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e mundo contemporâneo
Organizadora
Sandra Patrício
Ethos Humano
e mundo contemporâneo
Organizadora
Sandra Patrício
1a Edição
São Paulo
Editora Baracoa
O cosmo, o mesmo para todos, não o fez nenhum dos deuses nem ne-
nhum dos homens, mas sempre foi, é e será fogo sempre vivo, acenden-
do-se segundo medidas e segundo medidas apagando-se.
Heráclito
© copyright 2019 by Baracoa
Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.
Organizadora
Sandra Maria Patrício Ribeiro
Conselho Editorial
Alessandro de Lima Francisco
Margarida Maria Silveira Barreto
Silvana Santos García
Vicente Augusto Arquino de Figueiredo
Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-65-80620-00-5
19-27255 CDD-302
Índices para catálogo sistemático:
baracoa
editora
AUTORES:
Acácio de Toledo Netto Rafael de Santis Bastos dos Reis
Adriana Veríssimo Serrão Rafael dos Santos Aquino
Alberto Filipe Araújo Regiane Santos Flauzino de Oliveira
André Ferreira Bezerra Rinaldo Miorim
Angelita Corrêa Scardua Rodrigo Feliciano Caputo
Dirk Michael Hennrich Sandra Patrício
Eda Tassara Tiago Pilotto Rodrigues Alves
Giancarlo de Aguiar Vania Bartalini
Helena Tassara Vladimir Bartalini
Jean-Jacques Wunenburger Yanci Ladeira Maria
José Oswaldo Soares de Oliveira
Josef David Yaari COLABORAÇÃO:
Marcello Giovanni Tassara Paulo Rodrigo Unzer Falcade
Mariana Malvezzi
Maribel Mendes Sobreira APOIO:
Paulo Borges PROAP/CAPES
Paulo Rodrigo Unzer Falcade Programa de Pós-Graduação em
Pedro Teixeira Carvalho Psicologia Social / USP
Sumário
Apresentação
Sandra Patrício
parte 1: diálogos
p. 23 Capítulo 1 — Uma perspectiva para a compreensão do
ethos humano — Sandra Patrício
p. 40 Capítulo 2 — Considerações sobre a gravidade ética e
política da paisagem e de suas transformações — Sandra
Patrício & Vladimir Bartalini
p. 78 Capítulo 3 — Considerações sobre o estudo das multidões
urbanas nos tempos atuais — Sandra Patrício & Eda Tassara
p. 117 Capítulo 4 — Fazer da terra uma morada. A ética
da natureza, segundo Ludwig Feuerbach — Adriana
Veríssimo Serrão
p. 155 Capítulo 5 — Abertura da Consciência e Mudança de
Civilização. Repensar a Natureza, a Terra e Eros a partir
de Hesíodo — Paulo Borges
p. 182 Capítulo 6 — Do Imaginário e de suas relações com a
mitopoética do espaço — Jean-Jacques Wunenburger &
Alberto Filipe Araújo
p. 231 Capítulo 7 — Paisagem como paradigma político. Corpo
e paisagem na época das imagens técnicas —
Dirk Michael Hennrich
p. 255 Capítulo 8 — Imaginação e poesia: entre a tentação de ser
soviético e a vontade de ser russo. Pensando sobre Andrei
Roublev, um filme de Andrei Tarkovski — Helena Tassara
p. 283 Capítulo 9 — Cidade como chôra e abrigo: sobre a
essência da arquitectura — Maribel Mendes Sobreira
p. 321 Capítulo 10 — Apego ao lugar: panorama de pesquisa e
papel na Psicologia Social — Rafael dos Santos Aquino
p. 350 Capítulo 11 — Toxemia socioambiental. Estudo
psicossocial da transformação do vale do rio Paraíba do
Sul - São Paulo, Brasil — José Oswaldo Soares de Oliveira &
Eda Tassara
p. 379 Capítulo 12 — Ensaio sobre habitar — Yanci Ladeira Maria
p. 397 Capítulo 13 — Homem e Lugar: um ensaio do Homem-
fronteira na atualidade — Mariana Malvezzi
p. 419 Capítulo 14 — Cidade do branco adeus — Marcello
Giovanni Tassara
parte 2: estudos
p. 443 Capítulo 15 – Considerações sobre a Psicologia Social —
Paulo Rodrigo Unzer Falcade
p. 463 Capítulo 16 — Psique e matéria: um estudo junguiano a partir
da Atlântida de Platão e do sertão de Guimarães Rosa —
Rafael de Santis Bastos dos Reis
p. 491 Capítulo 17 — A paisagem como experiência. Abordagem
qualitativa fenomenológica e o fenômeno paisagem —
Vania Bartalini
p. 513 Capítulo 18 — Reflexões sobre os trajetos: imaginário,
espaço e metrópole contemporânea — Rinaldo Miorim
p. 539 Capítulo 19 — A morte e os vivos: um estudo
comparativo dos Sistemas Tanatológicos linense e
Bororo — Rodrigo Feliciano Caputo
p. 565 Capítulo 20 — O Morto-Vivo como símbolo e sintoma da
destrutividade do ethos contemporâneo —
Tiago Pilotto Rodrigues Alves
p. 583 Capítulo 21 — Do interior para o exterior: o exílio de Héstia
e o lugar do coração na cidade — Angelita Corrêa Scardua
p. 601 Capítulo 22 — Existe amor em São Paulo? Um estudo do
amor urbano contemporâneo — Pedro Teixeira Carvalho
p. 627 Capítulo 23 — O lugar do sujeito na lógica do discurso
capitalista — André Ferreira Bezerra
p. 647 Capítulo 24 — A morada do ser: reflexões sobre a casa e o
lugar — Regiane Santos Flauzino de Oliveira
p. 665 Capítulo 25 — Esse lugar chamado “mercadão”: um estudo
fenomenológico da paisagem — Acácio de Toledo Netto
p. 689 Capítulo 26 — O Indivíduo como fenômeno trajetivo —
Josef David Yaari
p. 715 Capítulo 27 — Arquétipos da Ecologia do Ser —
Giancarlo de Aguiar
Apresentação
Sandra Patrício
1
O Grupo de Pesquisa Mitopoética da Cidade: Experiência Subjetiva, Paisagem, Memória e Imag-
inação constituiu-se e foi cadastrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil do Consel-
ho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em 2011.
13
nesta coletânea representa mais um esforço para descobrir o que é
um modo melhor de viver, e um melhor lugar para a vida.
O leitor encontrará aqui os resultados de esforços de dois tipos:
os textos reunidos na primeira parte correspondem a uns diálogos
bastante esclarecedores e instigantes com estudantes e pesquisado-
res de diferentes áreas, níveis e instituições, o que em alguns leitores
poderá provocar algum estranhamento que cumpre tentar dissipar
desde já. Ocorre que, por muitas razões e motivos, o grupo prioriza
o trabalho formativo para a pesquisa, o que exige a convivência e o
diálogo com pesquisadores em diferentes fases de formação; nesta
convivência e diálogo é comum que pesquisadores sêniores tenham
a ocasião de aprender coisas bem interessantes que estão sendo es-
tudadas em níveis mais básicos, às vezes por pessoas bastante jovens
– assim, não haveria sentido em adotar o grau acadêmico como crité-
rio para a seleção dos trabalhos a apresentar aqui. Por outro lado, o
grupo caracteriza-se por uma atitude de abertura frente aos conhe-
cimentos e saberes alcançados por diferentes caminhos e, quanto ao
conhecimento científico, frente aos conhecimentos produzidos em
diferentes áreas e em diferentes lugares – portanto, nossos diálogos
tendem a ser, como costumo dizer, um tanto indisciplinados, ou me-
lhor dizendo, têm sempre certa dose (que não caberia aqui precisar)
de interdisciplinarização, quiçá algo de transdisciplinarização, o que
confere também algum deslocamento, alguma trans-departamenta-
lidade e trans-nacionalidade que fica patente especialmente nos ca-
torze capítulos que constituem a primeira parte desta coletânea. No
primeiro bloco desta parte encontram-se as elaborações, digamos,
mais “consolidadas” destes diálogos: o capítulo 1 apresenta a pers-
pectiva compreensiva que esta organizadora tem adotado quanto ao
ethos humano; o capítulo 2 retrata considerações compartilhadas en-
tre o professor Vladimir Bartalini e eu própria, quanto à necessidade
14
de se buscar harmonizar os componentes naturais e construídos
da paisagem (que considero uma das figurações mais expressivas do
ethos humano); o capítulo 3 apresenta considerações longamente elu-
cubradas em conversas que tive o privilégio de manter com a profes-
sora Eda Tassara à respeito das multidões urbanas nos tempos atuais
(que considero uma das dimensões mais dramáticas, senão trágica,
do ethos contemporâneo). No segundo bloco, encontram-se textos
que, cada um a seu modo, meditam sobre a relação existente entre
lugar e vida, discutindo muitas das idéias e conceitos atualmente sob
estudo no Grupo de Pesquisa Mitopoética da Cidade: a Natureza, a
Sensibilidade, a Consciência e a Civilização (capítulos 4 e 5); o Imagi-
nário, o Corpo, a Paisagem, a Cultura, o Tempo e a História, a Poesia
e a Política (capítulos 6, 7 e 8); a Cidade, a Chôra e o Abrigo (capí-
tulo 9); o Apego ao Lugar e a Toxemia Socioambiental (capítulos 10
e 11). O último bloco representa um horizonte de preocupações: o
Habitar como questão geográfica e destino coletivo (capítulo 12) e,
ao mesmo tempo, as limitações hodiernas ao habitar autenticamente
humano sobre a Terra (capítulo 13).
Mas esta primeira parte não poderia terminar assim, terminan-
temente – então, pensei em agregar-lhe um conto, Cidade do branco
adeus, com o qual nos honrou o professor Marcello G. Tassara. Tive
dúvidas se uma tal idéia poderia ser bem compreendida pelos lei-
tores e consultei um dileto aluno, Rafael de Santis Bastos dos Reis,
remetendo-lhe o conto e pedindo sua opinião – ele respondeu:
15
Clarice Lispector, escrita em uma carta ao seu amigo, o também li-
terato, Fernando Sabino. Clarice narra que estava, por conta própria,
começando a estudar cálculo integral e, antevendo a surpresa do
amigo, explica em seguida: vinha sentindo, em seu trabalho criativo
de escritora, a necessidade de entrar em contato com alguma maté-
ria que lhe fosse desconhecida e misteriosa. Escolheu, para isso, a
matemática. Se Einstein, em meio ao caminho do intenso raciocínio,
fazia um desvio pela senda do vazio, Clarice, por sua vez, buscava, ao
acessar regiões do saber que lhe eram alheias e distantes, distender
seu vigor criativo de artista. Aprendemos com os mestres, e estes nos
ensinam que a alma, dotada de sensibilidades e potências diversas,
cresce e vivifica-se no percorrer a amplidão dos campos do saber.
16
repente, em meio à leitura se faz o susto: o distópico espreita o coti-
diano, e o absurdo parece poder se materializar a qualquer instante,
mais forte e mais pesado do que a razão. Agora. Marcello Tassara
nos coloca diante de personagens-espelho: ora, também nós não ta-
teamos nas cinzas de nosso museu nacional, recém queimado, em
busca de resquícios de nossa história? Não nos é algo familiar o
gosto da poeira branca que penetra nas entranhas do dia? As pala-
vras do autor vão desenhando imagens que evocam possibilidades
diversas. Vemos, por exemplo, o menino moribundo, ante a impo-
tência dos que o cercam, condoídos por sua dor: “Presépio ao con-
trário”. E vemos, também, uma altivez humana, um anseio de exis-
tir que resiste por sob a poeira. Palavras-imagens de um mundo de
assombro que nos remete – com tamanha atualidade – às sombras
de nosso próprio mundo...
17
de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo e ao Laboratório
Paisagem, Arte e Cultura (LabParc / FAU-USP). Portanto, e embora
enfoquem situações diversas, os estudos apresentados nos capítu-
los que constituem a segunda parte deste volume alinham-se, em
maior ou menor grau, à minha própria compreensão acerca do ethos,
concebido como uma relação natural (como que) de moldagem con-
tínua e recíproca entre um lugar e a vida de seus habitantes – mais
especificamente para o caso humano, uma relação entre a subjeti-
vidade, o comportamento e o lugar de existência (situação), aspectos
indissociáveis da nossa vida e que constituem condições funda-
mentais das experiências sustentadoras do mundo interno e das in-
terações do sujeito com o mundo exterior, entendido em toda a sua
amplitude e setores2. Esta é a compreensão que orientou ou orienta
os trabalhos apresentados na segunda parte, os quais buscam en-
frentar três ordens de questões: 1) as questões acerca da constitui-
ção histórica do objeto e do método da Psicologia e da Psicologia
Social, e os papéis ou funções que exercem na cultura ocidental
moderna; 2) as questões acerca da natureza, gênese, estrutura, de-
senvolvimento e funcionamento do psiquismo, da subjetividade e
da interação humana; 3) as questões acerca das qualidades ambien-
tais (em termos tanto físico-biológicos, quanto histórico-culturais)
imprescindíveis à sustentação da vida humana na dupla acepção
conferida pelos vocábulos gregos zoé e bíos (ou seja: em termos tan-
to da manutenção e multiplicação da vida orgânica, quanto dos mo-
dos de viver que caracterizam e singularizam as diversas coletivida-
des humanas). Nos estudos concretos que são aqui apresentados, o
enfrentamento destas questões articula-se com os temas de pesqui-
2
No primeiro capítulo da presente coletânea (Uma perspectiva para a compreensão do ethos
humano) procurei detalhar um pouco mais esta minha compreensão e referenciar seus prin-
cipais fundamentos.
18
sa desenvolvidos individualmente pelos pós-graduandos do Grupo,
ressoando seus respectivos interesses, formação básica, referenciais
teórico-metodológicos, experiências. Tal circunstância também po-
derá gerar algum estranhamento em leitores habituados a encontrar
certa homogeneidade nas dissertações, teses e pós-doutoramentos
orientados por um docente, e talvez seja preciso reiterar nosso pro-
pósito de contribuir para o diálogo e a reflexão sobre o ethos contem-
porâneo, seus impasses, potencialidades e devenires possíveis – ora,
a heterogeneidade é parte inerente do diálogo sincero e da reflexão
genuína! Assim, o justo alinhamento dos trabalhos ora retratados
não poderia se dar senão pelo propósito reflexivo comum: reflexões
teórico-metodológicas sobre a psicologia e seu objeto (capítulos 15,
16 e 17), reflexões sobre traços característicos do ethos humano na
contemporaneidade (capítulos 18, 19 e 20), reflexões sobre situações
em que o ethos humano mostra-se, em alguma medida, fraturado
(capítulos 21, 22 e 23), reflexões sobre as condições suficientemente
boas para a sustentação e integridade do ethos (capítulos 24 e 25), re-
flexões sobre descaminhos do mundo contemporâneo e os possíveis
caminhos para a restauração do ethos humano (capítulos 26 e 27).
Tais reflexões, como é evidente, recobrem muitos dos problemas
mais complexos com os quais se defrontam, hoje, as ciências humanas
e sociais, notadamente a Psicologia e a Psicologia Social; daí conside-
rarmos pertinente e relevante compartilhar os fundamentos e deline-
amentos que adotamos nestes trabalhos, bem como os resultados e
interpretações a que temos chegado.
Como últimas palavras, registramos nossa gratidão aos amigos
José Teixeira Neto e Nísia Simi Amaral, que gentilmente nos ajudaram
na revisão de parte dos textos desta coletânea. Também agradecemos
ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social pelo apoio atra-
vés da verba PROAP/CAPES.
19
Parte 1
21
Sandra Patrício
Universidade de São Paulo
CV: http://lattes.cnpq.br/6404152265871629
E-mail: sandrapatrício@usp.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-3838-122X
23
Uma perspectiva para a
compreensão do ethos
humano
24
A perspective for the
understanding of the human
ethos
25
Capítulo 1
28
relação causal. 3. Pareamento ou mapeamento entre os elementos
de dois conjuntos de modo que cada elemento do primeiro con-
junto (ou condutor) faça par com apenas um elemento correspon-
dente do segundo conjunto (ou seguidor). – relacionado adj.
Capítulo 1
30
deixa viver é o que vivemos, eu, você, nós todos, os humanos sobre
a Terra; este “-se” que aí comparece instala uma espécie de ligação,
de sentido circular e reversível, entre o indivíduo, seu grupo espe-
cífico e a situação (o lugar) em que se encontram.
Esta circularidade e seus efeitos simbólicos subjacente aos sig-
nificados convencionados ao longo do tempo para o uso de palavras
derivadas da raiz s(w)e-, por si só, justifica o interesse de se estudar
o ethos humano no campo das Humanidades e das Ciências Hu-
manas e Sociais e, dentre elas, particularmente a Psicologia Social,
e sugere também o potencial heurístico de um tal estudo para o
conhecimento e a reflexão sobre a realidade da vida e do mundo
humano na contemporaneidade. Mas eu gostaria que ficasse intei-
ramente clara minha posição: acredito que a palavra ethos, se origi-
nou-se na ancestralidade indo-europeia, nem por isto deixa de no-
mear algo de universal. Trata-se, a meu ver, de um modo particular,
histórico, de apontar uma relação geral, universal, a-histórica, entre
indivíduos e coletivos vivos específicos e seu lugar de vida.
Dito de outro modo, penso que a instauração da palavra, con-
quanto razoavelmente bem localizada e datada, deu-se com base
no reconhecimento, possível e provavelmente intuitivo, de uma
relação universal e, senão atemporal, ao menos submetida a uma
temporalidade de longuíssimo prazo, correspondente aos tempos
naturais da evolução geológica e biológica e à lenta formação e
desenvolvimento histórico das culturas – portanto, meu interesse
volta-se não à palavra ethos, sua etimologia e filologia, mas sim a
esta relação universal que tal palavra teria vindo nomear.
Tenho defendido a tese de que o ethos é uma relação natural (como
que) de moldagem contínua e recíproca entre um lugar e a vida de seus
habitantes (RIBEIRO, 2018). Esta formulação, assumidamente preliminar
(até precária, mesmo), exige pelo menos oito breves esclarecimentos:
Capítulo 1
32
6. “lugar” quer dizer, ambiguamente, topos e chôra (cf., p.e., BERQUE,
2003; 2012), ou seja, tanto quer dizer certa posição e limites pre-
cisos de uma porção do espaço tridimensional que podem ser ob-
jetivamente indicados mediante coordenadas cartesianas (topos),
quanto quer dizer, já não somente a forma momentaneamente
assumida por uma porção do espaço, mas também muitos outros
aspectos: as transformações sucessivas de que seus habitantes
têm memória, as qualidades atuais dos objetos que se concentram
numa dada região do espaço e seus usos praticados no presente e
também aqueles que são projetados para o futuro, as afetações re-
cíprocas entre estes objetos e as motivações que eliciam nos viven-
tes que coexistem nesta região, o valor pragmático e simbólico que
possuem no mundo humano tanto em níveis particulares quanto
em nível geral e que, nas palavras de Platão, gestam e nutrem o
devir de tudo e de todos que lá existem (chôra);
7. “vida” quer dizer, de um lado, a vida orgânica individual com tudo
que isto implica, notadamente um corpo físico e vivo, cuja forma-
ção, funcionamento e adaptação transcorre sob condições filoge-
néticas estritas, que as condições ontogenéticas podem modificar
mas jamais ultrapassar – algo a que os gregos antigos teriam cha-
mado pelo nome zoé (cf., p.e., BESSELAAR, 1994; AGAMBEN, 2002),
quanto, por outro lado e ao menos no caso humano, tanto a vida
psíquica individual e subjetiva (notadamente, a simbolização, a
cognição, os sentimentos, o raciocínio), quanto o modo de viver
coletivo moldado culturalmente que, aliás, é efetivo em moldar
também o modo individual de comportar-se (bíos; idem) – tudo
isto recíproca e continuamente; e
8. “habitantes” quer dizer, simplesmente, todos os seres vivos que povo-
am certo lugar atualmente, ou seja, no momento considerado – assim,
o estudo do ethos vigente num dado lugar, por exemplo, numa cidade,
Capítulo 1
34
em nossos habitats, hábitos e hálitos, sobre o que há de comum a todos
nós. Tudo se passa como se cada lugar, e nele cada pessoa ou grupo,
constituísse uma realidade sui generis, sem comparação possível em
qualquer nível, com quaisquer outros lugares, grupos ou pessoas.
De minha parte, quero colocar que as coisas não me parecem
ser, de fato, assim – ao menos, quero recolocar a dúvida: podemos
ou não, importa ou não, vale ou não a pena, buscarmos conhecer os
contornos, os limites, do tipo de lugar e do tipo de vida correspon-
dente ao ser humano? Como fazer isto?
As respostas preliminares que tenho encontrado (ou reformu-
lado) orientam na direção de focar já não um ou outro, ou outro,
componente ético (habitat, hábito e hálito) para nele propor e im-
plementar melhorias, como tem sido feito por grande parte dos
chamados cientistas humanos e sociais da atualidade, aliás, sem
grande sucesso. O mais das vezes, tem-se buscado intervir sobre
lugares, ou condicionar comportamentos, ou educar as almas,
tendo em vista ideais de perfeição deduzidos de visões de mundo
cujas origens e destinos ainda compreendemos pouco e que talvez
jamais possamos compreender inteiramente. Creio que, em vez
disso, é preciso focar a complexa relação entre aqueles componen-
tes (habitat, hábito e hálito; lugar, comportamento e subjetividade),
sem pressa de manejar, de controlar, tal relação.
Com isto não quero negar o valor das pesquisas ditas “aplica-
das” ou “engajadas”, menos ainda o estudo das visões de mundo
que formam nossa herança cultural; ao contrário, admito de bom
grado tanto a utilidade transformadora e prática do conhecimento,
quanto a inevitável adesão de todo ser humano, inclusive os cien-
tistas, a visões de mundo preexistentes a ele e cuja compreensão
deve ser perseguida a todo custo. Seja como for, parece-me acer-
tado reafirmar a importância da pesquisa científica pura, básica,
Capítulo 1
36
decisões e ações, nos planos pessoal e político, sobre os modos
possíveis e desejáveis de habitarmos a Terra como seres huma-
nos, em companhia de outros seres; não poderemos construir um
mundo suficientemente bom para todos nós, sobretudo porque
tal ignorância, logicamente, tende a impossibilitar qualquer sen-
timento de compaixão para com os indivíduos e grupos humanos
distintos de nós próprios, de nossos próprios grupos – assun-
to que, de modo ligeiramente diferente, é abordado por Richard
Sennett (2003) dentre muitos outros, assim como impossibilita a
percepção de nosso destino comum com as demais espécies vivas
do planeta e, em síntese, o reconhecimento de nossa dependência
absoluta do lugar (primordialmente, chôra), em que vivemos.
Como arremate, parece-me oportuno ilustrar mais concretamen-
te minha concepção da relação ética; pois bem: ela pode ser intuída
diante de qualquer situação na qual possamos aplicar, por exemplo, o
conceito de “trauma”. Como todos sabem, um “trauma” é geralmente
reconhecido como o impacto de um evento externo, localizável no es-
paço-tempo, sobre um sujeito (individual ou coletivo), resultando em
consequências mais ou menos duradouras à sua vida física e/ou psíqui-
ca, com reflexos verificáveis em algum grau sobre seu corpo e/ou sobre
seu comportamento manifesto ou encoberto. Para uma aproximação
mais lúdica, pode-se começar a pensar o assunto a partir de uma deli-
ciosa “tirinha” de Bill Watterson (s/d) que dispensa comentários:
Capítulo 1
38
SENNETT, Richard. Carne e Pedra.
O corpo e a cidade na civilização
ocidental. Rio de Janeiro: Record,
2003
Capítulo 1
CV: http://lattes.cnpq.br/6404152265871629
E-mail: sandrapatrício@usp.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-3838-122X
40
Vladimir Bartalini
Universidade de São Paulo
CV: http://lattes.cnpq.br/2952247331062910
E-mail: bartalini@usp.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-3412-0620
41
Considerações sobre a
gravidade ética e política
da paisagem e de suas
transformações
42
A perspective for the
understanding of the human
ethos
43
Capítulo 2
Considerações sobre
a gravidade ética e
política da paisagem e
de suas transformações
Sandra Patrício
Universidade de São Paulo
Vladimir Bartalini
Universidade de São Paulo
46
configuração territorial que é possível abarcar com a visão, e se dá
como um conjunto de objetos reais-concretos”2 e, por mais que
estes objetos interfiram no espaço, “só por sua presença, os obje-
tos técnicos não têm outro significado senão o paisagístico”3. No
pensamento de Milton Santos, é preciso que um conteúdo social
anime estes objetos e, na distinção operada entre paisagem e es-
paço, caberia àquela o papel de matéria inerte, destituída de vida.
É necessário, portanto, cautela no emprego dos termos e atenção
para os limites da sua validade em função do pensamento de quem
os emprega. Caso contrário, poderíamos incorrer no erro de dizer
que, para Rosario Assunto, território e paisagem são sinônimos.
Prossigamos então com este pensador, Rosario Assunto, o qual,
após discorrer sobre o conceito de território, se ocupa em verificar se
este conceito equivaleria ao de ambiente. Ele discerne duas dimensões
no ambiente: uma, físico-biológica – latitude, longitude, altitude, cli-
ma, fauna, flora, geologia, relevo, hidrografia, etc – e outra, histórico-
-cultural – economia, política, costumes, idiomas, etc. É fácil, diz ele,
perceber que o conceito de ambiente, “na sua unidade-diversa de am-
biente biológico e de ambiente histórico-cultural, inclui em si o de ‘ter-
ritório’ (não pode haver ambiente sem território), mas com um exces-
so de elementos que não são necessários para a definição de território
enquanto tal”4. O ambiente, portanto, seria o território qualificado em
termos físico-biológicos e histórico-culturais. Não nos parece ousado
aproximá-lo da expressão “ocupação socioespacial”, se considerarmos
que nela estão contidos, de modo sintético e inextricável, a sociedade,
em sua dinâmica histórica, e a sua expressão material, concreta, física
2 Milton Santos, A natureza do espaço. São Paulo, Edusp, 2002, 4 edição, p. 104.
3 Idem, p. 105.
Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 47
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
(mais uma vez, cumpre ressaltar as diferenças de acepção que a palavra
espaço assume nos diferentes autores. Para Milton Santos, o espaço
não poderia ser assumido, como fica sugerido pela aproximação que
acabamos de fazer, como a expressão concreta, meramente material,
da sociedade). Assim, para Rosario Assunto o ambiente seria “o ter-
ritório acrescido da vida, da história, da cultura”5, o que já impede a
substituição indiscriminada de um conceito pelo outro. Parece-nos lí-
cito, portanto, considerar que uma tal concepção de ambiente, ou seja,
como sendo “o território vivo para o homem e vivido pelo homem”6,
equivale ao espaço de Milton Santos.
Até aqui, estas considerações podem dar a impressão de que
nos limitamos a cotejar conceitos que dizem respeito aos mesmos
fatos ou fenômenos, mas que recebem nomes diferentes conforme
os diferentes pensadores que sobre eles se debruçaram. Ao intro-
duzir o seu conceito de paisagem, porém, Assunto não só lhe atri-
bui um significado diverso daquele que lhe emprestará a geografia
crítica miltoniana, como a reintegra numa unidade com o território
e com o ambiente, o que passa a nos interessar de modo especial.
Assim, uma vez incluído o conceito de território no de ambiente,
Assunto define a paisagem como a “forma” que o ambiente (“con-
teúdo” ou “função”) confere ao território (“matéria”). Mas não se
trata de uma forma inerte, limitada a deixar-se abarcar pela visão, e
sim de uma forma “na qual se exprime a unidade sintética a priori
da ‘matéria’ (território)’ e do ‘conteúdo-ou-função’ (ambiente)”7,8.
5 Idem, p. 128.
6 Idem, ibidem.
7 Idem, ibidem.
8 Cumpre notar que Rosário Assunto está, declaradamente, empregando a expressão “unidade
sintética a priori” no sentido kantiano, ou seja, no sentido de unidade necessária que condiciona
o seu apresentar-se na consciência (Idem, p. 128).
48
Esta definição de paisagem não deve ser julgada como simples pre-
ciosismo conceitual, como pura abstração. Para Assunto, abstra-
ção seria o território, ao qual só poderíamos ter acesso mediante a
abstração do ambiente que o modela com “as nossas esperanças e
desilusões, as nossas alegrias e as nossas tristezas”; abstração seria
também o ambiente, “assim como seria abstração irreal o conteúdo
de um livro (...) sem a realidade em que ele se exprime modelando
uma matéria verbal”9. Em suma, só temos acesso ao território e ao
ambiente por meio da paisagem, que nos permite viver, experien-
ciar e conhece-los na sua “indissolúvel unidade”. Se o conceito de
ambiente abarca o de território, o de paisagem abarca o de am-
biente. As consequências práticas que daí advêm são fundamentais
para nós, como se pode conferir nas palavras com as quais Assunto
conclui o seu breve mas elucidativo ensaio: “a realidade que deve-
mos estudar e sobre a qual, se necessário, devemos intervir é sem-
pre a ‘paisagem’, e não o ‘ambiente’ e muito menos o ‘território’”10.
A forma da paisagem
9 Idem, p. 129.
10 Idem, ibidem.
Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 49
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
responsáveis pelo traçado das rodovias que atravessam a planície
do Pó, para os quais ela não parecia suave, como a cantaram os
poetas, mas simplesmente lisa, pronta a receber o que a “régua e
o tira-linhas” determinassem11. Infelizmente, poderíamos contri-
buir com muitos outros exemplos de procedência nacional), dos
construtores de edifícios, enfim, de tantos atores que desfrutam
e abusam da autoridade para intervir nas nossas paisagens sem
nos consultarem.
Nada do que foi dito implica a defesa da imobilidade, uma cris-
talização mórbida da paisagem. Se a paisagem tem fisionomia, ros-
to, ela é dotada de expressividade, de vida, portanto está sempre
em transformação: por assim dizer, ela é forma em trânsito. Porém,
como todo rosto que não foi deformado a ponto de se tornar ir-
reconhecível, ela se modifica sem impedir o seu reconhecimento,
o que permite a preservação e a renovação das tonalidades afetivas
que nos fazem distinguir uma paisagem de outra.
Sim, “a paisagem se unifica em torno de uma tonalidade afeti-
va dominante”, diz Eric Dardel, o que a legitima enquanto fenômeno,
ainda que ela seja “refratária a toda redução puramente científica”. A
paisagem, continua Dardel, “põe em jogo a totalidade do ser humano,
seus vínculos existenciais com a Terra (...) como lugar, base e meio de
sua realização (numa) relação que afeta a carne e o sangue” 12.
A paisagem não é, em sua essência, para ser vista. Esta assertiva
de Dardel pode soar estranha à primeira vista, mas a entendemos,
antes, como uma provocação, como uma força de expressão para
se contrapor à concepção dominante, ao menos desde a aurora da
12 Eric Dardel, L’Homme et la Terre. Nature de la réalité géographique. Paris, editions du CTHS,
1990, p. 42.
50
modernidade, que limita a paisagem ao campo visual que se descor-
tina de um lugar alto. Do mesmo modo que podem parecer descon-
certantes as conclusões de Jean-Marc Besse no instigante ensaio
intitulado “Nas dobras do mundo. Paisagem e filosofia segundo Pé-
guy”13. Retomando as ideias de Charles Péguy, pensador francês do
início do século XX, que concebia a filosofia como ação no universo
pensante, Besse pode dizer que “o melhor ponto de vista para o
mundo é o ponto de vista de baixo, e que sobe para as coisas, apo-
derando-se assim do impulso do ser. Visto de cima, o mundo é pla-
no. É por baixo que é preciso começar, é ali que é preciso ficar, ou
retornar, para se lançar”14.
No entanto, não se trata de negar que a paisagem seja da ordem
do visível e, mais ainda, do estético. Afinal, como salienta Jean-Marc
Besse, agora num alentado posfácio à reedição de L’Homme et la Terre,
“a estética é a primeira ligação do homem com o mundo, sua primei-
ra maneira de se situar nele, de compreendê-lo”15. E o próprio Dardel,
no mesmo sub-tópico em que se empenhava na recusa em reduzir a
essência da paisagem à mera visualidade, declara que “há na paisagem
um rosto, um olhar, uma escuta, uma expectativa ou uma reminiscên-
cia”16. A paisagem é um rosto (visage, em francês; viso, em italiano), e
um rosto só é rosto porque é visto, e o rosto só é visto quando se está
fora do corpo, por aquele que vê o rosto de um “outro”, ou o próprio
rosto refletido, circunstância em que também já se é um “outro”.
13 Jean-Marc Besse, Ver a Terra. Seis ensaios sobre a paisagem e a geografia. Tradução Vlad-
imir Bartalini. São Paulo, Perspectiva, 2006, pp. 97-108.
14 Jean-Marc Besse, “Nas dobras do mundo. Paisagem e filosofia segundo Péguy”, op. cit., p.
105.
15 Jean-Marc Besse, “Geographie et existence, d’aprés l’oeuvre d’ Eric Dardel”, in DARDEL, Eric,
op. cit., p. 173.
Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 51
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
É na perspectiva aqui alinhavada, que não reduz a paisagem
à “invenção” de um sujeito, tampouco à mera objetualidade; que
pressupõe uma presença do homem indissociável de um mundo
concreto onde ele realiza a sua existência; que não a limita ao cam-
po perceptivo da visão, embora admita a sua imprescindibilidade;
que considera a memória e, ao mesmo tempo, as aberturas para
um futuro implícitas nos horizontes das paisagens; que vê a paisa-
gem como imagem do tempo, na qual a temporalidade da natureza se
coloca como fundamento da temporaneidade do mundo humano17
(“um vale encaixado, onde se manifesta o trabalho prolongado das
águas, carrega o espírito para as profundezas da duração, de um
tempo apreendido como fator secreto da Terra”18, diz Dardel); é
nesta perspectiva que faz sentido, para nós, discutir a ocupação
socioespacial no âmbito territorial brasileiro e, especificamente, as
transformações incidentes sobre as paisagens das nossas cidades.
Por isto, fazemos nossas as palavras de Adriana Serrão (2013):
52
A transformação da paisagem
Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 53
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
Figura 1b - Ângulo e distância aproximada da visão de Jean-Baptiste Debret (linha tracejada vio-
leta, próxima à Ponte do Acu), aquando da execução da aquarela “Ponte de Santa Ifigênia”, em
1827. Fonte: “Mapa de localização aproximada das diferentes representações em paisagem de São
Paulo entre 1817 e 1847 a partir da interpretação das iconografias tendo por base a Carta de 1841”,
de Márcio Pereira Santos(2006), disponível em: file:///C:/Users/m/Desktop/MAPA_DA_PAISAGEM.pdf
(acesso: 14/02/2015).
54
Figura 2 - Ladeira de São João em 1862. Fotografia de Militão de Azevedo.
Figura 3 - Avenida São João em 1930. Fonte: ELETROPAULO. A Cidade da Light. 1899/1930. Depar-
tamento de Patrimônio Histórico/Eletropaulo, 1990.
Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 55
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
Figura 4 - Avenida São João em 1970. Fotografia de Gilberto Calixto Rios.
56
Acreditamos que tais imagens, dispostas assim cronologica-
mente, prestarão auxílio para que possamos explicitar melhor os
apontamentos feitos anteriormente. Antes de mais, não há dúvida
de que estas imagens tenham sido colhidas, registradas, num único
e mesmo território e de que, inobstante, tanto o ambiente quanto
a paisagem não se mantiveram os mesmos. Mas, para que não haja
confusão nos passos seguintes, vamos antes relembrar que temos
diante de nós: 1) a idéia de um território, concebido como um re-
corte arbitrário de certa extensão material que abrange, no caso,
uma certa colina às margens de certo curso d’água; 2) cinco ima-
gens artísticas deste território, registradas por diferentes pessoas,
em diferentes meios e em momentos distintos ao longo de duzen-
tos anos; 3) cinco formas diferentes correspondentes a este mesmo
território, em cinco momentos diferentes de sua existência. Ora,
mas estas formas apresentam-se tão diferentes, a mudança é tão
radical, tão espetacular, que, mesmo quando se acaba de ler e pen-
sar sobre as dimensões da paisagem que transcendem sua visibili-
dade, pode-se facilmente reincidir na espécie de simplificação que
tende a considerar apenas as mudanças ocorridas no panorama,
negligenciando aquelas que, necessariamente, se deram em aspec-
tos, digamos, “menos visíveis” da paisagem. Esta simplificação é,
justamente, o que o conceito de paisagem delineado nas linhas pre-
cedentes pretende superar e, nesta direção, relembramos também
o que há pouco dissemos: a paisagem, sim, é uma forma visível,
porém, uma forma que possui uma natureza muito particular: a
paisagem é, como diz Rosário Assunto, a “forma” que o ambiente
(“conteúdo” ou “função”) confere ao território (“matéria”), uma
forma “na qual se exprime a unidade sintética a priori da ‘matéria’
(território)’ e do ‘conteúdo-ou-função’ (ambiente)” - ou, em outras
palavras, a paisagem é a forma gerada pelas ações de um conjunto
Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 57
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
singular de seres diversos (o conjunto de seres que constituem o
ambiente, em suas dimensões físico-biológica e histórico-cultural),
que operam conjuntamente em um dado território.
Nas imagens apresentadas acima nota-se facilmente as mu-
danças na hidrografia, sobretudo com a canalização do Anhanga-
baú, e outras - menos notáveis, é certo - que ocorreram no relevo.
Por outro lado, a simples reflexão sobre o adensamento das cons-
truções e da população humana que estas imagens mostram já nos
permitiria supor alterações significativas na temperatura, nos ven-
tos, na composição do ar e da terra etc., mesmo que ignorássemos
os dados científicos sobre o assunto. Quanto à flora, nem é preciso
assinalar as mudanças, de tão evidentes que são; já quanto à fauna,
a ausência de quaisquer outras espécies animais além da humana
em todas estas gravuras, mesmo nas mais antigas, mereceria um
comentário à parte, ao qual, porém, somos forçados a renunciar
em favor da brevidade. É claro que as imagens retratam, também,
as mudanças no ambiente histórico-cultural, que se destacam ao
nosso olhar através de elementos concretos tais como a presença
(ou ausência) e o tipo de vegetação, o uso (ou o desaparecimento)
do ribeirão e suas margens, as formas das construções, das vesti-
mentas, dos utensílios, e assim por diante.
A unidade-diversa da paisagem
58
Sim, se estancarmos na consideração estética da paisagem - e,
mesmo assim, precisaríamos restringir o alcance da palavra “es-
tética” ao escopo da visualidade. Isto feito, pareceria que a fisiog-
nomia do território (que seria, então, o mesmo que “a paisagem”)
nada mais é que uma espécie de espetáculo, apreciado por dife-
rentes espectadores como mais ou menos belo (de acordo com
sua posição, interesses ou “gosto”). Neste espetáculo, seriam re-
presentadas as escolhas feitas pelas sociedades humanas que ha-
bitaram o dito território ao longo da história, escolhas estas que
seriam convertidas pelos atores, com maior ou menor liberdade,
em ações mais ou menos engenhosas e bem sucedidas - na situa-
ção que as nossas imagens vieram ilustrar: primeiro, com Debret,
o cenário (e a cena) de uma sociedade colonial e escravagista em
vias de urbanização; depois, ao final do século XIX, cidade em
franco crescimento, onde aportavam os imigrantes europeus que
viriam a impulsionar a lavoura cafeeira no interior do estado; em
seguida, parte nobre de uma cidade progressista, a espelhar o me-
lhor possível o sofisticado modelo europeu; em 1970, as marcas
de uma cidade decididamente americanizada; finalmente, a mega-
lópole enigmática de hoje em dia.
Nada disso é falso e, todavia, não nos parece bastar. Insis-
timos em que cada uma das imagens acima nos apresenta um
“flagrante” da forma do território, tal como estava moldada pelo
“ambiente”, ou seja, pelos seres físico-biológicos e pelos seres
histórico-culturais que existiam e interagiam naquele território
num dado momento (e não se descura que este “flagrante” esteja
marcado pela visão particular do artista que o registrou; de qual-
quer modo, há que se lembrar, também, que tal artista era, ele pró-
prio, partícipe do referido ambiente). Então, à mudança visível da
paisagem deve corresponder uma mudança (visível ou invisível)
Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 59
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
nesta “unidade-diversa” que a constitui - e a nossa aposta é de que
tais mudanças sejam inteligíveis.
Permitam-nos interpolar aqui um ligeiro alerta, provavel-
mente desnecessário para os mais doutos, mas importante para
aqueles que se iniciam nestas discussões. Temos dito, resso-
ando Rosário Assunto e outros pensadores não mencionados,
que a paisagem é uma “unidade-diversa”. É preciso dizer que
esta expressão deve levar-nos a considerar seriamente o fato
de que, embora toda e qualquer paisagem apresente uma com-
posição de diversos elementos individuais (digamos: um rio,
árvores, talvez algumas construções etc.), nós a percebemos,
enquanto paisagem, como um todo unitário21. Ora, isto não
é banal. Considerar a paisagem como “unidade-diversa”, por
um lado, exige pressuposições a respeito de como podemos
aperceber-nos de um todo, partindo da visão de um conjunto
de elementos individuais e, por outro lado, a respeito do que
é minimamente necessário existir neste “conjunto” para que
possamos apercebe-lo como “uma paisagem”. Para que o alerta
seja mesmo ligeiro, vamos resumir tudo dizendo que, mesmo
quando não estamos inteiramente cônscios disto, precisamos
de uma teoria do conhecer e de uma teoria do ser, antes que
possamos compreender a paisagem. Naturalmente, não pode-
ríamos avançar nestas questões teóricas aqui. Mas também não
poderíamos omitir que a consideração da paisagem como “uni-
dade-diversa”, ao mesmo tempo que não renega, mas amplia
sua consideração estética, pressupõe que a paisagem tem uma
21 Sobre este tópico, veja-se o ensaio de Georg Simmel (1913), In: SERRÃO, Adriana Veríssimo
(coord.), Filosofia da paisagem. Uma antologia. Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade
de Lisboa, 2011, p. 42-51. Este ensaio é retomado por Adriana Serrão para discutir a pai-
sagem como “intuição momentânea da Vida”, em: SERRÃO, Adriana Veríssimo. Filosofia da
Paisagem. Estudos. Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2013, p. 161-164.
60
profundidade ontológica própria, que faz dela uma categoria
sintética entre natureza e cultura22.
Voltando à nossa ilustração, a tomada que estamos defen-
dendo pretenderia fazer relevar desta sucessão temporal de
formas momentâneas assumidas pelo território em pauta - o
qual, sob outras formas, já existia antes de 1827 e seguirá exis-
tindo indefinidamente após 2008, provavelmente sob novas
formas - alguma compreensão sobre o devir de sua paisagem.
Nesta tomada, faz muito pouco sentido dizer que cada uma
das imagens que estamos tratando representa uma paisagem
diferente, característica de um tempo histórico diferente - o
que realmente importa é a indagação sobre a gravidade destas
transformações visíveis em sua composição físico-biológica e
histórico-cultural.
A gravidade da paisagem
Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 61
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
Talvez se possa extrair disto algo mais que uma ambiguidade for-
tuita23; no mínimo, há que se pensar numa possível reversibilida-
de, ou seja, que tanto a paisagem é “gravada”, marcada, esculpida,
formada, pelos seres diversos que a compõem, quanto que esta
mesma paisagem, tal como esteja formada, possa ter uma impor-
tância, um peso e um poder próprios, que a torna capaz de, por sua
vez, “gravar”, esculpir, formar, estes mesmos seres - e, neste caso,
estaríamos diante de uma forma de graves consequências.
E, sim, se tomamos a paisagem como a forma que expressa
o modo singular como, ao longo dos tempos, se integraram as di-
mensões físico-biológicas e histórico-culturais num dado territó-
rio, logo percebemos que ela, por assim dizer, reflete a existência
de tudo quanto nela se encontra, inclusive, reflete as particularida-
des de cada tipo de ser que a ocupa ou habita - coisa, idéia, valor
ou vida. Neste sentido, qualquer mudança na paisagem deve ser
vista com seriedade, pois estaria refletindo uma mudança qualquer
em seus componentes. Ora, tratando-se de uma unidade integra-
da, qualquer mudança tem o potencial para repercutir tanto em
cada um de seus elementos tomados individualmente como em
cada tipo específico deles, como também em todo o conjunto - re-
percussão que pode ter consequências benignas ou malignas, nem
sempre inteiramente previsíveis.
Esta reversibilidade está contemplada no conceito de traje-
ção proposto pelo geógrafo Augustin Berque, que o define como
“combinação medial e histórica do subjetivo e do objetivo, do físico e do
23 Não deixa de ser instigante o caso do substantivo grego grámma, cujos significados incluem:
1) o resultado concreto do ato de “escrever / desenhar”, 2) “letra, carta, inscrição” ou “desenho,
pintura”, 3) “letra, caráter” (donde grammatikós designava um indivíduo “versado em letras”) e
4) um peso mínimo, equivalente a um pouco mais de um grama moderno. O assunto é exposto em
detalhes em: BESSELAAR, José Van Den. “As palavras têm a sua história”. Braga: Edições APPACDM,
1994, p. 401.
62
fenomenal, do ecológico e do simbólico, produzindo uma mediância” 24.
Desta maneira, Berque aplica a palavra trajetividade para caracteri-
zar a qualidade de coisas cuja realidade depende, ao mesmo tempo,
de existência física (ou “objetiva”) e mental (ou “subjetiva”), e é
neste sentido que ele define paisagem como “dimensão sensível e
simbólica do meio; expressão de uma mediância”25. Daí que ele próprio
venha a dizer:
25 Idem, ibidem.
26 BERQUE, Augustin. “Geogramas, por uma ontologia dos fatos geográficos”. In: Geograficidade, v.1,
n.1, Verão 2012, pp. 8-9.
Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 63
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
A concretude da paisagem
27 SANTOS, José Trindade dos. “Introdução”. In: PLATÃO. “Timeu” - Introdução de José Trin-
dade dos Santos e tradução de Maria José Figueiredo. Lisboa: Instituto Piaget, 2003, p. 15.
64
mal-e-mal, os contornos que lhe dá o próprio Platão (na tra-
dução que, por fortuna, temos à mão) e que serão retomados
por Berque28.
E, com Platão29, devemos começar por quase lastimar que nos-
sa argumentação tenha chegado a constranger-nos a tentar tornar
visível por meio de palavras esta forma difícil e indistinta30. Com tais
palavras, o filósofo introduz em sua ontocosmologia um terceiro
gênero de ser, que é não apenas diferente tanto daquilo que é sem-
pre e não tem geração (as Formas eternas e imutáveis do mundo
inteligível), quanto daquilo que se gera sempre e nunca é (as for-
mas perecíveis e mutáveis do mundo sensível, geradas por imitação
das Formas eternas), como ademais que é o receptáculo e como que
a mãe de todas as gerações31 o que será reforçado adiante, quando
insistirá em que
28 Não nos furtaremos, porém, a oferecer desde já duas outras referências que poderão con-
duzir o leitor interessado a algumas das controvérias que não poderão ser contempladas em
nossa exposição. São elas: MIGLIORI, Maurizio. “O problema da geração no Timeu”, In: GAZOL-
LA, Rachel (org.), “Cosmologias. Cinco ensaios sobre filosofia da natureza. São Paulo: Paulus,
2008, pp. 13-45; e DERRIDA, Jacques, “Khôra”, Campinas, SP: Papirus, 1995.
29 PLATÃO. “Timeu” - Introdução de José Trindade dos Santos e tradução de Maria José Figue-
iredo. Lisboa: Instituto Piaget, 2003.
31 Idem, ibidem.
32 Idem, 50d.
Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 65
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
Seguem-se explicações das razões pelas quais este terceiro gênero,
que recebe em si todos os gêneros, seja ele próprio desprovido de todas
as Formas33. E logo depois:
Podemos deixar Platão neste ponto, mas não sem antes intercalar
uma advertência (novamente: provavelmente desnecessária para os
mais doutos, mas importante para aqueles que se iniciam nestas
33 Idem, 50e.
35 Idem, 52 a-b.
66
discussões). Não se confunda, como aliás é mais comum do que se-
ria esperável36, o sentido da palavra chôra ao tempo de Platão, com o
moderno conceito de espaço. Para a nossa discussão, procuraremos
assumir o ponto de vista de Berque, que é o de ater-se a apreender
o sentido que podia ter, no seu próprio contexto, uma palavra explicita-
mente utilizada por um autor antigo37. Considera ele (em conformida-
de com muitos outros comentadores) que no texto platônico uma
outra palavra (topos) corresponderia ao espaço, enquanto chôra se-
ria correspondente ao lugar. Berque vai, declaradamente, ocupar-se
tão somente da questão da chôra, à partida tratando de recuperar
este sentido contextual que a palavra teria ao tempo da escritura do
Timeu. E reconhece nela duas famílias de sentido:
36 Diga-se de passagem, na própria edição de onde retiramos as citações acima, esta confusão
transparece na tradução do texto platônico (embora com ressalvas elucidativas), a despeito de
ter sido tematizada e esclarecida na introdução do livro.
38 BERQUE, Augustin. “A chôra em Platão”. In: SERRÃO, Adriana Veríssimo (coord.), “Filosofia da
Pisagem. Um manual”. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2012 (pp. 29-37), p.
32. Grifamos.
Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 67
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
Ele ainda destaca que estas duas famílias de sentido não se-
riam, ademais, estanques: argumenta que, neste contexto grego,
sendo a cidade (polis) o termo primário que determina a existência
do cidadão (politês), segue-se que, para o homem grego (como Pla-
tão) a noção de chôra devia estar marcada por conotações existen-
ciais e vitais, que será preciso ter em conta, hermeneuticamente,
no propósito do Timeu39.
Para o momento, o que importa sublinhar no texto de Berque
é que toda esta argumentação (e outras, que omitiremos) vem am-
parar a interpretação de que a chôra seria, em Platão, o meio con-
creto onde o ser relativo existe40. E será a partir deste ponto de vista
que Berque poderá concluir que, no texto platônico, a palavra chôra
corresponderia ao “lugar” (ou “região”), enquanto a palavra topos
corresponderia ao “espaço” - destacando ainda que, no texto do Ti-
meu, topos corresponderia à banal questão factual: “onde está?”; ao
passo que chôra corresponderia a uma questão muito mais comple-
xa e ontologicamente mais profunda: “por que razão este onde?”41.
Mas esta última questão, diz Berque, começou a ser forcluída já no
próprio Timeu, como fica indicado pela desistência de Platão de
definir a chôra (como se viu na citação do Timeu, supra: aquilo que
não está na terra nem no céu nada é). E teria permanecido esquecida
pelo pensamento europeu:
39 Idem, ibidem.
40 Idem, p. 29.
41 Idem, p. 31.
68
noção de topos - isto é, ater-se, em suma, à questão: “onde estão os
seres?”; o que, ver-se-á, é justamente forcluir (lock out) a chôra da
questão do ser.42
42 Idem, p. 34.
Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 69
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
A segunda, aprofundar (o) tema da trindade do ser, do meio e do devir43.
Para o momento, enfim, importará sobretudo sublinhar a
concretude desta relação trinária, na qual a chôra ainda pode ser
vista como um receptáculo nutriz deste nosso modo perecível, ras-
teiro, humilde, de ser para a morte. Será preciso enfatizar que nes-
ta questão reside também a razão pela qual a transformação da
paisagem, além de certos limites, é algo grave, que pode resultar
em degeneração? E que, considerada assim, em sua concretude, a
indagação sobre a gravidade das transformações visíveis na pai-
sagem engloba uma indagação sobre o devir de todas as coisas,
idéias, valores e vidas que a ocupam e habitam? Aqui, gostaríamos
de enfatizar a necessidade, que antes apontamos, de meditar so-
bre os possíveis limites éticos que se colocam às transformações
das paisagens, mercê da vontade de pessoas e, sobretudo, de
grupos humanos detentores do poder de intervir sobre os lugares
– gostaríamos de enfatizar que, para além destes limites, toda
transformação tende a resultar em deformidade, defeito, deficiên-
cia e, no limite, em degeneração. É o que pretendemos ilustrar
pelo detalhamento da linha de estudos conduzida por um de
nós44, que se ocupa dos pequenos córregos ocultos na cidade de
São Paulo.
43 Idem, p. 35.
44 Vladimir Bartalini.
70
viais em infraestrutura viária e os nossos rios em canais de es-
coamento de esgotos e águas servidas. Se, atualmente, ele vem
sendo questionado, ensejando propostas de reaproveitamento
dos cursos d’água ainda não tamponados, seja para atender a
finalidades de transporte, seja para fins recreativos ou ecológi-
co-ambientais, a atenção da crítica tem se limitado aos cursos
d’água de maior visibilidade. É, normalmente, desconsiderada
toda uma rede capilar, muito mais entranhada no tecido urbano
e, por isso, mais difícil de ser enquadrada em soluções gerais.
Entretanto, é justamente este seu entranhar-se no espaço pro-
saico do cotidiano que, supõe-se, potencializaria as ações que
nela viessem a incidir.
Justifica-se, assim, dirigir o foco a cursos d’água de pequeno
calibre, muitos deles anônimos, situados em áreas de urbanização
de tal modo consolidada que pouca ou nenhuma chance oferecem
para a aplicação das soluções baseadas no destamponamento ou
na “renaturalização” dos córregos. Coloca-se então o desafio de
encontrar alternativas para integrá-los condignamente à vida e ao
cenário urbano, mas integrá-los enquanto rios, que ainda são, ape-
sar de continuarem ocultos.
Estariam descartadas as hipóteses de navegabilidade, dada
a sua pequena dimensão, assim como as de recuperação eco-
lógica, uma vez que, na maioria dos casos, esses córregos não
poderiam vir à tona de maneira literal e terem suas margens
restauradas, pois atravessam quadras densamente construídas
e em zonas de urbanização há muito tempo estabelecida. As
soluções “estetizantes”, sejam as edulcoradoras ou paliativas,
sejam as que apelam para uma “estética trash”, própria dos
becos e vielas que acompanham os córregos ocultos, seriam
igualmente afastadas.
Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 71
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
O que se pretende, num primeiro momento, é meramente fazer
aparecer os indícios da existência de cursos d’água enterrados. Ain-
da assim não é uma tarefa fácil, uma vez que a sua conversão a in-
fraestruturas não só os ocultou, como tentou apagar as pegadas da
operação de ocultação. No entanto, como nem todo ato é perfeito,
restaram vestígios. Uns são diretos, como vielas estreitas e tortuo-
sas, em flagrante contraste com o traçado hipodâmico dos bairros
em que se inserem, ou, ainda, dispositivos e adaptações insólitas
que chamam a atenção do olhar interessado em detectá-los. Outros
são indiretos, como terrenos ou faixas de lotes vagos, usados para o
estacionamento de veículos, ou, então, para os “lava-rápidos”, ser-
viço de lavagem de automóveis, usos provisórios do solo urbano
que podem ser eliminados a baixo custo, caso seja necessário inter-
vir nas galerias subterrâneas onde os córregos foram enclausurados.
Estes, e muitos outros, são indícios de uma existência camu-
flada, mas só poderão remeter aos córregos ainda vivos se forem
decodificados. Eles se apresentam de modo tão variável e aleatório
que não chegam a constituir uma “fala” ou uma “escrita” inteligível.
Com a aceleração do crescimento urbano, vários espaços
pontuados por vestígios (no mais das vezes insólitos) dos córre-
gos ocultos passaram a sofrer forte pressão especulativa, que se
expressa nos empreendimentos imobiliários destinados a cama-
das de renda mais elevada, provocando mudanças significativas
tanto na sua estrutura física como na composição social dos seus
moradores. Na operação de modernização desses lugares não há
mais vez para intervenções fora das “boas normas” técnicas, para
as improvisações que resultaram em aberrações expostas em cena
pública. Agora a cirurgia se faz sem deixar cicatrizes. Perdem-se os
vestígios da primeira negação da paisagem, ocultam-se os registros
do avesso do tecido, ocorre uma sobre-ocultação.
72
Ganha assim urgência levantar e preservar as marcas pontuais
que persistem da ocultação inicial, pois, apesar de tudo, elas ainda
podem aludir ao que está fora do alcance do olhar, enterrado e, não
obstante, vivo.
Atar estes pontos, hoje soltos, atribuir-lhes novos sentidos,
conferir-lhes um nexo que os traga dignamente de volta à vida ur-
bana, se não ressuscita os cursos d’água, ao menos abre possibilida-
des para reanimar em nós a memória deles e, em outro nível, per-
mite que os córregos sejam lidos numa nova chave interpretativa.
Mas o interesse desse resgate não se limita a evidenciar uma
morfologia esquemática. Não basta apreender somente o esquele-
to do trajeto do curso d’água sem que venham à tona a pulsação, os
sons, enfim, tudo o que remete à vida do rio. Há todo um campo do
imaginário a ser mobilizado para fazer emergir as águas correntes
aprisionadas nos subterrâneos.
Os casos em que se pode empiricamente testar essas su-
posições são tão numerosos quanto diversos, frustrando qual-
quer esforço de generalização. No entanto, dos estudos levados
a efeito até o momento45, na perspectiva aqui apresentada, já
despontam, ao menos, oportunidades de percursos pedestres
ou ciclísticos que interligariam córregos pertencentes a bacias
distintas, alinhavando pontos bastante significativos no espaço
cotidiano dos paulistanos.
45 A investigação dos córregos ocultos na cidade de São Paulo vem sendo realizada no Laboratório
Paisagem, Arte e Cultura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo,
em trabalhos de pesquisa docente e também em trabalhos finais de graduação e de iniciação científica
realizados por alunos da faculdade, alguns deles já publicados. Os casos estudados até o momento são:
Água Preta, Verde (em Pinheiros) / “braço 1”, Uberabinha, Bexiga, Sapateiro, Aclimação, Pirituba,
bacia do ribeirão Verde (em Pirituba) e seus afluentes Congo e Guiami (Vladimir Bartalini, docente);
Verde (em Pinheiros) / “braço 2” (Mariana Martins Yamamoto, iniciação científica); Anhanguera
(Maria João Cavalcanti Ribeiro de Figueiredo, trabalho final de graduação); Carajás e Mandaqui
(Arthur Simões Caetano Cabral, iniciação científica); Piqueri (Arthur Simões Caetano Cabral, Tra-
balho Final de Graduação); Tiburtino (Murillo Aggio Piazzi, Iniciação científica).
Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 73
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
É o caso, entre outros, dos leitos dos córregos Sapateiro e Acli-
mação, associados a dois importantes parques públicos de São Paulo,
respectivamente, o do Ibirapuera e o da Aclimação.
Estes dois parques, distantes aproximadamente três quilôme-
tros entre si, contam com lagos que constituem fortes pontos de
atração, mas os córregos que alimentam estes lagos foram alijados
da paisagem e só se manifestam por indícios muito tênues, quando
não degradados. Ao alinhavar tais indícios e tratá-los como con-
vém, pode-se reconstituir os trajetos dos córregos, recuperando-os
como conectores entre dois prestigiados espaços de lazer.
Promover, a partir da recuperação dos seus indícios pontuais,
a aderência dos trajetos destes cursos d’água aos percursos do dia
a dia da população, atendendo à condição indispensável de que eles
remetam ao córrego pulsante e ocultado, já se configura como uma
iniciativa válida para livrá-los do esquecimento definitivo, dando al-
guma chance para a aproximação entre paisagem e cidade.
Há ainda casos em que o córrego não está propriamente ocul-
tado, ou seja, permanece a céu aberto, mas o seu alijamento da pai-
sagem é tal que ele passaria por inexistente, não fossem as cheias
pelas quais, periodicamente, ele se faz lembrar. Encaixa-se nesta si-
tuação o córrego Piqueri, afluente do Cabuçu de Cima, na região do
Tremembé, zona norte de São Paulo. Em que pese sua significativa
extensão e o fato de ainda se manter em grande parte descoberto,
ele não protagoniza a paisagem e, se ele entra nela, é pela “por-
ta dos fundos”. No entanto, as oportunidades que ali se oferecem
para a reversão deste quadro são promissoras, uma vez que muitos
terrenos situados ao longo do seu vale permanecem desocupados
ou subocupados, em que pese tratar-se de espaços fragmentados.
A proposta de constituição de um parque sui generis, tirando parti-
do da “força expressiva dos pormenores das bordas”, nas palavras
74
do seu autor, a partir da resignificação destes fragmentos, resigni-
ficação esta sempre intimamente associada à vivência dos espaços
cotidianos que ali se verifica, foi desenvolvida no âmbito de um tra-
balho final de graduação46. Não caberia aqui avançar na explicitação
desta proposta, mas a sua leitura cuidadosa certamente trará esclare-
cimentos quanto aos rumos e alcance da pesquisa sobre os córregos
ocultos... ou não tão ocultos.
Palavras de encerramento
46 Trata-se do trabalho denominado À beira do urbano. O espaço das águas no norte de São Paulo,
de Arthur Simões Caetano Cabral, concluído na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universi-
dade de São Paulo, em 2014, disponível em http://issuu.com/cabralarthur/docs/___beira_do_urbano/1
Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 75
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
É certo que estas nossas breves considerações não são suficien-
tes para a apreensão inteira do tema, menos ainda para a elaboração
de um possível conceito definitivo de paisagem – nem pretendemos
que o fosse, posto que reconhecemos a complexidade do assunto.
Quisemos, sim, apresentar contributos para a superação de divergên-
cias teóricas e disciplinares que se estabeleceram ao longo do tempo
- mormente daquelas que contrapõem, como se antagônicos fossem,
os aspectos objetivos e subjetivos, naturais e culturais, da paisagem.
Esperamos ter conseguido, ao menos, sugerir que o burilamento da
noção de paisagem é um dos trabalhos que mais poderá contribuir
para que o pensamento contemporâneo possa, enfim, ser capaz de
superar as cisões que, digamos assim, herdou das longas errâncias do
próprio pensar - e com isso, possa vir a contribuir para a restauração
de nossa humana morada sobre a Terra.
Para fortalecer nosso propósito, encerramos estas notas com as
sugestivas palavras de Adriana Veríssimo Serrão:
47 Serrão, Adriana Veríssimo Serrão, A paisagem como problema da filosofia. In: SERRÃO, A.
V. “Filosofia da Paisagem. Uma antologia”. op. cit., p. 34.
76
Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da
paisagem e de suas transformações baracoa
editora
CV: http://lattes.cnpq.br/6404152265871629
E-mail: sandrapatrício@usp.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-3838-122X
78
Eda Tassara
Universidade de São Paulo
CV: http://lattes.cnpq.br/3889873314551168
E-mail: edatassara@uol.com.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-7592-8407
79
Considerações sobre o estudo
das multidões urbanas nos
tempos atuais
80
Considerations on the study
of urban crowds in the present
time
81
Capítulo 3
Considerações sobre
o estudo das multidões
urbanas nos tempos
atuais
Sandra Patrício
Universidade de São Paulo
Eda Tassara
Universidade de São Paulo
84
busca responder a situações factuais unicamente pelo recurso ao
acervo das ideias já produzidas pelas grandes linhagens do pen-
samento político ocidental – e a recorrência dos mais variados
problemas ligados às multidões, que persistem a despeito de toda
sorte de medidas intentadas para solucioná-los, de certo modo
atesta essa falha de compreensão.
Evidentemente, não caberia aqui revisar as matrizes do pensa-
mento político às quais se filiam as teses atuais sobre as multidões.
Gostaríamos apenas de indicar, sumariamente, que estas filiações
remontam predominantemente, e mais ou menos explicitamente,
de um lado, a Thomas Hobbes (1588-1679) e, de outro, a Baruch
Espinoza (1632-1677). Ambas as visões têm desdobramentos que
alcançam os nossos dias, tendo a visão hobbesiana predominado
na primeira metade do século XX (por exemplo, apresenta-se em
algum grau em Le Bon, Sigmund Freud, Ortega y Gasset, Elias Ca-
netti, Serge Moscovici e outros), enquanto a visão espinosana, que
ganhou espaço a partir de meados do mesmo século, parece ter
maior popularidade nos dias atuais (por exemplo, mesclada a ou-
tras influências, apresenta-se explicitamente em Toni Negri e Mi-
chael Hardt); mas nossos propósitos tornam supérflua uma revi-
são exaustiva dessa literatura filosófico-política1. O que queremos
salientar é nossa suspeita de que essa adesão a sistemas teóricos
bem sedimentados, mas, o mais das vezes, ancorados em situações
históricas muito específicas, ou mesmo inteiramente especulativos,
1 Menciona-se, de passagem, que boas revisões têm sido produzidas com a finalidade de con-
trastar e discutir as várias propostas teóricas a respeito do tema. À guisa de ilustração, indi-
ca-se aqui o trabalho de Jordi Massó Castilla, que retoma os principais argumentos de Toni
Negri e Michael Hardt, Alain Badiou, Daniel Bensaïd, Étienne Balibar, Jacques Derrida, Jacques
Rancière e Jean-Luc Nancy, tendo como eixos organizadores três questões da filosofia, as quais
ele considerava na ocasião “plenamente vigentes”: quem é o sujeito político? Como pode ser
representado? E em que consiste e como pode produzir-se o acontecimento revolucionário?
(Castilla, 2012).
Capítulo 3
86
Pode-se dizer que, como número plural, aplicada aos seres
humanos a multidão poderia, no limite, abranger toda a humani-
dade – embora, de fato, seja costumeiramente associada às ideias
de povo e de plebe, como se vê pelo verbete transcrito acima, como
também de massa. Por ora, não nos interessaria deslindar aqui tais
conceitos nem discutir as possíveis razões para que assim se ema-
ranhem; queremos apenas deixar claro que, neste ensaio, a pala-
vra “multidão” é empregada preferentemente como indicativa da
situação de aglomeração de grande número de indivíduos huma-
nos2. Neste sentido, pode-se dizer que as multidões constituem
uma faceta inarredável do fenômeno urbano moderno: a grande
cidade contemporânea implica multidões3, seja no sentido de que
o tamanho da cidade é definido pelo tamanho de sua população,
seja no sentido de que o tamanho alcançado e o modo de vida ca-
racterístico da vida urbana tornam obrigatório o compartilhamen-
to de espaços e recursos por grande número de pessoas. Portanto,
neste sentido quantitativo, a cidade é composta por uma multi-
dão: a multidão de citadinos/urbanitas. E a cidade compõe mul-
tidões: por exemplo, a multidão de usuários do sistema viário, ou
de qualquer outro equipamento ou recurso urbano. Assim, todo
ato de projetação de intervenções urbanas ou está ancorado numa
profunda compreensão dessas imensas coletividades às quais se
destina, ou está fadado a resultar inócuo ou desastroso.
2 Esta definição é corroborada, por exemplo, por Henri Piéron ([1951] 1969): “MULTIDÃO
(francês, foule): Reunião de indivíduos que se aglomeram sob a influência de um fator de
ação comum sobre eles”. E igualmente por Gary R. VandenBos (2010): “MULTIDÃO: aglomer-
ação bastante grande de pessoas que temporariamente compartilham um foco comum e uma
mesma localização”.
3 Não apenas: já Aristóteles (2009), em sua Política, afirmou decididamente que “a cidade é
uma multidão de cidadãos”. É por zelo descritivo que, por ora, preferimos falar simplesmente
em citadinos, não em cidadãos.
Capítulo 3
88
como apreendem e avaliam as condições em que vivem, como se sentem
em relação aos lugares que frequentam, o que os atemoriza, os torna
serenos, enfurece ou alegra, de que se lembram e o que desejam, quais
são suas motivações, ímpetos e disposições. Dito de outro modo, es-
tas leituras consubstanciam – materializam e tornam visíveis, ob-
serváveis – a realidade a ser tomada como objeto pela psicologia
social, ou seja, sucintamente, as experiências e expectativas das
multidões de habitantes de cidades globalizadas.
Trata-se, porém, de uma realidade que se apresenta, hoje,
com complexidade, dinamismo e extensão espacial quase extre-
mos e que, ademais, aparentemente conjuga forças cujas nature-
zas e formas de ação ainda não estão suficientemente esclarecidas
e ponderadas. Portanto, qualquer esforço na direção de conhecer
as experiências e expectativas de multidões de habitantes de ci-
dades globalizadas precisará arrostar dois problemas inextricá-
veis, ambos de cariz metodológico: o primeiro consiste em des-
cobrir formas válidas de desenvolver conhecimento-síntese sobre
as miríades de expressões cognitivo-afetivo-poéticas de citadinos
– suas leituras – em relação à cidade que habitam; o segundo con-
siste em inventar procedimentos que permitam, com base em um
número limitado de sujeitos, induzir conhecimento a respeito das
características, motivações e esperanças das multidões urbanas
atuais. As considerações que registramos nas próximas páginas
pretendem contribuir para o enfrentamento destes problemas.
A multidão
Capítulo 3
4 Adota-se, aqui, o sentido de “hipóstase” indicado por Japiassu & Marcondes (2008): “uma
entidade fictícia falsamente considerada como uma realidade que existe fora do pensamento”.
Donde se derivou o verbo “hipostasiar”: “considerar como uma coisa em si aquilo que não
passa de um fenômeno (ex.: a temperatura) ou de uma relação (ex.: a grandeza)”.
90
“sujeitos” em “situações”5. Em vista disto, é oportuno começar por
elucidar o conceito de “situação” tal como o compreendemos e empre-
gamos neste ensaio. Para Henri Piéron ([1951] 1969), a palavra “situa-
ção” designa as relações globais, de posição e ação possíveis, entre um organis-
mo e seu meio. Neste sentido, o conceito de situação abarca muito mais
do que o contexto mais ou menos acidental do comportamento; antes,
dirige a atenção, por um lado, para os estímulos e as contingências que
tipificam o lugar ocupado pelo organismo (sua posição) em seu meio,
incluindo-se, naturalmente, aqueles decorrentes da presença de outros
organismos e das relações sociais estabelecidas entre eles, e, por outro
lado, para os objetivos e capacidades de ação específicos do organismo
em questão. Esta concepção é convergente com a de Kurt Lewin (1973;
glossário, pp. 236-244), para quem a situação define-se como “o espaço
vital ou parte dele, concebido em termos do seu conteúdo (significa-
do)”, espaço este que corresponderia à “totalidade de fatos (de diversas
naturezas) que determinam o comportamento de um indivíduo num
certo momento”, representando, portanto, “a totalidade de possíveis
eventos”. Subjacente ao conceito de situação tal como aqui apresentado,
há a ideia de que todos os comportamentos de um indivíduo expressam
o resultado de complexas interações que ele mantém com seu meio, em
5 Jean Maisonneuve ([1973] 1977), por exemplo, considera que esta “interação” – domínio
próprio da psicologia social – não é focada nem pela sociologia nem pela psicologia, já que “a
sociologia, reduzida a si mesma, se limita ao jogo das estruturas institucionais e das regulações
coletivas” e a psicologia “se aplica a ‘funções mentais’ encaradas em sua generalidade, ou
sob seus aspectos diferenciais”. A imagem oferecida pelo autor para a psicologia social é a de
uma ciência charneira, a ciência da “encruzilhada” entre psicologia e sociologia; sua incum-
bência, “assumir integralmente a descrição e a interpretação de uma conduta em situação”.
Tratar-se-ia, então, de um campo de conhecimento caracterizado pelo esforço de investigar
exaustivamente “a interação dos processos sociais e psíquicos no nível das condutas concre-
tas e a interação das pessoas e dos grupos no quadro da vida cotidiana, bem como promover a
junção entre o aproche objetivo e o do sentido vivido no nível do(s) agente(s) em interação”
(p. 13). Poderíamos citar também José Bleger (1984); Silvia T. Maurer Lane (2006); Frederic
Munné (2008) – todos estes e vários outros psicólogos sociais, embora assumindo diferentes
perspectivas, ilustram, em essência, a convergência que assinalamos.
Capítulo 3
7 No geral, empregamos os termos indivíduos (e também pessoas e sujeito, adiante) sob a in-
spiração dos sentidos que lhes atribui o professor Luís Cláudio Figueiredo (1995), no ensaio
“Pessoas, sujeito, meros indivíduos. Desencontros e passagens no Brasil contemporâneo”.
8 Claro: implica, ademais, que o indivíduo corresponde a um corpo e disto decorrem mui-
tas consequências: a soma das forças físicas de grande número de indivíduos densamente
aglomerados, por exemplo, os capacita a feitos impressionantes (p.e., a tomada da Bastilha em
14/07/1789); por outro lado, este adensamento potencializa o número de indivíduos vitimados
em situações de choque ou desastre (p.e., as centenas deles atingidas pelo caminhão dirigido
por Mohamed Lahouaiej Bouhlel em 16/07/2017, durante a comemoração da Fête Nationale da
França na Promenade des Anglais, Nice). Uma consideração detalhada deste aspecto, porém,
pode ser omitida neste momento.
92
múltiplas relações em muitas outras situações das quais é par-
tícipe e em direção às quais transita: toma o metrô para ir ao
trabalho, caminha pela avenida tentando dissipar uma tristeza,
comparece a um espetáculo para distrair-se ou prestigiar seu
tema, veio morar nesta cidade para estudar etc. Ou seja, a par
das razões comuns (logísticas, políticas, comerciais etc.) que os
reúnem numa mesma situação, cada indivíduo ali se encontra
por motivos muito particulares que, em última análise, os dife-
renciam e até mesmo singularizam em relação aos demais – esta
posição singular é precisamente o que caracteriza já não meros
indivíduos, mas pessoas9.
Esta posição singular confere à pessoa uma perspectiva única,
a par do fato de ser sempre tributária da história da humanidade.
É sempre baseado em sua perspectiva pessoal que alguém pode al-
çar-se à posição de sujeito cognoscente – pode, efetivamente, per-
ceber, avaliar, entender e julgar cada situação da qual participa, em
estreita correspondência à sua (também única) compreensão de
todo o seu mundo de vida. Resta dizer que uma pessoa se compor-
ta, ao fim e ao cabo, com base em seu conhecimento da situação,
e, neste sentido, um indivíduo anônimo tomado de entre aqueles
que compõem uma multidão urbana qualquer pode ser assumido
como suporte empírico de pelo menos três figuras idealizadas: a pes-
soa, o sujeito e o citadino10. Naturalmente, o acesso a estas dimensões
9 Note-se que este sentido converge, também, com a definição dada por Kurt Lewin (1973),
para quem a pessoa pode ser representada como uma “região diferenciada do espaço vital”,
embora numa primeira aproximação possa ser representada por uma região ou ponto indif-
erenciado. É de notar que o autor afirma que a pessoa está geralmente localizada dentro da
região sobreposta de “duas ou mais situações que existem simultaneamente e que têm uma
parte comum”.
10 Admite-se que as considerações acima pressupõem que todas estas categorias (corpos,
organismos, indivíduos, pessoas, sujeitos, citadinos, além de outras que não estão sendo dis-
cutidas neste ensaio, mas que podem revelar-se importantes em processos de análise de dados
Capítulo 3
O método
empíricos) sejam irredutíveis entre si, como se constituíssem distintos níveis de realidade,
seja no sentido epistemológico, em que os níveis corresponderiam a diferentes processos de
conhecimento, seja no sentido ontológico, em que cada categoria corresponderia a leis espe-
cíficas e a conceitos fundamentais próprios (vide Nicolescu, 1999).
11 Para lembrar, novamente, Francis Bacon: “Seria algo insensato, em si mesmo contraditório,
estimar poder ser realizado o que até aqui não se conseguiu fazer, salvo se se fizer uso de pro-
cedimentos ainda não tentados” (Bacon, [1620] 1999).
94
maiores disparidades dizem respeito à delimitação pontual de suas
buscas e ao tratamento probabilístico de seus dados, em contraste
com o caráter abrangente e compreensivo de nossa proposta. Quan-
to às primeiras, a diferença reside, em suma, no fato de tomarem
os indivíduos que têm sob foco como elementos de uma coletivi-
dade delimitada aprioristicamente (como membros de tal ou qual
comunidade indígena ou tradicional, por exemplo), em contraste
com nossa intenção de fazer derivar dos dados empíricos os subgru-
pos em que deveria ser organizado o universo a ser investigado. As
abordagens clínicas, por outro lado, estando focadas nos indivíduos,
podem representar importantes fontes de inspiração12, mas não po-
dem ser transferidas, tais e quais, do setting clínico para as situações
aqui visadas. O maior auxílio parece provir dos métodos de pesquisa
qualitativa desenvolvidos e validados sobretudo no campo da etno-
grafia, com os quais, aliás, a psicologia social vem operando há muito
tempo. Sobre a fecundidade do método etnográfico para a psicologia
social, caberá citar as conclusões de Maurício Rodrigues de Souza
(2014, 2015a, 2015b), após extensa consideração do assunto:
12 Caberia, aliás, render créditos aos trabalhos clínicos que inspiraram várias das nossas
próprias considerações aqui apresentadas. Podemos assinalar, entre eles, os clássicos estudos
de epistemologia genética de Jean Piaget (Piaget & García, 1984) e seus seguidores e também,
noutra área, às proposições do professor Luís Cláudio Figueiredo, notadamente em Escutar,
recordar, dizer (1994); e do professor Gilberto Safra, notadamente na trilogia: A face estética do
self (1999); A po-ética na clínica contemporânea (2004) e Hermenêutica na situação clínica (2006).
Capítulo 3
A leitura
Ora, mas o ato de “ler”, tal como o supomos aqui, demanda defi-
nições complexas: nem simples “extração de significado” (ênfase
96
no texto, ou objeto), nem simples “atribuição de significado” (ên-
fase no leitor, ou sujeito), mas um processo de verdadeira intera-
ção trajectiva. Esta é a posição defendida, entre outros, por Leffa
(1996), em “O conceito de leitura”; para este autor, ler é, na sua
essência, olhar para uma coisa e ver outra:
Capítulo 3
13 Nossas considerações buscam integrar duas concepções alternativas sobre o “lugar” (em
certo sentido, aliás, sinônimo de situação). Augustin Berque (2003) trata do assunto num ver-
bete claro e profundo, reportando essas duas concepções – ao mesmo tempo contraditórias
e complementares –, uma ao topos aristotélico (o lugar como um ponto abstrato estabelecido
no espaço absoluto) e outra à chôra platônica (o lugar do “crescer juntos” – cum crescere, donde
concretus – das coisas na concretude do mundo sensível, significando que haveria uma ligação on-
tológica indissolúvel entre os lugares e as coisas – seres – que ali existem).
98
A análise
(...) assim como não se pode aceitar o idealismo como teoria da rea-
lidade radical, também não é possível aceitar o realismo. É possível
sustentar-se haver complementaridade entre a mente humana e o
mundo físico de tal ordem que suprimindo um dos polos o outro
desapareceria. A realidade radical, isto é, a fonte de onde brota toda
a realidade com que nos defrontamos, contra a qual esbarramos,
controlamos ou somos por ela subjugados no cotidiano de nossas
vidas, é uma dualidade polar mente-mundo que ainda não foi sufi-
cientemente analisada e compreendida pela filosofia (p. 273).
14 Essa perspectiva trajectiva nutre-se, sobretudo, dos conceitos de objeto transicional (D. W.
Winnicott), trajeto antropológico (Gilbert Durand) e trajeto mesológico (Augustin Berque), em-
bora encontre apoio em numerosos outros pensadores. Uma de nós tratou o assunto com mais
detalhes em preâmbulo escrito para uma coletânea de textos resultante de evento que reuniu espe-
cialistas adotantes da mesma perspectiva em diferentes áreas, instituições e países (Patrício, 2015).
Capítulo 3
A interpretação
100
que conhece, quanto ao objeto que é por ele conhecido – o que
permite, ao menos em termos práticos, falar em “experiência ob-
jetiva” para caracterizar um evento do qual resulte conhecimento
sobre coisas existentes no mundo externo (fora da pele) do sujeito
e, similarmente, em “experiência subjetiva” quando o conheci-
mento tem por objeto o mundo interno (dentro da pele) do pró-
prio sujeito, tal como ocorre, por exemplo, na tomada de consci-
ência de fantasias, emoções ou perceptos afetivos15; já em eventos
que envolvem relações humanas, usualmente se fala, com menor
pertinência, em “experiência intersubjetiva”16. Deve ficar claro,
porém, que a experiência mesma (digamos, o fato pressuposto e
indicado pelo conceito de experiência), se existir, é algo que ocor-
re, sempre, dentro da pele do indivíduo-sujeito da experiência (aliás,
neste sentido poder-se-ia dizer que toda experiência é experiência
subjetiva)17; logo, não pode ser, a rigor, nem diretamente obser-
vada, nem propriamente “compartilhada” – pode, sim, em certa
medida e sob certas condições, ser comunicada.
16 Veja-se, por exemplo, a formulação dada ao assunto por Zeferino Rocha (2008): “As ex-
periências situamse em três registros diferentes de compreensão, embora complementares,
na medida em que assumem a forma de uma experiência objetiva, subjetiva ou intersubjeti-
va. A experiência é objetiva quando, por meio dela, entramos em relação com as coisas que
constituem o nosso mundo, o mundo que nos circunda, no qual nos situamos. Ela tornase
intersubjetiva quando nos abrimos para a comunhão com os outros” (p. 103).
17 Por oportuno, relembra-se aqui que, para Gadamer (1997), também a leitura é um processo
da pura interioridade (p. 256).
Capítulo 3
18 Ao menos em parte, essa busca corresponde aos sistemas de significação piagetianos que,
conforme afirmou a professora Zélia Ramozzi-Chiarottino (1991), já há bastante tempo, pode-
riam franquear a “possibilidade de uma teoria do conhecimento contingente do homem co-
mum, que seria a base para a construção de uma Psicologia Social verdadeiramente científica”
(p. 22).
102
Esse silêncio instrumentalizado hegemonicamente, oculta-
dor do caráter arbitrário do modelo central propagado e das res-
trições por ele impostas a outros modelos emergentes ou existen-
tes, pode engendrar, por sua vez, o silenciamento de multidões de
citadinos alienados nesse processo. Portanto, o trabalho analítico
sobre leituras feitas por citadinos sobre a cidade que habitam,
para as compreender adequadamente, deverá focalizar, nelas,
precisamente os silêncios que sinalizam essa alienação (Tassara
& Ardans, 2006). A dimensão política pode ser entendida, portan-
to, como um movimento de luta entre identidades e alteridades;
sob tal perspectiva, a recusa da alteridade é uma tentativa de fixar
essa centralidade, o que vem a dar em uma subjugação da consci-
ência por um modelo inquestionável.
Diante desse fundo, preconizamos a necessidade de analisar a
massa de informações recolhidas em qualquer pesquisa acerca das
experiências e aspirações de citadinos, tendo como meta primor-
dial o desvelamento de traços da positividade lógica (ignorância) e
da negatividade psicológica (impedimento) que possam estar pre-
sentes em suas leituras da cidade que habitam19. Deve ficar claro,
porém, que não se trataria de comparar modelos de urbanidade/pe-
riurbanidade ou arrolar suas múltiplas variações e possíveis sincre-
tizações20, e ainda menos de um escrutínio em busca de elementos
que possam servir para ilustrar teses sobre causações redutoras na
determinação de identidades, alteridades e sociabilidades, sejam as
19 Cabe notar que, conforme explicitam Tassara & Ardans (2008, p. 141), esses traços tendem a
apresentar-se entrecruzados, resultando em quatro “tipos” identitários: o “morto/morto” (im-
pedido e ignorante), o “morto/vivo” (impedido), o “vivo/morto” (ignorante) e o “vivo/vivo”
(lúcido – para quem “estar vivo” significa estar em movimento na direção da compreensão de
qual é o modelo situado no centro de sua identidade).
20 Os limites de um tal trabalho comparativo são, aliás, discutidos amplamente pela professo-
ra Eda Tassara em publicação recente (Tassara & Patrício, 2016).
Capítulo 3
21 Trata-se, a nosso ver, de uma empreitada correspondente ao que Boaventura de Sousa San-
tos (1994) denominou “arqueologia virtual do presente”.
22 Esta foi a solução redacional preconizada, há muito tempo, por Arno Engelmann (1978),
quando ele se defrontou com a absoluta confusão terminológica (mas não só terminológica)
que reinava na literatura especializada a respeito dos fenômenos emocionais; consistiu em
usar “emoções e/ou...” como abreviação para 32 termos oriundos de diferentes idiomas, mas
também portando diferentes definições, sendo porém todos eles aparentados a “emoções”
e/ou “paixões” e/ou “afetos” e/ou “sentimentos” e/ou “estados de ânimo” (pp. 38, nota de
rodapé nº 10). Hoje, o panorama não é menos confuso (talvez o seja ainda mais!), e, em que
pese não compartilharmos inteiramente suas soluções teórico-metodológicas, temos que ad-
mitir a pertinência dessa sua “deselegante” (a palavra é dele) solução. Já a expressão “estados
subjetivos” foi cunhada e definida por ele em função de seus objetivos de pesquisa, com base
em critérios específicos, a saber, (1) é consciente, (2) refere-se à parte do corpo da pessoa, (3)
a pessoa é incapaz de indicar mais nada em relação a esta localização anterior e (4) dura um
certo tempo. Neste sentido, trata-se de uma nomenclatura imprópria para o tipo de fenômeno
que nós próprios estamos visando.
104
que se propaga mundialmente, calcado no silêncio ideológico so-
bre sua gênese e no silenciamento alienante que produz; todavia,
parece-nos igualmente importante investigar o impacto emocional
– ou, o que quer dizer o mesmo, o sentimento – produzido por este
processo político em sua concretude. Cumpre fazer notar: uma or-
dem hegemônica ou se concretiza nos lugares e nos modos de viver
das pessoas e grupos – por exemplo, alterando as paisagens e os
comportamentos individuais e coletivos previamente verificados
em certo lugar –, ou não é, propriamente, uma ordem hegemônica.
Queremos, com isto, destacar que o processo político necessaria-
mente se materializa no mundo de vida das pessoas e grupos e que,
por outro lado, apenas pode materializar-se através da vida mesma
destas pessoas e grupos. Estampa-se assim toda a complexidade
das interações dos homens entre si e com o mundo físico e so-
cial; ganha destaque a natureza sensível do homem (compreendida
nos termos da filosofia antropológica de Ludwig Feuerbach), vis-
ta como a condição de possibilidade de toda e qualquer interação
com o mundo e com os outros.
Um ligeiro interlúdio poderá esclarecer a importância dessa
natureza sensível do homem para o assunto que temos em pauta, e
pode valer-nos uma passagem de Adriana Veríssimo Serrão (2007),
cuja clareza recomenda a longa citação:
Capítulo 3
Ora, essas considerações não são triviais: pode-se dizer que a história
de expansão do modelo de urbanidade hegemônico materializa-se,
visivelmente, nas cidades que hoje recobrem o globo terrestre e no
modo como as pessoas as habitam e nelas vivem e convivem. Pode-
-se dizer que tal panorama representa a contraface ética do proces-
so político por (entre outras cujo tratamento não caberia aqui) três
razões factuais: primeiro, porque toda configuração material atual
patenteia, diante da memória individual e coletiva, a transformação
106
do que havia antes, que pode ser avaliada como melhora ou piora;
segundo, porque, configurando o lugar de vida, configura condições
e contingências materiais que, por sua vez, exercem um papel (cuja
extensão não é possível discutir aqui) na modelagem de hábitos e
caracteres individuais e coletivos de seus moradores e na qualida-
de das relações intersubjetivas que podem ser estabelecidas entre
eles; terceiro, porque essa realidade exterior é percorrida e perce-
bida (sentida) pelos citadinos em suas lides e vivências cotidianas,
impactando-os assim em sua interioridade; antes de tudo, provocan-
do-lhes “emoções e/ou...” de natureza positiva ou negativa.
A designação desses fatos pela palavra ética, como deve estar claro,
leva em conta as reflexões empreendidas no campo das humanidades a
respeito de seu sentido originário, sobretudo com base nas elaborações
de Martin Heidegger sobre o assunto23. Como se sabe, essas reflexões
contribuíram para reintegrar ao pensamento ético o sentido mais anti-
go reconhecido pelos especialistas para o vocábulo grego êthos (ήθος),
“morada”, “habitat”, “toca de animais”, que há muito tempo havia sido
obnubilado pela confusão (por via das traduções latinas) com outro
vocábulo grego, éthos (έθος), “hábito”, “costume” – e ademais pela co-
notação normativa de “bons hábitos”, “bons costumes” que assim veio
a adquirir24. Estas discussões têm grande importância para a realização
23 Entre os trabalhos de Martin Heidegger que inspiraram mais diretamente nossa abordagem das
questões éticas que expomos neste ensaio, devem ser mencionados particularmente A origem da
obra de arte e Hölderlin e a essência da poesia (1935), Carta sobre o humanismo (1946), Construir,
habitar, pensar (1951) e Serenidade (1955), que dispensam referências. Quanto à distinção que
fazemos entre os níveis ético e político da vida humana, declaramos expressamente a influência
adicional recebida do trabalho de Solange Vergnières (1998) sobre estes temas em Aristóteles.
24 Conforme, por exemplo, Murachco (s./d.): “Em latim e em português não há resíduos de
derivados de έθος, mas temos um adjetivo derivado de ήθος - ηθικός, ethicus, ético, que, fre-
qüentemente, é confundido com ‘moral’ no sentido de ‘conforme os bons costumes, isto é, con-
forme à moral oficial. No mundo latino, essa ‘moral oficial’ assume uma feição autoritária, verti-
cal [que], seguindo a trilha do Direito e das Instituições Romanas, adentra pelo Império Romano
até sua queda e depois é assumida pela Igreja e perdura até nossos dias, com o sentido de ‘norma
Capítulo 3
de conduta’, ou uma ‘boa ou má moral > moralidade’, que passa a ser uma série de princípios que
regem uma sociedade. Não é esse o sentido do ήθος aristotélico; não é esse o sentido do ήθος
homérico e arcaico que Aristóteles conhece e amplia” (pp. 31-32).
108
dos sentimentos (pathos) de seus habitantes. A atitude hermenêu-
tica25 que propomos busca, precisamente, desvelar este plano pático
das sensações, dos afetos e das estesias, latente nas imagens comunica-
das pelos citadinos nas leituras que fazem sobre sua cidade.
Esperamos ter deixado claro que ao defendermos tal aborda-
gem compósita, simultaneamente analítica e hermenêutica, polí-
tica e ética, estamos procurando delinear um modo de enfocar a
complementaridade entre a mente humana e o mundo físico de que nos
fala Milton Vargas. Apenas o avanço das investigações poderá aqui-
latar a pertinência de uma tal abordagem; antes disto, gostaríamos
de compartilhar com o leitor o consolo de reencontrar na poesia a
expressão de nosso irresoluto assombro:
Multidão
Capítulo 3
110
referências
Aristóteles. A Política, 2009. Bleger, J. Psicologia da conduta.
Tradução de Nestor Silveira Porto Alegre (RS): Artes Médicas,
Chaves. 2ª ed. rev.. Bauru, SP: 1984.
EDIPRO, 2009 (Clássicos EDIPRO).
Capítulo 3
112
Paisagem, imaginário e narratividade. Safra, G. A face estética do self.
Olhares transdisciplinares e novas Teoria e clínica. São Paulo:
interrogações da psicologia social. São Unimarco, 1999.
Paulo: Zagodoni, 2015, pp. 7-14.
Santos, B. de S. Pela mão de
Piaget, J. & García, R. Psicogénesis Alice. O social e o político na pós-
e historia de la ciencia. México: modernidade. Porto: Afrontamento,
Siglo Veintiuno, 1984. 1994.
Capítulo 3
114
Capítulo 3
CV: http://www.degois.pt/visualizador/cur-
riculum.jsp?key=4417055512689742
E-mail: adrianaserrao@letras.ulisboa.pt
ORCiD:https://orcid.org/0000-0001-7452-4032
117
Fazer da terra uma morada. A
ética da natureza, segundo
Ludwig Feuerbach
118
Converting the earth into a
dwelling place. The ethics of
nature by Ludwig Feuerbach
119
Capítulo 4
2 L. Feuerbach, Vorlesungen über das Wesen der Religion / Conferências sobre a Essência da
Religião (1851), GW 6, 193‑194; sobre as alterações do habitat dos animais (ibid., 150); as consequên-
cias da caça são aludidas em Das Wesen der Religion / A Essência da Religião (1846), GW 10, 64 nota.
A sigla GW refere a edição crítica das obras de Feuerbach organizada por Werner Schuffenhauer
(Gesammelte Werke, Berlin: Akademie, 1967ss), seguida da indicação do volume e da página.
122
Apesar destas restrições, Feuerbach não deixa de ser uma voz
decisiva a favor de uma dignificação incondicional da Natureza. Des-
conhecido ou esquecido quando se buscam as primícias da articula-
ção entre filosofia e ecologia, mereceria certamente no contexto do
século XIX o lugar de direito tantas vezes concedido a Nietzsche – ao
sentido matricial da fidelidade à Terra –, ou a Spengler – ao declínio
da civilização que arrastaria também a Natureza, destinada a desca
racterizar‑se, falha de capacidade regenerativa. Tanto a ideia de nii
lismo como a de declínio podem com facilidade ser convertidas em
“premonição” de uma queda, de um desaparecimento total da civili-
zação envolvendo os valores culturais e própria Terra. Já o contido
optimismo de Feuerbach não associa o movimento emancipador da
História humana à antecipação de uma decadência que se exerceria
sobre o mundo natural. Mas outros temas‑chave, quer do ponto de
vista da concepção de natureza quer da antropologia, encontram-
‑se bem vivos nos seus textos, designadamentr a radicação terrena
do humano ou a consideração da multifuncionalidade da natureza,
como origem e base, mas também como medida e limite, da vida.
Para além da insistência no saber de uma origem e na contenção da
acção, será ainda de realçar o apelo ao lugar do homem como ha
bitante da natureza. Mesmo sem a perspectiva de um declínio, a posi-
ção de Feuerbach relativamente à natureza – seja na sua globalidade,
seja nos seus elementos particulares – manifesta uma atitude de pro-
fundo respeito, tanto mais notável quanto se processa numa pura or-
dem de reflexão e não se põe reactivamente como resposta defensiva
perante um perigo já instalado. Tal dignificação, inequivocamente
defendida ao longo de toda a obra, contemplando nomeadamente os
deveres humanos para com os animais, constitui uma surpreendente
antecipação de debates e preocupações que se colocam como desa-
fios urgentes ao pensamento e à actuação dos dias de hoje.
Capítulo 4
124
posição do pensamento absoluto, não possui estatuto originário,
remetida para a condição de momento segundo na ordem da gé
nese ou existente segundo na ordem do valor. A incapacidade de
colher o sentido orgânico é igualmente típica do mecanicismo,
particularmente visado por destituir a natureza de sopro vital e de
movimento próprio, quando lhe empresta um modo de funciona-
mento fixo e repetitivo semelhante ao das máquinas. Olhar para o
mundo em geral, e para o vivo em particular, sob a figura exclusiva
do encadeamento uniforme de causas equivale a converter a vida
em morte, o vivo em coisa inerte, impondo ao mundo uma esta
bilidade em tudo contraditória com a diferenciação imanente e a
diversidade qualitativa exibida pelo curso natural.
A par de uma natureza orgânica, physis, cuja essência é o prin-
cípio vital, indispensável para pensar o ritmo de sucessão dos fe-
nómenos e seres, Feuerbach considera‑a também de um ponto de
vista sincrónico, como “totalidade simultânea” ou comunidade. O
conceito de natureza como simultaneidade permite dar conta de
uma coesão actual, de um todo cujos elementos possuem indivi
dualmente uma importância e um valor desprezados pela visão em
sucessão. Todos os elementos de um conjunto constituem a Natu
reza, vista agora como somatório, um todo coeso mas aberto, cons
tituído pela co‑presença dos seus membros.
Se a visão processual tem como matriz a transiência tempo-
ral do finito, a natureza‑todo apresenta‑se segundo o esquema do
espaço, isto é, uma comunidade regida pela coordenação e coexis-
tência dos finitos, participando cada um de direito próprio, na ple-
nitude das suas diferenças e qualidades insusceptível de se resumir
numa figura única. Natureza tende, pois, a coincidir com realidade,
sendo mesmo definida como o “somatório da realidade”, incluindo
nesse “estar com” também o ser humano, inserido na totalidade
Capítulo 4
4 Zur Kritik der Hegelschen Philosophie / Para a Crítica da Filosofia de Hegel, GW 9, 61.
126
Reformation der Philosophie / Teses Provisórias para a Reforma da
Filosofia e os Grundsätze der Philosophie der Zukunft / Princípios
da Filosofia do Futuro – Feuerbach cruza a filosofia da natureza
com uma ontologia elaborada à luz do princípio da Sensibilidade
(Sinnlichkeit), que caracteriza a sua doutrina plenamente ama-
durecida. Para a nova filosofia, o ser não é um conceito vazio,
o conceito de máxima generalidade e destituído de qualquer
conteúdo concreto que se aplicaria indistintamente a tudo o
que pode ser pensado. É o ser concreto, o ser sensível, a po
sição de existência, o ser que existe independentemente do
pensamento e da linguagem, possuindo por si mesmo verdade
e realidade: “A existência, mesmo sem dizibilidade, tem por si
mesma sentido e razão.”5
Da ontologia sensível decorre a inteira consistência do real,
a unidade e solidez de um único mundo, de todas as suas ins-
tâncias e de todos os seus seres, entes plenos, não sombras,
entes reais, não aparências. Promovido é também o valor das
individualidades, ou mais precisamente, a irredutibilidade do
singular a um plano de generalidade no qual se anularia a qua
lidade pregnante da presença. O ser concreto é a própria exis-
tência desdobrada na multiplicidade dos existentes e na singu
laridade irredutível de cada um.
A implicação mais significativa para uma visão apoteótica da
realidade encontra‑se porém na tese do ser como sujeito: “Ser é
algo no qual não apenas eu mas também os outros, e sobretudo
também o próprio objecto, estão implicados. Ser significa ser sujeito,
significa ser para si.”6
Capítulo 4
128
que separa o objecto da sua representação ou do seu conceito7; é
já pensamento sensível, um saber que decifra o livro do mundo
e o desvenda na multiplicidade e variedade dos seus caracteres e
vocábulos. O filósofo não detém a exclusividade da contemplação.
Partilha‑a com a atenção do botânico que trata das suas plantas e
do mineralogista que cuida dos seus cristais, que ligam estudar e
amar, razão e sentimento, ou em linguagem feuerbachiana, cabeça e
coração. Partilha‑a com o religioso naturalista que celebra em ado
ração temerosa e veneradora a sua relação de dívida para com o
mundo natural8. Reconhecedora da qualidade, geradora de alegria,
decorre na paridade de uma relação de respeito pelo objecto, como
fim em si mesmo, valorizando a natureza como um bem a obser-
var, a estudar, a admirar, não a usar. Feuerbach enfatiza o poder da
intuição quando a associa ao amor, essa capacidade que o coração
tem de retirar os seres da indiferença e de conferir a cada finito um
carácter absoluto, um valor infinito9.
No seu pólo oposto, encontra‑se o utilitarismo, a visão de
terminada pelo interesse e maculada pela antecipação calculista
dos proveitos, movida pela funcionalidade interesseira que reduz
um ser à posse ou ao lucro: que seja meu ou que seja um meio
para mim. O egoísmo do uso, instrumentalizando os seres como
meio, é gerador de disparidade, como ressalta do contraste dos
dois tipos de intuição:
Capítulo 4
130
sangue e a carne das plantas que são sacrificadas ao bem‑estar da
tua existência! [...] Sagrado seja então para nós o pão, sagrado o
vinho, mas também sagrada a água!”11
Capítulo 4
“Mesmo que a natureza não veja, não é porém cega, mesmo que
não viva (na acepção subjectiva, sensitiva da vida humana em
geral), não é porém morta, e mesmo que não se forme segundo
intenções, as suas formações não são casuais; pois onde o ho-
mem define a natureza como morta e cega, as suas formações
como casuais, aí ele converte o seu próprio ser (isto é, subjecti-
vo) em medida da natureza, determina‑a unicamente segundo a
oposição a si mesmo, refere‑a como um ser deficiente, porque ela
não tem o que ele tem.” 13
132
Existência humana e natureza vivida
14 Über Spiritualismus und Materialismus besonders in Beziehung auf die Willensfreiheit / Sobre
o Espiritualismo e o Materialismo em particular no que respeita à Liberdade da Vontade (1866),
GW 11, 175.
Capítulo 4
“Só aos seres que eu vejo e sinto, ou àqueles outros que embora
eu não veja nem sinta são todavia visíveis e sensíveis em si, ou
a quaisquer outros seres sensíveis, devo a minha existência, o
facto de sem sentidos me afundar no nada.”18
134
caracteriza pelo movimento de abertura ao mundo (o sair para
fora de si, o ter o fundamento fora de si), o reverso é igualmente
verdadeiro. O mundo entra também em nós, e não só pelos ca-
nais sensoriais, mas pela totalidade do corpo, um “eu poroso”
que se deixa impregnar de mundo19. O corpo sensível encontra
seres singulares, mas também os elementos fundamentais que
o circundam e tudo englobam – o ar e a luz –, e outros, como a
água e terra, sensíveis omipresentes mas também biótipos, cons
tituintes físicos e biológicos, nutrientes químicos e orgânicos,
providos de virtudes naturais, a que deve quer a saúde física quer
o bem‑estar interior. O mesmo ar que actua sobre os pulmões to-
nifica e agiliza a função pensante20. A água é elogiada na sua fun-
ção purificadora e poder revigorante, tanto físico como espiritu-
al21. A luz na condição de ser universal: ver é a sensação da luz;
e essa mesma luz que me faz ver os outros seres, existe também
para eles, e é igualmente graças a ela que eu me torno visível22.
A natureza é vivida como vínculo originário, na multiplicidade
dos nexos vitais, tipificados por vezes na respiração e alimentação,
que a conservam e renovam a cada instante, e provam, nessa rei-
teração, o mesmo imprescindível gesto de ligação ao ser:
19 “Ser no corpo significa ser no mundo – tantos os poros, tantas as vulnerabilidades: o corpo
nada é senão o eu poroso.” Einige Bemerkungen über den “Anfang der Philosophie” / Algumas
Considerações sobre o “Começo da Filosofia” (1841), GW 9, 151.
Capítulo 4
136
das antropologias de feição metafísica, como de qualquer reducionis-
mo científico. A imagem da existência humana como um imenso sis
tema de trocas e uma contínua “circulação de vida”, umas vezes usada
em sentido real, outras com intenção metafórica, possui uma eficácia
ampla, quase sistemática, de que decorrem a colaboração entre homem
e natureza e a continuidade entre o natural e o cultural. “Vivemos na
natureza, com a natureza, da natureza”– tanto alude à impossibilidade
de cortar ou suspender o fluxo vital, como à ideia de um destino con-
junto: um futuro comum ou um desaparecimento comum:
26 Vorlesungen über das Wesen der Religion, GW 6, 91. É por isso sem contradição que Feuerbach
pode designar-se a si mesmo de “Naturalist oder Humanist”; GW 6, 257.
Capítulo 4
27 Das Wesen der Religion (Erste Fassung), manuscrito publicado por Francesco Tomasoni em
Ludwig Feuerbach e la natura non umana. Ricostruzione genetica dell’ Essenza della religione
con pubblicazione degli inediti, Firenze: La Nuova Italia Editrice, 1986, 238.
138
na permanente tensão entre o domínio e a servidão, em cuja base
se encontra, não uma atitude teorética de admiração desinteres-
sada, mas o mecanismo básico da sobrevivência, a necessidade ou
carência (Bedürfnis), uma espécie de falta (Not) estrutural que
precede qualquer satisfação. Por ter necessidade dos produtos
da natureza, depende dela, uma dependência que o converte em
servo, e à natureza em senhora. Ao usufruir da natureza, dispon-
do dos seus bens, é ela que se torna a serva, e o homem o seu se-
nhor. A imagem desta duplicidade, não inteiramente consciente
e assumida, é enriquecida com a do balancear entre dois tipos de
posição desnivelada:
Capítulo 4
140
da oferenda ou do sacrifício às divindades, mas no acto mais ex-
tremo da apropriação: em transformar em meu poder aquilo que é
poder do objecto – “tornar dependente de mim aquilo de que sou
dependente”31.
O homem autoproclama‑se, finalmente, como o senhor da
natureza, cujo poder lhe permite apagar-lhe os mistérios, anular-
-lhe a autonomia e dignidade, considerando‑a não apenas como
meio de sustento e coisa útil, mas como coisa que pode transfor-
mar a seu bel‑prazer32.
O antropocentrismo não se confunde agora com um simples
erro de visão ou um conhecimento mal orientado que poderia ser
corrigido pelo exercício da razão autocrítica ou pela disciplina da
cultura; tão‑pouco indica a contraposição entre tipos humanos,
atitudes ou modos de estar, como o aludido contraste entre con
templação estética e uso utilitário. É condição constitutiva de uma
disposição profunda, que após compreendida na sua dinâmica tem
de ser fortemente reprimida nas suas manifestações. O que melhor
caracteriza o orgulho humano na sua relação com a natureza não é
também a figura do centro, mas a do topo, a tendência para se colo
car no cume do mundo, no seu nível mais elevado, assumindo para
si o estatuto de ser superior. A tendência à autopromoção e consa
gração de uma superioridade define, por parte do homem, uma po-
sição de cariz moral, e mesmo político, enquanto reivindicação de
um poder e exercício de um domínio. “O homem coloca‑se agora
no topo do mundo como o alfa e o ómega dele”33.
33 Ibid , 278.
Capítulo 4
34 Cf. Die Unsterblichkeitsfrage vom Standpunkt der Anthropologie, GW 10, 253; para a tipifi-
cação destas atitudes, através da contraposição de politeísmo e monoteísmo, Das Wesen
der Religion §53.
142
“Tudo o que existe está autorizado a existir, tem justamente tanto
direito a existir quanto eu; ao privar uma árvore dos seus frutos,
ao derrubá‑la, cometo um ultraje sobre ela.”35
Capítulo 4
144
a afinidade, que preserva o elemento diferenciador das respectivas
qualidades distintivas e os torna assim “parentes”, num reconheci-
mento que funda uma concepção ontologicamente comunitária e
eticamente igualitária ou fraternitária.
Não se colocando, nem mesmo remotamente, a hipótese
do animal‑máquina ou reduzido a comportamentos instintivos,
Feuerbach não também é tentado a seguir a via mais fácil para a
sua valorização, que seria a da antropomorfização dos animais pela
atribuição de funcionamentos humanos. Daqui que não procure
vê‑los segundo o modelo das características humanas, como ho-
mem potencial ou incompleto, descortinando vestígios de pensa
mento, capacidade de linguagem, cultura, fabrico de instrumentos
ou sentido artístico, forçando‑os assim a aproximar‑se da nossa
imagem. Também neste tema mantém firme o princípio de que as
manifestações naturais devem ser entendidas por si mesmas, se-
gundo uma analogia não projectiva.
Na enumeração, sem intenção sistemática, dos atributos da
sensibilidade animal, Feuerbach aponta‑nos um largo espectro. O
primeiro conjunto de atributos é referido, na Introdução a Das We-
sen des Christentums, como “consciência em sentido lato”, incluin-
do o sentimento de si, a percepção e a capacidade de diferenciação
sensível, sendo-lhes no entanto negada a possibilidade de uma
vida interior ou a consciência em sentido estrito, que Feuerbach
identifica com a consciência de pertencer a um género39. Posterior-
mente, vem sucessivamente a reconhecer traços característicos de
sensibilidade afectiva, e mesmo moral. Animais e humanos são ir-
manados na capacidade de sentir e de sofrer, que são a expressão
da vida, por possuirem a faculdade de sentir, seja positiva como a
alegria e o bem‑estar, seja negativa como o sofrimento e a dor.
39 Das Wesen des Christentums, GW 5, 28.
Capítulo 4
41 Ibid., GW 5, 178‑179.
42 arl Grün, Ludwig Feuerbach in seinem Briefwechsel und Nachlaß sowie in seiner philosophischen
Charakterentwicklung. Leipzig und HeidelBerg: C. F. Winter Verlag, 1874, II, 331.
43 bid., 332.
146
o animal, por exemplo, o cão de caça que atacou e dominou uma
raposa.”44
44 Ibid., 331.
Capítulo 4
46 Vorlesungen über das Wesen der Religion, GW 6, 356. O uso explícito do conceito de direito,
extensivo a seres não‑humanos, excede o entendimento jurídico do direito como correlato
do dever – só tem direitos quem tem deveres. Diferencia Feuerbach de outros filósofos, por
exemplo, de Kant – para quem o homem tem deveres para com os animais, mas não os ani-
mais direitos – e antecipa o manifesto igualitário de Henry Salt, Animal’s Rights Considered in
Relation to Social Progress (Londres, 1892), considerado um dos fundadores do movimento dos
direitos dos animais.
47 Über Spiritualismus und Materialismus besonders in Beziehung auf die Willensfreiheit, GW 11, 96.
148
Esta lei descentra e ao mesmo tempo centra o homem; põe‑no fora
de si no seio do mundo, e de novo em si, no lugar de defensor uni
versal. Compreendendo que deve prescindir de um direito exclu-
sivo que tomou por usurpação e que é lhe indevido, prescindir da
morte gratuita é ressarcir‑se de uma dívida já contraída, de um ul-
traje anteriormente cometido48.
48 Não deverá também esquecer que o bem‑estar e o progresso humano foram em grande par-
te alcançados com o auxílio dos animais, referindo-se-lhes Feuerbach expressamente como
tendo ajudado o homem “a sair da animalidade”; Das Wesen der Religion §5, GW 10, 6. Feuerbach
mostra conhecer bem a importância dos cultos aos animais, tanto nas culturas primitivas,
como em formas de religiosidade mais elaborada, tal o jainismo, tema desenvolvido nas Vorle-
sungen über das Wesen der Religion (6.ª e 7.ª Conferências).
Capítulo 4
50 Über Spiritualismus und Materialismus besonders in Beziehung auf die Willensfreiheit, GW 11, 73.
150
A diferenciação entre moral e ética permite que se cruzem sem
contradição duas orientações complementares: de um lado, a de-
fesa do valor inerente, isto é a posição objectiva de direitos intrín
secos universais; do outro, o apelo a uma atitude subjectiva, que
tanto pode manifestar‑se através de sentimentos altruísticos (sim
patia e compaixão, respeito, cuidado e amor) ou como acção con
creta que age efectivamente para fazer o bem e evitar ou minimizar
o mal52. Se o sentimento de altruísmo revela já uma ética mínima, é
somente no agir que a eticidade se concretiza: ética é a acção quer
fazer o bem. O sujeito ético torna-se assim inteiramente respon-
sável pelo seu agir, que envolve o outro e intervém na sua esfera,
causando-lhe benefício ou dano.
Feuerbach defende uma posição de paridade, distante da unila
teralidade de um naturalismo indiferente ao homem e de um huma-
nismo indiferente à natureza, como exemplifica nas suas Conferências
sobre a essência da religião a propósito da terra e dos seus produtos. De
um lado, a sentença imperativa: “ordeno‑te que me dês uma boa co-
lheita”, exemplifica a violência da vontade que impõe a medida huma-
na. Do outro a súplica infantil que implora: “por favor, dá‑me uma boa
colheita”, exemplifica a atitude do não‑agir, a demissão de intervir53.
Nem a autorização para exercer uma dominação sem limi-
tes, nem a desistência que retira ao homem o seu posto e res-
tringe a sua capacidade de intervir. A posição equilibrada de
Feuerbach concede ao homem a especificidade de compositor
do mundo: “Mozart, há um só. Este Mozart da natureza, pelo
52 Zur Moralphilosophie (1868). Kritisch revidiert von Werner Schuffenhauer in: Solidarität oder
Egoismus. Studien zu einer Ethik bei und nach Ludwig Feuerbach. Berlin: Akademie Verlag, 1994,
414‑415.
Capítulo 4
55 Sobre a diferença entre destruir, que altera a essência íntima e profunda, e embelezar, que
apenas modifica e melhora a superfície, Das Wesen des Christentums, GW 5, 310.
56 “Uma coisa é útil (nützlich) em virtude de um outro ser, benéfica (wohltätig) é‑o por si
mesma.” Das Wesen der Religion (Erste Fassung), 318.
152
da criança no relacionamento com a nossa mãe humana, também
devemos encarar a natureza não com os olhos de crianças, mas
com os olhos do adulto, do homem consciente de si mesmo.”57
58 Ibid., GW 6, 193-194.
Capítulo 4
CV: http://www.tmp.letras.ulisboa.pt/departfi-
los-docentes/672-pauloborges
E-mail: pauloaeborges@gmail.com
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-0973-556X
155
Abertura da Consciência e Mu-
dança de Civilização. Repensar a
Natureza, a Terra e Eros a partir
de Hesíodo
156
Opening Awareness and
Civilizational Shift. Rethinking
Nature, Earth and Eros from
Hesiod
157
Capítulo 5
Abertura da
Consciência e Mudança
de Civilização.
Repensar a Natureza, a
Terra e Eros a partir de
Hesíodo
Paulo Borges
Universidade de Lisboa
1 Cf. Arne NAESS, “The Shallow and the Deep, Long-Range Ecology Movement. A Summary”,
Inquiry, 16 (1973), pp.95-100.
160
Não haverá aqui uma dualidade inscrita nos hábitos de percepção
e por consequência nos planos de acção de muitos dos próprios
pensadores e activistas que mais rejeitam essa dualidade, como
é o caso dos adeptos da ecologia profunda? O que poderão ser
então a Natureza e a Terra e que possa estar a escapar quer aos
seus agressores, quer aos seus defensores? Tomemos apoio, na
nossa reflexão, num dos textos fundadores da cultura ocidental, a
Teogonia de Hesíodo, do século VIII AEC.
Invocando as Musas para que lhe contem como nasceram os
deuses e todas as coisas, “começando pelo início”, a palavra inspi-
rada do poeta declara, no que nos propomos interpretar como uma
história vertical da constituição do mundo como um todo:
3 Para uma interpretação subtil desta sucessão, que acompanhamos em parte, mas não na
identificação do Caos com o “vazio” enquanto “pura negatividade”, cf. Jean-Pierre VERNANT,
“Cosmogonies et mythes de souveraineté”, in Jean-Pierre VERNANT e Pierre VIDAL-NAQUET, La
Grèce Ancienne. 1. Du mythe à la raison, pp.116-121.
Capítulo 5
6 Cf. OVÍDIO, Les Métamorphoses, tradução, introdução e notas de J. Chamonard, Paris, Garni-
er-Flammarion, 1966, p.41.
162
ser criada por Deus, antes da posterior diferenciação e ordenação do
mundo pelo espírito divino (Génesis, 1, 2).
O Caos em Hesíodo não é todavia confusão, o que supõe a mistura
de elementos previamente existentes e com naturezas distintas, mas
sim uma abertura infinita, um espaço vazio sem limites ou contornos.
É isso que mostra a sua etimologia, afim à do sânscrito kha, que signi-
fica espaço vazio e zero 7. Kha, no Rig-Veda, é concretamente o centro
vazio da roda onde se insere o eixo 8. Dele, e da boa inserção em si do
eixo que une as rodas, depende o bom movimento do carro. Sendo
a roda um símbolo universal do movimento da vida 9, experienciada
como via ou viagem, compreende-se que na mesma tradição indiana,
hindu e budista, sukkha, ou seja, a boa inserção do eixo ou do cubo
no centro vazio da roda, designe a felicidade, e dukkha, a má inserção,
signifique sofrimento 10. Por analogia, uma vida bem ajustada ao, ou
bem centrada no, espaço vazio e infinito que é o âmago de tudo, é
uma vida que corre bem, ao passo que uma vida mal ajustada ou mal
centrada nesse mesmo espaço é uma vida que corre mal.
Kha, em sânscrito, significa também zero, cuja invenção, com
a consequente revolução do cálculo, ocorreu na Índia. Entre outras
palavras sânscritas que também significam zero estão śūnya, pūrna,
8 Cf. Ananda K. COOMARASWAMY, “Kha y otras palavras que significan “cero” en relación con la
metafísica índia del espacio”, in El Vedanta y la tradición occidental y otros ensayos, tradução de
Agustín López y Maria Tabuyo, Madrid, Ediones Siruela, 2001, p.255.
9 Cf. Jean CHEVALIER / Alain GHEERBRANT, “Roue”, in Dictionnaire des Symboles, Paris, Robert
Laffont Jupiter, 1990, edição revista e aumentada, pp.826-830.
10 “Kha designe em effet le centre vide de la roue d’un char, là où s’emboîte le moyeu. Avec le
préfixe négatif du (qui existe aussi em grec ancien: dys-harmonie), duhkha designe um “mal-
aise”, um “mal-être”, plutôt qu’une douleur” – Roger-Pol Droit, Le Silence du Bouddha et autres
questions indiennes, Paris, Hermann Éditeurs, 2010, p.19.
Capítulo 5
12 Cf. Chāndogya Upanishad, I, IX, 1, in R. C. ZAEHNER, Hindu Scriptures, traduzido e editado por
R. C. Zaehner, Londres, Everyman’s Library, 1992, p.105.
14 Cf. Lao TSE, Tao Te King, XVI, 1, traduzido e comentado por Marcel Conche, Paris, PUF, 2005,
p.119.
164
metafísico-teológico como o puro infinito, consoante O Livro dos XXIV
Filósofos: “Deus est sphera infinita cuius centrum est ubique, circum-
ferentia vero nusquam” (“Deus é a esfera infinita cujo centro está em
todo o lado e a circunferência em lado algum”) 15. Nesse sentido Eudo-
ro de Sousa o alegorizou como “Excessividade Caótica” 16.
Note-se que Ovídio identifica o Caos com a “natureza” no
estado primordial. A natura latina é a physis grega, que é o tema
central do pensamento pré-socrático e que num hino órfico surge
enaltecida como “imortal, primigénia”, “autoengendrada” e “cria-
dora de todas as coisas”, sendo “vida eterna” que se renova pe-
las suas “mudanças de forma”. Só ela é “tudo”, pois só ela produz
tudo17. A physis dos primeiros filósofos gregos é em geral interpre-
tada como tendo três sentidos relacionados: 1) substância primor-
dial ou principial, arché; 2) processo de surgimento/crescimento
ou génesis; 3) princípio interno organizador e estruturante 18. Physis
vem do verbo phúein, com o sentido de “crescer” ou “fazer cres-
cer”19. Heidegger viu-a como um processo de auto-expansão, de
manifestação e abertura, de aparição 20. Enquanto tal, configura o
15 Cf. Le Livre des XXIV Philosophes, traduzido do latim, editado e anotado por Françoise Hudry,
prefácio de Marc Richir, Grenoble, Éditions Jerome Millon, 1989, pp. 93 e 95.
17 Cf. “Hino X”, in PORFÍRIO, Vida de Pitágoras. Argonáuticas Órficas. Himnos Órficos, introduções,
traduções e notas de Miguel Periago Lorente, Madrid, Editorial Gredos, 1987, pp.175-176.
18 Cf. F. E. PETERS, Termos Filosóficos Gregos. Um léxico histórico, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, prefácio de Miguel Baptista Pereira, tradução de Beatriz Rodrigues Rosa, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 1977, pp.189-190.
19 Cf. Marlène ZARADER, Heidegger et les Paroles de L’Origine, prefácio de Emmanuel Lévinas,
Paris, J. Vrin, 1990, p.35.
Capítulo 5
21 Cf. HERACLITO, Fragments, 69, texto estabelecido, traduzido e comentado por Marcel Conche,
Paris, PUF, 1987, 2ª edição, p.253.
22 Cf. Id., “Ce qu’est et comment se determine la Physis”, in Questions II, traduzido por
François Fédier, Paris, Gallimard, 1987, pp.274 e 276.
166
verso e o reverso de toda a realidade. Como diz o Prajña Paramita
Sutra budista: “As formas são vazias; a vacuidade, ela mesma, é
as formas; a vacuidade não é diferente das formas; as formas não
são diferentes da vacuidade” 24. O cosmos é um caosmos.
Mas qual a aparição que surge no fundo sem fundo do Kháos?
O texto de Hesíodo é claro: “Então, antes de tudo, foi o Caos; de-
pois Gaia de largos flancos, fundamento seguro para sempre ofe-
recido a todos os viventes (...)” 25. A primeira epifania do Kháos é
Gaia, a Terra, que representa o surgimento no infinito de uma base
de apoio e sustento para todas as formas de vida. Gaia é a forma do
infinito e assim a forma de todas as formas. Gaia é a mitopoética
expressão do fundo universal do ser, o Grunt da mística e da me-
tafísica de Mestre Eckhart, que, enquanto inscrito ou in-fundado
no Caos ou Infinito primordial, é ele mesmo Abgrund, abismo, ou
Ungrund, não-fundo, sem deixar de ser Urgrund, fundo primor-
dial26. Gaia, a Terra, é a forma do informe e o fundo sem fundo
ou o insustentado sustento de tudo, sendo indissociável do Caos
onde surge e de todos os viventes de que é matriz e nutriz. Gaia, a
Terra, “de largos flancos”, é a figura mais arcaica do sagrado e do
divino, antes do imaginário indo-europeu ter concebido os deuses
e Deus - conforme a sua etimologia na raiz indo-europeia dei-, que
25 Cf. HESÍODO, Teogonia, 116-122. Seguimos a tradução de Paul Mazon, com excepção da
designação das três instâncias iniciais, onde mantivemos os termos gregos, em vez de “Abis-
mo”, “Terra” e “Amor”: HESÍODO, Théogonie, in Théogonie / Les Travaux et les Jours / Le Bouclier,
edição bilíngue grego-francês, texto estabelecido e traduzido por Paul Mazon, Paris, Les Belles
Lettres, 1986, 2ª edição, p.36.
26 Cf. Meister ECKHART, Predigten, 52, traduzido por Joseph Quint, editado e comentado por
Niklaus Largier, Frankfurt sobre o Meno, Deutscher Klassiker Verlag, 2008, p.555. Cf. Martin
HEIDEGGER, Introduction à la Métaphysique, p.15.
Capítulo 5
27 Cf. Odon VALLET, Petit lexique des mots essentiels, Paris, Albin Michel, 2007, pp.63-64. Veja-se
uma exposição condensada das mais importantes referências e obras sobre esta questão em
Carlos H. do Carmo SILVA, “Divina perfeição na sabedoria pré-socrática – da teogonia mítica
a uma dramática ideal do theós”, in AAVV, A Questão de Deus na História da Filosofia, I, coorde-
nação de Maria Leonor L. O. Xavier, Sintra, Zéfiro, 2008, p.33, nota 68.
28 Cf. Marija GIMBUTAS, The Language of the Goddess, prefácio de Joseph Campbell, Nova Iorque,
HarperCollins, 1991.
168
os Imortais, mestres dos cimos do Olimpo nevado, e (a)o Tártaro
brumoso, mesmo no fundo da terra de largos caminhos” 30. Gaia é
o assento de “todos os viventes”, desde os divinos habitantes do
Olimpo aos que habitam nas profundezas ctónicas da Terra. Gaia
é o solo e a raiz de todos, que nela se unificam e comungam da
ilimitação, pois emergem de uma Terra caósmica, cujo íntimo é
o Caos, o espaço infinito, vazio e sem forma, sem início nem fim.
Filhos do Caosmos, todos os viventes são igualmente caós-
micos. Enraizados no fundo sem fundo, ou seja, no infinito, con-
têm em si todas as infinitas possibilidades que nele se implicam e
se manifestam ou explicam (para usar a linguagem de Nicolau de
Cusa) na infinitude do multiverso ou cosmos aparente. Neste sen-
tido, são microcaosmos que também contêm o macrocaosmos, partes
que não só se inserem no todo, mas que também o contêm em si.
São hólons, num sentido diverso daquele concebido por Arthur Ko-
estler 31, pois não só são totalidades integradas em totalidades mais
inclusivas, como incluem ainda, na medida em que a sua natureza
primordial é o infinito, a macro-totalidade. Cada vivente assume
assim uma dignidade infinita, sendo um ícone do infinito e da to-
talidade, bem como da criatividade ilimitada que entre um e outro
se processa. Cada vivente é assim menos um ente, ou uma mónada
sem portas nem janelas, como na visão de Leibniz, do que um pro-
cesso caósmico de metamorfose, sempre em aberto e em osmose
com todos os demais viventes e fenómenos caósmicos.
Se o Kháos é a Natureza e Gaia é a Terra, esta Natureza e esta
Terra não são obviamente redutíveis à “Natureza” e à “Terra” objec-
tivadas pelas ciências naturais, bem como à “Natureza” e à “Terra”
30 Cf. HESÍODO, Teogonia, variante dos versos 118-119 indicada em Théogonie / Les Travaux et les
Jours / Le Bouclier, p.36, nota 2.
31 Cf. Arthur KOESTLER,The Ghost in the Machine, Last Century Media, 1982.
Capítulo 5
32 Cf. Byung-Chul HAN, A Agonia de Eros, tradução de Miguel Serras Pereira, Lisboa, Relógio de
Água, 2014, pp.9-10.
170
conservação, segurança, controlo, produção e consumo na abertura
ao que surge como desconhecido, perigoso, imprevisível, incontro-
lável, improdutível e inconsumível: ou seja, a própria Vida. Eros,
emergindo a seguir a Kháos e Gaia, é a irrupção da natureza infinita
e caósmica de todos os viventes a impulsioná-los para viverem na
grande Abertura sem contornos, subvertendo a tentação de se ima-
ginarem centros do espaço que o não tem e assim se fecharem na
forma da individuação e no falso conforto e segurança da finitude.
Eros, mais do que um vivente, é a Vida, a dinâmica amorosa do
próprio caosmos, a força do infinito que circula em todos os viven-
tes e os comove num desejo passional, consciente ou inconsciente,
de abertura ao Infinito dos possíveis que cada um traz em si, pois
cada um, na medida em que radica no Kháos, abriga em si não só to-
dos os demais viventes, mas ainda todas as possibilidades em aber-
to de manifestação e realização. Eros é a potência amorosa do vazio
informe que vence a sua própria distorção no desejo autocentrado,
egocêntrico e possessivo, desvelando na forma de cada vivente um
ímpeto de verdade, ou seja, de des-velamento do infinito que há em
si, em constante autotranscendência e metamorfose. Tudo no fun-
do é Eros, porque Eros – o Eros de olhos e asas bem abertos da sua
primeira iconografia na cultura clássica 33 - é a ex-uberância festiva
do Infinito ou Kháos primordial, sem porquê nem para quê. Re-
conhecendo-se, o desejo abre asas para o superabundante infinito
que é. Não se reconhecendo, imagina-se um sujeito carente, dis-
tinto desse mesmo infinito, que todavia o procura buscando satis-
fazer-se infinitamente em objectos e experiências finitos, que não
podem senão deixá-lo cada vez mais insaciado, pois neles deseja
33 “Raras vezes foi referido como cego na literatura clássica e nunca foi representado como
cego na arte clássica” – Erwin PANOFSKY, Estudos de Iconologia. Temas humanísticos na arte do
renascimento, Lisboa, Editorial Estampa, 1995, 2ª edição, p.91.
Capítulo 5
37 Cf. Luís de CAMÕES, Os Lusíadas, IX, XXV, in Obras, Porto, Lello & Irmão – Editores, 1970, p.1344
(actualizámos a ortografia). Cf. Paulo BORGES, “Eros e iniciaçãoo em Luís de camões. De Portugal
à Ilha dos Amores”, in Uma Visão Armilar do Mundo. A vocação universal de Portugal em Luís de
camões, Padre António Vieira, Teixeira de Pascoaes e Agostinho da Silva, Lisboa, Verbo, 2010, pp.15-41.
172
ético-morais, para não falar das medidas jurídico-político-econó-
micas, embora positivas e desejáveis, são sempre impotentes ou
insuficientes para inverter esta situação, que está na raiz da crise
ambiental e civilizacional contemporânea, pois a mais funda raiz
desta perversão do desejo pela sua fixação ávida na finitude é a
perda do sentido do Eros primordial que, como vimos, é a paixão
da vida aberta no “chásma méga”, no “grande abismo” sem fundo
de Hesíodo 38, ou seja, no infinito. Na verdade, a mera reacção à
crise ambiental e civilizacional apenas a prolonga, na medida em
que se situa ao seu estreito nível e, não a perspectivando num
horizonte mais amplo, mantém o obscurecimento da consciência
que assim se auto-impede de se converter num novo começo. Se
bem que haja que preservar o que puder ser preservado do mun-
do natural, da Terra, da biodiversidade e dos recursos naturais, e
para tal investir no decrescimento económico, na sociedade de
abundância frugal ou na prosperidade sem crescimento propos-
tos, entre outros, por Serge Latouche e Tim Jackson, o que ver-
dadeiramente urge, até como condição para tal, é uma mudança
das raízes da actual civilização que só pode vir de uma mutação
radical da consciência ou do regime de experiência e percepção
da chamada realidade, que traga às mentes a paz, a simplicidade e
a plenitude inerentes à redescoberta da felicidade e do prazer de
ser, cujo esquecimento se traduz na avidez e na beligerância que
estão a devastar a Terra.
Essa mutação só pode emergir da reorientação da consci-
ência para o infinito, reconhecendo-o como a natureza aberta e
comum de todos os seres e fenómenos, o fundo sem fundo que
somos antes da clivagem da experiência em eu e outro e sujeito
38 Cf. HESÍODO, Théogonie, 739-740, in Théogonie / Les Travaux et les Jours / Le Bouclier, p.58.
Capítulo 5
40 Cf. Pierre WEIL, Jean-Yves LELOUP, Roberto CREMA, Normose. A patologia da normalidade,
Petrópolis, Editora Vozes, 2011, 3ª edição.
41 Cf. Sam HARRIS, Waking Up. Searching for spirituality without religion, Londres, Black Swan,
2015, p.92. Cf. também Loch KELLY, Shift into Freedom. The Science and Practice of Open-Hearted
Awareness, Boulder, Sound True, 2015, p.16.
174
qual não seria possível a devastação do mundo pela tecnociência
ao serviço da política económica mundial.
Esta generalizada confusão da consciência com o ego, legiti-
mada pela cultura dominante, que se desvela assim como a causa
principal da iminência de colapso ecológico – tanto mais grave e
operativa quanto menos reconhecida - , não parece todavia resis-
tir a um honesto exame reflexivo e de auto-análise, mais fácil se a
mente estiver livre da sua habitual dispersão e distracção mediante
o treino na introspecção e quietude meditativa. Seja como for, um
exercício simples possibilita que cada um possa fazer por si esta
verificação. Se reorientarmos, neste preciso momento, o fluxo da
nossa atenção dos objectos nos quais está habitualmente envolvi-
do - seja de modo disperso ou concentrado e sejam objectos dos
sentidos externos, como formas visuais ou auditivas, ou do sentido
interno, como pensamentos, imagens e emoções - para si mesmo
e para a sua fonte, se reorientarmos o fluxo da atenção para o que
habitualmente concebemos como o seu sujeito, o chamado “eu”,
o que parece acontecer é que este não se encontra como uma en-
tidade definida, isolada e separada, que tenha forma, localização
e outras características identificáveis e objectiváveis. Ao operar-
mos esta re-flexão, ou seja, etimologicamente, este regresso a si,
este virar-se para si, o que experimentamos - em vez do “eu” em
geral imaginado como o observador situado por detrás dos olhos
no interior do crânio - é um não-objecto, a ausência de qualquer
sujeito entificado, um espaço aberto sem forma e sem contornos:
o não-ente, a não-coisa e o não-eu indicados no inglês no-thing, no
francês né-ant, no italiano ni-ente e no alemão N-ichts. Impedindo
contudo uma visão niilista, há uma experiência disto, há uma cons-
ciência deste espaço que no fundo é o espaço da própria consciên-
cia, há a experiência desta ausência de forma ser ao mesmo tempo
Capítulo 5
42 Cf. D. E. HARDING, On Having No Head. Zen and the Rediscovery of the Obvious, Londres, The
Shollond Trust, 2014, pp.2 e 23-24.
43 Cf. Paulo BORGES, Vazio e Plenitude ou o Mundo às Avessas. Estudos e ensaios sobre espirituali-
dade, religião, diálogo inter-religioso e encontro trans-religioso, Lisboa, Âncora Editora, 2018.
176
e dinamismos fenomenais, inseparavelmente internos e externos,
tanto pensamentos, imagens, palavras, emoções e volições, quan-
to as indissociáveis percepções dos objectos e devires do mundo.
Nesta reversão a consciência experiencia-se como espaço aberto
sem contornos, a consciência descobre-se e sente-se intimamen-
te os próprios infinito, totalidade e vida exuberante que Hesíodo
mitopoeticamente referiu como Kháos, Gaia e Eros, embora em
última instância esta vivência seja irredutível a todos os conteúdos
e determinações, sejam conceitos, palavras ou imagens, incluindo
estes que apofaticamente usamos para tentar liminarmente indi-
car a experiên-humano. e si que habita o imo de cada ser, humao
ou namente estes que usamos para tentar expressar uma ncia ine-
fável que habita, reconhecida ou não, o imo de todos e cada um
dos viventes e sencientes, humanos ou não-humanos.
A esta luz, em vez de combater o quer que seja, a alternati-
va à crise do Antropoceno e a possibilidade de um novo começo
residem primeiro que tudo em promover pela positiva uma cultura
da consciência como o espaço de experiência ilimitada e fruitiva
onde todos os fenómenos aparentemente subjectivos e objectivos
se manifestam. Uma cultura reorientada, segundo o dizer de Rilke
na “Oitava Elegia”, da “Forma (Gestaltung)” para o “Aberto” (das
Offene), para esse “puro espaço” que não se reduz ao “mundo” de
entidades e objectos para o qual a educação nos volta, afastando-
-nos do “Aberto” do qual o poeta via mais próximos o animal, a
criança, os amantes e os que morrem 44. Em vez de uma cultura da
clausura numa concepção atómica, substancial, monádica, entifi-
cada, reificada e objectivada do real, do si e do mundo, trata-se de
promover uma cultura da experiência da chamada realidade como
44 Cf. Reiner Maria RILKE, “A Oitava Elegia”, in As Elegias de Duíno, Lisboa, Assírio & Alvim,
2002, p.91.
Capítulo 5
178
O que Hesíodo designou como Caos é o Infinito omni-englo-
bante que as tradições espirituais da humanidade designam de mo-
dos diversos mas convergentes e que agora, mediante o exercício
atrás sugerido, podemos experiencialmente comprovar como a na-
tureza primordial da própria consciência, irredutível aos seus esta-
dos, conteúdos e determinações psicológicos. Um mestre budista
contemporâneo sugere-o assim:
46 MINGYUR RINPOCHE (e Eric SWANSON), The Joy of Living. Unlocking the secret and science of
happiness, prefácio de Daniel Goleman, Londres, Bantam Books, 2009, p.63.
Capítulo 5
47 Martin LAIRD, Into the Silent Land. The Practice of Contemplation, Londres, Darton, Logman
and Todd, 2009, p.14.
180
unifica e transcende todos os contrários e isso é a natureza invio-
lável de todo e de cada vivente. Esta abertura da consciência traz
já em si a mudança de civilização, que convida a refundar o modo
humano de habitar o mundo na experiência contemplativa do in-
finito e da totalidade e na amorosa comunhão inter-espécies que
nela se abre. É para isso que desde sempre apontam os olhos e as
asas do Eros iluminado.
Capítulo 5
Paulo Borges
Jean-Jacques Wunenburger
Universidade Jean Moulin – Lyon 3
CV: http://www.univ-lyon3.fr/
wunenburger-jean-jacques-110605.kjsp#body
E-mail: jean-jacques.wunenburger@univ-lyon3.fr
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-3667-4504
182
Alberto Filipe Araújo
Universidade do Minho
CV: http://lattes.cnpq.br/8435522451809066
E-mail: afaraujo@ie.uminho.pt
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-4693-8681
183
Do Imaginário e de suas re-
lações com a mitopoética do
espaço
184
Of the Imaginary and its rela-
tionships with the mythopoetics
of space
185
Capítulo 6
Do Imaginário e de
suas relações com a
mitopoética do espaço1
Alberto Filipe Araújo
Universidade do Minho
Jean-Jacques Wunenburger
Universidade Jean Moulin - Lyon 3
Introdução
188
referências e orientações, mesmo se durante muito tempo per-
maneceram modestas ou marginais: antes de mais, as repercus-
sões da estética surrealista que permitiram, paralelamente à len-
ta difusão da psicanálise freudiana em França, promover práticas
imaginativas que datam do romantismo, ou até do ocultismo; em
seguida, o interesse pela psicossociologia religiosa, através do
impacto do pensamento de Émile Durkheim, dos trabalhos de
fenomenologia religiosa (Mircea Eliade) e mesmo de psicologia
religiosa (escola jungiana); finalmente, a lenta progressão de um
neokantismo que considera como adquirido o estatuto transcen-
dental da imaginação e a sua participação na constituição de um
sentido simbólico (Ernst Cassirer, Martin Heidegger).
Assim, não admira que a imaginação e a imagem tenham po-
dido ser integradas em novos métodos ou processos filosóficos,
embora cada uma delas exiba postulados e modelos de análise di-
ferentes: a fenomenologia, proveniente de Edmund Husserl, con-
sidera a imaginação como intencionalidade capaz de um desejo
eidético; a hermenêutica atribui às imagens uma função expres-
siva em termos de sentido, segundo alguns pontos de vista, mais
fecunda que o conceito (Heidegger, Hans-Georg Gadamer, Paul
Ricoeur, etc.), e os debates introduzidos pela Escola de Frankfurt
(Ernst Bloch, Herbert Marcuse, Theodor Adorno, Walter Benja-
min) obrigam a ter em consideração o mito e a utopia na história
sociopolítica. Quanto aos mais recentes trabalhos de filosofia e de
ciências cognitivas, estes revalorizam tanto a metáfora como as
representações visuais.
Neste contexto convém, no entanto, privilegiar quatro
obras particularmente criativas que vêm renovar a compreen-
são da imaginação e do imaginário: Gaston Bachelard, Gilbert
Durand, Paul Ricoeur e Henry Corbin. Vamos realçar o essencial
Capítulo 6
190
representaçõesdotadas de um poder de significação e de
uma energia de transformação. Próximo das análises de
Carl Gustav Jung (passado pouco tempo seguiram-se as hipó-
teses freudianas), Bachelard situa as raízes da imaginação em
matrizes inconscientes (os arquétipos), dissociando-se elas
próprias em duas polaridades, masculina (Animus) e femini-
na (Anima), que modificam o tratamento das imagens quer no
sentido voluntarista de luta, quer no sentido mais pacífico de
reconciliação. Longe de serem recalcadas, como para Freud,
estas imagens são depois transformadas por uma consciência
onírica em imagens novas aquando do contacto com elemen-
tos materiais do mundo exterior.
Capítulo 6
192
2.2 Gilbert Durand
2 Em vez de traduzirmos a noção de schème pela palavra "esquema", como aliás faz Hélder
Godinho na tradução que realizou das Structures anthropologiques de l’Imaginaire para a língua
portuguesa, optamos por conservar este importante conceito durandino no original dado que
o schème não pode ser traduzido por “esquema” (schéma).Sintetizando: são duas coisas difer-
entes. Para melhor esclarecimento do leitor, damos a palavra a Gilbert Durand para apresentar
Capítulo 6
194
(dominantes posturais, copulativas e digestivas). Por outras palavras,
a formação das imagens enraíza-se em três sistemas reflexológicos
que delimitam a infra-estrutura da sintaxe das imagens:
Capítulo 6
196
três estruturas polarizantes: urna estrutura "mística", que induz
configurações de imagens que obedecem a relações fusionais; uma
estrutura heróica ou diairética, que instala clivagens e oposições
bem definidas entre todos os elementos; finalmente, uma estru-
tura cíclica, sintética ou disseminatória, que permite compor em
conjunto num "tempo" que engloba as duas estruturas antagonis-
tas extremas. E possível então tornar inteligíveis as configurações
de imagens, próprias dos criadores individuais, dos agentes sociais
ou das categorias culturais, identificando as figuras míticas domi-
nantes, identificando a sua tipologia e procurando ciclos de trans-
formação do imaginário por meio da mitocrítica. Esta visa em pri-
meiro lugar extrair das obras, recorrendo, se necessário, a métodos
de quantificação (estabelecimento de um quorum dc mitemas), os
cenários, os temas redundantes, os mitemas característicos, a fim
de identificar o mito diretor subjacente:
Capítulo 6
198
cuja simbólica ilumina a maior parte dos factos culturais (Durand,
1996a: 79-130; 1994: 66-76, Maffesoli, 1980).
Capítulo 6
200
uma "reconstrução com valor descritivo». Uma poética da acção,
tendo em conta que não existe acção sem imaginação, requer que
a própria imaginação seja igualmente projectiva: a imaginação
tem uma "função projetiva que pertence ao próprio dinamismo
do agir"(1986a: 224; 222-224). Trata-se ainda de uma fenomenolo-
gia do agir individual que esquematiza os meus projectos (plano
do projecto), a figurabilidade dos meus desejos (plano da moti-
vação), até às variações imaginativas do eu "posso"(plano do pró-
prio poder de fazer): "é no imaginário que experimento o meu
poder de fazer, que eu meço o “eu posso”"(1986a: 225). E por con-
seguinte um percurso que progride em direcção a uma conceção
de imaginação enquanto "função geral do possível prático"(1986a:
225). Precisamente é esta função que nos permite transpor a es-
fera do individual em direcção ao imaginário social com as suas
práticas (a ideologia e a utopia). É através destas práticas que se
pode perceber melhor a constituição analógica do laço social "en-
tre diversos campos temporais, os dos nossos contemporâneos,
os dos nossos predecessores e os dos nossos sucessores"(1986a:
226). Por outras palavras, são estas mesmas práticas que nos per-
mitem compreender melhor a constituição analógica presente no
campo histórico da experiência. A tarefa da imaginação produtora
consiste simultaneamente em esquematizar a ligação analógica
e em fundamentar a possibilidade da "experiência histórica em
geral»: "à imaginação compete preservar e identificar, em todas
as relações com os nossos contemporâneos, com os nossos pre-
decessores e com os nossos sucessores, a analogia do ego"(1986a:
227). Daí resulta, por um lado, que a ligação analógica, que faz com
que cada homem seja meu semelhante, apenas se manifesta através
das práticas da imaginação produtora como, por exemplo, a ideo-
logia e a utopia; e, por outro lado, que a imaginação produtora não
Capítulo 6
202
Henry Corbin estabeleceu, assim, o modo como estes textos
espirituais assentam numa hierarquia metafísica com três níveis
de realidades: a de um mundo inteligível, do Uno divino, a de um
mundo sensível ao qual pertencemos através do nosso corpo, e fi-
nalmente a de uma realidade intermediária na qual o mundo inte-
ligível se manifesta de acordo com figuras concretas (paisagens,
personagens, etc.). Ao primeiro só consegue aceder a inteligência
pura, ao segundo apenas a percepção sensorial, ao terceiro a ima-
ginação visionária. Assim, só é possível compreender as imagens
deste mundo intermediário distinguindo, fenomenologicamente,
dois tipos de imagens: as que pertencem a uma imaginação psico-
fisiológica, inseparável da nossa condição encarnada, que permite
criar ficções irreais, e as que são produzidas por uma imaginação
criadora verdadeira, separável do sujeito, autónoma e subsistindo
em si, que permite oferecer à consciência intuitiva representa-
ções já não imaginárias mas sim "imaginais», tão afastadas quan-
to possível de todo o "psicologismo». Deste modo, os espaços
paradisíacos, as Cidades divinas, os anjos, que florescem nos tex-
tos religiosos visionários, constituem na realidade manifestações
imaginais indirectas do Absoluto divino. A descrição fenomeno-
lógica destas visões evidencia pois, ao lado do real e do irreal,
uma realidade imaginal, um mundo próprio onde o espírito se
corporaliza e onde os corpos se espiritualizam (mundus imagina-
lis). A consciência é, assim, o lugar de uma experiência interior de
corpos espirituais (ou corpo de ressurreição) e de espíritos que
se "tipificam"em corpos imateriais. Inversamente, através destas
imagens, a imaginação espiritual vai poder desligar-se da sua de-
pendência em relação ao mundo material, para se transformar
ela própria antes de aceder à visão directa de Deus. A alma pode
estar na presença de representações de realidades imateriais
Capítulo 6
204
ser verdadeiramente pensada se se tiver previamente evitado
confundir processos e representações fortemente heterogéneas.
Por sua vez, uma abordagem filosófica do imaginário é insepará-
vel de um trabalho epistemológico de descrição, de classificação
e de tipificação das múltiplas faces da imagem.
Mas o que é o imaginário? A resposta de que trata de uma ins-
tância mental que armazena um emaranhado e complexo conjunto
de imagens (de)formadas por uma imaginação, quer de tipo repro-
dutor, quer de tipo criador, suscetíveis de serem, estudadas, inter-
pretadas e decifradas sejam elas ícone, fantasma ou simulacro, sím-
bolo e imagem simbólica (Wunenburger, 2011: 15-18) se à primeira
vista colhe, incita-nos, contudo, ir mais longe na sua caraterização.
Assim, importa salientar que a esfera mental (a psicosfera) de cada
sujeito é ocupada, por um lado, pela perceção do real (imediato ou
memorizado) e, por outro lado, por uma ideação-verbalização que
utiliza signos lógico-linguísticos convencionais e abstratos, que, por
sua vez, permitem discorrer sobre o mundo ( julgar, raciocinar, pen-
sar). Entre estas duas instâncias, encontra-se o imaginário que com-
preende no seu seio um conjunto diverso de produções subjetivas de
imagens (verbais e/ou icónicas, elementos ou composição presentes
nos quadros ou narrativas)3 que alargam as representações do mun-
do (recriação do passado, imagens de mundos distantes e exóticos,
de mundos possíveis, de realidades futuras – projeto, antecipação,
ficcionalização do futuro), assim como dizem respeito ao imaginário
individual (recordações idealizadas, os meus sonhos de férias e da
vida futura, os meus desejos eróticos, as minhas idealizações dos
3 O imaginário engloba, pelo menos, dois tipos de imagens: as visuais e aquelas produzidas
pela linguagem (às quais seria necessário acrescentar as imagens acústicas e musicais, ol-
fativas, etc.). Perguntamo-nos se é preciso confundir ou distinguir, desde logo, as imagens
linguísticas (tropos, metáforas, símbolos, mitos, narrativas ficcionais) e as imagens visuais
miméticas (gráficas, plásticas, numéricas).
Capítulo 6
206
de produção de sentido linguístico e pré-linguístico reveladores
das potências da imaginação (linguística, poética e narrativa;
visual; psicológica e coletiva – Wunenburger, 2011: 24-27). A
imaginação, como o espírito em geral, exige também uma es-
pontaneidade que garante a invenção e a inovação, pelo inter-
médio de ruturas e de singularizações que se afiguram como
uma exceção. A imaginação é sempre uma manifestação um
pouco imprevisível do psiquismo, que nunca está assim longe
do ingenium, da engenhosidade, do “génio” no sentido de uma
emergência de imagens que se enraízam nas franjas e pregas
mais recônditas da psique humana. A imaginação é regida pela
regra do “como se” que permite que ela se desloque da ordem
das coisas e de prestar-se a uma imitação de uma outra realida-
de, na sua ausência. Neste sentido, a imaginação é uma função
de superação e de transformação das imagens irredutível a uma
técnica, mas que permanece uma arte escondida nas profundi-
dades do psiquismo humano.
Na base das quatro grandes contribuições acima expostas
(Gaston Bachelard, Gilbert Durand, Paul Ricoeur e Henry Corbin),
mesmo considerando as suas divergências e diferenças epistemo-
lógicas, elas permitiram estabelecer os fundamentos de uma nova
teoria da imaginação e do imaginário, que podem ser considerados
conhecimentos sólidos. Daí podermos estabelecer algumas linhas
mestras que merecem especial destaque e uma reflexão demorada:
1º. As representações metafóricas não se reduzem todas a agre-
gados de representações de origem empírica, ligados por simples
leis associacionistas. O imaginário obedece a uma "lógica"e está
organizado em estruturas a partir das quais se podem formular leis
(Bachelard, Lévi-Strauss, Durand). O carácter operatório das três
estruturas (místicas, diairéticas e sintéticas), identificadas e postas
Capítulo 6
208
5º. Finalmente, o imaginário apresenta-se como uma esfera de re-
presentações e de afetos profundamente ambivalente: tanto pode
ser uma fonte de erros e de ilusões como uma forma de revelação
de uma verdade metafísica. O seu valor não reside unicamente nas
suas produções, mas também no uso que lhes é dado. A imaginação
obriga então a formular uma ética, ou mesmo uma sabedoria das
imagens.
Capítulo 6
210
Em todos os casos, uma teoria do imaginário pressupõe um esforço
para diferenciar mais claramente os processos e as representações,
muitas vezes encaixados de forma precipitada num léxico, particular-
mente pobre e redutor na língua francesa. Deste ponto de vista, pode-
mos esboçar pelo menos três níveis de formação de imagens:
Capítulo 6
212
compreende contrastes de luz e de sombra. A imagem enquanto
sombra favorece na realidade uma profundeza das coisas e assegu-
ra uma melhor difusão da sua luminescência.
Capítulo 6
214
uma produção originária. Neste sentido, podemos inseri-la, do ponto
de vista espiritualista e platónico, numa pura noosfera (mundo de
ideias) dotada de conteúdos psíquicos próprios ou, de uma forma
mais materialista, podemos implantar estas imagens em montagens
neurobiológicas, os mecanismos reflexos elementares, por exemplo,
como propõe Gilbert Durand no seguimento de André Leroi-Gou-
rhan, de Adolf Portmann, de Konrad Lorenz, etc.
No entanto, mesmo sendo de origem interna, a imagem mis-
tura-se com os diferentes registos sensoriais que a dotam de con-
teúdos particulares e que, por sua vez, imprimem no imaginário
os contornos próprios dos seus canais de informações (mudando
a imagem de acordo com o facto de esta ser verbal, visual, táctil,
auditiva, etc.). Não se pode negar de facto que o imaginário depen-
de muitas vezes de uma sensorialidade dominante. As categorias
da representação metafórica e mesmo conceptual, provenientes
do helenismo, são desta forma fortemente marcadas pela experi-
ência visual do olho, enquanto a criatividade de filiação cultural
judia valoriza sobretudo as imagens verbais e os seus procedimen-
tos retóricos; assim, o falar suplanta o ver. Embora o imaginário,
no seu princípio, seja vicariante e sincrético e enriqueça através
da sua participação nos diferentes sentidos, devemos todavia ser
sensíveis à pregnância deste ou daquele meio de impressão e de
expressão, que lhe impõe valorizações específicas.
A infância constitui a etapa decisiva da formação do ima-
ginário. O lento desenvolvimento da inteligência abstrata du-
rante os primeiros anos (E. Wallon, Jean Piaget), associado às
fortes estimulações pulsionais e ao instinto de jogo, tornam o
psiquismo da criança particularmente recetivo à imaginação e
aos sonhos, de acordo com lógicas animistas ou vitalistas, es-
pecialmente fecundas em termos de imagens, mesmo que estas
Capítulo 6
216
do mundo (natureza e cultura). E esta articulação da introversão
e da extroversão, do passado e do futuro, é esta composição dos
níveis de imagens que Durand junta no termo "trajeto antropo-
lógico». Analisar um imaginário consiste sempre em esclarecer a
confusão que reina nestas camadas múltiplas, que só descambam
para o caos nos casos patológicos.
O trabalho da imaginação individual não é todavia entregue à
iniciativa de uma subjectividade fantasista. Imagens inconscientes
e conscientes obedecem a regras e a estruturas que regem a sin-
taxe e a semântica das imagens. Cada indivíduo organiza as suas
fantasias, sonhos e mitos pessoais servindo-se de dispositivos cria-
dores (símbolos, regras lógicas, operadores linguísticos como ver-
bos, substantivos, advérbios, etc.), que permitem construir mun-
dos imaginários coerentes, dotados de temáticas redundantes ou
obsessivas, de paisagens típicas, de situações actanciais dominantes
(unir-separar, reciclar). Embora cada indivíduo imaginante esteja
dotado de uma função de onirismo, de simbolização e de mitifica-
ção, nem todos atualizam o conjunto das práticas imaginantes. A
capacidade de transformar as imagens de um ser, para fazer com
que estas acedam a um nível estético ou simbólico novo e profundo
varia, o que constitui o mistério da criação artística ou a chave das
afinidades que deve reportar-se a uma estrutura narrativa mítica.
Os fenómenos religiosos fazem igualmente aparecer atividades de
mobilização das imagens que excedem os poderes comuns, com fre-
quência demasiado enfeudados relativamente à perceção sensível.
A imaginação ativa pode assim produzir influências à distância, psí-
quica (sugestão) ou mesmo física (parapsicologia), ou transformar-
-se em episódios visionários largamente explorados pelos êxtases,
transes, possessões, divinações ou xamanismos. A mística, por seu
lado, cultivou uma arte de tornar sensível o mundo suprassensível
Capítulo 6
218
por conseguinte ser informado e formado a fim de aceder progressi-
vamente a uma liberdade criadora, em vez de ser entregue à fantasia
ou ao delírio. Mas uma tal aculturação do imaginário exige o apoio de
uma meta-racionalidade apta para integrar na vida do espírito situa-
ções e processos baseados numa lógica não identitária, alternativa à
razão conceptual. Porque as imagens, longe de negarem a racionali-
dade, obedecem mais a uma outra dialética baseada na bipolaridade,
no terceiro incluído, no princípio de contradição (Gilbert Durand,
Jean-Jacques Wunenburger), que importa dinamizar se se quiser to-
nificar o imaginário de acordo com a noção germânica de Bildung,
que designa simultaneamente a tarefa educativa, no sentido em que
esta dá uma forma ao ser, e o poder de criar imagens, de dar figura
(Wunenburger, 1993: 59-69). Na medida em que não "temos"apenas
imagens, mas "somos"ou tomamo-nos também as nossas imagens,
tomamos a sua forma, criamo-nos a nós próprios através delas. Para
isso, precisamos de um "novo espírito pedagógico"(Bruno Duborgel),
ou mesmo de uma "pedagogia do imaginário"(Georges Jean), co-ba-
seada em simultâneo numa "poética do devaneio"(Gaston Bachelard)
e de uma "razão contraditória"(Jean-Jacques Wunenburger): "Sonhar
os sonhos e pensar os pensamentos, eis sem dúvida ditas disciplinas di-
fíceis de equilibrar"(Bachelard, 1968:45). E precisamente neste equi-
líbrio que assenta uma das principais tarefas de uma pedagogia do
imaginário, e que consiste em reconhecer simultaneamente níveis de
especificidade e de irredutibilidade entre a razão (ciência) e a imagi-
nação (poesia). Com efeito, uma pedagogia do imaginário deve saber
perturbar a razão e, se o conseguir, junta-se à atitude bachelardiana.
A este respeito, sabemos muito bem qual a importância que a obra
de Bachelard teve para que a razão (abstração científica), através das
"hormonas da imaginação"(1990: 19) enquanto "reservas de entusias-
mo"(1968: 107), tivesse uma "ascensão feliz"(1993: 30) rumo a um
Capítulo 6
220
acontecimentos fundadores de uma civilização (exemplo: a estru-
tura trifuncional indo-europeia evidenciada por Georges Dumézil,
1941). Embora todo o corpus imaginário pareça ter como função
antropológica o domínio do tempo organizando-o narrativamente,
tendo como fim último a desdramatização da morte, este vai, no en-
tanto, difratar-se em sistemas diferenciados de acordo com linhas
temporais, umas vezes cíclicas, outras vezes lineares. Podemos aliás
verificar que o imaginário de um tempo linear e progressista, prove-
niente do milenarismo joaquimita na Europa (século XII), favoreceu
particularmente a contaminação da cultura por uma racionalidade
iconoclasta, ao contrário do tempo cíclico que acolhe a maior parte
dos grandes imaginários religiosos (Mircea Eliade).
A modos de conclusão
Capítulo 6
222
conduzir o sujeito imaginante quer ao delírio, quer a uma exuberância
frenética onde a proliferação das imagens rompe com a lógica da sua
“classificação isotópica”. Tanto num caso como noutro, uma das con-
sequências mais imediatas para o imaginário é o seu empobrecimento
e degradação da sua semântica profunda.
Na direção apontada anteriormente, se a faculdade da imagi-
nação se ocupa da criação de imagens e da sua deformação, como
nos lembrou Gaston Bachelard, o imaginário é bem aquele conjunto
de produções, mentais ou materializadas em obras, com base em
imagens visuais (quadro, desenho, fotografia) e linguísticas (me-
táfora, símbolo, narrativa), formando coerentes e dinâmicos refe-
rentes a uma função simbólica no sentido de um ajuste de sentidos
próprios e figurados. Na base desta definição todo um horizonte se
abre diante do pesquisador em ordem a que abrace e compreenda os
desafios epistemológicos e as várias explorações do Imaginário, no-
meadamente no campo da mitopoética e lugar, para relembrarmos
aqui o tema que esteve na base do presente trabalho, e mesmo da
poética do espaço na senda de Gaston Bachelard: “O espaço captado
pela imaginação não pode permanecer o espaço indiferente à revelia
da medida da reflexão do geômetra. Ele é vivido. E ele é vivido não
apenas na sua positividade, mas com todas as parcialidades da ima-
ginação. Em particular, quase sempre ele atrai” (2012: 17). É neste
sentido, portanto, que podemos dizer que a nossa relação com o lu-
gar é menos vivido pelo lado material, isto é, físico e mais pela ima-
terialidade, leia-se pela imaginatividade, que nos une ao lugar onde
vivemos, por exemplo! Os valores de intimidade do lugar que nos
viu nascer, no qual permanecemos, tocam intensamente na nossa
interioridade e espicaçam as nossas lembranças. Pela imaginação,
certos lugares transfiguram-se de tal modo que o cosmos torna-se
um microcosmos.
Capítulo 6
224
DUBORGEL, Bruno (1983). Godinho». Lisboa: Editorial
Imaginaire et pédagogie. De Presença.
l’iconoclasme scolaire à la culture
des songes. Toulouse: Privat. DURAND, Gilbert (1993). Les
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DUMÉZIL, Georges (1941). Jupiter, l’Imaginaire. 11è éd. Paris: Dunod.
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Capítulo 6
226
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Cortez Editora.
WUNENBURGER, Jean-Jacques
(2007). O Imaginário. Trad. de
Maria Stela Gonçalves. São Paulo:
Edições Loyola.
228
Capítulo 6
CV: http://lattes.cnpq.br/9161515602433314
E-mail: dh@letras.ulisboa.pt
ORCiD: https://orcid.org/0000-0001-9680-916X
231
Paisagem como paradigma
político. Corpo e paisagem na
época das imagens técnicas
232
Landscape as a political para-
digm. Body and landscape in
the era of technical images
233
Capítulo 7
Paisagem como
paradigma político.
Corpo e paisagem na
época das imagens
técnicas
Dirk Michael Hennrich
Universidade de Lisboa / Fundação para a
Ciência e a Tecnologia
236
isto é, da criação de uma determinada visão do mundo, do
mundo como imagem.3
Inicialmente a Política aparece sempre como algo antagônico
a Natureza, sendo a Natureza percebido e concebido como o rei-
no poderoso e imprevisível que apenas através de uma silenciosa
declaração de guerra e um monstruoso esforço ‘político’ pode ser
controlada e dominada. Enquanto a Natureza era criação divina,
perfeita, em si fechada, ela hospedava, por intermediário para os
humanos, os deuses, como por exemplo o grande Pã da mitologia
grega, que não sem razão era considerado como o filho de Hermes,
o mensageiro entre os mortais e os imortais. A Política, compreen-
dida como arte de governar, como assunto dos muitos que habitam
a cidade, é sempre e ainda um assunto dirigido para a convivência
dos humanos com os humanos, dirigido pelos interesses humanos
e apenas humanos e contra as tendências não-humanos sejam eles
de ordem orgânica ou não orgânica. Surge então com a Política des-
de os seus inícios a necessidade da subjugação, regulamentação e
instrumentalização e em geral do controle e domínio do humano,
da Cultura, sobre o não-humano, a Natureza. Tudo aquilo que ante-
riormente era protegido, legislado, oferecido ou retirado e sobre-
tudo usado contra os interesses humanos, enquanto na posse dos
deuses, cabe cada vez mais e, definitivamente, a partir da Renas-
cença – e com o devir de uma ordem estritamente humana – sob a
legislação humana. A Natureza já não é obra divina impenetrável e
enigmática e animada por forças sobrenaturais, mas morta e dis-
secável, descritível e esteticamente experimentável. A polis grega,
mesmo ainda não existindo o conceito da paisagem na antiguidade,
se constituiu através da separação entre a cidade [polis] e o fora da
³ HEIDEGGER, Martin (1938) Die Zeit des Weltbildes, trad. O tempo da imagem do mundo, In Camin-
hos da Floresta, pp. 95-138, Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 2002.
Capítulo 7
238
uma secularização geral da percepção humana ou devido a uma
certa compensação como ressaltava Joachim Ritter.5 A época da
imagem do mundo é o tempo em que o humano começa fazer
e capturar uma imagem da Natureza como se a Natureza fos-
se algo fora do circuito da ordem humana que não pode ser
contemplado esteticamente, mas que também já não constitui
uma ordem fixa e preestabelecida. As cosmovisões da antigui-
dade e da idade média surgem apenas no segundo plano, atrás
ou ao lado da representação do humano, da fisionomia humana
ou das ações humanas. Percebemos isso nas imagens ou íco-
nes da idade média, nos quais as figuras formam e representam
uma cena religiosa, enquanto no fundo das imagens aparece
algo como uma paisagem. Aqui não se trata de uma visão da
Natureza, mas sim de uma introspecção, de uma visão de Deus
e da sua criação. Não se trata de uma visão do físico, mas sim
de uma visão do meta-físico.
Com o início da imagem, da imagem artística, é dado pela
primeira vez a introspecção e compreensão da e na Natureza [Ein-
sicht in die Natur]. O tempo da imagem do mundo é um tempo
da imagem da Natureza, da natureza morta, da paisagem, e tam-
bém da ideia da representação autêntica da Natureza nas ciências
modernas, constatando que o momento do advento da pintura
paisagista e da pintura da natureza avistada, é também o momen-
to do grande renascimento da descrição e catalogação do corpo
físico humano através da anatomia. Esta ocorrência demonstra
bem que as ciências surgiram das artes, que as ciências assim
chamadas exatas são artes, isto é, formas da descrição do mundo
⁵ RITTER, Joachim (1963), Landschaft: zur Funktion des Ästhetischen in der modernen Gesellschaft.
trad. Paisagem. Sobre a função do estético na sociedade moderna, In Filosofia da Paisagem. Uma
Antologia, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011.
Capítulo 7
240
o espectador que se encontra mirando a cena natural. Isso ocorre
exemplarmente na pintura paisagista do Romantismo, nas paisagens
dos pintores e poetas do século dezoito para o século dezenove,
sendo um dos exemplos mais conhecidos as pinturas de Caspar Da-
vid Friedrich. O terceiro passo ocorre com a pintura moderna, finais
do século dezenove, com representantes como Claude Monet e so-
bretudo Paul Cezanne em que o interesse pelo olhar da Paisagem e
do natural assume o centro da pintura e que inclui a ideia de poder
capturar a autêntica impressão sensitiva da Paisagem. Esta, por as-
sim dizer, última etapa da pintura paisagista surge ao lado do auge
da fotografia e da convicção de que a fotografia é capaz de imprimir
a autêntica aparição do natural em imagens e que o aparelho foto-
gráfico seria o lápis da natureza [pencil of nature].7
A coincidência da instauração e proliferação das imagens fo-
tográficas com as grandes ideologias políticas não parece aleatória
porque remete a uma transformação descrita por Michel Foucault
quando aponta, na sua História da Sexualidade, a uma aparelhagem
fundamental da sociedade ocidental a partir do século dezoito8.
O aparato fotográfico surge numa época em que os aparatos em
geral se mostram e revelam em todos os níveis, sendo Immanuel
Kant com a sua Crítica da Razão Pura uma expressão inegável do
descobrimento e ao mesmo tempo da invenção de um aparelho que
⁷ TALBOT, Henry Fox (1844), The Pencil of Nature, London: Longman, Brown, Green and Long-
mans.
⁸ FOUCAULT, Michel (1988), História da Sexualidade 1. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições
Graal. “Pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete-se no político; o fato de
viver não é mais esse sustentáculo inacessível que só emerge de tempos em tempos, no acaso
da morte e de sua fatalidade: cai, em parte, no campo de controle do saber e de intervenção do
poder.” p. 133. “Não quero dizer que a lei se apague ou que as instituições de justícia tendam a
desaparecer; mas que a lei funciona cada vez mais como norma, e que a instituição judiciária
se integra cada vez mais num contínuo de aparelhos (médicos, administrativos etc.) cujas
funções são sobretudo reguladoras.” p. 134.
Capítulo 7
¹⁰ FLUSSER, Vilém (1985), Filosofia da Caixa Preta, São Paulo: Editora HUCITEC.
242
animada. O Corpo-vivo e a Paisagem posicionam-se de modo igual
no contexto da dicotomia entre Natureza e Cultura. Eles nem são
um nem o outro, deste modo não são atingidos diretamente pela
Política das imagens técnicas. A imagem técnica atinge a Natureza
e a Cultura mas não o Corpo-vivo e nem a Paisagem; atinge e foto-
grafa, filma, digitaliza o corpo físico, mas não consegue capturar o
que está entre Natureza e Cultura. Como o Corpo-vivo é a síntese de
todos os sentidos no pleno pulsar da vida, a Paisagem é a síntese e o
encontro das mais diversas manifestações do natural. Corpo-vivo e
Paisagem são corpos de ressonância, corpos pulsionais, determina-
dos pelas disposições e atmosferas, pelo que não pode ser capturado
em imagens técnicas nem dissecado pelas ciências exatas. A Política
da Paisagem inclui antes de mais nada uma crítica da transformação
da percepção do natural através das técnicas de olhar, inicialmente
as lentes macroscópicas e microscópicas e a partir do século deze-
nove as imagens fotográficas e digitais até os nossos dias. E também
em seguida, no contexto do conceito do Anthropoceno, a questão da
reprodutibilidade de paisagens no decorrer da transformação e re-
criação do natural, do não humano e do humano em escala global.
O conceito da reprodutibilidade técnica provém do conhecido
ensaio de Walter Benjamin sobre a obra de arte na época da sua
reprodutibilidade técnica transpondo a mesma, da obra de arte, e
aqui da pintura paisagista, para as paisagens naturais ou por assim
dizer, da experiência efetiva e sensitiva da Natureza como Paisa-
gem. A questão central de Benjamin era a transformação da obra de
arte, a sua transvaloração, através do processo da sua reprodução
técnica e da perda da sua aura no decorrer da sua reprodutibilidade
técnica. Com a reprodução a obra de arte perde a sua unicidade,
perde-se a aura assegurada e emergindo da mesma, sendo esta des-
truição do seu valor supremo ao mesmo tempo uma destruição da
Capítulo 7
¹¹ BENJAMIN, Walter (1963), Kleine Geschichte der Fotografie, In Das Kunstwerk im Zeitalter seiner
technischen Reproduzierbarkeit, Frankfurt a. M.: Suhrkamp Verlag.
244
estáticas e mais tarde, na época das imagens digitais, em pontos e
pixels, atomizando o natural, criando átomos conforme o gesto da
física moderna. Ocorre uma instalação e um arranjo da Natureza, do
natural e todos os seus aspectos, das paisagens até os corpos vivos,
humanos e não humanos, em conformidade a esta nova ordem ima-
gética. A invenção da fotografia não é apenas uma técnica avançada
da câmera obscura conhecida já desde a antiguidade. Ela não é ape-
nas um passo no processo das técnicas que possibilitam uma trans-
crição mais detalhada do avistado, como por exemplo a câmera obs-
cura em relação ao caso da pintura. A fotografia é resultante e ao
mesmo tempo produtora de uma objetividade e uma objetivação
sem precedentes, que acompanha o desenvolvimento das ciências
naturais do Renascimento até os nossos dias. Causa e resultado da
especificação e especialização das ciências naturais, a objetivação
e anatomização do natural, da natureza exterior como também a
natureza interior, do corpo humano e todos os outros fenómenos
físicos, com a descoberta das mais diversas técnicas do olhar.
A fotografia é, logo do início, colocada como uma técnica que
copia a natureza, que fixa a realidade, que é infalível na sua repro-
dução e que supera na sua capacidade técnica de reprodução toda
a capacidade orgânica humana de reconhecer, captar e reproduzir
o natural, o mundo exterior, a assim chamada realidade. Mas a fo-
tografia, e aqui o filme e todos os derivados da técnica fotográfica
são incluídos, não é apenas uma forma bem específica de observar
e gravar os fenómenos mas também, como sabemos hoje, uma for-
ma específica de criar realidades ou mais precisamente Weltans-
chauungen [visões do mundo] e certamente Ideologias. A fotografia
é a produtora de Ideologias e Idolatrias. Ideologias porque estabele-
ce e delimita o espaço imaginativo de determinadas visões do mun-
do e idolatrias porque sustenta e alimenta tais ideologias com cada
Capítulo 7
246
uma visão de mundo específica e assim uma noção determinada do
natural em todas as suas expressões. Por isto o assim chamado An-
thropoceno, definido como a época em que o humano tornou-se um
supremo agente de todas as ocorrências globais, culturais e naturais,
políticas e climáticas, necessita uma crítica profunda da produção e
proliferação das imagens técnicas, da ideologia imagética. Tal crítica
é necessária, justamente para que a reprodução técnica de imagens
ideologicamente predeterminadas não produza paisagens ideologi-
camente determinadas: praças, jardins, paisagens, reservas naturais
como meras cópias, como produtos de uma imaginação reprodutora
e não criadora, isto é, a perda da singularidade das paisagens, da pai-
sagem como acontecimento único, a perda da sua aura, atmosfera,
disposição específica através da possibilidade da reprodutibilidade
técnica de paisagens na época do assim chamado antropoceno.
A criação e preservação de paisagens naturais, põe-se como um
problema essencial e grave que está intimamente ligado com a ques-
tão da imaginação e do imaginário, mas sobretudo da produção e re-
produção técnica das imagens fotográficas e digitais. Põe-se a ques-
tão: como dissolver a ideologia repressiva do natural, como inaugurar
um outro inconoclasmo, que dissolva a cristalização das ideologias
e idolatrias que se instauram através dos meios de comunicação? A
Ecologia precisa ser uma critica de ideologias, assim como a Filosofia
é uma crítica de ideologias, isto é, crítica conceitual e liquidação de
visões e visualizações do mundo [Weltanschauungen].12
Compreender a paisagem como paradigma político afasta-
-se da ideia ou da visão da paisagem como território, como es-
paço de domínio específico, como espaço delimitado, planeja-
do, distribuído e defendido internamente contra seu exterior.
A paisagem como paradigma político não corresponde a uma leitura
¹² ADORNO, Theodor W. (1973), Philosophische Terminologie 1, Frankfurt a. M.: Suhrkamp Verlag, p. 118.
Capítulo 7
248
contraste da Cultura mas sim a sua plena possibilidade, sendo a natu-
reza compreendida como a esfera da necessidade. As assim chamadas
‘leis naturais’ não apenas delimitam e encerram, mas elas, ao con-
trário, abrem o campo do desdobramento da cultura nos seus mais
diversos campos de saberes. A paisagem é o lugar do encontro, o lu-
gar da reunião, o lugar da redefinição da relação e da diferença entre
humano e não-humano, do objeto e não-objeto, sujeito e não-sujeito.
A época das ciências exatas e modernas é a época do fim da
Natureza. A época das ciências inicia-se com a Renascença, ini-
cia-se com o desenvolvimento das técnicas do olhar, com o
desenvolvimento das técnicas oculares para observar e dissecar a
natureza (morta), base do conhecimento das leis físicas e do seu
uso para os fins da técnica. A Natureza da ciência, a Natureza que a
ciência inventa, não é apenas nua; mais do que isto, ela é totalmen-
te descoberta e desprovida do enigmático e do desconhecido. E o
que aparece, neste fim da Natureza, é a Paisagem. A época da assim
chamada morte de Deus, da morte da Natureza e da morte do Humano
é igualmente a época do advento da Paisagem. Na época em que a
Paisagem substitui completamente o conceito da Natureza, ou no
sentido mais específico, em que o humano como força tectônica
assumiu o seu lugar na história da Terra com a pretensão de se co-
locar como o formador da terra, a arte não será mais compreendida
como a imitação do natural, mas como Vorahmung. Esta precipita-
ção [Vorahmung], mas não a imitação [Nachahmung] do natural,
necessita não apenas de um impulso criativo do artístico, mas do
impulso guiador, interrogador e dialogante da política – impulso
que é ausente na política ideologizada do presente.
A formação da terra pela mão humana, depois do fim da natureza
e antes do início de uma paisagem, uma natureza e um mundo total-
mente desenhado, necessita da Política. Estética e Política se revelam
Capítulo 7
250
Enfatiza-se que o Corpo-vivo e a Paisagem são definidos através da
presença da ausência, não são nem objeto físico nem corpo ana-
tómico. Eles são situados no entre, no invisível e se retiram da
objetivação. Corpo-vivo e Paisagem retiram-se de uma reprodução
técnica, cada corpo-vivo é único e inimitável, assim como qual-
quer paisagem, e eles não coincidem com a ideia de uma realida-
de objetiva. As imagens técnicas são simulacros, elas simulam um
mundo exterior, mas a ideia da realidade e sobretudo de uma única
realidade exterior é, em grande parte, uma consequência da ima-
ginação do mundo e da visão do mundo através de imagens, antes
de mais nada das imagens técnicas.
A Paisagem é um paradigma político e um conceito para uma
política ecológica do futuro porque, assim como o Corpo-vivo, é um
conceito que atinge os extremos do pensamento ocidental, trans-
gredindo o mero polemos entre Natureza e Cultura, sem instrumen-
talização nem objetivação; atinge a transversalidade e a reunião
dos opostos sem qualquer síntese dialéctica; sobretudo propicia
sensitividade e espaço para o inominado, lugar para o meta-físico,
em plena horizontalidade e imanência.
Capítulo 7
252
Capítulo 7
CV: http://lattes.cnpq.br/9043252126002200
E-mail: htassara@uol.com.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-5070-3252
255
Imaginação e poesia: entre a
tentação de ser soviético e a
vontade de ser russo. Pensan-
do sobre Andrei Roublev, um
filme de Andrei Tarkovski
256
Imagination and poetry: betwe-
en the temptation to be Soviet
and the will to be Russian.
Thinking about Andrei Roublev,
a film by Andrei Tarkovski
257
Capítulo 8
Imaginação e poesia:
entre a tentação de
ser soviético e a
vontade de ser russo1.
Pensando sobre Andrei
Roublev2, um filme de
Andrei Tarkovski3
Helena Tassara
FAAP – Pós-Graduação / Documentário:
Estéticas e Práticas
⁴ Título original em russo Sapetschatljonnoje Wremja, publicado pela primeira vez em alemão
como Die Versiegelte Zeit em 1986; traduzido, no mesmo ano, do alemão para o inglês com o
título de Sculpting in time. Reflections on the cinema e do alemão para o francês com o título de Le
temps cellé; e, finalmente, traduzido em 1990 do inglês para o português com o título de Esculpir
o tempo pela Editora Martins Fontes.
260
ânsia eterna pelo belo, energia espiritual, dom, milagre, revela-
ção, iluminação, sacrifício, postulado de fé, crença, união, espírito
de comunhão, Tarkovski está considerando arte, aquela que
se realiza verdadeiramente - na qual inclui a sua própria arte,
a sua poesia e o seu cinema - como uma forma de ligação,
comunicação, vínculo com Deus e com o Cosmos. Para ele,
“l’art est une prière”, ou, em tradução livre da autora, “a arte é
uma forma de oração”.
Trata-se de uma ARTE com letra maiúscula, uma arte maior,
uma arte que não renunciou à busca do significado da existência
como fez, segundo ele, a arte contemporânea. E o cinema assim
realizado, pura expressão dessa arte mística, transforma-se tam-
bém em religião. Mas não se trata de messianismo, e sim pura
expressão de um sentimento cristão.
Para Tarkovski, a arte cinematográfica com sua forma parti-
cular de reproduzir o mundo a partir do registro de uma impressão
do tempo real, já nasce carregando um novo princípio estético. E este
só pode se realizar, massivamente, a partir do que ele chama de
uma organização sequencial de ações tomadas da realidade. Nada
de artificialismos, simbologias excessivas, alegorias ou cinema de
montagem. Será? No mesmo livro referido anteriormente encon-
tramos estas palavras:
Capítulo 8
262
tenderá a criar qualquer coisa. É isso que o liga com seu Cria-
dor. O que é a criação? Para que serve a arte? A resposta para
essas interrogações se encontra em uma fórmula: ‘a arte é uma
forma de oração’. Isso diz tudo. Através da arte, o homem ex-
prime sua esperança. Tudo o que não exprime essa esperan-
ça, aquilo que não possui um fundamento espiritual, não tem
qualquer relação com a arte. Será, na melhor dos casos, uma
brilhante análise intelectual.”5
ANTES DE ROUBLEV
Capítulo 8
⁶ “Tarkovski est un artiste du XIXe siècle égaré dans le cinéma contemporain. Non pas qu’il ait renié les
possibilités du septiéme art - au contraire, son univers est fait de ces visions échappant aux récits littérai-
res -, mais il a toujours voulu déserter le “cinéma soviétique”, cet art forgé durant les années 20 puis glacé
par Staline. (...) En définitive, il est remonté plus loin. Tarkovski filme en amont de tout “art soviétique”,
échappe au XXe siécle, pour renouer avec le passé culturel russe. Il a constamment revendiqué ce “chemin
russe”, emprunté dès Andrei Roublev, puis balisé par Le Miroir ou Stalker. (...) Tarkovski (a) planter ses
racines dans le terreau exclusif (...) de la culture russe. (p. 9) (Tradução livre da autora ).
264
Assumo, em princípio, a verdade dessas palavras, tomando o rumo
traçado pelo crítico, para poder pensar sobre o segundo filme de
Tarkovski, Andrei Roublev, tema de partida desta análise.
Se esse foi o momento em que ocorreu a virada, se foi ali que
foram feitas as escolhas, em que se definiram as formas de expres-
são, em que a estética proposta para um projeto de Tarkovski para
o cinema se materializou pela primeira vez, pergunto como teria
sido essa passagem quase ritualística do jovem artista que gestou o
cineasta? Em outras palavras, como se definiu o lado para o qual a
balança penderia, entre a tentação de ser soviético e a vontade de
ser russo? E como foi o processo que o levou a encontrar sua posi-
ção no Pantheon dos grandes artistas que vieram para ficar?
Segundo o próprio Tarkovski, na entrevista para Laurence
Cossé referida antes, quando, ainda no início dos anos 60, mal
tendo terminado seus estudos na escola nacional de cinema de
Moscou, aceitou rodar de encomenda A infância de Ivan - filme
baseado em uma novela de Bogomolov que conta a vida cotidiana
no front durante a segunda guerra mundial, a partir da trajetória e
das vivências de um adolescente -, sabia que assumia a responsabi-
lidade de levar adiante uma produção com prazos apertadíssimos e
orçamento pela metade, pois a outra parte já havia sido consumida
pela equipe anterior sem que os resultados houvessem sido satis-
fatórios. Tarkovski sabia, também, que não havia ninguém interes-
sado em assumir a continuidade do projeto.
Para ele estava muito bom: apesar de ter de se manter fiel à
uma história definida a priori e, com ela, de certa forma, conservar
também um estilo pré-determinado - já que se tratava de realizar
um filme de guerra com características já definidas e, ao mesmo
tempo, trágicas e poéticas - para aceitar a empreitada, fez algu-
mas exigências.
Capítulo 8
266
Central, um pouco mais frouxo após a morte de Stalin, havia concedi-
do aos artistas soviéticos “o direito de escolher a forma de suas obra,
desde que eles não se omitissem de lhes dar um conteúdo socialista”.
O filme, como era apresentado então, passava a ser um típico repre-
sentante da chamada “nouvelle vague” soviética”. (p.10)
Apresentado em Veneza, em 1962, A infância de Ivan foi pre-
miado com o Leão de Ouro. Iniciou-se, então, uma grande polêmica
em meio à crítica ocidental, que trouxe o nome de Andrei Tarkovski
para o cenário cultural efervescente daqueles anos, concedendo-lhe
uma reputação cada vez maior. O clima geral transformava o jovem
Andrei na encarnação da renovação do cinema soviético.
Mais do que discutir apenas o trabalho de um jovem cineasta,
essa polêmica se movimentava no sentido de definir a existência
- ou não! - de uma escola nascente dentro do cinema soviético,
se essa escola ou se os novos cineastas teriam fôlego suficiente
para suplantar - ou não! - as diretrizes traçadas pelos burocratas
e propor algo novo.
O fato é que, mesmo entre críticas ao formalismo e ao precio-
sismo de certas seqüências, para o Ocidente, a partir de A infância
de Ivan, Tarkovski passou a representar a confirmação dessa espe-
rança no renascimento do cinema soviético.
Para Tarkovski, pessoalmente, nada disso interessava. Ele pa-
recia não gostar absolutamente que seu filme - apesar de todos os
elogios e da lisonjeira lista de defensores que possuía, e que in-
cluía Sartre - tivesse sido compreendido e interpretado a partir de
um ponto de vista histórico-filosófico, e que as idéias e os valores
ali contidos suplantassem, em importância, o filme em si mesmo.
Para ele, seus filmes, seu trabalho, sua obra, vistos como poesia,
deveriam ser compreendidos, estritamente, a partir do que eram:
como obras de arte realizadas por um artista.
Capítulo 8
⁸ No original: Je recherchais une défense artistique, et non idéologique. Je ne suis pas un philosophe,
je suis un artiste.
⁹ Nas palavras de Antoine DE BAECQUE: “Ainda muito influenciado pelos anos de escola, rec-
heado de citações e de figuras de estilo, a obra desse jovem cineasta ainda não tinha atingido
a maturidade da competência de um projeto do Mosfilm. Mas, finalmente, hoje, o person-
agem de Ivan, criança-anormal, guarda uma força real. O restante – ritmo, pontos de vista,
intrigas... - serão, em seguida, abandonados pelo cineasta russo. “A infância de Ivan” pode,
dessa maneira, funcionar como uma brilhante variação em torno de um tema e de uma
estética sem surpresas.” ”Encore très influencée par les anées d’école, truffée de citations et de
figures de style, l’oeuvre de ce jeune cinéaste non encore parvenu à maturité relève en partir du
projet initial du Mosfilm. Seul finalement le personnage d’Ivan, enfant-monstre, garde aujourd’hui
une réelle force. Le reste - rytme, angles de vue, intrigue... - sera ensuite abandonné par le cinéaste
russe. L’enfance d’Ivan pouvait ainsi faire figure de brillante variation à partir d’un thème et d’une
esthétique sans surprise”.(p.11, tradução livre da autora).
268
NASCE ROUBLEV
Mas por que filmar a vida de Andrei Roublev? Por mais que em
seus relatos Tarkovski deixe claro que essa idéia tenha surgido
quase ao acaso, como uma sugestão de amigos em uma mesa de
bar, e que a princípio tenha lhe parecido um argumento irrea-
lizável, até mesmo detestável e absolutamente distante de seu
universo, ela foi rapidamente encampada. Talvez para usufruir
de seu sucesso momentâneo junto às autoridades soviéticas pe-
los louros obtidos com A infância de Ivan e aproveitar os feste-
jos pelo 6o centenário do nascimento de Roublev, “o pintor de
ícones que mesmo a Rússia soviética jamais pôde esquecer”, nas
palavras de Antoine de Baecque. E o argumento, conveniente a
todos, foi proposto e aprovado.
Em 1961 o roteiro começou a ser escrito. Em 1962 o contra-
to de produção foi assinado. Em dezembro de 1962, o roteiro foi
aceito. Em abril de 1964 as autoridades soviéticas liberaram o
roteiro para as filmagens, que foram realizadas entre setembro
de 1964 e novembro de 1965. Em agosto de 1966, Andrei Roublev
estava pronto para ser exibido.10 Porém, uma vez pronto, o filme
demorou alguns anos para ter sua exibição permitida pelas auto-
ridades soviéticas.11
¹⁰Esses dados constam do livro de Mark LE FANU, The cinema of Andrei Tarkovski. Londres:
British Film Institute, 1987.
¹¹ Antoine DE BAECQUE diz que: “O filme, uma das mais importantes produções de época, foi final-
izada em 1966. As autoridades do Goskino não gostam do resultado e postergam seu lançamento.
Em 1967, o delegado geral do Festival de Cannes em Moscou visiona uma cópia de trabalho e con-
vida Tarkovski. Sob o pretexto de uma nova montagem, o Goskino promete o filme para a edição
do ano seguinte. No entanto, o Festival de 1968 não recebe nada. Apenas em fevereiro de 1969, dois
anos após ser finalizado, Andrei Roublev é projetado em avant-première em Moscou, para alguns
milhares de convidados e, depois, em maio, em Cannes, fora de competição por solicitação dos
Soviéticos. O filmes ainda esperará mais dois anos até ser mostrado aos espectadores russos.” “Le
Capítulo 8
film, une des plus importantes productions de l’époque, est achevé en 1966. Les autorités du Goskino ne
l’aiment pas et reportent sa sortie. En 1967, le délégué général du Festival de Cannes visionne à Moscou une
copie de travail et invite Tarkovski. Prétextant un nouveau montage, le Goskino promet le film pour l’an-
née suivante. Le Festival de 1968 ne voit pourtant rien venir. Ce n’est qu’en février 1969, deux ans après son
achèvement, qu’Andrei Roublev est projeté en avant-première à Moscou devant quelques milliers d’invités,
puis présenté, en mai, à Cannes, “hors sélection nationale” à la demande des Soviétiques. Le film attendra
deux nouvelles années avant d’être montré aux spectateurs russes.” (p.13, tradução livre da autora).
12 “En 1966, Andrei Roublev, le produit fini, aboutissement d’un très long travail et d’une
intense réflexion sur l’art (...) désole les officiels. Comme si le cinéaste avait trahi leur confiance.
Avec ce second film, naît pourtant le véritable Tarkovski. Le Russe délaisse le Soviétique.
La césure est en effet complète. Andrei Roublev s’ouvre sur une expérience magnifique, celle de l’hom-
me volant. Le film se poursuit sur le ton du doute: le peintre s’interroge et n’arrive plus à produire.
Cependant le style tarkovskien s’est affermi: le temps est là aux certidutes. Le cinéaste assume son
rythme propre et propose une esthétique de la lenteur. C’est ce contraste entre la fragilité des êtres et les
certitudes esthétiques qui surprend. (...) Il reunie l’experience de toute avant-garde mais montre avec
certitude qu’il a trouvé un chemin.” (p.11-12, tradução livre da autora).
270
Além de decepcionar as autoridades soviéticas, tomando um rumo
que desviava ideologicamente do que era esperado, foi com esse ar-
gumento que, pela primeira vez, Tarkovski deixou claro que havia
encontrado um caminho para a sua arte cinematográfica, registran-
do suas idéias em imagens e sons esculpidos no tempo.
Aqui, para efeito dessa reflexão, pergunto se teria sido apenas
coincidência que tal cisão - referida por de Baecque como o mo-
mento em que o cineasta fez uma opção estética e ideológica pelo
passado russo em detrimento do modernidade soviética - tenha se
realizado exatamente a partir de um argumento centrado na figura
de uma personagem histórica habitante do período que precedeu a
formação da Rússia como nação, em torno do qual circulavam to-
dos os elementos fundadores dessa mesma nação, os quais foram
calma e cruamente apresentados, um a um, ao longo do filme.
Tarkovski estaria, então, afirmando sua crença no passado
fundador da nação russa e estabelecendo ali suas raízes estéti-
cas, ao mesmo tempo em que apresentava e discutia a fragilida-
de e o sofrimento daquele que, num momento crucial de insta-
bilidades sociais e políticas, como ele próprio, sofria na busca
pela criação de uma arte coerente e verdadeira, aquela que per-
manece para a eternidade?
Nesse momento único de definição estética, se o argumento
fosse outro - para ficar em um de seus filmes mais conhecidos, por
exemplo, o argumento de uma ficção científica como Solaris ou de
uma ficção atemporal como Stalker - talvez Tarkovski tivesse feito
primeiro uma opção estética diversa, que o afastaria desse passa-
do russo que lhe é tão caro e que é tão claramente defendido em
Andrei Roublev, demorando um pouco mais para juntar as peças
que comporiam sua forma particular de representar o mosaico do
mundo, através do tempo esculpido.
Capítulo 8
272
informações disponíveis sobre a vida do pintor de ícones são tão
fragmentadas quanto àquelas relativas à vida de qualquer artista
que viveu na Rússia dos remotos tempos medievais. Nem mesmo a
data de seu nascimento é precisa.14
Sabe-se ao certo apenas que em 1390 ele já havia se instalado
como monge no Monastério da Trindade e de São Sérgio (Troitse-
-Sergeyeva) em Zagorsk, próximo de Moscou, cuja principal figura,
líder religioso e político, era Sergey Radonezhsky - mais tarde, reve-
renciado como um dos maiores e mais importantes santos russos.
Seguindo a trajetória de sua produção de ícones, pode-se inferir,
também, que no final da década de 90, Roublev ajudou na decora-
ção da Catedral da Dormição. Em 1400, tornou-se monge no Monas-
tério Andronikov em Moscou (atualmente o Museu Roublev). Em
1405, esteve com o importante pintor de origem bizantina Teofanes,
o Grego, trabalhando nas pinturas para a Catedral da Anunciação,
também em Moscou. Em 1408, foi chamado à cidade de Vladimir
para trabalhar em outra Catedral da Dormição. No restante de sua
vida, portanto até 1430, Roublev permaneceu no Monastério Andro-
nikov, tendo retornado brevemente ao Troitse-Sergeyeva entre 1411
e 1420, onde pintou seu mais famoso ícone entre todos os ícones
famosos que deixou para a humanidade admirar: a pintura alegórica
da Santíssima Trindade, deixada em memória de São Sérgio.15
¹⁵ Segundo nos conta Mark LE FANU: “O trabalho remanescente de Roublev não é numeroso.
(…) Aqueles que viram esses trabalhos nos falam de sua extraordinária harmonia e beleza.
As cores são brilhantes e opalescntes: rosas, lapis-lazulis, ouro pálidos. As formas humanas
são arredondadas mas não macias; as xpressões faciais dos santos e figuras sagradas carre-
gam, ao mesmo tempo, austeridade e compaixão. A importância da arte-histórica de Roublev
parece residir no estabelecimento de uma maneira particular russa de representar o sagrado,
rompendo com uma influência predominantemente grega (representada no filme pela severi-
Capítulo 8
dade angular de Theophanes), que teve continuidade no século seguinte com o pintor russo
Dionysys of Theraponte. Mas a fama de Roublev se extendeu de tram maneira que, em 1531, o
conselho da Igreja proclamou seu estilo como o verdadeiro padrão da ortodoxia artística que
deveria ser seguido perpetuamente.” “The extant work of Roublev is not numerous. (...) Those
who have seen these works speak of their extraordinary harmony and beauty. The colours are shim-
mering and opalescent: pinks, lapis lazulis, pale golds. The human forms are rounded but not soft;
the facial expressions of the saints and holy figures are at once austere and compassionate. Roublev’s
art-historical importance seems to have been in the establishing of a particularly Russian mode of
holy representation, breaking away from predominantly Greek influence (representated in the film by
the angular severeties of Theophanes). This grave humanism was continued in the following century
by the next great Russian painter, Dionysys of Theraponte. But so wide was Roublev’s fame that a
Church council in 1551 proclaimed his style as the true standard of artistic orthodoxy ‘to be followed
in all perpetuity” (p.35-6, tradução livre da autora).
¹⁶ “Heureusement, on sait très peu de choses sur la vie de Roublev, ce qui nous a permis toute liberté
d’action, liberté qui était pour nous d’une importance primordiale. (...) Tout cela a été inventé. Mais,
avant cette invention, nous nous sommes bien entendu documentés, nous avons beaucoup lu. Nous
avons, en quelques sorte, inventé la vie d’Andrei Roublev dans les limites historiques qui étaient en
notre possession. (...) J’ai inventé un Roublev, mais j’en accepterais d’autres versions.” (tradução
livre da autora).
274
Na construção de seu filme, Tarkovski trabalhou com a idéia
de que o tempo passado no Monastério da Trindade e o contato
com Sergey desde a tenra juventude, influenciaram definitivamen-
te o trabalho de Roublev e a sua formação como homem e intelec-
tual de seu tempo.
Roublev viveu em uma época de medo, de guerra civil, de in-
vasões de povos tártaros e mongóis, de lutas fratricidas, de prínci-
pes em busca do poder a qualquer custo, de traições e de alianças
espúrias, de violência e instabilidade. Lutas sem fim provocadas
por príncipes que, por vários séculos, pretenderam unir pela força
povos de origens bastante díspares. Habitantes das florestas e pân-
tanos que ocupam as terras que ligam os mares do norte ao Mar
Negro e ao Mar Cáspio, muitos deles de ascendência pagã, esses
povos resistiam à idéia da organização de uma mesma nação Rus,
que se pretendia construir em torno do poder dos líderes espiritu-
ais religiosos da Igreja Ortodoxa, de origem bizantina.
Nessa atmosfera, a trindade fundamental consubstanciada nas
idéias de amor, de comunidade e de fraternidade, transformava-se
em lema político, única forma de sobreviver e de alcançar a almejada
nação, independente e religiosamente hegemônica, anseio dos ho-
mens que viviam nos monastérios e nos palácios. Para o Roublev de
Tarkovski, esta teria sido a principal fonte de inspiração evocada para
a criação e produção do ícone que representa a “Trindade”, a qual
transformou-se em seu mais famoso e conhecido trabalho, símbolo
da criação divina em todos os sentidos. Aqui a “Trindade” é, também,
o objetivo final do filme, imagem para onde o espectador vai sendo
conduzido, passo a passo, no desenlace da seqüência de imagens e de
fatos escolhidos para compor a construção de sua narrativa.
A partir do exemplo de Roublev, Tarkovski pretendeu explorar a
questão da psicologia da criação artística, analisando a mentalidade e
Capítulo 8
276
No entanto, essas obras sobreviveram aos séculos, e ainda têm
existência palpável. Ainda que seja nas paredes dos museus, seu
significado espiritual e humano persiste, está vivo e deve continu-
ar compreensível para a humanidade do século XXI. E, sendo arte,
ainda tem a capacidade de emocionar.
Partindo daí, Tarkovski optou por uma abordagem que, to-
mando este fato como elo de ligação entre as pessoas daquele tem-
po e as da atualidade, permitiu o afastamento de toda e qualquer
obrigação de fidelidade museológica ou histórica na representação,
na reprodução e na ambientação construída para seu filme.
Capítulo 8
278
Capítulo 8
de Andrei Tarkovski
Helena Tassara
Maribel Mendes Sobreira
Universidade de Lisboa
CV: http://cful.letras.ulisboa.pt/people/ma-
ribel-sobreira/
E-mail: maribel.sobreira@campus.ul.pt
ORCiD: https://orcid.org/0000-0001-9852-5750
281
Cidade como chôra e abrigo:
sobre a essencia da arquitec-
tura
282
meio ambiente. Enraizados na
undação (Grund) da existência,
as cidades estão entre o ato
do pensamento e o ato da
construção. O objetivo deste
capítulo é
responder à seguinte pergunta:
se todos nós temos a capacida-
de de conceber, em pensamen-
to, uma casa, pode esse gesto
em si mesmo ser considerado
uma parte de uma cidade, e
como isso influencia a nossa
leitura da cidade?
283
City as chôra and shelter: on
the essence of architecture
284
The aim of this chapter is to
answer the following question:
if we all have the capacity to
conceive, in thought, a house,
can that gesture in itself be
considered a part of a city, and
how does that influences our
reading of the city?
285
Capítulo 9
1 “Pues el principio, cuando arraiga en lo humano como una especie de divinidad, lo salva
todo con tal de que se le tributen por parte de cada uno de los que operan las honras que le
son debidas.”, Las leyes / Platon ; ed. bilingue, traduccion, notas y estudio preliminar por Jose
Manuel Pabon y Manuel Ferandez-Galiano. - Madrid : Instituto de Estudios Politicos, 1960. - 2
vol. - (Clasicos politicos). - Texto paralelo em grego e espanhol.
2 In Biblissima. http://outils.biblissima.fr/lemmatiseur_grec/index.php?pos_ind=6729348. E
Perseus, http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.01.0167:book=1:sec-
tion=346d. Visitados a 15-06-2014.
3 In: A greek english lexicon of the new testament and other early christian literature, pp.561-564.
288
“EX.35:32 tornou-o apto a idealizar obras, a trabalhar o ouro, prata e o
bronze;”5
por:
ou:
6 In Katabiblon. http://en.katabiblon.com/us/index.php?text=LXX&book=Ex&ch=35&inter-
lin=on#v32. Visto em1 7-06-2014.
7 Op. cit.
Capítulo 9
para:
10 Op. cit..
290
adquirida através do estudo ou da prática, um conhecimento da
natureza técnica”11.
É curioso depararmo-nos com a ideia de que a palavra, como
a conhecemos hoje, com que nomeamos a disciplina arquitectura
tenha aparecido depois, quando se tentou teorizar o métier do ar-
quitecto. Pois existiam outros conceitos para nomear a arquitectu-
ra, como vimos acima, o οίκοδομικήν que Platão nos seus diálogos,
como veremos no segundo capítulo, utiliza quando se quer referir
à Arquitectura. Nesta análise, podemos notar que a relação com a
ideia de arquitectura nasce de uma correspondência empírica com
a envolvente, carregando uma carga de concepção simbólica e mi-
tológica que molda a relação cognitiva com a envolvente que, neste
sentido, é intuída e pensada universalmente.
Refugiar-nos-emos nas palavras de Tomás de Aquino, para ex-
plicitar e tornar mais clara a noção de que a arquitectura reside na
universalidade de ser intuída e criada no mundo das ideias, “a casa
existe de antemão na mente do construtor, e a isto pode chamar-se
ideia da casa, porque o artífice intenta fazer a casa semelhante à for-
ma que concebeu na sua mente.”12. A casa surge na mente/ideia, mas
ela surge – de uma forma desapercebida – primeiro na sensação/
intuição que só depois é conceptualizada pela razão, sem se aperce-
ber da intuição, acreditando que a ideia surgiu apenas no intelecto.
Partindo da premissa de que existe uma universalidade no
acto de pensar uma casa, seguindo, por exemplo, Adolf Loos, que
sustenta que a “arquitectura desperta estados de ânimo nos ho-
mens. (...) Se encontrarmos um montículo num bosque, com seis
11 DAMISCH, Hubert, in: Enciclopédia Enaudi, vol.3, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda,
1984, p30.
12 Conforme citado em: FERREIRA, J.M. Simões, História da Teoria da Arquitectura no ocidente,
edições Vega, p.21.
Capítulo 9
14 In ihttp://www.arquitectura.uminho.pt/uploads/eventos/EV_1817/20081001449363413750.pdf.
Visitado a 17/06/2012.
16 “Fundamento é aquilo, sobre o qual se apoia tudo o que para todos os entes já existe como
o sustentado.” HEIDEGGER, Martin, O Princípio do Fundamento, Lisboa, Edições Instituto Piaget,
1999, p. 181.
292
ser humano sobre a Terra, para quem a ideia de casa não existia
como conceito, a sua procura de abrigo surge de uma necessida-
de física, mas o que acontece antes dessa necessidade física, que
“pré-conceito” inteligível se dá no ser humano para que ele possa
pensar o abrigo?
Antes de qualquer conceptualização, o ser humano traz consi-
go as coordenadas gravitacionais que o fazem andar sobre a terra e
conhecer a sua posição espacial no território, ou seja, altura; largu-
ra; profundidade; alto; baixo; esquerda; direita; longe; perto. É com
estas indicações – que subtilmente o constituem e fazem parte da
sua intuição do mundo – que parte para a construção de espaço
habitável, ou seja, já tem em si arquitectura, isto é, é já arquitectura.
O ser tem arquitectura dentro de si, não há uma relação de exterior,
de dentro e fora com o objecto, porque ele só existe como objecto
quando o ser humano se explica por conceitos, conceptualizando
a sua experiência subtil com o espaço. O ser humano já traz consi-
go as referências espaciais antes do espaço físico e material. O ser
humano primitivo descobre a gruta por ter já em si a capacidade de
intuir um espaço; depois da sua descoberta, apercebe-se de si e do
que o envolve: conceptualiza a descoberta feita pela intuição.
No livro O Mito do Eterno Retorno, Mircea Eliade explicita-nos
a necessidade que o ser humano arcaico tinha de fazer a ligação
com o Cosmos, de se ligar ao sagrado suspendendo o tempo cro-
nológico através do Lugar. Essa suspensão acontecia quando, por
exemplo, construía - esse acto de edificar algo - religava-o ao ar-
quétipo original da criação do Cosmos. O rito de construção era a
possibilidade de “restaurar o instante inicial”17, através da imitação
17 ELIADE, Mircea, O Mito do Eterno Retorno, Lisboa, Edições 70, 2000, p.91.
Capítulo 9
18 dem, Ibidem.
20 “ (…) só se reconhece como real na medida em que deixa de ser ele próprio ( para um
observador moderno) e se contenta em imitar e repetir os gestos de um outro (…) só se recon-
hece como real, isto é, como "verdadeiramente ele próprio», na medida em que deixa precis-
amente de o ser.”, Op. cit., p.49.
294
Montanha Mágica torna-se Centro através da sua sacralização, ad-
quirindo realidade ontológica, associando-a à criação do Mundo.
Para Mircea Eliade “ o "Centro"é pois a zona do sagrado por
excelência, da realidade absoluta” que transforma o tempo crono-
lógico em tempo mítico, dando-se a suspensão temporária no pró-
prio acto de edificação, porque “ao construir o templo, não se cons-
truía apenas o Mundo, construía-se também o Tempo Cósmico”.
Para o ser humano arcaico o rito de construção não passava
apenas pelo conforto vital, mas pela sua ligação à Grande Alma
do Cosmos. “Não é assim de estranhar que a mais elementar
construção sagrada consista na marcação de um ponto na pai-
sagem: erguer um menir em direcção ao Céu é construir uma
montanha sagrada (…)”22 que através de “revolver” a Natureza,
com a artificialidade do seu acto, mantinha-se em contacto com
o Espírito do Lugar, mais tarde denominado como Genius Loci
pelos Romanos.
A arquitectura é neste sentido, a conceptualização da ligação que
o ser humano arcaico tinha com o lugar, passa do campo da vivência
sensitiva para a racionalização do acto da criação construtiva, a arqui-
tectura dá corpo à relação intuitiva com a Natureza. A interacção com
o lugar passa a ser intelectualizada, como podemos ver nos escritos do
arquitecto Vitrúvio, o centro Cosmológico arcaico transfere-se para o
umbigo do Homem, este passa a ser a medida. Não é, por acaso, que na
Grécia antiga, nomeadamente em Platão, para denominarem arquitec-
tura não usavam o termo ἀρχιτεκτονίας, como vimos explicitado acima,
mas antes oikodomē que tem na sua concepção simbólica uma relação
ontológica com o lugar de pertença onde o acto de edificar tem lugar.
22 RABAÇA, Armando, Entre o Corpo e a Paisagem: Arquitectura e lugar antes do genius loci, Coim-
bra, Departamento de Arquitectura, Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de
Coimbra, 2011, pp.35-36.
Capítulo 9
24 Idem, Ibidem.
296
flores, canto e graça envolvem a casa. " (Fr.1) e " Ramos de pinho
circundam a casa firme"(Fr.17).
A Arquitectura, na sua pré-concepção, nasce da necessidade,
como afirma Demócrito, quando defende que o que fez com que
se criasse arquitectura foi a necessidade e que, por este motivo, as
suas criações não estão no plano do supérfluo mas antes no plano
vital para o Homem. Por a arquitectura imitar o modelo da natu-
reza, este facto confere-lhe uma importância ontológica e superior
às outras artes, como a música, pintura, etc., porque para além de
satisfazer a necessidade que o ser humano tem de habitar a ter-
ra, confere-lhe também a religação ontológica e metafísica com o
modelo primordial do Cosmos, replicando-o no mundo sensível,
religando o ser humano ao universo.
Para Mircea Eliade a ontologia arcaica tem uma estrutura pla-
tónica, este considera Platão como “(…) o filósofo por excelência
da "mentalidade primitiva», isto é, como o pensador que conseguiu
valorizar filosoficamente os modos de existência e de comporta-
mento da humanidade arcaica.”25 Se analisarmos os textos de Pla-
tão com as referências ao ser humano arcaico percebemos a sua
relação com o arquétipo original da criação e da transformação do
Caos em Cosmos, da necessidade de entender o que o circunda,
como nos diz - citado por Maurício Puls 26- no Protágoras: “o ho-
mem participava da herança divina e, devido ao parentesco com os
deuses, foi o único dos animais a acreditar neles. Assim, começou
a construir altares e imagens suas. Depois, rapidamente dominou a
arte dos sons e das palavras e descobriu a casa, vestuário, calçado,
abrigos e os alimentos vindos da terra” (321d-322a).
25 ELIADE, Mircea, O Mito do Eterno Retorno, Lisboa, Edições 70, 2000, p.49.
Capítulo 9
298
O ser humano traz consigo, na intuição, a arquitectura, e por
isso, a arquitectura situa-se no campo do “pré-conceito”, manifes-
ta-se antes de qualquer conceptualização, está no ser humano: ela é
o Ser, ambos uma única coisa. A arquitectura é ser-se na realização
ontológica, faz-se através de vínculos e de relações de afeição, não
é uma mera massa intervencionada pelo Homem, mas tem uma
(determinada) realidade própria, que através da identificação dá
sentido e vida ao espaço que se torna habitado. Em suma, pensar a
arquitectura é pensar o ser humano e a sua relação com a Natureza;
é universalizar a relação subjectiva do lugar através da carga simbó-
lica que este lhe desperta.
No livro Uma pequena História do Mito, Karen Armstrong di-
z-nos que “o mito lida com o desconhecido: com aquilo que não
tínhamos palavras, inicialmente”28, lida com o que não consegui-
mos nomear, servindo-nos das palavras de Samuel Beckett, com
o Inominável. Mas essa não-nomeação por ser desconhecida pelos
nossos mecanismos racionais, transforma-se em comunicação para
que assim o ser humano possa entender e dar forma ao Inominável.
Esse serve-se do mito para compreender a realidade que o circunda
e o faz ser.
Entendemos o mito como o suporte material da compreen-
são do ser humano em relação aos fenómenos que surgem, para
que assim possa participar no processo Cosmogónico da criação
do mundo, fazendo a ligação com o Cosmos, suspendendo o tempo
cronológico. Essa suspensão acontecia quando, por exemplo, cons-
truía - esse acto de edificar algo – religando-o ao arquétipo original
da criação do Cosmos.
Por isso a casa é o abrigo primordial. Ela é o espaço onde nos
sentimos seguros, onde as nossas lembranças e vivências estão
28 AMSTRONG, Karen, Uma pequena História do Mito, Lisboa, Editorial Teorema, 2006, p.9.
Capítulo 9
29 “Nessa comunhão dinâmica entre o homem e a casa, nessa rivalidade dinâmica entre a casa
e o universo, estamos longe de qualquer referência às simples formas geométricas. A casa vivi-
da não é uma caixa inerte. O espaço habitado transcende o espaço geométrico.”, BACHELARD,
Gaston, A Poética do Espaço, São Paulo, Martins Fontes Editora, 2005, p.62.
300
tre o visível e invisível “o quotidiano humilde e a realidade final, o
relativo e o absoluto. O “cipreste no pátio”, a flor à nossa frente, a
pedra sob os nossos passos são os caminhos que levam para além
do além do mais além.”34
34 Idem, Ibidem.
Capítulo 9
38 ZUMTHOR, Petter, Pensar a Arquitectura, Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 2009, pg.86.
302
quer dizer: eu habito, tu habitas. O modo como tu és e eu sou, a
maneira pela qual nós, os seres humanos, somos na terra é baun,
o habitar.”39 Ou, dito de outra forma, “o homem habita quando é
capaz de concretizar o mundo em construções e coisas.”40, quando
consegue dar forma ao eu contenho e sou contido, à necessidade
que o ser humano, tanto o arcaico como o moderno, tem em se
re-ligar através do Lugar.
Se o paradigma mítico era a consciência de que o ser humano
só pertencia ao Mundo pela e na existência do Cosmos/Divino, fa-
zendo a sua ligação através do rito de construção. Na modernidade
esse paradigma altera-se, como defenderá Feuerbach41, Deus é uma
construção do Homem, só existe no pensamento e não fora dele,
não tem realidade material, sustenta-se nele para compreender a
sua mortalidade.
Esse paradigma moderno aliado ao diagnóstico da falência da
crença no religioso que Nietzsche faz, proclamando a morte de
Deus, faz com que o modernismo perca a âncora que o mantinha
ligado ao Cosmos, passando este a fazer a ligação consigo mesmo.
O arquitecto42, foi perdendo o seu enraizamento, para se tor-
nar assim o Cosmocrata43, já não é o mediador entre o Caos e o Cos-
mos, mas entre caos industrial e o Homem, para isso, por exemplo,
40 Idem, Ibidem.
42 Entendido aqui no sentido actual do conceito, aquele que projecta e pensa o espaço to-
pológico aristotélico.
43 ELIADE, Mircea, O Mito do Eterno Retorno, Lisboa, Edições 70, 2000, p.25.
Capítulo 9
304
olharmos para a sua filosofia não poderá ser a mesma. O filósofo
não entende a arquitectura como sendo uma mera correspondên-
cia mimética com o mundo sensível como é o caso da Arte, no-
meadamente a Pintura. Apesar de ambas as áreas nos parecerem
similares, são, como veremos, bastante distintas entre si. Dada
esta constatação, pretendemos demonstrar a importância fulcral
do pensamento de Platão para uma teoria e filosofia da Arquitectu-
ra, defendendo que este poderia ser incluído como antecessor de
Vitrúvio, na conceptualização da arquitectura.
Partindo da ideia de que para Platão a Arquitectura é uma das
disciplinas indispensáveis da vida humana, que este classifica (Fi-
lebo 56b-c) como sendo uma ciência pura, onde através de critérios
matemáticos e outros como: pesar, medir, contar, é conferida a
possibilidade de materializar construções que antes não existiam.
Partindo da premissa de que a arquitectura seria, e é, uma
actividade geradora [da passagem] da potência ao acto, que ma-
terializa a sua technē através da sua verdade inteligível, teremos
que começar a entender como se dão as coisas à razão, ou como
chegamos a elas. Platão na Alegoria da Caverna (Rep. VII) explicita
essa passagem que começa por ser ilusória, o prisioneiro acredita
que as sombras que vê na parede da caverna são a realidade, bidi-
mensional - a realidade tridimensional, numa primeira abordagem,
não existe como coisa palpável - esta relação remete-nos para o
livro Flatland de Edwin A. Abbot em que várias figuras geométricas
bidimensionais tomam corpo como se fossem pessoas a viver num
mundo sem tridimensionalidade.
Depois, o prisioneiro sai da caverna e depara-se com um mundo
tridimensional, como uma outra realidade, sensitiva e palpável des-
cobrindo as ilusões criadas pelas sombras. Ora o arquitecto no seu
processo criativo frequentemente faz este percurso, começa com
Capítulo 9
306
realizar as coisas úteis à comunidade, trazendo ao mundo algo
que à partida não existia, afastando-se assim das artes miméticas.
Desta forma na arquitectura o ético e estético têm de andar juntos,
“nem o Bom seria Belo, nem o Belo seria Bom, se cada um deles
fosse distante do outro” (Hípias Maior 303-304a).
48 Perseus. http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0175%3A-
text%3DCharm.%3Asection%3D165d
Capítulo 9
49 In:http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0176%3Atex-
t%3DCharm.%3Asection%3D165d
50 Platão, Hippias majeur. Charmide. Lachès. Lysis, Ouevres complètes de Platon, tomo II,
Alfred Croiset (trad.), Paris, Belles Lettres, 1972, pp. 164e, 165d.
51 In http://www.edu.mec.gub.uy/biblioteca_digital/libros/P/Platon%20-%20Carmide.pdf. Vis-
itado a 28-08 -2014.
308
quitectura está habilitada a realizar os lugares e edifícios que habi-
tamos, ou seja, a transformá-los em lar. Não é apenas uma ciência da
construção de objectos inertes, mas confere aos lugares um acervo
ontológico e simbólico, ligando a alma ao mundo inteligível através
do sensível, dando-lhe identidade e ancoramento no habitar.
Espaço da Criação
Capítulo 9
53 JOHANSEN, T.K., Plato’s Natural Philosophy – A Study of the Timaeus-Critias, Cambridge Uni-
versity Press, 2004, p.83.
310
das construções de relações abstractas da realidade, de uma lingua-
gem abstracta, pura, ou seja, o Demiurgo através da technē, molda
o intelecto e dá a conhecer a linguagem do inteligível – do modelo
eterno – que depois servirá de cópia ao mundo sensível, ao artesão,
ao pintor, por exemplo. Dá luz a algo que é inatingível, transpondo-o
para uma linguagem compreensível, que apenas acontece devido ao
facto de o próprio Demiurgo ser intelecto e technē ao mesmo tempo.
É um artesão, no sentido em que utiliza a technē com o intelecto,
esta não é uma técnica puramente mecanizada tal como, por exem-
plo, o trabalho do arquitecto, que junta o saber teórico com o práti-
co, coordenando esses dois saberes.
O modelo eterno que o Demiurgo tem como referência é es-
tável e imutável, como vimos - é atemporal e invariável, não muda
de forma – para que através dele possa explanar no mundo sensível
a Beleza e consequentemente o Bem, o que não acontece com os
objectos que são gerados da cópia. (T. 28a, b, 29a).
Através de uma análise matemática e da medição geométrica
dos sólidos, Timeu explica-nos como se dá a formação do mundo
sensível, apoiando-se na relação que os quatro elementos (terra,
ar, água e fogo) podem ter com as figuras geométricas (T. 55b-56a).
Começa por uma dedução matemática de figuras planas que, com-
postas entre si, no plano bidimensional originam uma geometria
tridimensional, dando assim forma a essas figuras de representa-
ção abstracta. Desta forma, explicita-nos que o mundo e os corpos
são criados através de pressupostos geométricos e matemáticos,
estáveis, estruturados e proporcionais entre si, espelhando a bele-
za no mundo e com isso tornando-o Bom.
Capítulo 9
54 “the regular solids reflec their geometrical composition (56c6–57b7). One body of water
(icosahedron) may transform into five bodies of fire (tetrahedra) becouse one body of water
contains twenty equilateral triangles ando ne body off fire four equilateral triangle. (...) Only
the bodies of Earth will not transform into any of the others kinds of body since they are con-
posed of a diferente triangle, the isósceles triangle”, JOHANSEN, T.K., Plato’s Natural Philosophy
– A Study of the Timaeus-Critias, Cambridge University Press, 2004, p.125.
312
sível) mas nunca fica contaminada com as características de am-
bos. Neste sentido, o papel do Demiurgo é de introduzir uma or-
dem matemática na chōra, para dar medida, proporção e ordem aos
elementos aí introduzidos (T. 52d–53c).
Segundo a análise hegeliana que Payot faz da Arquitectura, esta
parte de um pressuposto simbólico da representação de um modelo
cósmico “o templo representa o mundo, mas o mundo, inversamen-
te, é construído como um templo.”55, onde desta forma a arquitectu-
ra começaria a funcionar como metáfora que sustenta o mundo, ou
seja, a “Arquitectura "realiza os corpos»”56. A Arquitectura é sempre
uma ideia de arquitectura, o objecto construído é sempre uma ideia
de Arquitectura, e não Arquitectura em si e por si.
De uma forma geral, parece-nos óbvio por que razão a Filoso-
fia se tenha interessado pela Arquitectura de uma forma directa ou
muitas vezes de uma forma indirecta no seu sistema discursivo. A
ideia mais comum da análise filosófica da Arquitectura centra-se
nos temas ligados a uma relação estética objectual, como se de um
objecto de arte se tratasse, dado que a filosofia da arte também se
interessa pelos temas mais objectuais da arquitectura.
Em contraposição, encontram-se aqueles que tentam cen-
trar-se na ideia de Arquitectura como elemento metafórico da
linguagem e também como algo que não se materializa no mundo
sensível, para antes se tornar verdade no mundo inteligível. A in-
vestigação filológica e etimológica é unânime em situar o concei-
to Arquitectura no grego mas, como vimos, ao lermos os textos
de Platão, e confrontando as várias traduções, quando se refere à
55 “Le temple re-présent le monde; mais le monde, inversement, est bâti comme une temple”,
PAYOT, Daniel, Le Philosophe et L’Architecte: Sur quelques déterminations philosophiques de l’idée
d’architecture, Editions Aubier Montaigne, Paris, 1982, p.68.
Capítulo 9
314
se torna necessário resgatar uma ideia de totalidade, como a φύσις
(phýsis) para os gregos. Se nos centrarmos apenas numa ideia de
paisagem urbana, não compreendemos que a arquitectura e conse-
quentemente a cidade perderam a sua metade.
Se regressarmos a Platão, este permite-nos pensar melhor a
ligação da Arquitectura com a Paisagem. Apesar de, a paisagem,
ser um conceito que surgiu na modernidade, se recuperarmos a
ideia da φύσις (phýsis) grega – entendida no seu sentido mais lato:
natureza – estando intrinsecamente na dimensão física mais pri-
mitiva do ser humano, que é dada na materialização da αρχη (ar-
ché) através da inter-relação com o seu meio natural, ou seja, essa
relação primitiva com a φύσις (phýsis) é despertada quando o ser
humano dá forma às coisas. Como é o caso da necessidade, ex-
plicitada por Mircea Eliade, de o ser humano encontrar as raízes
arcaicas do rito de construção para assim entender a sua relação
simbólica com a paisagem.
Com o desenvolvimento das sociedades e consequente-
mente com o crescimento do objecto arquitectónico, essa rela-
ção foi afastando-o cada vez mais do propósito com o seu meio
evolvente, o aceleramento do tempo e dispersão do espaço, le-
vou o ser humano a dar maior importância à técnica, levou-o a
ter uma relação virtual com a envolvente, através de espaços na
cidade cada vez mais especializados. Sendo necessário para que
se possa resgatar essa ideia original da relação com o elemento
natural, transpor para a nossa época contemporânea o entendi-
mento que os gregos tinham da φύσις (phýsis) como totalidade
de um mundo e não como sendo dispersa e passível de uma
análise de bisturi.
A separação da ideia de Arquitectura entre ciência, técnica e
arte leva-nos a grandes desentendimentos acerca de como enten-
Capítulo 9
57 Termo de origem Romana, para designar o espírito protector de um lugar, acreditava-se que
todos os Seres e coisas nasciam com um Genius (latim) – Genii (plural) - (espírito protector)
similar ao Daímōn grego; Locus (singular) Loci (plural) –significa lugar em latim. Na génese
da palavra Genius deriva a palavra gerar, nascer, e para os Romanos todos os seres e lugares
nascem com um espírito protector, um guardião.
316
Para entendermos um pouco melhor este distanciamento e
usurpação da Natureza por parte da Arquitectura, citaremos o arqui-
tecto Josep Maria Montaner que contextualiza um pouco essa ideia:
58 MONTANER, Josep Luis, A modernidade superada: arquitectura, arte e pensamento do século XX,
Editorial Gustavo Gili, Barcelona, 2001, p.193.
Capítulo 9
Por isso uma nova ideia de Arquitectura, terá de passar por integrar
na sua totalidade todas as realidades e perceber que a Arquitectura
não é só construção, é a realização ontológica com o lugar.
60 in http://www.archdaily.com.br/br/751175/introduzindo-a-garota-penico-a-arquiteta-do-fu-
turo, visitado a 2014-10-29
318
Arquitectura sem a interligação ético-estética com seu inteligível e
a concretização através de uma filosofia do comprometimento com
a paisagem. Desta forma tentámos pensar radicalmente a Arquitec-
tura, isto é, descer às suas raízes e ao seu significado primordial,
procurando desbravar o caminho para a sua arché, o seu abrigo, e
sobretudo a sua chôra
Capítulo 9
CV: http://lattes.cnpq.br/1817353713555541
E-mail: rafael.aquino@usp.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0003-1961-6932
321
Apego ao lugar: panorama de
pesquisa e papel na Psicologia
Social
322
Place attachment: research
landscape and its role in the
Environmental Psychology
323
Capítulo 10
Apego ao lugar:
panorama de pesquisa
e papel na Psicologia
Social
Rafael dos Santos Aquino
Universidade de São Paulo
Introdução
326
como aqueles direcionados a pessoas, objetos e ideias, (Giuliani, 2003).
Finalmente, é possível verificar que o conceito de apego ao
lugar tem um papel fundamental para a Psicologia Social e que,
embora o laço com o ambiente apresente uma relevância por si
mesmo, ele traz implicações para questões de natureza prática as-
sociada a preservação e manutenção dos espaços (Gifford, 2014).
Com isso, o objetivo deste trabalho é explorar o conceito de apego
ao lugar, baseado principalmente nos trabalhos de Giuliani (2003)
e de Scannell e Gifford (2010), de modo a apresentar a relação do
apego ao lugar com as teorias gerais sobre apego (Bowlby, 1980) e
uma sistematização das diferentes definições do conceito em um
modelo único e tridimensional (Scannell & Gifford, 2010).
Capítulo 10
328
com um propósito (Giuliani, 2003).
Seguindo essa linha, os afetos, sentimentos e emoções podem
ser entendidos como “fases de uma avaliação intuitiva do indiví-
duo, seja ela a respeitos dos estados e impulsos para agir de seu
próprio organismo ou da sucessão de situações ambientais em
que ele se encontra” (Bowlby, 1969, p. 104). Já o que diferencia um
comportamento de apego e um vínculo de apego é que o primeiro
se refere a diferentes formas de comportamento que uma pessoa
executa de tempos em tempos para obter ou manter proximidade
a figura protetora, enquanto o segundo se trata de um laço afetivo
duradouro em relação a uma pessoa (Giuliani, 2003).
Com isso, o apego pode ser melhor entendido olhando-se para
o vínculo afetivo de forma mais ampla. Segundo Ainsworth (1989),
o vínculo afetivo pode ser definido como:
Capítulo 10
330
O apego ao lugar na literatura
Capítulo 10
332
pecífico e não facilmente substituído por outro que apresente as
mesmas qualidades funcionais. Por outro lado, é preciso reconhe-
cer que muito cedo eles trouxeram em seu modelo as três dimen-
sões do apego, ainda que não identificadas assim, posteriormente
elaborada na síntese proposta por de Scannell e Gifford (2010).
O modelo tripartite apresentado por Scannell e Gifford (2010)
oferece um avanço em direção a solução de um dos maiores pro-
blemas enfrentados pela literatura de apego ao lugar: a imprecisão
de sua definição conceitual. Como afirma Giuliani (2003), o apego
ao lugar é tratado como um conceito guarda-chuva, abarcando uma
multiplicidade de afetos positivos que tem o lugar como objeto.
Isso leva ainda há uma grande variedade de definições assim como
um grande número de abordagens que tomam diferentes indica-
dores ou preditores atitudinais e comportamentais para medir a
presença e intensidade do vínculo (Giuliani, 2003). O trabalho de
Felippe e Kuhnen (2012) ilustra tal falta de precisão ao realizar uma
revisão da literatura e agrupar os indicadores usados para medir o
apego ao lugar por diferentes autores (Tabela 1).
Capítulo 10
334
Se o modelo de Scannell e Gifford (2010) não solucionam
totalmente os problemas de imprecisão na definição do apego ao
lugar ou o fato de este ser um conceito que sofre de esticamento
segundo o entendimento de Osigweh (1989), ele apresenta a van-
tagem de organizar décadas de pesquisa de forma estruturada e
compreensível a partir da qual é possível avançar na teoria.
Com isso, a próxima seção apresenta o modelo tripartite de
Scannell e Gifford (2010).
Capítulo 10
apego ao lugar
experiência cultural/ emoções felicidades
grupo orgulhos
realizações
amor
Pessoa
Processo cognição memória
Lugar conhecimento
religioso individual
significado
histórico social físico
comporta- manutenção de
arena social natural mento proximidade
símbolo so- construído reconstrução
cial de lugar
A dimensão da pessoa
336
Gans, 1962; Michelson, 1976). Segundo esses autores, os grupos se
apegam a áreas onde eles podem praticar e preservar sua cultura.
Porém esta não é a única forma de o grupo desenvolver o apego.
Como sugerido por Mazumdar e Mazumdar (2004), o apego pode
ser baseado também em crenças religiosas. Diferentes culturas
atribuem a lugares específicos o potencial de levar os seguidores
de uma religião para mais perto de seus deuses, o que torna tais
lugares – sejam cidades inteiras, como Meca e Jerusalém, como
também igrejas, templos, cemitérios e capelas – alvo de reverên-
cia e proteção que servem de reflexo à fidelidade a uma cultura ou
sistema de crenças. Adicionado a isso Low (1992) afirma que: “o
apego ao lugar pode ser aplicado a locais místicos que uma pessoa
nunca vivenciou, ou pode ser aplicado à propriedade ou à naciona-
lidade associada a uma terra que simbolicamente codifica sentidos
sociopolíticos ou também de experiência pessoal (p. 166)
Isso não exclui ainda a possibilidade de que a conexão religio-
sa ao lugar possa ser também individual (Mazumdar & Mazumdar,
2004). Uma única pessoa pode associar um lugar sentidos espiri-
tuais por meio de suas próprias experiências, como uma epifania,
revelação ou conversão, indicando que os níveis coletivos e indi-
viduais do apego ao lugar não são completamente independentes.
Capítulo 10
338
O segundo processo psicológico implicado no apego ao lugar
é a cognição. Como afirmam Scannell e Gifford (2010), um espaço
pode se tornar significativo para um indivíduo através da associa-
ção mental entre esse espaço e memórias, conhecimento, crenças
e significados. Assim, o indivíduo cria cognitivamente significados
do lugar que o aproximam dele. Por exemplo, através da memó-
ria o indivíduo conecta a si mesmo com o lugar e, como apontado
por diversos autores, o apego pode se desenvolver justamente com
aqueles lugares onde eventos ou períodos memoráveis ocorreram
(Hay, 1998; Hunter, 1974; Manzo, 2005; Rubenstein & Parmelee,
1992; Twigger-Ross & Uzzell, 1996).
Diferentes abordagens descreveram o apego através de seu
componente psicológico: Fullilove (1996) aponta a familiaridade
como um elemento do apego, para ela ser apegado é conhecer e
organizar os detalhes de um ambiente; já Feldman (1990) defende
que as pessoas se apegam a determinadas categorias de lugares,
como subúrbios, parques e sítios; como mencionado anteriormen-
te também, Stokols e Shumaker (1981) veem o apego como depen-
dência ao lugar. Para todas essas abordagens, a informação sobre
as características de um espaço tem um papel central para o desen-
volvimento do apego ao lugar (Scannell & Gifford, 2010).
A identidade de lugar, que descreve “a socialização do mun-
do físico do indivíduo” (Proshansky et al., 1983. p. 57) ou as auto
definições derivadas da relação com o lugar, também está ligado à
cognição individual. Através dela uma pessoa traça similaridades
entre si mesma e o lugar, isto é, incorpora informações e caracte-
rísticas relevantes atribuídas ao lugar – sejam memórias, pensa-
mento, valores ou categorizações – a sua própria auto definição.
Deste modo, a conexão formada pelo indivíduo com o lugar torna
este uma representação de si mesmos (Scannell & Gifford, 2010).
Capítulo 10
340
O comportamento de reconstrução do lugar também é encon-
trado na literatura como uma expressão do apego em locais que
passaram por desastres e eventos que causaram sua destruição.
Um caso interessante é descrito por Francaviglia (1978) em que,
após um desastre que causou a destruição de uma cidade no es-
tado de Ohio, nos Estados Unidos, os responsáveis pelo seu pla-
nejamento urbano buscaram retificar problemas que precediam
ao desastre, mas encontraram resistência da população local. Os
residentes e trabalhadores da cidade impuseram modificações no
plano de reconstrução da cidade de modo que ela permaneceu
muito semelhante antes e depois do desastre, o que aponta para
uma prioridade em reconstruir a familiaridade com o lugar do que
resolver seus problemas. O ato de recriar um local aparecem ainda
quando indivíduos que foram levados a se mudar contra sua vonta-
de buscam preservar o vínculo optando por se alocarem em lugares
similares ao que tiveram que deixar (Scannell & Gifford, 2010).
A dimensão de lugar
Capítulo 10
342
aponta para o fato de que a natureza pode ser inclusa na definição
pessoal do indivíduo.
Por fim, o modelo de apego ao lugar proposto por Stedman
(2003) ajuda a compreender como aspectos físicos do lugar po-
dem originar o apego. Segundo o modelo, as pessoas não se tornam
apegadas diretamente à característica física do lugar, mas sim aos
significados que tais características implicam.
Conclusão
Capítulo 10
344
Felippe, M. L., & Kuhnen, A. Gifford, R. (2014). Environmental
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Capítulo 10
348
Capítulo 10
CV: http://lattes.cnpq.br/3889873314551168
E-mail: edatassara@uol.com.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-7592-8407
350
José Oswaldo Soares de Oliveira
Universidade de Taubaté
CV: http://lattes.cnpq.br/4650642006564154
E-mail: jose.oswaldo@uol.com.br
ORCiD: https://orcid.org/000-0003-4988-1016
351
Toxemia socioambiental. Estu-
do psicossocial da transforma-
ção do vale do rio Paraíba do
Sul (São Paulo, Brasil)
352
Socio-environmental toxe-
mia. Psychosocial study of the
transformation of the Paraíba
do Sul River Valley (São Paulo,
Brazil)
353
Capítulo 11
Toxemia socioambiental.
Estudo psicossocial da
transformação do vale
do rio Paraíba do Sul
(São Paulo, Brasil)
Eda Tassara
Universidade de São Paulo
José Oswaldo Soares de Oliveira
Universidade de Taubaté
1. Apresentação:
1 Segundo enfoque preconizado pela Professora Tassara (2015) e que vem caracterizando as in-
vestigações conduzidas sob sua liderança no LAPSI/PS/IPUSP a partir de conceituação ofereci-
da por Fernandes (1969) e sobre a qual Tassara e Ardans (2008) desenvolveram extensa análise,
a Psicologia Social estuda a interação social considerada em si e por si mesma. Para os referidos
autores, a Psicologia Social se caracterizaria por três elementos: hibridismo, marginalidade e
interdisciplinariedade. Hibridismo que seria originário da diversidade de sociedades, de cul-
turas, de valores, de modos de vida, remetendo à problemática da identidade social, de sua
constituição, de sua permanência e de suas metamorfoses. Marginalidade porque situada nos
interstícios disciplinares, nas margens e nas fronteiras dos conhecimentos por elas alcançados.
Interdisciplinariedade vista conforme conceitua Barthes (1984), como consistindo na criação
de um objeto novo que não pertença a ninguém. Embora híbrida, marginal e interdisciplinar,
a Psicologia Social é apresentada por esses autores como fundamental para três disciplinas
científicas: a Psicologia, a Sociologia e a Antropologia. Consideram ainda que, a partir da aceit-
ação desse carater hídrido da interação humana, desenha-se um dos grandes desafios da Psico-
logia Social, a defesa da diversidade humana como pré-requisito ético da compreensão científi-
ca do humano, estabelecendo um elo necessário entre a Psicologia Social e a Política. Deve-se
acrescentar que a metodologia que revestirá prevalentemente a estrutura do presente estudo
psicossocial é a da Teoria Crítica da sociedade (Guba, 1990; Montero, 2001), abordada pela Pro-
fessora Tassara como um estudo pós-colonial, ampliando-se seu escopo através da introdução,
nas análises em processo, do conceito de colonialidade do poder. (Tassara e Ardans, 2011).
2 Sobre o significado adotado para o termo "paisagem», transcreve-se nessa nota o conteúdo
do verbete "paisagem"segundo o Dicionário Socioambiental: ideias, definições e conceitos
(Tassara e Tassara, 2008)
paisagem
A idéia de paisagem pode ter vários significados. Em Geografia, ela pode ser definida como um
conjunto de estruturas naturais e sociais presentes em um determinado território, no qual se
desenvolve intensa interatividade entre os elementos naturais e as relações humanas. As paisagens
podem ser naturais, aquelas em que se destacam apenas os elementos da Natureza (relevo, solos,
clima, rios, flora e fauna e suas interações) sem interferência humana; e humanizadas ou culturais,
rurais ou urbanas, que são aquelas que abrangem elementos construídos pela ação humana e que
interferem nas paisagens naturais (como pontes, ruas, edifícios, cidades, túneis, portos, ferrovias,
etc), além das relações humanas que ocorrem nas próprias paisagens e entre elas. No atual estágio
de desenvolvimento das culturas humanas não se pode mais dizer que exista lugar no planeta que
não tenha sofrido qualquer interferência antrópica, direta ou indireta. Paisagens que englobam o
mundo construído e o mundo natural podem ser denominadas como paisagens socioambientais,
na medida em que sempre se referem a uma relação dinâmica entre a organização humana sobre
os cenários naturais e os construídos. Uma paisagem contém tudo aquilo que se pode perceber por
meio dos sentidos (audição, visão, olfato e tato), sendo a visão o sentido que mais se destaca. Assim,
as paisagens podem, também, ser definidas como recortes em movimento que o olho humano faz
sobre os cenários que observa pelo mundo. Embora as paisagens pareçam algo dado e das quais
356
municípios situados nesse vale, prevalentemente Jacareí e São
José dos Campos, através de uma observação sistemática natura-
lística, aplicando-se no estudo um sistema teórico de quatro ca-
tegorias clássicas preconizadas pelos geógrafos Ab’Saber (2001)
e Santos (2006): ecossistemas naturais remanescentes, ecossis-
temas remanescentes oriundos de áreas definidas como rurais,
agro-ecossistemas pautados na industrialização, ecossistemas ur-
banos sobre bacias hídricas. Ao longo do estudo acrescentou-se
uma nova categoria - ecossistemas tóxicos presentes no ambiente
observado (Tassara e Oliveira, 2012), por ter sido a mesma consi-
derada, por esses últimos autores, como complemento necessário
à leitura contemporânea adequada daquela paisagem.
Para a análise dos descritores das paisagens ambientais de
Jacareí foram utilizados, como propôs Ab’ Saber (2001), os fatos
sociais que dão dinâmica às transformações das paisagens, tendo
como referência os parâmetros representativos da formação histó-
rica do território de estudo, de sua contextualização geográfica, da
planificação, da produção e da gestão do ambiente construído, e,
das formas de inserção do mesmo em instâncias econômicas.
A decisão de aplicação do método naturalista ao universo urba-
no (Mondada, 2000), implicou a exploração do objeto em observa-
ção (o socioambiente3: terra, natureza, cidade, território, homem e
os seres humanos são apenas receptores passivos, nesse sentido elas são sempre construções cul-
turais que dependem das experiências de vida dos sujeitos que as observam.
socioambientalismo
Capítulo 11
tais (físicas e naturais), buscando a defesa dos bens e direitos sociais, coletivos e difusos, em
relação ao meio ambiente, ao patrimônio cultural e aos direitos humanos e dos povos. Com
sua maneira genuína de pensar e atuar, que pode ser resumida no slogan “socioambiental se
escreve junto”, o socioambientalismo é uma criação brasileira única no cenário do ambiental-
ismo internacional. Ver socioambiente.
socioambiente
Conceito presente nas ações e movimentos ambientalistas que considera que as dimensões
sociais, físicas e naturais dos ambientes são indissociáveis, devendo ser abordadas de forma
integrada. Ver socioambientalismo.
358
como fatos sociais, fatores históricos constitutivos da formação do
território em análise, de sua base geográfica, de suas caraterísticas
socioculturais, demográficas e econômicas, além de fatores regio-
nais derivados e emergentes dos processos de conurbação, abran-
gendo escalas macrometropolitanas e mesmo globais, tais como
as referentes à questão habitacional no contexto do quadro imo-
biliário brasileiro contemporâneo. Acrescenta-se a isso o desafio
instaurado por um processo de urbanização caracterizado como
contínuo e extensivo, constituindo-se em escala cada vez mais pla-
netária (Deak, C., 1991; Singer, P.; 2001, Santos, M., 2005).
Por outro lado, a leitura das paisagens deste vale do Rio Para-
íba do Sul foi sustentada por uma busca de compreensão do pro-
cesso de urbanização contemporânea, acoplando-a a parâmetros
frequentemente utilizados por estudos sociourbanos, tendo sido
escolhidos os seguintes descritores: limites e/ou condicionantes
presentes na geografia física local (relevos suaves ou acidentados,
bacias hídricas principais e secundárias); processo histórico de
formação da paisagem (os ciclos econômicos preponderantes: do
ouro, do café, do gado, da indústria, do comércio); constituição
do ambiente construído em suas diversas etapas e escalas urbanas
(aldeia, vila colonial, cidade administrativa do século XIX, cidade
da indústria nacional da metade do século XX e, depois, multina-
cionais até a cidade regional da passagem do século XX para este
século, atrelada à globalização); estrutura formada pelas vias de
circulação e comunicação em diversas escalas (macrometropolita-
na, metropolitana, regional, intermunicipal, municipal, local e de
vizinhança); estagnação da economia agrícola familiar e da produ-
ção agrícola comercial heterogênea; introdução da monocultura da
agroindústria; interesses imobiliários específicos na constituição
de grandes reservas de terra a curto e médio prazo; constituição de
Capítulo 11
360
operações orientadoras da observação sistemática: sucessivos per-
cursos pela região adotando escalas gradativas de aproximação, par-
tindo-se do geral para o particular e priorizando-se a orientação pe-
las grandes vias das estruturas rodoviária, ferroviária e hídrica, para
permitir a captação panorâmica da paisagem; incursões adentrando
os grandes setores do Município delineados pelos eixos de circulação
e relevos marcantes e, a partir desses, penetrando nos bairros e vilas
por caminhos de ligação com os primeiros eixos; contato com mora-
dores ao longo dos percursos, buscando informações sobre localida-
des e características das locais, assim como sobre as relações desses
moradores com os lugares e com a cidade; estudo de documentos
e obras relativos à formação histórica da região, tendo como guia
o clássico trabalho de Nice Lecoq Muller, intitulado O fato urbano
na bacia do Rio Paraíba do Sul (Müller, 1969); estudo complementar
do planejamento do Macroeixo Paulista, elaborado pelo Governo do
Estado de São Paulo; estudo do Macrozoneamento do Vale do Para-
íba, realizado pelo INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais)
e, ainda, o estudo do relatório do CODIVAP (Consórcio de Desenvol-
vimento Integrado do Vale do Paraíba) sobre o Vale do Paraíba no
transcorrer dos anos setenta, dentre outros; consulta à cartografia
existente em diversas escalas de representação da realidade 1:250000,
1:50000, 1:25000, 1:10000, 1.5000; elaboração de cartografias a mão
livre visando fortalecer a representação mental do espaço da região,
usando escala gráfica próxima da escala técnica 1:50000; construção
de maquete técnica representando o relevo dos municípios na escala
1:25000 e escala vertical ampliada três vezes para diferenciar as to-
pografias das várzeas e o relevo mais acidentado; registro fotográfico
dos percursos, privilegiando os ângulos de maior amplitude panorâ-
mica ou elementos de destaque; conferência sistemática dos mate-
riais cartográficos para subsidiar a orientação em campo e também
Capítulo 11
362
uma leitura da paisagem contemporânea no vale do Rio Paraíba do
Sul. Cabe, ainda, enfatizar que a introducão da categoria ecossis-
tema tóxico, proposta como um complemento ao sistema de Ab’
Saber para a leitura das paisagens, emergiu da percepção de que
a dinâmica contemporânea das transformações das paisagens sob
observação, situava-se nas implicações do processo global de pro-
dução sobre a realidade brasileira. Podia-se observar, no cotidiano
dos lugares, a presença e o impacto do capital global na consti-
tuição do socioambiente, o que vem se intensificando a partir das
duas últimas décadas, determinando sua transformação abrupta.
As paisagens, lidas através dos recortes propostos pelo sistema
de categorias teóricas de ecossistemas, não necessariamente deve-
riam manifestar-se de forma empírica, o que de fato não ocorreu. O
momento das paisagens representaria uma iconografia geográfica
instantânea do socioambiente e a sua dinâmica de transformações
propiciaria a interpretação de sua história. Socioambiente seria,
portanto, geografia em processo dinâmico de construção histórica.
Por suas transformações, a leitura da paisagem permite a análise
geográfica e histórica e, portanto, política. Contudo, segundo Tas-
sara e Ardans (2008) a vinculação ética gera a indissociabilidade
da interface política-psicologia social, evidenciando os intestinos
psicossociais do político, de difícil explicitação.
Milton Santos (Santos, 1996) oferece contribuições para
fundamentar uma análise desta questão, classificando períodos
históricos em função de parâmetros caracterizadores do grau de
domínio da técnica neles prevalentes. Assim, pode-se delinear
fatos sociais a partir de marcos de transformações significativas
através do domínio da técnica, possibilitando a identificação e
compreensão de novos fatores emergentes que se manifestam
como fatos sociais. Santos propõe uma sequência composta por
Capítulo 11
364
das paisagens, dada a presença massiva de regiões obviamente
poluídas4 poluição) na terra, na água e no ar, na vida social e
comunitária, configurando novos e desconhecidos padrões de
vida nesses ambientes: "para a terra, homens, animais e plantas".
Todavia, a sua identificação constitui tarefa difícil, por se
tratar de manifestações territoriais de toxicidade com abran-
gência tópica, observável em determinada localidade pontual, e
extensiva, quanto atingindo todo um território. Vide, por exem-
plo, a poluição produzida pelo uso de agrotóxicos em determi-
nada área de agro-indústria e de sua disseminação para os rios.
Ou, então, de vazamento de resíduo químico industrial pelo ar,
contaminando toda a região de estudo, em processo de conur-
bação. No momento, apresenta-se paroxístico o episódio do
rompimento da barragem da Mineradora Samarco em Mariana,
Minas Gerais, em 2016. O que permaneceu do socioambiente
pregresso na extensa área da bacia do Rio Doce e no próprio
leito do rio?
4 Sobre o significado adotado para o termo "poluição ambiental», transcreve-se nessa nota
o conteúdo do verbete paisagem segundo o Dicionário Socioambiental: ideias, definições e
conceitos (Tassara e Tassara, 2008).
poluição ambiental
Alteração indesejável dos fatores abióticos presentes no meio ambiente devida, em geral, à
introdução de concentrações demasiado altas de compostos prejudiciais ou perigosos, ao
calor, ruído, entre outros. Segundo a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), poluição
ambiental é qualquer tipo de contaminação do meio ambiente ou degradação da qualidade
ambiental resultante de atividades que, direta ou indiretamente: 1) prejudiquem a saúde, a se-
gurança e o bem-estar da população; 2) afetem desfavoravelmente a biota (conjunto da fauna
e da flora de uma região); 3) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; 4)
afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; 5) lancem matérias ou energia
em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos. A poluição acontece, na maioria das
vezes, como consequência das atividades humanas, mas resíduos produzidos por erupções
vulcânicas ou contaminações devido a corpos em estado de putrefação, por exemplo, também
podem produzir poluição ambiental. Existem diversas formas de poluição: visual, auditiva,
térmica, atmosférica, das águas, do solo, entre outras.
Capítulo 11
366
A aplicação da segunda categoria como referência, a dos
ecossistemas constituídos por áreas rurais sobre remanescentes
naturais, revelou transformações nas paisagens contemporâne-
as denunciando a alteração da base social pregressa que previa a
manutenção possível de ecossistemas de base agrícola, em funcio-
namento compatível com o manejo do meio em harmonia com a
natureza bruta. A sua aplicação revelou, em primeiro lugar, a qua-
se não presença destes ecossistemas nas paisagens em estudo e,
em segundo, trouxe à tona uma nova dimensão da toxicidade da
poluição presente no território - as formas contemporâneas de
exploração capitalista do campo, liquidando as bases sociais da
vida coletiva nas áreas agrícolas tradicionais. Não seriam por acaso
poluídas, tóxicas, tais formas de ruptura dos modos tradicionais
de vida no campo, impondo novos padrões e ritmos de vida, de
trabalho, de alimentação e de consumo, às grandes levas de traba-
lhadores deslocados forçosamente para os aglomerados urbanos
dispersos nessa região conurbada? Não seriam poluidoras, tóxicas,
estas alterações disruptivas de formas de organização humana?
Essa poluição impregnaria de elementos tóxicos os ecossistemas,
seja pela negação das formas de vida no campo agrícola, seja pela
imposição das formas de vida urbana pautadas pelas novas manei-
ras de produção e consumo, rompendo o meio cultural presente
sob determinado ecossistema. O canto dos pássaros substituídos
pelo ruído das buzinas, dos carros e das fábricas.
A terceira categoria, a dos agro-ecossistemas pautados pela
industrialização, somada à quarta categoria, a dos ecossistemas ur-
banos sobre bacias hídricas, exterioriza os efeitos de intervenções
situadas no período do meio técnico proposto por Santos. Tais ca-
tegorias de ecossistemas, por sua vez, ainda estão presentes nas
paisagens do território em estudo. Pode-se concluir, portanto, que
Capítulo 11
368
psicossocial essencial para propiciar uma saudável transmissão sim-
bólica intergeracional (Tassara, Rabinovich, Goubert, 2004 ).
Capítulo 11
370
b) tal delimitação sustentaria a derivação empírica de categorias de
análise da toxemia ambiental neles identificada;
Capítulo 11
6 Ou seja, com o esmaecimentdo da história narrativa (Devoto, 2004), enfocando o tempo dos
acontecimentos no qual o passado inscreve-se em desdobramentos temporais contidos na dinâmi-
ca ininterrupta da mudança histórica, de estreita relação passado e presente, esvanece-se a história
analítica (Devoto, op cit), de longo tempo, que indaga em enquadramentos cronológicos amplos
atravessando espaços e cronologias, instalando-se assim a anomia psíquica e a alienação política.
372
iv. Aplicar o método de identificação, descrição e análise da referi-
da “perda”.
Capítulo 11
374
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Capítulo 11
376
Capítulo 11
CV: http://lattes.cnpq.br/7123462790006058
E-mail: yanciladeira@hotmail.com
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-2383-3879
379
Ensaio sobre habitar
380
Essay on living
381
Capítulo 12
1 Ingold se apoia na imagem de rizoma proposta por Deleuze e Guatarri na obra Mil platôs.
Vol.1, São Paulo: Ed. 34, 2011 (2ª.ed brasileira).
384
e a superfície terrestre é chamada por Augustin Berque (1996)
de ecúmena2, aqui chamada de relação ecumenal que, conforme
o autor, se estabelece de forma concreta no espaço e no tempo,
quer dizer, em um meio e em uma história.
Dessa maneira Berque chama a atenção para o sentido que a
história humana dá para a superfície terrestre, lembrando que os
sentidos se diferenciam de acordo com as sociedades, que no tra-
jeto entre o imaterial e o material, projetam seus modos de ver o
mundo e ao mesmo tempo os inscrevem nele. Nas análises de Ber-
que o foco está no trajeto, mas há, de certo modo, a delimitação
bem marcada entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo. Toda-
via, o trajeto entre um e outro encontra-se na região fronteiriça, na
área de trans-borda, que transborda.
Neste ensaio busca-se uma perspectiva aberta para o trans-
bordamento de fronteiras, e o trajeto e a trajetividade apontadas
por Berque são um bom início para começar a meditar a este
respeito. A abordagem trajetiva, compreende o trajeto, o cami-
nho que é reversível, uma incessante troca na interação e relação
entre o físico e o fenomênico, entre o material e o imaterial, en-
tre o ambiente, os seres, os corpos, o valores humanos, o agir e
o pensar. Pretende-se iniciar uma conversa sobre o habitar que
vá além das dicotomias que opõem as partes, abrindo o pensar
2 Ecúmeno é uma palavra grega que deriva do termo oikos (casa, lugar onde se habita) e, desde
os tempos de Strabão e Ptolomeu, como nos lembra Besse (2013, p.72), é compreendido como
o mundo humano ao qual caberia a geografia [ciência] “representar pelo nome, a descrição
e o desenho cartográfico, a posição, a grandeza, a forma e os conteúdos”. Desta maneira, o
ecúmeno era compreendido como a parte da Terra habitada pela humanidade, sendo definido
por contraste às regiões virgens de presença humana. E diante da realidade atual em que a pre-
sença humana alcança, mais que o além-mar, para além do planeta (com os satélites, sondas
e estações espaciais), Berque contemporiza o sentido de ecúmeno, que o autor prefere usar
no feminino – ecúmena. Para maior aprofundamento no tema ver: BERQUE, A. Être humains
sur la terre: príncipes d’éthique de l’écouméne. Paris: Galimard, 1996. e BERQUE, A. Écoumène:
introduction à l’étude des milieux humains. Paris: Belin, 2009.
Capítulo 12
386
2. Habitar é pipa-no-ar,
Capítulo 12
388
Nós, seres humanos, habitamos o mundo conjuntamente a
uma infinidade de seres vivos e coisas, partindo do nosso corpo, da
nossa mente em relação porosa com este ambiente de seres e coi-
sas que nos cerca, ou melhor, nos adentra e envolve. Esta relação
pressupõe, como nos lembra Berque, sempre subjetivações.
Dessa maneira, o que se pretende reforçar é que habitar não
existe de maneira isolada. Habitar o mundo é habitar conjunta-
mente, como mostrado no exemplo da árvore. É um “destino co-
letivo” que transcende às sociedades humanas, pode ser também
uma “experiência individual” mas, sem retirar o indivíduo do ema-
ranhado de fios no qual sua vida se tece.
Ingold diferencia o ocupar e o habitar o mundo, relacionando o
primeiro aos objetos e o segundo às coisas.
Capítulo 12
390
diferencia, e se pode acrescentar, como alternativa ao paradigma
da produção6 como elemento determinante das condições mate-
riais da vida social.
6 De acordo com o antropólogo Philippe Descola (2005) o paradigma que coloca a produção
como meio de transformação do mundo pertence ao Naturalismo Moderno e não está pre-
sente nos outros sistemas de relação ontológica entre humanos e não humanos descritos pelo
autor em seu livro: Par-delà nature et culture. Paris: Gallimard, 2005.
Capítulo 12
392
em construção (en train de se faire) e que traçando um caminho de
vida, contribui para a sua tessitura e sua malha” (Ingold, 2011 p.108).
Habitar não é construir ou edificar, lembra ele a partir de Hei-
degger. É se colocar na temporalidade específica da manutenção,
ou seja, nesta espécie de conversação muda que se tece ao longo
de nossas relações cotidianas e ordinárias com o lugar onde nós
vivemos. É se colocar em um devenir do lugar, mais exatamente,
em suas linhas. (Besse, 2013, p28,29).
Capítulo 12
4. Habitar é laço
394
referências
ASSUNTO, Rosario. A paisagem
e a estética (1973). In: SERRÃO,
Adriana Veríssimo. Filosofia da
Paisagem – Uma Antologia. Lisboa:
Centro de Filosofia Universidade
de Lisboa, 2011a, pp. 341-375.
Capítulo 12
CV: http://lattes.cnpq.br/0402023138863655
E-mail: mariana_malvezzi@yahoo.com
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-0297-352
397
Homem e Lugar: um ensaio do
Homem-fronteira na atualidade
398
Man and Place: an essay by the
frontier-man today
399
Capítulo 13
Homem e Lugar: um
ensaio do Homem-
fronteira na atualidade
Mariana Malvezzi
Universidade de São Paulo
402
prazo. Ao se refletir e agir em prol da sustentabilidade, a socieda-
de está discutindo e agindo em prol de sua própria emancipação,
ou seja, de sua própria competência a viabilidade de seu futuro. É
possível sustentabilidade sem emancipação? Esta questão aparece
como problema prioritário para orientar as ações para o desenvol-
vimento da ciência, para a gestão da sociedade e para a criação da
sociedade futura (MALVEZZI, 2011).
O que seria a busca pela sustentabilidade se não a capacidade
de realização do ser humano por uma vida autenticamente humana
(JONAS, 1979), cujo movimento implica em assumir uma postura de
“não ao não-ser” para todos os Homens, de modo a proporcionar
para toda a humanidade a potencialidade de sua própria existência
enquanto tal. Desta forma, a consciência, o reconhecer a si mesmo
e ser reconhecido é imprescindível, a fim de garantir a liberdade
necessária em tamanha construção (HONNETH, 2003), tanto nas es-
feras individuais como coletivas.
Assim, atuar em termos da sustentabilidade significa dar “con-
tinuidade à existência e continuidade da reprodução das poten-
cialidades para o Homem seguir existindo” (MALVEZZI, 2011). Não
bastando, neste sentido, uma existência qualquer, mas sim “uma
existência que mantenha e reflita as condições que reproduzam a
existência inerente a constituição do Homem” [pg. 160].
Sustentabilidade, desta forma, deixa de ser uma questão am-
biental ou urbana, do lugar onde o ser humano se situa, para ser
uma questão de sua inerente condição humana e social, tornando-
-se uma dimensão de sua realização. Portanto, se a vida e a realiza-
ção humana dependem das condições do ambiente, a sustentabili-
dade pode até ser uma condição ambiental, mas cujo sentido e valor
não é independente de sua condição como recurso e instrumento
da realização do ser humano, como indivíduo e como sociedade.
Capítulo 13
404
de mudança, está longe de ser um poder pessoal, mas um poder
construído dentro da interação eu-outro.
Dessa reflexão desponta a questão, “como atuar para fortale-
cer o empenho e a eficácia, a força do agente diante de um mundo
movido por sistemas órfãos, individualismo e fragmentação desin-
tegradora?” Questão que robustece mediante a força da tecnologia
que, por um lado integra o Homem nesse mundo, e também facilita
e descontextualiza o ganho de consciência dos riscos. Que condi-
ções deveriam nortear as negociações dos agentes? E mais, como
criar condições para que a negociação do agente com o mundo seja
pautada por uma ação verdadeiramente emancipatória?
O desafio diante destas questões emerge da própria natureza
do objeto de estudo. Pesquisar objetos complexos como susten-
tabilidade, identidade e emancipação demanda observação siste-
mática da realidade e crítica sobre os conceitos e teorias em suas
bases. Sendo objetos com fronteiras porosas, os alvos desta refle-
xão navegam com segurança no território da ciência se decorre-
rem da observação cuidadosa e sistemática, sempre mesclada com
a reflexão crítica. Por outro lado, a clareza das opções ontológico
epistemológicas se impõem como formas de verificação contínuas
sobre objetos que transcendem o olhar sobre o território e sobre o
Homem que o habita. A captura das identidades e da emancipação,
dentro desse território, implica na apreensão e transformação de
dados tendo em vista expor os elementos alienantes e ocultos da
relação do Homem com seu território, de forma a explicitar as ide-
ologias que subjazem à lógica desta relação.
Os próprios conceitos aqui referendados demandam atenção,
uma vez que não são passíveis de serem tratados de forma isola-
da. Em vista do exposto, os conceitos de sustentabilidade, eman-
cipação e identidade carecem de aprofundamento em toda a sua
Capítulo 13
406
Heráclito (540a.c. aprox.) que se referiu a contínua influência e
transformação de todos esses elementos.
É bastante conhecida e debatida pelas ciências humanas a
questão da identidade na atualidade. Entretanto, dada a complexi-
dade dessa questão, “quem é você?” não há unanimidade nas suas
diversas abordagens. Se reconhece hoje a identidade psicossocial e
a identidade pessoal como respostas distintas, porém igualmente
relevantes e interdependentes, tais como o interacionismo sim-
bólico da Escola de Chicago (BLUMER, 1969; SARBIN, 1968 e SCHEI-
BE, 1983). Mead (1934) foi um dos percursores dessa abordagem
ao se referir ao eu e ao mim como entes distintos. Já a teoria da
identidade (STRYKER, 1985) considera fundamentalmente o grau de
individualidade como fator chave para a atribuição da identidade
psicossocial. Goffman (1959) e Ricoeur (1990) também em suas
proposições reiteram a importância dos diálogos com o social, o
outro, para a construção do eu. Outras abordagens, como a Esco-
la de Bristol com suas Teorias da Identidade Social (TAJFEL, 1972)
e da Autotipicalidade (TURNER, 1985) reforçam significativamente
a importância da relação entre grupos e principalmente os movi-
mentos de categorização ou prototipização, uma vez que atuam
como ponto de partida e como referência para que o sujeito cons-
trua a possibilidade de diálogo e, desta forma, a própria ontologia.
Apesar das muitas perspectivas para a compreensão da identi-
dade, pode-se afirmar a existência de um aspecto a todos comum
referente ao reconhecimento que o exercício de construção da
identidade é implicado na prática do diálogo, a partir de uma expe-
riência, uma vivência, do mundo que coloca a todos como frontei-
ras do que os define como singular e o que os define como plural.
Neste sentido cada sujeito é em si o marco divisório do que lhe é
próprio e do que é compartilhado, cabendo a este sujeito traçar a
Capítulo 13
408
diferentes leis, e portanto, criar um novo eidos ontológicos, um si-mes-
mo diferente em um mundo diferente”. (CASTORIARDIS, 1987, p. 434).
Capítulo 13
Dessa forma, Levinás propõe uma nova ética que esvazia o Homem
de “seu imperialismo e de seu egoísmo” [pg. 61], atirando-o em um
movimento de reconhecimento do Outro, capaz de “queimar de um
fogo diverso que o da necessidade que a saturação apaga, pensar além
daquilo que se pensa” [pg. 62]. Esta seria, portanto, uma condição
para emancipação nas metamorfoses da identidade.
Dando seguimento ao pensamento de Livinás, a ideia de In-
finito surge a partir do estabelecimento de uma relação Eu (Moi)
a Outro.
410
Infinito, nestes termos, seria o próprio movimento de descoberta,
de desvelar-se que o Homem-fronteira se submete quando parte
rumo ao desconhecido, a alteridade, cuja experiência em si mesma
revela a si mesmo e o Outro em uma autenticidade que permitiria
uma existência ausente de particularidades, exclusão, diferencia-
ções. Infinito, aqui desponta, como uma abertura total para o po-
tencialidade do Outro e do encontro com o Outro e como conse-
guinte, consigo mesmo.
O Homem-fronteira, dessa forma, estaria disposto (através de
uma educação que lhe garantisse tamanha liberdade e auto-institui-
ção) a, através de um movimento de abertura, refletir sobre si mes-
mo tanto a partir do questionamento das leis, verdades e instituições
(CASTORIARDIS, 1987), como a partir do Infinito (reflexão contínua e
aberta) que o estabelecimento da relação com o Outro lhe garante.
Observa-se entretanto a existência de três forças que juntas
operam como impedimentos para a racionalidade individual e cole-
tiva, no sentido de ganho de autonomia, reflexão e originalidade. São
elas: o núcleo intuitivo dogmático (HABERMAS, 1983), a positividade
lógica (CAORSI, 1994) e a negatividade psicológica (FREUD, 1921).
O núcleo intuitivo dogmático (HABERMAS, 1983), oferecido
pela tradição, funciona como uma base da formação socializado-
ra, tal como uma pele impossível de ser descartada. Esta condição
funcionaria como um impedimento para que os sujeitos critiquem
racionalmente suas crenças, dado que nossa subjetividade, dada a
nossa inaptidão à vida fora da sociedade e da cultura, é significada
e mediatizada socialmente (CASTORIARDIS, 1987).
A positividade lógica (CAORSI, 1994), na sua lógica impede os su-
jeitos de reconhecerem outra coisa que não o que lhes é apresentado.
Entendendo tudo que lhes chega como algo natural. Não havendo es-
paço para uma abstração reflexiva (PIAGET, 1977) capaz de viabilizar
Capítulo 13
412
(HONETH, 2007) impõem a todos, no movimento da construção da
identidade, a partir das alteridades, um delicado limiar baseado nos
elementos simbólicos que pontuam o estar dentro ou o estar fora.
O urbano, desta forma, cuja disposição expõe os limites das
fronteiras entre o estar dentro e o estar fora para todos, aponta
para uma naturalidade, pois:
Capítulo 13
414
“O jeito que você é e eu sou, o caminho de acordo com o qual somos ho-
mens na Terra, é o Buan, o habitante. A velha palavra dizia que o ho-
mem é tudo o que habita; mas esta palavra significa ao mesmo tempo:
cuidar e cultivar (...) Ambas as formas de construir - construir como
cultivar, colere em latim, cultura, e construir como construir edifícios,
construções, aedificare - estão contidas em uma construção autentica,
em habitar” (HEIDEGGER, 1954) [pg. 152]
Capítulo 13
416
LEVINÁS, E. Humanismo do outro STRYKER, S. Identity theory and
homem. Petrópolis: Vozes, 1972. personality theory: mutual
relevance. Journal of Personality,
MALVEZZI, M. Política identitária 75 (6), 1083-1102, 2007.
verde: emancipação ou
desrespeito? Tese (doutorado) –
Pontifícia Universidade Católica de TAJFEL, H. Grupo humanos e
São Paulo, Faculdade de Ciências categorias sociais. Belo Horizonte:
Humanas e da Saúde, 2011. Livros Horizonte,1972.
Capítulo 13
CV: http://lattes.cnpq.br/3530871747168028
E-mail: mgtassara@uol.com.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0001-6671-7969
419
420
Capítulo 14
…
…
…
…
422
pois continuou a caminhar, chamando. Voz fraca de dar dó. Altivez
impedindo lágrimas.
…
…
…
…
Capítulo 14
- Gessy… pô! Tantas quantas vezes já não te disse que é p’ra não vir
atrás de mim quando ‘tô fazendo compras?…
- É o garoto… é o garoto… que pegou a febre da poeira branca! Nós
fazer o quê?…
424
havia uma cruz meio deitada entre poucas outras letras: o “X” da
palavra. Sairam levando o frasco e caminharam apressados dentro
do fim da tarde. Foi quando, um tanto meio no afastamento, viram
a imagem esguia de uma garota riscando as terras brancas com um
cajado pontudo. Feito uma Anchieta pequena das areias secas.
- Exon, olha!… É Xeroquinha! O que é que ela ‘tá fazendo, tão longe
lá de casa?
- ‘Tá louca, Gessy! Vem cá! Vem cá! Vamos é s’esconder depressa!
- Por quê??…
- Você não escuta, não? ‘Tá surda? É um ovo-de-anjo que ‘tá vindo
p’ra cá e já vai chegar!
Capítulo 14
426
- Faz isso não! Por favor! Promete! Se o velho disse que não tem
jeito, não tem jeito!… Eles levam você… e aí como fico eu?
Capítulo 14
…
Grandefed era velho tanto. Também cabeça branca como a cidade.
428
Esfarrapado. Morava sozinho no que restava da biblioteca, tinha
muito papel e por isso era muito rico. Seus livros guardavam coi-
sas lá dos idos passados… e tinha um que ensinava uma urdidura
escrita hegemonia, sem sentido mais nenhum naquele mundo cheio
de desmemórias. Grandefed enraiveceu ao saber da doença de Hil-
ton-Pequeno.
Phililcus falou.
- Mas… Grandefed… é este, só, o sítio que tem terra p’ra plantar… Se
a gente sair daqui… viver do quê?!
Capítulo 14
- Psssss…
Grandefed puxou-o para fora da sala, para um canto, e falou a meia voz.
- Quer saber?! Quer saber?! Que ele não dura!… Nem dura nenhum
de nós! A febre veio para acabar com todos! Não se lembra Cloaca-
cola, mês passado? E o Zé Fuska, faz dois meses?…
Benettão apareceu.
430
- Descansa.
- Conto.
- Grandefed… Como era a cidade quando você era que nem eu pe-
queno e tinha muita barata p’ra brincar?…
Capítulo 14
- Coisa ruim, ruim! Quem roubou foi Eva, mais Adão. Depois, a co-
bra fez ninho na Universidade e foi crescendo… crescendo… e en-
venenou a alma de suas pessoas. E elas aprenderam coisas que não
era para se aprender e as venderam aos demônios… e os demônios
usaram os segredos de Deus para seduzir as gentes da cidade. No
432
começo, ninguém desconfiou, pensando que Ciência era só fazer
automóvel andar, luz dentro dos vidros se acender, televisão fun-
cionar mostrando coisas… Mas a Ciência era poderosa… perigo do
mundo… Pior que qualquer folha maldita ou qualquer pó branco…
Coro de indignação.
Coro de indignação.
Coro de indignação.
- E… depois?
Capítulo 14
- E como é que faz, então?… Pegam as coisas que querem… sem dar
papel em troca?!… Pecado, Grandefed!…
- Pois é. Pecado.
- Então, nós é que somos gente certa, que paga tudo certo, n’é mesmo?
434
Fez-se nova quietude ao redor. Aí, foi o velho quem falou.
- Não quero perigar criança… Nunca mais! P’ra quê? Ninguém esca-
pa mesmo da febre do pó!…
Capítulo 14
Ela arregalou os olhos. Pena que estava escuro e ninguém viu seu
espanto lindo.
- E… e depois?
436
- Não, não!… P’ra Terra Feia-Bonita, procurar remédio… alguma Ci-
ência poderosa que faça Hilton viver de novo…
Capítulo 14
Enfureceu-se tanto. Pegou uma pedra que atirou com toda sua
força fraca. A pedra rolou metro e meio adiante, quase carregando-o
junto. Cambaleou. Ficou esbravejando feito trovão enquanto Exon
e Gessy se faziam manchas diminutas no horizonte. Grandefed to-
cou a fronte com a mão trêmula: estava fria e suada como a fronte
438
de Hilton na última noite. Bengala caiu-lhe ao chão. Ninguém para
pegá-la. Ao tentar, caiu também. Cidade se esfarelando, tudo que
ainda não era branco, virando branco. Corpo inerte confundindo-
-se com as ruínas. Saliva de sua boca exangue misturando-se ao pó.
Em resmungo baixo febril, ainda murmurou (só Deus ouviu).
- Cidade maldita!
Sucumbiu.
Capítulo 14
441
Paulo Rodrigo Unzer Falcade
Universidade de São Paulo
CV: http://lattes.cnpq.
br/9579157562000547
E-mAIl: paulounzer@gmail.com
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-2980-5430
443
Considerações sobre a
Psicologia Social
palavras-chave: história da
psicologia, psicologia social,
interação social.
444
Considerations on Social
Psychology
keywords: history of
psychology, social
psychology, social
interaction.
445
Capítulo 15
Considerações sobre a
Psicologia Social
Paulo Rodrigo Unzer Falcade
Universidade de São Paulo
448
do comportamento. Isso porque o comportamento, diferente da
mente e seus mecanismos, poderia ser objeto de observação, men-
suração, experimentação, ou seja, correspondia perfeitamente à
expectativa de cientificidade em voga à época.
A Psicologia Social, enquanto subárea da Psicologia, surge com
a ênfase dada por Kurt Lewin na interação. Lewin representou uma
inovação à abordagem behaviorista, dominante da época. Propôs a
investigação psicológica delimitando o fenômeno da interação en-
tre indivíduo e ambiente. Enquanto os behavioristas estavam sobre-
maneira interessados em demonstrar o ambiente como único fator
incidente no comportamento, Lewin destacava que o indivíduo
também deveria ser considerado.
Com a Teoria de Campo Lewin desenvolveu um modelo te-
órico que se converteu em poderoso instrumento de transforma-
ção individual e grupal. Tal instrumento orienta-nos a considerar
a totalidade da situação, incluindo os detalhes pessoais e ambien-
tais relevantes.
Aqui, chamo a atenção para o ponto de separação do modelo
teórico de Lewin para com o behaviorismo de Watson. O “campo”
da teoria de Lewin supunha a existência de duas forças opostas
em qualquer dinâmica social em que indivíduos ou grupos este-
jam: uma força de atração que direciona aos objetivos e uma for-
ça de repulsão que inibe o movimento aos mesmos. A Teoria de
Campo considerava indivíduo e ambiente enquanto um sistema
social. Lewin é, por muitos considerado, o pai da Psicologia Social
por ter conseguido desenvolver um modelo cientificamente válido
e, ao mesmo tempo, eficaz no âmbito das transformações sociais
pretendidas. Ao sair do antagonismo inerente a discussão nature/
nurture, considerando os aspectos individuais e ambientais como
formadores de um sistema social passível de ser entendido e modi-
Capítulo 15
450
Ainda na rabeira da Segunda Guerra Mundial, aparecem os
famosos trabalhos de Stanley Milgram e Phillip Zimbardo que de-
monstravam, também de modo experimental, a capacidade que te-
mos de ignorar nossos valores morais em prol da obediência a algu-
ma autoridade instituída por uma situação específica. Tratando-se
de valores – isso é, de questões morais – as décadas de 60 e 70 foram
emblemáticas. Os principais centros urbanos do Ocidente entraram
em um movimento de diversos questionamentos ao establishment.
Questionamentos que iam em direção às normas, hábitos e costu-
mes vigentes, pululavam em uma intensa efervescência. Esse clima
de insatisfação generalizada criou uma agenda de transformação
da cultura e da sociedade na qual, de certo modo, estamos até hoje
imersos. Nesse contexto surgiram alguns nomes importantes na Psi-
cologia Social como Serge Moscovici, Kenneth Gergen, Lev Vigotsky,
Taylor Spence e Ignácio Martin-Baró. Nomes que trouxeram para as
quadras da Psicologia Social o espírito daquele tempo.
Com os trabalhos desses autores, passa a pairar no campo da
Psicologia Social o espírito crítico. Tal espírito servia como instru-
mento dos psicólogos sociais para avaliar teorias psicológicas, re-
pensar a própria Psicologia Social e encontrar uma utilidade práti-
ca específica para essa. Nessa altura, as exigências de cientificidade
absoluta já não eram consideradas um empecilho seja para a Psico-
logia Social, seja para as Ciências Humanas e Sociais como um todo.
Aos poucos, a utilidade específica das Ciências Humanas e Sociais,
incluindo a Psicologia Social, passava a ser a transformação social.
As Ciências do Homem – ou, as humanidades – incluindo a Psico-
logia passaram a se deter aos chamados problemas sociais, ou seja,
em questões de ordem moral, do homem e da sociedade.
Uma breve recapitulação da história da Psicologia Social é facil-
mente capaz de apreender o fato que essa disciplina tende à subtra-
Capítulo 15
452
ao behaviorismo. Se a base epistemológica do behaviorismo era o
empirismo de Locke e Hume, a base da escola da Gestalt era cer-
tamente o pensamento de Kant e Brentano. Kant era um crítico
contumaz do empirismo radical. Haveria, segundo ele, proprieda-
des mentais que organizar-se-iam a despeito da experiência. Se-
riam formas a priori da experiência. Dentre estas formas estariam,
por exemplo, espaço, tempo e causalidade. Tempo e espaço não
seriam derivados da experiência, existiriam de forma inata na men-
te, como formas a priori da percepção. Assim, a percepção não seria
constituída passivamente, como uma tábula rasa, pelo somatório
de impressões impostas pela experiência. Não. A percepção seria
uma organização ativa, unitária e coesa dos elementos integrantes da
experiência. Franz Brentano serviu de inspiração para se delimi-
tar o interesse científico antes na forma de conhecer do que no co-
nhecimento das formas. A Psicologia deveria antes estudar o ato de
experimentar do que o conteúdo da experiência. Desse modo, o
pensamento brentaniano foi de fundamental importância para o
desenvolvimento do movimento fenomenológico do inicio do século
XX. Foi somente a partir da fenomenologia que se dignificou a experi-
ência imediata, tal como ela ocorria, através de descrições livres de
amarras sintomatológicas.
Todas essas inspirações e referencias constam no quadro
dos fundamentos da referida escola psicológica da Gestalt. Os
principais nomes dessa escola foram Max Wertheimer (1880-
1943), Wolfgang Köhler (1887-1967), Kurt Koffka (1886-1941)
além do próprio Kurt Lewin (1890-1947). Todos alemães, emi-
graram aos EUA no período nazista e, além de darem sequência
as suas pesquisas em solo americano, conviveram de perto com
o behaviorismo. Desde as pesquisas com animais realizadas por
Köhler até os estudos sobre o pensamento em seres humanos
Capítulo 15
454
(…) ao pensarmos na Psicologia da Gestalt, devemos perceber que
ela se volta para o estudo do comportamento molar ocorrendo num
ambiente comportamental que é a organização geográfica do modo
como o sujeito percebe, sendo essa percepção determinada por fa-
tores diretos da consciencia e também por fatores inconscientes que
completam o campo psicofísico (Carpigiani, B, 2002, p.67)
Capítulo 15
456
3. Psicanálise e a Psicologia Social
Capítulo 15
2
Darmegian, 1991
458
Nesse reconhecimento da esperada divisão dos níveis de reali-
dade no polo interno da formação do campo social, isso é, em suas
considerações acerca do estatuto da influencia do nível individual
na montagem do fenomeno da interacão social depreende-se.
Capítulo 15
460
referências
carpegiani, b. Psicologia: KOFFKA, K. Princípios de psicologia
das raízes aos movimentos da gestalt. São Paulo, Cultrix, 1975.
contemporaneous. São Paulo, LEWIN, K. Problemas de dinâmica
Pioneira Psicologia. 2002. de grupo. São Paulo, Cultrix, 1970.
KRUGUER, H. Introdução a
Psicologia Social in Temas básicos
de Psicologia. Editora E.P.U. São
Paulo, 1986
Capítulo 15
463
Psique e matéria: um estudo
junguiano a partir da Atlântida
de Platão e do sertão de
Guimarães Rosa
464
Psyche and matter: a Jungian
study as from Plato’s Atlantis
and the sertão of Guimarães
Rosa.
465
Capítulo 16
Psique e matéria: um
estudo junguiano a
partir da Atlântida de
Platão e do sertão de
Guimarães Rosa
Rafael de Santis Bastos dos Reis
Universidade de São Paulo
Introdução.
468
I. Pelos caminhos da imaginação.
Capítulo 16
470
O primeiro produz aquisições novas, adaptação, imita a realidade
e procura agir sobre ela. O último afasta-se da realidade, liberta
tendências subjetivas e é improdutivo com relação à adaptação
(Jung, 1952/2016, §20).
2 Adiante explicaremos o que o psiquiatra suíço entende por arquétipo e por imagem ar-
quetípica.
Capítulo 16
472
dental é colocar uma depois da outra, numa ordem arbitrá-
ria, as onomatopeias que gritavam a fome, o medo e o amor
pelas florestas primitivas e às quais pouco a pouco se asso-
ciaram significados que são considerados abstratos quando
estão apenas amortecidos. – Não tenham medo de que esta
sequência de pequenos gritos abafados e enfraquecidos que
compõem um livro de filosofia nos venha a ensinar coisas de-
mais sobre o universo para que não possamos mais viver nele
(apud Jung, 1952/2016, §13).
Capítulo 16
474
é feita uma longa explanação sobre uma civilização antiga, a rica
Atlântida, que teria rivalizado com Atenas em um passado distante.
Desde Platão, esta narrativa sobre Atlântida gera controvér-
sias e inspira teorias, pesquisas, obras de arte e onerosas buscas
arqueológicas. Atlântida existiu geograficamente algum dia ou foi
uma invenção de Platão? Dentre as hipóteses arqueológicas que
foram aventadas ao longo do tempo, destacamos: a civilização mi-
noica da ilha de Creta; sociedades do continente americano; arqui-
pélagos dos Açores e da Madeira; Tartessos, civilização destruída
cerca de 500 a.C., que teria existido no sul da Espanha e, ainda, a
região onde hoje é a Suécia. Todas elas foram, até então, refuta-
das. Lopes (2011) revisou estudiosos que se ocuparam do tema
e defende a hipótese da anistoricidade de Atlântida. Segundo ele,
Platão se baseou em diversas referências culturais de sua época
para compor o mito de Atlântida: “uma geografia imaginária de
um mundo também ele imaginário e sobretudo imaginado, mas
sempre a partir do repositório cultural de que emerge o sujeito”
(Lopes, 2011, p. 62). Não seria difícil, diz Lopes, constatar a anisto-
ricidade e o caráter alegórico da Atlântida platônica. Seria possível
reconhecer na descrição de Atlântida referências a Hesíodo e a
Heródoto, além de elementos das culturas asiática e egípcia. Mas
o fundamental seria o fato de que Platão deixa claro que pretende
tratar naquele diálogo da questão da linguagem enquanto imita-
ção e representação. A composição ficcional de Atlântida seria en-
tão a efetuação deste programa por Platão. Diz o filósofo: “Aquilo
que todos nós pronunciamos é, necessariamente, uma imitação,
uma representação” (Crítias, 107b).
Todavia, a anistoricidade e o caráter ficcional enxergados
por Lopes e outros estudiosos não exercem o mesmo poder
de convencimento sobre todos. Atlântida inspirou e continua
Capítulo 16
3 Poderíamos comparar a procura por Atlântida com casos de grupos de pessoas que realizam
buscas por fósseis de sereias, dragões e outros seres míticos. Com facilidade encontramos
relatos sobre isso disponíveis na internet.
476
diferentes tendências culturais, atravessando o século XX. O movi-
mento regionalista pode ser dividido em três períodos: inicia foca-
lizando peculiaridades humanas e regionais; no segundo momento,
sob influência positivista, adota um tom descritivo científico e, no
terceiro período é marcado por preocupação político social. To-
davia, quer seja focalizando o pitoresco humano, a paisagem ou a
política, o regionalismo sempre teve como característica central a
referência ao lugar humano.
Paralela ao regionalismo, desenvolvia-se no Brasil outra linha
literária que, distante das preocupações da grande política e de
descrições sócio geográficas, se voltava para a interioridade huma-
na, cogitando problemas de ordem espiritual, o mistério e a ques-
tão do bem e do mal. O romance católico francês do período entre
guerras exerceu influência sobre essa literatura introspectiva que
tem em Clarice Lispector seu maior expoente.
Segundo Galvão (2006), Guimarães Rosa incorpora estas duas
grandes linhagens literárias ao criar sua obra:
Capítulo 16
No entanto, Candido (2011) relata que, assim que leu Sagarana, pri-
meiro livro publicado por Rosa, percebeu que aquele não era um
autor regionalista. Tal percepção se confirmou quando leu Grande
Sertão, sobre o qual diz: “vemos misturarem-se em todos os níveis
o real e o irreal, o aparente e o oculto, o dado e o suposto” (Candi-
do, 1964, p. 135) e comenta ainda sobre o livro: “podemos ver que o
real é ininteligível sem o fantástico, e que ao mesmo tempo este é
o caminho para o real” (p. 139).
Grande Sertão: veredas, único romance de Rosa, é ambientado
numa região específica, formada pelo Noroeste de Minas Gerais,
o Oeste da Bahia e o Nordeste de Goiás, e fato curioso é que bió-
logos, pesquisadores e habitantes da região até hoje se surpreen-
dem ao encontrar certas fidelidades entre a obra e a realidade ge-
ográfica do lugar. Sabe-se que além das viagens etnográficas, Rosa
estudou mapas e dados geológicos, procurou conhecer a fauna e a
flora desta região. Todavia, Rosa parte do regional, mas cria uma
obra de caráter universal, que tangencia o numinoso e sonda o
metafísico, de modo que, segundo Candido (2011), o escritor mi-
neiro inaugura uma nova categoria literária: o transregionalismo.
478
Há muitos artistas que também buscaram conhecer de perto
a matéria prima de suas criações, no entanto, o percurso criativo
de Rosa, em especial, demonstra bem o que tentamos dizer, uma
vez que sua criação comporta uma espécie de contraste. Apesar de
seu acurado esforço “científico” de levantar dados, nomenclaturas
e detalhes regionais, este sertão tangível, enquanto realidade mate-
rial, no processo de elaboração da obra se desprende de seus deter-
minismos concretos e é trabalhado livremente pela imaginação do
autor. A realidade concreta se torna substrato para um movimen-
to imaginativo que lhe é próprio. Sua obra, “quanto mais gravada,
quanto mais cravada no documento e no detalhe, mais ela se libera
[...] é o paradoxo da extrema fidelidade com a extrema liberdade”
(Candido, 2011, p. 21).
A obra, engendrada a partir das buscas de Rosa, é uma criação
do autor: algo novo e original. O livro, enquanto entidade material,
é a materialização desta criação imaginativa, mas, de certo modo, é
também uma repatriação no mundo da matéria de algo que neste
mundo teve seu germe. É significativo este dizer de Rosa (1965):
“comecei a transformar em lenda o ambiente que me rodeava, por-
que este, em sua essência, era e continua sendo uma lenda” (p. 79).
Guimarães Rosa se mostra capaz de perscrutar o viço poético la-
tente nas coisas: em sua criação, a concretude do mundo se revela
passível de ser desdobrada em fantasia.
Se, como propusemos antes, a procura pela existência física
de Atlântida diz respeito a certo movimento psíquico, a imagina-
ção revelando uma dependência a referências na matéria; o per-
curso criativo de Rosa, por sua vez, nos aponta outro movimento:
neste, é a matéria que parece desvelar-se prenhe de alma. A ma-
terialidade é subjugada e desdobrada pela imaginação, que nisto
revela um caráter de autonomia. Consideramos que, juntos, estes
Capítulo 16
4 Theodor Lipps (1851-1947) já dizia que a natureza da vida psíquica é inconsciente. Jung refere-se
a Lipps bem como a outros pesquisadores do século XIX que o antecederam nas discussões so-
bre o inconsciente e a natureza da psique. Alguns dos importantes nomes que o influenciaram
neste sentido são: Carl G. Carus (1789-1869), Theodor Fechner (1801-1887) e Karl R. Eduard von
Hartmann (1842-1906).
480
O arquétipo é, portanto, uma hipótese inferida a partir de certos
fenômenos, considerados seus efeitos. Tais fenômenos, Jung os de-
nominou imagens arquetípicas: variações mais ou menos constantes,
presentes em todos os tempos e povos, e que orbitam em torno de
certos eixos comuns.
Jung constatou a existência das imagens arquetípicas por meio
de longa e metódica investigação. Fez isto observando fantasias,
sonhos e expressões plásticas de pacientes psicóticos (atendidos
por ele e por colegas), e notando a semelhança entre estes conte-
údos e variadas expressões culturais (com as quais estes pacientes
muitas vezes nunca tiveram contato). Daí ele afirmar que sua teo-
ria dos arquétipos tem base empírica.
As imagens arquetípicas apontam para a existência dos ar-
quétipos, que são os estruturadores do psiquismo, no entan-
to, não conseguimos conhecer o arquétipo em si mesmo. A ir-
representabilidade do arquétipo e a impossibilidade de se ter
acesso direto a ele coloca a Psicologia de Jung em uma situa-
ção epistemológica parecida com a da Física Moderna. Diz Jung
(1946/2016): “Encontramos situação semelhante a esta na Física,
onde as partes mínimas são em si irrepresentáveis, mas produ-
zem efeitos de cuja natureza é possível deduzir um certo modelo.
A representação arquetípica, o chamado tema ou mitologema, é
uma construção deste gênero” (§ 417). Isto é, a unidade elemen-
tar da vida psíquica (o arquétipo), e a unidade elementar da ma-
téria são inacessíveis diretamente. Visto isso, Jung (1946/2016)
coloca a seguinte questão: “Quando se admite a existência de
duas ou mais grandezas irrepresentáveis, existe consequente-
mente sempre a possibilidade – do que em geral não nos damos
suficiente conta – de que se trata não de dois ou mais fatores,
mas apenas de um” (§ 417).
Capítulo 16
482
Casos de sincronicidade entre eventos psíquicos e eventos
não-psíquicos, embora mais difíceis de serem investigados siste-
maticamente, foram discutidos por Jung, e a pesquisa sobre estes
fenômenos foi importante na elaboração de sua concepção sobre a
relação entre matéria e psique.
Um caso desse tipo, que se tornou célebre, é o caso de Swe-
denborg, que foi inclusive relatado por Kant. Swedenborg teve
a visão de um incêndio que ocorria em Estocolmo, apesar de
estar em uma cidade há quilômetros de distância e sem pos-
sibilidade de ter informações de lá. Sua premonição depois foi
confirmada pelos fatos. Jung comenta este ocorrido, sugerindo
que o arquétipo,
Capítulo 16
6 O conceito de arquétipo foi trabalhado por Jung ao longo de toda sua obra. Segundo Xavi-
er (2003), há três principais momentos na maturação deste conceito. Em 1912, Jung ainda
não fala ainda em arquétipo, mas refere-se a uma “imago” que seria a “independência viva
na hierarquia psíquica, aquela autonomia que se cristaliza como particularidade essencial do
complexo de sentimentos às custas de experiências múltiplas” ([1912]1952/2016). Em 1919,
Jung utiliza pela primeira vez o termo arquétipo para referir-se às “formas a priori, inatas, de
intuição, quais sejam os arquétipos da percepção e da apreensão, que são determinantes
necessários e a priori de todos os processos psíquicos” (1919/2016, § 270). Na década de 1940,
por influência do diálogo com Pauli, Jung amplia o conceito, passando a considerar o arquéti-
po como psicoide, denotando com isso seu aspecto “quase psíquico”, ou semipsíquico.
484
Wolfgang Pauli (1946) faz um interessante comentário a esse res-
peito, afirmando que a “Psicologia moderna” (referindo-se à psico-
logia que investiga os aspectos objetivos do inconsciente) poderá
contribuir com a “psicologia meramente subjetiva da consciência”:
Capítulo 16
7 Segundo Shamdasani (2005, p. 258), Jung formula seu conceito de arquétipo de um modo
assimilativo e sincrético.
486
tasia é sinônimo de imaginação. Aqui, no entanto, há um terceiro
uso: a palavra fantasia está nomeando a faculdade criativa da psi-
que, faculdade esta que é também a vinculadora entre as diferentes
funções psíquicas, e entre psique e mundo externo.
Capítulo 16
488
Lispector. Literatura e Sociedade.
São Paulo, n. 6, pp. 158-164, dec.
2002. Recuperado de http://
www.revistas.usp.br/ls/article/
view/25381.
Capítulo 16
CV: http://lattes.cnpq.br/2016796800053562
E-mail: vania.bartalini@gmail.com
ORCiD: https://orcid.org/0000-0001-6349-7446
491
A paisagem como experiência.
Abordagem qualitativa
fenomenológica e o fenômeno
paisagem
492
The landscape as experience.
Phenomenological qualitative
approach and the landscape
phenomenon
493
Capítulo 17
A paisagem como
experiência.
Abordagem qualitativa
fenomenológica e o
fenômeno paisagem
Vania Bartalini
Universidade de São Paulo
496
mundo, buscando aproximar-se do que ocorre a partir da experi-
ência sensível, cotidiana, fática. É, portanto, na compreensão da
paisagem como modo de ser humano que a abordagem qualitati-
va fenomenológica pode ser instrumento auxiliar do pesquisador /
paisagista, ampliando seu horizonte de compreensão e subsidiando
eventuais partidos programáticos. Sua relevância está justificada,
na medida em que a finalidade última da atividade do arquiteto pai-
sagista é propositiva - na proposição se concretizam concepções de
mundo e caminhos de devir. E como proposições se transformam
e se reinventam em conformidade com o contexto e tempo vivido,
fica clara a necessidade de compreender tempo /espaço como ex-
periência sensível, que orienta o pensar.
Na atividade projetual, o que décadas atrás era reverenciado
como projeção máxima da singularidade estética, política e técnica
do arquiteto paisagista, parece ser hoje revisitado à luz de valores
particulares ao chamado da temporalidade atual.
Instada pela necessidade contemporânea de maior participa-
ção popular, floresce o conceito de cidade como construção coletiva,
onde o diálogo e os processos participativos começam a se deline-
ar como caminho possível para a construção de um futuro a curto,
médio e longo prazos. Pensar a cidade como lugar de todos e, por
isso mesmo expressão de diferenças, convoca o arquiteto paisagista
a uma postura desenhada mais à medida da nova ordem, que requer
aproximação direta ao experenciador. Para isso, a formação de uma
postura própria e adequada de pesquisador se coloca como questão.
Não há dúvida de que levar o arquiteto paisagista ao encontro
de seu público, colocando em ação um modus operandi diferente
do convencional é um grande desafio. A ruptura com o modelo tra-
dicional de conceber paisagem e, como consequência a atividade
projetual, se faz ver em muitas dimensões.
Capítulo 17
498
abertura por vezes silenciosa, anterior à análise é a principal busca
da abordagem qualitativa fenomenológica.
A apreensão daquilo que se experencia não é tarefa banal; ao
contrário, requer escuta peculiar, interessada e acolhedora, que
propicie o desvelamento de uma trama de sentidos concernente
a ambos (àquele que expressa e àquele que acolhe). Essa rela-
ção dialógica define o que se dá entre pesquisador e pesquisado
quando, sob a perspectiva fenomenológica, a experiência é am-
pliada num movimento permanente de investigação e testemu-
nho do vivido como impressão, sensação e sentimento no que se
desvela como paisagem.
Na visada fenomenológica a tradicional posição sujeito /objeto
cede lugar a uma interação entre sujeitos (pesquisador /pesquisa-
do) que se aproximam e se afastam, se interpelam mutuamente e
se avizinham de dimensões humanas por vezes inesperadas.
Tal orientação de “conduta” seria impossível se o pesquisador
não se visse implicado no processo – ele também experenciador de
paisagem é , pela fala do outro, em contato com sentidos explícitos
e implícitos de sua própria experiência. Eis aqui algo de importân-
cia fundamental: a constatação de que pesquisador e pesquisado
compartilham um mundo que os afeta e os compõem, de modo
a ser impossível conduzir-se pela pretensa neutralidade científica
como forma de obtenção de resultados.
Na abordagem qualitativa fenomenológica, a formação da pos-
tura de pesquisador se dá mediante discussões, reflexões e o fazer
prático. Nesse caminhar ocorre a gradativa depuração exigida para
a condição de pesquisador: o aprimoramento da escuta ativa e da
compreensão interpretativa. Isso faz ver que o desenvolvimento de
tal postura requer formação específica para o bom aproveitamento
do potencial analítico do ferramental em questão.
Capítulo 17
500
Inicia-se então, a pavimentação do caminho que leva ao pensa-
mento fenomenológico como projeto de compreensão do humano,
através de sua “morada” constitutiva: o mundo.
Capítulo 17
502
Portanto, pesquisar em fenomenologia significa perguntar siste-
maticamente, interrogar-se a cada etapa, tendo em mente que Todo
perguntar é um buscar. Toda busca tem sua direção prévia a partir do
buscado (Heidegger, in Evangelista, 2015).
Aqui, é preciso observar que à interrogação corresponde uma
certa “posição” assumida pelo pesquisador, que não mais se pauta
por premissas esquadrinhadas, visto que para interrogar é neces-
sária a tomada de consciência de um “não saber”, que conduz à
posição de abertura e reverência ao desconhecido.
O pesquisador é, na verdade, “veículo” da pergunta...
Imprescindível considerar então que, para apreender o que se
mostra, é preciso refletir sobre os modos de aproximação, não apenas
àquele a quem se pergunta, mas também àquilo que se pergunta.
Indicando Heidegger, Evangelista afirma:
...o modo de acesso ao que se quer investigar não é algo de que se possa
lançar mão. Pelo contrário, é o tema mesmo da pesquisa que precisa
indicar como pode ser acessado... as coisas elas mesmas determinam
seu modo-de-tratamento (Evangelista, 2015).
Capítulo 17
504
de pesquisar fenomenológico não é raro observar no pesquisa-
dor uma dose de desconfiança, receio ou descrença. É difícil se
deixar levar por um processo que promete incertezas, demanda
perguntar-se a si próprio e sinaliza de onde se sai, sem garantir
onde se chega. No entanto, como dito anteriormente, essa é
a forma rigorosa e precisa de investigação do humano: apro-
ximar-se, por-se a escutar, ser absorvido pelo modo de ser do
outro, descrevê-lo e interpretá-lo a partir desse modo, lançan-
do luzes que podem ir além da compreensão desse ou daquele
indivíduo em particular.
É importante reforçar que na perspectiva qualitativa fenome-
nológica não há objeto observado e sujeito observador e sim: o par
fenômeno /percebido”(Bicudo, 2011). Ainda segundo Bicudo,
Capítulo 17
506
No seu entender, a capacidade de compreender e interpretar
devem ganhar relevo mesmo se o foco da investigação não se deti-
ver naquele que compreende - o que será objeto de crítica tanto de
Heidegger quanto de Gadamer.
Segundo Ricouer, com ambos:
Capítulo 17
508
pesquisado (ou o segmento pesquisado) descreve sua experiên-
cia sobre o tema, abrindo-se para aquilo que lhe acontece. Essa
forma de abordagem traz outra perspectiva à compreensão do
fenômeno da paisagem, que então se mostra como relação que
inexoravelmente se dá, num dado momento, sob determinadas
condições, a partir de modos de ser no mundo.
É possível concluir afirmando que, a tentativa de capturar o
que desta forma se revela como sentimento de paisagem, seja o
principal intuito daquilo que se entende por desenvolvimento da
postura de pesquisador qualitativo fenomenológico. No exercício
intenso e permanente, exigido do pesquisador, talvez resida o ne-
cessário para tornar mais transparente a estrutura pré-compreen-
siva e fática da relação homem /lugar (ou paisagem).
Capítulo 17
510
FAU - Faculdade de Arquitetura HILLMAN, James. Cidade e Alma.
e Urbanismo de São Paulo. Tradução Gustavo Barcellos e
PAISAGEMTEXTOS 2. Organização e Lúcia Rosenberg. Studio Nobel,
tradução Vladimir Bartalini. FAU, São Paulo, 1993
São Paulo, 2013
JOEL, Martins e Maria Aparecida
FIGUEIREDO, Luís Cláudio Bicudo. A pesquisa qualitativa
M. Matrizes do pensamento em Psicologia – Fundamentos e
psicológico. Editora Vozes, recursos básicos. Centauro Editora,
Petrópolis, 2014 São Paulo, 2005
Capítulo 17
Vania Bartalini
Rinaldo Miorim
Universidade de São Paulo
CV: http://lattes.cnpq.br/4978786560596770
E-mail: rinaldo2201@usp.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-4453-8385
513
Reflexões sobre os trajetos:
imaginário, espaço e
metrópole contemporânea
514
Reflections on the paths:
imaginary, space and
contemporary metropolis
515
Capítulo 18
Reflexões sobre os
trajetos: imaginário,
espaço e metrópole
contemporânea
Rinaldo Miorim
Universidade de São Paulo
518
tos sistêmicos de imagens que são capazes de um tipo de orga-
nização autopoiética, que em termos da poética do devaneio de
Bachelard (1996), ressoa por meio de uma abertura do psiquis-
mo em direção à experiência e ao conhecimento do novo, uma
visão do imaginário muito próxima de uma imaginação criativa
e criadora, tal como aparece na poesia de Coleridge. Já sobre a
expansão da utilização do conceito de imaginário a partir da pós-
-modernidade, Wunenburger (2010) aponta sua relação com uma
descrença crescente quanto ao sujeito autônomo e autor de suas
próprias representações, levando-nos para perspectiva de produ-
ção de imagens onde o aleatório e o lúdico ganham importância
no léxico da produção das imagens. Isso permite uma retomada
da concepção da imaginação criativa e instauradora de sentidos
para compreensão do mundo contemporâneo e para formulações
e interpretações acerca da sociedade, dos comportamentos e da
experiência subjetiva, além de propostas de investigação cientifi-
ca do humano, da psique e da sociedade.
Conforme Wunenburger e Araújo (2003), o Imaginário des-
crito por Gilbert Durand está essencialmente identificado com
o mito, como o “primeiro substrato da vida mental, da qual a
produção conceptual é apenas um estreitamento” (p. 26). Des-
ta maneira, o Imaginário se diferencia de uma simples imagética,
isto é, das diversas formas representações do mundo, das pessoas,
animais, paisagens, cenários, eventos e objetos, obtidos através
de fotos, desenhos, filmes e outras técnicas de captura e registro
das imagens, uma vez que o Imaginário, mais que uma imagética,
se aproxima do que Henry Corbin chamou de imaginal, do cam-
po intermediário entre as sensações e a experiência divina, um
espaço composto por paisagens e personagens imaginais marca-
dos pelo encontro do simbólico. Entretanto é mister notar que
Capítulo 18
520
culturalismo, uma vez que o imaginário se encontra no entre, no
espaço de trânsito dos fenômenos que comunicam o subjetivo e o
objetivo. Logo, a proposta de Durand (2001; 2004) ao falar do ima-
ginário e seus fenômenos por meio das trocas entre o espaço vital
com seu ambiente de relação e os reflexos neurobiológicos inatos,
desencadeadores daqueles gestos fundamentais para a organiza-
ção neuropsicológica do ser humano, apresenta uma fenomeno-
logia da imagem que evita cair em cisões equivocadas e permite
relacionar sujeito e objeto através de um terceiro campo. São os
gestos dominantes como os de: posição, da postura ereta que pri-
vilegia a verticalidade e a visão evitando a queda abrupta; nutrição,
da sucção labial, orientação da cabeça e peristaltismo digestório
de descida; copulativo, dos esquemas e reflexos inatos propulso-
res de acasalamento. Em suma, esquemas reflexos organizadores
das funções psicofísicas, sensoriais e motoras que se apresentam
enquanto processos matriciais que, na sua relação com o universo
cósmico e social, correspondem aos grandes agrupamentos de re-
presentação e imaginação, relacionados aos diferentes universos
das imagens, seus símbolos instauradores, as formas de se lidar
com a angústia, as estruturas linguísticas, entre outros aspectos
ancorados nos diversos universos míticos e suas estruturas arque-
típicas: do imaginário diurno heroico-esquizomórfico, de corte e
oposição, da ascensão, da tentativa polêmica de vencer o mal e
superar as forças do tempo através da luta; do imaginário notur-
no, místico-antifrásico, das imagens da descida e da intimidade,
da acomodação que transforma a morte e a temporalidade; do
imaginário noturno, dramático ou sintético-disseminatório, da
organização da narrativa e da integração dos opostos, tendo no
eufemismo as tramas da conciliação entre diferentes dinamismos
simbólicos do campo psicossocial.
Capítulo 18
522
tivo e afetivo, questões de ordem simbólica, construindo pontes
que possibilitam o entendimento das interações intersubjetivas
e intergrupais, ou seja, a noção de trajeto abre caminho para um
entendimento dos modos de vinculação com o outro e com o am-
biente, com a cidade e a paisagem, tratando do vínculo com a Terra,
numa abordagem que, além de ecológica, abre-se para os modos de
interação simbólica e da relação psíquica entre grupos e pessoas.
Numa concepção de espaço e trânsito entre ser humano e am-
biente, onde sujeito e objeto, o humano e a Terra são ligados por
uma relação de contínua interação, Berque (2011), inspirado no fi-
lósofo Watsuji Tetsurô (que por sua vez se fundamentou em Mar-
tin Heidegger), desenvolveu a noção de mediância, como o fenôme-
no da relação de uma sociedade com a extensão terrestre, onde a
própria relação é um meio e cujo sentido combina: a extensão do
mundo físico ou objetivo; as relações ecológicas que intercambiam
a espécie humana ao seu ambiente; a paisagem, “onde atuam as
relações de ordem simbólica, pelas quais uma cultura naturaliza
a subjetividade coletiva” (Berque, 2011, p. 193). Se a condição do
ser humano é medial, as trocas simbólicas e ecológicas entre o ser
humano e seu meio seguem um trajeto que não é nem objetivo e
nem subjetivo, uma trajeção, onde um incessante movimento em
espiral produzindo uma realidade trajetiva, que é semi-subjetiva e
semi-objetiva, como condição de interação com nossos meios.
No cruzamento entre duas concepções de trajeto, o antropo-
lógico e o mesológico, pode-se circunscrever algumas expressões
do Imaginário em sua dimensão espacial, uma vez que entendemos
que as noções de espaço, lugares, território e o habitar se articulam
com o universo da imagens, temas e mitos, que também é o fun-
damento criativo e criador dos mesmos, interagindo sempre com
o ambiente cósmico, material e simbólico. O trajeto antropológico
Capítulo 18
524
transmutando o mal em bem, sem evasão ou distanciamento, pro-
curando habitar as imagens na sua concretude do aqui-e-agora. Do
ponto de vista espacial, a verticalidade heroica procura a luz como
numa busca da ascensão do espírito, já nos processos matriciais
da mística, é na descida da imagem, das suas brumas e espumas,
na sua umidade, que se inverte o sentido assimilando inclusive as
formas imagéticas da escuridão.
Entre a verticalidade e a horizontalidade do universo antropo-
lógico das imagens, a partir da encruzilhada que forma o centro e
a circularidade de seu entorno, ainda no regime noturno da ima-
gem, observa-se um terceiro campo de imagens que tem na roda
e nos ciclos de integração a expressão dramática do universo mi-
topoético, trata-se da conciliação dos opostos e da organização do
tempo na forma narrativa. É o universo simbólico capaz de colocar
em questão os limites entre o que aprendemos a chamar de vida
e de morte. Em sua imagética pictórica tem-se as geometrias dos
mandalas tântricos, dos yantras, entre tantas outras formas circula-
res e espiraladas cujo centro se confunde com a periferia, como ex-
pressivas imagens da totalidade da psique. Nas narrativas ocorrem
mitos onde bem e mal, vida e morte, o rei e a rainha, se conjugam
formando um terceiro elemento, que pode ser um filho divino, ou
ainda surgir como uma joia, da obra que se realiza em sua plenitu-
de transformativa e simbólica, como foi bem apresentado por Jung
(2011). Enfim, nesse caso o movimento espacial é circular e cícli-
co, ou ainda ritmado, conciliando um polo com o outro em suas
diferenças e assimetrias. Vale bem destacar a relação que Durand
estabeleceu entre o tempo e o espaço, sendo a função fantástica da
imaginação a condição do eufemismo e, também, da transformação
das angústias do tempo e da morte através da espacialização. No
prolongamento do tempo-espaço, as narrativas criam condições de
Capítulo 18
526
de do espaço o que confere uma estabilização ontológica, mesmo
quando vivenciado pelo deslocamento, permitindo ao mesmo tem-
po “a participação e a ambivalência das representações imaginá-
rias” (p. 412). Dito assim, o espaço é o próprio trajeto imaginário
que permite a função fantástica se apresentar como uma função
de esperança, de transformação das angústias frente ao tempo e à
morte, cuja topologia se expressa pelas funções afetivas das estru-
turas da imaginação, da elevação, luminosidade e dicotomia trans-
cendentes, da inversão e profundidade na intimidade e na síntese
do processo da circularidade e da repetição cíclica, movimentos e
trajetos que têm na trama da rede simbólica seus pontos de ligação.
Capítulo 18
528
ácida e destrutiva, para o retorno às possibilidades de cultura e de
cultivo das imagens que estruturam o psiquismo. Hillman (1993)
faz a ligação do espaço com o psíquico, sugerindo o movimento
de descida e a lentidão, a atenção à beleza dos pequenos detalhes,
como veredas de trabalho psíquico, imaginando a presença nas si-
nuosidades e os cantos das coisas, como também no andar vagaro-
so que permite encontrar diferentes visadas, da paisagem da mon-
tanha aos percursos e trajetos urbanos. Existindo um parentesco
entre a experiência psíquica e a apreciação estética, assim como o
patológico que pode servir de elemento impulsionador ao trabalho
criativo e artístico.
Uma descida às imagens e simbolismos da cidade também
podem ser verificadas em Paula Carvalho (1990, pp. 146-147) nas
“cinco ordens arquetípicas”, relativas aos modos de orientação da
imaginação sobre a cidade humana e que foram descritas por Gil-
bert Durand quando tratou da cidade romana. Fundamentando-se
no princípio de que as estruturas do imaginário antropológico (he-
roica-esquizomórfica, mística-antifrásica, sintética-disseminatória)
operam condições para cinco diferentes modos de organização
social, vistos através de seus correlatos mitos, eventos, ritos e fi-
gurações da realidade socio-histórica, por esse caminho observa-se
cinco ordens imagético-simbólicas em seu trajeto relacional sobre
as pessoas, o social e seu espaço. São as ordens: marcial, da tensão
entre as forças de ataque e fuga, do imperativo da agressão; patri-
monial, da dialética entre a demanda de consumo e a produção; mer-
cantil, a instituição da troca comercial, mas também do conflito en-
tre o roubo e comércio; sacerdotal, da dialética entre poder mágico
e poder gnóstico; imperial, da coerência e soberania organizacional.
Pensando nas grandes cidades brasileiras, ou em alguma outra
que possa trazer presente elementos da crise civilizatória contem-
Capítulo 18
530
somente uma ponte sobre o abismo, uma ponte não é um fim em
si mesmo, como acredita o homem inflado e banalizado, o último
homem, massificado e tomado pelos mesmos mitos que desdenha,
evita e recusa. A grande cidade, como triunfo da mente racional,
parece estar alinhada a uma sociedade que escolheu o desespero
do abismo à ponte, afinal a experiência sagrada está morta, a poéti-
ca se distanciou da magia, a infraestrutura invisível e significadora,
da esperança de encantar o mundo, parece estar perdida.
Tratando da relação entre paisagem e cidade, como dois cam-
pos complementares necessários, não apenas para a formação do
sentido, mas inclusive para a manutenção das condições que per-
mitem uma vida plena e diferenciada, Serrão (2012) fala da paisa-
gem e da cidade como duas formas individualizadas do ser e estar,
pois se “a cidade está na paisagem, tal como a paisagem penetra a
cidade” (p. 67), existe uma urgência da reaproximação entre cida-
de e paisagem através da natureza e que vai ao encontro da con-
dição medial que Augustin Berque apresentou como ontológica e
vital para o ser humano e sua relação com o mundo, que além de
ecológica, também é uma relação de sentido e de condição para os
laços de convívio psicossocial.
Mas também, natureza e imaginação são interpretadas aqui
como análogas em sua essência. Imaginar é estar em contato
com a natureza, descer para a cidade é o acontecer e fazer psí-
quico, conforme descrito pela psicologia imaginal de J. Hillman.
A escolha por uma caminhada poética, pode ser a tentativa do
resgate entre o visível e o invisível. Como citado no início des-
te texto, os poetas, como Coleridge, já apontavam a imaginação
criativa como ponte entre vida e sentido, organizadora do mun-
do cotidiano, que não é mera cópia ou representação, mas cuja
natureza é dotada de potência significadora. A metáfora se di-
Capítulo 18
532
Considerações finais
Capítulo 18
534
referências
Bachelard, G. (1996). A poética Durand, G. (1988). A imaginação
do devaneio. São Paulo: Martins simbólica. São Paulo: Cultrix /
Fontes. Edusp.
Capítulo 18
536
Capítulo 18
Rinaldo Miorim
Rodrigo Feliciano Caputo
Universidade de São Paulo /
Unisalesiano
CV: http://lattes.cnpq.br/4206815066423072
E-mail: caputo_br@yahoo.com.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0003-1643-4834
539
A morte e os vivos: um estudo
comparativo dos Sistemas
Tanatológicos linense e Bororo
540
Death and the living: a
comparative study on the
thanatological systems linense
and Bororo
541
542
Capítulo 19
A morte e os vivos: um
estudo comparativo dos
Sistemas Tanatológicos
linense e Bororo
Rodrigo Feliciano Caputo
Universidade de São Paulo / Unisalesiano
Introdução
544
É para minimizar tal padecimento que toda sociedade desenvol-
ve sistemas de lida com a morte, os quais são relevantes para os agru-
pamentos humanos. Contudo, há superficialidade das definições, a
falta de delimitação do tema e uma imprecisão terminológica. Tais
esclarecimentos são fundamentais para que, posteriormente, faça-
mos as análises dos sistemas de lida com a morte linense e Bororo.
Existem poucas publicações tratando especificamente sobre
as organizações coletivas de lida com a morte. Em uma pesquisa
realizada no dia 18 de dezembro de 2017, na Plataforma Brasil e
Scielo – Scientific Electronic Library Online, enviando ordem de
busca em todos os índices, foram pesquisadas (uma por vez) as se-
guintes palavras-chave: necro-sistema(s); sistema(s) mortuário(s);
sistema(s) funerário(s) e sistema(s) tanatológico(s). Nas pesqui-
sas feitas na plataforma Brasil, a resposta obtida foi que não havia
documentos referentes àquelas buscas. No Scielo houve poucas
publicações resultantes da busca (p.e. ABBEG; BASTOS; MENEGHEL,
2003; SANTOS, 2009), sendo que nestas a terminologia sistema
mortuário e/ou sistemas fúnebres não possuem nenhuma defini-
ção, delimitação do tema ou justificativa do uso de tal termo.
Cunha (1978), utiliza o termo “sistema funerário”, porém não
discute a escolha deste termo e também não realiza uma definição
do mesmo. Porém, delimita o campo nas tarefas funerárias que an-
tecedem à morte (p.e. presságio, últimas disposições, etc.) e as que
lhe sucede (enterro, luto, etc.).
Kastembaum e Aisemberg (1983) nomeiam de diferentes mo-
dos os conjuntos integrados de lida com a morte: Sistema mortuário,
tanatológico, fúnebre e necro-sistemas e os apresentam como sinô-
nimos, porém define que estes consistem nas “[...] palavras e ações
concernentes à morte sejam consideradas como constituindo, juntas,
um sistema. Todas as sociedades desenvolveram um ou mais sistemas
Capítulo 19
546
no mundo dos vivos para conduzi-lo ao mundo dos mortos - bus-
ca à qual os homens defrontarão a mais encaniçada resistência
(p.e. mito de Sísifo e na luta com Herácles); resistência que, fa-
dada ao insucesso, cederá lugar, afinal, aos rituais funerários e às
construções escatológicas.
Percurso da investigação
Capítulo 19
548
Estabelecimentos de Saúde, a Defesa Civil, Polícias Militar e Civil;
as que cuidam dos mortos podemos citar os Velórios, Cemitérios,
Empresas Funerárias, e há instituições religiosas e laicas que, além
de oferecer assistência aos moribundos e entes queridos durante os
estágios do morrer, também oferecem a estes um modelo escatoló-
gico que visa dar algum sentido à morte (com predomínio da crença
na escatologia cristã – baseada na ressureição da alma). Assim, O STL
orienta os linenses nas diversas situações de morte (naturais ou vio-
lentas), nas quais pré-indica os aparelhos sociais que devem ser acio-
nados e à quais atores sociais pode-se, ou mesmo deve-se, recorrer.
Na história linense, percebe-se que, antigamente, estes eram
próximos dos processos da morte e do morrer, já que muitas dessas
ações eram exercidas e acompanhadas pelos próprios familiares
(cuidados ao adoecer - remédios e tratamentos caseiros -, a agonia
do moribundo e o velar o defunto) e muitos procedimentos ocor-
riam no âmbito doméstico. Na atualidade, percebe-se uma crescen-
te terceirização e profissionalização nos cuidados concernentes ao
processos do morrer, as quais são deixadas a cargo de profissionais
e instituições específicas, cujos locais não são familiares e possuem
restrições no acesso como: hospitais, velório e cemitérios.
Ao que tudo indica, esses fatores provocaram o distanciamen-
to dos linenses dos estágios do morrer, tornando-os alheios a tais
processos. Segundo Ariès (1989), a transformação da “morte do-
mesticada” em “morte interdita” passou a ocorrer em todo ociden-
te e, ao que parece, tal fenômeno passou a ocorrer gradativamente
na sociedade linense, praticamente, na mesma medida que a cidade
tornava-se mais urbana, mais industrial e mais globalizada.
Os Bororo em decorrência dos processos de aculturamen-
to sofrido pelo contato interétnico, traz no seu modo triádico de
enfrentamento da morte, um modelo próprio, proveniente de sua
Capítulo 19
550
convertidos ao cristianismo. Há casos em que tanto o funeral cris-
tão, quanto o Itága são realizados.
Os Bororo acreditam que o Itagá permite ao aróe (alma) o des-
locamento da aldeia dos vivos para a aldeia dos mortos, chefiada pe-
los heróis míticos Bakororo e Itubore (NOVAES, 2006). Sua nova ha-
bitação será similar em todos os sentidos a aldeia dos vivos, pois na
aldeia dos mortos também há divisão em clãs e subclãs; bem como
os aróe desejam caçar, pescar e se alimentar. O aróe é um espírito
imortal, porém, depois de algum tempo se cansa de ficar na aldeia
dos mortos e, caso queira, poderá transmigrar voluntariamente e
de modo provisório encarnando-se em um animal qualquer, para
fazer uso do seu corpo e obter algum alimento que deseje, porém
quando quiser pode retornar à aldeia dos mortos, seja por meio da
morte do animal ou saindo espontaneamente. Na escatologia Boro-
ro, independente de suas ações em vida, todas as almas possuem o
mesmo destino, pois para eles as sanções e recompensas são recebi-
das em vida (ALBISETTI; VENTURELLI, 1962). Há também entre os Bo-
roro, conforme fora dito, aqueles que se converteram e se pautam
na escatologia cristã, do catolicismo e, por meio desta, buscam dar
sentido à morte e ao morrer.
Algumas práticas do STB se extinguiram, outras são raras e ou-
tras perduram. A partir do contato interétnico, os Bororo se apro-
ximaram dos modos de viver e de morrer dos civilizados; embora
resistam em pontos fundamentais, este sistema alternativo tem
recebido a adesão de membros desta etnia, que tem colhido as
vantagens e desvantagens desta inserção, dentre essas últimas um
maior distanciamento dos processos do morrer. Embora, ao menos
até agora, para os Bororo a morte continua “domesticada”, o que
se mostra na proximidade dos trabalhos e cuidados com os doente,
moribundos, mortos e enlutados.
Capítulo 19
552
civilizados se mostram ineficientes. Apesar disso, os modos cultu-
rais, os arranjos institucionais e as interações sociais Bororo na lida
com a morte e o sentido dado a esta (p.e. ritual funerário e lutos
coletivos - tempo de resguardo propício para o restabelecimento
individual e coletivo), além de permanecer, ainda se mostram efi-
cientes diante os impactos da morte. Porém, ao que parece, entre
os Bororo, há um luto difícil de ser elaborado, marcado por perdas
contínuas - aquele relativo à morte cultural.
As entrevistas e observações indicam que entre os linenses,
de modo geral, há mais sofrimento quando morrem crianças e
jovens e as piores situações eram os adoecimentos prolongados,
com muita agonia ou subitamente em tragédias. Entre os Bororo
as mortes mais dolorosas são aquelas em que morrem os anciãos,
os detentores dos saberes Bororo.
Na sociedade linense, a “interdição da morte” tende a perdu-
rar, pois este recalque transcende o nível individual e surge também
em um esforço coletivo de reprimir pensamentos, sentimentos e
comportamentos que remetam à morte e ao morrer. Com base em
Kaës (2005), podemos propor que essa interdição da morte tor-
nou-se uma produção grupal do recalque, gerado e mantido por
uma aliança inconsciente que o mantém e o fortalece.
Isso parece ter implicações diretas na transmissão da lida com
as matizes da morte, no processo de socialização; sendo que, du-
rante a socialização primária, as crianças têm sido vetadas de fre-
quentar (hospitais, cemitérios, velórios, etc.) e falar de morte e,
assim, ficam impedidos de criarem estratégias para lidar com esta.
A negação da morte também marca o processo de socialização se-
cundária, pois a maioria dos especialistas entrevistados relatou que
teve uma formação técnica, porém não foram preparados para li-
dar com os impactos psicossociais relativos ao morrer.
Capítulo 19
554
O homem, na busca de escapar da angústia oriunda do fato de
a morte ser insuperável, embora indeterminada, se lança em preo-
cupações e ocupações cotidianas que o distraiam de tal condição,
caracterizando, assim, aquilo que Heidegger (1989) denomina de
vida inautêntica; porém quando se, leva em conta, tal condição
consiste na vida autêntica. Com base nisso parece que o modo pre-
dominante de vivenciar aos processos do morrer entre os linenses
caracterizam-se no modo inautêntico. Grande parte dos Bororo pa-
recem viver de modo autêntico tais processos, porém, caso ociden-
talizem os seus modos de lida com a morte, correm o risco também
de transformar a “morte domesticada” em “morte interdita”.
Suportar a dor oriunda da morte nunca fora fácil e nunca será,
mas, na atualidade, entre os Bororo parece que isso tornou-se um
pouco mais difícil. Já entre os linenses, a morte ganha o status de in-
tolerável, o que leva a necessidade de mantê-la no desconhecimen-
to. O STL e o STB, enquanto organizadores sociais, sofreram grandes
ataques e, com isso, foram fragilizados e perderam parte da sua ca-
pacidade de regulação e suporte, de modo que hoje, ambos realizam
as suas funções com maiores dificuldades do que antes. Assim, no-
ta-se a negação da morte entre os linenses e entre os Bororo maior
distanciamento dos processos do morrer.
Considerações finais
Capítulo 19
556
referências
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R. “Os vivos são sempre e cada vez barbárie civilizatória: o amor e a
mais governados pelos mortos”: ética humanista. São Paulo: Casa
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Capítulo 19
558
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Capítulo 19
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E-mail: tiago.pilott22@gmail.com
ORCiD: https://orcid.org/0000-0001-6361-3822
561
O Morto-Vivo como símbolo e
sintoma da destrutividade do
ethos contemporâneo
Palavras-chave: Morto-Vivo;
zumbi; The Walking Dead;
Símbolo; ethos
562
The undead as a symbol and
symptom of the degeneration
of contemporary ethos
563
Capítulo 20
O Morto-Vivo como
símbolo e sintoma da
degeneração do ethos
contemporâneo
Tiago Pilotto Rodrigues Alves
Universidade de São Paulo
1 http://www.amc.com/shows/the-walking-dead/talk/2012/12/the-walking-dead-season-3-ratings
566
O caráter arquetípico do Morto-Vivo
Capítulo 20
568
lidades representacionais do zumbi no decorrer do tempo e Gomes
(2014) faz uma leitura do espaço narrativo no qual são encontradas
estas figuras aterrorizantes, demonstrando cada vez mais sua apro-
ximação do comum e vulgar; aquele que antes habitava lugares som-
brios e misteriosos, agora aparece no espaço coletivo e próximo ao
cotidiano, em centros urbanos, shopping centers, casas familiares, etc.
Colăcel (2017) é um autor romeno que discorre sobre o vide-
ogame The Last of Us, que também retrata, em sua história, uma
figura muito parecida com um morto-vivo clássico, mas com al-
gumas diferenças básicas, como sua constituição, transformação e
causa de adoecimento. Em sua pesquisa na área linguística, anali-
sa os discursos dos personagens e faz paralelos importantes entre
algumas falas e um aspecto religioso constituinte do pensar dos
personagens, no sentido de expiação dos pecados e da culpa de co-
meter atos hediondos em prol da sobrevivência. O autor também
aborda os processos de identificação daquilo que é “ser humano”,
no sentido de perceber-se e constituir-se como pessoa, a partir do
foco na descaracterização do morto-vivo, apresentando-o como
um “não humano”, devido à desfiguração do monstro. No geral, ele
elucida uma forma de discurso que não é apenas verbalizado, mas
apresentado através de imagens. Seja entre grupos - sobreviventes,
monstros, animais, etc - ou entre pessoas -Elie, Joel, etc-, formas
de comunicação se apresentam de diversas maneiras, criando um
pano de fundo emaranhado de significados. Para ele, os diversos
estilos de comunicação e a forma como eles são encenados den-
tro do videogame amontoam-se em uma linguagem processual que
joga uma luz sobre os diversos mundos nos quais habita o gamer, o
jogador deste tipo de mídia.
As pesquisas são no geral bastante recentes e, na área da psico-
logia, muito escassas, demonstrando que apenas na última década
Capítulo 20
Arquétipos e Símbolos
570
Arquétipos e o Inconsciente Coletivo (2012), até Withmont (1995),
Edinger (1995) e Stein (2005).
Jung (2011c, 2012, 2013) afirma que os arquétipos constituem
um relato indispensável da ideia do inconsciente coletivo, que in-
dica a existência de determinadas formas na psique, presentes em
todo o tempo e em todo o lugar. Assim sendo, o inconsciente não
pode ser circunscrito a determinada época ou cultura, mas que está
presente intrinsecamente na existência do ser humano, desde seu
surgimento. Segundo o psiquiatra, o inconsciente coletivo se dis-
tingue do individual no fato de não ser uma aquisição pessoal. Para
o teórico, além do inconsciente pessoal, possuímos um inconscien-
te relacionado à espécie humana:
Capítulo 20
572
representa conteúdos inconscientes que se modificam através de
sua conscientização (pelo indivíduo ou pela cultura – o consciente
coletivo). (Stein, 2005; Whitmont, 1995; Edinger, 1995; Jung, 2012)
Desta forma, conforme determinada coletividade ou pessoa entra
em contato com a imagem arquetípica enviada pelo inconsciente
coletivo, esta é modificada e trabalhada de forma a se adequar em
determinado tempo, local e vivência.
Capítulo 20
574
atingir as mentes humanas. Talvez os monstros dos filmes de
horror modernos sejam versões distorcidas de arquétipos já não
mais reprimidos.” (Jung, 2008a, p.118)
Capítulo 20
576
busca daquilo que vai além de um abrigo melhor, Rick busca um
lugar para chamar de Lar. Os personagens principais, como Glenn
ou Carol não se satisfazem com a mera sobrevivência e o tempo
todo buscam algo a mais, algo além. Esta é uma diferença crucial
entre os viventes e os não-vivos.
A impossibilidade de exercer a compreensão e a empatia para
com outrem são também sintomas da “zumbificação”. A pessoa
torna-se fixada em um modo de operar raso e seco, perdendo a
capacidade de vincular-se humanamente de forma saudável e dura-
doura. Olhar o outro e não o ver como indivíduo é uma das carac-
terísticas sempre presentes e altamente assustadoras na figura do
morto-vivo. Este é capaz de devorar aquela que era a esposa; aquele
que era o irmão, sem remorso, culpa ou piedade. Esta “psicopa-
tia” está intimamente relacionada com a ligação exagerada com a
“carne” e seus correlatos físicos voltados à satisfação pessoal e à
perseguição cega dos desejos pessoais. Perseguir o prazer, em suas
variadas formas (alimentação, dinheiro, fama e status) não é essen-
cialmente negativo; porém quando funciona de forma unilateral,
priva o ser humano da capacidade de sacrifício, e, portanto, entre-
gar-se ao outro, senti-lo. A palavra “sacrifício”, do latim sacrificium,
quer dizer “ofício sagrado”. Quando algo é sacrificado, este objeto
ganha o caráter de númen e adquire matizes místicos ou “além” do
objeto; além do humano. O objeto torna-se uma oferenda ao deus
ou deuses, para agradá-los ou apaziguá-los. O sacrifício possui pa-
pel central na evolução psíquica, como forma básica e necessária
para auxiliar no processo de individuação. A Psicologia Analítica
aprofunda enormemente esse conceito, bem como o do simbolis-
mo alquímico da mortificatio como reação necessária para o desen-
volvimento pessoal (Edinger, 2006). Esta forma de sacralização é
cada vez mais inexistente na contemporaneidade, principalmente
Capítulo 20
Considerações Finais
578
em uma saída: a conscientização da degeneração e destrutividade
presente no cotidiano e nas relações humanas leva à possibilidade
de agir diferente, de escolher, de sentir. E este sentir não é apenas o
sentimento do ego ou o que volta a pessoa para si mesma, mas tam-
bém a empatia. Sentir o outro e tudo aquilo que forma e fortalece re-
lações verdadeiras, baseadas também na afetividade. O morto-vivo
não sente, não se relaciona, não reflete e olhando para ele ganhamos
uma ferramenta a mais na construção de um ethos mais saudável.
Capítulo 20
580
Halperin, V. (1932). White zombie. ______ (2013). Obras completas,
DVD (67 min.). vol. 9/2: Aion – estudo sobre
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sonhos e reflexões. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira. Lanuza-Avello, A., Cabezuelo
Lorenzo, F. y García-Plaza
_________ (2008a). et al. O Vegas, A. (2017). Análisis crítico
homem e seus símbolos. Rio de de The Walking Dead desde
Janeiro: Nova fronteira. la perspectiva de los valores
humanistas. Palabra Clave,
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Inconsciente. Petrópolis: Vozes. Stein, M. (2004). Jung: o mapa da
alma – uma introdução. São Paulo:
______ (2011a). Obras completas, Cultrix.
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Jogo digital. Computador,
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Capítulo 20
CV: http://lattes.cnpq.br/5901743864707801
E-mail: angelitascardua@usp.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-2129-1180
583
Do interior para o exterior: o
exílio de Hestia e o lugar do
coração na cidade
584
From the interior to the
outside: the exile of Hestia and
the place of the heart in the city
585
Capítulo 21
Do interior para o
exterior: o exílio de
Hestia e o lugar do
coração na cidade
Angelita Corrêa Scardua
Universidade de São Paulo / SCHOLA
- Clínica e Formação Continuada em
Psicologia
588
gregos, a extinção da chama de Hestia equivalia à morte, a uma
existência fria e estéril.
Apesar de representar a substância da própria vida, Hestia tor-
nou-se praticamente desconhecida. Há entre estudiosos da Mito-
logia Grega quem se refira à deusa Hestia como “a deusa esqueci-
da” (Paris, 1991). Talvez isso se deva ao fato de que, ao contrário
de outras divindades gregas, Hestia não tem uma “história”. Há
pouquíssimos relatos de aventuras que a envolvam. Hestia sim-
plesmente “é”! Não são suas ações que a definem, mas suas vir-
tudes: leveza, suavidade, tolerância, serenidade, dignidade, calma,
segurança, estabilidade, acolhimento, perdão, equilíbrio. Ou seja,
o que define Hestia são os efeitos de sua presença. As emoções e
sentimentos que ela gera e acalenta. Talvez por sua associação com
o que é imaterial, por sua intangibilidade, o coração de Hestia foi
sendo progressivamente substituído pelo espírito apolíneo.
Capítulo 21
590
do contato, nos distanciamos do princípio do centro e perdemos
a habilidade de no concentramos em nós mesmos e nos outros.
Abandonamos a perspectiva do lugar sagrado onde se cultiva a
alma. Retiramos das construções seu arcabouço histórico, sua fun-
ção de repositório de lembranças pessoais e coletivas. No mundo
apolíneo, as edificações ideais são erigidas de forma que não se
permita a consolidação das marcas do tempo, como ocorria com
as estruturas típicas dos prédios antigos em seus beirais e sacadas
(Hillman, 1993). Ao dessacralizar os espaços construídos, sacrifica-
mos o interno em detrimento de um projeto de externo idealiza-
do na atemporalidade, na perfeição mecânica da razão. Banimos a
Hestia do centro da casa e da cidade. A perda da centralização de
Hestia tem levado a uma fragmentação de nós mesmos, e nossas
cidades espelham isso.
Capítulo 21
592
como Omphalos (o umbigo da terra). Os gregos acreditavam que
todas as partes da terra giravam em torno deste umbigo, razão
pela qual o maior templo da cidade era dedicado à Hestia. Como
centro, não apenas simbólico, mas também topográfico, Hestia
era um centro de paisagens: um local geográfico, uma cidade, a
casa e nossos próprios centros pessoais (Paris, 1991).
Se quisermos recuperar o lugar do centro no imaginário atual,
retornando a alma a seu lugar sagrado na vida cotidiana nas casas
das cidades, devemos primeiro recuperar o seu órgão: o coração.
A imersão na vida significativa, em seu sentido anímico, exige um
refinamento da percepção, que deve ser baseada no coração que
imagina e sente. O pensamento do coração é o pensamento das
imagens. O coração é a sede da imaginação, e esta é a voz autênti-
ca do coração, de forma que se falamos do coração, devemos falar
imaginativamente (Hillman, 1979).
Para Hillman, o poder retórico e imaginativo do coração re-
side em conceber, imaginar, projetar, desejar ardentemente. Sem
esse poder do coração somos sequestrados pelas ilusões psicológi-
cas modernas. Perdemos a referência do que é essencial e interno.
Quando negligenciamos a imaginação, como fonte de acesso ao
que é subjetivo e fundamental, adoecemos. Não é à toa que as do-
enças cardíacas, assim como o adoecimento afetivo, ocupam tanto
espaço na vida urbana contemporânea.
A vida na cidade favorece o adoecimento, não porquê a exis-
tência ideal se dá na natureza, mas porque o estilo de vida urba-
no tem nos afastado do centro. Perdemos o contato com Hestia,
desaprendemos a perceber o mundo com o coração, a imaginar.
Optamos pelos caminhos expansivos e discriminatórios do espí-
rito apolíneo. Preferimos classificar, categorizar, crescer, planejar
e desqualificamos o aguardar, nutrir, cultivar, acolher, preservar.
Capítulo 21
594
lugar para refeições rápidas preparadas no micro-ondas. Até mesmo
os fogões vão perdendo a chama ao serem substituídos pelos cook-
tops ou pelos serviços de delivery de comida. O ato de cozinhar, tão
próximo das tarefas atribuídas ao reino privado e familiar de Hestia,
tornou-se um espetáculo público, no qual experts exibem-se para os
convidados nos finais de semana ou nas telas das televisões.
As televisões, que em um passado recente agregavam as famílias
em torno de sua luz para o mundo, perderam essa função nas casas.
Os habitantes das moradias contemporâneas trocaram as televisões
pelos smartphones e pelo egoísmo da “tv” no quarto ao invés de na
sala. Não há mais o que congregue a alma das famílias em torno de
um centro. Não há mais o deleite dos sentidos, invocado pelas deida-
des femininas como Afrodite ou Deméter que fazem pulsar o coração
seduzido pela beleza ou pela necessidade. Nas casas ou nas cidades, a
função utilitária de tudo confere status ao que é mais novo, mais fun-
cional, mais ostensivo. Nas casas e na vida urbana contemporânea,
até mesmo a estética tem sido tomada como um recurso de afirma-
ção de poder e de distanciamento do centro.
Quanto mais poderosa e rica for a casa ou a cidade, mais os
recursos estéticos considerados agradáveis e desejáveis serão uti-
lizados para afastar o centro. Muitos compartimentos e múltiplas
zonas de convívio fazem das belas casas e cidades atuais espaços
fragmentados, onde o coração (o centro) é subtraído de seu papel
de levar o fluído vital aos extremos do corpo, às vísceras e ao cére-
bro. É dessa forma que as cozinhas e as salas das casas se esvaziam,
tornando-se não-lugares no espaço doméstico, nos quais os mora-
dores apenas transitam ou recebem convidados. Enquanto os quar-
tos e banheiros aparecem como o espaço preferido para a vivência
de uma interioridade, ainda que frequentemente conectada com o
exterior por meio dos aparelhos eletrônicos.
Capítulo 21
596
aparelhos celulares e se quer divisam o horizonte ou as linhas ver-
ticais das edificações pelas quais poderia se vislumbrar o céu. Ao
adoecer, o coração perde seu poder imaginativo limitando a possi-
bilidade de atribuir-se sentido a própria vida.
Hillman (1993) oferece uma perspectiva alternativa para o lu-
gar do coração na cidade. Ao apresentar sua concepção de Alma
da cidade, o autor desenvolve o termo grego aisthesis, que está as-
sociado ao processo de internalização das reações estéticas frente
as imagens que nos são apresentadas. Ou seja, ele nos fala sobre a
relevância de se apreender as imagens do cotidiano através do co-
ração. Compreender o mundo por meio das emoções que o próprio
mundo desperta em nós. Uma compreensão que não é racional,
mas um arrebatamento afetivo, um deixar-se afetar. Uma compre-
ensão do mundo na qual imaginar e sentir as coisas ocorrem con-
comitantemente.
Esse coração capaz de internalizar as imagens do cotidiano
não pode ser reduzido às sensações corpóreas. Ele é um coração
desejante e, por isso, imaginativo e criativo. Um coração desper-
to, animado pela Anima Mundi. Nos diz Hillman - “Para sentir pe-
netrantemente devemos imaginar e, para imaginar com precisão,
devemos sentir” (Hillman, 1993, p. 17). A perspectiva que ele nos
oferece para realocar o coração na cidade, e nas vidas de seus ha-
bitantes, exige o resgate da alma que há em cada coisa cotidiana.
O resgate da alma das coisas cotidianas nos leva de volta ao
universo feminino de Hestia, no qual a interioridade física do cen-
tro oferecia um lugar sagrado para o coração. Nesse espaço sa-
grado, o coração atribuía sentido à existência pelo acolhimento
do desejo e da necessidade de nutrir-se os vínculos, fossem estes
entre as pessoas ou com o lugar vivido. Na construção desses vín-
culos a imaginação dava forma à experiência, individual e coletiva,
Capítulo 21
598
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CV: http://lattes.cnpq.br/5191076206180217
E-mail: pedro.teixeira.carvalho@usp.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0001-55667855
601
Existe amor em São Paulo?
Um estudo do amor urbano
contemporâneo
602
Is there love in São Paulo? A deepen the discussion, then, an
study of the contemporary analysis of Criolo’s song “Não
urban love existe amor em SP” will be
presented, seeking to analyze
Abstract: This work proposes the spaces imagined in music,
to raise a theoretical and and the proposed relationship
imaginative reflection on between loving and dwelling.
the amorous difficulties
in contemporaneity, and Keywords: Human Relations;
its relation with the urban Love; Urban Art; Temporality
ethos. Starting with an appeal
coming from urban art, a
reflection will be developed
in a transdisciplinary way,
going through Philosophy,
Geography, Psychology and
Sociology, seeking to base
theoretically the affirmation
that there is a relation between
the way we interact and the
way we occupy the city - the
two would be, according to the
reflection, the same psychic
fact. In the sequence, the way,
the method by which one
can observe this fact, will be
discussed: through the images,
which are emanations of the
soul. In order to illustrate and
603
604
Capítulo 22
606
Por fim, um último desdobramento que nos interessa ocorreu no
ano seguinte, 2012: o festival “Existe amor em SP” (G1, 2012). Inspi-
rado na música de Criolo e no movimento artístico de Ygor Marotta,
o festival, ocorrido na Praça Roosevelt, tinha, por um lado, finalidade
política (em ano de eleição municipal, queria apelar aos principais
candidatos por uma maior pauta cultural) e, por outro, o mesmo ob-
jetivo que a música e o movimento supracitados: refletir sobre as re-
lações humanas, a cidade, e a interinfluência destes dois elementos.
Desses três movimentos, o que vemos de comum, e irrefutá-
vel, é o desejo dos citadinos por um ambiente menos hostil àquilo
que chamam de amor. E como podemos contribuir para a cons-
trução de uma cidade na qual o amor possa existir, possa habitar?
Tentaremos, com este trabalho, enriquecer em alguma medida esse
debate vibrante que corre solto pelas ruas de São Paulo.
Para tanto, num primeiro momento, pretendemos estudar a
própria questão lançada por esses movimentos artísticos, indire-
tamente: existe amor em São Paulo? Esta pergunta, por si só, já
implica um pressuposto: de que há uma relação intrínseca entre
a forma de nos relacionarmos com os outros e como habitamos
o espaço em que vivemos. Para elucidar esta relação, traçaremos
um entendimento transdisciplinar da cidade usando conceitos da
filosofia, com Heidegger; da geografia, com Berque; da psicologia,
com Hillman; e das teorias do imaginário, com Bachelard e Du-
rand. Disto, pretendemos sugerir que tanto a cidade é moldada
pela forma na qual seus habitantes se relacionam, como esta forma
é moldada pela cidade em que habitam. E que esta forma pode ser
saudável ou não, e uma maneira de analisar essa questão é através
das imagens produzidas dentro desse contexto espaçotemporal.
Em seguida, tomando a alma da cidade como objeto de in-
vestigação, buscaremos elementos que nos ajudem a entender a
Capítulo 22
608
interinfluenciam. Ou seja, que a forma com que construímos, habi-
tamos e pensamos o espaço modula, em alguma medida, a forma com
que construímos, habitamos e pensamos os relacionamentos amo-
rosos. Para ilustrar esta ideia, podemos pensar na imagem da pessoa
trabalhadora, cada vez mais comum nos tempos pós-modernos, que
“prefere investir na carreira do que na vida amorosa” – mas, pelo
menos, possui um carro, roupas, apartamento: objetos de desejo.
Reflitamos sobre o espaço e nas possibilidades de atravessa-
mento entre o físico, concreto, e o psíquico, imaterial. Heidegger
(1954/1999), ao pensar sobre a crise habitacional, ressalta que ela não
consiste na falta de habitações, mas em algo muito anterior: o de-
senraizamento, o não pensar na essência do habitar; e a consequente
perda desta essência, que aponta para o núcleo da existência humana.
Para o autor (Heidegger, 1999), a essência do construir é muito
mais do que uma finalidade para o habitar. Indo às raízes do verbo
bauen, mostra como há uma relação intrínseca entre construir e
habitar, que está na essência do ser: “A maneira como tu és e eu
sou, o modo segundo o qual somos homens sobre essa terra é o
Bauen, o habitar”. Construir também possui sentidos mais usuais,
como cultivar, proteger, edificar. É em função destes sentidos que
as relações do construir com o habitar vão se afastando, e o “sen-
tido próprio do construir, a saber, o habitar, cai no esquecimento”.
O que Heidegger faz é uma inversão: não habitamos como
consequência de construirmos, mas construímos na medida em
que habitamos a Terra. Devemos, então, chegar à essência das
coisas, reduzi-las àquilo que há de mais próprio a determinada
coisa. O autor, nesse momento, traz o exemplo da ponte. Começa
com uma ponte concreta, e aí vai derivando até uma ideia “pura”,
essencial, da ponte como algo que liga, reúne e integra as mar-
gens, o céu e a terra etc. Não é um exemplo fortuito, e que vem
Capítulo 22
610
nossa corporeidade para além dos limites de nosso corpo animal)
animada pela “ida-e-vinda incessante, pela pulsação de nossa exis-
tência”. Tal conceito demandaria um desenvolvimento muito além
da proposta de nosso trabalho, então vale dizer aqui, de forma re-
sumida, que a trajetividade consiste justamente no entre das coisas
– principalmente, entre o subjetivo e o objetivo (Ribeiro, 2015).
Podemos dizer, com as contribuições de Heidegger e Berque,
que o amor é um fenômeno trajetivo. Com isso, queremos deli-
mitar nosso objeto (o fenômeno amoroso na vida urbana) como
uma característica intrínseca ao habitar; relação dialética entre
espaço e pessoas que o habitam. O que nos leva a responder que,
sim, o amor pode existir na cidade (desde que essa existência não
seja entendida como apenas ligada ao espaço em questão, mas da
relação dos seres com este espaço), e é por ela profundamente
influenciado e modulado.
Marcada esta existência trajetiva do amor-urbano, sigamos
adiante, para uma questão metodológica: como observá-lo? Re-
correremos, primeiramente, ao nosso campo propriamente dito:
a psicologia. Especificamente, à vertente arquetípica da psicologia
analítica, proposta por James Hillman. Em uma coletânea de textos
seus, publicados em Cidade & alma (Hillman, 1993), está uma das
propostas centrais do autor, de sair da interioridade do consultório
e ir em busca da alma naquilo que há de mais humano: a cidade.
O autor lembra, até mesmo, que a própria psicologia clínica nas-
ceu nas grandes cidades – o que indicaria, por um lado, o potencial
“adoecedor” dessas cidades; mas, por outro, a quantidade de alma
a ser vista e entendida, em cada canto, em cada esquina.
Buscar essa alma no mundo (ou, nas palavras de Hillman, fa-
zer-alma), esta anima mundi, implica um trabalho direto com as
imagens e com o imaginar. Significa ver com o coração:
Capítulo 22
612
retóricos, lugares construídos com a única finalidade de ser passa-
gem provisória. Se retomarmos a ideia heideggeriana de habitar,
pensamos que esse projeto pós-moderno vai contra a própria es-
sência de um habitar o mundo saudável, pois implica um desenrai-
zamento do homem em relação à terra – e isso seria o nomadismo
pós-moderno. O autor promove o diálogo da ideia de não-lugar
com as teorizações de Bauman sobre a modernidade líquida (2001,
citado por Scandiucci, 2014). Para este sociólogo, o não-lugar seria
um espaço criado para nos fazer sentir confortáveis, como se es-
tivéssemos em casa. Nem tanto, porém, pois não nos é permitido
comportarmo-nos como se de fato lá estivéssemos: “Um não-lu-
gar seria então um espaço destituído de expressões simbólicas de
identidade, relações e história” (p. 84).
É nesse não-lugar que o pixo encontraria sua existência, a
ponto de algumas pichações utilizarem-se até mesmo dessa lin-
guagem dos espaços retóricos: de forma “curta e grossa”, passam
mensagens tão imperativas como as frases prescritivas encontra-
das nesses espaços. É nesse contexto que está inserida a pichação
“Mais amor, por favor” – Scandiucci (2014, p. 85) até a usa como
exemplo. Pensando no problema do ethos pós-moderno, marcado
por esta aceleração, vemos suas primeiras consequências na
desterritorialização (um agravamento, podemos dizer, da crise
habitacional da qual fala Heidegger) e, num segundo momento, no
enfraquecimento das relações. Uma das funções do pixo (e do rap,
ampliando para objeto de nossa investigação) é, então, refletir de
forma crítica e desveladora sobre esse ethos, marcando a reflexão
nas imagens cravadas nesse mesmo espaço do não-lugar.
Respondemos parcialmente à pergunta metodológica feita an-
teriormente. Para saber como observar esse amor urbano trajetivo,
precisamos em primeiro lugar saber onde observá-lo: na alma e em
Capítulo 22
614
“crise habitacional do amor”. Ao mesmo tempo que ela fornecerá
elementos mais localizados, voltados para uma cidade específica,
pensamos que ela aponta para um cenário mais geral sobre as
grandes metrópoles contemporâneas.
A música é atravessada fortemente por uma levada de soul,
com a presença de instrumentos mais lentos, sincopados e melan-
cólicos. De “Não existe amor em SP” emana tristeza, antes mesmo
de Criolo cantá-la. Ele, então, começa com a frase que dá título à
música e na sequência dá início a uma narrativa descritiva sobre a
cidade. Vemos como é uma descrição que compreende a essência
daquilo que ele vê como a inexistência de amor, uma essência po-
ética e imagética.
O primeiro espaço que Criolo descreve é o de um labirinto mís-
tico. Temos aí duas imagens que, superpostas, formam um panora-
ma interessante. O labirinto tem uma fenomenologia extremamen-
te complexa, cujo detalhamento ultrapassaria o escopo do presente
artigo. Por ora, fiquemos com sua etimologia grega e a definição:
labirinto é uma construção com passagens confusas, complicadas.
Portanto, podemos pensar que, em sua essência, o labirinto é um
espaço onde não se circula de forma fluida e coerente – a própria
construção não favorece o trânsito livre, podendo levar até a morte
aqueles que não conseguirem encontrar a saída.
Como nos aponta Lima de Freitas (1975), o labirinto possui
profundos paralelos com o mundo contemporâneo. Vivemos num
mundo fragmentado, contraditório, angustiante, transformado
num labirinto, num espaço em que há perda de referência: “O pla-
neta inteiro descobre-se prisioneiro de uma rede gigantesca de
conexões, cada dia mais apertada e complexa, a braços com uma
malha infinita de percursos por onde circula uma massa crescente
de mercadorias, de informações e de pessoas” (p. 15).
Capítulo 22
616
essência própria das coisas. O que vemos, na cidade, é de fato
essa dimensão caótica, remetendo, no entanto, para o cantor, a
algo a mais, a algo além. Podemos dizer, tendo em vista a dis-
cussão realizada anteriormente, que não é a confusão física, la-
biríntica, da cidade concreta, que causa sua caoticidade. O caos
da cidade estaria, então, como aqui propomos, na relação dos ci-
tadinos com o topos da cidade. Estaria na falta de amor entre os
seres que a habitam.
Podemos ampliar neste momento a discussão apoiando-nos
num ponto da Teogonia, de Hesíodo (2006), que fala sobre a ori-
gem de Eros. Para ele, este deus teria surgido não como filho de
Afrodite, mas como semelhante ao Caos (Torrano, 2012). O que po-
demos extrair desta visão? Que o caos da cidade, por si só, não é
o suficiente para minar as possibilidades de existência do amor.
Retomando a ideia do amor urbano como trajetivo, ilustramos com
a música de Criolo nossa concordância com Heidegger sobre seu
diagnóstico da “crise habitacional” como a perda da essência do
habitar, a perda da transcendência intrínseca a um habitar plena-
mente pensado, refletido. Podemos falar na perda da visão místi-
ca desse labirinto que habitamos, o que o transforma num espaço
inóspito, por reação.
Prosseguindo na análise da música, Criolo nos dá algumas
pistas sobre a forma pela qual temos habitado esse labirinto sem
observar seu caráter místico. Os grafites gritam – emanam alma,
poderíamos relembrar com Scandiucci (2014). Esse grito (“Mais
amor, por favor!”) não pode ser considerado como se fosse uma
frase adocicada de postal. Em seguida, adverte o ouvinte: cuidado
com doce. E esclarece: São Paulo é um buquê, composto, na ver-
dade, por flores mortas num lindo arranjo usado como gesto de
“amor” (“feito pra você”).
Capítulo 22
618
seja, o processo de elaborar e tornar-se cada vez mais a sua própria
essência. É neste ponto que encontramos a função religiosa da psi-
que – ou seja, a função de religar (Jung, 2004) o homem com sua
própria essência. Em termos junguianos, religar com o Si-mesmo,
arquétipo central no psiquismo humano, no qual estariam contidas
todas as potencialidades do desenvolvimento individual.
Os dois sentidos apresentam-se numa relação causal: a ausên-
cia de salvação dos habitantes das grandes cidades reside em sua
relação com esse espaço. A forma em que temos habitado a cida-
de, nos desenraizando e perdendo a essência do habitar, e a per-
da do contato saudável com o Si-mesmo são duas faces da mesma
moeda. A estas faces, acrescentaríamos uma terceira: a da perda
de relacionamentos amorosos saudáveis. Neste ponto, Criolo nos
mostra como a falta de amor em São Paulo tem como causa ultima
o afastamento dos homens em relação à sua essência, em relação
ao Si-mesmo, em busca daquilo que é aparente, da estética rasa. E
o resultado de tudo isso só pode ser a perda da essência da vida em
meio a um mar de fel – ou, em termos psicológicos, na formação de
sofrimento e sintomas.
Na parte final, Criolo canta a outra frase que será repetida em
seus versos, além da que dá nome à música: “não precisa morrer
pra ver Deus”. O Si-mesmo, como Jung (2013) o formula, é a imago
dei (isto é, a imagem de Deus). E o contato com Deus, em sentido
psicológico, pode ser feito ainda em vida, na medida em que indivi-
duar-se significa entrar em contato com os símbolos do Si-mesmo
e elaborá-los. É possível acessar nossa própria essência (ou seja, é
possível ver Deus). O que vemos, porém, numa cidade em que não
há amor é também a dificuldade em encontrar caminhos saudáveis,
simbólicos, que sirvam de meio para o processo de individuação
tal como, para isso, outrora nos serviam os mitos, por exemplo.
Capítulo 22
620
vinho – bebida que, hoje, não é mais associada aos cultos místicos
ou religiosos, mas aos bares “cheios de almas vazias” –, mas um
pouco de vida. O pedido do cantor ressoa as questões que atraves-
sam toda a música – a falta de vitalidade labiríntica de São Paulo,
o cinza que está em todo lugar –, mas ele não pede uma solução
urbana, isto é, que tome lugar no próprio topos da cidade. Ele pede
por vida para ele próprio, pois, se a vitalidade e o amor na cidade
podem ser lidos como fenômenos trajetivos, nossa tarefa é fazer-
-alma, lembrando Hillman, dentro de nós mesmos, entre nós e os
outros, e entre nós e a cidade. Talvez um gole seja o suficiente para
começar a mudança.
Capítulo 22
622
referências
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a poesia na luta / a luta na poesia, amor-em-sp-reune-multidao-na-
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Capítulo 22
624
Mana, 11(2), 577-591. (Publicado
originalmente em 1903).
Capítulo 22
CV: http://lattes.cnpq.br/8745715491580680
E-mail: bezerra.afb@gmail.com
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-2274-5463
627
O lugar do sujeito na lógica do
discurso capitalista
628
The place of the subject in the
logic of capitalist speech
629
Capítulo 23
O lugar do sujeito na
lógica do discurso
capitalista
André Ferreira Bezerra
(Universidade de São Paulo)
Estou, será que estou presente quando falo com vocês? Seria pre-
ciso que a coisa a propósito da qual eu me dirijo a vocês estives-
se aqui. Ora, basta dizer que a coisa só pode escrever-se como a
acoisa, como acabo de escreve-la no quadro, o que significa que
ela está ausente ali onde ocupa seu lugar. Ou, mais exatamente,
que, uma vez tirado, o objeto pequeno a que ocupa esse lugar só
deixa nele, nesse lugar, o ato sexual tal como eu o acentuo, ou
seja, a castração. (LACAN, 2009) [p. 71].
632
considerarmos o capitalismo como uma imposição simbólica, se
faz necessário, antes de entrar nesta lógica específica, esclarecer o
lugar do sujeito dando atenção a sua estrutura. Por isso, primeiro
será apresentado uma explanação a respeito de como a análise tra-
balha numa orientação que busca evidenciar na fala do analisando
acoisa da qual este se referencia. Uma vez explicado este percurso,
será mais fácil refletir o lugar do sujeito capitalista de um ponto de
vista mais crítico, já que o leitor terá também a noção de como tal
posição se diverge da orientação da análise.
Capítulo 23
634
evidenciar a estrutura significante. Posteriormente, no seminário
sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964), Lacan
coloca:
Capítulo 23
636
Percebe-se assim, a amarra linguística do inconsciente da qual La-
can faz questão de evidenciar sempre que pode. Colocado estes
esclarecimentos, este artigo pode então ir em direção a problema-
tização proposta.
Capítulo 23
638
Percebe-se no gadget uma utilidade Outra das engenhocas, algo
que se liga ao sujeito na medida em que este não tem como fugir da
estrutura linguística que amarra o desejo a um significante. Posterior-
mente, o lugar que hoje é tomado pelo gadget, poderá ser substituído
qualquer outro produto que tentará se passar por falo. Independente-
mente disso, a orientação do desejo pelo gadget é o que se observa na
experiência contemporânea. Ou seja, o gadget, é também uma outra
forma de dizer do desejo de algo material que se observa na essência
do capitalismo.
Posto isso tem-se o gadget como o objeto que está em jogo no
cenário aqui em questão, mas só ele não seria suficiente para que o
sujeito o comprasse para si. Pode-se dizer que para efetivá-lo enquanto
falo, o gadget precisa de uma racionalização própria que sustente esta
forma de gozo e, é justamente aí que se observa o discurso capitalista.
Uma derivação dos quatro discursos apresentados no seminário XVII
(1969-1970), na qual Lacan estabelece uma estrutura derivante de al-
gumas posições que se distribuem a partir do lugar em que o sujeito as-
sume. Na estrutura do discurso tem-se um agente que sustenta sua fala
através de uma verdade e que, ao dirigir-se ao outro, forma uma produ-
ção, um resto, decorrente daquilo que manifesta. É válido pontuar que
a verdade não pode ser inteiramente dita e é acessível somente através
do “semi-dito”, justamente por isso que na figura (figura 1) apresenta-
da é possível observar as barras (//) que marcam a interdição entre a
produção e a verdade; todas as articulações possíveis se estabelecem a
partir dela, assim como se mostra na imagem a seguir:
Capítulo 23
1 Vale ressaltar que o conceito de mais-de-gozar é construído por Lacan em homologia ao con-
ceito de mais–valia de Karl Marx. Tal construção pode ser observada de forma mais detalhada
na primeira lição do seminário XVI de 1968-69.
640
castrado marcado pela barra ($). No discurso do capitalista há
uma inversão do agente e da verdade da maneira que Lacan co-
loca no discurso do mestre. Há uma inversão do lugar do agente
e da verdade de maneira que S1 se mostra como a verdade inter-
ditada. Tal inversão do discurso do mestre pode ser observada
no esquema a seguir:
Capítulo 23
642
se observa no discurso capitalista é um lugar que coloca o sujeito
em um modo subjetivo específico que estabelece uma dinâmica de
gozo orientada a partir do gadget, colocando assim o sujeito num
lugar de impotência para com sua capacidade de satisfação, numa
estrutura de eterna busca pela intensificação de prazer, enquanto o
caminho da análise, se encontra exatamente na contramão.
Capítulo 23
644
Capítulo 23
CV: http://lattes.cnpq.br/5414991113254890
E-mail: regiane_flauzino@yahoo.com.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-3281-4362
647
A morada do ser: reflexões so-
bre a casa e o lugar
648
The inhabitation of the Being:
reflections on the home and the
place
649
Capítulo 24
A morada do ser:
reflexões sobre a casa
e o lugar
Regiane Santos Flauzino de Oliveira
Universidade de São Paulo
2 Grifo do autor.
652
que repousam valores condensados que só são acessados por meio
do encontro. Este encontro é próprio do fenômeno4 que aparece e
narra. O fenômeno acessa a imagem-lembrança e desvela os senti-
dos que ela contém. O que entendemos como valores e sentido são
próprios do que define Bosi (2007) como uma substância memora-
tiva no fluxo do tempo; história densa que aparece com clareza nas
biografias da mesma forma como nas paisagens, na qual há marcos
no espaço onde os valores se adensam. Estes valores estão conser-
vados em um espaço como na cidade de Zaíra:
Ela não conta seu passado; ela o contém como as linhas da mão,
escritos nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corri-
mãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das
bandeiras, cada seguimento riscado por arranhões, serradelas,
entalhes, esfoladuras (Calvino, 1972/2002, p.7).
4 Fenômeno significa “aquilo que se mostra, não somente que aparece ou parece”. A fenome-
nologia é uma reflexão sobre aquilo que se mostra (Bello, 2006, p. 17).
Capítulo 24
5 Conforme corrobora Melo (2007, p.102): “Os espaços do mundo externo e do interno sofrem
alterações que, se forem levadas em consideração, criam inúmeras interrogações”.
654
mistério para o transeunte. Desta forma, a beleza nega as funções
estéticas fundadas em uma calologia6 para calar no mistério.
Capítulo 24
656
bandeiras quebram garrafas na cabeça umas das outras, as janelas
térreas iluminadas, cada uma com uma mulher que se penteia.
Na neblina costeira, o marinheiro distingue a fora da corcunda de
um camelo, de uma sela bordada de franjas refulgentes entre duas
corcundas malhadas que avançam balançando; sabe que é uma
cidade, mas a imagina como um camelo de cuja albarda pendem
odres e alforjes de fruta cristalizada; vinho de tâmaras, folhas de
tabaco, e vê-se ao comando de uma longa caravana que o afasta do
deserto do mar rumo a um oásis de água doce à sombra cerrada
das palmeiras, rumo a palácios de espessas paredes caiadas, de pá-
tios azulejados onde as bailarinas dançam descalças e movem os
braços para dentro e para fora do véu (Calvino, 1972/2002, p.10).
“Será que todos aqueles que circulam pela rua de Boa Vista pas-
sam pela mesma rua? Quantas casas foram habitadas nas três ca-
sas de infância de Nise da Silveira8? Quantas cidades existem na
cidade de Maceió?” (Melo, 2007, p.102).
Capítulo 24
658
atividades humanas por excelência no lugar de habitação. Por essa
razão, o lugar de habitação se justifica ainda como morada do ser,
no sentido do encontro com o si mesmo. Tomando como exemplo
as características principais da casa de infância de Nise da Silveira,
elas se constituíram como um ponto de encontro para o estímu-
lo da produção cultural, estendendo-se ainda para a casa em que
Nise, em idade adulta, se mudou com o marido para o Rio de Janei-
ro (Moreira, 2001 citado por Melo, 2007).
Capítulo 24
660
referências
Bachelard, G. (1978). A poética Escritos (1839-1846) (A. V. Serrão,
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São Paulo, SP: Abril Cultural. publicado em 1843. Título
(Trabalho original publicado em original: Vorläufige Thesen zur
1958. Título original: La poétique Reformation der Philosophie).
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Leitão, L. (2014). Onde coisas e
Bello, A. A. (2006). Introdução homens se encontram: Cidade,
à Fenomenologia (J. T. Garcia, arquitetura e subjetividade. São
M. Mahfoud, trad.). Bauru, SP: Paulo, SP: Editora Annablume.
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Bosi, E. (2007). Memória e Cidade Mítica: o Mito da Origem
sociedade: Lembrança de em Nise da Silveira. Psicologia
velhos (14a ed.). São Paulo, SP: USP, 18(1), 101-124. doi: 10.1590/
Companhia das Letras. S0103-65642007000100006
Capítulo 24
Wunenburger, J. (2015). Da
imaginação material à geopoética
em Gaston Bachelard. In: S.
M. P. Ribeiro, A. F. Araújo
(Orgs.), Paisagem, Imaginário e
Narratividade (pp. 17-30). São
Paulo, SP: Zagodoni Editora.
662
Capítulo 24
CV: http://lattes.cnpq.br/4238227557793219
E-mail: acaciotnetto@gmail.com
ORCiD: https://orcid.org/0000-001-9637-1428
665
Esse lugar chamado “merca-
dão”: um estudo fenomeno-
lógico da paisagem
666
This place called "merca-
dão": a phenomenological
study of its landscape
667
668
Capítulo 25
670
Deste modo, a ascensão de Petrarca ao monte Ventoux é um mo-
mento “constitutivo do sentimento da paisagem”, como uma expe-
riência interior universal (BESSE, 2014, p. 2).
Os escritos de Simmel (2013) sugerem, que a observação dos
mais variados objetos/elementos que se apresentam à visão, muitas
vezes “num raio visual efêmero” (SIMMEL, 2013, p. 20), não bas-
ta para “definir” o que vem a ser “paisagem”. Ainda para Simmel
(2013, p. 20) “a consciência deve apreender, além dos elementos,
um novo conjunto, uma nova unidade, não ligados aos significados
particulares de cada elemento, nem composto mecanicamente da
sua soma”. Assim, suas abordagens, entre sujeito e objeto, decor-
rem em pensamentos de que a paisagem parece ser o meio entre
sujeito e objeto. De seus escritos, podemos depreender que sujeito
e objeto se fundem para formar a paisagem. A paisagem, então,
vem a ser um espaço de mediação.
Seja no olhar subjetivo da noção de paisagem, com seu cará-
ter estético e até pela sua relevância, como tema entre renomados
pintores (CLARK, 1961); a partir de autores, como George Simmel,
podemos notar que a ideia de paisagem revela também um cará-
ter filosófico da arte e da estética, que, como espaço de mediação,
questiona seus efeitos para o indivíduo ou para a coletividade, na
relação tempo/espaço, na história.
Ritter (2013) aborda uma reflexão sobre o surgimento do sen-
timento estético da natureza na tradição ocidental. O autor evoca
que o sentimento estético da paisagem nasce do “divórcio” entre ho-
mem e natureza. O autor muda nossa forma de olhar o lugar. “Olhar
é ver e é também conhecer o todo como todo” (RITTER, 2013, p. 31).
Este seu pensamento mobiliza “nosso olhar para a cidade
como lugar da existência da liberdade” (RITTER, 2013, p. 31). Ritter
vai para além da paisagem como estética na sociedade moderna.
Capítulo 25
672
representação, de onde o observador “filtra” seu olhar, que pode-
ríamos invocar como uma estética fenomenológica do espaço, que
comunga com a visão de Jean-Marc Besse.
Capítulo 25
674
Ela é pré-cultural, pré-antropológica” (BESSE, 2014, p. 80). Ainda,
segundo Besse (2014, p. 81) “a paisagem é o espaço do sentir (...) é
habitar o espaço (...) sem pressuposição nem finalidade”.
Dardel, segundo Besse (2014), está preocupado não com o “ob-
jeto construído”, tampouco uma “modelização espacial dos fenôme-
nos sociais” (BESSE, 2014, p. 86), mas seu olhar é para a questão fe-
nomenológica do espaço geográfico. Um espaço percebido e vivido.
O espaço de Dardel (BESSE, 2014, p. 88) possuí propriedades
“materiais”.
Capítulo 25
676
jetos e coisas um importante significado, que por si só não possuem.
Bachelard, em sua obra, relaciona o espaço a uma fenomenolo-
gia da imaginação poética, naquilo que o autor denomina de “ima-
gens poéticas”. Uma transfiguração do mundo real, um estado de
devaneio. Um universo ainda vivo, nutrido pelas nossas recorda-
ções, algumas lembranças dormentes. E por que não uma forma
de conhecimento?
Nesse universo de imagens, Bachelard restringe sua análise ao
exame das imagens simples, as imagens do espaço feliz, do qual o
autor denomina como topofilia (BACHELARD, 2012, p. 19), determi-
nando os valores humanos dos espaços de proteção, a casa. Desta
forma, para o autor, a imagem poética do espaço permeia uma linha
que se inicia com a poética da casa, como instrumento de proteção
para a alma humana, partindo para os valores da casa dos indivídu-
os, suas cabanas, e das suas coisas, como: gavetas, cofres e armá-
rios; dos ninhos a conchas; dos cantos e dos espaços da miniatura
à imensidão; da dialética do exterior e do interior, e, finalizando,
do vigor ontológico das imagens e da fenomenologia do redondo.
Capítulo 25
678
Ao mesmo tempo em que ocorria a transação comercial, havia
trocas que formariam a mentalidade e a cultura do taubateano.
(...) Dessa forma, a tradição fica reavivada, e o convívio fica for-
talecido. O novo e o velho entrecruzam-se, e a cultura é preser-
vada. (...) O Mercado Municipal de Taubaté faz parte da vida dos
habitantes da nossa região. É um patrimônio material e imaterial
que merece um olhar atento e uma pesquisa dos mais diversos
aspectos que compõem a sua história.
Capítulo 25
680
Ao mesmo tempo que lá é o seu lar e o vê com ”luz,” como um “céu
limpo e azul”, como se estivesse no sótão, ela vai ao porão, com
sentimentos de medo e escuridão, quando relata a coisa ruim do
mercado, na sua visão:
Aqui a única coisa que é ruim é muito maloqueiro, que tem sabe.
Muito maloqueiro. Muita gente pedindo, muita gente fedida de
bairro, sabe (...) Minha vida foi tudo aqui, né. Sempre trabalhei.
Tudo que eu tenho é daqui do mercado
Capítulo 25
682
No mercado há os que trabalham, negociam, compram e vendem
bens necessários à sobrevivência; nele seus atores se divertem, en-
contram pessoas e novas relações emergem a partir dai, “vemos e
somos vistos”. Na correria ou na calmaria contemplativa, o merca-
do abriga suas vidas.
Apesar da significativa diferença entre as faixas etárias, em to-
das as entrevistas, é possível verificar o vínculo afetivo das pessoas
com esse lugar. Trabalham lá porque gostam, apesar das dificulda-
des que relatam haver no cotidiano dali. E o que parece fortalecer o
vínculo são as relações construídas com as outras pessoas que ali es-
tão, trabalhadores ou fregueses. Gisele, filha do Gil, fala sobre isso:
Desde que eu nasci... Fui criada aqui embaixo, pelos meus pais
(...) Acho que o melhor que o mercado tem é o pastel... Pastel com
vinagrete. (...) Acho que tem muito andarilho. Muito pedinte.
Muito sujo, com mal cheiro... Isso afastou muito as pessoas... Os
ciganos também atrapalham bastante. Porque eles ficam cutu-
cando, batendo a mão, pedindo dinheiro, quando a pessoa não dá,
eles respondem, eles falam palavrões. É bem chato
Capítulo 25
Considerações
684
Poderá operar-se uma sucessão frenética de imagens espaciais
e, dependendo da intimidade que temos com estes lugares, pode-
remos nos surpreender pela imagem de um rosto conhecido ou de
um habitante de quem pouco se conhece, mas comumente visto
por ocasião de nossa passagem. Aos poucos essas imagens dis-
sipam-se e misturam-se a outras, até associarmos a sensações de
bem-estar que atribuímos a algum momento de nossa vida. Como,
por exemplo, aquele dia comendo um bolo de fubá e bebendo café
na casa da avó que, mesmo sendo uma forma de imagem, pede-se
por uma visualização que a explique.
Será que esse cheiro provinha do fogão a lenha onde prepa-
rou-se aquele bolo e o café? Será frustrante a constatação de que
não poderemos mais reconstruir o que já se foi, o passado, o vivido,
mas isto aguçará ainda mais nossas lembranças e, como humanos
que somos, recriaremos sensações e sentimentos que se confundi-
rão entre o real e o imaginário e, então, dar-nos-emos conta de que
estamos num verdadeiro processo de imaginação.
Os lugares e as transformações sociais também são vítimas das
mudanças, mas este trabalho não enfatizou a mera descrição dos
espaços, mas a narrativa do espaço “como um instrumento de aná-
lise da alma humana” (BACHELARD, 2012, p. 20), mas citamos aqui
algumas das reclamações mais presentes nas entrevistas como: a
melhoria da higiene; mais estacionamentos; um calçadão, seguran-
ça, eventos culturais no mercado, melhorias para o turista, entre
outras. Por esta razão, sugerimos a divulgação deste trabalho para
a administração pública municipal e para os atores desse cenário.
Por fim, parece que este trabalho encontra eco na obra de Bache-
lard, na fenomenologia da imaginação, afim de demonstrar que o espa-
ço, como instrumento de análise da alma humana, nos faz entender
melhor o espaço poético do “mercadão”, esse “gigante taubateano”.
Capítulo 25
686
e Lincoln Santiango C. de Souza.
Taubaté, SP: Gráfica Santuário –
2013.
Capítulo 25
CV: http://lattes.cnpq.br/8411562788556370
E-mail: josefyaari@gmail.com
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-7092-7085
689
O Indivíduo como fenômeno
trajetivo
Resumo: Normalmente
considera-se o indivíduo
como fenômeno subjetivo, ou
seja, sujeito à sua história e
dependente de fatores culturais,
sócio econômicos, raciais...
Para ampliar e aprofundar
essas afirmações é nossa
proposta neste artigo enumerar
alguns dos principais fatos
morfológicos diferenciais na
embriogênese humana em
relação aos outros primatas,
como também citar fatos
morfológicos que levam ao andar,
falar e pensar, fundamentais
para que cada indivíduo, por sua
pró-atividade, possa assumir-se
como fato, não só subjetivo ou
objetivo, mas trajetivo.
690
The individual as a trajective
phenomenon
Keywords: Objective,
subjective, trajective,
presence, “Self”, I,
morpho/anthropological
configuration.
691
692
Capítulo 26
O Indivíduo como
fenômeno trajetivo
Josef David Yaari
Universidade de São Paulo / Instituto ProLíbera
1) A grande Ordem
O fato de vivermos num mundo do qual pouco sabemos e que, por
seus mistérios, nos deixa perplexos, é uma realidade inerente e
obrigatória a todas elaborações científicas, filosóficas e religiosas.
No entanto, isso nos faz refletir sobre a revelação de uma ordem,
uma regularidade, algo muito maior do que nossa compreensão
abarca. Nosso corpo continua tendo muitos mistérios e o espaço
sideral mais ainda. É isso: há uma Ordem Imanente que justifica a
ciência e todas elaborações culturais. Porque a existência da ciên-
cia e as outras elaborações culturais pressupõe a regularidade e a
ordem no mundo.
Por outro lado, parece evidente e inerente ao que foi dito aci-
ma que nós como seres humanos, apresentamos uma postura úni-
ca nesta Ordem, pois nos mantemos perante esta Ordem e simul-
taneamente dentro dela. Como isso acontece? Quem é este ser cuja
presença (não necessariamente como sinônimo do dasein heideg-
geriano, mas como representação de força e potência) é capaz de
se colocar perante a Ordem e, ao mesmo tempo, situar-se dentro
da mesma? Como por nossa atuação essa Grande Ordem Imanente
se torna Ampliada e Emanente?
694
quando se refere à consciência como ato e não como conteúdo.
Ou seja, a consciência não é algo que está dentro de um recipien-
te corporal ou comportamental, mas um ato que visa um objeto.
Outro fato central é apontado por Eudoro de Souza em seu
livro “Mitologia” quando logo na primeira página diz: “O homem é o
animal que se recusa a aceitar o que gratuitamente lhe deram e gratuita-
mente lhe dão. (…) o homem é a própria recusa, antes de ser o quer que
seja ou o quer que venha a ser.” Ou seja, o ser humano se diferencia
amplamente dos outros primatas por uma atitude não natural, co-
locando-se assim, como já dito acima, perante o mundo e, simulta-
neamente, dentro do mundo.
Capítulo 26
696
que nos permite afirmar que a atividade humana, na Ciência, na
Arte – afinal, em todas as suas expressões pelo uso de simboliza-
ções eficazes – não necessita e nunca realizou “explicações” ou
“verdades definitivas”.
Ampliando esta perspectiva, valemo-nos da obra do filósofo
Hans-Georg Gadamer, que pela proposição de superar a herme-
nêutica comum, enfatiza o ser humano como a questão central
do conhecimento e propõe o já citado conceito da Integralidade.
Este conceito vem sendo lentamente acolhido nas premissas da
comunidade científica, promovendo o contínuo diálogo com as
mais diversas disciplinas do conhecimento do ser humano e pro-
vocando a retomada de vários aspectos das pesquisas científicas e
a constatação da necessidade de reestudar importantes descober-
tas, além de integrar conhecimentos de várias tradições culturais
que afinal, como Jean Piaget (1974) deixou claro, sempre se orien-
tam por uma lógica intrínseca. Por isto, o Conceito da Integrali-
dade vem sendo proposto com muita ênfase na área da formação
médica, em confronto com o chamado “Relatório Flexner”1, que
ainda domina boa parte da visão epistemológica, influenciando
conclusões e procedimentos considerados cada vez mais discutí-
veis por vários autores (p.e., PAGLIOSA & DA ROS, 2008). Justamen-
te por integrar outras disciplinas à biologia, fazendo-a “conver-
sar” com as questões antropológicas, sociológicas e, ainda, com
os determinantes econômicos, jurídicos e culturais contemporâ-
neos (incluindo as mesmas questões e determinantes das anti-
gas tradições), o conceito em questão contém em sua gênese a
possibilidade de compreender mais amplamente a expressão dos
1 Documento “Medical Education in the United States and Canada – A Report to the Carnegie
Foundation for the Advancementand Teaching”, publicado em 1910, que propõe a expansão
do ensino clínico, priorizando a ênfase na pesquisa biológica como forma de superar a era
empírica deste ensino, tornando-se um guia da formação médica em nível internacional.
Capítulo 26
698
e culturais. Devemos observar que essa prioridade, tem funda-
mento no “impulso lúdico”, tão bem expresso por Johan Cristoph
Friederich von Schiller (1759 – 1805) e mais recentemente por
Johan Huizinga (1872 – 1945). Assim, a efetiva ação do conhecer,
desde a infância, se exprime quando a criança cria brincadeiras e
brinquedos que imitam a sensação e percepção dos fenômenos
externos e internos. Este processo continua nas elaborações de-
senvolvidas ao longo do crescimento e amadurecimento e, ain-
da, por meio de atividades que chegam à sofisticação cultural e
tecnológica da atualidade. Acima de tudo, reiteramos que a arte
supera a ilusão das certezas pela elaboração do que denominamos
“simbolizações eficazes”, como o são o modelo atômico, os mo-
delos biológicos, as várias formas de expressão dos modelos usa-
dos na Química, Física e, afinal, na formulação de ideologias ou
doutrinas. Essas “simbolizações eficazes” tornam-se importantes
por seus resultados práticos e tem o valor de, ainda assim, não
assumirem o foro de verdades definitivas.
Aqui, não se pode deixar de citar a extraordinária contribuição
de Gaston Bachelard (1884 – 1962), que colocou a expressão artísti-
ca, com foco na poética, como afirmação essencial e superior da ati-
vidade de conhecer a realidade. É também o caso de Gilbert Durand
(1921 – 2012), discípulo e seguidor da obra de Bachelard, quando
afirma o dinamismo organizador da imaginação, visto como potên-
cia dinâmica que amplia as cópias pragmáticas fornecidas pela per-
cepção. Com estas ampliações, a Antropologia Goetheanística abre
a possibilidade de criação de novas e surpreendentes configurações.
Mas é preciso frisar que Goethe chamou atenção para a priori-
zação da forma, dando-lhe o mesmo valor que o conteúdo. A forma
da planta, da rocha, do osso, de um órgão e, afinal, de qualquer
fenômeno é tão importante de ser estudada quanto o conteúdo.
Capítulo 26
700
entre o subjetivo e o objetivo, chegando aos elementos universais
do conhecimento e das práticas humanas.
Assim, as singularidades trajetivas são espacialmente objetivas
e subjetivas, materiais e imateriais, pois o protagonista é um
“guerreiro”3 que transita e elabora infinitas trajetórias, dando im-
portância ao trajeto, enquanto que para o ser humano “civil seden-
tário” prevalece a divisão entre o sujeito e o objeto. E aqui então
retomo o “Ser-Aí” de Heidegger, no sentido de que “Ser-Aí” é “Ser-
-Entre” ou “Entre-Ser”. “Entre-Ser” pode ser tomado por “Entre-
-Tecer-Se”, como uma forma de se colocar num permanente estado
meditativo diante dos fatos, sem ceder à tentação de logo “expli-
car”, elaborar alguma teoria. Isso se dá como se uma experiência
ou um fato, fizesse conosco uma “Entre-Vista”, nos perguntando:
“E então? O que acontece?” E nossa resposta fosse um convite para
que meditássemos e deixássemos nossas percepções sensoriais e
percepções das ideias convergentes conviverem entre si, até que
os fatos se revelem por si mesmos. Isso também é “Entre-Ter-Se”.
Isso é verdadeiro Entretenimento, e não a forma macambúzia de
sedentarismo. Nesse sentido, a atividade do cientista, pesquisador,
operário, artesão, terapeuta, professor, engenheiro, dona de casa,
poeta, músico, etc., pode ser lida como entretenimento, forma de
entreter-se com seu objeto de ocupação, mantendo-se assim, per-
manentemente trajetivo!
3 Fernando Oliveira de Moraes escreve: “Sobre as condições impostas por um mundo racional
e tecnológico, Paul Virílio é extremamente crítico quando afirma: De que serve a um homem
ganhar o mundo inteiro se ele termina por perder sua alma? (…) Lembremos que “ganhar”
significa tanto “chegar” e “alcançar” quanto “conquistar” ou “possuir” (…) Perder sua alma,
anima, ou seja, o próprio ser do movimento. Historicamente nos encontramos diante de uma
espécie de divisão do conhecimento do “ser no mundo”, de um lado o nômade das origens,
para quem predomina o trajeto, a trajetória do ser: e, de outro, o sedentário, para quem preva-
lece o sujeito e o objeto, movimento em direção ao imóvel, ao inerte, que caracteriza o “civil”
sedentário e urbano, em oposição ao guerreiro nômade (…).”
Capítulo 26
702
mo” se faz mais presente especialmente pelo tato (pele sem pelos)
e pelos outros órgãos de sentidos (paladar, visão, térmico, cenesté-
sico, etc.). O fato primordial é que esta “presença” se revela como
ato e é fundamental compreender que a contínua atividade interna
faz com que esta presença se efetive e desenvolva cada vez mais o
ser humano como um todo. Assim, desde muito cedo a criança atua
chamando a atenção pelo choro, pelo movimento em todas suas
expressões, principalmente no brincar, para apreender o mundo e
se colocar cada vez mais perante este mundo5. Os muitos experi-
mentos e estudos realizados com chimpanzés tem demonstrado
que após a idade de um ano, há crescente e rápida perda da capaci-
dade de aprender, na medida em que seu cérebro vai diminuindo e
sendo substituído pelo crescimento dos músculos necessários para
as atividades da mandíbula que passa a crescer.
5 E quando seu movimento fica restrito, ou em outras palavras, não ocorrem seus atos, por
quaisquer razões que sejam, a criança não se desenvolve e, daí, não consegue se colocar per-
ante a realidade!
Capítulo 26
704
iv. Estas identidades subjetivas vão exercitando um contínuo apre-
ender no mundo por meio do impulso lúdico, o brincar - funda-
mento da criatividade e, portanto, da arte. Pelo brincar entramos
em contato, inicialmente pelas sensações, com as coisas e com as
outras pessoas. E assim, lentamente, vai-se delineando, pelo brin-
car em seu mais amplo sentido e pelo pensar, o indivíduo trajetivo,
como fato objetivo que, então elabora seu conhecer pela criativi-
dade não instintiva e, pelo acesso ao pensar, aos significantes das
assim chamadas “Ciências do Espírito” (Matemáticas, Química, Fí-
sica, Psicologia, História, Estudos das Ideologias, Doutrinas, Direi-
to, Literatura, etc.) que são os fundamentos para todas as ciências;
Capítulo 26
706
“Si Mesmo” que, por assumir-se conscientemente como um
“Eu Sou” (conforme indicado no item VIII), ativa de maneira
inédita o ser “creador”, artístico, e, por isso, necessariamen-
te aberto pelo exercício permanente de realizar constatações
que podem ser resultados de juízos, sem julgar fatos ou com-
portamentos de acordo com qualquer critério normatizador,
iluminista, moralista ou modelador. Por essa conquista, ou
seja, por essa atividade inerente e por isso constatada por
qualquer pessoa, cada ser humano pode perceber também
que ocorre simultaneamente a demanda interna, na maioria
das vezes inconsciente, da busca contínua da sutil harmonia
entre prontidão e serenidade.
Capítulo 26
708
ada numa pedagogia do fazer artístico inspirado na Pedagogia
Waldorf (elaborada pelo mesmo Rudolf Steiner, formulador do
Goetheanismo), tende a converter-se num círculo de funda-
mentação e irradiação da comunidade. A partir deste centro,
se dá o caminho de educação continuada com adultos num
percurso de crescimento, que vai da Identidade Infantil/Bio-
lógica, passando pela Identidade Madura/Antropológica para
chegar à Identidade Sábia, representada pelas pessoas que se
responsabilizam totalmente por si mesmas com a consciência
das demandas existentes em toda comunidade. Outra sugestão
derivada das considerações acima corresponde ao conceito de
Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS), que
abrange todas as atividades previstas na Política Nacional de
Práticas Integrativas e Complementares do Ministério da Saú-
de (PNPIC/MS), aprovada pela Portaria 971 do MS em maio de
2006 (TELESI JR., 2016).
Trata-se de um caminho que, em suma, pode ser balizado
pelo que tenho denominado como Oito Princípios Antropo/Noéti-
cos, orientados pela igualdade de oportunidades para todos, fra-
ternidade na vida sócio/econômica e liberdade na vida cultural/
espiritual, e fundamentados na compreensão de que, comprova-
damente, o ser humano caracteriza-se como:
Capítulo 26
5. E que, por isso mesmo, não se deixa guiar por roteiros que
constituem crenças limitadoras em todos os níveis pessoais,
profissionais e sociais;
710
cola voltada para o caminho de crescimento, que vai da identidade
infantil/biológica para a identidade madura/antropológica e, daí para o
estímulo da busca da identidade real sábia, no sentido de estimular e
ser estimulado para contínuas metamorfoses criativas, exercitando
assim o permanente aprendizado do amor.
Capítulo 26
712
GOETHE, J.W. Máximas e reflexões. Califórnia-Edit, 2013.
2ª ed. Lisboa: Guimarães Editores,
1992. PAGLIOSA, Fernando Luiz, & DA
ROS, Marco Aurélio. (2008). O
GOETHE, J.W. Segunda parte: relatório Flexner: para o bem
teoria general de la naturaleza. e para o mal. Revista Brasileira
In: GOETHE, J.W. Teoría de la de Educação Médica, 32(4), 492-
naturaleza. Madrid: Editorial 499. https://dx.doi.org/10.1590/
Tecnos, 1997. p. 139-251. S0100-55022008000400012
Capítulo 26
714
Capítulo 26
CV: http://lattes.cnpq.br/4932554514710224
E-mail: giancarlodeaguiar@gmail.com
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-4487-9569
717
Arquétipos da Ecologia do Ser
718
Archetypes of the Ecology of
Being
719
Capítulo 27
Arquétipos da Ecologia
do Ser
Giancarlo de Aguiar
Universidade de São Paulo / Universidade do
Oeste de Santa Catarina
722
Com base na filosofia Pré-Socrática e também em Platão quan-
do se refere à ética e à profundidade da alma, relaciona o Eros com
a beleza da alma humana, temos acesso a um atributo mais refina-
do e subtil desta categoria, que se trata de um Amor de natureza
etérica. Ao estar de acordo com o facto de a capacidade do ser de
bem cuidar e bem viver a presença da essência pura do amor, o
Eros é o que preenche transversalmente a natureza humana no seu
estado das categorias de Anima e Animus, com a energia capaz de
criar um novo Ethos, podendo este ser um estado de consciência e
virtude, um corpo ou a casa da morada humana, em termos mais
abrangentes o próprio planeta Terra enquanto organismo vivo.
Sendo assim, a qualidade de saber cuidar depende da presen-
ça do Eros, todavia, se a presença da pessoa humana no seu equi-
líbrio feminino e masculino não estiver receptiva à sintonia desta
presença, de que modo o cuidado poderá estar presente? Não haverá
cuidado efectivo, tão pouco duradouro na ausência de Eros, pois na
ausência do Amor nada se sustenta, lembrando aqui a filosofia de
Empédocles que afirmava em sua tese cosmológica ser Eros o quin-
to-elemento primordial que sustenta dos demais. Será impossível
criar um Ethos verdadeiro com bases éticas sem a presença do espíri-
to de Eros, a que podemos chamar ainda de quintessência, a essência
que sustém os quatro elementos descritos em Timeu, de Platão.
A energia de Eros na sua primordial relação de movimento em
rito e mito, na dança cósmica emana arquétipos oriundos da Physis,
Natureza de Eros como exalta Eudoro de Sousa: “A dança nasce
com o próprio universo; é tão remota como Eros, o mais antigo dos
deuses”. Sousa E, 2000, p.112).
Encontramos em Leonardo Boff o desenvolvimento do concei-
to junguiano de arquétipo quando destaca as figuras arquetípicas in-
timamente ligadas à ecologia humana no que respeita à sua natureza
Capítulo 27
724
natureza inconsciente mais vasta, que atinge o desenvolvimento
da totalidade, para ‘torna-se si mesmo’ Verselbstung. Para Leonar-
do Boff, os princípios do feminino e do masculino presentes no
homem e na mulher são “a natureza de uma realidade ontológica,
a categoria que marca esta realidade é a relação, que vem marca-
da por conflitos, muita opressão, violência, lágrimas e sangue. Mas
não somente, também por trocas, enternecimento, amor e fusão
bem-aventurada”. (Boff L, Ribeiro L, 2007, p.50).
Com isto aproximamo-nos de uma categoria transpessoal, na
medida em que esta identidade pessoal alarga os limites da consci-
ência para que a manifestação da profunda realidade inconsciente
se mostre para a integração da sua sexualidade e espiritualidade
nos aspectos do animus e anima e também do androgynis esta últi-
ma categoria aqui apresentada não foi totalmente desenvolvida na
obra de Jung e é retomada mais tarde por Bachelard a partir de uma
psicanálise dos elementos da Natureza.
Encontramos em Bachelard a mesma linha da tradição analítica
de Carl Gustav Jung com a divisão da tipologia psicológica das fun-
ções entre: o pensar, o sentir, o intuir, a sensação, em conformidade
com os elementos: o ar, a água, o fogo e a terrra. Gaston Bachelard
tem um profundo comprometimento com esta nova visão, de uma
psicanálise da ecologia humana, onde o ser encontra o seu sentido
ontológico pela experiência ambiental e planetária. Através de uma
herança pré-socrática, ao invocar os elementos primordiais e definir
a eleição de um princípio criador na imagética prototípica da Natu-
reza, pelo plasmar corpóreo na função de cada um dos elementos;
“uma lei das quatro imaginações materiais, lei que atribui necessaria-
mente a uma imaginação criadora, um dos quatro elementos: fogo,
terra, ar e água. A fisiologia da imaginação, mais ainda que sua anato-
mia, obedece à lei dos quatro elementos.” (Bachelard G, 1990, p.8).
Capítulo 27
726
elementos da natureza no ambiente social. A substancial perda do
vínculo tecido com as forças da Natureza e a própria vida, revela
a necessidade de reconexão pelo movimento. A persona sendo o
principal arquétipo de mediação entre sujeito e as diferentes reali-
dades do mundo, o corpo psíquico, desempenha o papel de compus
e corpus poético enquanto símbolo regulador da Vida, pode atuar na
intervenção social com a transmutação do ambiente para e com a
Natureza, na recuperação do estado do ser contranatura, mais es-
pecificamente da anima agere cuja natureza debilitada passa para a
anima retinere onde a natureza é recuperada. (Aguiar G, 2014, p.155).
De certo modo esta atuação na experiência dos elementos foi
vivenciada por Bachelard na manifestação da natureza como po-
demos evidenciar em sua escrita: “De fato, diante dos espetáculos
do fogo, da água, do céu, o devaneio que busca a substância nos
aspectos efémeros não era de modo algum bloqueado pela realida-
de. Estávamos verdadeiramente diante de um problema da imagi-
nação; trata-se precisamente de sonhar numa substância profunda
o fogo tão vivo e tão colorido.” (Bachelard G, 1991, p.2). A sensível
vivência deste espectacular fenómeno indelével que regista impor-
tantes instâncias arquetípicas entre o consciente e o inconsciente,
segue a sua reflexão de autoconhecimento; “tratava-se de imobili-
zar, diante de uma água fugidia, a substância dessa fluidez; enfim,
era preciso, diante de todos os conselhos de leveza que nos dão as
brisas e os vôos, imaginar em nós a própria substância dessa leveza,
a própria substância da liberdade aérea.” (Bachelard G, Idem).
Uma estrutura arquetípica na criação da poesia inerente a di-
mensão mais profunda da alma humana, de matrizes prototípicas
primordiais da natureza: a sublimação é o dinamismo mais normal
do psiquismo, poderemos mostrar que as imagens saem do próprio
fundo humano (Bachelard G,1991, p.3). Gaston Bachelard nos fala
Capítulo 27
728
Como compreender a atitude e a conduta da pessoa no espaço va-
zio? Nalgum ambiente? E diante da paisagem? Da própria natureza,
reinos e elementos que a constituem?
Priorizamos a trajetória de um caminho que demonstre a evi-
dência do simbólico e do ecológico paisagem natural, ou de outro
modo, na própria natureza; montanha, árvore, mar, horizonte. Nes-
ta busca de integração da vida humana mais próxima da natureza
é que passamos a descrever algumas passagens que a obra Bacher-
diana revela a partir dos elementos. Na obra A Terra e os Devaneios
da Vontade. Ensaios sobre a imaginação das Forças após indagar sobre
a natureza da substância de todos os elementos Bachelard eviden-
cia a importância do elemento terra: “com a substância da terra, a
matéria traz tantas experiências positivas, a forma é tão manifes-
ta, tão evidente, tão real, que não se vê claramente como se pode
dar corpo a devaneios relativos à intimidade da matéria.” (Bache-
lard G, 1991, p.2). O autor percorre dimensões da subjetividade e
da objetividade até chegar ao caminho de acolhimento, repouso e
intimidade, o encontro com o arquétipo da anima, com a própria
natureza? “as grandes imagens do refúgio: a casa, o ventre, a gru-
ta. Encontramos uma oportunidade para apresentar, de uma forma
simples, a lei da isomorfia das imagens da profundidade” (Bache-
lard G, 1991, pp.10-11).
É nesta busca e diálogo com a natureza que Bachelard trata do
elemento terra no reino vegetal, com as suas raízes, e da robustez pela
experiência solidificada: “para bem compreender o seu papel, é pre-
ciso, pelo menos uma vez na vida, ter amado uma árvore majestosa,
ter sentido agir o seu conselho de solidez.” (Bachelard G, 1991, p.56).
É nesta solidez que a episteme bachelardiana traz como complemento
fundamental a poesia: “reanimar uma linguagem criando novas ima-
gens, esta é a função da literatura e da poesia.” (Bachelard G, 1991, p.4).
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“o devaneio diante do fogo, o doce devaneio consciente de seu bem-
-estar, é o mais naturalmente centrado.” (Bachelard G, 1972, p. 23).
Contemplativo, facilmente é possível imaginar um fogo vivo
e visceral, na silenciosa intimidade dos movimentos das brandas
labaredas incandescentes, lambem a madeira em línguas de fogo
que provam o tronco nu do vegetal em lume vivo; “do fogo cal-
mo, regular, dominado, onde a grossa lenha queima em pequenas
chamas. É um fenómeno monótono e brilhante, verdadeiramente
total: ele fala e voa, ele canta.” Pensa-se num fogo de sentido uni-
versal e cosmogónico, de iluminação solar, ou ainda, de natureza
lunar, de luzes noturnas: “O devaneio opera como estrela. Retor-
na ao seu centro para emitir novos raios.” (Bachelard G, Idem). É
nesta ampliação da consciência que Bachelard traz a sua visão de
infinitude e princípio de autocriação eterna. Encontramos nesta
temática Arquétipos da Ecologia do Ser uma proposta de meditação,
reflexão profunda da natureza humana, sentido, busca e encontro
com elementos vivos que ganham significado para a existência,
não somente humana, mas também de todos os reinos e elementos
que constituem o Planeta e a própria Natureza. Eis o compromisso
do verdadeiro modo de ser e viver, um caminho de vanguarda que
prevê a possibilidade de um outro mundo, tecendo e co-criando o
novo Ethos na ecologia pessoal, social e planetária, na resignifica-
ção dos ecossistemas ao natural do humano.
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baracoa
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