e burros. Mas Odisseu, que
manteve-se alerta e agiu de forma prudente, ela amou em excesso. 88

Plutarco está argumentando, por fim, que usar da magia para aumentar o afeto do marido
é contra-produtivo, uma vez que o emascula, tira de si sua virilidade. Ademais ao que foi
explicitado, Frankfurter (2014, p.328) propõe que os feitiços de amor concebidos pelas
mulheres refletem os impactos sociais e econômicos a serem sofridos por elas, caso o
relacionamento não permanecesse assegurado pelo casamento: eles estão inseridos em um
contexto social que difere daquele dos homens, considerando-se que a Grécia é marcada por
uma dicotomia de gênero. A própria caracterização, proposta por Faraone, dos feitiços de philía
praticados pelas mulheres já nos alertam das implicações sociais e econômicas do mesmo.
Geralmente através de poções, as mulheres buscam manter os laços conjugais, lutando
contra ameaças exteriores – uma nova concubina que mantivesse o marido afastado de casa
com muita frequência, ou uma outra mulher que poderia ocasionar seu divórcio e usurpar seu
lugar como esposa legítima. Para Frankfurter (2014, p. 330), a magia praticada pelas esposas é
uma atitude causada mais por uma inclinação a sua segurança e status social, estabilidade
econômica e harmonia conjugal do que uma atitude egoísta.
Intrínseca à prática da magia (seja coercitiva, de amarração, para amaldiçoar amantes,
romper relações) é possível perceber os esforços da mulher antiga para garantir sua estabilidade
doméstica e resolver rivalidades –frequentemente em situações nas quais elas não teriam acesso
a outras formas de poder, como quando estavam praticando magia para afastar outras mulheres
de seus maridos. Uma mulher abandonada pelo homem que a sustenta não enfrentaria apenas a
dor emocional da dissolução do relacionamento, mas também perderia seu status social, para
além do seu poderio econômico. Seu desejo erótico estava entrelaçado com sua busca por
segurança, proteção e tudo aquilo que um marido legítimo pode e deve proporcionar. Assim “a
estratégia [em utilizar a magia] para ganhar ou manter essa segurança envolvia tanto cultivar
seu fascínio erótico quanto utilizar feitiços para amarrar o homem e amaldiçoar suas rivais”
(FRANFURTER, 2014, p. 331).
Sob uma outra perspectiva, e em um polo diferenciado, mas ainda assim demonstrando
a ação feminina para garantir segurança social e emocional, temos a história de Aretáfila de

88
As traduções de Moralia do grego para o inglês são de Frank Cole Babbitt. Traduções nossas do inglês para o
português.
109
Cirenéia. Sendo uma mulher bela, era filha de Églator e esposa de Fédimo, possuindo bom
senso e habilidade política (PLUTARCO, Moralia, 256c), Plutarco a menciona em As virtudes
das mulheres justamente por utilizar das suas habilidades farmacológicas. O tirano Nicócrates
a desposou após invadir sua pátria e assassinar seu marido, iniciando um reinado despótico e
sanguinário. Não sendo capaz de suportar os infortúnios que haviam caído sobre seu lar, a bela
mulher armou-se de coragem e tentou destruir seu marido com veneno: era a única forma de
sua pátria prosperar. Os objetivos de Aretáfila, no entanto, não foram cumpridos: a esposa do
tirano foi pega89 no preparo do phármakon que tiraria a vida de seu novo marido (PLUTARCO,
Moralia, 256c).
Neste caso específico, a vítima tinha um temperamento e índole inapropriados para
governar: era injusto, agressivo e violento, e trazia apenas desespero para a pátria que devia
zelar. No entanto, a história narrada por Plutarco continua apontando para os perigos da astúcia
feminina combinada com os conhecimentos de plantas e ervas, sobretudo no que diz respeito a
suas propriedades mágico-venenosas. Dessa forma, percebemos como a magia praticada por
esposas no Período Clássico – tradição cujas fontes históricas nos levam até o Egito grego e
perpassam os séculos até a dominação romana - expressa as realidades culturais das relações
de poder entre os gêneros.
Essas relações controlavam não apenas a sexualidade feminina, mas até onde ela poderia
ir, e o que significava socialmente a consumação das relações sexuais (FRANKENFURTER,
2014). Uma mulher renegada sexualmente pelo marido não cumpre sua principal obrigação,
que é a de produzir herdeiros, e o não cumprimento dessa expectativa poderia ser utilizado
como justificativa no divórcio, o que a fragilizaria perante ao corpo social. Assim, através da
atividade, e não da passividade, a mulher busca assegurar sua permanência sob a proteção do
esposo.
A prática da magia, também pode ser interpretada como um dos espaços de atuação
criados pelas mulheres. Fábio Lessa (2010, p. 109) demonstrou que as esposas legítimas dos
cidadãos saíam da reclusão do oîkos e do gineceu para práticas cotidianas que incluíam a ida ao
pomar, à fonte pública, ao poço e a reuniões domésticas nas casas de outras mulheres/amigas –

89
Mas quando ela foi pega através das provas, e percebeu que não conseguiria negar o fato de ter praticado
pharmakeia, ela confessou, mas afirmou não ter confeccionado qualquer tipo de pharmakeia sinistra: “Não, meu
querido”, ela disse, “meus esforços são por questões importantes: a sua boa-vontade (eunoia) por mim, e a
reputação e influência que exerço por sua causa. Por essas razões eu sou objeto de inveja para mulheres ruins. Foi
o medo de seus phármaka e instrumentos que fui levada a inventar maneiras de contra-atacar. Eu fui boba e
feminina, talvez, mas não mereço a morte, a não ser que o senhor, como juiz, decida condenar a morte, por poções
do amor (philía) e feitiçaria (goeteia), uma mulher que anseia por mais afeto do que você está disposto a conceder-
lhe.
110
um desvio do modelo mélissa que demonstrava a não existência de uma rígida divisão espacial
entre os homens e as mulheres, pois “entre os espaços privado e público havia uma
permeabilidade mútua, uma relação de complementaridade e não de oposição”. Isso é
perceptível nas diversas práticas mágicas utilizadas pelas esposas: para enfeitiçar o marido
através de um philtron, o ato requer a ida ao espaço público (a colheita ou a compra de ervas
específicas), assim como a utilização de um tablete de imprecação para amaldiçoar a amante
(que requereria a feitura do tablete e a ida a um templo ou cemitério, para performance do
ritual).

3.3 - Circe e Medeia: Representações sociais de feiticeiras

Nossa pesquisa teve como principal objetivo propor interpretações do uso do


phármakon pelas feiticeiras Circe e Medeia sob um viés paidêutico no período Clássico. Ao
longo do Capítulo 1, construímos a relação entre a epopeia e a tragédia, frisando seus usos
educativos por parte da Atenas clássica. Através dos estudos da magia e sua interação social e
literária, demonstramos, no capítulo 2, as formas que a relacionavam com o cotidiano heleno:
elucidando a continuidade da existência e uso da magia entre os textos de períodos diferentes,
propomos sua existência e continuidade também no contexto social. No presente capítulo,
demonstramos que as mulheres do Período Clássico faziam uso frequente de plantas, unguentos
e drogas para a magia de philía.
Esse tipo de magia pode parecer inofensivo e de certo modo conectado à passividade
feminina ao pensarmos que a praticante tinha o objetivo de tornar seu lar mais harmonioso e
seus maridos mais amorosos, ao contrário dos feitiços eróticos do período, que visavam
atormentar e dobrar o outro à própria vontade, até a consumação carnal. Porém, essa visão é
bastante simplista. Primeiro, o fato de a mulher enfeitiçar o marido já demonstra sua
insatisfação com a dinâmica social em que ela não poderia possuir voz ativa ou direito de
decisão. Em segundo, o estudo da farmacologia nos ensina que a manipulação de drogas sem o
devido cuidado ou techné pode produzir resultados completamente desastrosos e opostos
àqueles previamente almejados: a diferença entre o remédio e o veneno está na dose. Assim,
torna-se completamente possível interpretar que os cidadãos temiam a prática da magia
feminina não só pelo seu potencial destrutivo, em que dor, doença e morte eram desfechos
altamente prováveis; mas também por demonstrarem atividade e insubordinação, o que
desafiava o equilíbrio das relações de gênero, tão ferozmente defendido em seus textos
filosóficos, literários e políticos.
111
Saber a ancoragem90 de produção de um texto é de extrema importância para que
possamos compreender os discursos que o fomentam. O mesmo é necessário para a
compreensão do uso de textos de períodos distintos: as leituras de um texto se modificam de
acordo com o contexto, vivência e expectativas do(s) leitor(es) (LESSA, 2010, p. 24). Mesmo
que a Odisseia faça referência a seu próprio contexto de produção e dialogue com outros
produzidos na mesma época, ao mantermos em mente o contexto da Atenas Clássica, podemos
construir interpretações possíveis de seu uso, no que concerne a essa pesquisa, paidêutico.
Assim, Circe e Medeia podem, em nossa visão, servir como um contraponto às mulheres da
elite ateniense, pois tanto seu uso da magia quanto a maneira que se posicionar frente a
sociedade são desvios do padrão, que não deveriam ser seguidos pelas esposas.
Antes, porém, de comparamos a sua magia com a das esposas legítimas, devemos
explicitar porque consideramos ser possível interpretá-las como representações sociais de
feiticeiras e contra-modelos de esposas. Vimos em nossa apresentação das personagens que
ambas são mulheres estrangeiras, e vivem às margens da sociedade grega: mesmo com um
status primeiramente divino, Circe e Medeia não são originárias de uma pólis grega, de forma
que seus costumes lhes são estranhos. Embora o casamento idealizado fosse aquele consumado
entre uma mulher ateniense e um cidadão, o casamento com estrangeiros não era impossível,
como nos sugere Sófocles: “Algumas vão para a casa de homens estranhos, outras para
estrangeiros, algumas para lares hostis” (SÓFOCLES, Tereus, 583).
Apesar do trecho destacado estar se referindo às mulheres que deixam o solo pátrio para
casarem-se, não há porque inferir que o oposto também não poderia ocorrer. Assim, a vinda de
uma figura exterior ao contexto de uma pólis não seria de todo estranho. Medeia possui o status
de esposa de Jasão aceito por uma grande variedade de pesquisadores (ALLAN, 2002;
BARLOW, 1989; BONGIE, 1977; FIALHO, 2015; MEISSNER, 1968), de forma que percebê-
la como um contra-modelo de esposa é um lugar-comum da historiografia. Candido interpreta
a tragédia como o uso do espaço do teatro ateniense para “fazer uma denúncia, alertando para
a emergência de antigos saberes integrando novas práticas sociais como o uso do conhecimento
mágico das ervas e filtros para atender desejos individuais” (CANDIDO, 2010b p.33). Essa
interpretação faz sentido dentro do contexto da guerra do Peloponeso, em que o uso da magia
aumentou significativamente em Atenas e com ele, aumentou também o medo que os cidadãos
sentiam do uso de filtros mágicos.

90
Denominamos aqui de ancoragem as condições de produção do texto, que compreendem fundamentalmente os
sujeitos e a situação, incluindo: o contexto imediato, o contexto sócio-histórico e o contexto ideológico
(ORLANDI, 2010, p. 33-34)
112
O domínio da manipulação das ervas e raízes é atribuído ao universo feminino por causa
de sua ocupação doméstica e protagonismo no preparo dos alimentos para a família. Candido
(2010a, p. 53-54) atribui essa informação à documentação épica, clássica e helenística, cuja
poesia tratou de elevar mulheres como Samantha, Circe e Medeia ao status de pharmakides,
feiticeiras especialistas na manipulação de ervas, phármakon. “O saber que se estendeu, por
tradição, às mulheres consistia na habilidade em manejar o cozimento das ervas, folhas e raízes
para fazer infusões e filtros, que devido ao seu poder de cura passaram a ser considerados
mágicos” (CANDIDO, 2010b, p. 31). Esse uso de phármakon por Medeia, então, também a
aproxima do universo feminino, embora no caso da feiticeira ela trate principalmente de
venenos e poções mágicas, a mesma palavra é utilizada para se referir a perfumes, tão presentes
na vida das mulheres atenienses, mais um traço que entra em contraponto com o modelo
idealizado para as mulheres gregas, que renegava a vaidade. Já vimos que Medeia é vaidosa:
possui roupas refinadas e um diadema de ouro – aqueles que, após envenenar, oferece de
presente à Glauce-, possibilitando a interpretação de que ela não se submete à simplicidade
exaltada no modelo, ou seja, mais um exemplo de ruptura.
Shirley Barlow tem uma interpretação acerca da peça de Eurípides que corrobora a
construção da nossa problemática. Discordando de perspectivas mais tradicionais, que colocam
suas atitudes extremadas como baseadas em sua barbárie, ou seja, no fato de ela ser uma
estrangeira e por isso poder usar da magia e cometer todos os atos cruéis que a trama nos
apresenta, Barlow (1989, p. 159) propõe que o objetivo do autor tenha sido fazer com que as
pessoas se esquecessem do fato da origem estrangeira da protagonista e refletissem que
“qualquer mulher poderia ter feito” o mesmo. A autora defende a identificação da feiticeira com
as mulheres gregas que também compunham a plateia do espetáculo: ela é exposta às mesmas
condições, por parte de seu gênero, que qualquer uma das espectadoras. Em suma, Medeia
critica o modelo mélissa que esperam que cumpra como papel social, gerando empatia das
esposas presentes plateia.
Renegando tudo o que a faz mulher, Medeia é utilizada por Eurípides (vv. 244-249) para
demonstrar quais são as características femininas que fazem parte da mente masculina e como
há uma dissociação entre o fantasioso e o real; na medida em que ela é uma mulher forte,
corajosa, articulada e consciente de quem é. Tão consciente e tão articulada que consegue usar
do estereótipo feminino – a mulher frágil, emotiva, indecisa, medrosa, maleável – para enganar
Jasão, fingir-se de arrependida e poder arquitetar toda a sua vingança: usar da manipulação dos
phármaka e de toda a sua magia para matar o rei, a princesa e acabar com seu marido. E, embora
possua o apoio do Coro de mulheres da peça enquanto arquiteta sua vingança, sua última
113
decisão: a de matar seus filhos para destruir a casa de Jasão, não recebe apoio (EURÍPIDES,
Medeia, v. 813).
Após negar todas as características femininas e clamar para si o papel de heroína e dona
de seu destino, Medeia se vê vulnerável e triste perante a possibilidade da morte de seus filhos:
seus instintos maternais, aqueles que ela renegou, são fortes demais para que ela consiga
cumprir sua vingança e tirar a vida de sua própria prole. Quando ela percebe que não pode ser
feliz sem seus filhos, mas decide seguir com a vingança para que seus inimigos jamais possam
rir dela, Medeia explicita sua vulnerabilidade e a perda da humanidade: ao destruir Jasão através
dos filhos, também destrói a si mesma e todas as perspectivas de uma felicidade futura
(BARLOW, 1989, p. 164-167).
A protagonista não consegue fugir de sua natureza feminina, e essa mensagem pode ser
interpretada como uma forte tentativa de reafirmação da ordenação do mundo: mulheres estão
subordinadas aos maridos e são escravas da sua própria condição. Além disso, Eurípides
evidencia os conflitos da polis através dessa escolha de Medeia e da comoção que a mesma
gera: a morte dos filhos – ou a não existência deles, caso a mulher não cumprisse suas
obrigações reprodutivas – significaria o fim da linhagem paterna. Esse é o maior infortúnio de
Jasão, cujo sentimento é compreendido por toda a plateia ateniense: sua existência, sem filhos
e sem perspectiva de gerar novos descendentes, carece de sentido. A grande vingança de
Medeia, o grande mal que a mulher pode causar é deixar o seu marido sem os filhos legítimos
que carregariam seu nome para a posterioridade.
Esse é mais um momento da peça em que o rompimento com o gênero serve para
reforçar o modelo: nenhuma grega almeja ser como Medeia. Embora as tristezas, a traição
sofrida, o fato de parir os filhos, a assustadora transição de filha de alguém para esposa de
alguém e as dificuldades e surpresas que lhes aguarda, sejam todas situações insatisfatórias, ao
final da peça parece que esse fardo feminino tem que ser aceito: apenas Medeia, uma mulher
monstruosa (v. 1342), neta do sol, feiticeira, bárbara, poderia matar os filhos e fugir numa
carruagem solar, regozijando-se com o desespero do antigo marido. Para nós, a escolha de uma
protagonista feminina que age com ferocidade, exibe seu poder e conquista seus objetivos
previamente estabelecidos não é “revolucionária” ou uma quebra de estereótipos, uma vez que
todo o poder de Medeia é mostrado como destrutivo e a mensagem final é de reafirmação da
organização social existente.
Homero nos apresenta Circe no canto X de sua Odisseia, e uma série de detalhes acerca
da personagem poderiam ser utilizados pelos gregos do século V a.C. como exemplos negativos
do comportamento feminino. Sobretudo no que diz respeito ao uso da magia, Circe poderia ser
114
interpretada como um polo de oposição ao modelo mélissa. Primeiramente, temos o fato de ser
a primeira figura da literatura ocidental que retrata uma feiticeira talentosa na manipulação dos
phármaka, um dos meios mais comuns de magia praticada pelas esposas gregas. Ademais, em
sua narrativa aventurosa aos feácios, Odisseu a compara a Calipso e a descreve como uma
criatura que queria fazê-lo seu marido: “igualmente Circe me deteve em seu palácio,/ a ardilosa
de Eeia, almejando que fosse seu esposo” (Odisseia IX, vv. 31-32), o que se complementa com
seu comportamento após ser subjugada por Odisseu.
Circe possui uma similaridade com Penélope, constatada por diversos pesquisadores91.
As duas foram capazes de transformar as visitas não convidadas em criaturas que
banqueteavam, e abandonadas suas características masculinas, pareciam-se com porcos nunca
satisfeitos, enfeitiçados pela música e pela dança e esquecidos da violência (FOLEY, 1984, p.
62; ZEITLIN, 1995, p. 139). As duas enfeitiçam (thelghein) os homens com distrações e usam
da métis92 (BRACKE, 2009, p. 105) para resolver as situações adversas que o curso do destino
coloca em seu caminho. Além disso, ambas são referidas como donas-de-casa93 respeitosas
quando na presença de Odisseu: Circe no canto X, v. 371 e Penélope no canto XVII, v. 94.
Ademais, as duas dividem momentos parecidos com Odisseu, como mostraremos. Ao chegar
do mundo dos mortos à Ilha de Eeia, Circe interage com ele da seguinte forma:

Quando o sol mergulhou e vieram as trevas,


Eles deitaram-se ao longo da popa da nau;
Ela tomou-me a mão, longe dos companheiros
Me acomodou, deitou-se ao lado e interrogou-me;
E eu tudo a ela, ponto por ponto, contei.
(Odisseia XII, vv. 31-35)

Essa passagem é muito parecida com aquela em que Penélope e Odisseu, após o seu
reconhecimento por parte da esposa, compartilham o leito e o herói narra tudo pelo qual passou:

Após os dois se deleitarem com o amor prazeroso,


Deleitaram-se com histórias que um narrava ao outro:
Ela, o que suportou no palácio, divina mulher,
A observar a infernal reunião de varões pretendentes
Que, por causa dela, muitos bois e robustas ovelhas
Abatiam, e dos cântaros muito vinho foi tirado;
E o divinal Odisseu, quantas agruras infligiu
Aos homens e quanto ele mesmo, agoniado, aguentou,
Tudo ele contou. Ela deleitou-se, escutando, e o sono não

91
BRACKE, 2009, p. 105; SEGAL, 1968, p. 422 ; ZEITLIN, 1995, p. 139
92
Para uma análise aprofundada da métis de Circe, recomendamos os trabalhos de SEGAL, 1994 e BRACKE,
2009. Já a de Penélope, sugerimos os de WINKLER, 1990 e MARQUARDT, 1993.
93
Em inglês, a tradução as coloca como housewives, já em português são chamadas de governantas ou
despenseiras. De qualquer forma, os adjetivos fazem referência às ocupações da esposa por excelência.
115
Tombou em suas pálpebras antes de ele tudo contar.
(Odisseia XXIII, vv. 300-309)

Podemos dizer, então, que Circe, além de ser uma mera inimiga a ser derrotada pela
astúcia de Odisseu, age como uma segunda Penélope (BRACKE, 2009, p. 106): a feiticeira se
torna sua amante e sua amiga, alerta-o dos perigos que enfrentará adiante em seu caminho de
volta à Ítaca e lhe dá conselhos preciosos sobre como vencer os obstáculos que serão lançados
em sua direção. E, embora não mencionado na Odisseia, a Teogonia de Hesíodo aponta que
Circe deu filhos a Odisseu, o que a aproxima ainda mais de Penélope, para além da característica
de serem astutas e compartilharem o leito e amizade do herói. Embora não possamos dizer que
Circe e Odisseu tenham se casado, ao compararmos sua relação com a do herói e sua esposa
legítima, vemos muitos pontos de contato. Esses pontos de contato, inferimos, são suficientes
para que as esposas dos cidadãos pudessem enxergar a feiticeira como uma companheira que
age indevidamente ao manipular o phármakon. No mais, Medeia também não se casou com
Jasão de acordo com os costumes gregos: não havia um pai ou um guardião masculino para
legalizar em todos os termos a união dos dois. Porém, como mencionamos, a maioria dos
estudiosos considera Medeia a primeira esposa de Jasão, mesmo que a relação não possua, em
totalidade, todos os requisitos que caracterizam um casamento grego.
Da mesma forma que o modelo de esposa do período Clássico foi construído a partir de
noções concebidas no período Arcaico, demonstrando a existência de uma continuidade nesse
discurso, os desvios a ele também foram formulados a partir de concepções pré-existentes.
Assim como Penélope foi utilizada como exemplo da esposa perfeita que tudo sofre sem perder
o amor, a admiração e a lealdade por seu marido, sendo conhecida pelos gregos três séculos
mais tarde, Circe como mulher e feiticeira, manteve-se relevante. Não atestamos a existência
de outras feiticeiras literárias de renome e poder, além de Circe e Medeia, do período Arcaico
ao Clássico – é apenas do período Helenístico em diante que percebemos relevância literária
em outras bruxas. E, ainda assim, estas usualmente fazer menção ou tentam se comparar à Circe
e Medeia. E mesmo Medeia, como vimos anteriormente no capítulo, possui um mito cujas
raízes são mais antigas do que a criação de Eurípides, e, no entanto, no período Clássico sua
história ainda estava presente, ainda que com certas alterações. Esclarecido esse ponto vital
para a construção de nossa interpretação, e já tendo deixado definidos os pontos e características
almejados em uma esposa legítima, poderemos definir de que maneiras as duas feiticeiras
representam um desvio do padrão ao fazerem uso do phármakon.
Tanto Circe quanto Medeia são figuras femininas que não possuem um guardião
masculino (kurios), o que por si só já é um desvio da situação que se espera de uma esposa
116
legítima. Circe vivia sozinha na ilha de Eeia, à margem tanto do mundo grego quanto da
comunidade olimpiana, tendo como única companhia suas servas ninfas. Medeia, por ter
assassinado o irmão que partira com ela na nau de Argo, não possuía em Corinto ninguém para
interceder por si94 quando o marido decide abandoná-la. O kurios de uma jovem era seu parente
masculino mais próximo, cujo dever consistia em cuidar da manutenção de sua honra, prover
um lar onde ela pudesse adquirir a educação informal reservada às mulheres, prover o dote de
seu casamento e protegê-la perante a sociedade e em disputas legais, como em caso de divórcio
(POMEROY, 1975, p. 63-64), ou seja, suas funções eram basicamente vigiar e proteger. Uma
mulher sem kurios era uma mulher que desviava da norma social, pois sua sexualidade era
incontrolável: não havia quem se certificasse de que suas companhias no interior do oîkos
fossem essencialmente femininas e, portanto, garantisse a preservação de sua virgindade.
Nos feitiços tipicamente utilizados pelas esposas legítimas – e aqui incluímos os outros
feitiços de amor que não se limitam à manipulação do phármakon - a magia existe como
contrapartida ao fato de estarem inseridas em uma situação social específica, na qual seus
próprios desejos estão em contradição. Eles se contradizem tanto às vontades dos outros
indivíduos que as rodeiam, quanto às suas obrigações sociais ou então elucidam uma falta de
competência para lidar com os mesmos. O que significa que o ato de recorrer à magia poderia
se constituir como a única maneira de se expressar possível em situações e circunstâncias que,
sem a opção da interferência mágica, não permitiram outro desfecho: uma mulher que se sente
ameaçada pela concubina de seu marido, ou pela presença de uma serva jovem e bonita. Nesse
contexto, a magia oferecia a elas um senso de controle e poder, não só da situação, como dos
próprios sentimentos, de forma que mantinham a esperança em sua eficácia (FRANKFURTER,
2014, p. 325).
Para David Frankfurter (2014, p. 326), a complexidade dos processos que levam uma
mulher a praticar rituais de magia destaca o esforço e a sua agência/atividade individual, uma
vez que a magia é fundamentalmente sobre a não-passividade, a criatividade e a determinação
de indivíduos que estão tentando proteger sua família, afastar o perigo de si, expurgar doenças,
reconquistar alguém ou mesmo reverter alguma situação que os incomoda. Ao nos atentarmos
para a agência/atividade da praticante de magia, nós podemos vê-la como alguém que toma
medidas expressivas visando seu benefício próprio e que é capaz de negociar, nas circunstâncias
em que se está inserida, com várias formas de autoridade (os mitos, os deuses, fórmulas, nomes)
e seus sentimentos.

94
“não tenho mãe, irmão, nenhum parente/ em que desta procela encontre abrigo” (EURÍPIDES. Medeia, vv.257-
258)
117
Ao decidir aprender uma fórmula mágica para ser misturada à bebida do marido, ao
realizar magias que visam aumentar sua beleza e fertilidade, ao realizar um ritual de amarração
– que requer um tablete de imprecação com uma fórmula mágica escrita, a ida a um templo ou
o cemitério para realização do ritual – a noção da agência/atividade torna-se ainda mais notável.
O ato de praticar magia contra alguém – mesmo por um motivo tão nobre quanto o amor –
requer essa vontade de agir e, principalmente, a insubordinação de sobrepor o seu desejo aos
de outrem. Isso está em total desacordo com a ideologia de mulher submissa e passiva, tão
propagada e valorizada na documentação do período.
Mais uma vez nos aproximando das considerações de Frankfurter (2014, p. 333),
ressaltamos que essa atividade95 – seja ela contra a aflição emocional ou a censura institucional
– foi responsável para a construção do estereótipo da mulher feiticeira. Mesmo na
contemporaneidade, as bruxas e feiticeiras são percebidas como predadoras estigmatizadas da
potência masculina, invejosas mulheres que não almejam construir seu próprio sucesso ou
conquistar sua felicidade romântica/conjugal, mas utilizar da magia para roubar as dos outros.
Operando dentro dessa lógica social, “acusar uma outra mulher de feitiçaria erótica poderia ser
um caminho para resolver uma situação de rivalidade sexual ou ameaça conjugal. Ainda assim,
a própria agência feminina (...) persevera, apesar de, e muitas vezes em resposta a essas
suspeitas culturais e aos pesadelos míticos sobre o poder mágico e suas detentoras (fêmeas)
(FRANKFURTER, 2014, p. 333).
Circe e Medeia são um exemplo dessa atividade e os temores consequentes. Circe não
possui marido nem guardião masculino. Está conectada, por sua genealogia, às forças titânicas
selvagens e cada uma das decisões que toma em sua existência não precisam passar pelo crivo
ou aprovação de outrem. Assim, usa da magia a seu bel-prazer, atormentando os homens que,
perdidos no mar, acabam atracando em sua ilha e se tornam vítimas ao aceitar sua hospitalidade
sem desconfiar do grande mal que este convite os causará. Medeia, em Corinto, não se comporta
como o esperado de uma divorciada estrangeira. Ao invés de manter-se trancafiada em casa,
definhando devido à tristeza e à vergonha, decide fazer uso de suas habilidades mágicas:
aquelas que anteriormente haviam garantido vitória a Jasão, agora serão o motivo de sua ruína.
Na personagem de Eurípides, vemos a atividade ainda mais evidente: Medeia assassina
cruelmente Glauce e Creonte, duas figuras da mais alta autoridade em Corinto. Em seguida,
desafia os próprios deuses ao reafirmar o crime já cometido anteriormente, o de matar alguém
de sua própria família: ao cadáver do irmão, somam-se os de seus próprios filhos.

95
Utilizamos esta palavra com o sentido de oposto à passividade.
118
Como O’Neal (1993, p. 12-21) já havia dito:

Para os gregos antigos, tirar a vida de alguém com quem se compartilhasse laços
sanguíneos era muito mais grave do que matar qualquer outra pessoa. O mais horrendo
dos crimes foi cometido por Medeia. Ela assassinou seu irmão e sua prole. Ela deve ter
representado a mais rebelde e a mais criminosa das mulheres.

Começamos a delinear em quais medidas as personagens selecionadas nessa pesquisa


poderiam ser comparadas com as esposas legítimas dos cidadãos, sejam em pontos de contato
ou afastamento. Também já fundamentamos as nossas considerações acerca das relações entre
as duas feiticeiras e o fato da Circe de Homero não ser uma figura estranha ao cotidiano clássico.
Torna-se necessário, então, relacionarmos seu uso do phármakon com aquele das esposas do
período Clássico, para podermos fundamentar a nossa hipótese de que ambas serviam, no
recorte, como contra-modelos de mulheres, representações sociais de feiticeiras, possuindo um
valor educativo que perpetuava os ideais masculinos, uma vez que foram criadas pelos poetas
e utilizadas pela elite como forma de estabelecer modelos comportamentais. Modelos esses que
foram estabelecidos com o objetivo de resolver o que seria, na concepção dessa elite masculina,
um problema de convivência em sociedade: o uso da magia por parte das mulheres. Nesse
sentido, tanto Circe quanto Medeia fazem uso do phármakon de maneiras facilmente
reconhecíveis e associáveis pela plateia à magia de philía comumente utilizada pelas esposas.
Como pudemos perceber na história trágica de Dejanira, espalhar o phármakon pela
roupa a ser usada pela pessoa amada era uma das formas comuns das esposas usarem magia do
amor. Óleos essenciais, misturas de plantas e unguentos preparados com a finalidade de
reacender o amor do marido ou fazer com que ele só tivesse olhos para a esposa. No entanto,
Dejanira exemplifica o potencial perigoso desse tipo de feitiço: alheia à toxicidade do sangue
de centauro, acaba por envenenar o marido, que falece. Medeia usa a mesma tática, mas com
outros fins funestos: ao presentear Glauce com o diadema e as vestes envenenadas pelo
phármakon, a personagem é usada pelo poeta para fazer uma alusão a essa prática comum. Por
mais que Medeia não o faça com o objetivo de seduzir96 Jasão, ela está tirando sua rival do
caminho – assim como muitas atenienses pretendiam ao fazerem uso de tabletes de imprecação
e maldições. Medeia exemplifica todo o potencial perigoso de quando uma mulher decide não
mais se submeter às vontades do marido: ela passa por cima da hierarquia social e causa ruína
a todos, colocando seus sentimentos e vontades à frente de si, como seus guias.

96
Mesmo que não esteja realizando magia de amor durante a peça, Medeia é descrita por Eurípides como sábia na
manipulação dos phármaka (EURÍPIDES, Medeia v.385). Assim, seria ingênuo inferir que ela não possuísse
também este conhecimento.
119
Já Circe, cujo status de feiticeira se mantém (na sociedade clássica) através das histórias
narradas na Odisseia, utiliza o phármakon da segunda maneira mais comum em magia
feminina: misturando-o em segredo àquilo que a vítima irá ingerir. Os afrodisíacos – mesmo os
mais comuns, como vimos previamente no capítulo – poderiam gerar consequências dolorosas
e até mesmo mortais. A essas informações do estudo das propriedades químicas e dos efeitos
dos afrodisíacos em seres humanos, adicionamos o Primeiro Discurso de Antifonte97: outra
documentação, ademais à trágica, que sugere o perigo do uso do phármakon pelas mulheres.
Escrito no V século a.C., esse documento trata de um processo legal complicado, em que um
homem chamado Filôneo havia morrido devido ao mal-uso de um philtron e seu enteado
decidira processar duas mulheres por isso. De acordo com a documentação, a mulher, que era
amante de Filôneo, foi convencida por outra a dar a Filôneo um phármakon que reascenderia
seu interesse por ela. Esta mulher era a madrasta98 do acusador. Assim, aproveitando o
momento em que Filôneo bebia com o pai do acusador, seu amigo, a mulher:

E a concubina do Filôneo serviu o phármakon enquanto servia o vinho para a libação, ao


mesmo tempo em que faziam suas preces, que não seriam atendidas. E, imaginando agir
com perspicácia, deu mais a Filôneo, pensando que dando-lhe mais, seria mais amada por
ele. Ainda não havia percebido que fora enganada pela minha madrasta, antes que o mal
já estivesse ocorrido. Já ao nosso pai, deu menos. (ANTIFONTE I, 19).99

O resultado de alterar a dose foi a morte instantânea de Filoneu e seu amigo adoeceu e
agonizou por vinte dias, antes de morrer. Essa acusação de magia, mesmo fictícia, ilustra
perfeitamente os perigos de lidar com e indicar para outros as substâncias sem haver um estudo
aprofundado sobre dosagens e suas consequências. Ademais, elucida a existência da esposa
vingativa que agiu de má fé e enganou a pobre concubina: ela, que acreditava estar ajudando a
si e a madrasta do acusador a serem mais amadas, na verdade estava condenando os dois homens
à morte.
A partir dela, não é absurdo inferir que os cidadãos atenienses temiam o uso
indiscriminado do phárkamon por suas esposas: as mulheres poderiam misturar venenos ao

97
Antifonte, orador de renome devido à sua habilidade discursiva do século V a.C. foi um dos primeiros a escrever
em prosa ática. Só tivemos acesso a alguns fragmentos e discursos elaborados por ele, dois quais três deveriam ser
lidos como um exercício de performance nos tribunais - Acerca do Assassinato de Herodes, Acerca da Coreuta e
Contra a Madrasta - e os outros três – as Tetralogias - foram elaborados como um exercício de argumentação
(GAGARIN, 1997, p. 7).
98
De acordo com Patricia Watson (1994, p. 207-212), em seu estudo acerca da figura da madrasta na antiguidade
clássica, madrastas eram usualmente caracterizadas de forma negativa, como vilãs que tratam mal seus enteados e
procuram favorecer os próprios filhos – seja eliminando o próprio marido ou os enteados. Eram personagens
comuns tanto nas histórias, quanto na sociedade. Porém, a elas estava relegado o estereótipo de “mulher maligna”.
99
Tradução do grego para o inglês de K. J. Maidment. Tradução para o português nossa.
120
alimento e vinho servidos, acreditando estar mais próximas de atingir seus objetivos
apaziguadores ou eróticos. Mas o envenenamento, a dor e a morte não eram as únicas razões
pelas quais os homens atenienses temiam a magia feminina. Como vimos anteriormente, a
atividade feminina estava diretamente ligada à prática de magia, sobretudo no que concerne a
manipulação de seus maridos. Ao serem manipulados ou dobrarem suas vontades àquelas de
suas esposas, os homens estariam sofrendo também uma espécie de emasculação.
A sociedade ateniense era baseada em relações de timé e aidós: “honra (timé) e vergonha
(aidós/aischós) regulavam, de certa forma, o comportamento coletivo” (THEML, 2003 p. 158).
O termo timé, dessa forma, demonstra o valor atribuído a alguém por aqueles que lhes são
iguais. A honra era regulada pelo seguimento a um conjunto de regras não escritas, amplamente
conhecidas, transmitidas pela tradição e conectadas à religião, à educação e à ética. Esse
conjunto de regras ditava a organização dos valores sociais e das relações interpessoais
quotidianas, eram “regras de conduta (...) cuja sanção se materializava na vergonha e na
exclusão social” (THEML, 2003, p. 158). Quando os homens têm a vontade dobrada à da
mulher, demonstram não estar vivendo de acordo com as regras de conduta, uma vez que não
desempenham o papel socialmente esperado de autoridade máxima no interior do oîkos.
Essa vergonha vai além do âmbito privado ao não controlarem suas mulheres: a
comunidade, o âmbito público, também estaria informada dessa aidós quando a notícia de seu
envenenamento/morte fosse difundida. Isso não aconteceria apenas em casos de falha 100 da
magia do phármakon. Sabemos que as mulheres, mesmo as esposas legítimas, conversavam
entre si e possuíam uma rede de comunicação, alimentada rotineiramente quando iam à fonte
pública, faziam visitas às amigas, teciam em conjunto ou colhiam frutas e legumes em seus
pomares101.
A esposa satisfeita provavelmente compartilharia seus feitos com as amigas, tornando
pública a subordinação do marido e também possivelmente incentivando essas práticas, como
vimos em Antifonte, o que podemos caracterizar como duplamente perigoso para a honra
masculina. Como nos apontou Faraone: “Dessa forma, apesar de suas origens aparentes serem
afins a técnicas curativas ou profiláticas, a magia de philía era fonte de ansiedade para os
homens gregos, porque era utilizada por indivíduos socialmente inferiores, contra superiores
desavisados, mais notavelmente por mulheres contra seus maridos” (FARAONE, 1999, p. 121).

100
Classificamos esse resultado como falha, pois trabalhamos com a hipótese de que o objetivo principal das
esposas ao usarem a magia do phármakon não fosse causar morte e sofrimento ao marido.
101
Em seu livro Mulheres de Atenas: Mélissa - do Gineceu à Agorá, (2010) o pesquisador Fábio de Souza Lessa
explora de forma aprofundada esses desvios mencionados e a ação da mulher no interior da sociedade ateniense
clássica.
121
Portanto, percebemos como os feitiços femininos são extremamente perigosos aos
valores culturais gregos, tão radicalmente devotados à autonomia pessoal masculina e suas
formas de dominação – seja sobre seu corpo ou sobre seu oîkos e sua mulher. Sabemos que os
homens também faziam uso da magia para os mais diversos fins (vencer uma disputa legal,
despertar o desejo sexual de uma mulher, punir um inimigo), e do phármakon como afrodisíaco.
Porém, há uma grande diferença em usar de um artifício mágico em si mesmo e ter uma mulher
– criatura socialmente inferior – usando algo contra si, sem sua permissão ou conhecimento.
Vemos, então, uma continuidade entre os períodos Arcaico e Clássico e as feiticeiras
Circe e Medeia no discurso dos perigos do phármakon e elucidamos como as duas bruxas e as
obras às quais pertencem poderiam ser percebidas através de uma ótica paidêutica, de forma
reafirmar a ideologia ateniense do Período Clássico, tanto no que diz respeito ao uso
indiscriminado magia, quanto ao gênero. Isso era necessário porque, como pudemos perceber
em nossa análise da magia praticada por mulheres, mesmo as suas esposas legítimas não agiam
rotineiramente de acordo com o modelo ideologicamente elaborado. Assim, os discursos são
mais uma alternativa e tentativa de educação feminina, visando moldá-las às noções masculinas
do que era apropriado.
Dessa forma, demonstram no épico e na tragédia as mulheres – que não são seres débeis
e providos de desejos, vontades ou valor – agindo em prol da família, do oîkos e do marido. As
esposas que usam de sua inteligência, astúcia e honra de forma a ajudar seus maridos são
representações sociais da boa esposa, o modelo mélissa em ação: Penélope resiste às investidas
de seus pretendentes, mantém-se fiel a Odisseu e articula maneiras de atrasar a iminente escolha
por um novo casamento. Alceste escolhe fazer o maior dos sacrifícios, oferta a si mesma para
salvar a do marido, demonstrando que sua vida tem menos valor. Ambas demonstram a
atividade feminina buscando o bem da prole e dos maridos. Ao passo que Circe e Medeia
mesmo possibilitando identificações pontuais, personificam também qualidades indesejadas e
repulsivas, da atividade feminina usada a seu bel-prazer: representações sociais de feiticeiras.
No V século a.C., período de aumento considerável das práticas e os escritos de magia,
as representações de Circe foram amplamente disseminadas como símbolo da periculosidade
feminina. Perpetuado pelo mito e, sobretudo, pela literatura, Eurípides apresentou sua Medeia
e alçou-a ao patamar de mulher dissimulada e inescrupulosa, que contraria em totalidade aos
valores gregos, dá vias a sua vingança e seus rancores frente a seu papel como esposa e mãe,
subvertendo a ordem social estabelecida e a ideologia de esposa submissa e passiva.
Nos períodos posteriores, passaram por outro processo discursivo e foram consolidadas
como feiticeiras completamente malfazejas, havendo pouca ou nenhuma referência aos
122
momentos em que agem de forma benfazeja com os heróis que um dia dividiram o leito. Circe
e Medeia são mencionadas por feiticeiras que, como elas, falham em manter o ser amado em
seu oîkos, apesar de todo o conhecimento do phármakon. Assim, mesmo posteriormente,
continua forte e relevante o discurso dos poetas masculinos: as mulheres que terão um final
verdadeiramente feliz e pleno não enfeitiçam os maridos e não ousam colocar sua vontade à
frente dos desejos deles.

123
Conclusão

Este trabalho propôs um estudo comparado das feiticeiras Circe e Medeia,


contribuindo com a discussão acerca das relações entre a magia e o gênero feminino na Grécia
antiga. Para examinar o uso do phármakon pelas personagens, procurando as semelhanças,
diferenças e singularidades nas atitudes das mesmas, aplicamos a metodologia de História
Comparada proposta por Marcel Detienne. A essa metodologia, aliamos a Análise de Discurso
proposta por Eni P. Orlandi, buscando trazer novas interpretações que conectassem magia e
gênero nos discursos inseridos nos textos e delinear a possível utilização paidêutica dos
mesmos, através do uso do phármakon pelas feiticeiras, uma vez que este é a materialização da
formação discursiva que perpassa os autores dos documentos.
Iniciamos esta dissertação com um capítulo dedicado à análise dos poetas Homero e
Eurípides, e uma investigação dos valores/importâncias sociais que as poesias exerceram nos
períodos tangenciados por nossa pesquisa: sendo um deles, em nossas proposições, o valor
educativo das obras. Em nossas considerações, compreendemos o conceito de paideía de uma
maneira mais ampla, como educação por si mesma, e não apenas como os ideais filosóficos que
envolviam o preparo dos meninos, filhos dos cidadãos ricos, para a vida adulta.
Portanto, propusemos a interpretação da educação como o fez José Carlos Libâneo
(1990, p. 16-18), isto é, como um fenômeno social substancial para a comunidade e a vida em
sociedade. A educação é responsável por determinar quais os valores serão celebrados pela
comunidade e quais serão rechaçados, e eles se manifestam através de costumes, crenças,
conhecimentos, etc., transmitidos pelo grupo aos indivíduos em formação. Dessa forma,
compreendemos o ato de escutar o canto dos aedos e a ida ao teatro como atividades de forte
apelo educativo, que também serviam como formas de educar as mulheres da comunidade.
Vimos como a instrução do caráter sagrado e as narrativas míticas acontecem através
do ofício do aedo, que, cantando nos banquetes e nos festivais públicos, contribuía para moldar
o caráter helênico, reafirmando todas as atitudes e crenças que compõem seu estilo de vida
como exemplo: falar a língua grega, cultivar o trigo, cultuar os deuses, fazer o sacrifício, comer
pão e beber vinho misturado com água. Quando, eventualmente, a tradição aédica findou, seus
herdeiros diretos mantiveram vivas as histórias épicas nos jogos e festivais religiosos de forma
que a Atenas clássica continuava mergulhada na tradição mítica que foi consolidada no período
Arcaico.

124
Os mitos eram elementos que compunham tanto o épico quanto a tragédia, sendo a
última um dos seus herdeiros diretos. Como Trabulsi (2004, p. 143) afirmou, a tragédia é
composta pela tradição oral dos poetas do passado, uma junção dos mitos de nobreza/cultos
heroicos da Grécia Arcaica com os coros dionisíacos antigos. Aspectos da ideologia arcaica
mantiveram seu lugar de prestígio entre a sociedade clássica, e no que tange a educação de
mulheres, especialmente as esposas dos cidadãos, a documentação complementar utilizada por
nós, como Os Trabalhos e os Dias e Iambos pode nos mostrar exatamente esta situação.
Quando colocamos os dois ofícios sob uma perspectiva comparada, elucidamos os
pontos importantes de convergência entre o aedo e o tragediógrafo, essenciais para a
comprovação da nossa hipótese. O ofício de ambos os incumbia a tarefa de explicitar em
público as histórias e os mitos dos heróis gregos e das divindades, personagens que eram parte
do cotidiano helênico desde a infância. Para tanto, ambos eram patrocinados pelas elites das
sociedades em questão, de forma que difundiam e reafirmavam a ideologia dominante para as
comunidades que participavam desses eventos.
Ademais, pudemos explicitar nas obras selecionadas a presença massiva de um discurso
de identidade versus alteridade, uma vez que o público é apresentado a lugares em que a “ordem
natural” das situações é invertida. Ao ouvir o rapsodo narrando as aventuras de Odisseu ou os
atores declamarem os infortúnios de Medeia, o público se deparava com a ausência dos valores
civilizados que sua sociedade tanto prezava. À ausência da agricultura em Homero, ao
descumprimento dos ritos de hospitalidade em ambas as obras e a quebra de juramentos em
Eurípides, a audiência era também levada a observar mulheres que representavam um desvio
da figura maternal e esposa zelosa, tão exaltado pela documentação. Explicitamos, dessa forma,
a existência de um interdiscurso entre os dois poetas, uma vez que a polarização entre a norma
e o desvio está presente em ambos.
Em nossas considerações acerca da magia, demonstramos razões para nos distanciarmos
da noção frazeriana de distinção entre a magia e a religião, de forma que pudemos compreender
as maneiras que a primeira se inseria no cotidiano heleno do período selecionado em nossas
investigações. Assim como Faraone, Fowler, Collins e Candido, compreendemos a magia como
associada à religião, pois a enxergamos uma relação de simbiose entre elas: os gregos nunca
definiram claramente magia e muito menos a colocaram em oposição ao seu entendimento da
própria religião.
Ao analisarmos especificamente a magia do phármakon, buscamos ressaltar as
semelhanças e singularidades que o conceito possuiu entre os séculos VIII e V a.C.: utilizado
como poções, philtra, amuletos, emplastres e afrodisíacos, o phármakon estava presente na vida
125
cotidiana dos gregos. Manipulado como cura ou veneno, com objetivos benfazejos ou nefastos,
o phármakon pode se encaixar em nossa compreensão da magia grega, uma vez que era
manuseado com o objetivo claro de cessar alguma angústia ou suprir uma necessidade que a
religião oficial e a medicina da época não foram capazes de sanar. Inserido na lógica da vida
grega, o phármakon oferecido sem o consentimento da vítima está conectado à esfera
individual, ao espaço privado.
Através de nossas investigações da documentação, também fomos capazes de perceber
a existência de uma continuidade, entre os períodos Arcaico e Clássico (e até mesmo o
Helenístico), do pensamento/considerações gregas acerca dos poderes mágicos das ervas e
drogas. Desde o épico de Homero até o Papyri Graecae Magicae, os caráteres mágico-religioso
e medicinal mantiveram-se entrelaçados quando se referiam à manipulação dos phármaka. Este
processo discursivo, atestamos, perdurou por muitos séculos após a elaboração de nossa
documentação principal, de forma que Circe e Medeia mantiveram-se como feiticeiras por
excelência no imaginário grego e romano, assim como as atribuições pré-Socráticas de uma
origem divina do mundo material permaneceram intrínsecas ao estudo farmacológico na cultura
Greco-Romana.
Ao analisamos a magia e sua interação com a sociedade grega, dos períodos Arcaico ao
Clássico, fomos capazes de perceber sua integração com o cotidiano. Ao interpretarmos as
passagens em que as personagens fizeram uso do phármakon sob uma ótica comparativa,
pudemos delinear as relações que suas ações constituem com a categoria mental da métis, sendo
formas dos poetas explicitarem a preocupação - compartilhada pelo corpo social – da existência
de pessoas astutas que poderiam fazer uso da magia com os objetivos mais nefastos
imagináveis.
A astúcia masculina (de Zeus, Odisseu, Jasão, entre outros, na mitologia grega) é
exaltada nas histórias transmitidas pela oralidade, enquanto especificamente as des Circe e
Medeia carregam uma conotação negativa. Elas personificam a selvageria e a barbárie, o Outro
que tanto se opõe a identidade helênica: elas demonstravam à plateia tudo aquilo que os gregos
não almejavam para si mesmos. Ambas são imaginativas, dotadas de uma inteligência
astuciosas, graças à qual conseguem perpassar todos os obstáculos. Muito mais do que
armadilhas ou embustes óbvios, elas fazem uso dos meandros da magia, empregam ervas e
filtros, se conectam aos poderes da noite.
As nossas análises também nos levaram a concluir que, mesmo existindo diferentes
grupos de praticantes de magia, inexistia um gênero mais ou menos propício para classifica-
los: uma grande parte desses feiticeiros eram homens itinerantes que ofereciam seus serviços,
126
e muitos cidadãos legítimos também faziam uso de certas magias e buscavam sanar seus
problemas amorosos/sexuais/comerciais através delas. Os poetas, entretanto, fizeram a escolha
de materializar suas narrativas de magia através de personagens femininas. Essa escolha não
foi, em nossa interpretação, arbitrária: ela segue a ideologia da elite masculina dominante,
reforçando um discurso que contrapõe em polos diametralmente expostos os gêneros masculino
e feminino, associando as fêmeas ao perigo, ao descontrole e à selvageria. Essa interpretação
foi essencial para que pudéssemos compreender Circe e Medeia de forma mais abrangente, e
justificar nossas hipóteses acerca do uso paidêutico do phármakon pelas feiticeiras.
O século V a.C. foi marcado como tendo sido um período em que houve um aumento
das práticas mágicas e a consolidação dos mais diversos termos, expressões e palavras que
definem aspectos da magia. Atrelado a isso, Circe e Medeia também foram consolidadas como
feiticeiras por excelência o que indica, em nossa interpretação, uma maior preocupação com a
prática mágica por parte das mulheres. Essa hipótese ganha bases mais sólidas quando
abrangemos nosso corpus documental e encontramos referências, além da poesia, do uso do
phármakon por mulheres. O Primeiro Discurso de Antifonte se caracteriza como um exemplo
documental do período Clássico que sugere os perigos da manipulação do phármakon e
Moralia, de Plutarco, evidencia as mesmas questões em um período posterior, demonstrando a
existência de uma continuidade e de uma consolidação de um discurso de alerta.
Ambas as feiticeiras são figuras que entram em conflito e ameaçam subjugar a força
masculina. A possibilidade da existência de uma força feminina que objetivasse a subordinação
dos homens entraria em completo desacordo com a ordenação do mundo proposta pelos
cidadãos da elite. O lugar das mulheres, no ideal masculino ateniense clássico, era o oîkos,
como demonstramos ao destrinchar o modelo mélissa. Demonstramos como ele foi concebido
no Período Clássico a partir de elementos de narrativas anteriores à formação da pólis, de forma
que pudemos perceber na narrativa homérica traços do que seria consolidado como o modelo.
E não apenas o modelo de esposa ideal clássico foi construído a partir de noções pré-concebidas
de períodos anteriores: os desvios dele também passaram por esse mesmo processo, elucidando
uma continuidade neste discurso. Assim, pudemos delinear como Circe, tanto no Período
Arcaico quanto no Clássico, se caracterizaria como um desvio do modelo e como a Medeia de
Eurípides revolucionou a personagem mítica, feiticeira da Cólquida.
Como mulheres que são habilidosas na arte da magia e dos feitiços, observando a forma
desmedida com que agem em contraponto aos personagens masculinos de suas histórias,
percebemos Circe e Medeia como exemplos literários negativos, através dos quais os homens
buscavam conter e repreender essa prática. A associação do gênero feminino com a feitiçaria
127
seria facilitada pela própria natureza feminina, que é incompreendida e temida: como Circe e
Medeia, a feiticeira usa de seus conhecimentos para subverter a ordem “natural” do mundo. Só
pudemos compreender de maneira mais satisfatória esta associação quando verificamos as
temidas práticas femininas no contexto da Atenas clássica; no que concerne ao uso do
phármakon, verificamos que ele é principalmente empregado em feitiços e magia do amor.
A partir de trabalhos como os de Faraone, Stratton e Frankenfurter, pudemos afirmar
que a categoria de feitiços de amor é profícua para o entendimento das relações entre o gênero
e a magia, uma vez que cada um deles praticava magias de amor de formas distintas. Sobretudo
no período Clássico, as esposas legítimas dos cidadãos utilizavam-se de forma frequente da
magia dos phármaka contra seus maridos. A partir dos trabalhos desenvolvidos pelos
historiadores citados, chegamos a interpretação de que esses feitiços refletiam a condição da
esposa do cidadão no período Clássico: desprovida de voz ativa dentro e fora do oîkos, a
elaboração de philtra e outras poções era uma forma de agência/atividade frente à passividade
imposta pela sua realidade social. A magia agiria, então, como uma forma alternativa de ter
poder e controle sobre a própria situação, o que se contrapõe à ideologia dominante, colocando
em perigo os valores culturais exaltados pela elite.
A existência das práticas mágicas femininas que visavam dobrar a vontade masculina
ameaça diretamente a tão prezada autonomia do cidadão: um homem que é manipulado pelo
phármakon, como nos disse Plutarco, está emasculado, foi privado daquilo que o faz um
verdadeiro espécime do gênero masculino. Ao contrário, o homem dono de si e de seu destino
pratica magia por si mesmo, de forma a alcançar a vitória no esporte, seduzir a pretendente ou
fazer mal ao inimigo. Fomos capazes de perceber em nossa análise, de que maneiras as práticas
mágicas femininas se constituíam como uma ameaça aos valores políades e como o estereótipo
da bruxa foi moldado e estabelecido. Sob uma ótica educativa, Circe e Medeia são as bruxas
por excelência, os exemplos máximos do uso indiscriminado da magia e a selvageria
descontrolada.
Circe e Medeia são representadas de maneira complexa nas poesias em que são
protagonistas, contrastando com suas menções menos proeminentes em outros textos, como na
Teogonia de Hesíodo. Ambas eram divindades que se encontravam à margem do panteão grego
no Período Arcaico, o que contribuiu para sua transformação em feiticeiras por excelência
(BRACKE, 2009, p. 99) – principalmente no período Clássico, no qual o conceito de magia foi
melhor definido e consolidado. A combinação dos elementos presentes em suas narrativas,
ademais ao contexto social do V século a.C. proporcionou a sua transformação e cristalização

128
como representações de feiticeiras, sendo exemplos para a literatura ocidental que seguiu a
tradição de Homero e Eurípides.
Como mulheres marginais sem um kurios e versadas nos conhecimentos farmacológicos
e mágicos, a sua tímida conexão mítica arcaica transformou-se e assentou-se nas tradições
subsequentes, conectando-as permanentemente. Percebemos essa transformação sobretudo
através das alusões a Circe homérica em Píndaro e Eurípides (BRACKE, 2009, p.99). Assim,
mesmo que estivessem conectadas à magia de formas distintas (Circe faz uso de seus
conhecimentos a seu bel-prazer, divertindo-se com o sofrimento dos pobres homens que
atracam em sua ilha; enquanto Medeia é lembrada principalmente pelos assassinatos que
comete) e que tivessem suas polarizações transformadas ao longo de suas histórias (Circe é a
astúcia feminina domesticada por Odisseu, enquanto Medeia rebela-se contra a própria
domesticação e retorna aos costumes selvagens), as duas personagens passaram a ser percebidas
conjuntamente em mitos relacionados à magia grega.
Sua ascendência titânica também as colocava em um patamar diferente das outras
divindades femininas, aproximando-as muito mais da alteridade e selvageria. Os titãs,
derrotados por Zeus, dominavam outrora um mundo sem ordenação e, por conseguinte, sem
felicidade. Ao longo deste trabalho, percebemos como os poetas e filósofos apresentavam a
magia em termos polarizados, sobretudo relegado às mulheres e aos estrangeiros. Uma vez que
o discurso clássico acerca da magia foi estabelecido, Circe e Medeia representaram de maneira
ímpar a imagem polarizada da feiticeira, já que estavam tradicionalmente conectadas “à
pharmakeia e à transgressão dos limites geográficos e de gênero” (BRACKE, 2009, p. 94).
Os períodos subsequentes continuaram a apresentá-las como talentosas mulheres
feiticeiras, atribuindo um caráter ainda mais ardiloso às duas. A elas seguiu-se uma tradição de
bruxas e feiticeiras que almejavam alcançar o mesmo grau de conhecimento, sobretudo, como
mencionamos ao longo da pesquisa, na documentação helenística e romana. A partir de Circe e
Medeia, lugares como a Cólquida e a Tessália tornaram-se lugares usualmente conectados à
feitiçaria feminina - mesmo quando nenhuma das personagens estava relacionada ao enredo –
sendo frequentemente locais de nascimento de bruxas posteriores.
Como representações sociais de feiticeiras, as bruxas fazem parte de um processo
discursivo que objetiva moldar o gênero feminino às noções masculinas do que seria ou não
devido. Ao contrário de personagens como Penélope e Alceste, modelos da boa esposa que
fazem uso dos artifícios inerentes ao seu gênero para honrar seus maridos, Circe e Medeia
reforçam as piores características relegadas às mulheres. Mesmo que Circe se torne benfazeja

129
ao ser subordinada pela astúcia e a magia usada por Odisseu, ela não consegue superar a perfeita
Penélope, a quem o coração de herói anseia por reencontrar.
Já Medeia: nem toda a habilidade farmacológica e todos os sacrifícios foram suficientes
para que possuísse um casamento e uma vida felizes. Circe e Medeia passaram para a história
da literatura ocidental como criaturas selvagens, insubordinadas, símbolos de incivilidade, mas
também como fêmeas incompletas e infelizes. As primeiras de uma série de mulheres que,
embora habilidosas em feitiçaria, são emocionalmente e sexualmente frustradas, pois recusaram
a submissão à autoridade ideológica masculina.

130
Referências Bibliográficas

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