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DOI: 10.

11606/9786587621418

Narrativas & Enigmas da Arte


FIOS DA MEMÓRIA, FRESTAS E ARREDORES DA FICÇÃO

Maria Zilda da Cunha


Lígia Menna (orgs.)

São Paulo, 2021


UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Reitor: Vahan Agopyan
Vice-reitor: Antonio Carlos Hernandes

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


Diretor: Paulo Martins
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Capa
Jéssica Bombonato

Projeto gráfico e DIAGRAMAÇÃO


Bruno de Oliveira Romão
Catalogação na Publicação (CIP)
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo
Maria Imaculada da Conceição – CRB-8/6409

Narrativas e enigmas da arte [recurso eletrônico] : fios da memória, frestas e


arredores da ficção / Maria Zilda da Cunha, Lígia Menna (orgs.). – São Paulo :
FFLCH/USP, 2021.
9.743 Kb ; PDF.

ISBN 978-65-87621-41-8
DOI 10.11606/9786587621418

1. Literatura. 2. Ficção. 3. Linguagem. 4. Memória. 5. Narrativa.


I. Cunha, Maria Zilda da. II. Menna, Lígia.

N234 CDD 808.07

Esta obra é de acesso aberto. É permitida a reprodução parcial ou total


desta obra, desde que citada a fonte e autoria e respeitando a Licença
Creative Commons indicada”
R
Marie-Catherine d’Aulnoy
e o conto de fadas de
autoria feminina nos termos
de Nelly Novaes Coelho
Paulo César Ribeiro Filho

O conto de fadas tal qual o conhecemos hoje, em termos de estrutura e de


elementos narratológicos (enredo, personagens, tempo e espaço) , adquiriu
forma literária definitiva em território francês entre os séculos XVII e XVIII.
Com a publicação de Contos da Mamãe Ganso ou Histórias do Tempo Passado
com Moralidades em 1697, Charles Perrault lança a pedra angular no estabe-
lecimento de uma contística que viria a habitar o imaginário dos homens do
Ocidente ad eternum. Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, A Bela Adormecida,
O Pequeno Polegar e O Gato de Botas são os títulos indubitavelmente mais
populares da coletânea, o que pode ser explicado, em partes, pelo sucesso de
suas adaptações para o cinema via Estúdios Disney. Barba Azul, As Fadas,
Riquete de Topete, Grisélidis, Pele de Asno e Os Desejos Ridículos completam
a lista de contos presentes na publicação, os três últimos em forma poética.
Malgrado seu enorme sucesso, a obra-prima de Perrault esteve envolta em
polêmicas à época do lançamento. Isso porque o século XVII francês foi in-
tensamente marcado por ideais racionalistas, tendo como principal marco
a publicação do Discurso do Método de René Descartes em 1637. O louvor à
Razão perpassou todas as artes e disciplinas, não se contendo à filosofia; no
campo da literatura, por exemplo, essa tendência se expressou no surgimento
de movimentos adeptos à emulação dos modelos literários greco-latinos. É
justamente nesse ínterim de vigorosa efervescência cultural que despontam

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as obras de grandes nomes da literatura: entram em circulação os textos
teatrais de Racine e Molière, a poesia de Jean de La Fontaine e as sátiras de
Boileau, por exemplo.
Cerca de dez anos antes da publicação dos Contos da Mamãe Gansa, Char-
les Perrault escreve um poema em homenagem ao rei Luís XIV intitulado O
Século de Luís, o Grande (Le Siécle de Louis le Grand), lido pelo abade Louis
Lavau diante da Academia Francesa em 27 de janeiro de 1687. O elogio à mo-
dernidade e a censura ao louvor dos antigos presentes no texto reacendem os
debates em torno da poética vigente, vivificando um debate teórico-filosófico
conhecido como Querela dos Antigos e Modernos. O tom combativo emprega-
do por Perrault, na tentativa de justificar a superioridade dos modernos em
face aos antigos , causa grande polêmica. Os antigos, liderados por Boileau,
sustentavam a ideia de que o mérito das obras dos escritores da antiguidade
era incontestável e insuperável, de modo que os escritores do século das luzes
nada poderiam fazer senão tentar imitá-los. La Fontaine e Molière também
eram signatários dessa linha de frente. Os modernos, por sua vez, liderados
por Perrault com o apoio de Bernard Le Bovier de Fontenelle, defendiam a
superioridade da arte literária de então, que deveria se legitimar em si, sem
a necessidade de buscar chancelas no passado.

A bela Antiguidade sempre foi venerável


Mas eu nunca cri que ela fosse adorável.
Vejo os Antigos sem dobrar os joelhos,
Eles são grandes, isso é verdade, mas homens como nós
[...]
Platão, que foi divino no tempo dos nossos antepassados,
Começa a se tornar um tanto tedioso1
(PERRAULT, 1687, p. 3-4, tradução nossa)

Percebe-se, sem grandes dificuldades, que a publicação dos Contos da


Mamãe Gansa não faz jus aos ditames em voga em uma série de aspectos,
dentre os quais podemos destacar: (1) predileção pelo conto, uma forma
literária não canônica, (2) remissão a motivos populares em detrimento do

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panteão temático clássico e (3) efabulação simples, própria para leituras
episódicas e fácil memorização.
Os ideais modernos que subjaziam ao posicionamento enfático de Per-
rault pressupunham, entre outras coisas, não apenas a descanonização do
modelo clássico e da estética da emulação, mas também a horizontalização
da relação autor/obra e a dessacralização da função autoral, enxergando
no povo e em suas histórias uma potencial fonte de inspiração para a arte
literária. É nesse sentindo que uma outra importante reinvindicação dos
modernos passou a ganhar forma: a possibilidade de abertura de espaço para
a presença feminina no círculo dos literatos.
A divergência de posicionamentos entre antigos e modernos quanto ao
valor social da mulher se tornou mote para algumas produções literárias.
De um lado, as invectivas de Molière em obras como As Preciosas Ridículas
(1659) e Escola de Mulheres (1662), que ridicularizavam a intelectualidade
feminina; de outro, A Marquesa de Saluce ou A Paciência de Grisélidis (1691,
posteriormente adicionada à coletânea de 1697), de Charles Perrault, que
serviu como resposta às sátiras de Boileau contra as mulheres.
Foi nas últimas décadas do século XVII que os salões literários presidi-
dos por condessas e demais madames da alta sociedade francesa ganharam
grande notoriedade, sendo Perrault um “frequentador assíduo” desses sa-
lões (COELHO, 1985, p. 65; sua sobrinha, a autora Marie-Jeanne L’Héritier
de Villandon, também acabou se tornando uma famosa salonnière (anfitriã
de salão literário). Na voga do preciosismo literário, a vertente barroca da
literatura francesa, as mulheres que cultivaram a arte do conto de fadas de
acordo com o gosto do momento receberam a alcunha de “preciosas”, e seus
salões de “salões das preciosas”.
Faz-se mister destacar o trabalho de divulgação empreendido pela pro-
fessora e pesquisadora Susana Ramos Ventura na popularização dos contos
de fadas de autoria feminina entre a comunidade lusófona, iniciado há mais
de uma década e que tem como um de seus feitos a publicação da coletânea
Na Companhia de Bela: Contos de Fadas por Autoras dos Séculos XVII e XVIII
(Florear Livros, 2019), em parceria com Cassia Leslie e ilustrações e projeto
gráfico de Roberta Asse. Cinco das autoras francesas supracitadas têm seus
contos traduzidos na obra, que presenteia o público leitor com excelentes in-

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fográficos a respeito do movimento literário das preciosas, suas vidas e obras.
Por vezes, nos livros que falam sobre aqueles tempos,
são mencionadas “as preciosas”, mulheres que lançaram a
moda de contar, escrever e publicar esses contos. Quando
isso acontece, em geral, é para afirmar que o que elas
escreviam não era boa literatura e, por isso, suas obras
ficaram esquecidas. Por terem suas identidades escondi-
das por essa “identidade de grupo”, que as transformou
em “Condessa X”, “Mademoiselle Y”, “Baronesa Z” e que
acabou por desvalorizá-las, o resultado é que tanto a
vida quanto o trabalho literário dessas mulheres ficaram
quase esquecidos [...]” (VENTURA; LESLIE, 2019, p. 11)

Como forma de trazer à lume a identidade de algumas dessas autoras,


apresentamos a seguir uma listagem rudimentar, organizada pela ordem
ascendente dos anos de nascimento: Madeleine de Scudéry (1607-1701),
Madeleine Pioche de La Vergne, a condessa de La Fayette (1634-1693), Ma-
rie-Catherine Le Jumel de Barneville, a condessa d’Aulnoy (1651-1705), Char-
lotte-Rose de Caumont de La Force, a mademoiselle de La Force (1654-1724),
Marie-Jeanne L’Héritier de Villandon, a mademoiselle L’Héritier (1664-1734),
Henriette-Julie de Castelnau de Murat, a condessa de Murat (1670-1716), Ga-
brielle-Suzanne Barbot de Villeneuve, a madame de Villeneuve (1695-1755),
Louise de Bossigny, condessa d’Auneuil (16??-1700), Marguerite de Lubert ou
Marie-Madeleine de Lubert (1702-1785), Jeanne-Marie Leprince de Beaumont
(1711-1780) e Catherine Caillot, a madame de Lintot (1728-1816).
Apesar do protagonismo de Perrault, a crítica literária especializada
atribui a Marie-Catherine Le Jumel de Barneville, baronesa (ou condessa)
d’Aulnoy, a cunhagem do termo “conto de fadas” (contes de feés). Zipes
(2012) atenta para o fato de que nenhum escritor teria utilizado o termo
antes de 1697, ano de publicação da primeira coleção de contos de Mme.
d’Aulnoy, Os contos de fadas (Les contes des fées). O autor indica que o termo
“fairy tale” só teria se popularizado em língua inglesa na segunda metade
do século XVIII, anos após a primeira tradução dos contos de d’Aulnoy, inti-
tulada Tales of the Fairies, publicada em 1707. Backscheider (2013) também
outorga a Mme. d’Aulnoy a autoria do termo, indicando que a publicação

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do primeiro conto de fadas literário de que se tem notícia ocorreu em 1690,
com A Ilha da Felicidade (L’Île de la félicité), um dos episódios da primeira
novela publicada pela autora, História de Hipólito, conde de Duglas (Histoire
d’Hypolite, comte de Duglas). Para Backscheider, o referido conto é inova-
dor por ser “mais longo que os contos de fadas populares, mais complexo,
estilisticamente distinto, altamente intertextual, repleto de plot twists” e
“originalmente publicado como uma narrativa interpolada e tematicamente
enriquecedora” (BACKSCHEIDER, 2013, p. 83). Schacker (2015) corrobora a
cunhagem do termo e afirma que os contos de Mme. d’Aulnoy podem parecer
demasiadamente longos e complexos aos olhos dos leitores modernos, mas
que ajudaram a definir o que seria um “conto de fadas” à época: narrativa de
“paisagem fantástica” na qual “as personagens enfrentam desafios sociais”,
além de ser escrito como “entretenimento adulto e provocação intelectual”
(SCHACKER, 2015, p. 41). Donald Haase (2008), autor do The Greenwood
Encyclopedia of Folktales and Fairy Tales, obra de referência nos estudos de
literatura infantil e juvenil, também localiza a origem do termo “conto de
fadas” em d’Aulnoy e ratifica o status de L’Île de la félicité como o primeiro
conto de fadas literário. Em Nelly Novaes Coelho temos a informação de que
Na mesma época em que Charles Perrault começa-
va a publicar seus Contos, também em Paris, a jovem
baronesa Marie d’Aulnoy (de vida extremamente aven-
turosa e cheia de escândalos) põe em moda os ‘contos
de fadas’. Mantendo um Salão mundano, bastante fa-
moso, ela estreia em 1690 com um romance ‘precioso’,
aventuresco, bem ao estilo patético em moda, História de
Hipólito, conde de Douglas [...]. Cinco anos depois, inicia
a publicação de oito volumes de contos maravilhosos
que, desafiando o racionalismo clássico e o ‘modelo dos
antigos grecolatinos’ lançavam a ‘moda das fadas’ entre
os adultos. Moda que vai durar anos. É entre 1696 e 1698
que Mme. d’Aulnoy publica: Contos de fadas; Novos contos
de fadas ou As fadas em moda; Ilustres fadas; etc., livros
que lançam estórias hoje célebres: ‘O Pássaro Azul’, ‘A
Princesa dos cabelos de ouro’, ‘O Ramo de Ouro’, etc. Há
centenas de outros que não se divulgaram com o mesmo
sucesso e que são narrativas em estilo ‘precioso’ (rebus-

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cado e extravagante) que imperava nos Salões da moda.
(COELHO, 1985, p. 75-76, grifos nossos)

Cabe ressaltar, a respeito das considerações acima, que um dos títulos


mencionados, Ilustres fadas, não faz parte do rol de obras de Marie-Catherine
d’Aulnoy. Por muito tempo a coletânea foi erroneamente a ela atribuída, mas
no prefácio de O Conde de Warwick (Le Comte de Warwick), de 1704, Mme.
d’Aulnoy lista as obras que são de sua autoria, desde já preocupada com as
atribuições enganosas que poderiam vir a fazer.
Parte dos enganos se deve pelo fato dessas mulheres serem conhecidas
sobretudo pelos títulos que carregavam; em algumas publicações, por exem-
plo, vê-se somente a inscrição “M. A***” e derivados na indicação da autoria
dos livros, o que certamente abre margem para muitos equívocos.
David J. Adams aponta que durante o século XVIII, a popularidade das
obras de Marie-Catherine d’Aulnoy excedeu a de Charles Perrault. Conside-
rando apenas o referido século, o professor da área de estudos franceses da
Universidade de Manchester indica que o livro Contes de fées, originalmente
impresso entre 1696 e 1698, recebeu reimpressões em 1708, 1710, 1725, 1731,
1742, 1749, 1757, 1774, 1782 e 1785. Já o segundo livro de contos da autora,
Contos novos ou a moda das fadas (Contes nouveaux ou les fées à la mode),
de 1698, foi reimpresso em 1711, 1715, 1719, 1725, 1735, 1742 e 1754. Segundo o
pesquisador, “as traduções dos contos de fadas de Mme. d’Aulnoy foram mais
populares na Inglaterra durante o século XVIII do que os de qualquer outro
autor francês, inclusive Perrault” (ADAMS, 1994, p. 5).
Adams também postula que, assim como muitos outros literatos da épo-
ca, Marie-Catherine d’Aulnoy não se limitou a um único gênero. Escreveu,
além dos contos de fadas, romances de viagem e romances históricos, como
Memórias da corte de Espanha (Mémoires de la cour d’Espagne), de 1690, e
novelas como História de Jean de Bourbon, Príncipe de Carency (Histoire de
Jean de Bourbon, Prince de Carency), de 1691. O estudioso lamenta, porém,
que apesar das evidências bibliográficas atestarem a popularidade de suas
obras e a manutenção de um público leitor, foram poucas as análises crí-
ticas que fizeram boas recomendações das obras da autora, as quais foram
praticamente ignoradas tanto pela crítica quanto pela historiografia literária

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francesa de então (ADAMS, 1994, p. 7). Finalmente, o professor sugere que
parte do desdém pelas obras de Mme. d’Aulnoy pode ser explicado pelo inte-
resse exclusivo da autora em histórias de príncipes, reis e rainhas, bem como
pela presença altamente recorrente de descrições do modo de vida cortesão.
Além disso, declara que a fantasia inventiva de caráter atemporal típica do
conto de fadas encontrava resistência no que diz respeito à noção clássica
e racional de “tempo” narrativo cultuada pela teoria literária vigente, res-
saltando que o prestígio do conto de fadas entre os críticos e historiógrafos
franceses do século XVIII é inversamente proporcional ao seu êxito edito-
rial. Nas palavras do acadêmico, “durante o Iluminismo, os contos de fadas
foram tratados com um desdém intelectual que contrastou fortemente com
seu sucesso comercial” (ADAMS, 1994, p. 6).
Em termos de pesquisa nacional, temos em Nelly Novaes Coelho o pionei-
rismo na abordagem dessa produção. A partir das considerações da profes-
sora e pesquisadora brasileira destacaremos a pertinência dos qualificativos
por ela utilizados para descrever essa literatura, tendo por base a obra de
Marie-Catherine d’Aulnoy.
As ‘preciosas’ eram as grandes damas cultas, em cujos
salões se discutia ou se divulgava a produção literária da
época. O triunfo do Preciosismo na França correspondeu
a um fenômeno europeu. Na Inglaterra, com Euphues
(1579), John Lily lança o Euphuismo, caracterizado pelo
maneirismo da forma, engenhosidade e erudição. Na Itá-
lia é o Marinismo, iniciado pela poesia de Adone (1623)
de Marini, cavalheiro que vivia na corte de Luis XII, —
obra vazia de pensamento, mas com grande artifício ver-
bal, imagens, antíteses ou conceitos complexíssimos. Na
Espanha surge um poeta autêntico, Gôngora, que com
sua Ode sobre a conquista de Larache (1610) divulga o
Gongorismo ou Cultismo que se define pela manipulação
das formas e pela obscuridade voluntária do estilo. O
Cultismo acaba se expandindo em Conceptismo, quando
a densidade aristocrática da forma se une à pesquisa e à
sutileza do pensamento. De qualquer forma, na França, o
Preciosismo, mais do que uma tendência literária, é um
fenômeno social (COELHO, 1985, p. 84)

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Sobre o panorama literário da França de Luís XIV, Nelly destaca que
“instaura-se na primeira metade do século, em toda sua plenitude, o racio-
nalismo na literatura”, ao passo em que no vetor oposto, o de resistência ao
racionalismo, duas formas literárias se manifestaram, o romance libertino e
o romance precioso, sendo que esse último teve “muito mais difusão” (COE-
LHO, 1985, p. 57). Ao descrever as características típicas do romance precio-
so, a pesquisadora afirma que se tratava de “uma prosa narrativa caudalosa,
exuberante, fantasista que, em tudo, contrastava com a alta disciplina que
presidia aos dois gêneros ‘nobres’ da época: o teatro e a poesia”, arrematan-
do com a informação de que o romance precioso representaria o avesso da
alta literatura encontrada na poesia e no teatro. No romance precioso não
haveria “nenhum ‘espírito de ordem’, nenhuma ‘objetividade’, nenhum ‘racio-
nalismo’ organizador”, e sim o extremo oposto, “o excessivo, o tumultuado, o
inverossímil, a fantasia mais exuberante” (COELHO, 1985, p. 57, grifos nossos).
Por se tratar de um tipo de efabulação em que o enredo está calcado na
descrição de aventuras sentimentais e atos heroicos da paixão, nos romances
preciosos, “verdadeiros contos de fadas para adultos”, o amor “suporta mil
provas para dar testemunho de sua verdade” (COELHO, 1991, p. 87), num
contexto em que “a valentia cavaleiresca cede lugar ao romanesco” e “a fan-
tasia desafia a lógica” (COELHO, 1991, p. 65).
Essa rápida, mas substancial revisitação dos apontamentos de Nelly
Novaes Coelho, nos oferece uma oportuna ferramenta metodológica para
analisar parte dos contos de fadas de Marie-Catherine d’Aulnoy em termos de
efabulação, cotejando-os com os adjetivos grifados, quais sejam, “aventuresco”,
“patético”, “extravagante”, “fantasista”, e “inverossímil”. Serão apresentados
trechos dos contos já traduzidos pelo autor do presente artigo. Destaca-se de
antemão que todos os qualificativos supracitados se mostram perfeitamente
adequados ao teor do corpus em questão. No entanto, para cada um deles será
atribuído apenas um trecho representativo a fim de regular a extensão deste
estudo. Quanto à referência bibliográfica, será citada a obra em que o conto
foi publicado pela primeira vez. Como o processo de tradução envolveu mais
de uma fonte escrita, visto que algumas delas contêm gralhas e lacunas, bem
como a ausência completa das moralidades e páginas perdidas, a indicação
das páginas se torna inviável.

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(1) Aventuresco: Lançar-se ao risco e ao acaso, ou seja, ficar à mercê
da “ventura”, da sorte ou destino, é, sem dúvida, uma atitude tipicamente
tomada pelos protagonistas de contos de fadas, que se lançam despreocu-
padamente em jornadas repletas de percalços na tentativa de alcançar um
êxito sobretudo amoroso. A respeito da temática matrimonial, Nelly Novaes
Coelho ressalta algumas constantes que serviriam para delinear o que seria
um conto de fadas em termos estilísticos:
Com ou sem a presença de fadas (mas sempre com
o maravilhoso), seus argumentos desenvolvem-se den-
tro da magia feérica (reis, rainhas, príncipes, princesas,
fadas, gênios, bruxas, gigantes, anões, objetos mágicos,
metamorfoses, tempo e espaço fora da realidade conhe-
cida etc.) e têm como eixo gerador uma problemática
existencial. Ou melhor, têm como núcleo problemático
a realização essencial do herói ou da heroína, realiza-
ção que, via de regra, está visceralmente ligada à união
homem-mulher. A efabulação básica do conto de fadas
expressa os obstáculos ou provas que precisavam ser
vencidas, como um verdadeiro ritual iniciático, para
que o herói alcance sua auto-realização existencial, seja
pelo encontro de seu verdadeiro eu, seja pelo encontro
da princesa, que encarna o ideal a ser alcançado. [...]
Via de regra, um encantamento, uma metamorfose é o
ponto de partida para a aventura da busca.” (COELHO,
1991, p. 12-13)

Em A Ilha da Felicidade (L’Île de la Félicité), primeiro conto de fadas lite-


rário de que se tem notícia, o jovem príncipe russo Adolfo decide enfrentar
os perigos de uma viagem aérea sobre as asas do deus-vento Zéfiro para co-
nhecer Felicidade, uma princesa por quem se apaixonara somente de ouvir
falar, a qual habitava em uma ilha mítica, inacessível para os homens, na
qual ele só poderia chegar com vida com um auxílio divino.
— O quanto eu adoraria vê-la! — dizia Adolfo. — É
algo tão absolutamente impossível que nem com o vosso
auxílio eu seria capaz de conseguir?

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Zéfiro afirmou-lhe que a jornada seria muito peri-
gosa, mas que se ele tivesse coragem o bastante para
obedecer aos seu comandos, poderia haver uma maneira:
colocá-lo-ia sobre suas asas e o carregaria pelos vastos
espaços etéreos.

— Possuo um manto mágico que doarei a vós — ele


prosseguiu. — Quando vesti-lo do lado verde, sereis invi-
sível. Pessoa alguma vos enxergará e essa é uma medida
indispensável para a conservação da vossa vida, pois, não
importa o quão bravo sejais, caso os guardiões da ilha,
que são monstros terríveis, virem-vos, logo sucumbireis,
e penosos males vos acometerão. (AULNOY, 1690)

(2) Patético: a aplicação do termo “patético” para qualificar o estilo dos


contos de fadas de Marie-Catherine d’Aulnoy tem sua validade garantida
tanto se entendido positivamente, como “aquilo que comove”, que suscita
sentimentos, paixões, afetos (pathos), quanto negativamente, como “aquilo
que nos parece ridículo” ou deveras irracional. As drásticas atitudes dos
amigos da princesa Maravilhosa em O Carneiro (Le Mouton) demonstram
bem a pertinência desse adjetivo. A pequena moura Patypata e o macaquinho
Travesso entregaram suas vidas espontaneamente na tentativa de salvar a
soberana. Os horrendos suicídios, porém, não resultaram em nada.
Por fim, Travesso, mais audacioso que os outros, su-
biu no topo de uma árvore e se jogou de cabeça, suici-
dando-se. Por mais que lamentasse, a princesa consentiu
que o capitão dos guardas arrancasse sua língua, afinal
ele já estava morto. Mas ela era tão pequena (pois tudo
nele não era maior que um punho) que eles julgaram com
grande tristeza que o rei não seria ludibriado.

— Céus! Meu querido macaquinho, eis que estás


morto sem que a tua morte coloque minha vida em se-
gurança — lamentou a princesa.

— É para mim que essa honra está reservada! —


Interrompeu a moura.

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E no mesmo instante ela pegou a faca usada em Tra-
vesso e enfiou na própria garganta. O capitão dos guar-
das quis pegar a sua língua, mas ela era muito escura
e ele não se atreveria a tentar ludibriar o rei com ela.
(AULNOY, 1698[1])

(3) Extravagante: tal qual o que ocorre com o adjetivo “patético”, as de-
finições de extravagância podem ser divididas em duas categorias: a literal
e a pejorativa. O sentido primeiro do qualificativo “extravagante” denota o
que é incomum, singular, fora da regra. Pejorativamente, no entanto, pode-
mos compreender o sentido de “extravagância” como sendo o de frivolidade,
excessividade despropositada, capricho e disparate. Seja como for, todos os
pretensos sinônimos levantados se adequam à adjetivação do corpus em
análise, visto que a singularidade de inúmeras passagens se dá, em alguns
casos, pelas vias do excesso, do exagero. Em Graciosa e Percinê (Gracieuse et
Percinet), a duquesa Rabuja mostra-se transtornada com o suposto desapa-
recimento de seu vinho, isso porque, no lugar da bebida, ela encontra jóias
preciosas nos tonéis.
Passou para o terceiro barril e o golpeou com o mar-
telinho, toc-toc, ao que verteu uma enxurrada de pérolas
e diamantes que cobriram o chão.

— Ah! — ela bradou. — Não compreendo; meu se-


nhor, alguém deve ter roubado meu bom vinho e colo-
cado essas bagatelas no lugar.

—Bagatelas? — disse o rei, muito atônito. — Céus,


madame Rabuja! Chamais isso de bagatelas? É o su-
ficiente para comprar dez grandes reinos como Paris!
(AULNOY, 1698[1])

(4) Fantasista: Denomina-se fantasia tudo aquilo que está de algum modo
desconexo do que se entende por “mundo real”, ou seja, aquilo que só exis-
te nos domínios da imaginação. Esse qualificativo, usado por Nelly Novaes
Coelho para descrever o romance precioso (ou conto de fadas para adultos),
difere do termo “fantasioso” na medida em que este denota qualquer formu-

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lação imaginativa, enquanto “fantasista” pressupõe a qualidade de algo ou
de alguém deliberadamente utopista, uma espécie de adicto pelo onírico,
que se deixa contaminar pelos arroubos mais desenfreados da imaginação.
No supracitado conto O Carneiro (Le Mouton), a fissura entre o real e o ima-
ginário se mostra conflituosa até mesmo no interior da ficção. A princesa
Maravilhosa, dona do cachorrinho e do macaco falante que se suicidaram,
mostra-se surpresa com o fato do Rei Carneiro falar, ao que é repreendida
pelo próprio:
Maravilhosa ficou tão espantada que permaneceu
praticamente imóvel. Tentava avistar o pastor daquele
rebanho tão extraordinário quando o mais belo carneiro
foi até ela, pulando e saltitando.

— Aproximai-vos, divina princesa — disse-lhe ele.


— Não temais animais tão doces e pacíficos como nós.
— Que prodígio! Carneiros que falam!
— Ah, madame — retorquiu ele. — Vosso macaco e
vosso cãozinho falavam muito bem. Haveria, pois, motivo
para tanta surpresa? (AULNOY, 1698[1])

(5) Inverossímil: no cruzamento entre causa e consequência, real e imagi-


nário e sobretudo entre passado, presente e futuro, nem sempre se estabelece
uma relação que se assemelha à verdade, ou que corresponda integralmente
ao que se espera de uma verdade empírica que tem como prova real aquilo
que pode ser atestado pela experiência no mundo sensível. Chama-se de inve-
rossímil o inacreditável, aquilo que não parece verdadeiro ou que é difícil de
acreditar. O emprego desse adjetivo para qualificar os contos de fadas precio-
sos é acertado e deveras categórico, visto que o enredo de inúmeras narrativas
pode parecer potencialmente desmoderado até mesmo no algures atemporal
onde se encontra o mundo encantado das fadas, onde tudo pode acontecer.
Em A Rã Benevolente (La Grenouille Benfaisant), duas ocorrências chamam a
atenção nesse quesito: a presença de uma rã meio-fada cujos poderes se con-
centram em um chapeuzinho de rosas e o tempo gasto pelo rei para resgatar
provisoriamente sua filha e sua esposa que estavam cativas em um castelo de
cristal localizado no centro de um lago de mercúrio nas entranhas da terra.

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— Entendo que vários malfeitores juntos não se aju-
dam a melhorar — afirmou a rainha. — Mas no vosso
caso, minha comadre Rã, que fazeis aqui?

— A curiosidade me obrigou a vir — ela retorquiu.


— Sou meio-fada, meu poder é limitado em certas coi-
sas e fortemente eficaz em outras. Se a fada Leona me
reconhecesse nessa forma, ela me mataria.

— Como é possível que sendo fada ou meio-fada um


corvo estivesse prestes a vos devorar? — disse a rainha.
— Em duas palavras compreendereis — respondeu
a Rã. — Quando estou com meu chapeuzinho de rosas
na cabeça, no qual meus maiores poderes residem, nada
tenho a temer. Infelizmente, porém, eu o deixei cair no
pântano, foi quando aquele maldito corvo precipitou-se
sobre mim.

[...] O rei correu ao longo das margens do lago; po-


rém, quando pensava estar prestes a adentrar o palá-
cio transparente, ele se afastava com uma velocidade
espantosa, de modo que suas esperanças sempre eram
frustradas [...] Foi preciso revestir-se de uma grande
perseverança. Ele passou mais tempo ali do que como rei
no mundo comum. [...] Três anos se passaram sem que
o rei obtivesse avanço algum. (AULNOY, 1698[2], p. 151)

As aventuras disparatadas, extravagantes, patéticas, fantasistas e inveros-


símeis dos protagonistas dos contos de fadas preciosos de Marie-Catherine Le
Jumel de Barneville, a madame d’Aulnoy, estão em consonância com o que
foi apregoado por Nelly Novaes Coelho em todas as suas menções ao movi-
mento do preciosismo no contexto dos salões literários franceses liderados
por mulheres. As narrativas exageradas e burlescas de matéria feérica que
compõem o romance precioso são apontadas por Nelly e pela crítica em ge-
ral como “ponto de partida do gênero ‘romance’, a ser criado pela civilização
burguesa a partir do século XVIII” (COELHO, 1986, p. 149-150), visto que,
diferentemente do conto de fadas popular, os contos de fadas literários de

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autoria feminina não costumam ser lineares do ponto de vista do progresso
do enredo, da introdução ao clímax; pelo contrário, muitos deles apresen-
tam inúmeras reviravoltas (plot twists) e mais de um ponto alto de tensão.
Localizados em uma posição intersticial entre a estrutura do conto tra-
dicional e a estrutura canônica do romance do século XIX, o conto de fadas
precioso (termo cunhado pelo autor deste estudo para fazer referência a
esse tipo peculiar de narrativa) certamente encantará cada vez mais leitores
afeitos às desinibições da fantasia, já que o processo de redescoberta desse
rol de autoras esquecidas se encontra em pleno curso.

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Notas

1 No original: “La belle Antiquité fut toujours venerable, mais je ne crus jamais
qu’elle fust adorable. Je voy les Anciens sans ployer les genoux, ils sont grands,
il est vray, mais hommes comme nous; […] Platon qui fut divin du temps de nos
ayeux, commence à devenir quelquefois ennuyeux”.

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Referências

ADAMS, D. J. The ‘Contes de Fées’ of Madame d’Aulnoy: Reputation and Re-


-evaluation. Bulletin of the John Rylands University Library of Man-
chester 76, no. 3 (autumn 1994): 5-22.
AULNOY, Marie-Catherine Le Jumel de Barneville. Contes de fées. 4 vol.
Paris: Barbin, 1698[1].
AULNOY, Marie-Catherine Le Jumel de Barneville. Histoire d’Hypolite, Comte
de Duglas. Paris: Sevestre, 1690.
AULNOY, Marie-Catherine Le Jumel de Barneville. Nouveaux Contes de fées
ou Les fées à la mode. 4 vol. Paris: Vve. de T. Girard, 1698[2].
BACKSCHEIDER, Paula R. Elizabeth Singer Rowe and the Development of the
English Novel. Baltimore: Johns Hopkins University, 2013.
COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da literatura infantil-juvenil: das
origens indoeuropéias ao Brasil contemporâneo. 3ª ed. ref. e amp. São
Paulo: Quíron, 1985.
COELHO, Nelly Novaes. O Conto de Fadas. 2ª ed. São Paulo: Editora Ática, 1991.
COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas: Símbolos, mitos, arquétipos. 4.ª ed.
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HAASE, Donald. The Greenwood Encyclopedia of Folktales and Fairy Tales:
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PERRAULT, Charles. Le Siecle de Louis le Grande. Paris: 1687. Disponível em:
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SCHACKER, Jennifer. Feathers, Paws, Fins, and Claws: Fairy-Tale Beasts.
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VENTURA, Susana; LESLIE, Cassia. Na Companhia de Bela: Contos de fadas
por autoras dos séculos XVII e XVIII. Londrina: Florear Livros, 2019.
ZIPES, Jack. The Irresistible Fairy Tale: The Cultural and Social History of a
Genre. Princeton: Princeton University Press, 2012.

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