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Ethos Humano

e mundo contemporâneo

Organizadora
Sandra Patrício
Ethos Humano
e mundo contemporâneo

Organizadora
Sandra Patrício

1a Edição
São Paulo
Editora Baracoa
O cosmo, o mesmo para todos, não o fez nenhum dos deuses nem ne-
nhum dos homens, mas sempre foi, é e será fogo sempre vivo, acenden-
do-se segundo medidas e segundo medidas apagando-se.

Heráclito
© copyright 2019 by Baracoa
Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.

Organizadora
Sandra Maria Patrício Ribeiro

Conselho Editorial
Alessandro de Lima Francisco
Margarida Maria Silveira Barreto
Silvana Santos García
Vicente Augusto Arquino de Figueiredo

Projeto Gráfico e Editorial: Mateus Tenuta


Assistente: Karime Zaher
Colaboração: Angelo Almeida Lopes
Foto da Capa: Sandra Maria Patrício Ribeiro

1ª. edição - maio de 2019


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Ethos humano e mundo contemporâneo [livro


eletrônico] / organizadora Sandra Patrício. --
São Paulo : Editora Baracoa, 2019.
8.63 Mb ; PDF

Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-65-80620-00-5

1. Civilização - Aspectos morais e éticos


2. Coletâneas - Diálogos 3. Ética social
4. Psicologia - Pesquisa 5. Psicologia social
I. Patrício, Sandra.

19-27255 CDD-302
Índices para catálogo sistemático:

1. Psicologia social : Sociologia 302

Iolanda Rodrigues Biode - Bibliotecária - CRB-8/10014

baracoa
editora

Rua Dr. Albuquerque Lins, 503 - Conjunto 63 - Higienópolis


São Paulo - SP - (11) 3892-6912
www.baracoa.com.br - vendas@baracoa.com.br
Ethos Humano
e mundo contemporâneo

AUTORES:
Acácio de Toledo Netto Rafael de Santis Bastos dos Reis
Adriana Veríssimo Serrão Rafael dos Santos Aquino
Alberto Filipe Araújo Regiane Santos Flauzino de Oliveira
André Ferreira Bezerra Rinaldo Miorim
Angelita Corrêa Scardua Rodrigo Feliciano Caputo
Dirk Michael Hennrich Sandra Patrício
Eda Tassara Tiago Pilotto Rodrigues Alves
Giancarlo de Aguiar Vania Bartalini
Helena Tassara Vladimir Bartalini
Jean-Jacques Wunenburger Yanci Ladeira Maria
José Oswaldo Soares de Oliveira
Josef David Yaari COLABORAÇÃO:
Marcello Giovanni Tassara Paulo Rodrigo Unzer Falcade
Mariana Malvezzi
Maribel Mendes Sobreira APOIO:
Paulo Borges PROAP/CAPES
Paulo Rodrigo Unzer Falcade Programa de Pós-Graduação em
Pedro Teixeira Carvalho Psicologia Social / USP
Sumário
Apresentação
Sandra Patrício

parte 1: diálogos
p. 23 Capítulo 1 — Uma perspectiva para a compreensão do
ethos humano — Sandra Patrício
p. 40 Capítulo 2 ­— Considerações sobre a gravidade ética e
política da paisagem e de suas transformações ­— Sandra
Patrício & Vladimir Bartalini
p. 78 Capítulo 3 —­ Considerações sobre o estudo das multidões
urbanas nos tempos atuais — ­ Sandra Patrício & Eda Tassara
p. 117 Capítulo 4 ­— Fazer da terra uma morada. A ética
da natureza, segundo Ludwig Feuerbach ­— Adriana
Veríssimo Serrão
p. 155 Capítulo 5 —­ Abertura da Consciência e Mudança de
Civilização. Repensar a Natureza, a Terra e Eros a partir
de Hesíodo — ­ Paulo Borges
p. 182 Capítulo 6 — ­ Do Imaginário e de suas relações com a
mitopoética do espaço — Jean-Jacques Wunenburger &
Alberto Filipe Araújo
p. 231 Capítulo 7 ­— Paisagem como paradigma político. Corpo
e paisagem na época das imagens técnicas ­—
Dirk Michael Hennrich
p. 255 Capítulo 8 — Imaginação e poesia: entre a tentação de ser
soviético e a vontade de ser russo. Pensando sobre Andrei
Roublev, um filme de Andrei Tarkovski — Helena Tassara
p. 283 Capítulo 9 — Cidade como chôra e abrigo: sobre a
essência da arquitectura — Maribel Mendes Sobreira
p. 321 Capítulo 10 — Apego ao lugar: panorama de pesquisa e
papel na Psicologia Social — Rafael dos Santos Aquino
p. 350 Capítulo 11 — Toxemia socioambiental. Estudo
psicossocial da transformação do vale do rio Paraíba do
Sul - São Paulo, Brasil — José Oswaldo Soares de Oliveira &
Eda Tassara
p. 379 Capítulo 12 — Ensaio sobre habitar — Yanci Ladeira Maria
p. 397 Capítulo 13 — Homem e Lugar: um ensaio do Homem-
fronteira na atualidade — Mariana Malvezzi
p. 419 Capítulo 14 — Cidade do branco adeus — Marcello
Giovanni Tassara

parte 2: estudos
p. 443 Capítulo 15 – Considerações sobre a Psicologia Social —
Paulo Rodrigo Unzer Falcade
p. 463 Capítulo 16 — Psique e matéria: um estudo junguiano a partir
da Atlântida de Platão e do sertão de Guimarães Rosa —
Rafael de Santis Bastos dos Reis
p. 491 Capítulo 17 — A paisagem como experiência. Abordagem
qualitativa fenomenológica e o fenômeno paisagem —
Vania Bartalini
p. 513 Capítulo 18 — Reflexões sobre os trajetos: imaginário,
espaço e metrópole contemporânea — Rinaldo Miorim
p. 539 Capítulo 19 — A morte e os vivos: um estudo
comparativo dos Sistemas Tanatológicos linense e
Bororo — Rodrigo Feliciano Caputo
p. 565 Capítulo 20 — O Morto-Vivo como símbolo e sintoma da
destrutividade do ethos contemporâneo —
Tiago Pilotto Rodrigues Alves
p. 583 Capítulo 21 — Do interior para o exterior: o exílio de Héstia
e o lugar do coração na cidade — Angelita Corrêa Scardua
p. 601 Capítulo 22 — Existe amor em São Paulo? Um estudo do
amor urbano contemporâneo — Pedro Teixeira Carvalho
p. 627 Capítulo 23 — O lugar do sujeito na lógica do discurso
capitalista — André Ferreira Bezerra
p. 647 Capítulo 24 — A morada do ser: reflexões sobre a casa e o
lugar — Regiane Santos Flauzino de Oliveira
p. 665 Capítulo 25 — Esse lugar chamado “mercadão”: um estudo
fenomenológico da paisagem — Acácio de Toledo Netto
p. 689 Capítulo 26 — O Indivíduo como fenômeno trajetivo —
Josef David Yaari
p. 715 Capítulo 27 — Arquétipos da Ecologia do Ser —
Giancarlo de Aguiar
Apresentação
Sandra Patrício

Esta coletânea de Diálogos e Estudos foi concebida como meio para


oferecer uma espécie de retrato instantâneo do Grupo de Pesquisa
Mitopoética da Cidade1, mais particularmente de sua linha de pesqui-
sa: Ethos humano e mundo contemporâneo. A vontade de publicar este
retrato nutriu-se de algumas boas experiências, em situações nas
quais apresentamos conjuntamente as reflexões e pesquisas con-
duzidas em nível de mestrado, doutorado e pós-doutorado no âm-
bito do grupo para um público mais amplo. Todos que se dedicam
à produção de conhecimento sabem que estas ocasiões não apenas
propiciam que olhares externos ao grupo venham trazer novas e
sempre enriquecedoras perspectivas, mas também forçam o olhar
do próprio grupo a voltar-se sobre seu trabalho, a repensar seus
pressupostos e inspirações, suas questões e seus métodos, a burilar
suas formas de comunicação. É um mostrar a cara, a cara atual; uma
forma de descrever, de mostrar um flagrante, do que andamos pen-
sando, de com quem andamos dialogando, dos temas que estamos
investigando, de algumas conclusões a que estamos chegando. O
propósito que nos anima tem sido, sempre, conhecer os aspectos
materiais e imateriais que condicionam os modos de habitar a Terra
na contemporaneidade, sempre visando contribuir para o diálogo
e a reflexão sobre o ethos contemporâneo, seus impasses, poten-
cialidades e devenires possíveis. Em essência, cada texto reunido

1
O Grupo de Pesquisa Mitopoética da Cidade: Experiência Subjetiva, Paisagem, Memória e Imag-
inação constituiu-se e foi cadastrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil do Consel-
ho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em 2011.

13
nesta coletânea representa mais um esforço para descobrir o que é
um modo melhor de viver, e um melhor lugar para a vida.
O leitor encontrará aqui os resultados de esforços de dois tipos:
os textos reunidos na primeira parte correspondem a uns diálogos
bastante esclarecedores e instigantes com estudantes e pesquisado-
res de diferentes áreas, níveis e instituições, o que em alguns leitores
poderá provocar algum estranhamento que cumpre tentar dissipar
desde já. Ocorre que, por muitas razões e motivos, o grupo prioriza
o trabalho formativo para a pesquisa, o que exige a convivência e o
diálogo com pesquisadores em diferentes fases de formação; nesta
convivência e diálogo é comum que pesquisadores sêniores tenham
a ocasião de aprender coisas bem interessantes que estão sendo es-
tudadas em níveis mais básicos, às vezes por pessoas bastante jovens
– assim, não haveria sentido em adotar o grau acadêmico como crité-
rio para a seleção dos trabalhos a apresentar aqui. Por outro lado, o
grupo caracteriza-se por uma atitude de abertura frente aos conhe-
cimentos e saberes alcançados por diferentes caminhos e, quanto ao
conhecimento científico, frente aos conhecimentos produzidos em
diferentes áreas e em diferentes lugares – portanto, nossos diálogos
tendem a ser, como costumo dizer, um tanto indisciplinados, ou me-
lhor dizendo, têm sempre certa dose (que não caberia aqui precisar)
de interdisciplinarização, quiçá algo de transdisciplinarização, o que
confere também algum deslocamento, alguma trans-departamenta-
lidade e trans-nacionalidade que fica patente especialmente nos ca-
torze capítulos que constituem a primeira parte desta coletânea. No
primeiro bloco desta parte encontram-se as elaborações, digamos,
mais “consolidadas” destes diálogos: o capítulo 1 apresenta a pers-
pectiva compreensiva que esta organizadora tem adotado quanto ao
ethos humano; o capítulo 2 retrata considerações compartilhadas en-
tre o professor Vladimir Bartalini e eu própria, quanto à necessidade

14
de se buscar harmonizar os componentes naturais e construídos
da paisagem (que considero uma das figurações mais expressivas do
ethos humano); o capítulo 3 apresenta considerações longamente elu-
cubradas em conversas que tive o privilégio de manter com a profes-
sora Eda Tassara à respeito das multidões urbanas nos tempos atuais
(que considero uma das dimensões mais dramáticas, senão trágica,
do ethos contemporâneo). No segundo bloco, encontram-se textos
que, cada um a seu modo, meditam sobre a relação existente entre
lugar e vida, discutindo muitas das idéias e conceitos atualmente sob
estudo no Grupo de Pesquisa Mitopoética da Cidade: a Natureza, a
Sensibilidade, a Consciência e a Civilização (capítulos 4 e 5); o Imagi-
nário, o Corpo, a Paisagem, a Cultura, o Tempo e a História, a Poesia
e a Política (capítulos 6, 7 e 8); a Cidade, a Chôra e o Abrigo (capí-
tulo 9); o Apego ao Lugar e a Toxemia Socioambiental (capítulos 10
e 11). O último bloco representa um horizonte de preocupações: o
Habitar como questão geográfica e destino coletivo (capítulo 12) e,
ao mesmo tempo, as limitações hodiernas ao habitar autenticamente
humano sobre a Terra (capítulo 13).
Mas esta primeira parte não poderia terminar assim, terminan-
temente – então, pensei em agregar-lhe um conto, Cidade do branco
adeus, com o qual nos honrou o professor Marcello G. Tassara. Tive
dúvidas se uma tal idéia poderia ser bem compreendida pelos lei-
tores e consultei um dileto aluno, Rafael de Santis Bastos dos Reis,
remetendo-lhe o conto e pedindo sua opinião – ele respondeu:

Há uma citação bastante conhecida de Einstein, na qual ele diz que,


às vezes, quando estava há longo tempo lidando com um problema
ou equação dificílima, que lhe parecia sem saída, ele se retirava para
um quarto escuro e silencioso e a solução para o problema como que
se lhe revelava do meio do vazio. Menos conhecida é uma frase de

15
Clarice Lispector, escrita em uma carta ao seu amigo, o também li-
terato, Fernando Sabino. Clarice narra que estava, por conta própria,
começando a estudar cálculo integral e, antevendo a surpresa do
amigo, explica em seguida: vinha sentindo, em seu trabalho criativo
de escritora, a necessidade de entrar em contato com alguma maté-
ria que lhe fosse desconhecida e misteriosa. Escolheu, para isso, a
matemática. Se Einstein, em meio ao caminho do intenso raciocínio,
fazia um desvio pela senda do vazio, Clarice, por sua vez, buscava, ao
acessar regiões do saber que lhe eram alheias e distantes, distender
seu vigor criativo de artista. Aprendemos com os mestres, e estes nos
ensinam que a alma, dotada de sensibilidades e potências diversas,
cresce e vivifica-se no percorrer a amplidão dos campos do saber.

E Rafael fez mais: enviou-me ainda uma apreciação mui sensível do


conto, que aqui transcrevo à guisa de nota introdutória:

Em um estranho cenário de devastação e ruína, movem-se figuras


pálidas, esquálidas: seres humanos cujo fio de ligação com a civi-
lização e a história rompera-se em algum ponto distante do cami-
nho. Marcello Tassara nos apresenta, no conto “Cidade do branco
adeus”, um mundo pós-colapso e seus habitantes, sobreviventes
do escombro. Em uma cidade desolada, coberta de poeira branca,
páginas de velhos livros são usadas como papel de troca em um
comércio rudimentar. Neste tempo sem tempo, vemos relógios
enferrujados e já sem serventia serem transformados em um co-
lar de mulher. Os habitantes se questionam sobre acontecimen-
tos de um passado longínquo que desconhecem, tentando elabo-
rar algum nexo de sentido para os fragmentos do presente. Quem
é essa gente que pouco ou nada sabe das causas de sua aflição?
Acompanhamos a desventura de alguns desses personagens e, de

16
repente, em meio à leitura se faz o susto: o distópico espreita o coti-
diano, e o absurdo parece poder se materializar a qualquer instante,
mais forte e mais pesado do que a razão. Agora. Marcello Tassara
nos coloca diante de personagens-espelho: ora, também nós não ta-
teamos nas cinzas de nosso museu nacional, recém queimado, em
busca de resquícios de nossa história? Não nos é algo familiar o
gosto da poeira branca que penetra nas entranhas do dia? As pala-
vras do autor vão desenhando imagens que evocam possibilidades
diversas. Vemos, por exemplo, o menino moribundo, ante a impo-
tência dos que o cercam, condoídos por sua dor: “Presépio ao con-
trário”. E vemos, também, uma altivez humana, um anseio de exis-
tir que resiste por sob a poeira. Palavras-imagens de um mundo de
assombro que nos remete – com tamanha atualidade – às sombras
de nosso próprio mundo...

Enfim, o leitor encontrará o conto Cidade do branco adeus ao final da


primeira parte (capítulo 14); de resto, neste e em cada um dos capítu-
los que o precedem, o leitor encontrará, digamos assim, uma “porta
de entrada” para o estudo do ethos humano – seja bem-vindo!
A segunda parte consiste em treze estudos: cinco em nível de
mestrado, sete em nível de doutorado e um em nível de pós-douto-
rado, alguns concluídos e outros em andamento, todos sob minha
orientação, co-orientação ou supervisão – tarefa que é para mim uma
honra e um grande prazer. Quase todos estes trabalhos vinculam-se
ao Departamento de Psicologia Social e do Trabalho (PST) / Progra-
ma de Pós-Graduação em Psicologia Social (PPG-PST) do Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), e foram ou são de-
senvolvidos no âmbito do Laboratório de Psicologia Socioambiental
e Intervenção (Lapsi / IPUSP / PST); um deles corresponde à co-orien-
tação do doutoramento de Vania Bartalini, vinculada ao Programa

17
de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo e ao Laboratório
Paisagem, Arte e Cultura (LabParc / FAU-USP). Portanto, e embora
enfoquem situações diversas, os estudos apresentados nos capítu-
los que constituem a segunda parte deste volume alinham-se, em
maior ou menor grau, à minha própria compreensão acerca do ethos,
concebido como uma relação natural (como que) de moldagem con-
tínua e recíproca entre um lugar e a vida de seus habitantes – mais
especificamente para o caso humano, uma relação entre a subjeti-
vidade, o comportamento e o lugar de existência (situação), aspectos
indissociáveis da nossa vida e que constituem condições funda-
mentais das experiências sustentadoras do mundo interno e das in-
terações do sujeito com o mundo exterior, entendido em toda a sua
amplitude e setores2. Esta é a compreensão que orientou ou orienta
os trabalhos apresentados na segunda parte, os quais buscam en-
frentar três ordens de questões: 1) as questões acerca da constitui-
ção histórica do objeto e do método da Psicologia e da Psicologia
Social, e os papéis ou funções que exercem na cultura ocidental
moderna; 2) as questões acerca da natureza, gênese, estrutura, de-
senvolvimento e funcionamento do psiquismo, da subjetividade e
da interação humana; 3) as questões acerca das qualidades ambien-
tais (em termos tanto físico-biológicos, quanto histórico-culturais)
imprescindíveis à sustentação da vida humana na dupla acepção
conferida pelos vocábulos gregos zoé e bíos (ou seja: em termos tan-
to da manutenção e multiplicação da vida orgânica, quanto dos mo-
dos de viver que caracterizam e singularizam as diversas coletivida-
des humanas). Nos estudos concretos que são aqui apresentados, o
enfrentamento destas questões articula-se com os temas de pesqui-

2
No primeiro capítulo da presente coletânea (Uma perspectiva para a compreensão do ethos
humano) procurei detalhar um pouco mais esta minha compreensão e referenciar seus prin-
cipais fundamentos.

18
sa desenvolvidos individualmente pelos pós-graduandos do Grupo,
ressoando seus respectivos interesses, formação básica, referenciais
teórico-metodológicos, experiências. Tal circunstância também po-
derá gerar algum estranhamento em leitores habituados a encontrar
certa homogeneidade nas dissertações, teses e pós-doutoramentos
orientados por um docente, e talvez seja preciso reiterar nosso pro-
pósito de contribuir para o diálogo e a reflexão sobre o ethos contem-
porâneo, seus impasses, potencialidades e devenires possíveis – ora,
a heterogeneidade é parte inerente do diálogo sincero e da reflexão
genuína! Assim, o justo alinhamento dos trabalhos ora retratados
não poderia se dar senão pelo propósito reflexivo comum: reflexões
teórico-metodológicas sobre a psicologia e seu objeto (capítulos 15,
16 e 17), reflexões sobre traços característicos do ethos humano na
contemporaneidade (capítulos 18, 19 e 20), reflexões sobre situações
em que o ethos humano mostra-se, em alguma medida, fraturado
(capítulos 21, 22 e 23), reflexões sobre as condições suficientemente
boas para a sustentação e integridade do ethos (capítulos 24 e 25), re-
flexões sobre descaminhos do mundo contemporâneo e os possíveis
caminhos para a restauração do ethos humano (capítulos 26 e 27).
Tais reflexões, como é evidente, recobrem muitos dos problemas
mais complexos com os quais se defrontam, hoje, as ciências humanas
e sociais, notadamente a Psicologia e a Psicologia Social; daí conside-
rarmos pertinente e relevante compartilhar os fundamentos e deline-
amentos que adotamos nestes trabalhos, bem como os resultados e
interpretações a que temos chegado.
Como últimas palavras, registramos nossa gratidão aos amigos
José Teixeira Neto e Nísia Simi Amaral, que gentilmente nos ajudaram
na revisão de parte dos textos desta coletânea. Também agradecemos
ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social pelo apoio atra-
vés da verba PROAP/CAPES.

19
Parte 1

21
Sandra Patrício
Universidade de São Paulo

Docente do Instituto de Psicologia da


Universidade de São Paulo e orientadora do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Social. Vice coordenadora do Laboratório
de Psicologia Socioambiental e Intervenção
(IPUSP); líder do Grupo de Pesquisa
Mitopoética da Cidade (IPUSP); membro
colaborador do Grupo de Pesquisa em
Política Ambiental (IEA-USP) e do Centro de
Filosofia da Universidade de Lisboa.

CV: http://lattes.cnpq.br/6404152265871629
E-mail: sandrapatrício@usp.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-3838-122X

23
Uma perspectiva para a
compreensão do ethos
humano

resumo: Pondera-se a existência (ou seja, relativa ao ethos


de uma relação universal e, humano), como meio
senão atemporal, ao menos necessário ao estabelecimento
submetida a uma temporalidade de parâmetros orientadores
de longuíssimo prazo, de avaliações, decisões e ações,
correspondente aos tempos nos planos pessoal e político,
naturais da evolução geológica sobre os modos possíveis e
e biológica e à lenta formação e desejáveis de habitarmos a
desenvolvimento histórico das Terra como seres humanos, em
culturas – uma relação natural companhia de outros seres, por
(como que) de moldagem um tempo indefinível
contínua e recíproca entre um
lugar e a vida (entendida em palavras-chave:
suas múltiplas acepções) de Ethos humano, Lugar,
seus habitantes. Considerando- Comportamento,
se os significados assumidos Subjetividade, Mundo
ao longo do tempo pela palavra contemporâneo.
ethos, cuja origem remonta à
ancestralidade indo-europeia,
parece lícito empregá-la para
nomear tal relação. Nesta
perspectiva, defende-se a
necessidade de investigar a
gênese e a estrutura da relação
ética específica dos homens

24
A perspective for the
understanding of the human
ethos

abstract: The existence of relative to the human ethos)


a universal relationship is is vindicated as a necessary
considered and, if not timeless, mean to establish the guiding
it is at least subject to a very parameters for evaluations,
long term of temporality. This decisions and actions, in the
scale corresponds to the personal and political level, on
natural times of geological and the possible and desirable ways
biological evolution and the of inhabiting Earth as human
slow formation and historical beings, in the company of other
development of cultures – a beings, for an indefinable time.
natural relation (as if) of
continuous and reciprocal keywords: history of
molding between a place and psychology, social psychology,
life (understood in its multiple social interaction.
meanings) of its inhabitants.
Considering the meanings
assumed along the time by
the word ethos, whose origin
traces back to Indo-European
ancestry, it seems to be licit to
use it to name such a relation.
In this perspective, the need
to investigate the genesis and
structure of the specific ethical
relationship of men (that is,

25
Capítulo 1

Uma perspectiva para a


compreensão do ethos
humano
Sandra Patrício
Universidade de São Paulo

Marco descreve uma ponte, pedra por pedra.


— Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? — pergunta Kublai
Khan.
— A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra —
responde Marco —, mas pela curva do arco que estas formam.
Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois
acrescenta:
— Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.
Polo responde:
— Sem pedras o arco não existe.
Ítalo Calvino1

Impossível destrinçar as muitas relações que Ítalo Calvino deve-


rá ter suposto para imaginar e escrever este singelo diálogo, e que
devemos também supor para a sua leitura compreensiva – a come-
çar pela nossa relação com Ítalo Calvino e sua escrita, dele com as
¹ CALVINO, Ítalo. As Cidades Invisíveis. Tradução de Diogo Mainard. São Paulo: Cia. das Letras,
1990 [pp. 79].

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 27


Editora Baracoa — 2019
letras, dele e de todos nós com as pontes, arcos e pedras, com o
engenho construtivo, com as histórias e estórias que cercam as figu-
ras de Kublai Khan e Marco Polo... posso afiançar que é inspirador
exercitar-se na, digamos, escavação das relações que aí se escondem
– inspirador ao ponto da vertigem! Mas estas páginas não têm este
exercício como propósito; estas minhas colocações iniciais querem
apenas predispor meu leitor a pensar o que é uma relação.
Consultando um dicionário de português, podemos encontrar
que a palavra ‘relação’ provém do latim e que significa ‘descrição,
notícia’ ‘semelhança, analogia’ (CUNHA, 2007). O professor Leôni-
das Hegenberg (1995) instrui que nos tratados clássicos de Lógica o
termo ‘relação’ jamais foi adequadamente definido, neles não fican-
do clara a distinção entre proposições categóricas e relacionais, e que
o assunto converteu-se em tópico importante apenas a partir dos
estudos de Augustos de Morgan (1806-1871) e de Charles Sanders
Peirce (1839-1914) sobre proposições relacionais. Ele acrescenta que
“Na Teoria dos Conjuntos, uma relação (binária), em um dado conjunto
E, é simplesmente uma coleção de pares ordenados”. Mas discutir o que é
uma ‘relação’ também fugiria ao propósito central deste texto – fica
apenas insinuado o escopo de sentidos que tal termo pode assumir
e registrada a recomendação para que isto seja pensado. Por agora, é
preciso contentar-se com uma referência sumária aos modos usuais
de uso e entendimento do termo, para o que me valho do verbete
presente no Dicionário de Psicologia APA (VANDENBOS, 2010):

Relação s. 1. Relacionamento recíproco de empatia, confiança e


unidade entre duas ou mais pessoas. 2. Qualquer tipo de ligação
significativa entre dois ou mais eventos ou entidades. A nature-
za específica dessa ligação varia com o contexto e a disciplina.
Em ciência, por exemplo, uma relação é primariamente uma

28
relação causal. 3. Pareamento ou mapeamento entre os elementos
de dois conjuntos de modo que cada elemento do primeiro con-
junto (ou condutor) faça par com apenas um elemento correspon-
dente do segundo conjunto (ou seguidor). – relacionado adj.

Volto-me, então, para meu assunto principal: o estudo do ethos


humano. Os significados assumidos pela palavra ethos ao longo do
tempo sempre apontaram no sentido de uma ligação, inerente e ob-
jetiva, observável, visível, entre o indivíduo, seu grupo específico e
a situação em que se encontram, sendo aplicável e de fato aplicada
aos animais, deuses e homens. Tal palavra surgiu e vem sendo em-
pregada e transmitida desde muito tempo atrás, sendo hoje em-
pregada predominantemente como termo que abrange os costumes
típicos de uma comunidade ou de um povo que habita um territó-
rio comum, homogeneizados pelo compartilhamento de valores e
normas culturais, conotando-se muitas vezes com uma apreciação
positiva destes costumes (como se não pudesse haver um ethos, di-
gamos, ruim). Nos campos da Retórica e da Literatura, ethos relacio-
na-se com as qualidades de um orador/escritor, sobretudo suas qua-
lidades morais, intelectuais e verbais – genuinamente verdadeiras
ou cuidadosamente escolhidas e simuladas – que transparecem em
seus discursos e que exercem influência naqueles a quem se dirige,
tanto ou mais do que o conteúdo do próprio discurso.
Ethos é uma palavra que reporta a dois vocábulos gregos an-
tigos: éthos  (eJoV - grafado com epsilon) e êthos  (hJoV - grafa-
do com eta). De modo geral, os especialistas concordam que, an-
tigamente, êthos  (hJoV, com eta) significava o habitat, o lugar, a
morada típica de uma espécie animal, enquanto éthos (eJoV, com
épsilon) significava os hábitos, os costumes, o modo de proceder
característico de um animal, mas também de um homem, ou de um

Capítulo 1

Uma perspectiva para a compreensão do ethos humano 29


Sandra Maria Patrício Ribeiro
grupamento humano (conforme, p..e., MURACHCO, 1997; PROSCURCIN
JR., 2007; SPINELLI, 2009), embora estas semelhanças e diferenças
de significado não sejam, de fato, matéria incontroversa. Quanto à
origem destes vocábulos, éthos e êthos, a partir do indo-europeu,
ambos parecem reportar-se à raiz indo-europeia s(w)e- , sobretu-
do em sua forma extendida swē dh, cujo sentido seria “aquilo que
é próprio (de alguém ou de um grupo)”, peculiaridade, costume.
Com este sentido, teria dado origem a palavras como, no inglês: so-
dality/sodalities (irmandade/fraternidade, indicativa da associação
de pessoas que possuem alguma característica comum, comparti-
lhada, sendo solidárias entre si); no latim: consuetude (usos e cos-
tumes; o que é consuetudinário, que se pratica habitualmente, que
diz respeito aos costumes de um grupo); no grego: além de ethos
(de onde proviriam, por exemplo, ética, etologia, cacoete), também
ethno- , grupos de pessoas que vivem juntas, nação, povo (do qual
provém etnia, etnografia etc.).
Em suma, o sentido originário da raiz s(w)e-, e por derivação o
sentido dos vocábulos gregos éthos e êthos, hoje comumente gra-
fado na forma ambígua ‘ethos’, parece abranger, simultaneamente,
a idéia de próprio, de pertencente a um indivíduo, e a idéia de ser
algo ou alguém familiar, pertencente ao grupo ao qual o próprio
sujeito pertence, seja por laços de “sangue” ou de “solo” comum
– daí que derive, também, para a idéia de lugar próprio, familiar,
confiável, querido (p.e., POKORNY, 1959-1969). Em português, a lín-
gua hoje praticada em nosso solo comum, temos um bom exem-
plo para ajudar a compreender esta abrangência da raiz s(w)e- e
o sentido implicado nas palavras que dela derivaram: o pronome
oblíquo “se”, empregado com funções apassivadoras, reflexivas, ou
de indeterminação do sujeito. Pense na bela frase de José Manuel
Marques Pinto: “Vive-se o que a Vida deixa Viver” – o que a vida

30
deixa viver é o que vivemos, eu, você, nós todos, os humanos sobre
a Terra; este “-se” que aí comparece instala uma espécie de ligação,
de sentido circular e reversível, entre o indivíduo, seu grupo espe-
cífico e a situação (o lugar) em que se encontram.
Esta circularidade e seus efeitos simbólicos subjacente aos sig-
nificados convencionados ao longo do tempo para o uso de palavras
derivadas da raiz s(w)e-, por si só, justifica o interesse de se estudar
o ethos humano no campo das Humanidades e das Ciências Hu-
manas e Sociais e, dentre elas, particularmente a Psicologia Social,
e sugere também o potencial heurístico de um tal estudo para o
conhecimento e a reflexão sobre a realidade da vida e do mundo
humano na contemporaneidade. Mas eu gostaria que ficasse intei-
ramente clara minha posição: acredito que a palavra ethos, se origi-
nou-se na ancestralidade indo-europeia, nem por isto deixa de no-
mear algo de universal. Trata-se, a meu ver, de um modo particular,
histórico, de apontar uma relação geral, universal, a-histórica, entre
indivíduos e coletivos vivos específicos e seu lugar de vida.
Dito de outro modo, penso que a instauração da palavra, con-
quanto razoavelmente bem localizada e datada, deu-se com base
no reconhecimento, possível e provavelmente intuitivo, de uma
relação universal e, senão atemporal, ao menos submetida a uma
temporalidade de longuíssimo prazo, correspondente aos tempos
naturais da evolução geológica e biológica e à lenta formação e
desenvolvimento histórico das culturas – portanto, meu interesse
volta-se não à palavra ethos, sua etimologia e filologia, mas sim a
esta relação universal que tal palavra teria vindo nomear.
Tenho defendido a tese de que o ethos é uma relação natural (como
que) de moldagem contínua e recíproca entre um lugar e a vida de seus
habitantes (RIBEIRO, 2018). Esta formulação, assumidamente preliminar
(até precária, mesmo), exige pelo menos oito breves esclarecimentos:

Capítulo 1

Uma perspectiva para a compreensão do ethos humano 31


Sandra Maria Patrício Ribeiro
1. “uma”, indica que a relação que tenho em mente é certa, precisa, úni-
ca; um tipo especial de relação que ocorre sempre, entre todo e qual-
quer lugar, e todo e qualquer de seus habitantes, seja quando são
tomados individualmente, seja quando são tomados coletivamente;
2. “relação” indica que observando-se uma dada situação, seja direta-
mente ou seja através de relatos ou narrativas, e comparando-se
entre si aqueles elementos (o lugar e a vida de seus habitantes),
constatar-se-á semelhanças, isomorfias, correspondências, entre
os componentes físico-químicos, orgânicos e formais, inclusive
simbólicos, de tal situação;
3. “natural” quer dizer que tal relação é factual, não necessariamente
lógica e menos ainda dependente do desejo ou do arbítrio humano
– até ao contrário, nossa possibilidade de exercer algum controle
quanto a isto depende necessariamente do reconhecimento de sua
inexorabilidade universal;
4. a expressão “(como que) de moldagem” quer dizer, primeiro,
que para o momento contento-me com uma expressão analó-
gica ou mesmo metafórica acerca de tal relação e, segundo, que
o processo de moldagem parece-me análogo (ou, pelo menos,
uma imagem sugestiva) da relação que pretendo assinalar –
acrescido da vantagem, digo-o claramente, de que o processo
de moldagem, conquanto não afaste certa causalidade mecâni-
ca, tem uma aparência suficientemente lúdica e misteriosa para
sustentar a dúvida e o pensamento que medita sobre tudo o que
nele se verifica;
5. “contínua e recíproca” quer dizer que, sob a regência de tal relação
ética (ou seja, concernente ao ethos), todos os componentes físi-
co-químicos, orgânicos e simbólicos interagem e se amoldam entre
si, global e ininterruptamente (pelo menos, enquanto o sistema lu-
gar-vida se mantiver ordenado);

32
6. “lugar” quer dizer, ambiguamente, topos e chôra (cf., p.e., BERQUE,
2003; 2012), ou seja, tanto quer dizer certa posição e limites pre-
cisos de uma porção do espaço tridimensional que podem ser ob-
jetivamente indicados mediante coordenadas cartesianas (topos),
quanto quer dizer, já não somente a forma momentaneamente
assumida por uma porção do espaço, mas também muitos outros
aspectos: as transformações sucessivas de que seus habitantes
têm memória, as qualidades atuais dos objetos que se concentram
numa dada região do espaço e seus usos praticados no presente e
também aqueles que são projetados para o futuro, as afetações re-
cíprocas entre estes objetos e as motivações que eliciam nos viven-
tes que coexistem nesta região, o valor pragmático e simbólico que
possuem no mundo humano tanto em níveis particulares quanto
em nível geral e que, nas palavras de Platão, gestam e nutrem o
devir de tudo e de todos que lá existem (chôra);
7. “vida” quer dizer, de um lado, a vida orgânica individual com tudo
que isto implica, notadamente um corpo físico e vivo, cuja forma-
ção, funcionamento e adaptação transcorre sob condições filoge-
néticas estritas, que as condições ontogenéticas podem modificar
mas jamais ultrapassar – algo a que os gregos antigos teriam cha-
mado pelo nome zoé (cf., p.e., BESSELAAR, 1994; AGAMBEN, 2002),
quanto, por outro lado e ao menos no caso humano, tanto a vida
psíquica individual e subjetiva (notadamente, a simbolização, a
cognição, os sentimentos, o raciocínio), quanto o modo de viver
coletivo moldado culturalmente que, aliás, é efetivo em moldar
também o modo individual de comportar-se (bíos; idem) – tudo
isto recíproca e continuamente; e
8. “habitantes” quer dizer, simplesmente, todos os seres vivos que povo-
am certo lugar atualmente, ou seja, no momento considerado – assim,
o estudo do ethos vigente num dado lugar, por exemplo, numa cidade,

Capítulo 1

Uma perspectiva para a compreensão do ethos humano 33


Sandra Maria Patrício Ribeiro
deve considerar não apenas a população humana ali residente, mas
também a população flutuante (turistas etc.), e mesmo outras espé-
cies (a “fauna” e a “flora”) que coabitam com os homens neste lugar.

Assim, e sendo como penso que é, o estudo do ethos deveria re-


vestir-se do caráter de uma ontologia profunda, capaz de dar conta
não apenas da gênese e da estrutura desta relação (PIAGET, [1968]
2003), mas também dos fatores que nos trouxeram ao ponto atu-
al. Qual é este ponto? Pois bem: um ponto no qual tende a imperar
uma cosmovisão eivada de excessivo voluntarismo, na qual sabemos
sempre menos sobre (e consideramos sempre menos) os limites de
nosso próprio arbítrio quanto a tal relação ética, à despeito de que
a possamos reconhecer, e a cada dia com maior clareza, na vida de
todas as demais espécies animais do planeta. Quanto ao habitat e
aos hábitos, sabemos cada dia menos sobre o que é específico dos
homens, de todos os homens, como sabemos cada dia menos sobre
o que nos afeta, nos motiva, nos move, nos anima – sabemos cada
dia menos sobre nossa própria alma, nossa anima, nosso hálito espe-
cífico, universal, dos homens. Dito de outro modo, quanto ao ethos
– amálgama de habitat, hábitos e hálito – sabemos cada dia menos
sobre o que é especificamente humano do que sobre aquilo que, com
perdão do pleonasmo, é específico de outras espécies de seres vivos.
Nós, os seres humanos, notabilizamo-nos pela adaptabilida-
de aos mais diversos lugares, pela estonteante diversidade cultural
e pela singularidade de nossas experiências individuais; não admira
que estejamos a cada dia menos interessados em investigar o que
pode haver de comum entre os lugares que habitamos, entre os com-
portamentos que habitualmente adotamos, entre nossas almas e ex-
periências individuais, que falemos a cada dia menos – ou então que
tergiversemos a cada dia mais – sobre o que pode haver de universal

34
em nossos habitats, hábitos e hálitos, sobre o que há de comum a todos
nós. Tudo se passa como se cada lugar, e nele cada pessoa ou grupo,
constituísse uma realidade sui generis, sem comparação possível em
qualquer nível, com quaisquer outros lugares, grupos ou pessoas.
De minha parte, quero colocar que as coisas não me parecem
ser, de fato, assim – ao menos, quero recolocar a dúvida: podemos
ou não, importa ou não, vale ou não a pena, buscarmos conhecer os
contornos, os limites, do tipo de lugar e do tipo de vida correspon-
dente ao ser humano? Como fazer isto?
As respostas preliminares que tenho encontrado (ou reformu-
lado) orientam na direção de focar já não um ou outro, ou outro,
componente ético (habitat, hábito e hálito) para nele propor e im-
plementar melhorias, como tem sido feito por grande parte dos
chamados cientistas humanos e sociais da atualidade, aliás, sem
grande sucesso. O mais das vezes, tem-se buscado intervir sobre
lugares, ou condicionar comportamentos, ou educar as almas,
tendo em vista ideais de perfeição deduzidos de visões de mundo
cujas origens e destinos ainda compreendemos pouco e que talvez
jamais possamos compreender inteiramente. Creio que, em vez
disso, é preciso focar a complexa relação entre aqueles componen-
tes (habitat, hábito e hálito; lugar, comportamento e subjetividade),
sem pressa de manejar, de controlar, tal relação.
Com isto não quero negar o valor das pesquisas ditas “aplica-
das” ou “engajadas”, menos ainda o estudo das visões de mundo
que formam nossa herança cultural; ao contrário, admito de bom
grado tanto a utilidade transformadora e prática do conhecimento,
quanto a inevitável adesão de todo ser humano, inclusive os cien-
tistas, a visões de mundo preexistentes a ele e cuja compreensão
deve ser perseguida a todo custo. Seja como for, parece-me acer-
tado reafirmar a importância da pesquisa científica pura, básica,

Capítulo 1

Uma perspectiva para a compreensão do ethos humano 35


Sandra Maria Patrício Ribeiro
para a compreensão desta relação a que chamo ética – uma rela-
ção natural (como que) de moldagem contínua e recíproca entre
um lugar e a vida (entendida em suas múltiplas acepções) de seus
habitantes. A questão é que não se trata de uma relação simples,
de correspondência entre dois conjuntos de eventos ou entidades;
“lugar” e “vida” são termos polissêmicos, densos, que evocam e
reportam realidades já em si extremamente complexas. Não basta
examinar isoladamente as realidades indiciadas por estes termos
como geralmente veio sendo feito nas disciplinas científicas clássi-
cas, nem examiná-las duas-a-duas em busca de eventuais ligações
causais entre elas como tem sido feito, o mais das vezes, no campo
atual das ciências humanas e sociais – pior, desembocando inevi-
tavelmente em tentativas de predizer, regular e controlar o andar
das coisas, sempre em vista de um mundo totalmente perfeito que,
segundo certa visão de mundo tributária insuspeita de visões te-
ocêntricas antigas, devemos e podemos construir. Frente a estas
dificuldades, o que quero é afirmar que a atitude mais favorável
ao estudo da relação ética corresponde, sem ressalvas, à mesma
atitude recomendada aos psicanalistas por Wilfred Ruprecht Bion
(1897-1979), nos termos de três negações: uma atitude sem memó-
ria, sem desejo e (conquanto estejamos sempre em busca de com-
preender) sem ânsia de compreensão (p.e., BION, 1994).
A compreensão da relação ética é, segundo penso, uma con-
dição necessária a que possamos estabelecer parâmetros mínimos
que orientem nossas decisões sobre onde e como queremos viver,
onde e como é possível viver, por um tempo indefinido e talvez
indefinível, como humanos, seja no que concerne às decisões indi-
viduais, seja no que concerne às decisões coletivas ou políticas. Em
suma, penso que enquanto ignorarmos o que é comum em nós não
poderemos estabelecer parâmetros orientadores de avaliações,

36
decisões e ações, nos planos pessoal e político, sobre os modos
possíveis e desejáveis de habitarmos a Terra como seres huma-
nos, em companhia de outros seres; não poderemos construir um
mundo suficientemente bom para todos nós, sobretudo porque
tal ignorância, logicamente, tende a impossibilitar qualquer sen-
timento de compaixão para com os indivíduos e grupos humanos
distintos de nós próprios, de nossos próprios grupos – assun-
to que, de modo ligeiramente diferente, é abordado por Richard
Sennett (2003) dentre muitos outros, assim como impossibilita a
percepção de nosso destino comum com as demais espécies vivas
do planeta e, em síntese, o reconhecimento de nossa dependência
absoluta do lugar (primordialmente, chôra), em que vivemos.
Como arremate, parece-me oportuno ilustrar mais concretamen-
te minha concepção da relação ética; pois bem: ela pode ser intuída
diante de qualquer situação na qual possamos aplicar, por exemplo, o
conceito de “trauma”. Como todos sabem, um “trauma” é geralmente
reconhecido como o impacto de um evento externo, localizável no es-
paço-tempo, sobre um sujeito (individual ou coletivo), resultando em
consequências mais ou menos duradouras à sua vida física e/ou psíqui-
ca, com reflexos verificáveis em algum grau sobre seu corpo e/ou sobre
seu comportamento manifesto ou encoberto. Para uma aproximação
mais lúdica, pode-se começar a pensar o assunto a partir de uma deli-
ciosa “tirinha” de Bill Watterson (s/d) que dispensa comentários:

Capítulo 1

Uma perspectiva para a compreensão do ethos humano 37


Sandra Maria Patrício Ribeiro
referências
AGAMBEN, Giorgio (1995). Homo CUNHA, Antonio Geraldo da.
Sacer. O poder soberano e a vida Dicionário etimológico da língua
nua I. Traduçaõ de Henrique portuguesa. Rio de Janeiro:
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HEGENBERG, Leônidas. Dicionário
BERQUE, Augustin. ‘Lieu’ de lógica. São Paulo: EPU, 1995
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lsquolieursquo-1/ ética de Aristóteles: o homem na
pólis e nas relações individuais. In:
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Platão”. In: SERRÃO, Adriana especial / Ethos, Ética (pp. 30:37).
Veríssimo (coord.), “Filosofia
da Pisagem. Um manual”. PIAGET, Jean (1968). O estruturalismo
Lisboa: Centro de Filosofia da (tradução de Moacir Renato de
Universidade de Lisboa, 2012 Amorim / Rio de Janeiro: Difel, 2003
(pp. 29-37)
POKORNY, Julius. Indogermanisches
BESSELAAR, José Van Den. As etymologisches Wörterbuch. Bern:
palavras têm a sua história. Braga Francke, 1959-1969. Disponível
(Portugal): Edições APPACDM, em: https://academiaprisca.org/es/
1994 recursos/diccionario-etimologico-
indoeuropeo-de-pokorny/.
BION, W.R. (Wilfred Ruprecht).
Estudos psicanalíticos revisados PROSCURCIN Jr., Pedro. Investigação
– second thoughts (tradução de fenomenológica e sentido
Wellington M. de Melo Dantas). originário do êthos (ΗΘΟΣ). DM
Rio de Janeiro: Imago, 1994 FDUSP, 2007.

38
SENNETT, Richard. Carne e Pedra.
O corpo e a cidade na civilização
ocidental. Rio de Janeiro: Record,
2003

SPINELLI, Miguel. Sobre as


diferenças entre éthos com
epsílon e êthos com eta. Trans/
Form/Ação, São Paulo, 32(2): 9-44,
2009

VANDENBOS, Gary R. (org.).


Dicionário de psicologia APA.
Porto Alegre, Artmed, 2010.

RIBEIRO, Sandra Maria Patrício.


Lições preliminares para o
estudo do ethos contemporâneo
[doi:10.11606/T.47.2019.tde-
05042019-100757]. Tese (Livre-
Docência – Departamento de
Psicologia Social e do Trabalho).
- Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo. --
São Paulo, 2018. Disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/
disponiveis/livredocencia/47/tde-
05042019-100757/pt-br.php

Capítulo 1

Uma perspectiva para a compreensão do ethos humano


Sandra Maria Patrício Ribeiro baracoa
editora
Sandra Patrício
Universidade de São Paulo

Docente do Instituto de Psicologia da


Universidade de São Paulo e orientadora do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Social. Vice coordenadora do Laboratório
de Psicologia Socioambiental e Intervenção
(IPUSP); líder do Grupo de Pesquisa
Mitopoética da Cidade (IPUSP); membro
colaborador do Grupo de Pesquisa em
Política Ambiental (IEA-USP) e do Centro de
Filosofia da Universidade de Lisboa.

CV: http://lattes.cnpq.br/6404152265871629
E-mail: sandrapatrício@usp.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-3838-122X

40
Vladimir Bartalini
Universidade de São Paulo

Docente da Faculdade de Arquitetura e


Urbanismo da Universidade de São Paulo e
orientador do Programa de Pós-Graduação
em Arquitetura e Urbanismo. Membro
fundador do Laboratório Paisagem, Arte e
Cultura - LABPARC/ FAU-USP, que coordenou
de 2002 a 2006. Desenvolve estudos
teóricos sobre paisagem e pesquisa sobre
"Córregos Ocultos" e atua profissionalmente
em projetos e consultorias em Paisagismo,
sobretudo em espaços livres, áreas verdes e
parques públicos.

CV: http://lattes.cnpq.br/2952247331062910
E-mail: bartalini@usp.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-3412-0620

41
Considerações sobre a
gravidade ética e política
da paisagem e de suas
transformações

resumo: Este ensaio aborda vida de seus habitantes, sua


duas perspectivas divergentes transformação além de certos
sobre a paisagem, uma que limites (poderíamos dizer:
acentua a vertente subjetiva sua deformidade) é sintoma
da representação e outra que de desarmonias passadas-
acentua a vertente objetiva dos presentes e permite vislumbrar
espaços, buscando mostrar uma desequilíbrios e sofrimentos
terceira dimensão ontológica, futuros.
específica da paisagem – uma
dimensão trajectiva, que faz palavras-chave: Paisagem,
dela uma categoria sintética Trajectividade, Cidade, Rios
entre natureza e cultura. Neste Ocultos, Ética.
sentido, a paisagem expressa o
modo singular como, ao longo
dos tempos, se integraram as
dimensões físico-biológicas e
histórico-culturais num dado
território. Estas considerações
conferem relevo ético e político
à noção de paisagem: se sua
integridade (aliás, poderíamos
até dizer: sua beleza) expressa
formalmente a relação
harmônica entre o lugar e a

42
A perspective for the
understanding of the human
ethos

abstract: This essay formally expresses the


approaches two divergent harmonious relationship
perspectives about the between the place and the
landscape, one that emphasizes life of its inhabitants, its
the subjective side of transformation beyond
representation and another certain limits (we could say:
that accentuates the objective its deformity) is a symptom
side of spaces, seeking to show of past-present disharmonies
a third ontological dimension, and allows us to glimpse future
specific to the landscape – a imbalances and sufferings.
trajective dimension, which
makes landscape into a keywords: Landscape,
synthetic category between Trajectivity, City, Hidden
nature and culture. In this Rivers, Ethic.
way, the landscape expresses
the singular way in which,
over time, the physical-
biological and historical-
cultural dimensions have
been integrated into a given
territory. These considerations
give ethical and political
importance to the notion of
landscape: if its integrity (we
could even say: its beauty)

43
Capítulo 2

Considerações sobre
a gravidade ética e
política da paisagem e
de suas transformações
Sandra Patrício
Universidade de São Paulo
Vladimir Bartalini
Universidade de São Paulo

Adiantamos que estas breves considerações têm modesta


pretensão, qual seja, a de tão somente oferecer algumas reflexões
que, a nosso ver, podem abrir caminho entre duas perspectivas di-
vergentes sobre a paisagem, uma que acentua a vertente subjetiva
da representação e outra que acentua a vertente objetiva dos es-
paços. Pensamos que se trata de uma cisão equivocada e que sua
superação poderá permitir o reconhecimento de uma terceira di-
mensão ontológica, específica da paisagem: nem tão só subjetiva,
nem tão só objetiva, mas trajectiva. Estamos certos de que isto pode
trazer uma compreensão ética que, queremos crer, colocaria em
novas e melhores bases o debate político sobre a paisagem.
Nesta direção, começaremos por apresentar alguns esclare-
cimentos preliminares sobre os termos “ocupação socioespacial”,

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 45


Editora Baracoa — 2019
“território” e “metamorfose” pois, embora distintos, seus conteú-
dos tangenciam-se e, às vezes, imbricam-se, tanto que, sob outros
nomes, eles já deram motivo a reflexões que nos interessam de per-
to. Afinal, “metamorfose”, que diz respeito à forma, remete à pai-
sagem, ao passo que “ocupação socioespacial”, a ambiente. Com o
acréscimo de “território”, chega-se ao título do texto escrito por
Rosario Assunto, em 1976: “Paesaggio, Ambiente, Territorio. Un
tentativo di precisazione concettuale”1.
Estamos, portanto, tratando do ambiente de um território e
das mudanças que ocorrem na sua paisagem. Estes três vocábulos
– território, ambiente, paisagem – são muitas vezes usados indis-
criminadamente como se houvesse uma equivalência entre eles.
Rosário Assunto aplicou-se em desmontar este pressuposto que
obscurece diferenças importantes, com consequências que não se
encerram no mundo dos conceitos, mas atingem a prática. Para
ele, território é matéria, extensão, superfície mais ou menos vas-
ta, cujas delimitações podem ser definidas por critérios político-
-administrativos, culturais ou geofísicos. Um território permanece
idêntico a si mesmo, independente das alterações que venham a
ocorrer na sociedade que o ocupa ou das variações bio-climáticas
que o atinjam. No seu esforço de esclarecimento conceitual, de iní-
cio discriminador, Assunto cogita a imutabilidade de um território,
mesmo no caso extremo da destruição total da sociedade e do am-
biente biológico que lhe correspondem.
Interessante notar, de passagem, como hipótese semelhante
foi aventada por Milton Santos para estabelecer a diferença en-
tre paisagem e espaço: “A rigor, a paisagem é apenas a porção da

1 Rosario Assunto, “Paisagem, Ambiente, Território. Uma tentativa de clarificação conceptual”,


in SERRÃO, Adriana Veríssimo (coord.), Filosofia da paisagem. Uma antologia. Lisboa, Centro
de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011, pp. 126-129.

46
configuração territorial que é possível abarcar com a visão, e se dá
como um conjunto de objetos reais-concretos”2 e, por mais que
estes objetos interfiram no espaço, “só por sua presença, os obje-
tos técnicos não têm outro significado senão o paisagístico”3. No
pensamento de Milton Santos, é preciso que um conteúdo social
anime estes objetos e, na distinção operada entre paisagem e es-
paço, caberia àquela o papel de matéria inerte, destituída de vida.
É necessário, portanto, cautela no emprego dos termos e atenção
para os limites da sua validade em função do pensamento de quem
os emprega. Caso contrário, poderíamos incorrer no erro de dizer
que, para Rosario Assunto, território e paisagem são sinônimos.
Prossigamos então com este pensador, Rosario Assunto, o qual,
após discorrer sobre o conceito de território, se ocupa em verificar se
este conceito equivaleria ao de ambiente. Ele discerne duas dimensões
no ambiente: uma, físico-biológica – latitude, longitude, altitude, cli-
ma, fauna, flora, geologia, relevo, hidrografia, etc – e outra, histórico-
-cultural – economia, política, costumes, idiomas, etc. É fácil, diz ele,
perceber que o conceito de ambiente, “na sua unidade-diversa de am-
biente biológico e de ambiente histórico-cultural, inclui em si o de ‘ter-
ritório’ (não pode haver ambiente sem território), mas com um exces-
so de elementos que não são necessários para a definição de território
enquanto tal”4. O ambiente, portanto, seria o território qualificado em
termos físico-biológicos e histórico-culturais. Não nos parece ousado
aproximá-lo da expressão “ocupação socioespacial”, se considerarmos
que nela estão contidos, de modo sintético e inextricável, a sociedade,
em sua dinâmica histórica, e a sua expressão material, concreta, física

2 Milton Santos, A natureza do espaço. São Paulo, Edusp, 2002, 4 edição, p. 104.

3 Idem, p. 105.

4 Rosario Assunto, op. cit., p. 127.

Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 47
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
(mais uma vez, cumpre ressaltar as diferenças de acepção que a palavra
espaço assume nos diferentes autores. Para Milton Santos, o espaço
não poderia ser assumido, como fica sugerido pela aproximação que
acabamos de fazer, como a expressão concreta, meramente material,
da sociedade). Assim, para Rosario Assunto o ambiente seria “o ter-
ritório acrescido da vida, da história, da cultura”5, o que já impede a
substituição indiscriminada de um conceito pelo outro. Parece-nos lí-
cito, portanto, considerar que uma tal concepção de ambiente, ou seja,
como sendo “o território vivo para o homem e vivido pelo homem”6,
equivale ao espaço de Milton Santos.
Até aqui, estas considerações podem dar a impressão de que
nos limitamos a cotejar conceitos que dizem respeito aos mesmos
fatos ou fenômenos, mas que recebem nomes diferentes conforme
os diferentes pensadores que sobre eles se debruçaram. Ao intro-
duzir o seu conceito de paisagem, porém, Assunto não só lhe atri-
bui um significado diverso daquele que lhe emprestará a geografia
crítica miltoniana, como a reintegra numa unidade com o território
e com o ambiente, o que passa a nos interessar de modo especial.
Assim, uma vez incluído o conceito de território no de ambiente,
Assunto define a paisagem como a “forma” que o ambiente (“con-
teúdo” ou “função”) confere ao território (“matéria”). Mas não se
trata de uma forma inerte, limitada a deixar-se abarcar pela visão, e
sim de uma forma “na qual se exprime a unidade sintética a priori
da ‘matéria’ (território)’ e do ‘conteúdo-ou-função’ (ambiente)”7,8.

5 Idem, p. 128.

6 Idem, ibidem.

7 Idem, ibidem.

8 Cumpre notar que Rosário Assunto está, declaradamente, empregando a expressão “unidade
sintética a priori” no sentido kantiano, ou seja, no sentido de unidade necessária que condiciona
o seu apresentar-se na consciência (Idem, p. 128).

48
Esta definição de paisagem não deve ser julgada como simples pre-
ciosismo conceitual, como pura abstração. Para Assunto, abstra-
ção seria o território, ao qual só poderíamos ter acesso mediante a
abstração do ambiente que o modela com “as nossas esperanças e
desilusões, as nossas alegrias e as nossas tristezas”; abstração seria
também o ambiente, “assim como seria abstração irreal o conteúdo
de um livro (...) sem a realidade em que ele se exprime modelando
uma matéria verbal”9. Em suma, só temos acesso ao território e ao
ambiente por meio da paisagem, que nos permite viver, experien-
ciar e conhece-los na sua “indissolúvel unidade”. Se o conceito de
ambiente abarca o de território, o de paisagem abarca o de am-
biente. As consequências práticas que daí advêm são fundamentais
para nós, como se pode conferir nas palavras com as quais Assunto
conclui o seu breve mas elucidativo ensaio: “a realidade que deve-
mos estudar e sobre a qual, se necessário, devemos intervir é sem-
pre a ‘paisagem’, e não o ‘ambiente’ e muito menos o ‘território’”10.

A forma da paisagem

A não observância destas distinções tem reflexos muitas vezes


deletérios pois, ao esvaziá-la de seu caráter sintético, abre-se ca-
minho para a legitimação de ag ressões violentas que deformam a
paisagem, a qual pode ser considerada a fisionomia, o rosto (este
objeto privilegiado dos nossos afetos e afecções) da Terra. Con-
fundida e reduzida a puro espaço geométrico, reificada, a paisa-
gem deixa de entrar nas cogitações dos projetistas de estradas
(Rosario Assunto investe contra a insensibilidade dos engenheiros

9 Idem, p. 129.

10 Idem, ibidem.

Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 49
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
responsáveis pelo traçado das rodovias que atravessam a planície
do Pó, para os quais ela não parecia suave, como a cantaram os
poetas, mas simplesmente lisa, pronta a receber o que a “régua e
o tira-linhas” determinassem11. Infelizmente, poderíamos contri-
buir com muitos outros exemplos de procedência nacional), dos
construtores de edifícios, enfim, de tantos atores que desfrutam
e abusam da autoridade para intervir nas nossas paisagens sem
nos consultarem.
Nada do que foi dito implica a defesa da imobilidade, uma cris-
talização mórbida da paisagem. Se a paisagem tem fisionomia, ros-
to, ela é dotada de expressividade, de vida, portanto está sempre
em transformação: por assim dizer, ela é forma em trânsito. Porém,
como todo rosto que não foi deformado a ponto de se tornar ir-
reconhecível, ela se modifica sem impedir o seu reconhecimento,
o que permite a preservação e a renovação das tonalidades afetivas
que nos fazem distinguir uma paisagem de outra.
Sim, “a paisagem se unifica em torno de uma tonalidade afeti-
va dominante”, diz Eric Dardel, o que a legitima enquanto fenômeno,
ainda que ela seja “refratária a toda redução puramente científica”. A
paisagem, continua Dardel, “põe em jogo a totalidade do ser humano,
seus vínculos existenciais com a Terra (...) como lugar, base e meio de
sua realização (numa) relação que afeta a carne e o sangue” 12.
A paisagem não é, em sua essência, para ser vista. Esta assertiva
de Dardel pode soar estranha à primeira vista, mas a entendemos,
antes, como uma provocação, como uma força de expressão para
se contrapor à concepção dominante, ao menos desde a aurora da

11 Rosario Assunto, “A paisagem e a estética”, in SERRÃO, Adriana Veríssimo (coord.), Filosofia


da paisagem. Uma antologia. Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011, p. 342.

12 Eric Dardel, L’Homme et la Terre. Nature de la réalité géographique. Paris, editions du CTHS,
1990, p. 42.

50
modernidade, que limita a paisagem ao campo visual que se descor-
tina de um lugar alto. Do mesmo modo que podem parecer descon-
certantes as conclusões de Jean-Marc Besse no instigante ensaio
intitulado “Nas dobras do mundo. Paisagem e filosofia segundo Pé-
guy”13. Retomando as ideias de Charles Péguy, pensador francês do
início do século XX, que concebia a filosofia como ação no universo
pensante, Besse pode dizer que “o melhor ponto de vista para o
mundo é o ponto de vista de baixo, e que sobe para as coisas, apo-
derando-se assim do impulso do ser. Visto de cima, o mundo é pla-
no. É por baixo que é preciso começar, é ali que é preciso ficar, ou
retornar, para se lançar”14.
No entanto, não se trata de negar que a paisagem seja da ordem
do visível e, mais ainda, do estético. Afinal, como salienta Jean-Marc
Besse, agora num alentado posfácio à reedição de L’Homme et la Terre,
“a estética é a primeira ligação do homem com o mundo, sua primei-
ra maneira de se situar nele, de compreendê-lo”15. E o próprio Dardel,
no mesmo sub-tópico em que se empenhava na recusa em reduzir a
essência da paisagem à mera visualidade, declara que “há na paisagem
um rosto, um olhar, uma escuta, uma expectativa ou uma reminiscên-
cia”16. A paisagem é um rosto (visage, em francês; viso, em italiano), e
um rosto só é rosto porque é visto, e o rosto só é visto quando se está
fora do corpo, por aquele que vê o rosto de um “outro”, ou o próprio
rosto refletido, circunstância em que também já se é um “outro”.

13 Jean-Marc Besse, Ver a Terra. Seis ensaios sobre a paisagem e a geografia. Tradução Vlad-
imir Bartalini. São Paulo, Perspectiva, 2006, pp. 97-108.

14 Jean-Marc Besse, “Nas dobras do mundo. Paisagem e filosofia segundo Péguy”, op. cit., p.
105.

15 Jean-Marc Besse, “Geographie et existence, d’aprés l’oeuvre d’ Eric Dardel”, in DARDEL, Eric,
op. cit., p. 173.

16 Eric Dardel, op. cit., p. 45.

Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 51
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
É na perspectiva aqui alinhavada, que não reduz a paisagem
à “invenção” de um sujeito, tampouco à mera objetualidade; que
pressupõe uma presença do homem indissociável de um mundo
concreto onde ele realiza a sua existência; que não a limita ao cam-
po perceptivo da visão, embora admita a sua imprescindibilidade;
que considera a memória e, ao mesmo tempo, as aberturas para
um futuro implícitas nos horizontes das paisagens; que vê a paisa-
gem como imagem do tempo, na qual a temporalidade da natureza se
coloca como fundamento da temporaneidade do mundo humano17
(“um vale encaixado, onde se manifesta o trabalho prolongado das
águas, carrega o espírito para as profundezas da duração, de um
tempo apreendido como fator secreto da Terra”18, diz Dardel); é
nesta perspectiva que faz sentido, para nós, discutir a ocupação
socioespacial no âmbito territorial brasileiro e, especificamente, as
transformações incidentes sobre as paisagens das nossas cidades.
Por isto, fazemos nossas as palavras de Adriana Serrão (2013):

Uma vez libertas da tradicional associação à vista, ao cenário e ao


panorama, o entendimento das paisagens como unidades integradas
e espaços do habitar permitirá conciliar o fundamento natural com
dimensões constitutivamente humanas, como a História e a Cultura,
e responderá mais facilmente a problemas candentes do tempo pre-
sente e futuro, desde o desenho das cidades até à invenção de formas
de viver alternativas.19

17 Rosario Assunto, “A paisagem e a estética”, op. cit., p. 349-350.

18 Eric Dardel, op. cit., p. 45.

19 Adriana Veríssimo Serrão, Filosofia da Paisagem. Estudos. Lisboa, Centro de Filosofia da


Universidade de Lisboa, 2013, p. 103.

52
A transformação da paisagem

Gostaríamos de explicar este ponto o melhor possível e talvez seja


útil recorrer a uma ilustração - começaremos propondo ao leitor
algumas imagens de paisagens que se transformaram ao longo do
tempo histórico, do tipo que certamente todos já tiveram ocasião
de olhar. As que selecionamos, colhidas duma mesma área de São
Paulo, recobrem um arco temporal de quase dois séculos. A pri-
meira delas (Fig. 1a) é uma aquarela de Jean Baptiste Debret (1827),
intitulada “Ponte de Santa Ifigênia”; Márcio Pereira Santos (2006),
apresenta-nos o provável enquadramento do desenho conforme
reproduzimos na Figura 1b (a figura consiste em um recorte do
“Mapa” elaborado por Santos, ligeiramente modificado para desta-
car o sítio em pauta)20.

Figura 1a - “Ponte de Santa Ifigênia”, aquarela de Jean Baptiste Debret (1827)

20 Márcio Pereira Santos. “O Espaço humanizado, a Paisagem humanizada e algumas reflex-


ões sobre a paisagem em São Paulo na primeira metade do século XIX”. Tese (Doutorado),
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Geografia, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2006. O “Mapa” supra mencionado constitui um anexo da tese e está
disponível em: file:///C:/Users/m/Desktop/MAPA_DA_PAISAGEM.pdf (acesso: 14/02/2015).

Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 53
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
Figura 1b - Ângulo e distância aproximada da visão de Jean-Baptiste Debret (linha tracejada vio-
leta, próxima à Ponte do Acu), aquando da execução da aquarela “Ponte de Santa Ifigênia”, em
1827. Fonte: “Mapa de localização aproximada das diferentes representações em paisagem de São
Paulo entre 1817 e 1847 a partir da interpretação das iconografias tendo por base a Carta de 1841”,
de Márcio Pereira Santos(2006), disponível em: file:///C:/Users/m/Desktop/MAPA_DA_PAISAGEM.pdf
(acesso: 14/02/2015).

À época, a ponte retratada por Debret fazia a ligação entre as duas


margens do rio Anhangabaú, na altura da então chamada Ladeira
do Acu que, após mudar de nome muitas vezes, é o caminho hoje
conhecido como Av. São João. Para pontuarmos as transformações,
seguem quatro imagens da mesma localidade (embora com enqua-
dramentos diferentes) registradas em 1862 (Figura 2), 1930 (Figura
3), 1970 (Figura 4) e 2008 (Figura 5).

54
Figura 2 - Ladeira de São João em 1862. Fotografia de Militão de Azevedo.

Figura 3 - Avenida São João em 1930. Fonte: ELETROPAULO. A Cidade da Light. 1899/1930. Depar-
tamento de Patrimônio Histórico/Eletropaulo, 1990.

Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 55
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
Figura 4 - Avenida São João em 1970. Fotografia de Gilberto Calixto Rios.

Figura 5 - Avenida São João em 2008. Fotografia de Gilberto Calixto Rios.

56
Acreditamos que tais imagens, dispostas assim cronologica-
mente, prestarão auxílio para que possamos explicitar melhor os
apontamentos feitos anteriormente. Antes de mais, não há dúvida
de que estas imagens tenham sido colhidas, registradas, num único
e mesmo território e de que, inobstante, tanto o ambiente quanto
a paisagem não se mantiveram os mesmos. Mas, para que não haja
confusão nos passos seguintes, vamos antes relembrar que temos
diante de nós: 1) a idéia de um território, concebido como um re-
corte arbitrário de certa extensão material que abrange, no caso,
uma certa colina às margens de certo curso d’água; 2) cinco ima-
gens artísticas deste território, registradas por diferentes pessoas,
em diferentes meios e em momentos distintos ao longo de duzen-
tos anos; 3) cinco formas diferentes correspondentes a este mesmo
território, em cinco momentos diferentes de sua existência. Ora,
mas estas formas apresentam-se tão diferentes, a mudança é tão
radical, tão espetacular, que, mesmo quando se acaba de ler e pen-
sar sobre as dimensões da paisagem que transcendem sua visibili-
dade, pode-se facilmente reincidir na espécie de simplificação que
tende a considerar apenas as mudanças ocorridas no panorama,
negligenciando aquelas que, necessariamente, se deram em aspec-
tos, digamos, “menos visíveis” da paisagem. Esta simplificação é,
justamente, o que o conceito de paisagem delineado nas linhas pre-
cedentes pretende superar e, nesta direção, relembramos também
o que há pouco dissemos: a paisagem, sim, é uma forma visível,
porém, uma forma que possui uma natureza muito particular: a
paisagem é, como diz Rosário Assunto, a “forma” que o ambiente
(“conteúdo” ou “função”) confere ao território (“matéria”), uma
forma “na qual se exprime a unidade sintética a priori da ‘matéria’
(território)’ e do ‘conteúdo-ou-função’ (ambiente)” - ou, em outras
palavras, a paisagem é a forma gerada pelas ações de um conjunto

Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 57
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
singular de seres diversos (o conjunto de seres que constituem o
ambiente, em suas dimensões físico-biológica e histórico-cultural),
que operam conjuntamente em um dado território.
Nas imagens apresentadas acima nota-se facilmente as mu-
danças na hidrografia, sobretudo com a canalização do Anhanga-
baú, e outras - menos notáveis, é certo - que ocorreram no relevo.
Por outro lado, a simples reflexão sobre o adensamento das cons-
truções e da população humana que estas imagens mostram já nos
permitiria supor alterações significativas na temperatura, nos ven-
tos, na composição do ar e da terra etc., mesmo que ignorássemos
os dados científicos sobre o assunto. Quanto à flora, nem é preciso
assinalar as mudanças, de tão evidentes que são; já quanto à fauna,
a ausência de quaisquer outras espécies animais além da humana
em todas estas gravuras, mesmo nas mais antigas, mereceria um
comentário à parte, ao qual, porém, somos forçados a renunciar
em favor da brevidade. É claro que as imagens retratam, também,
as mudanças no ambiente histórico-cultural, que se destacam ao
nosso olhar através de elementos concretos tais como a presença
(ou ausência) e o tipo de vegetação, o uso (ou o desaparecimento)
do ribeirão e suas margens, as formas das construções, das vesti-
mentas, dos utensílios, e assim por diante.

A unidade-diversa da paisagem

Em suma, pode-se dizer que as imagens apresentadas acima são re-


gistros de formas que aquele território apresentou em determinados
momentos; cada uma destas imagens corresponde a uma fisiogno-
mia diferente do mesmo território - cada uma destas fisiognomias
poderiam ser consideradas como paisagens inteiramente diferentes?

58
Sim, se estancarmos na consideração estética da paisagem - e,
mesmo assim, precisaríamos restringir o alcance da palavra “es-
tética” ao escopo da visualidade. Isto feito, pareceria que a fisiog-
nomia do território (que seria, então, o mesmo que “a paisagem”)
nada mais é que uma espécie de espetáculo, apreciado por dife-
rentes espectadores como mais ou menos belo (de acordo com
sua posição, interesses ou “gosto”). Neste espetáculo, seriam re-
presentadas as escolhas feitas pelas sociedades humanas que ha-
bitaram o dito território ao longo da história, escolhas estas que
seriam convertidas pelos atores, com maior ou menor liberdade,
em ações mais ou menos engenhosas e bem sucedidas - na situa-
ção que as nossas imagens vieram ilustrar: primeiro, com Debret,
o cenário (e a cena) de uma sociedade colonial e escravagista em
vias de urbanização; depois, ao final do século XIX, cidade em
franco crescimento, onde aportavam os imigrantes europeus que
viriam a impulsionar a lavoura cafeeira no interior do estado; em
seguida, parte nobre de uma cidade progressista, a espelhar o me-
lhor possível o sofisticado modelo europeu; em 1970, as marcas
de uma cidade decididamente americanizada; finalmente, a mega-
lópole enigmática de hoje em dia.
Nada disso é falso e, todavia, não nos parece bastar. Insis-
timos em que cada uma das imagens acima nos apresenta um
“flagrante” da forma do território, tal como estava moldada pelo
“ambiente”, ou seja, pelos seres físico-biológicos e pelos seres
histórico-culturais que existiam e interagiam naquele território
num dado momento (e não se descura que este “flagrante” esteja
marcado pela visão particular do artista que o registrou; de qual-
quer modo, há que se lembrar, também, que tal artista era, ele pró-
prio, partícipe do referido ambiente). Então, à mudança visível da
paisagem deve corresponder uma mudança (visível ou invisível)

Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 59
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
nesta “unidade-diversa” que a constitui - e a nossa aposta é de que
tais mudanças sejam inteligíveis.
Permitam-nos interpolar aqui um ligeiro alerta, provavel-
mente desnecessário para os mais doutos, mas importante para
aqueles que se iniciam nestas discussões. Temos dito, resso-
ando Rosário Assunto e outros pensadores não mencionados,
que a paisagem é uma “unidade-diversa”. É preciso dizer que
esta expressão deve levar-nos a considerar seriamente o fato
de que, embora toda e qualquer paisagem apresente uma com-
posição de diversos elementos individuais (digamos: um rio,
árvores, talvez algumas construções etc.), nós a percebemos,
enquanto paisagem, como um todo unitário21. Ora, isto não
é banal. Considerar a paisagem como “unidade-diversa”, por
um lado, exige pressuposições a respeito de como podemos
aperceber-nos de um todo, partindo da visão de um conjunto
de elementos individuais e, por outro lado, a respeito do que
é minimamente necessário existir neste “conjunto” para que
possamos apercebe-lo como “uma paisagem”. Para que o alerta
seja mesmo ligeiro, vamos resumir tudo dizendo que, mesmo
quando não estamos inteiramente cônscios disto, precisamos
de uma teoria do conhecer e de uma teoria do ser, antes que
possamos compreender a paisagem. Naturalmente, não pode-
ríamos avançar nestas questões teóricas aqui. Mas também não
poderíamos omitir que a consideração da paisagem como “uni-
dade-diversa”, ao mesmo tempo que não renega, mas amplia
sua consideração estética, pressupõe que a paisagem tem uma

21 Sobre este tópico, veja-se o ensaio de Georg Simmel (1913), In: SERRÃO, Adriana Veríssimo
(coord.), Filosofia da paisagem. Uma antologia. Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade
de Lisboa, 2011, p. 42-51. Este ensaio é retomado por Adriana Serrão para discutir a pai-
sagem como “intuição momentânea da Vida”, em: SERRÃO, Adriana Veríssimo. Filosofia da
Paisagem. Estudos. Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2013, p. 161-164.

60
profundidade ontológica própria, que faz dela uma categoria
sintética entre natureza e cultura22.
Voltando à nossa ilustração, a tomada que estamos defen-
dendo pretenderia fazer relevar desta sucessão temporal de
formas momentâneas assumidas pelo território em pauta - o
qual, sob outras formas, já existia antes de 1827 e seguirá exis-
tindo indefinidamente após 2008, provavelmente sob novas
formas - alguma compreensão sobre o devir de sua paisagem.
Nesta tomada, faz muito pouco sentido dizer que cada uma
das imagens que estamos tratando representa uma paisagem
diferente, característica de um tempo histórico diferente - o
que realmente importa é a indagação sobre a gravidade destas
transformações visíveis em sua composição físico-biológica e
histórico-cultural.

A gravidade da paisagem

Aqui, a palavra grave figura primeiramente como adjetivo: a pai-


sagem é algo que tem peso, importância, poder; precisa ser pon-
derada com seriedade. Mas poderá ser útil lembrar que, em nossa
língua, a palavra ‘grave’ pode ser empregada com um segundo sen-
tido, para a conjugação do verbo ‘gravar’ nos modos subjuntivo
(presente, 1ª e 3ª pessoas do singular, bem como na 2ª, na forma
‘você’) e imperativo (2ª pessoa do singular, ‘você’). Neste senti-
do, indica a ação de gravar, esculpir, estampar, imprimir, registrar.

22 Recomendamos fortemente que o leitor interessado busque os trabalhos publicados como


resultados do projeto de pesquisa coletivo “Filosofia e Arquitectura da Paisagem”, coordenado
pela Dra. Adriana Veríssimo Serrão, no Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. Três
deles encontram-se citados no corpo do presente texto e o quarto é: “Filosofia e Arquitectura
da Paisagem. Intervenções” (2013).

Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 61
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
Talvez se possa extrair disto algo mais que uma ambiguidade for-
tuita23; no mínimo, há que se pensar numa possível reversibilida-
de, ou seja, que tanto a paisagem é “gravada”, marcada, esculpida,
formada, pelos seres diversos que a compõem, quanto que esta
mesma paisagem, tal como esteja formada, possa ter uma impor-
tância, um peso e um poder próprios, que a torna capaz de, por sua
vez, “gravar”, esculpir, formar, estes mesmos seres - e, neste caso,
estaríamos diante de uma forma de graves consequências.
E, sim, se tomamos a paisagem como a forma que expressa
o modo singular como, ao longo dos tempos, se integraram as di-
mensões físico-biológicas e histórico-culturais num dado territó-
rio, logo percebemos que ela, por assim dizer, reflete a existência
de tudo quanto nela se encontra, inclusive, reflete as particularida-
des de cada tipo de ser que a ocupa ou habita - coisa, idéia, valor
ou vida. Neste sentido, qualquer mudança na paisagem deve ser
vista com seriedade, pois estaria refletindo uma mudança qualquer
em seus componentes. Ora, tratando-se de uma unidade integra-
da, qualquer mudança tem o potencial para repercutir tanto em
cada um de seus elementos tomados individualmente como em
cada tipo específico deles, como também em todo o conjunto - re-
percussão que pode ter consequências benignas ou malignas, nem
sempre inteiramente previsíveis.
Esta reversibilidade está contemplada no conceito de traje-
ção proposto pelo geógrafo Augustin Berque, que o define como
“combinação medial e histórica do subjetivo e do objetivo, do físico e do

23 Não deixa de ser instigante o caso do substantivo grego grámma, cujos significados incluem:
1) o resultado concreto do ato de “escrever / desenhar”, 2) “letra, carta, inscrição” ou “desenho,
pintura”, 3) “letra, caráter” (donde grammatikós designava um indivíduo “versado em letras”) e
4) um peso mínimo, equivalente a um pouco mais de um grama moderno. O assunto é exposto em
detalhes em: BESSELAAR, José Van Den. “As palavras têm a sua história”. Braga: Edições APPACDM,
1994, p. 401.

62
fenomenal, do ecológico e do simbólico, produzindo uma mediância” 24.
Desta maneira, Berque aplica a palavra trajetividade para caracteri-
zar a qualidade de coisas cuja realidade depende, ao mesmo tempo,
de existência física (ou “objetiva”) e mental (ou “subjetiva”), e é
neste sentido que ele define paisagem como “dimensão sensível e
simbólica do meio; expressão de uma mediância”25. Daí que ele próprio
venha a dizer:

O humano aparece, assim, como [...] um ser que grava (graphein)


sua existência na Terra (gê) sob a forma de geogramas e que, em
troca, fica gravado em certo sentido; pois ele não seria ele mesmo
(quer dizer, humano) sem a mediância desta relação ecumenal.
Se, entretanto, concebemos que o humano grava a Terra com suas
marcas, como pode ele, por sua vez, ser gravado por ela como
por uma matriz? Se isso é possível, é porque a trajeção não é
uma dinâmica em sentido único. Ela é um contínuo vaivém entre
nosso corpo e o mundo.26

Estas considerações justificam nossa insistência em ressaltar a


gravidade da paisagem e de suas alterações. A paisagem, já o disse-
mos, é forma em trânsito, portanto, em permanente transformação
- como também já se admitiu que toda transformação implica (exi-
ge) alguma deformação, alguma alteração da forma. Mas isto não
nos desobriga de meditar sobre os possíveis limites desta deforma-
ção, além dos quais toda transformação resultaria em deformidade,
defeito, deficiência e, no limite, em degeneração.
24 BERQUE, Augustin. Médiance. De Millieux em Paysages. 2ª Ed.. Paris: Belin/Reclus, 2000, pp. 48.

25 Idem, ibidem.

26 BERQUE, Augustin. “Geogramas, por uma ontologia dos fatos geográficos”. In: Geograficidade, v.1,
n.1, Verão 2012, pp. 8-9.

Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 63
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
A concretude da paisagem

Em verdade, os caminhos para pensar esta questão que


acabamos de apresentar - que a deformação da paisagem
pode, ao ultrapassar certo limite, resultar em degenera-
ção - já vêm sendo palmilhados há longo tempo, por mui-
tos pensadores. Um destes caminhos se abre com o Timeu,
diálogo que teria sido escrito por Platão já em sua velhice.
Este texto antigo tem grande importância, pois geralmente
se reconhece nele um dos primeiros na história do pensa-
mento europeu a nos oferecer, correlacionadas, uma teoria
do conhecer e uma teoria do ser; por outro lado, pode-se di-
zer que esta importância reduplicou-se ao longo dos séculos
pela própria circunstância de que uma tal teorização instau-
rou - para o bem ou para o mal - certo modo de pensar; o
que, de qualquer modo, não impediu que o Timeu possa ter
chegado a se converter numa curiosidade e uma charada inde-
cifrável27. Apresentar aqui toda esta “charada indecifrável”
seria inteiramente despropositado; mas, para que adiante se
possa prosseguir ainda com Berque (em vez de multiplicar
os caminhos possíveis para meditar nossa questão), é pre-
ciso, ao menos, apresentar aquilo que Platão coloca como
que na “encruzilhada” entre o ser e o conhecer - e que ele
designa pela palavra chôra. Só isto, porém, já é tarefa mui
ingrata: obrigatoriamente, tanto cometeremos equívocos
quanto poderemos ser acusados injustamente de tê-los
cometido, tantas são as interpretações carreadas por tal idéia.
Vamos tentar minimizar os transtornos atendo-nos a reproduzir,

27 SANTOS, José Trindade dos. “Introdução”. In: PLATÃO. “Timeu” - Introdução de José Trin-
dade dos Santos e tradução de Maria José Figueiredo. Lisboa: Instituto Piaget, 2003, p. 15.

64
mal-e-mal, os contornos que lhe dá o próprio Platão (na tra-
dução que, por fortuna, temos à mão) e que serão retomados
por Berque28.
E, com Platão29, devemos começar por quase lastimar que nos-
sa argumentação tenha chegado a constranger-nos a tentar tornar
visível por meio de palavras esta forma difícil e indistinta30. Com tais
palavras, o filósofo introduz em sua ontocosmologia um terceiro
gênero de ser, que é não apenas diferente tanto daquilo que é sem-
pre e não tem geração (as Formas eternas e imutáveis do mundo
inteligível), quanto daquilo que se gera sempre e nunca é (as for-
mas perecíveis e mutáveis do mundo sensível, geradas por imitação
das Formas eternas), como ademais que é o receptáculo e como que
a mãe de todas as gerações31 o que será reforçado adiante, quando
insistirá em que

(...) devemos ter em consideração que há três gêneros: aquele que


se gera, aquele no qual é gerado e aquele à semelhança do qual
nasce aquele que se gera. E é conveniente assimilar o receptáculo
a uma mãe, o modelo a um pai, e a natureza que está entre os dois
a um filho32.

28 Não nos furtaremos, porém, a oferecer desde já duas outras referências que poderão con-
duzir o leitor interessado a algumas das controvérias que não poderão ser contempladas em
nossa exposição. São elas: MIGLIORI, Maurizio. “O problema da geração no Timeu”, In: GAZOL-
LA, Rachel (org.), “Cosmologias. Cinco ensaios sobre filosofia da natureza. São Paulo: Paulus,
2008, pp. 13-45; e DERRIDA, Jacques, “Khôra”, Campinas, SP: Papirus, 1995.

29 PLATÃO. “Timeu” - Introdução de José Trindade dos Santos e tradução de Maria José Figue-
iredo. Lisboa: Instituto Piaget, 2003.

30 PLATÃO, op. cit., 49a.

31 Idem, ibidem.

32 Idem, 50d.

Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 65
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
Seguem-se explicações das razões pelas quais este terceiro gênero,
que recebe em si todos os gêneros, seja ele próprio desprovido de todas
as Formas33. E logo depois:

(...) se dissermos que [a mãe e o receptáculo de tudo aquilo que se


gera e é visível, e de todas as maneiras sensoriável] é uma certa
forma invisível e amorfa, que tudo contém e que participa do inteligível
da maneira mais embaraçosa e difícil de compreender, se dissermos
isso, não estaremos a mentir34.

Apenas após recapitular novamente o que são os outros dois gê-


neros (um que é sempre gerado e nunca é, e que é passível de ser
captável pela opinião; outro que nunca é gerado e é sempre, e que
é investigado pelo pensamento), Platão retornará ao terceiro gênero
no qual se dá a geração, e só então o nomeará:

E há ainda um terceiro gênero que é sempre, o da chôra, que não acolhe a


destruição e fornece o lugar a todas as coisas que têm geração; este é captá-
vel por meio de um certo raciocínio bastardo, não acompanhado de sensa-
ção e dificilmente crível; para ele olhamos como num sonho, afirmando que
é de certa maneira necessário que todo o ser esteja em certo lugar e ocupe
um certo espaço, e que aquilo que não está na terra nem no céu nada é.35

Podemos deixar Platão neste ponto, mas não sem antes intercalar
uma advertência (novamente: provavelmente desnecessária para os
mais doutos, mas importante para aqueles que se iniciam nestas

33 Idem, 50e.

34 Idem, 51, a-b.

35 Idem, 52 a-b.

66
discussões). Não se confunda, como aliás é mais comum do que se-
ria esperável36, o sentido da palavra chôra ao tempo de Platão, com o
moderno conceito de espaço. Para a nossa discussão, procuraremos
assumir o ponto de vista de Berque, que é o de ater-se a apreender
o sentido que podia ter, no seu próprio contexto, uma palavra explicita-
mente utilizada por um autor antigo37. Considera ele (em conformida-
de com muitos outros comentadores) que no texto platônico uma
outra palavra (topos) corresponderia ao espaço, enquanto chôra se-
ria correspondente ao lugar. Berque vai, declaradamente, ocupar-se
tão somente da questão da chôra, à partida tratando de recuperar
este sentido contextual que a palavra teria ao tempo da escritura do
Timeu. E reconhece nela duas famílias de sentido:

Na primeira, chôra significa o espaço ou o lugar atributivos de qualquer ser


em geral, isto é, que esse atributo pode ser físico (localizável na extensão)
ou social (localizável entre os papéis pessoais). (...) Na segunda (...), chôra
torna-se algo de muito mais concreto, singular e preciso: é a região ou o
território próprio de uma cidade-estado (polis). (...) De forma ainda mais
específica, é a parte rural desse território, a que se encontra fora das mura-
lhas do astu (a cidade propriamente dita) e aquém dos confins inabitados,
as eschatiais (...). Em suma, é o campo que - papel indispensável - fornece
os seus víveres à polis, e do qual esta estruturalmente faz parte.38

36 Diga-se de passagem, na própria edição de onde retiramos as citações acima, esta confusão
transparece na tradução do texto platônico (embora com ressalvas elucidativas), a despeito de
ter sido tematizada e esclarecida na introdução do livro.

37 BERQUE, Augustin. “A chôra em Platão”, op. cit., p. 30.

38 BERQUE, Augustin. “A chôra em Platão”. In: SERRÃO, Adriana Veríssimo (coord.), “Filosofia da
Pisagem. Um manual”. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2012 (pp. 29-37), p.
32. Grifamos.

Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 67
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
Ele ainda destaca que estas duas famílias de sentido não se-
riam, ademais, estanques: argumenta que, neste contexto grego,
sendo a cidade (polis) o termo primário que determina a existência
do cidadão (politês), segue-se que, para o homem grego (como Pla-
tão) a noção de chôra devia estar marcada por conotações existen-
ciais e vitais, que será preciso ter em conta, hermeneuticamente,
no propósito do Timeu39.
Para o momento, o que importa sublinhar no texto de Berque
é que toda esta argumentação (e outras, que omitiremos) vem am-
parar a interpretação de que a chôra seria, em Platão, o meio con-
creto onde o ser relativo existe40. E será a partir deste ponto de vista
que Berque poderá concluir que, no texto platônico, a palavra chôra
corresponderia ao “lugar” (ou “região”), enquanto a palavra topos
corresponderia ao “espaço” - destacando ainda que, no texto do Ti-
meu, topos corresponderia à banal questão factual: “onde está?”; ao
passo que chôra corresponderia a uma questão muito mais comple-
xa e ontologicamente mais profunda: “por que razão este onde?”41.
Mas esta última questão, diz Berque, começou a ser forcluída já no
próprio Timeu, como fica indicado pela desistência de Platão de
definir a chôra (como se viu na citação do Timeu, supra: aquilo que
não está na terra nem no céu nada é). E teria permanecido esquecida
pelo pensamento europeu:

Numa palavra, este vai esquecê-la - vai esquecer, em suma, a questão:


“porque haveriam os seres de ter um onde?” -, para se ater à clara
definição que Aristóteles, em contrapartida, lhe terá dado a partir da

39 Idem, ibidem.

40 Idem, p. 29.

41 Idem, p. 31.

68
noção de topos - isto é, ater-se, em suma, à questão: “onde estão os
seres?”; o que, ver-se-á, é justamente forcluir (lock out) a chôra da
questão do ser.42

Ora, esta forclusão da chôra da questão do ser equivale a esquecer,


mais ou menos, as razões pelas quais o ser precisa ter um onde - por
exemplo, esquecer as razões pelas quais a cidade precisa ter um
“onde”, que se faz tanto das características ambientais da região,
como do modo de vida de seus cidadão, como ainda - e isto nem
sempre é agradável lembrar - do modo (ao mesmo tempo natu-
ral, social, técnico e simbólico) pelo qual se consegue extrair o
sustento de seus habitantes, necessariamente da natureza própria
daquela região. Uma maneira rude e jocosa, mas também breve e
verdadeira, de expor tais razões, pelas quais o ser precisa ter um onde,
válida para o caso do ser humano, é dizer que a razão é sermos uns
seres corpóreos, submetidos às necessidades próprias de nossa es-
pécie - em suma, seres heterotróficos, que precisamos comer!
Esta questão é discutida não apenas no texto em pauta como
no conjunto da obra de Berque, e também por inúmeros outros
pensadores, sobretudo aqueles que se inspiram nas diversas cor-
rentes da chamada Filosofia da Vida. Cumpre dizer que fugiria
ao nosso propósito presente enfrentar a discussão dos motivos
e razões (diríamos: que a própria razão desconhece) pelos quais a
questão tem sido forcluída, motivos e razões estes que se conju-
gam de forma muito mais complexa do que poderíamos explanar
aqui. Vamos, então, nos restringir a indicar que Berque apon-
ta duas pistas para esta investigação, em relação à chôra de Pla-
tão: uma será esclarecer (a) idéia de maternidade que conota a chôra.

42 Idem, p. 34.

Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 69
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
A segunda, aprofundar (o) tema da trindade do ser, do meio e do devir43.
Para o momento, enfim, importará sobretudo sublinhar a
concretude desta relação trinária, na qual a chôra ainda pode ser
vista como um receptáculo nutriz deste nosso modo perecível, ras-
teiro, humilde, de ser para a morte. Será preciso enfatizar que nes-
ta questão reside também a razão pela qual a transformação da
paisagem, além de certos limites, é algo grave, que pode resultar
em degeneração? E que, considerada assim, em sua concretude, a
indagação sobre a gravidade das transformações visíveis na pai-
sagem engloba uma indagação sobre o devir de todas as coisas,
idéias, valores e vidas que a ocupam e habitam? Aqui, gostaríamos
de enfatizar a necessidade, que antes apontamos, de meditar so-
bre os possíveis limites éticos que se colocam às transformações
das paisagens, mercê da vontade de pessoas e, sobretudo, de
grupos humanos detentores do poder de intervir sobre os lugares
– gostaríamos de enfatizar que, para além destes limites, toda
transformação tende a resultar em deformidade, defeito, deficiên-
cia e, no limite, em degeneração. É o que pretendemos ilustrar
pelo detalhamento da linha de estudos conduzida por um de
nós44, que se ocupa dos pequenos córregos ocultos na cidade de
São Paulo.

A deformação da paisagem: o caso dos córregos ocultos de


São Paulo.

É sabido que o paradigma urbanístico que acompanhou o cres-


cimento urbano de São Paulo transformou os nossos vales flu-

43 Idem, p. 35.

44 Vladimir Bartalini.

70
viais em infraestrutura viária e os nossos rios em canais de es-
coamento de esgotos e águas servidas. Se, atualmente, ele vem
sendo questionado, ensejando propostas de reaproveitamento
dos cursos d’água ainda não tamponados, seja para atender a
finalidades de transporte, seja para fins recreativos ou ecológi-
co-ambientais, a atenção da crítica tem se limitado aos cursos
d’água de maior visibilidade. É, normalmente, desconsiderada
toda uma rede capilar, muito mais entranhada no tecido urbano
e, por isso, mais difícil de ser enquadrada em soluções gerais.
Entretanto, é justamente este seu entranhar-se no espaço pro-
saico do cotidiano que, supõe-se, potencializaria as ações que
nela viessem a incidir.
Justifica-se, assim, dirigir o foco a cursos d’água de pequeno
calibre, muitos deles anônimos, situados em áreas de urbanização
de tal modo consolidada que pouca ou nenhuma chance oferecem
para a aplicação das soluções baseadas no destamponamento ou
na “renaturalização” dos córregos. Coloca-se então o desafio de
encontrar alternativas para integrá-los condignamente à vida e ao
cenário urbano, mas integrá-los enquanto rios, que ainda são, ape-
sar de continuarem ocultos.
Estariam descartadas as hipóteses de navegabilidade, dada
a sua pequena dimensão, assim como as de recuperação eco-
lógica, uma vez que, na maioria dos casos, esses córregos não
poderiam vir à tona de maneira literal e terem suas margens
restauradas, pois atravessam quadras densamente construídas
e em zonas de urbanização há muito tempo estabelecida. As
soluções “estetizantes”, sejam as edulcoradoras ou paliativas,
sejam as que apelam para uma “estética trash”, própria dos
becos e vielas que acompanham os córregos ocultos, seriam
igualmente afastadas.

Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 71
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
O que se pretende, num primeiro momento, é meramente fazer
aparecer os indícios da existência de cursos d’água enterrados. Ain-
da assim não é uma tarefa fácil, uma vez que a sua conversão a in-
fraestruturas não só os ocultou, como tentou apagar as pegadas da
operação de ocultação. No entanto, como nem todo ato é perfeito,
restaram vestígios. Uns são diretos, como vielas estreitas e tortuo-
sas, em flagrante contraste com o traçado hipodâmico dos bairros
em que se inserem, ou, ainda, dispositivos e adaptações insólitas
que chamam a atenção do olhar interessado em detectá-los. Outros
são indiretos, como terrenos ou faixas de lotes vagos, usados para o
estacionamento de veículos, ou, então, para os “lava-rápidos”, ser-
viço de lavagem de automóveis, usos provisórios do solo urbano
que podem ser eliminados a baixo custo, caso seja necessário inter-
vir nas galerias subterrâneas onde os córregos foram enclausurados.
Estes, e muitos outros, são indícios de uma existência camu-
flada, mas só poderão remeter aos córregos ainda vivos se forem
decodificados. Eles se apresentam de modo tão variável e aleatório
que não chegam a constituir uma “fala” ou uma “escrita” inteligível.
Com a aceleração do crescimento urbano, vários espaços
pontuados por vestígios (no mais das vezes insólitos) dos córre-
gos ocultos passaram a sofrer forte pressão especulativa, que se
expressa nos empreendimentos imobiliários destinados a cama-
das de renda mais elevada, provocando mudanças significativas
tanto na sua estrutura física como na composição social dos seus
moradores. Na operação de modernização desses lugares não há
mais vez para intervenções fora das “boas normas” técnicas, para
as improvisações que resultaram em aberrações expostas em cena
pública. Agora a cirurgia se faz sem deixar cicatrizes. Perdem-se os
vestígios da primeira negação da paisagem, ocultam-se os registros
do avesso do tecido, ocorre uma sobre-ocultação.

72
Ganha assim urgência levantar e preservar as marcas pontuais
que persistem da ocultação inicial, pois, apesar de tudo, elas ainda
podem aludir ao que está fora do alcance do olhar, enterrado e, não
obstante, vivo.
Atar estes pontos, hoje soltos, atribuir-lhes novos sentidos,
conferir-lhes um nexo que os traga dignamente de volta à vida ur-
bana, se não ressuscita os cursos d’água, ao menos abre possibilida-
des para reanimar em nós a memória deles e, em outro nível, per-
mite que os córregos sejam lidos numa nova chave interpretativa.
Mas o interesse desse resgate não se limita a evidenciar uma
morfologia esquemática. Não basta apreender somente o esquele-
to do trajeto do curso d’água sem que venham à tona a pulsação, os
sons, enfim, tudo o que remete à vida do rio. Há todo um campo do
imaginário a ser mobilizado para fazer emergir as águas correntes
aprisionadas nos subterrâneos.
Os casos em que se pode empiricamente testar essas su-
posições são tão numerosos quanto diversos, frustrando qual-
quer esforço de generalização. No entanto, dos estudos levados
a efeito até o momento45, na perspectiva aqui apresentada, já
despontam, ao menos, oportunidades de percursos pedestres
ou ciclísticos que interligariam córregos pertencentes a bacias
distintas, alinhavando pontos bastante significativos no espaço
cotidiano dos paulistanos.
45 A investigação dos córregos ocultos na cidade de São Paulo vem sendo realizada no Laboratório
Paisagem, Arte e Cultura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo,
em trabalhos de pesquisa docente e também em trabalhos finais de graduação e de iniciação científica
realizados por alunos da faculdade, alguns deles já publicados. Os casos estudados até o momento são:
Água Preta, Verde (em Pinheiros) / “braço 1”, Uberabinha, Bexiga, Sapateiro, Aclimação, Pirituba,
bacia do ribeirão Verde (em Pirituba) e seus afluentes Congo e Guiami (Vladimir Bartalini, docente);
Verde (em Pinheiros) / “braço 2” (Mariana Martins Yamamoto, iniciação científica); Anhanguera
(Maria João Cavalcanti Ribeiro de Figueiredo, trabalho final de graduação); Carajás e Mandaqui
(Arthur Simões Caetano Cabral, iniciação científica); Piqueri (Arthur Simões Caetano Cabral, Tra-
balho Final de Graduação); Tiburtino (Murillo Aggio Piazzi, Iniciação científica).

Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 73
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
É o caso, entre outros, dos leitos dos córregos Sapateiro e Acli-
mação, associados a dois importantes parques públicos de São Paulo,
respectivamente, o do Ibirapuera e o da Aclimação.
Estes dois parques, distantes aproximadamente três quilôme-
tros entre si, contam com lagos que constituem fortes pontos de
atração, mas os córregos que alimentam estes lagos foram alijados
da paisagem e só se manifestam por indícios muito tênues, quando
não degradados. Ao alinhavar tais indícios e tratá-los como con-
vém, pode-se reconstituir os trajetos dos córregos, recuperando-os
como conectores entre dois prestigiados espaços de lazer.
Promover, a partir da recuperação dos seus indícios pontuais,
a aderência dos trajetos destes cursos d’água aos percursos do dia
a dia da população, atendendo à condição indispensável de que eles
remetam ao córrego pulsante e ocultado, já se configura como uma
iniciativa válida para livrá-los do esquecimento definitivo, dando al-
guma chance para a aproximação entre paisagem e cidade.
Há ainda casos em que o córrego não está propriamente ocul-
tado, ou seja, permanece a céu aberto, mas o seu alijamento da pai-
sagem é tal que ele passaria por inexistente, não fossem as cheias
pelas quais, periodicamente, ele se faz lembrar. Encaixa-se nesta si-
tuação o córrego Piqueri, afluente do Cabuçu de Cima, na região do
Tremembé, zona norte de São Paulo. Em que pese sua significativa
extensão e o fato de ainda se manter em grande parte descoberto,
ele não protagoniza a paisagem e, se ele entra nela, é pela “por-
ta dos fundos”. No entanto, as oportunidades que ali se oferecem
para a reversão deste quadro são promissoras, uma vez que muitos
terrenos situados ao longo do seu vale permanecem desocupados
ou subocupados, em que pese tratar-se de espaços fragmentados.
A proposta de constituição de um parque sui generis, tirando parti-
do da “força expressiva dos pormenores das bordas”, nas palavras

74
do seu autor, a partir da resignificação destes fragmentos, resigni-
ficação esta sempre intimamente associada à vivência dos espaços
cotidianos que ali se verifica, foi desenvolvida no âmbito de um tra-
balho final de graduação46. Não caberia aqui avançar na explicitação
desta proposta, mas a sua leitura cuidadosa certamente trará esclare-
cimentos quanto aos rumos e alcance da pesquisa sobre os córregos
ocultos... ou não tão ocultos.

Palavras de encerramento

A situação dos córregos ocultos na cidade de São Paulo é uma dentre


as muitas situações urbanas concretas, nas quais observamos os re-
sultados sempre provisórios e questionáveis que advêm das tentativas
vãs de negar, por soberba ou imperícia, a materialidade, para nós in-
contornável, da Terra, sobre a qual fundamos nossa existência. Estas
situações demonstram, de modo insofismável, a importância ética e
política da paisagem: se sua integridade (aliás, poderíamos até dizer:
sua beleza) expressa formalmente a relação harmônica entre o lugar e
a vida de seus habitantes, sua deformidade é sintoma de desarmonias
passadas-presentes e permite vislumbrar desequilíbrios e sofrimentos
futuros. Trata-se, portanto, de tema a exigir atenção teórica e prag-
mática extremada, se queremos “fazer a nossa parte” para preservar
condições suficientemente boas para a vida, em todas as suas múltiplas
manifestações – desde as formas orgânicas mais simples até todos os
animais superiores; desde a vida puramente orgânica até a diversifica-
da vida cultural dos homens; desde a vida atuada objetivamente até a
vida secreta da alma humana que sente e simboliza o mundo...

46 Trata-se do trabalho denominado À beira do urbano. O espaço das águas no norte de São Paulo,
de Arthur Simões Caetano Cabral, concluído na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universi-
dade de São Paulo, em 2014, disponível em http://issuu.com/cabralarthur/docs/___beira_do_urbano/1

Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da 75
paisagem e de suas transformações
Sandra Patrício e Vladimir Bartalini
É certo que estas nossas breves considerações não são suficien-
tes para a apreensão inteira do tema, menos ainda para a elaboração
de um possível conceito definitivo de paisagem – nem pretendemos
que o fosse, posto que reconhecemos a complexidade do assunto.
Quisemos, sim, apresentar contributos para a superação de divergên-
cias teóricas e disciplinares que se estabeleceram ao longo do tempo
- mormente daquelas que contrapõem, como se antagônicos fossem,
os aspectos objetivos e subjetivos, naturais e culturais, da paisagem.
Esperamos ter conseguido, ao menos, sugerir que o burilamento da
noção de paisagem é um dos trabalhos que mais poderá contribuir
para que o pensamento contemporâneo possa, enfim, ser capaz de
superar as cisões que, digamos assim, herdou das longas errâncias do
próprio pensar - e com isso, possa vir a contribuir para a restauração
de nossa humana morada sobre a Terra.
Para fortalecer nosso propósito, encerramos estas notas com as
sugestivas palavras de Adriana Veríssimo Serrão:

Há um modo de ser específico da paisagem, que é sujeito e objeto, permanên-


cia e movimento, mutabilidade e persistência. Material, propicia todas as
sensações, sem deixar de ser intangível. Delimitada pela linha do horizonte,
amplas e rasgadas a céu aberto, as paisagens condensam como exemplares
únicos uma ontologia complexa: a superfície sustentada na profundidade
e que se ergue em altura. É a temporalidade que unifica a diversidade do
espaço: um tempo de coexistência das idades dos elementos, incluindo o
humano; um tempo longo, enlace de passado, presente e futuro; um tempo
que não é sentido senão pelo homem, mas é maior que o homem.47

47 Serrão, Adriana Veríssimo Serrão, A paisagem como problema da filosofia. In: SERRÃO, A.
V. “Filosofia da Paisagem. Uma antologia”. op. cit., p. 34.

76
Capítulo 2
Considerações sobre a gravidade ética e política da
paisagem e de suas transformações baracoa
editora

Sandra Patrício e Vladimir Bartalini


Sandra Maria Patrício Ribeiro
Universidade de São Paulo

Docente do Instituto de Psicologia da


Universidade de São Paulo e orientadora do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Social. Vice coordenadora do Laboratório
de Psicologia Socioambiental e Intervenção
(IPUSP); líder do Grupo de Pesquisa
Mitopoética da Cidade (IPUSP); membro
colaborador do Grupo de Pesquisa em
Política Ambiental (IEA-USP) e do Centro de
Filosofia da Universidade de Lisboa.

CV: http://lattes.cnpq.br/6404152265871629
E-mail: sandrapatrício@usp.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-3838-122X

78
Eda Tassara
Universidade de São Paulo

Professora Emérita e Titular do Instituto


de Psicologia da USP; é propositora e
coordenadora do laboratório de pesquisa
LAPSI (IPUSP/PST) e do grupo Política
Ambiental do IEA/USP. Foi professora
visitante e conduziu pesquisas em paises da
Europa e América Latina. Autora de estudos
críticos sobre a contemporaneiadade nas
interfaces ética-psicologia social-política à
luz da Teoria da Ciência.

CV: http://lattes.cnpq.br/3889873314551168
E-mail: edatassara@uol.com.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-7592-8407

79
Considerações sobre o estudo
das multidões urbanas nos
tempos atuais

resumo: O ensaio propõe citadinos em relação à cidade


reflexões sobre o estudo das que habitam e, por outro
multidões, tema da maior lado, inventar procedimentos
relevância no momento que permitam, a partir de um
presente em que mais da número limitado de sujeitos,
metade da população mundial induzir conhecimento a
vive aglomerada em cidades, e respeito de multidões. Como
que se intensificam fenômenos um possível caminho, sugere-
coletivos problemáticos – se uma abordagem compósita,
terrorismo, grandes fluxos simultaneamente analítica e
migratórios, manifestações hermenêutica, política e ética,
políticas violentas, padrões aplicada às leituras feitas
de consumo insustentáveis, por citadinos particulares da
crime organizado etc., afora cidade que habitam.
a disseminação de todo tipo
de mal-estares psíquicos palavras-chave: história da
nas populações urbanas. psicologia, psicologia social,
Nesta direção, considera-se interação social.
necessário enfrentar dois Considerations on Social
problemas metodológicos Psychology
inextricáveis: descobrir
formas válidas de desenvolver
conhecimento-síntese sobre
as miríades de expressões
cognitivo-afetivo-poéticas de

80
Considerations on the study
of urban crowds in the present
time

abstract: The essay proposes to the town that inhabit and,


reflections on the study of on the other hand, invent
crowds, a theme of the greatest procedures that allow, from
relevance at the present a limited number of subjects,
moment when more than half to induce knowledge about
of the world population lives crowds. As a possible path, we
agglomerated in cities, and suggest a composite approach,
that problematic collective simultaneously analytical and
phenomena are intensified – hermeneutic, political and
terrorism, large migratory flux, ethical, applied to the readings
violent political manifestations, made by city dwellings of the
unsustainable consumption town they inhabit.
patterns, organized crime
etc., aside from the spread of keywords: history of
all sorts of psychic malaises psychology, social
in urban populations. In this psychology, social
direction, it is considered interaction.
necessary to face two
inextricable methodological
problems: to discover
valid ways of developing a
knowledge-synthesis on the
myriad of cognitive-affective-
poetic expressions of city
dwellings in relation

81
Capítulo 3

Considerações sobre
o estudo das multidões
urbanas nos tempos
atuais
Sandra Patrício
Universidade de São Paulo
Eda Tassara
Universidade de São Paulo

O texto que segue constitui-se como um enfrentamento ensaísti-


co da questão, a cada dia mais candente, de como podem proceder
os cientistas humanos e sociais em busca de auscultar as necessi-
dades, desejos, anseios e expectativas das miríades de pessoas que
hoje se aglomeram nas grandes cidades, de tal sorte que possam
ser considerados nos atos de projetação públicos. Como estudar,
conhecer, compreender, a experiência subjetiva das pessoas que
compõem as multidões urbanas? Como os citadinos apreendem e
avaliam as condições em que vivem, como se sentem em relação
aos lugares que frequentam, o que os atemoriza, sereniza, enfurece
ou alegra, de que se lembram e o que desejam, quais são suas ne-
cessidades? O que buscam encontrar, a que chamados atendem, a
que lugar aspiram, por quais motivos? Os dispositivos existentes –

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 83


Editora Baracoa — 2019
tradicionais ou inovadores, físicos ou virtuais – de consulta, par-
ticipação e controle social não parecem ser suficientes para en-
contrar respostas a tais perguntas. As classes dirigentes – políti-
cos, formadores de opinião, gestores, intelectuais – mostram-se
confusas, se não atônitas, incapazes de compreender e manejar
adequadamente as motivações, ímpetos e disposições coletivos,
no sentido da preservação de laços e vínculos sociais, que, então,
esboroam a olhos vistos. O problema ainda mais se complicou à
medida que essas multidões, alavancadas pelas redes sociais vir-
tuais, tanto quanto por doutrinas políticas, éticas e estéticas das
mais variadas cores e matizes e nas mais variadas misturas, toma-
ram a dianteira dos processos públicos em quase todos os setores,
através de manifestações as mais ruidosas, porém, sem qualquer
orquestração prontamente reconhecível. Trata-se, sem sombra de
dúvida, de uma busca legítima pelo reconhecimento de demandas
até então ignoradas ou desatendidas pelos poderes instituídos,
mas seria precoce avaliar esse processo como construtivo ou des-
trutivo, e mais ainda tentar interpretá-lo teoricamente.
A julgar pela profusão de teorizações e opiniões especializa-
das publicadas nos últimos anos, verifica-se que muito esforço
tem sido dedicado a interpretar as multidões; entretanto, esta li-
teratura não se aprofunda na descrição dos fenômenos que abor-
da, e tudo se passa como se não houvesse dificuldades na delimi-
tação objetiva da “multidão”. Sobretudo, passa-se ao largo das
questões fundamentais acerca das relações entre os níveis indivi-
dual e coletivo nos quais se organiza a vida humana – questões es-
tas que, para muitos, configuram o objeto de estudo específico da
psicologia social, ponto que retomaremos adiante. Acreditamos
que, ao menos em parte, essa literatura falha na compreensão das
aspirações e do comportamento das multidões urbanas porque

84
busca responder a situações factuais unicamente pelo recurso ao
acervo das ideias já produzidas pelas grandes linhagens do pen-
samento político ocidental – e a recorrência dos mais variados
problemas ligados às multidões, que persistem a despeito de toda
sorte de medidas intentadas para solucioná-los, de certo modo
atesta essa falha de compreensão.
Evidentemente, não caberia aqui revisar as matrizes do pensa-
mento político às quais se filiam as teses atuais sobre as multidões.
Gostaríamos apenas de indicar, sumariamente, que estas filiações
remontam predominantemente, e mais ou menos explicitamente,
de um lado, a Thomas Hobbes (1588-1679) e, de outro, a Baruch
Espinoza (1632-1677). Ambas as visões têm desdobramentos que
alcançam os nossos dias, tendo a visão hobbesiana predominado
na primeira metade do século XX (por exemplo, apresenta-se em
algum grau em Le Bon, Sigmund Freud, Ortega y Gasset, Elias Ca-
netti, Serge Moscovici e outros), enquanto a visão espinosana, que
ganhou espaço a partir de meados do mesmo século, parece ter
maior popularidade nos dias atuais (por exemplo, mesclada a ou-
tras influências, apresenta-se explicitamente em Toni Negri e Mi-
chael Hardt); mas nossos propósitos tornam supérflua uma revi-
são exaustiva dessa literatura filosófico-política1. O que queremos
salientar é nossa suspeita de que essa adesão a sistemas teóricos
bem sedimentados, mas, o mais das vezes, ancorados em situações
históricas muito específicas, ou mesmo inteiramente especulativos,

1 Menciona-se, de passagem, que boas revisões têm sido produzidas com a finalidade de con-
trastar e discutir as várias propostas teóricas a respeito do tema. À guisa de ilustração, indi-
ca-se aqui o trabalho de Jordi Massó Castilla, que retoma os principais argumentos de Toni
Negri e Michael Hardt, Alain Badiou, Daniel Bensaïd, Étienne Balibar, Jacques Derrida, Jacques
Rancière e Jean-Luc Nancy, tendo como eixos organizadores três questões da filosofia, as quais
ele considerava na ocasião “plenamente vigentes”: quem é o sujeito político? Como pode ser
representado? E em que consiste e como pode produzir-se o acontecimento revolucionário?
(Castilla, 2012).

Capítulo 3

Consideração sobre o estudo das multidões urbanas 85


nos tempos atuais
Sandra Patrício e Eda Tessara
nem sempre contribui para o aprofundamento do conhecimento
sobre as multidões – isto porque, por um lado, inclina os pesquisa-
dores a subsumir os dados da realidade aos constructos teóricos e
às ideologias tradicionais e, por outro lado, ocupa boa parcela da
comunidade científica em disputas teóricas sem maior relevância
para a lide com os problemas cotidianos que envolvem milhares, às
vezes milhões, de citadinos.
É irresistível a tentação de associar o que dizemos à teoria
dos ídolos de Francis Bacon, e especialmente ao que ele disse so-
bre os Idola Fori e os Idola Theatri; e também ao modo que ele
indica para os enfrentar a todos:

Resta-nos um único e simples método, para alcançar os nossos in-


tentos: levar os homens aos próprios fatos particulares e às suas
séries e ordens, a fim de que eles, por si mesmos, se sintam obriga-
dos a renunciar às suas noções e comecem a habituar-se ao trato
direto das coisas (Bacon, [1620] 1999; aforismo XXXVI, p. 39).

Assim, caberá retroceder ao sentido mais básico da palavra “mul-


tidão”: derivada do latim, multitudo representa, antes de mais, um
conceito quantitativo correspondente aos grandes números, aos
“muitos”, aos “inumeráveis”:

MULTITŪDŌ, INIS. (feminino). Marcus Tullius Cícero: a multidão,


frequência, abundância, cópia; o povo, a plebe, o vulgo. M. Terentius
Varro Reatinus: o número plural. Multitudo imperita, Cícero: o vulgo.
Multitudo aut servit humiliter, aut superbe dominatur, Titus Livius: a
multidão ou obedece em escravo, ou comanda em tirano (Ulhoa
Cintra & Cretela Jr., 1944).

86
Pode-se dizer que, como número plural, aplicada aos seres
humanos a multidão poderia, no limite, abranger toda a humani-
dade – embora, de fato, seja costumeiramente associada às ideias
de povo e de plebe, como se vê pelo verbete transcrito acima, como
também de massa. Por ora, não nos interessaria deslindar aqui tais
conceitos nem discutir as possíveis razões para que assim se ema-
ranhem; queremos apenas deixar claro que, neste ensaio, a pala-
vra “multidão” é empregada preferentemente como indicativa da
situação de aglomeração de grande número de indivíduos huma-
nos2. Neste sentido, pode-se dizer que as multidões constituem
uma faceta inarredável do fenômeno urbano moderno: a grande
cidade contemporânea implica multidões3, seja no sentido de que
o tamanho da cidade é definido pelo tamanho de sua população,
seja no sentido de que o tamanho alcançado e o modo de vida ca-
racterístico da vida urbana tornam obrigatório o compartilhamen-
to de espaços e recursos por grande número de pessoas. Portanto,
neste sentido quantitativo, a cidade é composta por uma multi-
dão: a multidão de citadinos/urbanitas. E a cidade compõe mul-
tidões: por exemplo, a multidão de usuários do sistema viário, ou
de qualquer outro equipamento ou recurso urbano. Assim, todo
ato de projetação de intervenções urbanas ou está ancorado numa
profunda compreensão dessas imensas coletividades às quais se
destina, ou está fadado a resultar inócuo ou desastroso.

2 Esta definição é corroborada, por exemplo, por Henri Piéron ([1951] 1969): “MULTIDÃO
(francês, foule): Reunião de indivíduos que se aglomeram sob a influência de um fator de
ação comum sobre eles”. E igualmente por Gary R. VandenBos (2010): “MULTIDÃO: aglomer-
ação bastante grande de pessoas que temporariamente compartilham um foco comum e uma
mesma localização”.

3 Não apenas: já Aristóteles (2009), em sua Política, afirmou decididamente que “a cidade é
uma multidão de cidadãos”. É por zelo descritivo que, por ora, preferimos falar simplesmente
em citadinos, não em cidadãos.

Capítulo 3

Consideração sobre o estudo das multidões urbanas 87


nos tempos atuais
Sandra Patrício e Eda Tessara
Sublinhamos que a compreensão das multidões – seja em
suas ações cotidianas, seja em suas manifestações reivindica-
tivas ou contestatórias – configura um desafio, ainda não ven-
cido, para o esforço do conhecimento científico em ciências
humanas e sociais, sobretudo nas áreas de psicologia social e
de arquitetura e urbanismo, bem como para o conhecimento
filosófico, sobretudo nas áreas da ética, política e estética. Além
disso, fenômenos coletivos atuais como o terrorismo, os movi-
mentos migratórios em massa, as manifestações políticas vio-
lentas, os padrões de consumo insustentáveis, a violência urba-
na etc., tornam a compreensão das multidões um problema de
extrema relevância social – e a cada dia mais, neste momento
em que já mais da metade da população mundial vive aglomera-
da em áreas urbanas (UNO, 2015).
Seguindo a recomendação de Bacon, buscar tal compreensão
exige ir aos próprios fatos particulares, ou seja, exige que se obser-
vem as multidões que, de fato, se movem pelos espaços urbanos,
para aí investigar suas séries e ordens: os transeuntes que circu-
lam pelas ruas e praças, as audiências que se reúnem nos espetá-
culos, os torcedores que comparecem aos estádios, os passageiros
que aguardam o metrô na plataforma, as manifestações políticas
nas avenidas. Para as ciências humanas e sociais, todavia, e sobre-
tudo para a psicologia social, não basta observar os movimentos,
os fluxos, da multidão; o problema metodológico com o qual nos
defrontamos consiste em descobrir como, digamos, ajustar nos-
so foco para um ponto situado precisamente “entre” a multidão
citadina (os grandes números de humanos que se aglomeram em
cidades globalizadas) e os indivíduos que as compõem (os citadi-
nos particulares). Segundo pensamos, este ponto corresponde às
leituras que os (muitos) citadinos fazem da cidade que habitam:

88
como apreendem e avaliam as condições em que vivem, como se sentem
em relação aos lugares que frequentam, o que os atemoriza, os torna
serenos, enfurece ou alegra, de que se lembram e o que desejam, quais
são suas motivações, ímpetos e disposições. Dito de outro modo, es-
tas leituras consubstanciam – materializam e tornam visíveis, ob-
serváveis – a realidade a ser tomada como objeto pela psicologia
social, ou seja, sucintamente, as experiências e expectativas das
multidões de habitantes de cidades globalizadas.
Trata-se, porém, de uma realidade que se apresenta, hoje,
com complexidade, dinamismo e extensão espacial quase extre-
mos e que, ademais, aparentemente conjuga forças cujas nature-
zas e formas de ação ainda não estão suficientemente esclarecidas
e ponderadas. Portanto, qualquer esforço na direção de conhecer
as experiências e expectativas de multidões de habitantes de ci-
dades globalizadas precisará arrostar dois problemas inextricá-
veis, ambos de cariz metodológico: o primeiro consiste em des-
cobrir formas válidas de desenvolver conhecimento-síntese sobre
as miríades de expressões cognitivo-afetivo-poéticas de citadinos
– suas leituras – em relação à cidade que habitam; o segundo con-
siste em inventar procedimentos que permitam, com base em um
número limitado de sujeitos, induzir conhecimento a respeito das
características, motivações e esperanças das multidões urbanas
atuais. As considerações que registramos nas próximas páginas
pretendem contribuir para o enfrentamento destes problemas.

A multidão

O aspecto mais geral e desafiador dos problemas apontados corres-


ponde às dificuldades de se especificar o significado de um termo
coletivo, como é o caso de “multidão”, de modo que se possa traçar

Capítulo 3

Consideração sobre o estudo das multidões urbanas 89


nos tempos atuais
Sandra Patrício e Eda Tessara
um programa de observação da realidade à qual ele se refere. Ao
dizer isto, pretendemos enfatizar que todo enunciado a respeito
de uma coletividade (ou multidão, no sentido quantitativo que ado-
tamos) ou bem se ancora no conhecimento acerca do comporta-
mento dos indivíduos que a compõem, ou bem incorre no risco
de hipostasiá-la4, como aliás tem ocorrido, por exemplo, em ex-
pressões como “a voz das ruas”, “a vontade do povo” e que tais,
fartamente utilizadas – digamos, à esquerda e à direita – para justi-
ficar as mais díspares e antagônicas posições. Nada resta, portanto,
senão renunciar, ao menos momentaneamente, às noções previa-
mente concebidas sobre as coletividades e reinstaurar a pergunta
sobre os fatos da vida individual que as consubstanciam, mesmo
que a análise dos dados assim coletados possa ser, posteriormente,
processada inferindo-se consequências que abrangem a coletivida-
de em questão. Mas ressalva-se expressamente que tal atitude em
nada pretende corroborar doutrinas político-ideológicas individu-
alistas que tratam de forcluir o meio ecotécnico-simbólico coletivo
que é necessário para a sustentação do indivíduo.
É digno de nota que o problema das relações entre as
coletividades e os indivíduos tem importância crucial para a psico-
logia social: a despeito das famigeradas controvérsias que caracte-
rizam esta área de conhecimento, pode-se dizer que grande parcela
dos psicólogos sociais converge na admissão de que seu objeto de
estudo específico seria a interação entre o nível individual e o nível
coletivo de organização da vida humana, tal como esta interação,
de fato, acontece nas condutas concretas, ou seja, nas condutas de

4 Adota-se, aqui, o sentido de “hipóstase” indicado por Japiassu & Marcondes (2008): “uma
entidade fictícia falsamente considerada como uma realidade que existe fora do pensamento”.
Donde se derivou o verbo “hipostasiar”: “considerar como uma coisa em si aquilo que não
passa de um fenômeno (ex.: a temperatura) ou de uma relação (ex.: a grandeza)”.

90
“sujeitos” em “situações”5. Em vista disto, é oportuno começar por
elucidar o conceito de “situação” tal como o compreendemos e empre-
gamos neste ensaio. Para Henri Piéron ([1951] 1969), a palavra “situa-
ção” designa as relações globais, de posição e ação possíveis, entre um organis-
mo e seu meio. Neste sentido, o conceito de situação abarca muito mais
do que o contexto mais ou menos acidental do comportamento; antes,
dirige a atenção, por um lado, para os estímulos e as contingências que
tipificam o lugar ocupado pelo organismo (sua posição) em seu meio,
incluindo-se, naturalmente, aqueles decorrentes da presença de outros
organismos e das relações sociais estabelecidas entre eles, e, por outro
lado, para os objetivos e capacidades de ação específicos do organismo
em questão. Esta concepção é convergente com a de Kurt Lewin (1973;
glossário, pp. 236-244), para quem a situação define-se como “o espaço
vital ou parte dele, concebido em termos do seu conteúdo (significa-
do)”, espaço este que corresponderia à “totalidade de fatos (de diversas
naturezas) que determinam o comportamento de um indivíduo num
certo momento”, representando, portanto, “a totalidade de possíveis
eventos”. Subjacente ao conceito de situação tal como aqui apresentado,
há a ideia de que todos os comportamentos de um indivíduo expressam
o resultado de complexas interações que ele mantém com seu meio, em

5 Jean Maisonneuve ([1973] 1977), por exemplo, considera que esta “interação” – domínio
próprio da psicologia social – não é focada nem pela sociologia nem pela psicologia, já que “a
sociologia, reduzida a si mesma, se limita ao jogo das estruturas institucionais e das regulações
coletivas” e a psicologia “se aplica a ‘funções mentais’ encaradas em sua generalidade, ou
sob seus aspectos diferenciais”. A imagem oferecida pelo autor para a psicologia social é a de
uma ciência charneira, a ciência da “encruzilhada” entre psicologia e sociologia; sua incum-
bência, “assumir integralmente a descrição e a interpretação de uma conduta em situação”.
Tratar-se-ia, então, de um campo de conhecimento caracterizado pelo esforço de investigar
exaustivamente “a interação dos processos sociais e psíquicos no nível das condutas concre-
tas e a interação das pessoas e dos grupos no quadro da vida cotidiana, bem como promover a
junção entre o aproche objetivo e o do sentido vivido no nível do(s) agente(s) em interação”
(p. 13). Poderíamos citar também José Bleger (1984); Silvia T. Maurer Lane (2006); Frederic
Munné (2008) – todos estes e vários outros psicólogos sociais, embora assumindo diferentes
perspectivas, ilustram, em essência, a convergência que assinalamos.

Capítulo 3

Consideração sobre o estudo das multidões urbanas 91


nos tempos atuais
Sandra Patrício e Eda Tessara
função de tudo aquilo que tem valor e significado para sua existência –
no caso humano, necessariamente um meio físico e social6 –, e, portan-
to, fornecem indícios esclarecedores não apenas sobre o indivíduo em
questão, mas também sobre a situação da qual é partícipe.
Apesar das espinhosas questões ontológicas e epistemoló-
gicas com as quais pode tropeçar uma tal concepção de situação,
ela ainda representa a melhor aposta quando se trata de enfren-
tar o problema de investigar os coletivos humanos, porquanto
permite que se busque verificar empiricamente, pela observação
de indivíduos – ou seja, das unidades empíricas de fala e ação7 cujos
comportamentos formam, e também dissolvem, as multidões ur-
banas –, os enunciados a respeito da coletividade. Em cada uma
dessas situações, sob um olhar externo (objetivo) todos os in-
divíduos que a compõem igualam-se e são reconhecidos unica-
mente como uma partícula indiferenciada, intercambiável com
qualquer outro: um “usuário do metrô”, um “transeunte numa
movimentada avenida”, um “espectador”, um “habitante da cida-
de” etc. Cada indivíduo, todavia, corresponde também a uma uni-
dade orgânica, com tudo o que isto implica de necessidades, de-
sejos, cognições, condutas etc.8; sobretudo, implica que entretém
6 Cabe reportar a definição proposta pelo geógrafo Augustin Berque (2000, p. 48) para os
meios humanos (milieux humains): “relação de uma sociedade com o espaço e a natureza”.

7 No geral, empregamos os termos indivíduos (e também pessoas e sujeito, adiante) sob a in-
spiração dos sentidos que lhes atribui o professor Luís Cláudio Figueiredo (1995), no ensaio
“Pessoas, sujeito, meros indivíduos. Desencontros e passagens no Brasil contemporâneo”.

8 Claro: implica, ademais, que o indivíduo corresponde a um corpo e disto decorrem mui-
tas consequências: a soma das forças físicas de grande número de indivíduos densamente
aglomerados, por exemplo, os capacita a feitos impressionantes (p.e., a tomada da Bastilha em
14/07/1789); por outro lado, este adensamento potencializa o número de indivíduos vitimados
em situações de choque ou desastre (p.e., as centenas deles atingidas pelo caminhão dirigido
por Mohamed Lahouaiej Bouhlel em 16/07/2017, durante a comemoração da Fête Nationale da
França na Promenade des Anglais, Nice). Uma consideração detalhada deste aspecto, porém,
pode ser omitida neste momento.

92
múltiplas relações em muitas outras situações das quais é par-
tícipe e em direção às quais transita: toma o metrô para ir ao
trabalho, caminha pela avenida tentando dissipar uma tristeza,
comparece a um espetáculo para distrair-se ou prestigiar seu
tema, veio morar nesta cidade para estudar etc. Ou seja, a par
das razões comuns (logísticas, políticas, comerciais etc.) que os
reúnem numa mesma situação, cada indivíduo ali se encontra
por motivos muito particulares que, em última análise, os dife-
renciam e até mesmo singularizam em relação aos demais – esta
posição singular é precisamente o que caracteriza já não meros
indivíduos, mas pessoas9.
Esta posição singular confere à pessoa uma perspectiva única,
a par do fato de ser sempre tributária da história da humanidade.
É sempre baseado em sua perspectiva pessoal que alguém pode al-
çar-se à posição de sujeito cognoscente – pode, efetivamente, per-
ceber, avaliar, entender e julgar cada situação da qual participa, em
estreita correspondência à sua (também única) compreensão de
todo o seu mundo de vida. Resta dizer que uma pessoa se compor-
ta, ao fim e ao cabo, com base em seu conhecimento da situação,
e, neste sentido, um indivíduo anônimo tomado de entre aqueles
que compõem uma multidão urbana qualquer pode ser assumido
como suporte empírico de pelo menos três figuras idealizadas: a pes-
soa, o sujeito e o citadino10. Naturalmente, o acesso a estas dimensões
9 Note-se que este sentido converge, também, com a definição dada por Kurt Lewin (1973),
para quem a pessoa pode ser representada como uma “região diferenciada do espaço vital”,
embora numa primeira aproximação possa ser representada por uma região ou ponto indif-
erenciado. É de notar que o autor afirma que a pessoa está geralmente localizada dentro da
região sobreposta de “duas ou mais situações que existem simultaneamente e que têm uma
parte comum”.

10 Admite-se que as considerações acima pressupõem que todas estas categorias (corpos,
organismos, indivíduos, pessoas, sujeitos, citadinos, além de outras que não estão sendo dis-
cutidas neste ensaio, mas que podem revelar-se importantes em processos de análise de dados

Capítulo 3

Consideração sobre o estudo das multidões urbanas 93


nos tempos atuais
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pessoal, subjetiva e citadina dos indivíduos exige a concatenação de
meios e métodos bastante diferentes da observação direta que per-
mitiria acompanhar os fluxos de uma multidão ou mesmo as movi-
mentações de alguns dos indivíduos que a compõem. Nesta direção,
queremos afirmar nossa convicção de que os procedimentos ainda não
tentados11 no esforço de conhecimento sobre as multidões urbanas
atuais concernem, em primeira instância, ao desenvolvimento de um
modelo-padrão das leituras feitas por citadinos de suas situações de
vida – modelo este que, segundo pensamos, pode ser induzido com
base na análise e interpretação de relatos, depoimentos, ilustrações
etc., emitidos por miríades de indivíduos nas mais diversas situa-
ções urbanas. Interpõe-se, portanto, o desafio técnico de inventar os
meios para acessar tais leituras.

O método

Note-se que os instrumentos mais largamente empregados nas ciên-


cias sociais (escalas Likert, questionários, inventários de interesses
etc.) não correspondem, de nenhum modo, ao objeto que se tem em
vista. Neste ponto, será útil assinalar também as distâncias que se-
param a abordagem aqui preconizada de estudos tais como, por um
lado, as pesquisas em psicologia comunitária e, por outro, as pesqui-
sas de opinião pública (claro, sem desconsiderar em nada a relevân-
cia e mérito próprio dessas abordagens). Quanto a estas últimas, as

empíricos) sejam irredutíveis entre si, como se constituíssem distintos níveis de realidade,
seja no sentido epistemológico, em que os níveis corresponderiam a diferentes processos de
conhecimento, seja no sentido ontológico, em que cada categoria corresponderia a leis espe-
cíficas e a conceitos fundamentais próprios (vide Nicolescu, 1999).

11 Para lembrar, novamente, Francis Bacon: “Seria algo insensato, em si mesmo contraditório,
estimar poder ser realizado o que até aqui não se conseguiu fazer, salvo se se fizer uso de pro-
cedimentos ainda não tentados” (Bacon, [1620] 1999).

94
maiores disparidades dizem respeito à delimitação pontual de suas
buscas e ao tratamento probabilístico de seus dados, em contraste
com o caráter abrangente e compreensivo de nossa proposta. Quan-
to às primeiras, a diferença reside, em suma, no fato de tomarem
os indivíduos que têm sob foco como elementos de uma coletivi-
dade delimitada aprioristicamente (como membros de tal ou qual
comunidade indígena ou tradicional, por exemplo), em contraste
com nossa intenção de fazer derivar dos dados empíricos os subgru-
pos em que deveria ser organizado o universo a ser investigado. As
abordagens clínicas, por outro lado, estando focadas nos indivíduos,
podem representar importantes fontes de inspiração12, mas não po-
dem ser transferidas, tais e quais, do setting clínico para as situações
aqui visadas. O maior auxílio parece provir dos métodos de pesquisa
qualitativa desenvolvidos e validados sobretudo no campo da etno-
grafia, com os quais, aliás, a psicologia social vem operando há muito
tempo. Sobre a fecundidade do método etnográfico para a psicologia
social, caberá citar as conclusões de Maurício Rodrigues de Souza
(2014, 2015a, 2015b), após extensa consideração do assunto:

[...] encerramos o presente trabalho reafirmando a ideia de que


o recurso ao método etnográfico permanece absolutamente vá-
lido no horizonte da atual pesquisa psicossociológica. E mais:
[...] dada a sua plasticidade, este método pode ser utilizado
de maneira promissora em conjunto com outras orientações
teóricas, metodológicas e éticas que vêm adquirindo espaço

12 Caberia, aliás, render créditos aos trabalhos clínicos que inspiraram várias das nossas
próprias considerações aqui apresentadas. Podemos assinalar, entre eles, os clássicos estudos
de epistemologia genética de Jean Piaget (Piaget & García, 1984) e seus seguidores e também,
noutra área, às proposições do professor Luís Cláudio Figueiredo, notadamente em Escutar,
recordar, dizer (1994); e do professor Gilberto Safra, notadamente na trilogia: A face estética do
self (1999); A po-ética na clínica contemporânea (2004) e Hermenêutica na situação clínica (2006).

Capítulo 3

Consideração sobre o estudo das multidões urbanas 95


nos tempos atuais
Sandra Patrício e Eda Tessara
na contemporaneidade da nossa área de estudos, perpetuando
assim as sempre renovadas possibilidades decorrentes da in-
teração entre (nem tão) velhos e (nem tão) novos paradigmas
(Souza, 2015b; p. 401).

De fato, quando se busca recolher as leituras dos citadinos quanto às


suas vidas na cidade, é preciso valer-se em larga medida das técnicas
de coleta etnográficas, como os percursos em campo, os diálogos en-
tre investigador e investigado, as observações participantes em ofi-
cinas e grupos focais e o registro, por diferentes meios, de flagrantes
da vida local. Por outro lado, diversos outros procedimentos podem
franquear conhecimento sobre os lugares que são objeto de leituras
feitas por seus habitantes, tanto em termos paisageiros, mediante o
caminhar experiencial, quanto em termos corográficos (ou seja, reu-
nindo geografia e história), mediante a consulta a bibliografia, indi-
cadores demográficos, cartografia e arquivos técnicos disponíveis,
além da iconografia e das narrativas artísticas e mitopoéticas. Não se
pode descartar, também, o uso de instrumentos padronizados para
investigar aspectos relativos à sociabilidade, identidade topológica e
apropriação do lugar por indivíduos e grupos, em termos pragmáti-
cos, cognitivos, simbólicos e afetivos. Cabe sublinhar que o corpus
empírico compilado mediante tais procedimentos etnográficos con-
substancia as buscadas leituras que os citadinos fazem sobre a cidade:
o que pensam e sentem a respeito dos lugares que habitam, das pes-
soas com quem convivem e da vida que levam.

A leitura

Ora, mas o ato de “ler”, tal como o supomos aqui, demanda defi-
nições complexas: nem simples “extração de significado” (ênfase

96
no texto, ou objeto), nem simples “atribuição de significado” (ên-
fase no leitor, ou sujeito), mas um processo de verdadeira intera-
ção trajectiva. Esta é a posição defendida, entre outros, por Leffa
(1996), em “O conceito de leitura”; para este autor, ler é, na sua
essência, olhar para uma coisa e ver outra:

Primordialmente, na sua acepção mais geral e fundamental, ler


é usar segmentos da realidade para chegar a outros segmentos.
Dentro dessa acepção, tanto a palavra escrita como outros ob-
jetos podem ser lidos, desde que sirvam como elementos inter-
mediários, indicadores de outros elementos. Esse processo de
triangulação, de acesso indireto à realidade, é a condição básica
para que o ato da leitura ocorra (p. 11).

É nesse sentido triangular (ou trajectivo, como preferimos cha-


mar) que empregamos a palavra “leitura”. Aliás, este é, a nosso
ver, o sentido primordial que transparece em sua raiz indo-euro-
peia, LEG-/LOG-, “recolher, ajuntar, coligir”, como também nou-
tros vocábulos que a desdobram: “escolha”, “seleção” e “eleição”.
Dentre as ideias veiculadas por estas palavras, destacam-se as de
parâmetros, atenção, cuidado, meticulosidade (pois todo “co-
lecionador” tem de se esmerar para escolher bem, seguindo al-
gum critério); e, sobretudo, destaca-se a ideia de compreensão,
pois uma coleção é sempre um complexo ordenado, “inteligível”
(Besselaar, 1994, Parte II, § 236-245, pp. 386-391). Assim, a palavra
“leitura”, tal como a empregamos, remete, por um lado, ao enten-
dimento que os sujeitos têm e podem, de algum modo, expressar
sobre os lugares que habitam, sobre a vida que ali levam e sobre
a conduta das pessoas que reconhecem como tendo importân-
cia, direta ou indireta, em suas vidas (ou seja, às leituras que os

Capítulo 3

Consideração sobre o estudo das multidões urbanas 97


nos tempos atuais
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citadinos fazem de sua situação no mundo, que podem ser apre-
endidas mediante procedimentos eminentemente etnográficos).
Por outro lado, remete ao lugar de vida lido por esses citadinos,
exigindo duas abordagens distintas e complementares13: primei-
ramente, uma tomada descritiva e explicativa das transformações
espaçotemporais e da morfologia atual, tal como se pode apre-
ender pelas abordagens eminentemente objetivas da cartografia,
geografia e história; por último, mas não menos importante, uma
tomada compreensiva (hermenêutica) dos significados e sentidos
que, em suas leituras, os sujeitos atribuem aos modos como esse
lugar foi habitado e transformado ao longo do tempo, tomada esta
que exige uma abordagem trajectiva, capaz de abarcar a metatem-
poralidade e a metaespacialidade dos lugares, ou seja, o que neles
há de permanente, imemorial, eterno, como neles se entrelaçam a
paisagem, o imaginário e o corpo-vivo dos homens. Ademais, não
temos razões para descartar a possibilidade de que as interações
e influências recíprocas entre indivíduo e coletividade, e destes
com seu lugar de vida, sejam passíveis de mensuração e descri-
ção matemática e, portanto, para descartar a utilização eventu-
al de instrumentos auxiliares nesta tarefa. Finalmente, cumpre
dizer que a palavra “leitura” aplica-se igualmente às análises e
interpretações que nós, os pesquisadores, faremos a respeito do
corpus empírico coletado, com vistas a abstrair padrões políticos e
éticos inteligíveis (retornaremos a isto adiante).

13 Nossas considerações buscam integrar duas concepções alternativas sobre o “lugar” (em
certo sentido, aliás, sinônimo de situação). Augustin Berque (2003) trata do assunto num ver-
bete claro e profundo, reportando essas duas concepções – ao mesmo tempo contraditórias
e complementares –, uma ao topos aristotélico (o lugar como um ponto abstrato estabelecido
no espaço absoluto) e outra à chôra platônica (o lugar do “crescer juntos” – cum crescere, donde
concretus – das coisas na concretude do mundo sensível, significando que haveria uma ligação on-
tológica indissolúvel entre os lugares e as coisas – seres – que ali existem).

98
A análise

Para além dos desafios já discutidos quanto aos modos efetivos


de colher o que chamamos de leituras dos citadinos, nossa busca nos
defronta, é claro, com o desafio de desenvolver procedimentos de
análise capazes de propiciar uma compreensão profunda e abran-
gente da realidade radical, a um só tempo objetiva e subjetiva, expos-
ta pelo material empírico coletado – nos termos de Milton Vargas
(1996), tratar-se-ia de abordar a dualidade polar mente-mundo:

(...) assim como não se pode aceitar o idealismo como teoria da rea-
lidade radical, também não é possível aceitar o realismo. É possível
sustentar-se haver complementaridade entre a mente humana e o
mundo físico de tal ordem que suprimindo um dos polos o outro
desapareceria. A realidade radical, isto é, a fonte de onde brota toda
a realidade com que nos defrontamos, contra a qual esbarramos,
controlamos ou somos por ela subjugados no cotidiano de nossas
vidas, é uma dualidade polar mente-mundo que ainda não foi sufi-
cientemente analisada e compreendida pela filosofia (p. 273).

Parece-nos que a maneira mais produtiva de enfrentar o caráter


enigmático dessa dualidade mente-mundo (irredutível, ao menos
no atual estádio do conhecimento) seja, por um lado, proceder a
um recorte de objeto essencialmente trajectivo ou transicional (si-
multaneamente material e ideativo, objetivo e subjetivo, tal como o
são as leituras do mundo que temos em vista e explanamos acima)14

14 Essa perspectiva trajectiva nutre-se, sobretudo, dos conceitos de objeto transicional (D. W.
Winnicott), trajeto antropológico (Gilbert Durand) e trajeto mesológico (Augustin Berque), em-
bora encontre apoio em numerosos outros pensadores. Uma de nós tratou o assunto com mais
detalhes em preâmbulo escrito para uma coletânea de textos resultante de evento que reuniu espe-
cialistas adotantes da mesma perspectiva em diferentes áreas, instituições e países (Patrício, 2015).

Capítulo 3

Consideração sobre o estudo das multidões urbanas 99


nos tempos atuais
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e, por outro lado, adotar uma atitude essencialmente compósita em
relação ao corpus empírico. Por compósita queremos dizer, primei-
ro, que seja uma atitude de abstenção diante das grandes celeumas
materialismo versus idealismo e, igualmente, subjetivismo versus
objetivismo; individualismo (ou narcisismo) versus coletivismo
(ou socialismo) etc.; segundo, que esta abstenção se concretize no
diálogo interdisciplinar e, mais que isso, na conjugação de diversas
formas de explicar e interpretar as leituras do mundo recolhidas para
o corpus e delas inferir possíveis consequências e generalizações.

A interpretação

Não será supérfluo destacar que as ideias implicadas pela palavra


“leitura” confinam (e mesmo se confundem) com aquelas com-
preendidas pela palavra “experiência” – representações e avalia-
ções de naturezas cognitiva, afetiva, moral e teleológica, as quais
são produzidas e atualizadas como resultantes das trajetórias (de
corpo e espírito) realizadas pelo sujeito em seu mundo de vida.
Esta compreensão ancora-se nas noções de “atravessar, passar
por”, implicadas na raiz PER- / POR-, e desdobradas em palavras
que significam passagem, viagem, travessia, obstáculo, tráfego,
troca (Besselaar, 1994, Parte II, § 27B, p. 224), indicando que a pa-
lavra portuguesa “experiência” (tal como a alemã Erfahrung) cor-
responde a um tipo específico de conhecimento: aquele de quem
viveu e sobreviveu ao encontro com algo que lhe era, até então,
estranho, desafiador. Em suma, quando empregamos a palavra ex-
periência pretendemos abarcar tudo quanto um sujeito aprendeu
a respeito de si, do mundo e dos outros, com base em aconteci-
mentos que ele próprio viveu. Mas cabe notar que, tal como “lei-
tura”, o conceito de experiência remete, sempre, tanto ao sujeito

100
que conhece, quanto ao objeto que é por ele conhecido – o que
permite, ao menos em termos práticos, falar em “experiência ob-
jetiva” para caracterizar um evento do qual resulte conhecimento
sobre coisas existentes no mundo externo (fora da pele) do sujeito
e, similarmente, em “experiência subjetiva” quando o conheci-
mento tem por objeto o mundo interno (dentro da pele) do pró-
prio sujeito, tal como ocorre, por exemplo, na tomada de consci-
ência de fantasias, emoções ou perceptos afetivos15; já em eventos
que envolvem relações humanas, usualmente se fala, com menor
pertinência, em “experiência intersubjetiva”16. Deve ficar claro,
porém, que a experiência mesma (digamos, o fato pressuposto e
indicado pelo conceito de experiência), se existir, é algo que ocor-
re, sempre, dentro da pele do indivíduo-sujeito da experiência (aliás,
neste sentido poder-se-ia dizer que toda experiência é experiência
subjetiva)17; logo, não pode ser, a rigor, nem diretamente obser-
vada, nem propriamente “compartilhada” – pode, sim, em certa
medida e sob certas condições, ser comunicada.

15 Ao distinguirmos experiências “objetivas” e “subjetivas” ancoramo-nos na nomenclatura


adotada pelo professor Arno Engelmann (1978; 2002) para designar os diferentes tipos de
organização de perceptos afetivos conscientes não-localizados, que ele estudou ao longo de
várias décadas. Em artigo no qual refaz seu próprio percurso, Engelmann (2002) declara: “O
indivíduo encontra uma bipartição da pele percebida, de tal maneira que apenas dois estados
podem ocorrer: o estado externo ou objetivo fora da pele percebida e o estado interno ou
subjetivo dentro da pele percebida” (p. 399).

16 Veja-se, por exemplo, a formulação dada ao assunto por Zeferino Rocha (2008): “As ex-
periências situam­se em três registros diferentes de compreensão, embora complementares,
na medida em que assumem a forma de uma experiência objetiva, subjetiva ou intersubjeti-
va. A experiência é objetiva quando, por meio dela, entramos em relação com as coisas que
constituem o nosso mundo, o mundo que nos circunda, no qual nos situamos. Ela torna­se
intersubjetiva quando nos abrimos para a comunhão com os outros” (p. 103).

17 Por oportuno, relembra-se aqui que, para Gadamer (1997), também a leitura é um processo
da pura interioridade (p. 256).

Capítulo 3

Consideração sobre o estudo das multidões urbanas 101


nos tempos atuais
Sandra Patrício e Eda Tessara
Nesses termos, dizer que é preciso buscar compreender as lei-
turas que os (muitos) citadinos fazem da cidade que habitam equi-
vale a dizer que é preciso buscar compreender as experiências de
muitos (multidões de) indivíduos nas situações urbanas das quais
são partícipes, ou seja, os sentidos e significados subjetivos acerca
de seus mundos internos e externos, que eles construíram nas
contingências particulares próprias do(s) lugar(es) onde vivem18
– em suma, equivale a dizer que é preciso buscar compreender, no
grau possível, a realidade radical com que se defrontam, contra a qual es-
barram, controlam ou são por ela subjugados no cotidiano de suas vidas.
Enfrentar um tal desafio exige, antes de mais, atentar para a di-
mensão política da urbanidade (e das periurbanidades), tal como se
apresenta na realidade contemporânea. É preciso ter em conta que
o território desta realidade é o sistema-mundo (sistema colonial-
moderno), e sua dinâmica é a história, plural e multirrefenciada,
herdeira de vários passados, comportando leituras situadas em vá-
rias dimensões temporais convergentes em uma arbitrária simul-
taneidade global. Ademais, é preciso ter em conta que a mundiali-
zação da informação pela tecnoeletrônica propagou a vida urbana
– e, mais que isto, uma forma de representação do urbano e da
urbanidade – como modelo de centralidade na ordem hegemônica
sem, contudo, explicitar a gênese de tal modelo. Assim, o urbano
como ambiente natural, gerado por um processo histórico-civiliza-
tório, por uma norma de produção cultural e por sua expansão do-
minante (mas que silencia sobre esta gênese), apresenta-se como
ambiente natural do urbano, sendo, portanto, uma ideologia.

18 Ao menos em parte, essa busca corresponde aos sistemas de significação piagetianos que,
conforme afirmou a professora Zélia Ramozzi-Chiarottino (1991), já há bastante tempo, pode-
riam franquear a “possibilidade de uma teoria do conhecimento contingente do homem co-
mum, que seria a base para a construção de uma Psicologia Social verdadeiramente científica”
(p. 22).

102
Esse silêncio instrumentalizado hegemonicamente, oculta-
dor do caráter arbitrário do modelo central propagado e das res-
trições por ele impostas a outros modelos emergentes ou existen-
tes, pode engendrar, por sua vez, o silenciamento de multidões de
citadinos alienados nesse processo. Portanto, o trabalho analítico
sobre leituras feitas por citadinos sobre a cidade que habitam,
para as compreender adequadamente, deverá focalizar, nelas,
precisamente os silêncios que sinalizam essa alienação (Tassara
& Ardans, 2006). A dimensão política pode ser entendida, portan-
to, como um movimento de luta entre identidades e alteridades;
sob tal perspectiva, a recusa da alteridade é uma tentativa de fixar
essa centralidade, o que vem a dar em uma subjugação da consci-
ência por um modelo inquestionável.
Diante desse fundo, preconizamos a necessidade de analisar a
massa de informações recolhidas em qualquer pesquisa acerca das
experiências e aspirações de citadinos, tendo como meta primor-
dial o desvelamento de traços da positividade lógica (ignorância) e
da negatividade psicológica (impedimento) que possam estar pre-
sentes em suas leituras da cidade que habitam19. Deve ficar claro,
porém, que não se trataria de comparar modelos de urbanidade/pe-
riurbanidade ou arrolar suas múltiplas variações e possíveis sincre-
tizações20, e ainda menos de um escrutínio em busca de elementos
que possam servir para ilustrar teses sobre causações redutoras na
determinação de identidades, alteridades e sociabilidades, sejam as

19 Cabe notar que, conforme explicitam Tassara & Ardans (2008, p. 141), esses traços tendem a
apresentar-se entrecruzados, resultando em quatro “tipos” identitários: o “morto/morto” (im-
pedido e ignorante), o “morto/vivo” (impedido), o “vivo/morto” (ignorante) e o “vivo/vivo”
(lúcido – para quem “estar vivo” significa estar em movimento na direção da compreensão de
qual é o modelo situado no centro de sua identidade).

20 Os limites de um tal trabalho comparativo são, aliás, discutidos amplamente pela professo-
ra Eda Tassara em publicação recente (Tassara & Patrício, 2016).

Capítulo 3

Consideração sobre o estudo das multidões urbanas 103


nos tempos atuais
Sandra Patrício e Eda Tessara
de tipo naturalista, sejam as de tipo historicista. Tratar-se-ia, sim,
de contrastar as informações corográficas (geográficas e históri-
cas, de âmbito local, mas também planetário) sobre os lugares e as
diversas leituras do espaço-tempo na cidade expressas pelos cita-
dinos. Das inter-relações que venham a ser, assim, empiricamente
constatadas é que, a nosso ver, se poderão haurir os fenômenos
identitários e os padrões de interação política que possam estar
subjacentes à realidade urbana hodierna21.
Mas essa análise objetiva da dimensão política não nos pare-
ce bastar para que se compreendam as experiências e expectati-
vas das multidões de habitantes de cidades globalizadas. É preciso
também abordar, de uma perspectiva hermenêutica, aquilo a que
poderíamos chamar emoções e/ou paixões e/ou afetos e/ou sentimentos
e/ou estados de ânimo22, que, acreditamos, deve ressoar nas leituras
que os citadinos fazem da cidade que habitam. Vale sublinhar que
estamos tratando de uma linha de abordagem complementar à pri-
meira: com efeito, consideramos que é preciso partir do reconheci-
mento da ordem hegemônica subjacente ao modelo de urbanidade

21 Trata-se, a nosso ver, de uma empreitada correspondente ao que Boaventura de Sousa San-
tos (1994) denominou “arqueologia virtual do presente”.

22 Esta foi a solução redacional preconizada, há muito tempo, por Arno Engelmann (1978),
quando ele se defrontou com a absoluta confusão terminológica (mas não só terminológica)
que reinava na literatura especializada a respeito dos fenômenos emocionais; consistiu em
usar “emoções e/ou...” como abreviação para 32 termos oriundos de diferentes idiomas, mas
também portando diferentes definições, sendo porém todos eles aparentados a “emoções”
e/ou “paixões” e/ou “afetos” e/ou “sentimentos” e/ou “estados de ânimo” (pp. 38, nota de
rodapé nº 10). Hoje, o panorama não é menos confuso (talvez o seja ainda mais!), e, em que
pese não compartilharmos inteiramente suas soluções teórico-metodológicas, temos que ad-
mitir a pertinência dessa sua “deselegante” (a palavra é dele) solução. Já a expressão “estados
subjetivos” foi cunhada e definida por ele em função de seus objetivos de pesquisa, com base
em critérios específicos, a saber, (1) é consciente, (2) refere-se à parte do corpo da pessoa, (3)
a pessoa é incapaz de indicar mais nada em relação a esta localização anterior e (4) dura um
certo tempo. Neste sentido, trata-se de uma nomenclatura imprópria para o tipo de fenômeno
que nós próprios estamos visando.

104
que se propaga mundialmente, calcado no silêncio ideológico so-
bre sua gênese e no silenciamento alienante que produz; todavia,
parece-nos igualmente importante investigar o impacto emocional
– ou, o que quer dizer o mesmo, o sentimento – produzido por este
processo político em sua concretude. Cumpre fazer notar: uma or-
dem hegemônica ou se concretiza nos lugares e nos modos de viver
das pessoas e grupos – por exemplo, alterando as paisagens e os
comportamentos individuais e coletivos previamente verificados
em certo lugar –, ou não é, propriamente, uma ordem hegemônica.
Queremos, com isto, destacar que o processo político necessaria-
mente se materializa no mundo de vida das pessoas e grupos e que,
por outro lado, apenas pode materializar-se através da vida mesma
destas pessoas e grupos. Estampa-se assim toda a complexidade
das interações dos homens entre si e com o mundo físico e so-
cial; ganha destaque a natureza sensível do homem (compreendida
nos termos da filosofia antropológica de Ludwig Feuerbach), vis-
ta como a condição de possibilidade de toda e qualquer interação
com o mundo e com os outros.
Um ligeiro interlúdio poderá esclarecer a importância dessa
natureza sensível do homem para o assunto que temos em pauta, e
pode valer-nos uma passagem de Adriana Veríssimo Serrão (2007),
cuja clareza recomenda a longa citação:

(...) o sentir é por natureza transitivo, é o sentir de algo diferente


daquele que sente e traz imediatamente consigo em si a prova da
realidade. O sentir é o lugar por excelência da síntese ontológica,
da ligação de dois termos reais, do ser que sente e do ser que é
sentido, o qual pode igualmente ser sentido por outros, numa pa-
lavra, ser objeto para todos (...). Do ponto de vista da ontologia ge-
ral, a realidade sensível sustenta, ao contrário da interioridade do

Capítulo 3

Consideração sobre o estudo das multidões urbanas 105


nos tempos atuais
Sandra Patrício e Eda Tessara
pensamento, a possibilidade de um mundo aberto e de uma comu-
nidade universal. (...) Também do ponto de vista da onto-antropo-
logia, a humanidade encontra no sentir a sua única matéria, a sua
única natureza, pois só o sentir tem o privilégio de conter em si a
duplicidade, noutros termos, a unidade de subjectivo e objectivo, a
possibilidade de ligar ser com ser. A sensibilidade (...) é uma perma-
nente capacidade de passividade, uma passividade activa, que pode
manifestar-se como carência ou necessidade (Bedürfnis), um prin-
cípio positivo, despertar de todo movimento subjectivo, génese da
atividade, condição de possibilidade da existência como um conti-
nuum de vida. (...) A receptividade sensível implica ainda a abertu-
ra e a disponibilidade para o acolhimento da existência segundo o
valor da proximidade. Os seres sensíveis não se encontram estati-
camente numa coexistência espacial, mas estão interactivamente
em acção recíproca. Antropologicamente considerada, esta coesão
subjectiva isenta de cisões inscreve-se num corpo singular, indivi-
dualmente protagonizado. O corpo próprio, um corpo-sujeito, é a
incarnação individual da integralidade [do homem], que mergulha
na alteridade mundana graças à porosidade, (...) metáfora epidér-
mica da permeabilidade entre interior e exterior, de receptividade
e afinidade com o ser mundano e pessoal (pp. 169-170).

Ora, essas considerações não são triviais: pode-se dizer que a história
de expansão do modelo de urbanidade hegemônico materializa-se,
visivelmente, nas cidades que hoje recobrem o globo terrestre e no
modo como as pessoas as habitam e nelas vivem e convivem. Pode-
-se dizer que tal panorama representa a contraface ética do proces-
so político por (entre outras cujo tratamento não caberia aqui) três
razões factuais: primeiro, porque toda configuração material atual
patenteia, diante da memória individual e coletiva, a transformação

106
do que havia antes, que pode ser avaliada como melhora ou piora;
segundo, porque, configurando o lugar de vida, configura condições
e contingências materiais que, por sua vez, exercem um papel (cuja
extensão não é possível discutir aqui) na modelagem de hábitos e
caracteres individuais e coletivos de seus moradores e na qualida-
de das relações intersubjetivas que podem ser estabelecidas entre
eles; terceiro, porque essa realidade exterior é percorrida e perce-
bida (sentida) pelos citadinos em suas lides e vivências cotidianas,
impactando-os assim em sua interioridade; antes de tudo, provocan-
do-lhes “emoções e/ou...” de natureza positiva ou negativa.
A designação desses fatos pela palavra ética, como deve estar claro,
leva em conta as reflexões empreendidas no campo das humanidades a
respeito de seu sentido originário, sobretudo com base nas elaborações
de Martin Heidegger sobre o assunto23. Como se sabe, essas reflexões
contribuíram para reintegrar ao pensamento ético o sentido mais anti-
go reconhecido pelos especialistas para o vocábulo grego êthos (ήθος),
“morada”, “habitat”, “toca de animais”, que há muito tempo havia sido
obnubilado pela confusão (por via das traduções latinas) com outro
vocábulo grego, éthos (έθος), “hábito”, “costume” – e ademais pela co-
notação normativa de “bons hábitos”, “bons costumes” que assim veio
a adquirir24. Estas discussões têm grande importância para a realização
23 Entre os trabalhos de Martin Heidegger que inspiraram mais diretamente nossa abordagem das
questões éticas que expomos neste ensaio, devem ser mencionados particularmente A origem da
obra de arte e Hölderlin e a essência da poesia (1935), Carta sobre o humanismo (1946), Construir,
habitar, pensar (1951) e Serenidade (1955), que dispensam referências. Quanto à distinção que
fazemos entre os níveis ético e político da vida humana, declaramos expressamente a influência
adicional recebida do trabalho de Solange Vergnières (1998) sobre estes temas em Aristóteles.

24 Conforme, por exemplo, Murachco (s./d.): “Em latim e em português não há resíduos de
derivados de έθος, mas temos um adjetivo derivado de ήθος - ηθικός, ethicus, ético, que, fre-
qüentemente, é confundido com ‘moral’ no sentido de ‘conforme os bons costumes, isto é, con-
forme à moral oficial. No mundo latino, essa ‘moral oficial’ assume uma feição autoritária, verti-
cal [que], seguindo a trilha do Direito e das Instituições Romanas, adentra pelo Império Romano
até sua queda e depois é assumida pela Igreja e perdura até nossos dias, com o sentido de ‘norma

Capítulo 3

Consideração sobre o estudo das multidões urbanas 107


nos tempos atuais
Sandra Patrício e Eda Tessara
do estudo ora proposto, porquanto podem auxiliar na elucidação das
relações que pressupomos haver entre a ética, a estética, a psicologia, a
política e o urbanismo. Esses pressupostos ancoram-se principalmen-
te em estudos teóricos e empíricos realizados anteriormente pelas au-
toras, mas encontram respaldo também nas conclusões a que chegam
pensadores dedicados ao trabalho clínico em psicologia – como ilustra
a passagem irretocável de Luís Cláudio Figueiredo (2005):

A cultura em sua historicidade está presente tanto como o que


atravessa, sustenta e modula os processos do self, como o que é
gerado a partir dos encontros estéticos. Na verdade, os encon-
tros estéticos se dão sempre antes e paralelamente aos, tam-
bém importantes, encontros humanos no campo dos sentidos
já constituídos, dos significados compartilhados e consensuais.
(...) a origem dos sentidos é o sentir, e mesmo o mais sublime
dos pensamentos não só tem uma origem pática, como, dissocia-
do deste terreno, o plano pático das sensações, dos afetos e das
estesias, ele, a rigor, não é nada. Pior ainda: talvez seja da ordem
do patológico (p. 11).

Também nós pensamos que esse encontro estético, no qual o mundo


exterior ressoa como pathos no corpo-sujeito do homem, deve ser to-
mado como o fundamento de sua capacidade de compreensão de si
próprio, das outras pessoas e do mundo, donde derivam suas possi-
bilidades imaginativas, criativas, cognitivas, em suma, de toda a sua
existência individual e social. Nesta perspectiva, o conhecimento
político e ético sobre a cidade não pode prescindir da compreensão

de conduta’, ou uma ‘boa ou má moral > moralidade’, que passa a ser uma série de princípios que
regem uma sociedade. Não é esse o sentido do ήθος aristotélico; não é esse o sentido do ήθος
homérico e arcaico que Aristóteles conhece e amplia” (pp. 31-32).

108
dos sentimentos (pathos) de seus habitantes. A atitude hermenêu-
tica25 que propomos busca, precisamente, desvelar este plano pático
das sensações, dos afetos e das estesias, latente nas imagens comunica-
das pelos citadinos nas leituras que fazem sobre sua cidade.
Esperamos ter deixado claro que ao defendermos tal aborda-
gem compósita, simultaneamente analítica e hermenêutica, polí-
tica e ética, estamos procurando delinear um modo de enfocar a
complementaridade entre a mente humana e o mundo físico de que nos
fala Milton Vargas. Apenas o avanço das investigações poderá aqui-
latar a pertinência de uma tal abordagem; antes disto, gostaríamos
de compartilhar com o leitor o consolo de reencontrar na poesia a
expressão de nosso irresoluto assombro:

Multidão

Mais que as ondas do largo oceano


e que as nuvens nos altos ventos,
corre a multidão.
Mais que o fogo em floresta seca,
luminosos, flutuantes, desfrisados vestidos
resvalam sucessivos,
entre as pregas, os laços, as pontas soltas
dos embaralhados turbantes.
Aonde vão esses passos pressurosos, Bhai?

25 Caberá dar destaque a um modo de conceber o sentido da hermenêutica, que compartil-


hamos: “O sentido da hermenêutica é, na realidade, aquilo que, de um modo ou de outro,
sempre persegue ou almeja, ainda que seja pelo negativo, o ser humano enquanto animal
intérprete ou simbólico que gera uma pluralidade de linguagens culturais no interior das quais
se articula e configura o sentido. A hermenêutica se limitaria a realizar de um modo explícito
o que o ser humano efetua em sua vida individual e coletiva de um modo mais ou menos im-
plícito, e seja pela ativa ou [pela] passiva: a busca do sentido” (Garagalza, 2015; p. 66).

Capítulo 3

Consideração sobre o estudo das multidões urbanas 109


nos tempos atuais
Sandra Patrício e Eda Tessara
A que encontro? a que chamado?
em que lugar? por que motivo?
Bhai, nós, que parecemos parados,
por acaso estaremos também,
sem o sentirmos,
correndo, correndo assim, Bhai, para tão longe,
sem querermos, sem sabermos para onde,
como água, nuvem, fogo?
Bhai, quem nos espera, quem nos receberá,
quem tem pena de nós,
cegos, absurdos, erráticos,
a desabarmos pelas muralhas do tempo?
Cecília Meireles (Poemas escritos na Índia)

110
referências
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114
Capítulo 3

Consideração sobre o estudo das multidões urbanas


nos tempos atuais baracoa
editora

Sandra Patrício e Eda Tessara


Adriana Veríssimo Serrão
Universidade de Lisboa

Professora associada com agregação no


Departamento de Filosofia da Universidade
de Lisboa, onde realizou o mestrado sobre
a Estética de Kant (1985) e o doutoramento
sobre a Antropologia de Ludwig Feuerbach
(1996). Principais linhas de investigação:
Estética, Antropologia Filosófica, Filosofia
da Sensibilidade, Filosofia da Natureza e da
Paisagem. É diretora da revista Philosophi-
ca (Departamento e Centro de Filosofia da
Universidade de Lisboa).

CV: http://www.degois.pt/visualizador/cur-
riculum.jsp?key=4417055512689742
E-mail: adrianaserrao@letras.ulisboa.pt
ORCiD:https://orcid.org/0000-0001-7452-4032

117
Fazer da terra uma morada. A
ética da natureza, segundo
Ludwig Feuerbach

Resumo: O capítulo analisa as (Das Wesen der Religion,


grandes linhas da filosofia da 1846; Vorlesungen über das We-
natureza na obra do filósofo sen der Religion, 1851).
alemão Ludwig Feuerbach
(1804-1872). A tese da auto- Palavras-chave: Ludwig
nomia e do valor intrínseco Feuerbach, Sensibilidade, Éti-
da natureza, presente já nos ca da Natureza, Direitos dos
primeiros escritos prolonga-se Animais
numa ontologia do ser sensí-
vel (Sinnlichkeit), que atribui o
estatuto de sujeito a todos os
seres humanos e não-humanos
(Grundsätze der Philosophie
der Zukunft, 1843). Daqui nasce
uma ética do reconhecimento
e da gratidão, crítica do antro-
pocentrismo e todas as formas
de dominação e instrumenta-
lização. Nos últimos escritos
Feuerbach defende a visão da
natureza como uma república,
isto é, uma comunidade paritá-
ria destituída de hierarquias e
privilégios, na qual se incluem
os direitos dos animais

118
Converting the earth into a
dwelling place. The ethics of
nature by Ludwig Feuerbach

Abstract: The chapter analyzes 1846; Vorlesungen über das Wesen


the broad lines of the philoso- der Religion, 1851).
phy of nature in the work of the
German philosopher Ludwig Keywords: Ludwig Feuerbach,
Feuerbach (1804-1872). The the- Sensibility, Ethics of Nature,
sis of autonomy and of intrinsic Animal Rights
value of nature, already present
in the early writings, is extend-
ed into an ontology of the sen-
tient being (Sinnlichkeit), which
assigns the status of subject
to all human and non-human
beings (Grundsätze der Philos-
ophie der Zukunft, 1843). From
these principles arises an ethic
of recognition and gratitude, in
opposition to anthropocentrism
and all forms of domination and
instrumentation. In his later
writings, Feuerbach defends the
view of nature as a republic, that
is, a parity community with-
out hierarchies and privileges,
which includes animal rights
(Das Wesen der Religion,

119
Capítulo 4

Fazer da terra uma


morada. A ética da
natureza, segundo
Ludwig Feuerbach1
Adriana Veríssimo Serrão
Universidade de Lisboa

Inter­pelar o pensamento de Ludwig Feuerbach no âmbito das relações


en­tre filosofia e eco­­lo­gia poderá parecer, à luz das exigências do rigor
histórico, um la­bor in­­­­­coerente ou uma ten­tativa de reconstituição de-
masiado forçada. Faltam de facto ao filósofo, como em geral à men-
talidade do seu tempo, pelo me­nos dois dos traços que es­tru­turam a
cons­­­ciência ecológica actual: por um la­do, o aler­ta face a uma na­­­tureza
gravemente ameaçada ou mesmo com­pro­­­me­tida na sua so­­­­­­­­­­­­­­bre­­vivência;
por outro, a cer­­teza de serem os erros acu­mu­la­dos da ac­­­ção hu­mana o
factor que mais terá contribuído para tal desagregação. Esta nova cons­­­
ciên­cia con­fi­gura, do ponto de vista teó­­rico, uma ideia de natureza, e
de “natural”, cuja au­­­­ten­­ti­ci­­dade se tornou in­­tei­ra­­­men­te pro­­­­­­ble­­mática,
e lan­ça sobre o homem o peso de uma du­­pla pers­­­­­pec­­tiva éti­­­ca, cul­­pa­bi­
li­zando‑o pela ir­re­­­ver­­si­bi­li­­dade dos erros já co­­­metidos e res­­­­­­pon­sa­­bi­li­
zando‑o pela conservação do que ainda resta.
Sem lhe serem inteiramente estranhas, as consequências da acti-
vidade humana sobre o meio, no­mea­­­da­mente alterações provocadas

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 121


Editora Baracoa — 2019
no clima, são referidas por Feuerbach de um modo ge­né­ri­co e evi-
denciam a cla­ra ins­pi­ra­ção de um motivo já de­sen­volvido por J. G.
Herder, nas Ideen zu einer Philosophie der Geschichte der Menschheit
(Ideias para uma Filosofia da História da Humanidade), sem que lhes
esteja as­so­ciada a co­no­tação de efei­tos ne­ga­ti­vos, muito menos a
ideia do homem como pre­dador das es­pécies vivas ou destruidor
do seu ambiente2. Al­guns outros tópicos, muito sugestivos do pon-
to de vista da biografia in­­­te­­lectual de Feuer­bach e do seu modo de
fazer filosofia, su­bli­nham a dife­rença en­tre o filosofar do campo e
o da cidade, aquele vi­vificado pe­lo ar puro dos es­­­paços li­vres, em
consonância com o status naturalis, este reproduzindo a es­­­­trei­te­
za de horizontes dos espaços fechados e contaminado pelas im­­
purezas do ar citadino. Em outros contextos, a comparação entre
o campo e a cidade pre­­tende vincar o contraste entre Natureza e
História, respectivamente, um modo de vida pro­cessando‑se em
rit­mos len­­­­tos e na fa­milia­ridade com os lu­gares naturais, e um ou-
tro determinado pela velocidade e a rá­pida mutação do curso dos
acon­teci­mentos. A intuição da desagregação ambiental, da acumu-
lação de resíduos ou da es­­­cassez dos re­cursos básicos é estranha
ao pen­sador oito­cen­tista, tal co­mo a imagem do homem que ame-
aça o seu meio e, por ex­ten­são, o seu pla­ne­ta, par­cial­mente com­
preensível tendo em conta a existência passada nu­ma discreta po­
voação bávara, retirada dos centros urbanos e pro­­­te­gi­da dos fumos
fabris cujos efeitos no­civos alguns con­tem­po­râ­neos, como o poeta
John Ruskin, mais aten­tos aos as­pec­tos ne­ga­tivos da revolução in­
dustrial em expansão, já de­nun­­­ciavam.

2 L. Feuerbach, Vorlesungen über das Wesen der Religion / Conferências sobre a Essência da
Religião (1851), GW 6, 193‑194; so­bre as al­terações do habitat dos animais (ibid., 150); as consequên-
cias da caça são aludidas em Das We­sen der Religion / A Essência da Religião (1846), GW 10, 64 nota.
A sigla GW refere a edi­ção crí­­tica das obras de Feuer­bach organizada por Werner Schuf­fenhauer
(Ge­sam­­mel­te Wer­ke, Ber­lin: Akademie, 1967ss), seguida da indicação do volume e da página.

122
Apesar destas restrições, Feuer­bach não deixa de ser uma voz
decisiva a favor de uma dignificação in­con­dicional da Natureza. Des-
conhecido ou es­quecido quan­do se buscam as primícias da articula-
ção entre filosofia e eco­lo­gia, mereceria cer­tamente no contexto do
sé­culo XIX o lugar de direito tantas ve­­zes concedido a Nietzsche – ao
sentido matricial da fidelidade à Terra –, ou a Spengler – ao de­clínio
da ci­vilização que arrastaria também a Na­tureza, des­tinada a des­ca­
rac­­­terizar‑se, fa­lha de capacidade regenerativa. Tanto a ideia de nii­
lismo como a de declínio po­dem com facilidade ser con­ver­tidas em
“pre­mo­­ni­ção” de uma que­da, de um de­saparecimento total da civili-
zação en­­vol­vendo os va­­lores cul­tu­rais e pró­pria Ter­ra. Já o contido
optimismo de Feuer­bach não as­socia o movimento emancipador da
História humana à an­te­cipação de uma de­ca­dência que se exer­ceria
sobre o mundo natural. Mas outros temas‑chave, quer do ponto de
vista da concepção de n­a­­­­­­­­tu­reza quer da antropologia, encontram-
‑se bem vivos nos seus textos, designadamentr a radicação terrena
do hu­mano ou a consideração da multifuncionalidade da natureza,
como origem e base, mas também como medida e limite, da vida.
Para além da insistência no saber de uma origem e na contenção da
acção, será ainda de realçar o ape­lo ao lugar do homem como ha­
bitante da na­­tureza. Mesmo sem a perspectiva de um declínio, a posi-
ção de Feuerbach rela­ti­va­­mente à natureza – seja na sua globalidade,
seja nos seus ele­men­tos par­ticulares – ma­nifesta uma atitude de pro-
fundo respeito, tanto mais notável quan­to se pro­ces­­sa numa pura or-
dem de reflexão e não se põe reac­tivamente como res­­pos­ta defensiva
perante um perigo já instalado. Tal dignificação, inequivocamente
defendida ao lon­go de toda a obra, con­­­­templando no­­mea­­da­mente os
deveres humanos para com os ani­mais, cons­ti­tui uma sur­preen­dente
antecipação de debates e preo­cu­pa­­ções que se co­locam como desa-
fios urgentes ao pensamento e à actuação dos dias de hoje.

Capítulo 4

Fazer da terra uma morada. A ética da natureza, 123


segundo Ludwig Feuerbach
Adriana Veríssimo Serrão
Autonomia e valor intrínseco da natureza

Será importante começar por identificar algumas linhas fun­da­


men­tais da filo­sofia da natureza, ou da na­tu­reza encarada como
ideia filo­­sófica, um tema de­cisivo na vi­são feuerbachiana do mun-
do, que se reconhece na con­­­cep­ção pes­soal que gra­dual­mente
elabora e nas crí­ticas a outras dou­tri­nas, a seu ver in­­­com­ple­tas
ou ne­gativas, contra as quais se in­surge. No seu aspecto mais
essencial, a natureza apresenta‑se como o fun­­­­­­­da­men­to de toda
a existência, que não deve ela mesma a sua exis­tência a um ser
distinto dela, sendo, por con­sequência, dotada de inteira inde­
pendência. In­­de­pen­­­­dente na origem, não pos­suindo um começo
tem­poral determinado, e inde­­­­pen­dente no seu existir, pros­­segue
autonomamente o seu curso co­mo prin­­cí­pio de geração imanen-
te, obedecendo unicamente aos seus pró­prios ritmos in­te­rn ­ os de
de­­­­sen­vol­vimento. A expressão mais forte da na­tu­reza é a vi­da,
rea­lidade ani­­­ma­da que subsiste e se renova através dos ci­clos de
nas­­ci­mento e morte dos in­di­ví­duos.
A defesa do seu valor intrínseco ressalta claramente no con­­­­­­­­­­
fronto vee­men­te, muitas vezes polémico, com o leque de posições
religiosas e filosóficas que lhe atri­buem um es­ta­tuto de ser se-
cundário, ou mesmo negativo. E são elas, por um lado, o cria­­­­cio­
nismo, que a coloca no estatuto de de­­­­ri­vado do acto criador, por
sua vez arbitrário, de uma sub­jec­tividade ab­soluta. Por ser criado,
o mun­do não pos­sui um significado positivo, mas derivado, sus­­
pen­so do acto da von­­­­tade divina que o trouxe à existência a partir
de um nada. O mesmo “nada” que sustenta a lógica especulativa
de Hegel, para quem a natu­reza é posta pelo es­pí­rito como um
negativo com o qual se defronta para ad­quirir a ple­na cons­ciên­
cia de si mesmo. Seja como obra da vontade divina, seja como

124
posição do pen­sa­men­to ab­soluto, não pos­sui estatuto originário,
remetida para a condição de momento segundo na ordem da gé­
nese ou existente se­gundo na ordem do valor. A incapacidade de
colher o sentido orgânico é igualmente típica do me­ca­nicismo,
par­­­­­­ti­cu­lar­men­te visado por destituir a natureza de so­pro vital e de
mo­vi­mento próprio, quando lhe empresta um modo de funciona-
mento fixo e repetitivo se­me­lhante ao das máquinas. Olhar para o
mundo em geral, e para o vivo em par­­ticular, sob a figura exclusiva
do en­ca­deamento uni­forme de causas equivale a converter a vida
em morte, o vivo em coisa inerte, impondo ao mundo uma esta­
bi­lidade em tudo contraditória com a dife­ren­ciação ima­­­­­nente e a
diversidade qua­li­tativa exibida pelo curso natural.
A par de uma natureza orgânica, physis, cuja essência é o prin-
cípio vital, indis­­pen­sável para pensar o ritmo de su­cessão dos fe-
nómenos e se­res, Feuer­bach con­sidera‑a também de um ponto de
vista sincrónico, como “to­­­­­­ta­­li­da­de si­mul­tânea” ou comunidade. O
con­ceito de natureza como simul­ta­­neidade permite dar conta de
uma coesão actual, de um todo cujos elementos possuem in­di­vi­
dualmente uma im­por­tân­cia e um valor desprezados pela visão em
su­ces­são. Todos os elementos de um con­junto constituem a Na­tu­
re­za, vis­ta agora como so­ma­­tório, um todo coeso mas aberto, cons­
ti­tuí­do pela co‑pre­sen­ça dos seus mem­bros.
Se a visão processual tem como matriz a transiência tempo-
ral do finito, a natureza‑todo apre­­­­sen­ta‑se segundo o esquema do
espaço, isto é, uma co­mu­ni­dade regida pela co­or­­­­de­nação e coexis-
tência dos finitos, par­ticipando cada um de direito próprio, na ple-
nitude das suas di­ferenças e qualidades in­sus­ceptível de se resumir
numa figura única. Natureza tende, pois, a coincidir com realidade,
sendo mesmo definida como o “so­ma­tório da rea­lidade”, incluindo
nes­se “es­­tar com” também o ser hu­ma­no, inserido na totalidade

Capítulo 4

Fazer da terra uma morada. A ética da natureza, 125


segundo Ludwig Feuerbach
Adriana Veríssimo Serrão
real de que é inse­pa­rável. Inaugura‑se assim uma ideia de realidade
estruturada na bipolaridade Na­tu­reza‑Ho­mem, modo essencial de
toda a existência e de que nem o filósofo se pode alhear, como se
fosse um es­pec­tador isolado ou um puro sujeito cognos­cente, e não
um ser total. Ela é para a filosofia, para o pensamento em geral, a
alteridade não re­dutível ao pensar, o elemento vivificante de um
pensar que recusa a abstracção e aspira a per­­manecer na conexão
com o ser.

“O fi­lósofo deve ter a natureza por amiga; a natureza é in­tei­ra­


mente sa­be­doria, ra­zão. Aquilo que ele pensa, ela fá‑lo, é isso
que ele vê nela.”3

É neste contexto que a natureza se assume também como um pa­


ra­digma ético como Heil, na dupla acepção de saú­­de e salvação,
mo­delo de simplicidade, sobriedade e racionalidade,que deve ser
compreendido e seguido:

“A filosofia é a ciência da realidade na sua verdade e totalidade,


mas o so­ma­tó­rio da realidade é a natureza (natureza no sentido
mais universal do ter­mo). Os se­­­gre­dos mais profundos residem
por isso nas mais simples coi­sas na­turais, que o fantasioso es-
peculativo que apela ao além calca debaixo dos pés. O re­­tor­no à
natureza é a única fonte da salvação.”4

Nos manifestos fundadores do projecto de uma reforma da filo-


sofia e da ideia de uma neue Philosophie – as Vor­­läu­fige Thesen zur

3 Carta a J. A. K. Roux (Maio de 1837), GW 17, 289.

4 Zur Kritik der Hegelschen Philosophie / Para a Crítica da Filosofia de Hegel, GW 9, 61.

126
Re­­for­mation der Phi­losophie / Teses Provisórias para a Reforma da
Filosofia e os Grund­sätze der Phi­lo­so­phie der Zukunft / Princípios
da Filosofia do Futuro – Feuerbach cruza a fi­lo­­sofia da natureza
com uma ontologia ela­borada à luz do princípio da Sen­si­bilidade
(Sinn­­­lichkeit), que caracteriza a sua doutrina plenamente ama-
durecida. Para a no­va filosofia, o ser não é um conceito vazio,
o conceito de máxima generalidade e destituído de qualquer
conteúdo concreto que se aplicaria in­dis­tin­ta­mente a tudo o
que pode ser pensado. É o ser con­­­­creto, o ser sensível, a po­
sição de exis­tên­cia, o ser que existe independentemente do
pen­samento e da linguagem, pos­­suindo por si mesmo ver­­dade
e realidade: “A existência, mesmo sem dizibilidade, tem por si
mes­ma sentido e razão.”5
Da ontologia sensível decorre a inteira consistência do real,
a unidade e solidez de um único mundo, de todas as suas ins-
tâncias e de todos os seus seres, entes plenos, não sombras,
entes reais, não aparências. Promovido é também o valor das
individualidades, ou mais pre­ci­samente, a irredutibilidade do
singular a um plano de generalidade no qual se anularia a qua­­
lidade pre­gnante da presença. O ser concreto é a própria exis-
tência desdobrada na multiplicidade dos existentes e na sin­­gu­
la­ri­­dade irredutível de cada um.
A implicação mais significativa para uma visão apoteótica da
rea­lidade encontra‑se porém na tese do ser como su­jeito: “Ser é
algo no qual não apenas eu mas também os outros, e sobretudo
tam­­­­bém o próprio objecto, es­tão im­pli­cados. Ser significa ser sujeito,
significa ser pa­­ra si.”6

5 Grundsätze der Philosophie der Zukunft (1843), §28, GW 9, 308.

6 Ibid., §22, GW 9, 304.

Capítulo 4

Fazer da terra uma morada. A ética da natureza, 127


segundo Ludwig Feuerbach
Adriana Veríssimo Serrão
A noção de su­jeito perde a iden­tificação com o eu autoconsciente
e auto‑reflexivo do idealismo para ser integrada, sem privilégio nem
exclusividade do humano pensante, numa visão rea­lista e plena da
existência. A ontologia prepara a dignificação e promoção do mundo,
mundo de sujeitos que são também objectos, não enquanto o contrá-
rio do pen­sa­mento ou o destituído de pensamento, mas sim­plesmente
em função da po­si­ção que cada um desempenha na relação a outro, o
que converte a realidade sensível num tecido de interrelações, sob o
modo ori­gi­nário da subjecto‑objectividade de todo o existir.

Uma tipologia das atitudes: entre ins­tru­men­talização e


gratidão

Sendo a apreensão do real tanto mais ver­da­deira quanto menor a


in­ter­venção de estruturas subjectivas de mediação ou de esquemas
pre­deter­mi­na­dos, a multifacetada on­­to­logia da existência requer
que a concreção se coloque tam­bém ao pensamento como seu cri-
tério de verdade. É necessário que o pen­sa­­mento não perca o con-
tacto com o real, que seja ele mesmo coin­ci­dên­cia de ser com ser,
pensamento concreto.
O primado advém aos modos sensíveis de apreensão do ser e,
entre estes, aos imediatos, como a intuição sensível, que se ligam
directamente às coi­sas sem in­ter­­­posição de véus, conservando
vivo no próprio pensar o elemento on­to­­­­lo­gicamente mais forte,
sintético por ex­ce­lên­cia, que é a sen­sação.
A intuição é uma visão em cuidado e apro­fun­da­mento do sen­­
sível. Preside‑lhe uma lógica de pro­xi­mi­dade, uma visão em es­ca­la
que tanto pode alcançar os mais lon­gín­quos céus como incidir nos
seres mais chegados. A intuição não é em rigor um co­­­­nhecimento,

128
que separa o objecto da sua representação ou do seu conceito7; é
já pensamento sensível, um saber que decifra o livro do mundo
e o desvenda na multiplicidade e va­rie­dade dos seus ca­rac­teres e
vo­cá­bulos. O filósofo não detém a exclusividade da con­templação.
Par­ti­lha‑a com a aten­ção do botânico que trata das suas plantas e
do mineralogista que cuida dos seus cristais, que ligam estudar e
amar, razão e sentimento, ou em lingua­gem feuer­­­­­bachiana, ca­­­beça e
coração. Partilha‑a com o religioso naturalista que celebra em ado­­
ração temerosa e ve­ne­radora a sua re­la­­­ção de dívida para com o
mundo na­tural8. Re­conhecedora da qualidade, geradora de alegria,
decorre na paridade de uma relação de respeito pelo objecto, como
fim em si mesmo, valorizando a na­tu­reza como um bem a obser-
var, a es­tudar, a admirar, não a usar. Feuerbach enfatiza o poder da
intuição quando a associa ao amor, essa capacidade que o coração
tem de re­tirar os seres da indiferença e de con­fe­rir a cada fi­ni­to um
carácter absoluto, um valor infinito9.
No seu pólo oposto, encontra‑se o utilitarismo, a visão de­
ter­minada pelo interesse e maculada pela antecipação calculista
dos proveitos, mo­vida pela funcionalidade inte­resseira que reduz
um ser à posse ou ao lucro: que seja meu ou que seja um meio
para mim. O egoísmo do uso, ins­tru­men­ta­li­zando os seres como
meio, é gerador de disparidade, como ressalta do contraste dos
dois tipos de intuição:

7 Cf. Ibid., §§39 e 44.

8 Cf. Vorlesungen über das Wesen der Religion (11.ª Conferência).

9 “O ser é, pois, um segredo da intuição, da sensação, do amor. Só na sensação, só no amor, é que


“este” – esta pessoa, esta coisa –, ou seja, o singular, possui valor abso­luto, é que o finito é o infinito – é
nisto e só nisto que consiste a infinita profundidade, di­vin­dade e verdade do amor.” Grundsätze der
Philosophie der Zukunft §34, GW 9, 317.

Capítulo 4

Fazer da terra uma morada. A ética da natureza, 129


segundo Ludwig Feuerbach
Adriana Veríssimo Serrão
“A intuição prática é uma intuição suja, manchada pelo egoísmo.
Nela, eu re­la­cio­no‑me com uma coisa apenas por minha causa.
Não a intuo em função de­la; no fundo, ela é uma coisa desprezível
[...]. A intuição prática é uma in­tui­ção não sa­tisfeita em si, pois nela
eu relaciono‑me com um objecto que não é de con­dição igual à mi-
nha. A intuição teórica, pelo contrário, é uma intuição cheia de ale-
gria, satisfeita em si mesma, bem‑aventurada, pois para ela o ob­jec­to
é um ob­jecto do amor e da admiração, que brilha na luz da livre in­
te­li­gên­cia, ma­gní­fico como um diamante, transparente como um
cristal de mon­ta­nha; a intuição da teoria é uma intuição estética, a
intuição prática, pelo con­trá­rio, uma in­tuição ines­tética.”10

A contemplação deve o seu primado ao desinteresse, ausência de


uma von­tade de pos­­suir, o que supõe um des­­­­cen­tra­mento, mas
não uma anulação de si. O próprio conceito de estética traduz, na
terminologia de Feuerbach, a equiparação de sujeito e objecto no
plano sintético da subjecto‑objectividade. A liber­da­de da natureza
é solidária da liberdade mental do sujeito.
Feuerbach associa por vezes a estética ao sentido grego do
espanto face ao mundo e da contemplação (theôria), teorética
mas não intelectualista, que acolhe com olhos maravilhados o
sentido festivo e a magnificência do mundo. Outras vezes inte-
gra a estético‑ética numa forma de religiosidade au­­têntica, fei-
ta de dívida e gratidão, ao mesmo tempo pró­xi­ma e respeitosa,
pre­sente no culto dos elementos, na cele­bra­ção das qualidades e
propriedades na­tu­rais:

“Não esqueças, na gratidão para com o homem, a gratidão pela


sagrada Na­­tu­re­za! Não esqueças que o vinho e a farinha são o
10 Das Wesen des Christentums / A Essência do Cristianismo, GW 5, 333.

130
sangue e a carne das plantas que são sacrificadas ao bem‑estar da
tua existência! [...] Sagrado seja então para nós o pão, sagrado o
vinho, mas também sagrada a água!”11

Ao impor uma medida humana, seja ela do indivíduo, ou de grupos,


seja ainda a medida do gé­nero humano em geral, o utilitarismo é uma
expressão de egoísmo e de antro­po­cen­trismo. Não se confundirá to-
davia antropocentrismo com a situação concreta ocupada por cada
sujeito, que define uma situação determinada na apreen­são do mundo.
O sujeito humano é, para Feuerbach, um eu corporizado, ra-
dicado no mundo se­gundo as coordenadas concretas de um “aqui
e agora”. A posição corporal e es­pá­cio‑temporalmente enraizada
de um sujeito incarnado im­pri­me ne­ces­sa­ria­mente à captação do
mundo uma diferenciação de ângulos, de perspectivas. O pers­
pectivismo, segundo o qual a totalidade real é tomada em parce-
las ou frac­ções de mundo, deve por isso ser alargado com o ponto
de vista de outros, numa con­cep­ção dialógica da ver­dade que não
iden­tifique, sem mais, o ponto de vista pessoal com o ponto de
vista total. A tarefa da filosofia con­siste justamente em ultrapassar
o ca­rác­­ter limitado dos pontos de vista e ace­der a uma universali-
dade inter­subjec­tiva e comunicativa.
Já “ser centro”, “tomar‑se como centro”, implica a atitude pri-
mária e limi­tada segundo a qual as coisas que giram em torno da mi­
nha situação restrita, pessoal e local, são exclusivamente como eu
as apreen­do. Supõe a projecção de uma medida, ex­­­­clusiva para mim
ou para um nós, to­mada como um absoluto. O antropocentrismo
começa por revestir‑se da figura de um antro­po­mor­fismo inocente;
carac­terístico do estádio de ignorância dos indivíduos e dos po­vos,
como no caso da criança ou da mentalidade animista, investe os
11 Ibid. , GW 5, 454.

Capítulo 4

Fazer da terra uma morada. A ética da natureza, 131


segundo Ludwig Feuerbach
Adriana Veríssimo Serrão
ob­jectos na­turais de pro­prie­­dades, comportamentos ou sentimen-
tos hu­manos12. É no curso da evo­lu­ção, pessoal ou his­tó­rica, que o
antropocentrismo virá a tornar‑se num grave vício de pen­­­­sa­­mento
que, ao invés de humanizar o mundo, lhe retira de­­libe­radamente
a sua es­pe­cifi­cidade para o julgar segundo critérios men­tais e ca­
tegoriais que lhes con­ferem consistência e objec­tividade. Em ambos
os casos, há uma projecção sobre o objecto; no primeiro caso, por
identificação e as­si­mi­lação; no segundo, por destituição e privação.
Feuerbach está ciente de que existe uma auto‑re­fe­ren­­­­cialidade
que intervém es­pon­taneamente na visão do mundo. Impõe‑se por
isso a todo o conhecimento um exercício de autocrítica, que sem
poder anular a in­­trodução dessa medida, não iden­tifique modos de
conhecer e dizer com o ser em si mesmo. É necessário apreender a
na­tureza ape­nas atra­vés dela mesma, dis­tin­guin­do‑a entre “coisa em
si” e “coi­sa para nós”, com a consciência de que qualquer me­­dida hu-
mana, a ser‑lhe apli­cada, possui um alcance inteira­mente ana­ló­gico.

“Mesmo que a natureza não veja, não é porém cega, mesmo que
não viva (na acepção subjectiva, sensitiva da vida humana em
geral), não é porém morta, e mesmo que não se forme segundo
intenções, as suas formações não são casuais; pois onde o ho-
mem de­fine a natureza como morta e cega, as suas formações
como casuais, aí ele converte o seu próprio ser (isto é, subjecti-
vo) em medida da natureza, determina‑a unicamente se­gun­do a
oposição a si mesmo, refere‑a como um ser deficiente, porque ela
não tem o que ele tem.” 13

12 Grundsätze der Philosophie der Zukunft §44, GW 9, 326.

13 Das Wesen der Religion §48, GW 10, 60.

132
Existência humana e natureza vivida

Apresentando‑se o mundo natural como provido de au­to­nomia, já o


lugar hu­ma­no se encontra marcado pela dependência da natureza,
origem e fonte de todas as instâncias de vida, inorgânica e orgânica,
vegetal e animal. Assim, en­quanto espécie viva, também o homem
começou por surgir da na­tureza, é do ponto de vista da génese tem-
poral um ser da na­­tureza – o ho­mem do mundo (Welt­mensch), mo­de­
lado pelo seu pen­sa­men­to e pela sua acção, é e será também sem­pre
um ho­mem da natureza (Na­tur­mensch)14. Porém Feuerbach não se
detém demo­radamente na ques­tão da origem, bas­tando‑lhe ins­tituir
alguns prin­cípios de ca­rác­ter muito geral, que ca­­be às ciências empí-
ricas explicar e confirmar nos as­pectos par­ti­culares: a precedência da
Terra rela­tiva­mente a todas as es­pécies, in­­cluin­do a humana, no seio
da qual tem um surgimento tardio, diferido no tempo, obri­­gando a
pensar um estádio em que havendo já a Terra, plantas e animais, o
homem ainda não exis­tia15. Porque não é numa remota origem natu-
ral da espécie viva que se en­con­tra a sua condição natural. Ele é so-
bretudo um ser na natureza, no sen­tido de uma implicação total num
processo de existência. No seu habitar con­creto o ser humano desco-
nhece os complexos debates em matéria de ontologia e gnosiologia,
mas não a natureza sensível que o circunda e em que se pro­ces­sa a in­
te­­gralidade da sua existência. O que o filósofo pode ex­pressar numa
pura ordem de pensamento, instituindo a ideia de um fun­da­mento,
distante na or­­dem on­to­­ló­gica, um primeiro no tem­po ou no valor,
vi­ve‑o ele em cada mo­mento da exis­tência como rea­lidade vizinha.

14 Über Spiritualismus und Materialismus besonders in Beziehung auf die Willensfreiheit / Sobre
o Espiritualismo e o Materialismo em particular no que respeita à Liberdade da Vontade (1866),
GW 11, 175.

15 Cf. Vorlesungen über das Wesen der Religion, GW 6, 109.

Capítulo 4

Fazer da terra uma morada. A ética da natureza, 133


segundo Ludwig Feuerbach
Adriana Veríssimo Serrão
Vive‑a como terra natal (Heimat), sublinhando o sentido de
uma per­ten­ça à sua terra, como solo ou domicílio originário. Não
está apenas no es­­paço e no tempo, coordenadas da existência em
geral; é proveniente de um lugar, deste lugar identificado, ao qual,
depois de sair, regressará com a sen­­sação familiar de uma per­­tença,
e cuja memória pode chegar a transportar consigo na re­pre­sen­ta­
ção de uma vida futura após a morte16. A terra natal é um enqua­dra­
mento ca­rac­te­rístico, uma natureza-paisagem determinada pelas
peculiaridades do solo e do clima, os recortes das montanhas e o
curso dos rios, habitado por uma fauna e uma flora es­­pe­cíficas17.
Vive‑a como realidade sensível, que experiencia na profusão
das sen­sações, que não são nem afecções, nem obscuras impres-
sões, nem um material sensorial destinado pri­mei­­ramente ao co­­
nhecimento. A sen­sação é provida de consistência, é uma união es­
sen­cial, aliança e có­pula ontológica, é o ser que se une ao ser. Mais
forte que a intuição, que percebe à distância, o sentir em con­tacto
liga num único acto o senciente e o sensível:

“Só aos seres que eu vejo e sinto, ou àqueles outros que embora
eu não veja nem sinta são todavia visíveis e sensíveis em si, ou
a quaisquer outros se­res sensíveis, devo a minha existência, o
facto de sem sen­­tidos me afundar no nada.”18

Se a sen­si­bili­dade – entendida já por Feuerbach como globalida-


de inter­senso­rial de audição e visão, gosto, olfacto e tacto – se

16 Das Wesen des Christentums, GW 5, 307‑310.

17 Die Unsterblichkeitsfrage vom Standpunkt der Anthropologie / A Questão da Imortalidade


do ponto de vista da Antropologia (1847), GW 10, 253; Vor­le­sungen über das Wesen der Reli-
gion, GW 6, 47-48.

18 Vorlesungen über das Wesen der Religion, GW 6, 106.

134
caracteriza pelo movimento de aber­tura ao mundo (o sair para
fora de si, o ter o fundamento fora de si), o re­verso é igual­mente
ver­dadeiro. O mundo entra também em nós, e não só pelos ca-
nais sensoriais, mas pela totalidade do corpo, um “eu poroso”
que se deixa impregnar de mundo19. O corpo sensível encontra
seres singulares, mas também os ele­mentos fun­­da­mentais que
o circundam e tudo englobam – o ar e a luz –, e outros, como a
água e terra, sensíveis omipresentes mas também biótipos, cons­­
tituintes físicos e bio­ló­gicos, nutrientes quí­micos e orgânicos,
providos de virtudes na­turais, a que deve quer a saúde física quer
o bem‑estar interior. O mesmo ar que actua sobre os pulmões to-
nifica e agiliza a função pensante20. A água é elogiada na sua fun-
ção purificadora e poder revigorante, tanto físico como espiritu-
al21. A luz na con­­di­ção de ser universal: ver é a sensação da luz;
e essa mes­ma luz que me faz ver os outros seres, existe também
para eles, e é igualmente graças a ela que eu me torno visível22.
A natureza é vivida como vínculo originário, na multiplicidade
dos nexos vitais, ti­­pificados por vezes na respiração e ali­men­tação,
que a conservam e re­no­vam a ca­da instante, e provam, nessa rei-
teração, o mes­mo im­pres­cin­dível gesto de ligação ao ser:

“Eu preciso de ar para respirar, de água para beber, de luz para


ver, de subs­tâncias vegetais e animais para comer, mas de nada,

19 “Ser no corpo significa ser no mundo – tantos os poros, tantas as vulne­rabilidades: o corpo
nada é senão o eu poroso.” Einige Bemerkungen über den “Anfang der Philosophie” / Algumas
Considerações sobre o “Começo da Filosofia” (1841), GW 9, 151.

20 Vorlesungen über das Wesen der Religion, GW 6, 44.

21 Cf. Das Wesen des Christentums, GW 5, 450‑452.

22 Über Spiritualismus und Materialismus besonders in Beziehung auf die Wi­llens­freiheit,


GW 11, 180‑181.

Capítulo 4

Fazer da terra uma morada. A ética da natureza, 135


segundo Ludwig Feuerbach
Adriana Veríssimo Serrão
pelo menos ime­dia­ta­mente, para pensar. Um ser que respira,
não posso pensá‑lo sem o ar, um ser que vê sem luz, mas posso
pensar o ser pensante isoladamente por ele mesmo.”23

Desenrola‑se assim um processo de síntese, feito de vínculos re-


petidos, onde não é possível determinar nem o termo primeiro
nem o termo último, nem esta­belecer fronteiras entre interior
e exterior. Um ciclo não fisiológico na acep­ção cien­tífica es­trita,
mas on­­­­­to­lógico, onde tomam parte to­dos os se­res. A ali­mentação
su­bli­nha, no mo­vimento sempre renovado de “in­­­­gestão” e “as­­­­­­­­
simi­lação”, uma homo­ge­neidade entre o nos­so ser‑humano e o
ser‑natural, uma ho­mo­geneidade porém selectiva e não irrestrita,
na me­di­da em que as­si­mi­lamos a nós apenas o se­me­lhante a nós,
para vol­tar a transformar o assimilado em novas for­mas de expres-
são. Pela ingestão e assimilação, há um mundo na­tu­ral que se hu­­
maniza, dá‑se como que uma incarnação quotidiana da natureza24.
Mas é pela ex­te­riorização que lhe sucede que a vida ganha ex-
pressividade, re­ela­borada que é em no­vas formas, segundo as
potencialidades que o ser hu­ma­no, máxima expressão de força
vital, acres­cen­ta à sua constituição na­­tural básica25.
Tão certo é afirmar que Feuerbach sensibiliza o espiritual como
afirmar que espiritualiza o sensivel. Tão certo o esforço de superação
23 Grundsätze der Philosophie der Zukunft §6, GW 9, 269.

24 “Comer e beber são a in­car­nação quotidiana, sim, a me­nos­pre­zada in­car­nação da na­tureza,


mas ela só se faz homem em virtude desta identidade de sujeito e objecto”; Über Spiritualismus
und Materialismus besonders in Beziehung auf die Willensfreiheit, GW 11, 179; Cf. Das Ge­heimnis
des Opfers oder der Mensch ist, was er ißt / O Segredo do Sacrifício, ou o Homem é aquilo que come
(1866), GW 11, 47.

25 A tematização da vida como exteriorização e expressão é motivo de longos desen­vol­­­vi­


mentos em Wider den Dualismus von Leib und Seele, Fleisch und Geist / Contra o Dualismo de
corpo e alma, carne e espírito (1846), GW 10, 138ss e Die Un­sterblichkeitsfrage vom Standpunkt der
Anthropologie, GW 10, 251ss.

136
das antro­po­lo­gias de feição metafísica, como de qualquer reducionis-
mo científico. A imagem da exis­tência hu­mana como um imenso sis­
tema de trocas e uma contínua “cir­cu­la­ção de vida”, umas vezes usada
em sentido real, outras com intenção me­ta­fó­rica, possui uma eficácia
ampla, quase sis­te­mática, de que decorrem a co­la­bo­ração entre homem
e natureza e a con­ti­nui­dade entre o natural e o cultural. “Vi­ve­mos na
na­tu­reza, com a natureza, da natureza”– tanto alude à im­pos­si­bili­da­de
de cortar ou sus­pender o fluxo vital, como à ideia de um destino con-
junto: um fu­­turo comum ou um desa­pa­re­cimento comum:

“porque é na natureza que vi­vemos, que laboramos e exis­timos;


é ela que engloba o homem; a ser-lhe re­ti­rada, é também a pró­
pria exis­­tência dele que é su­pri­mida; é somente graças a ela que o
homem sub­siste, é somente dela que ele de­pende em toda a sua
ac­ti­vidade, em todos os seus passos”26.

Necessidade e domínio: a ambivalência originária

Parecendo instituir‑se sobre um profundo equilíbrio, ao recuperar


para a sua doutrina um espírito classicista pelo qual sempre reve-
lou uma especial atrac­ção, a úl­tima filosofia feuer­bachiana vê‑se no
entanto perturbada por um ele­­men­to novo, que lhe imprime sinais
de uma intensa paradoxalidade ausente dos es­cri­tos anteriores.
A descoberta deste elemento é pa­ra­lela à in­cur­são de Feuer­
bach pela an­­­tro­­­­pologia cultural, quando medita aprofundadamente
sobre a génese histórica das for­­­­­­mas reli­giosas e procura estabelecer
a sua inter-relação a partir das reli­giões naturais, formas ar­caicas
de tempos e de povos cuja inserção no ambiente geo­gráfico é muito

26 Vorlesungen über das Wesen der Religion, GW 6, 91. É por isso sem contradição que Feuerbach
pode designar-se a si mesmo de “Naturalist oder Humanist”; GW 6, 257.

Capítulo 4

Fazer da terra uma morada. A ética da natureza, 137


segundo Ludwig Feuerbach
Adriana Veríssimo Serrão
estreita, permitindo captar aí, nessa primitividade, tra­ços defini-
dores de um estado originário. Res­salta desta análise a in­tui­­ção de
que o homem, em­bora ser da na­tu­reza, não a ha­bita har­­mo­nio­sa­
men­te, mas tende por natureza a rivalizar com ela. Existe mesmo
um antagonismo que não só o leva a pri­vilegiar, em detrimento do
contacto com os seres naturais, as relações com o outro humano
no qual re­co­nhe­ce facilmente um semelhante, mas sobretudo a ou­
togar‑se uma superioridade de estatuto.
O primitivo, ou o “homem físico”, cuja exis­tên­cia se pro-
cessa em coa­bi­tação próxima com o meio circundante, inteira-
mente dependente dos re­cur­sos da terra, sujeito às intempéries,
aos ataques das feras e à violência dos elementos, dispondo de
meios de protecção rudimentares, sente a extrema fra­­gili­da­de da
sua situação vital: “o pri­mitivo é um estranho na natureza”27. Se
pode por vezes sentir-se em convivência próxima, quando ela é
pró­diga e faculta re­cursos em profusão, tende a acentuar a va-
riabilidade im­pre­visível que o remete pa­ra uma situação de ex-
pectativa, in­segurança e desconforto. Considera a na­tu­reza como
ser estranho e distante, uma distância reforçada pela mudez e
pelo si­lêncio, uma indiferença de quem não res­ponde às inter­ro­
ga­ções e solicitações hu­ma­nas nem se molda sub­ser­vientemente
aos seus de­sejos e pedidos.
Transitando das formas religiosas primitivas para a antro-
pologia filosófica, Feuer­­bach teoriza – retomando a temática he­
geliana do senhor e do servo – a re­­lação de ambivalência como o
modo originário de ser. O homem radica na natureza, nu­ma re-
lação que está longe de ser pa­cífica. Homem e Natureza oscilam

27 Das Wesen der Religion (Erste Fassung), manuscrito publicado por Fran­­cesco To­ma­soni em
Ludwig Feuerbach e la natura non umana. Ricostruzione ge­ne­tica del­l’ Es­senza della religione
con pubblicazione degli inediti, Firenze: La Nuova Italia Edi­trice, 1986, 238.

138
na per­manente tensão entre o do­mínio e a servidão, em cuja base
se en­con­tra, não uma atitude teorética de admiração desinteres-
sada, mas o me­­­canismo bá­sico da sobrevivência, a ne­ces­sidade ou
carência (Bedürfnis), uma espécie de falta (Not) es­tru­tural que
precede qualquer satisfação. Por ter ne­ces­sidade dos produtos
da natureza, de­­pende dela, uma de­pen­dên­cia que o converte em
servo, e à na­tu­re­za em se­nhora. Ao usufruir da natureza, dispon-
do dos seus bens, é ela que se torna a serva, e o ho­mem o seu se-
nhor. A imagem desta du­plicidade, não inteiramente cons­­ciente
e as­sumida, é enriquecida com a do balancear entre dois tipos de
posição des­nive­lada:

“A esta árvore aqui devo a minha exis­tência; se ela não existisse,


eu não po­deria existir; ela dá‑me ali­mentos, vestuário, abrigo; ela
impõe‑se‑me ao mesmo tempo pela sua ma­jes­tosa grandeza e pela
mag­nificência e impers­crutabilidade do seu peculiar ser vegetal. [...]
Enquanto ne­ces­sito dela, sou servo; en­quanto a fruo, sou senhor; na
ne­ces­si­dade, coloco‑me abaixo, na fruição acima do objecto; ali ex­
pe­riencio‑a como um ser que existe por si mesmo, indepen­den­te­
mente de mim; aqui como um ser que existe para mim.”28

A rivalidade sempre iminente e nunca resolvida reflecte-se na du-


alidade de sen­ti­mentos, processando‑se no contraste entre a hu­
mil­dade (da ca­rên­cia) e o orgulho (da fruição): “A ca­rência é [...]
te­mente a Deus, humilde, religiosa, mas a fruição é or­gu­lhosa, es­
quecida de Deus, irreverente, frívola.”29 Sentimentos que se inte-
riorizam como mecanismos psi­cológicos, num conflito interno da

28 Das Wesen der Religion (Erste Fassung), 224.

29 Das Wesen der Religion §28, GW 10, 32.

Capítulo 4

Fazer da terra uma morada. A ética da natureza, 139


segundo Ludwig Feuerbach
Adriana Veríssimo Serrão
cons­ciência, dividida entre o ine­vi­tável uso prático a que a neces-
sidade obriga e a cons­­ciência, mesmo que latente, que acom­panha
o acto praticado. Noutros ter­mos; entre a fri­volidade ou ligeireza
com que usa a natureza em seu proveito e o pe­so teórico que acom­
panha a ac­ção praticada como sendo um mal cometido, um ultraje
a um ser sen­sível des­provido de defesas:

“E a frivolidade ou, pelo me­nos, a ir­reverência da fruição é para


o homem uma necessidade prática, uma ne­ces­sidade na qual se
funda a sua existência – uma ne­cessidade que todavia se en­contra
em contradição directa com o seu respeito teó­rico face à nature-
za, en­tendida na acepção humana co­mo um ser vivente, egoísta,
sensi­tivo, o qual, tanto quanto o homem, não está dis­posto a dei-
xar cair qualquer coisa, nem a deixar que lha tirem.”30

A estrutura antropológica do domínio e da ser­vidão enraíza mais


profundamente na esfera da consciência moral que acom­­panha
este modo de estar e de usar. Não inocente, o agir du­plica‑se mo­
ral­mente na contradição da pacificação e do remorso. Uma vez que
o acto praticado contradiz o respeito, e mesmo a veneração pelo
objecto, a consciência do mal exige que a dor co­metida seja repa-
rada atra­vés de uma dor auto‑infligida. Nas re­ligiões naturais, ani-
mistas, a eliminação do sentido da culpa obtém‑se por uma gra­
tidão ritualmente con­ver­tida em sa­cri­fí­cios ou oferendas às forças
e seres naturais divinizados, restituindo‑lhes um pouco de poder
em troca do bem que lhes foi retirado. Com o decorrer da civili-
zação, quando a dependência básica, o medo dos elementos ou a
insegurança física se faz menos sentir, a eli­mi­nação do sentido de
culpa tende a ser quase total. Consuma‑se não já pela ingenuidade
30 Ibid., §28, GW 10, 32‑33.

140
da ofe­renda ou do sacrifício às divindades, mas no acto mais ex-
tremo da apro­priação: em trans­formar em meu po­der aquilo que é
poder do objecto – “tornar dependente de mim aquilo de que sou
dependente”31.
O homem autoproclama‑se, finalmente, como o senhor da
natureza, cujo poder lhe permite apagar-lhe os mistérios, anular-
-lhe a au­tonomia e dignidade, con­side­rando‑a não apenas como
meio de sustento e coisa útil, mas como coisa que pode transfor-
mar a seu bel‑prazer32.
O antropocentrismo não se confunde agora com um sim­ples
erro de visão ou um conhecimento mal orientado que poderia ser
cor­ri­gido pelo exercício da razão auto­crítica ou pela disciplina da
cultura; tão‑pouco indica a con­tra­po­sição entre tipos humanos,
ati­tu­des ou mo­­­dos de estar, como o alu­dido con­traste entre con­­­
tem­plação estética e uso utilitário. É con­dição constitutiva de uma
disposição profunda, que após compreendida na sua di­nâmica tem
de ser forte­mente reprimida nas suas manifestações. O que melhor
caracteriza o orgulho huma­no na sua relação com a natureza não é
também a figura do centro, mas a do topo, a tendência para se co­lo­
car no cume do mundo, no seu nível mais elevado, as­sumindo para
si o es­ta­tuto de ser superior. A tendência à au­to­pro­moção e con­sa­
gração de uma supe­rio­ridade define, por parte do homem, uma po-
sição de cariz moral, e mesmo po­lítico, enquanto reivindicação de
um poder e exercício de um domínio. “O homem coloca‑se agora
no topo do mundo como o alfa e o ómega dele”33.

31 Das Wesen der Religion (Erste Fassung), 242.

32 "tal como subordina fi­sicamente a Natureza, também a subor­dina es­piritualmente, teo­­


re­ticamente, ao seu entendimento, trans­forma‑se em se­nhor e legislador da Na­tu­reza.”
Ibid. , 284.

33 Ibid , 278.

Capítulo 4

Fazer da terra uma morada. A ética da natureza, 141


segundo Ludwig Feuerbach
Adriana Veríssimo Serrão
A ordem natural foi quase definitivamente invertida, subsistin-
do porém ainda e sempre um resíduo de natureza que não pode
anular, con­duzindo‑o a in­ten­sificar cada vez mais o desejo de domí-
nio. As mais diversas formas cul­turais e civili­zacionais, religiosas e
filosóficas, en­­­tram agora sob esta categoria da do­mi­na­ção, que pode
por sua vez ser reconduzida algumas modalidades fundamentais.
Uma é o ca­mi­nho cum­prido pelas religiões da subjectividade,
ou teís­mo, na figura de um Deus que cria a natureza para que o ho-
mem possa reinar sobre as demais criaturas. Outra é a tentativa de
transformar esse não‑humano que nos resiste em quase-humano,
imprimindo‑lhe subjectividade, cons­ciência, per­sonalidade, a fim de
jus­tificar indirectamente um lugar de destaque para o ho­mem, que
surge de modo subtil na teleologia objectiva do homem como fim da
na­­tu­­re­za. Outra, pelo contrário, retira-lhe vida, capacidade de fruir e
sentir, coi­si­fi­ca-a como obra sua e produto seu; começa deliberada-
mente por mecanizá-la e ma­­te­ria­lizá-la, para lhe voltar a impor, sem
resistência, os seus esquemas e categorias intelectuais ou os arbí-
trios da sua vontade34.
A História é a exibição, renovada e gradualmente intensificada
deste con­fronto, da tendência para moldar e su­plantar a natureza,
convertida em gesto de domínio. Este antropocentrismo radical,
tanto teórico como prático, tem por consequência de ser corrigido,
esta estrutura complexa de rivalidade, se não pode ser inteiramen-
te superada, deve ser fortemente disciplinada. Agora, antropologia
e ética não coin­cidem, uma vez que uma dis­po­sição natural não
conduz necessariamente a um comportamento justo:

34 Cf. Die Unsterblichkeitsfrage vom Standpunkt der Anthropologie, GW 10, 253; para a tipifi-
cação destas atitudes, através da contraposição de politeísmo e mo­no­teísmo, Das Wesen
der Religion §53.

142
“Tudo o que existe está autorizado a existir, tem justamente tanto
direito a existir quan­to eu; ao privar uma árvore dos seus frutos,
ao derrubá‑la, cometo um ultraje sobre ela.”35

Os animais, parceiros de uma comunidade paritária

A dignificação global do mundo natural torna‑se sobre­maneira evi-


dente no tr­a­­tamento da questão animal, seja na con­cep­ção da natu­
reza animal, seja na po­­­sição assumida em relação aos animais.
A primeira inscreve‑se inteiramente nos parâmetros da filo­so­­
fia da sen­si­bilidade como uma das suas implicações mais coeren-
tes. Não sendo a essência do humano nem a ra­zão pen­sante nem
o espírito independente, mas o cor­po e a sensibilidade, deixa de
fazer qualquer sentido a consideração do ani­mal não hu­mano por
oposição ao homem, como se a sua característica prin­cipal fos­­
se pre­­cisamente a falta de humanidade. Tão pouco sentido tem,
para Feuerbach, definir o hu­ma­no co­mo “animal do­tado de razão”
quanto definir o animal enquanto “des­provido de ra­zão”, atri­buin­
do‑lhe como constitutiva uma ausência e uma privação. A antro-
pologia feuerbachiana não ignora a esfera da ra­cio­na­lidade, só que
não lhe atribui inde­pendência como faculdade su­perior e dis­tinta
do sentir, englobando‑a na esfera única da sensibilidade. A própria
razão deixa de ter a acepção restrita de faculdade de pensar para
referir a totalidade da es­sência hu­mana36.
Feuerbach destaca‑se como uma voz discordante no interior
de uma longa tradição da filosofia que tratou a questão da anima-
lidade do ponto de vista do­minante da hu­­ma­nidade do humano,

35 Das Wesen der Religion (Erste Fassung), 234.

36 Grundsätze der Philosophie der Zukunft §51, GW 9, 333.

Capítulo 4

Fazer da terra uma morada. A ética da natureza, 143


segundo Ludwig Feuerbach
Adriana Veríssimo Serrão
por­tanto, numa in­tenção não absoluta, mas com­parativa – pro­
curando com essa comparação situar o es­tatuto do hu­mano e de­
terminar a sua essência – e tendencialmente de separação, quando
a diferença específica foi erigida em critério suficientemente forte
para instituir entre ambos um dua­lismo de ordens. Nos Princí-
pios da Filosofia do Futuro, a diferença entre homem e animal é re­
conduzida não à ausência de capacidade de pensar e de lingua­gem,
mas a dife­rentes modos e gradações do elemento sensível comum:

“O homem não se distingue de modo algum do animal apenas pelo


pensar. Pelo contrário, o seu ser total é a sua diferença em relação ao
animal. É certo que quem não pensa não é um homem, não todavia
porque o pensar seja a causa, mas apenas porque é uma consequ-
ência e uma propriedade necessárias da es­sên­cia hu­mana.”

E o texto prossegue, precisando o modo da diferenciação: num


caso, uma sensibilidade ampla e ca­paz de uni­ver­sa­lidade, no outro,
uma sen­­sibilidade apurada mas res­trita37. Poderemos já concluir
que o procedimento de Feuerbach não é o da exclusão (que coloca
uma clivagem intransponível, por exemplo, entre racional e irra-
cional, ou entre razão e instinto), nem o da indistinção (que hu­­ma­
niza o ani­mal ou animaliza o humano), mas o da inclusão. Apli­ca à
comparação entre ho­mem‑animal o princípio geral que rege o sen-
sível: nem a absoluta igual­dade (ou for­­ma­li­dade abstracta), nem a
inteira diferença, mas uma conjunção de semelhança e parti­cu­la­
ridade, que Feuerbach designa de paren­tes­co ou afinidade (Ver­wand­­
schaft)38. Na qualidade de sensíveis, os seres ir­ma­nam‑se segundo

37 Ibid., §54, GW 9, 335-336.

38 Ibid. , §7, GW 9, 272.

144
a afinidade, que preserva o elemento diferenciador das respectivas
qualidades distintivas e os torna assim “parentes”, num reconheci-
mento que funda uma concepção onto­­lo­gi­ca­mente comu­nitária e
eticamente igualitária ou fraternitária.
Não se colocando, nem mesmo remotamente, a hipótese
do ani­mal‑má­quina ou reduzido a comportamentos instintivos,
Feuerbach não também é ten­tado a seguir a via mais fácil para a
sua valorização, que seria a da an­tro­­­po­mor­fização dos animais pela
atribuição de fun­­­cionamentos humanos. Daqui que não pro­cure
vê‑los segundo o modelo das características humanas, como ho-
mem potencial ou incompleto, descortinando vestígios de pen­sa­
mento, capacidade de linguagem, cultura, fabrico de instrumentos
ou sentido artístico, forçando‑os as­­sim a aproximar‑se da nossa
imagem. Também neste tema mantém firme o prin­­cípio de que as
manifestações naturais devem ser entendidas por si mesmas, se-
gundo uma ana­logia não pro­jec­tiva.
Na enumeração, sem intenção sistemática, dos atributos da
sen­si­bi­li­dade animal, Feuerbach aponta‑nos um largo espectro. O
primeiro conjunto de atri­butos é referido, na Introdução a Das We-
sen des Christentums, como “cons­ciência em sentido lato”, incluin-
do o sentimento de si, a per­cepção e a ca­pa­ci­da­de de dife­ren­­ciação
sensível, sendo-lhes no entanto negada a pos­sibilidade de uma
vida in­terior ou a consciência em sentido estrito, que Feuerbach
identifica com a consciência de pertencer a um género39. Posterior-
mente, vem su­ces­siva­mente a re­co­­nhe­cer traços ca­rac­te­rísticos de
sen­sibilidade afectiva, e mes­mo mo­ral. Animais e humanos são ir-
manados na ca­pa­ci­­dade de sentir e de sofrer, que são a expressão
da vida, por possuirem a faculdade de sentir, seja positiva como a
alegria e o bem‑estar, seja negativa como o sofrimento e a dor.
39 Das Wesen des Christentums, GW 5, 28.

Capítulo 4

Fazer da terra uma morada. A ética da natureza, 145


segundo Ludwig Feuerbach
Adriana Veríssimo Serrão
No animal a vida eleva-se até ao amor – “é o amor que faz
do rouxinol um cantor”40 –, mo­vimento de ligação ao seu seme-
lhante que pro­cede da ten­dên­cia inter­sub­jectiva do im­pulso se-
xual, e mesmo de sentir e praticar um amor ab­ne­­gado para com
os par­ceiros na espécie, tal o cuidado manifesto no tra­ta­men­­to
dos fi­lhos41. O im­pul­so in­ter­subjectivo pode mesmo ultrapassar as
fron­tei­ras da es­pécie, como a fa­cul­dade por parte do cão de um
re­co­nhecimento “olhos nos olhos”, de estabelecer re­la­ções e ex-
primir o contentamento com saudações e ca­rícias42.
Inesperada será a atenção de Feuerbach aos sinais de uma
vida in­te­­rior, como as preferências e as escolhas, e a mo­vimentos
de ânimo, lutas psi­co­lógicas ou morais:

“Também nos animais se encontram lutas psi­cológicas ou mo-


rais. Apro­xi­ma‑te de um ninho e vê o combate entre egoísmo, im-
pulso de auto­con­­ser­va­ção, medo do inimigo e o amor, o cuidado
pelos filhos, vê como o pás­saro vai e voa e torna a vir.”43

E num outro fragmento refere-se à consciência das ac­­ções pratica-


das e do resultado obtido:

“O animal não tem apenas ‘consciência de situação’, tem também


cons­ciência das suas acções. Veja‑se apenas como a consciência
de uma ac­ção completa, de uma acção cujo cumprimento exige co­
ra­gem e ha­bi­li­da­de ou uma ca­pa­cidade especial, torna orgulhoso
40 Ibid., GW 5, 99-100.

41 Ibid., GW 5, 178‑179.

42 arl Grün, Ludwig Feuerbach in seinem Briefwechsel und Nachlaß sowie in sei­ner phi­lo­sophischen
Charakterentwicklung. Leip­zig und Hei­del­Berg: C. F. Win­ter Ver­lag, 1874, II, 331.

43 bid., 332.

146
o animal, por exemplo, o cão de ca­ça que atacou e do­mi­nou uma
raposa.”44

Quanto à posição relativamente aos animais podemos se-


guir uma coe­rente série de passagens, que demonstram bem a
exigência de uma postura ética es­tendida aos sentientes não-
‑humanos, dignificados como sujeitos, portadores de ca­pa­cidade
de sentir. Em geral, denuncia os modos negativos, desde a in­
dife­ren­ça pela sua morte considerada como um acontecimen-
to natural em con­traste com o dramatismo associado à morte
humana45, à rudeza no seu tratamento e ao uso para a vaidade
humana. Inequívoca é a condenação da ex­perimentação e da vi­
visecção, correlato do mecanicismo que persiste na ciência ana-
lítica, alvo de pro­­funda crítica por coisificar e destituir qualquer
ser do carácter de sujeito ao pro­ceder ao seu des­mem­bramento
e romper a unidade vital.
A par da condenação da violência e do sofrimento, Feuerbach
proclama, numa pers­pectiva de contornos jurídicos, para a insti-
tuição de um direito ima­­nente. Há por parte dos seres naturais um
direito originário plenamente iden­tificado: o direito à vida, e a uma
vida plena, que todavia não podem expressar nem rei­vindicar:

“Entre nós, proibimos com esperteza e egoísmo o crime e o


rou­bo, mas em re­lação a outros seres, em relação à natureza,
todos nós somos as­sas­sinos e la­drões. Quem me concede o di-
reito sobre a lebre? A ra­posa e o abu­tre têm tanta fome e direito
a existir quanto eu. Quem me con­ce­de o direito sobre a pera?

44 Ibid., 331.

45 Nach­trägliche Bemerkungen (1847), GW 10, 309 ss.

Capítulo 4

Fazer da terra uma morada. A ética da natureza, 147


segundo Ludwig Feuerbach
Adriana Veríssimo Serrão
Ela pertence igual­mente à formiga, ao lagarto, ao pás­saro, ao
qua­drú­pede.”46

O homem é res­pon­sável pelo direito de todos à vida, o su-


premo valor, o de­­legado do querer‑viver dos restantes seres.
Faz‑se portador de uma lei que os rege mas que eles não co-
nhecem nem po­dem reivindicar, mais precisamente a mais in­
con­dicional lei jurídica e moral: a interdição de matar, e não
apenas os ani­mais complexos, mas também aqueles que embo-
ra ínfimos, insi­gnifi­cantes, incó­mo­dos, com os quais não entra
em relação afectiva imediata:

“Quando esmago uma pulga, porque me picou, recuso deste


modo a necessidade da sua exis­tência; retiro‑a da conexão or­
gânica consigo e com o restante mundo; fixo dela apenas a pi-
cada, assim como o jurista ou o moralista julga do homem que
rou­ba apenas o roubo, esta pi­cada no coração do amor pró-
prio e do amor da pro­­priedade. Em suma: a pulga pica, mas
não deve picar, pe­lo menos a mim. A pi­cada da pulga é um cri-
me de lesa- ma­jestade do impulso hu­mano para a fe­li­cidade.
Mas a pulga não pode picar se não existir; logo, não de­ve existir;
lo­go, tem de morrer.”47

46 Vorlesungen über das Wesen der Religion, GW 6, 356. O uso explícito do conceito de direito,
extensivo a seres não‑humanos, excede o entendimento jurídico do di­reito como cor­relato
do dever – só tem direitos quem tem de­veres. Diferencia Feuerbach de outros filó­­sofos, por
exemplo, de Kant – para quem o homem tem de­ve­res para com os animais, mas não os ani-
mais di­reitos – e antecipa o ma­ni­festo igualitário de Henry Salt, Animal’s Rights Considered in
Relation to Social Progress (Londres, 1892), con­si­derado um dos fundadores do movimento dos
direitos dos animais.

47 Über Spiritualismus und Materialismus besonders in Beziehung auf die Willens­freiheit, GW 11, 96.

148
Esta lei descentra e ao mesmo tempo centra o ho­­mem; põe‑no fora
de si no seio do mundo, e de novo em si, no lugar de de­fen­sor uni­
versal. Com­preen­dendo que deve prescindir de um direito exclu-
sivo que tomou por usur­­pa­­ção e que é lhe in­de­vido, prescindir da
morte gratuita é ressarcir‑se de uma dívida já con­traída, de um ul-
traje anteriormente cometido48.

Da moralidade à ética: o homem como Tu da natureza

Estando cabalmente evidenciado que a concepção feuer­bachiana


da mo­ralidade não se res­tringe à esfera interna das relações entre
hu­ma­­­­nos, fica igual­mente justificada a vertente objectiva da mora-
lidade da na­­­tureza, isto é, o re­co­nhe­­cimento do valor inerente e dos
de todos os se­­­­­res na­tu­rais. Im­porta agora precisar em que medi-
da este alar­gamento à ordem extra‑hu­mana reverte tam­bém sobre
uma ética da natureza, ou mais rigorosamente, uma ética pa­ra com
a natureza, uma vez que para Feuerbach moralidade e eticidade não
coin­cidem. Na sua globalidade a natureza oferece já um paradig-
ma moral de matriz ju­rídico‑política quando é apreen­dida como
re­­­pública, segundo as determinações da universalidade e igual­dade
de estatuto, da coexistência ho­­rizontal, des­tituída de hierarquias e
pri­vilégios, e da acção recíproca entre todos os seres:

“A natureza não tem um princípio nem um termo final. Nela tudo


se encontra em acção recíproca; tudo é relativo, tudo é ao mesmo

48 Não deverá também esquecer que o bem‑estar e o progresso humano foram em grande par-
te alcançados com o auxílio dos animais, referindo-se-lhes Feuerbach expressamente como
tendo aju­da­do o homem “a sair da animalidade”; Das Wesen der Religion §5, GW 10, 6. Feuerbach
mostra conhecer bem a importância dos cultos aos animais, tanto nas culturas primitivas,
como em formas de religiosidade mais elaborada, tal o jainismo, tema de­sen­volvido nas Vorle-
sungen über das Wesen der Religion (6.ª e 7.ª Conferências).

Capítulo 4

Fazer da terra uma morada. A ética da natureza, 149


segundo Ludwig Feuerbach
Adriana Veríssimo Serrão
tempo efeito e causa; ne­la tudo é omnilateral e recíproco; ela não
converge para qualquer vértice mo­nár­quico; ela é uma república.”49

O modelo comunitário da moral enquadra a pers­­­pec­tiva ética como


seu prin­cípio de máxima generalidade, mas é incapaz de a explicar
totalmente, uma vez que a ética diz res­pei­to à ac­ção de um indivíduo
singular concreto e situado, co­­­lo­­cando‑se portanto na re­la­ção di­recta
com um outro igual­mente singular con­cre­to e situado. Conjugando
as duas vertentes fun­damentais do seu pensamento – a filosofia da
sensibilidade, na sua tendência à plenitude, e a filosofia da inter­sub­­
jec­tividade, como movimento para o outro – Feuer­bach subordina o
agir ético ao princípio da rea­lização con­junta do “meu bem e do bem
do outro” ou princípio da feli­ci­dade bilateral e omnilateral50.
Ampliando a ideia ética que sustenta a vivência con­creta, tam-
bém à na­tu­reza se deve considerá‑la como um tu e fazer‑lhe bem,
encarando‑a numa ati­tude de re­ci­procidade e paridade semelhante
à relação que liga o ho­mem ao outro ho­mem. É esta relação po-
sitiva e expansiva que ao envolver os seres da natureza é por sua
vez devolvida por estes e revertida sobre o homem. Quando trata a
na­tu­reza como tu, esta converte por sua vez o homem num tu, no
tu da na­tureza:

“Mas o que vale para o homem face ao homem, vale também


para ele face à na­tu­reza. Ele é não apenas o eu, mas também o
tu da natureza.”51

49 Vorlesungen über das Wesen der Religion, GW 6, 115.

50 Über Spiritualismus und Materialismus besonders in Beziehung auf die Wi­llens­freiheit, GW 11, 73.

51 Carta a Julius Duboc (27 de Novembro de 1860), GW 20, 311.

150
A diferenciação entre moral e ética permite que se cruzem sem
con­tradição duas orientações complementares: de um lado, a de-
fesa do valor inerente, isto é a posição objectiva de direitos intrín­
se­cos universais; do outro, o apelo a uma atitude sub­jectiva, que
tanto pode ma­ni­festar‑se através de sentimentos altruísticos (sim­
pa­tia e com­paixão, respeito, cui­dado e amor) ou como acção con­­
creta que age efectivamente para fazer o bem e evitar ou minimizar
o mal52. Se o sentimento de altruísmo revela já uma ética mínima, é
somente no agir que a eticidade se con­cre­tiza: ética é a acção quer
fazer o bem. O sujeito ético torna-se assim inteiramente respon-
sável pelo seu agir, que en­vol­ve o outro e intervém na sua esfera,
causando-lhe be­ne­fí­cio ou dano.
Feuerbach defende uma posição de paridade, distante da unila­
te­ra­li­dade de um naturalismo indiferente ao homem e de um huma-
nismo in­diferente à na­tureza, como exemplifica nas suas Con­­fe­rên­cias
sobre a es­sên­cia da religião a pro­pósito da terra e dos seus pro­dutos. De
um lado, a sen­ten­ça im­perativa: “ordeno‑te que me dês uma boa co-
lheita”, exemplifica a violência da vontade que impõe a medida huma-
na. Do outro a sú­plica in­fan­til que implora: “por favor, dá‑me uma boa
colheita”, exemplifica a atitude do não‑agir, a demis­são de intervir53.
Nem a autorização para exercer uma dominação sem limi-
tes, nem a de­sis­tência que retira ao homem o seu posto e res-
tringe a sua ca­pa­ci­dade de intervir. A posição equilibrada de
Feuerbach concede ao homem a espe­cifi­cidade de com­po­sitor
do mundo: “Mozart, há um só. Este Mozart da na­tu­reza, pelo

52 Zur Moral­phi­lo­so­phie (1868). Kritisch revidiert von Werner Schuf­fenhauer in: So­li­darität oder
Egoismus. Studien zu ei­ner Ethik bei und nach Lud­wig Feuerbach. Ber­lin: Aka­demie Verlag, 1994,
414‑415.

53 Vorlesungen über das Wesen der Religion, GW 6, 356.

Capítulo 4

Fazer da terra uma morada. A ética da natureza, 151


segundo Ludwig Feuerbach
Adriana Veríssimo Serrão
menos da Terra, é o homem.”54 O compositor não domina, re-
elabora, molda e afei­çoa; é autor de produções originais, mas
não criador; não destrói nem altera a produtividade imanente,
embeleza e hu­maniza55.
O homem está portanto autorizado a dispor das potencialida-
des que a natureza propicia e a usufruir delas, desde que as to­me
como um bem em si mes­mas, na óptica da benevolência e do bene-
fício, não da utilidade e do proveito56. Na con­jun­ção indissociável
de um Hu­ma­nismo que contém a na­tu­re­za e um Na­tu­ralismo que
contém o homem re­­co­nhe­ce-se o novo paradigma de uma cola­bo­
ração amigável, próximo de um “de­sen­vol­vi­mento sustentável” e
dis­tante de qual­quer funda­mentalismo ecológico.
Persiste por vezes nos textos alguma indistinção entre o plano
descritivo e prospectivo. Entre o que já é e o que se pode e deve
vir a ser. Mas aqui, no ca­so da éti­ca para com a natureza, prevalece
sem margem para dúvidas a pers­pec­tiva do futuro, do projecto. O
homem é um filho da Natureza, que não deixará de ser sem­pre a
fonte da vida, a Mãe. Porém, sublinha Feuer­bach, a relação com ela
terá de ser con­quis­­tada de forma adulta:

“A ver­dadeira cultura e o verdadeiro dever do homem é aceitar e


tratar as coisas co­mo elas são, não fazer delas nem mais nem me-
nos do que são. [...] O nosso dever é evitar os extremos [...] e consi-
derar, tratar e re­ve­ren­ciar a natureza co­­­mo ela é – como nossa mãe.
[...] tal como não ne­ces­si­ta­mos de per­ma­necer so­mente no nível

54 Carta a K. Th. Pfautz (15 de Julho de 1850), GW 19, 40.

55 Sobre a diferença entre destruir, que altera a essência íntima e profunda, e em­be­lezar, que
apenas modifica e melhora a superfície, Das Wesen des Christentums, GW 5, 310.

56 “Uma coisa é útil (nützlich) em virtude de um outro ser, benéfica (wohltätig) é‑o por si
mesma.” Das Wesen der Religion (Erste Fassung), 318.

152
da criança no relacionamento com a nossa mãe hu­­­ma­na, também
devemos encarar a natureza não com os olhos de crian­ças, mas
com os olhos do adulto, do homem consciente de si mesmo.”57

É irrelevante que Feuerbach desconhecesse os conceitos científi-


cos de am­­­biente ou ecossistema ou que se encontrasse afastado
dos já nas­centes mo­vimentos de defesa dos direitos dos animais.
Basta que a sua filosofia contemple a de­núncia do antropocentris-
mo e a sua ética seja também a recusa de um lugar es­pecial, de pri-
vilégio, do ser hu­ma­no, a contestação da tendência para se co­locar
no vértice do mundo como ser eleito por origem ou por pretenso
mérito rei­vin­dicado como um direito.
Transformar a natureza numa morada poderá sintetizar o espí-
rito da ética feuer­­­­bachiana da natureza, um projecto que a história
posterior não viria infe­liz­mente a confirmar:

“É apenas o homem que, graças à sua ordenação e formações,


imprime à na­tu­reza a marca da consciência e do entendimento;
foi apenas ele que a pou­­co e pou­co, no curso dos tempos, trans-
formou a Terra numa morada (Wohnung) ra­cio­nal, ade­qua­da ao
homem, e virá um dia a trans­formá‑la numa morada ainda mais
hu­ma­na, ain­da mais racional do que agora é.”58

57 Vorlesungen über das Wesen der Religion, GW 6, 46‑47.

58 Ibid., GW 6, 193-194.

Capítulo 4

Fazer da terra uma morada. A ética da natureza,


segundo Ludwig Feuerbach baracoa
editora

Adriana Veríssimo Serrão


Paulo A. E. Borges
Universidade de Lisboa

Professor do Departamento de Filosofia da


Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
e investigador do Centro de Filosofia da mesma
Universidade. Coordenador do Seminário Perma-
nente Vita Contemplativa. Práticas Contemplativas
e Cultura Contemporânea. Presidente do Círculo
do Entre-Ser, associação filosófica e ética. Doutor
Honoris Causa pela Universidade Tibiscus de
Timisoara, Roménia, em 2017. Autor de centenas
de comunicações e conferências, artigos e outros
textos em revistas científicas e obras colectivas,
publicados em Portugal, Espanha, França, Itália,
Alemanha, Roménia, Turquia, EUA, Índia e Brasil.
Autor e organizador de 51 livros de filosofia, poe-
sia, aforismos, ficção e teatro.

CV: http://www.tmp.letras.ulisboa.pt/departfi-
los-docentes/672-pauloborges
E-mail: pauloaeborges@gmail.com
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-0973-556X

155
Abertura da Consciência e Mu-
dança de Civilização. Repensar a
Natureza, a Terra e Eros a partir
de Hesíodo

Resumo: Procuramos investigar


se a crise ambiental contem-
porânea e algumas reacções
ecológicas a ela não procedem
de um mesmo modelo dominan-
te de percepção da realidade, em
que a Natureza e a Terra surgem
como um objecto, a explorar ou
a defender, perante o sujeito
humano. Para tal, procede-se a
um repensar da Natureza e da
Terra a partir das três primeiras
instâncias da teocosmogonia de
Hesíodo - Caos, Gaia e Eros – e
propõe-se que só uma abertura
não-dualista da consciência
pode originar uma mutação
civilizacional.

Palavras-chave: Natureza, Terra,


Eros, Consciência, Civilização

156
Opening Awareness and
Civilizational Shift. Rethinking
Nature, Earth and Eros from
Hesiod

Abstract: We seek to investi-


gate whether the contempo-
rary environmental crisis and
some ecological reactions to
it do not come from a same
dominant model of reality
perception, in which Nature
and Earth appear as an object,
to explore or defend, before
the human subject. For this, a
rethinking of Nature and Earth
is made from the first three
instances of the theocosmo-
gony of Hesiod - Chaos, Gaia
and Eros - and we propose that
only a non-dualistic opening of
awareness can lead to a civili-
zational shift.

Keywords: Nature, Earth, Eros,


Consciousness, Civilization

157
Capítulo 5

Abertura da
Consciência e Mudança
de Civilização.
Repensar a Natureza, a
Terra e Eros a partir de
Hesíodo
Paulo Borges
Universidade de Lisboa

Nunca como hoje, em que no chamado Antropoceno ocorre uma


extinção massiva da biodiversidade gerada por causas humanas,
se falou tanto de crise ambiental e da necessidade urgente de
preservar a Natureza e a Terra. Como reacção a um ciclo de ci-
vilização que olha para a Natureza e a Terra como uma reserva
inesgotável de recursos a explorar para satisfazer as necessidades,
os interesses e os desejos dos seres humanos, surgem a ecologia
e o ambientalismo que as visam proteger dessa exploração, seja
para preservar os seres humanos das suas consequências noci-
vas, como na ecologia superficial ou antropocêntrica, seja para
preservar o mundo natural e terreno, ao qual se reconhece um

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 159


Editora Baracoa — 2019
valor intrínseco, como na ecologia profunda, segundo a distinção
estabelecida por Arne Naess 1.
Cabe todavia interrogar se a reacção às consequências extre-
mas de um ciclo de civilização não pode fazer parte ainda do mes-
mo ciclo de civilização e se não se impede, com isso, de se abrir
a um novo começo. Cabe também interrogar se um ciclo de civi-
lização não supõe sempre um ciclo de consciência e de cultura,
ou seja, um modo predominante de percepcionar a chamada rea-
lidade, e se as reacções ecológicas à exploração da natureza pela
civilização do capitalismo ou socialismo industrial, produtivista
e tecnocientífico se movem num outro regime de consciência e
de percepção da natureza das coisas que inaugure a possibilidade
de uma nova cultura e de uma nova civilização. Cumpre assim
primeiro que tudo interrogar o que são na verdade essa Natureza
e essa Terra que uns consideram legítimo explorar e rentabilizar
para benefício da espécie humana, ou da economia capitalista
mundial, e outros consideram imperativo proteger para salva-
guardar o seu valor intrínseco ou para salvaguardar o ser humano,
na medida em que dela não está separado e sofre as consequên-
cias da sua actividade predadora, pondo mesmo em risco a sua
sobrevivência por via das alterações climáticas, do esgotamento
dos recursos naturais, da poluição do solo, da água e do ar, confor-
me repetidamente alertam os relatórios científicos. Não haverá
à partida, nesta visão da Natureza e da Terra como algo a explo-
rar ou a proteger, algo de estranhamente comum, precisamente a
ideia da Natureza e da Terra serem um ob-jecto, ou seja, algo que
está aí fora, como uma entidade existente em si e por si, lançado
contra o sujeito que o percepciona como distinto de si mesmo?

1 Cf. Arne NAESS, “The Shallow and the Deep, Long-Range Ecology Movement. A Summary”,
Inquiry, 16 (1973), pp.95-100.

160
Não haverá aqui uma dualidade inscrita nos hábitos de percepção
e por consequência nos planos de acção de muitos dos próprios
pensadores e activistas que mais rejeitam essa dualidade, como
é o caso dos adeptos da ecologia profunda? O que poderão ser
então a Natureza e a Terra e que possa estar a escapar quer aos
seus agressores, quer aos seus defensores? Tomemos apoio, na
nossa reflexão, num dos textos fundadores da cultura ocidental, a
Teogonia de Hesíodo, do século VIII AEC.
Invocando as Musas para que lhe contem como nasceram os
deuses e todas as coisas, “começando pelo início”, a palavra inspi-
rada do poeta declara, no que nos propomos interpretar como uma
história vertical da constituição do mundo como um todo:

“Então, antes de tudo, foi o Caos; depois Gaia de largos flancos,


fundamento seguro para sempre oferecido a todos os viventes, e
Eros, o mais belo entre os deuses imortais, aquele que desfaz os
membros e que, no peito de todo o deus como de todo o homem,
domina o coração e o sábio querer” 2

As três instâncias originárias, que se sugere terem aparecido


sucessivamente, são Caos, Gaia e Eros. Todavia, a sua sucessão
pode não ser horizontal e temporal, mas antes vertical e deste
modo dar-se intemporalmente e a cada instante 3.
2 Cf. HESÍODO, Teogonia, 116-122. Seguimos a tradução de Paul Mazon, com excepção da des-
ignação das três instâncias iniciais, onde mantivemos os termos gregos, em vez de “Abismo”,
“Terra” e “Amor”: HESÍODO, Théogonie, in Théogonie / Les Travaux et les Jours / Le Bouclier,
edição bilíngue grego-francês, texto estabelecido e traduzido por Paul Mazon, Paris, Les Belles
Lettres, 1986, 2ª edição, p.36.

3 Para uma interpretação subtil desta sucessão, que acompanhamos em parte, mas não na
identificação do Caos com o “vazio” enquanto “pura negatividade”, cf. Jean-Pierre VERNANT,
“Cosmogonies et mythes de souveraineté”, in Jean-Pierre VERNANT e Pierre VIDAL-NAQUET, La
Grèce Ancienne. 1. Du mythe à la raison, pp.116-121.

Capítulo 5

Abertura da Consciência e Mudança de Civilização. 161


Repensar a Natureza, a Terra e Eros a partir de Hesíodo
Paulo Borges
Quanto ao Caos, a sua natureza é ambivalente, podendo ser
interpretado como o que há antes de tudo o mais, mas também
como o que aparece como termo primeiro de uma série. No pri-
meiro caso seria a designação da natureza primordial e intemporal,
anterior a toda a manifestação, enquanto que no segundo indicaria
a primeira figura de uma manifestação sugerida como uma génese
progressiva a partir de algo completamente ignoto. Seja como for,
Kháos em grego tem os sentidos de abismo, do que se escancara
completamente, do que é vasto e vazio, derivando da raiz proto-in-
do-europeia *ghai, que significa bocejar, abrir a boca, olhar de boca
aberta, pasmar, escancarar-se.
O Caos sugere na obra de Hesíodo um espaço vazio e imensu-
rável, antes de assumir o sentido negativo de “Confusão universal”,
que lhe é dado pelos Estóicos 4 e por Aristóteles 5 e que transparece
também em As Metamorfoses de Ovídio, designando aí a “aparência
única” e indistinta da “natureza”, antes da diferenciação do “mar”,
da “terra” e do “céu”, como “massa informe e confusa” e “acumula-
ção num mesmo todo de germes díspares dos elementos das coisas,
sem ligações entre eles”, antes que “um deus, ajudado pelo progres-
so da natureza”, separasse, distinguisse e ordenasse esses elemen-
tos, dando lugar ao cosmos 6. É o sentido de caos como confusão que
se estabelece nas línguas europeias a partir do século XVII, também
sob a influência do seu uso teológico na Vulgata do Génesis para tra-
duzir o tohû bohû hebraico, o estado de uma terra deserta e vazia ao

4 Cf. Jean-Pierre VERNANT, “Cosmogonies et mythes de souveraineté”, in Jean-Pierre VERNANT


e Pierre VIDAL-NAQUET, La Grèce Ancienne. 1. Du mythe à la raison, Paris, Éditions du Seuil, 1990,
p.116.

5 Cf. ARISTÓTELES, Metafísica, XII, 7, 1072 a.

6 Cf. OVÍDIO, Les Métamorphoses, tradução, introdução e notas de J. Chamonard, Paris, Garni-
er-Flammarion, 1966, p.41.

162
ser criada por Deus, antes da posterior diferenciação e ordenação do
mundo pelo espírito divino (Génesis, 1, 2).
O Caos em Hesíodo não é todavia confusão, o que supõe a mistura
de elementos previamente existentes e com naturezas distintas, mas
sim uma abertura infinita, um espaço vazio sem limites ou contornos.
É isso que mostra a sua etimologia, afim à do sânscrito kha, que signi-
fica espaço vazio e zero 7. Kha, no Rig-Veda, é concretamente o centro
vazio da roda onde se insere o eixo 8. Dele, e da boa inserção em si do
eixo que une as rodas, depende o bom movimento do carro. Sendo
a roda um símbolo universal do movimento da vida 9, experienciada
como via ou viagem, compreende-se que na mesma tradição indiana,
hindu e budista, sukkha, ou seja, a boa inserção do eixo ou do cubo
no centro vazio da roda, designe a felicidade, e dukkha, a má inserção,
signifique sofrimento 10. Por analogia, uma vida bem ajustada ao, ou
bem centrada no, espaço vazio e infinito que é o âmago de tudo, é
uma vida que corre bem, ao passo que uma vida mal ajustada ou mal
centrada nesse mesmo espaço é uma vida que corre mal.
Kha, em sânscrito, significa também zero, cuja invenção, com
a consequente revolução do cálculo, ocorreu na Índia. Entre outras
palavras sânscritas que também significam zero estão śūnya, pūrna,

7 Cf. Franco RENDICH, Comparative Etymological Dictionary of Classical Indo-European languages.


Indo-European - Sanskrit – Greek – Latin, traduzido por Gordon Davis, CreateSpace Indepen-
dent Publishing Platform, 2014, 2ª edição revista e aumentada, pp.136-137.

8 Cf. Ananda K. COOMARASWAMY, “Kha y otras palavras que significan “cero” en relación con la
metafísica índia del espacio”, in El Vedanta y la tradición occidental y otros ensayos, tradução de
Agustín López y Maria Tabuyo, Madrid, Ediones Siruela, 2001, p.255.

9 Cf. Jean CHEVALIER / Alain GHEERBRANT, “Roue”, in Dictionnaire des Symboles, Paris, Robert
Laffont Jupiter, 1990, edição revista e aumentada, pp.826-830.

10 “Kha designe em effet le centre vide de la roue d’un char, là où s’emboîte le moyeu. Avec le
préfixe négatif du (qui existe aussi em grec ancien: dys-harmonie), duhkha designe um “mal-
aise”, um “mal-être”, plutôt qu’une douleur” – Roger-Pol Droit, Le Silence du Bouddha et autres
questions indiennes, Paris, Hermann Éditeurs, 2010, p.19.

Capítulo 5

Abertura da Consciência e Mudança de Civilização. 163


Repensar a Natureza, a Terra e Eros a partir de Hesíodo
Paulo Borges
ākāśa e ananta, ou seja, vazio, plenitude, espaço e infinito. Tal como
o zero contém todos os números possíveis, assim o vazio implica a
plenitude de todas as possibilidades. O espaço sem centro nem peri-
feria é o infinito, o vazio pleno 11. É desse ākāśa, o espaço primordial,
sem dimensões, que, segundo o Chāndogya Upanishad, todos os seres
se originam e é para ele que retornam. Segundo o mesmo texto, é por
isso que tal espaço infinito é “o objectivo deste mundo” 12. Esse es-
paço infinito, matriz de todo o cosmos, não é todavia exterior, sendo
antes o “espaço no interior do coração” no qual “tudo está concen-
trado”, o inteiro macrocosmos 13.
Se o Kháos grego de Hesíodo e o kha dos textos sagrados indianos
têm a mesma origem, a imagem caótica do Caos, oposta à da ordem
cósmica, dissipa-se para desvelar um ilimitado espaço primordial que
é o fundo sem fundo de tudo o que nele e a partir dele emerge como es-
pontânea expressão de todas as virtualidades nele contidas. O Caos re-
vela-se um “Chaosmos”, magistral expressão cunhada por James Joyce
em Finnegans Wake. O Caos mostra-se um vazio fecundo, exuberante
dos “dez mil seres”, ou seja, de todos os seres, que continuamente dele
emergem e a ele regressam, como se diz no Tao Te King de Lao Tsé 14.
Este Caos não deixa de poder ser sinónimo do que outras tradições
designam como Deus, se pensado para além da entificação do teísmo
11 Cf. Ananda K. COOMARASWAMY, “Kha y otras palavras que significan “cero” en relación con la
metafísica índia del espacio”, in El Vedanta y la tradición occidental y otros ensayos, pp.255-262.
Cf. também Void and Fulness in the Buddhist, Hindu and Christian Traditions. Śūnya – Pūrna –
Plerôma, editado por Bettina Bäumer e John R. Dupuche com um discurso conclusivo de S. S.
o Dalai Lama, Nova Deli, D. K. Printworld, 2005; Paulo BORGES, Vazio e Plenitude ou o Mundo às
Avessas, Lisboa, Âncora Editora, 2018, pp.12-14.

12 Cf. Chāndogya Upanishad, I, IX, 1, in R. C. ZAEHNER, Hindu Scriptures, traduzido e editado por
R. C. Zaehner, Londres, Everyman’s Library, 1992, p.105.

13 Cf. Ibid., VIII, I, 3, p.155.

14 Cf. Lao TSE, Tao Te King, XVI, 1, traduzido e comentado por Marcel Conche, Paris, PUF, 2005,
p.119.

164
metafísico-teológico como o puro infinito, consoante O Livro dos XXIV
Filósofos: “Deus est sphera infinita cuius centrum est ubique, circum-
ferentia vero nusquam” (“Deus é a esfera infinita cujo centro está em
todo o lado e a circunferência em lado algum”) 15. Nesse sentido Eudo-
ro de Sousa o alegorizou como “Excessividade Caótica” 16.
Note-se que Ovídio identifica o Caos com a “natureza” no
estado primordial. A natura latina é a physis grega, que é o tema
central do pensamento pré-socrático e que num hino órfico surge
enaltecida como “imortal, primigénia”, “autoengendrada” e “cria-
dora de todas as coisas”, sendo “vida eterna” que se renova pe-
las suas “mudanças de forma”. Só ela é “tudo”, pois só ela produz
tudo17. A physis dos primeiros filósofos gregos é em geral interpre-
tada como tendo três sentidos relacionados: 1) substância primor-
dial ou principial, arché; 2) processo de surgimento/crescimento
ou génesis; 3) princípio interno organizador e estruturante 18. Physis
vem do verbo phúein, com o sentido de “crescer” ou “fazer cres-
cer”19. Heidegger viu-a como um processo de auto-expansão, de
manifestação e abertura, de aparição 20. Enquanto tal, configura o

15 Cf. Le Livre des XXIV Philosophes, traduzido do latim, editado e anotado por Françoise Hudry,
prefácio de Marc Richir, Grenoble, Éditions Jerome Millon, 1989, pp. 93 e 95.

16 Cf. Eudoro de SOUSA, Mitologia, in Mitologia. História e Mito, apresentação de Constança


Marcondes César, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2004, pp.52-53.

17 Cf. “Hino X”, in PORFÍRIO, Vida de Pitágoras. Argonáuticas Órficas. Himnos Órficos, introduções,
traduções e notas de Miguel Periago Lorente, Madrid, Editorial Gredos, 1987, pp.175-176.

18 Cf. F. E. PETERS, Termos Filosóficos Gregos. Um léxico histórico, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, prefácio de Miguel Baptista Pereira, tradução de Beatriz Rodrigues Rosa, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 1977, pp.189-190.

19 Cf. Marlène ZARADER, Heidegger et les Paroles de L’Origine, prefácio de Emmanuel Lévinas,
Paris, J. Vrin, 1990, p.35.

20 Cf. Martin HEIDEGGER, Introduction à la Métaphysique, traduzido do alemão e apresentado


por Gilbert Kahn, Paris, Gallimard, 1985, p.26.

Capítulo 5

Abertura da Consciência e Mudança de Civilização. 165


Repensar a Natureza, a Terra e Eros a partir de Hesíodo
Paulo Borges
modo pelo qual o “ser” foi pensado na aurora da filosofia ocidental,
sendo essa mesma abertura, ou “eclosão no aberto”, mas que si-
multaneamente se recolhe e retira – “A physis gosta de se ocultar”,
diz Heraclito 21 - , o que em grego se designou como a-létheia, ver-
dade, des-velamento, processo assim originalmente inerente ao ser e
não ao seu conhecimento humano 22. É todavia neste processo que
se constitui tudo e do qual tudo depende, mesmo as actividades do
homo sapiens e faber que mais parecem opor-se à natureza, como a
cultura e a civilização tecnocientíficas com a economia capitalista
e a nova religião ou superstição do trabalho, da produção, do con-
sumo e do crescimento económico ilimitado.
O Kháos em Hesíodo, o espaço vazio e infinito, pode ver-se
assim como a própria physis, a natureza primordial na sua aber-
tura genesíaca, e esta por sua vez como o ser no seu des-velamento
tensional, no seu mostrar-se ocultando-se, pois ao manifestar-se
assume múltiplas formas que se configuram no fundo informe
e insubstancial de não-manifestação que deste modo tendem a
encobrir e dissimular, na medida em que a consciência que as
percepciona se fixe nos contornos que aparentemente as indivi-
dualizam, distinguem e separam umas das outras e não veja que
em todas elas sempre transparece o mesmo vazio. Ou seja, que,
como no exemplo do Tao Te King, a forma de um vaso é feita tanto
de matéria – yu, o que há - como do vazio interno e externo – wu,
o que não há - no qual se constitui e que lhe confere a funciona-
lidade de recipiente 23. Vazio e formas são indissociáveis, como o

21 Cf. HERACLITO, Fragments, 69, texto estabelecido, traduzido e comentado por Marcel Conche,
Paris, PUF, 1987, 2ª edição, p.253.

22 Cf. Id., “Ce qu’est et comment se determine la Physis”, in Questions II, traduzido por
François Fédier, Paris, Gallimard, 1987, pp.274 e 276.

23 Cf. Lao TSE, Tao Te King, II, 2 e XI, pp. 47 e 93.

166
verso e o reverso de toda a realidade. Como diz o Prajña Paramita
Sutra budista: “As formas são vazias; a vacuidade, ela mesma, é
as formas; a vacuidade não é diferente das formas; as formas não
são diferentes da vacuidade” 24. O cosmos é um caosmos.
Mas qual a aparição que surge no fundo sem fundo do Kháos?
O texto de Hesíodo é claro: “Então, antes de tudo, foi o Caos; de-
pois Gaia de largos flancos, fundamento seguro para sempre ofe-
recido a todos os viventes (...)” 25. A primeira epifania do Kháos é
Gaia, a Terra, que representa o surgimento no infinito de uma base
de apoio e sustento para todas as formas de vida. Gaia é a forma do
infinito e assim a forma de todas as formas. Gaia é a mitopoética
expressão do fundo universal do ser, o Grunt da mística e da me-
tafísica de Mestre Eckhart, que, enquanto inscrito ou in-fundado
no Caos ou Infinito primordial, é ele mesmo Abgrund, abismo, ou
Ungrund, não-fundo, sem deixar de ser Urgrund, fundo primor-
dial26. Gaia, a Terra, é a forma do informe e o fundo sem fundo
ou o insustentado sustento de tudo, sendo indissociável do Caos
onde surge e de todos os viventes de que é matriz e nutriz. Gaia, a
Terra, “de largos flancos”, é a figura mais arcaica do sagrado e do
divino, antes do imaginário indo-europeu ter concebido os deuses
e Deus - conforme a sua etimologia na raiz indo-europeia dei-, que

24 Cf. Soûtra du Coeur de la Connaissance Transcendante, in Soûtra du Diamant et autres soûtras


de la Voie médiane, traduções do tibetano por Philippe Cornu, do chinês e do sânscrito por
Patrick Carré, Paris, Fayard, 2001, p.88.

25 Cf. HESÍODO, Teogonia, 116-122. Seguimos a tradução de Paul Mazon, com excepção da
designação das três instâncias iniciais, onde mantivemos os termos gregos, em vez de “Abis-
mo”, “Terra” e “Amor”: HESÍODO, Théogonie, in Théogonie / Les Travaux et les Jours / Le Bouclier,
edição bilíngue grego-francês, texto estabelecido e traduzido por Paul Mazon, Paris, Les Belles
Lettres, 1986, 2ª edição, p.36.

26 Cf. Meister ECKHART, Predigten, 52, traduzido por Joseph Quint, editado e comentado por
Niklaus Largier, Frankfurt sobre o Meno, Deutscher Klassiker Verlag, 2008, p.555. Cf. Martin
HEIDEGGER, Introduction à la Métaphysique, p.15.

Capítulo 5

Abertura da Consciência e Mudança de Civilização. 167


Repensar a Natureza, a Terra e Eros a partir de Hesíodo
Paulo Borges
designa “tudo o que brilha” - afins à luminosidade do céu aberto
ou dos astros 27 e com forma masculina. Gaia, a Terra, é a figura
da arcaica Grande Deusa-Mãe que gera, acolhe, sustenta e nutre
“todos os viventes” 28. Não um princípio transcendente que go-
verna um universo hierárquico, como nas metafísicas e teologias
de matriz indo-europeia, mas um fundo sem fundo imanente que
abraça igualmente todas as formas de vida, sem criar ou conside-
rar alguma espécie como mais próxima de si ou à sua “imagem”
e “semelhança”, como o Deus bíblico em relação à humanidade
(Génesis, 1, 26-27). Gaia não é um princípio constitutivo, arquitec-
tónico e governativo que condicione os viventes a existirem num
determinado modo, função e posição, e que julgue recompensan-
do ou punindo a fidelidade ou transgressão da sua ordenação do
mundo – como no imaginário metafisico-religioso, de inspiração
político-jurídica, preponderante no Ocidente - , mas uma matriz
que deixa livremente ser e fluir tudo o que dela emerge, como o
“grande Tao” no qual “todos os seres se apoiam (...) para viver” e
jamais pretende ser o “seu senhor” 29. Tendo como arché o Kháos, o
caosmos é uma ordem an-árquica, que emerge espontaneamente da
livre autopoiésis dos viventes.
Uma outra versão dos versos 118 e 119 da Teogonia de Hesío-
do pode ler-se como ilustrativa da abrangência de Gaia ao desig-
ná-la como “fundamento seguro para sempre oferecido a todos

27 Cf. Odon VALLET, Petit lexique des mots essentiels, Paris, Albin Michel, 2007, pp.63-64. Veja-se
uma exposição condensada das mais importantes referências e obras sobre esta questão em
Carlos H. do Carmo SILVA, “Divina perfeição na sabedoria pré-socrática – da teogonia mítica
a uma dramática ideal do theós”, in AAVV, A Questão de Deus na História da Filosofia, I, coorde-
nação de Maria Leonor L. O. Xavier, Sintra, Zéfiro, 2008, p.33, nota 68.

28 Cf. Marija GIMBUTAS, The Language of the Goddess, prefácio de Joseph Campbell, Nova Iorque,
HarperCollins, 1991.

29 Cf. Lao TSE, Tao Te King, XXXIV, p.197.

168
os Imortais, mestres dos cimos do Olimpo nevado, e (a)o Tártaro
brumoso, mesmo no fundo da terra de largos caminhos” 30. Gaia é
o assento de “todos os viventes”, desde os divinos habitantes do
Olimpo aos que habitam nas profundezas ctónicas da Terra. Gaia
é o solo e a raiz de todos, que nela se unificam e comungam da
ilimitação, pois emergem de uma Terra caósmica, cujo íntimo é
o Caos, o espaço infinito, vazio e sem forma, sem início nem fim.
Filhos do Caosmos, todos os viventes são igualmente caós-
micos. Enraizados no fundo sem fundo, ou seja, no infinito, con-
têm em si todas as infinitas possibilidades que nele se implicam e
se manifestam ou explicam (para usar a linguagem de Nicolau de
Cusa) na infinitude do multiverso ou cosmos aparente. Neste sen-
tido, são microcaosmos que também contêm o macrocaosmos, partes
que não só se inserem no todo, mas que também o contêm em si.
São hólons, num sentido diverso daquele concebido por Arthur Ko-
estler 31, pois não só são totalidades integradas em totalidades mais
inclusivas, como incluem ainda, na medida em que a sua natureza
primordial é o infinito, a macro-totalidade. Cada vivente assume
assim uma dignidade infinita, sendo um ícone do infinito e da to-
talidade, bem como da criatividade ilimitada que entre um e outro
se processa. Cada vivente é assim menos um ente, ou uma mónada
sem portas nem janelas, como na visão de Leibniz, do que um pro-
cesso caósmico de metamorfose, sempre em aberto e em osmose
com todos os demais viventes e fenómenos caósmicos.
Se o Kháos é a Natureza e Gaia é a Terra, esta Natureza e esta
Terra não são obviamente redutíveis à “Natureza” e à “Terra” objec-
tivadas pelas ciências naturais, bem como à “Natureza” e à “Terra”
30 Cf. HESÍODO, Teogonia, variante dos versos 118-119 indicada em Théogonie / Les Travaux et les
Jours / Le Bouclier, p.36, nota 2.

31 Cf. Arthur KOESTLER,The Ghost in the Machine, Last Century Media, 1982.

Capítulo 5

Abertura da Consciência e Mudança de Civilização. 169


Repensar a Natureza, a Terra e Eros a partir de Hesíodo
Paulo Borges
objecto das intenções predatórias dos adeptos do crescimento eco-
nómico infinito ou das boas intenções preservadoras da maioria dos
ecologistas e ambientalistas. Kháos/Gaia ou Natureza/Terra são infi-
nitamente mais do que o mundo natural e o planeta onde mais ime-
diata e obviamente habitamos, que são apenas as suas objectivações
pela mente que se limita ao ignorar que a sua natureza profunda é
o próprio espaço primordial e ao imaginar-se um sujeito que assim
se autocentra como um observador que se coloca fora do que vê,
criando em função do seu aparelho conceptual e categorial objectos
ficticiamente separados de si e uns dos outros na mesma medida
em que deixa de ver em tudo, incluindo em si, o infinito, a metamor-
fose e a totalidade. Kháos/Gaia ou Natureza/Terra são todavia, para
além das perspectivas sempre limitadas dos organismos vivos que
diferenciadamente as percepcionam e objectivam, as inseparáveis
polaridades do Infinito entreaberto em todas as suas experiências e
manifestações possíveis. Kháos/Gaia ou Natureza/Terra são a Vida
oculta e patente em todas as vidas. A esta Vida chama Hesíodo Eros.
Eros é para o poeta grego a mais bela das divindades e aquela
que domina todos os viventes, mesmo os que, como os deuses e
os humanos, usufruem do “sábio querer”, ou seja, de uma vonta-
de racional. Hesíodo diz que Eros “domina o coração” e “desfaz os
membros” de todos, expressões fortes do seu poder de dissolver, a
partir do íntimo, não só a tendência de cada vivente para o autocen-
tramento, mas ainda a sua própria individuação e unidade interna.
Eros é por excelência a potência do Amor que descentra do mesmo
para o outro e do idêntico para o diferente 32, a potência de altera-
ção e metamorfose, a potência que desmembra, desorganiza e abre
as vidas que se pretendem enclausurar, subvertendo o desejo de

32 Cf. Byung-Chul HAN, A Agonia de Eros, tradução de Miguel Serras Pereira, Lisboa, Relógio de
Água, 2014, pp.9-10.

170
conservação, segurança, controlo, produção e consumo na abertura
ao que surge como desconhecido, perigoso, imprevisível, incontro-
lável, improdutível e inconsumível: ou seja, a própria Vida. Eros,
emergindo a seguir a Kháos e Gaia, é a irrupção da natureza infinita
e caósmica de todos os viventes a impulsioná-los para viverem na
grande Abertura sem contornos, subvertendo a tentação de se ima-
ginarem centros do espaço que o não tem e assim se fecharem na
forma da individuação e no falso conforto e segurança da finitude.
Eros, mais do que um vivente, é a Vida, a dinâmica amorosa do
próprio caosmos, a força do infinito que circula em todos os viven-
tes e os comove num desejo passional, consciente ou inconsciente,
de abertura ao Infinito dos possíveis que cada um traz em si, pois
cada um, na medida em que radica no Kháos, abriga em si não só to-
dos os demais viventes, mas ainda todas as possibilidades em aber-
to de manifestação e realização. Eros é a potência amorosa do vazio
informe que vence a sua própria distorção no desejo autocentrado,
egocêntrico e possessivo, desvelando na forma de cada vivente um
ímpeto de verdade, ou seja, de des-velamento do infinito que há em
si, em constante autotranscendência e metamorfose. Tudo no fun-
do é Eros, porque Eros – o Eros de olhos e asas bem abertos da sua
primeira iconografia na cultura clássica 33 - é a ex-uberância festiva
do Infinito ou Kháos primordial, sem porquê nem para quê. Re-
conhecendo-se, o desejo abre asas para o superabundante infinito
que é. Não se reconhecendo, imagina-se um sujeito carente, dis-
tinto desse mesmo infinito, que todavia o procura buscando satis-
fazer-se infinitamente em objectos e experiências finitos, que não
podem senão deixá-lo cada vez mais insaciado, pois neles deseja

33 “Raras vezes foi referido como cego na literatura clássica e nunca foi representado como
cego na arte clássica” – Erwin PANOFSKY, Estudos de Iconologia. Temas humanísticos na arte do
renascimento, Lisboa, Editorial Estampa, 1995, 2ª edição, p.91.

Capítulo 5

Abertura da Consciência e Mudança de Civilização. 171


Repensar a Natureza, a Terra e Eros a partir de Hesíodo
Paulo Borges
sempre mais do que tudo o que neles pode encontrar, uma vez que
sem o saber só deseja o infinito que é. Reconhecendo-se, Eros é a
Vida sem medo, a experiência aberta ao Infinito em todas as formas
e modalidades possíveis, o ser e “sentir tudo de todas as maneiras”
de Fernando Pessoa / Álvaro de Campos 34. Não se reconhecendo,
Eros torna-se o Cupido de olhos vendados e asas curtas, tanto mais
fascinado pelo domínio e posse de um mundo de entes-objectos
quanto mais dominado pelo medo de si, o medo do Infinito que é.
O auto-desconhecimento de Eros-Amor e a sua mutação em dese-
jo possessivo é o que domina deuses, titãs e humanos no mundo cuja
história Hesíodo continua a contar, com as eras da decadência humana
narradas em Os Trabalhos e os Dias 35. Este mundo é o nosso, esta his-
tória é a nossa. Este mundo, do desejo cego e confundido, em que o
espaço infinito, desprovido de centro e periferia – Aristóteles nota que
“o infinito não tem centro” 36 - , se povoa de subjectividades autocen-
tradas dominadas pelo desejo possessivo, é aquele que Luís de Camões
descreveu como um “mundo rebelde” contra o Amor, pois o que o go-
verna são os “erros grandes” de se amar “coisas que nos foram dadas,
não para ser amadas, mas usadas” 37. Mas as intenções e o discurso
34 “Sentir tudo de todas as maneiras, / Viver tudo de todos os lados, / Ser a mesma coisa de
todos os modos possíveis ao mesmo tempo” - Álvaro de CAMPOS, in Fernando PESSOA, Obras, I,
introduções, organização, biobibliografia e notas de António Quadros e Dalila Pereira da Cos-
ta, Porto, Lello & Irmão – Editores, 1986, p.933; “Sentir tudo de todas as maneiras, / Ter todas
as opiniões” – Ibid., p.938; “Sentir tudo de todas as maneiras. / Sentir tudo excessivamente, /
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas” – Ibid., p.1024. Cf. também a poesia ortón-
ima: “Deixo ao cego e ao surdo / A alma com fronteiras, / Que eu quero sentir tudo / De todas
as maneiras” – Fernando PESSOA, Ibid., p.282; “Ah sentir tudo de todos os feitios!” – Ibid., p.302.

35 Cf. HESÍODO, Théogonie / Les Travaux et les Jours / Le Bouclier, pp.90-93.

36 ARISTÓTELES, De Caelo, I, 7 275b 10.

37 Cf. Luís de CAMÕES, Os Lusíadas, IX, XXV, in Obras, Porto, Lello & Irmão – Editores, 1970, p.1344
(actualizámos a ortografia). Cf. Paulo BORGES, “Eros e iniciaçãoo em Luís de camões. De Portugal
à Ilha dos Amores”, in Uma Visão Armilar do Mundo. A vocação universal de Portugal em Luís de
camões, Padre António Vieira, Teixeira de Pascoaes e Agostinho da Silva, Lisboa, Verbo, 2010, pp.15-41.

172
ético-morais, para não falar das medidas jurídico-político-econó-
micas, embora positivas e desejáveis, são sempre impotentes ou
insuficientes para inverter esta situação, que está na raiz da crise
ambiental e civilizacional contemporânea, pois a mais funda raiz
desta perversão do desejo pela sua fixação ávida na finitude é a
perda do sentido do Eros primordial que, como vimos, é a paixão
da vida aberta no “chásma méga”, no “grande abismo” sem fundo
de Hesíodo 38, ou seja, no infinito. Na verdade, a mera reacção à
crise ambiental e civilizacional apenas a prolonga, na medida em
que se situa ao seu estreito nível e, não a perspectivando num
horizonte mais amplo, mantém o obscurecimento da consciência
que assim se auto-impede de se converter num novo começo. Se
bem que haja que preservar o que puder ser preservado do mun-
do natural, da Terra, da biodiversidade e dos recursos naturais, e
para tal investir no decrescimento económico, na sociedade de
abundância frugal ou na prosperidade sem crescimento propos-
tos, entre outros, por Serge Latouche e Tim Jackson, o que ver-
dadeiramente urge, até como condição para tal, é uma mudança
das raízes da actual civilização que só pode vir de uma mutação
radical da consciência ou do regime de experiência e percepção
da chamada realidade, que traga às mentes a paz, a simplicidade e
a plenitude inerentes à redescoberta da felicidade e do prazer de
ser, cujo esquecimento se traduz na avidez e na beligerância que
estão a devastar a Terra.
Essa mutação só pode emergir da reorientação da consci-
ência para o infinito, reconhecendo-o como a natureza aberta e
comum de todos os seres e fenómenos, o fundo sem fundo que
somos antes da clivagem da experiência em eu e outro e sujeito

38 Cf. HESÍODO, Théogonie, 739-740, in Théogonie / Les Travaux et les Jours / Le Bouclier, p.58.

Capítulo 5

Abertura da Consciência e Mudança de Civilização. 173


Repensar a Natureza, a Terra e Eros a partir de Hesíodo
Paulo Borges
e objecto 39, raiz de todo o medo, avidez, possessividade e agres-
são. Essa é a grande alternativa à cultura socialmente dominan-
te, transmitida pelas famílias, instituições pedagógicas, empre-
sas e Estado, a cultura da normose, a patologia da normalidade 40,
que impregna avassaladoramente a percepção de si e do mundo.
Nela a consciência autocondiciona-se ao ficcionar-se como e
identificar-se com um “eu” / self supostamente substancial, exis-
tente em si e por si, imaginado algures por trás dos olhos, den-
tro do crânio, ou como o habitante e possuidor do corpo, que
usaria como veículo para se deslocar num mundo supostamente
exterior 41. Este suposto pensador por detrás dos pensamentos
e agente por detrás das acções, que todavia com eles se iden-
tifica, vê-se como algo ou alguém separado do mundo, repre-
sentando-se como um centro de perspectivas, interesses e dese-
jos que o tornam refém de pensamentos movidos por emoções
como medo, insegurança, avidez, possessividade, apego, defesa
e agressão que dessa mesma ficção de separação resultam e que
são a incontornável raiz psicológica da crise ambiental e civiliza-
cional, gerando as multidões de produtores-consumidores-pre-
dadores insaciáveis que são a verdadeira base de apoio sem a

39 “Fundamentalmente há apenas espaço aberto, o campo fundamental, o que realmente somos. O


nosso mais essencial estado da mente, antes da criação do ego, é tal que há aí uma abertura funda-
mental, uma liberdade fundamental, uma qualidade espaçosa; e temos agora e sempre tivemos esta
abertura” – Chögyam TRUNGPA, Cutting Through Spiritual Materialism, prefácio de Sakyong Mipham,
editado por John Baker e Marvin Kasper, ilustrado por Glen Eddy, Boston / Londres, Shambhala,
2002, p.122;

40 Cf. Pierre WEIL, Jean-Yves LELOUP, Roberto CREMA, Normose. A patologia da normalidade,
Petrópolis, Editora Vozes, 2011, 3ª edição.

41 Cf. Sam HARRIS, Waking Up. Searching for spirituality without religion, Londres, Black Swan,
2015, p.92. Cf. também Loch KELLY, Shift into Freedom. The Science and Practice of Open-Hearted
Awareness, Boulder, Sound True, 2015, p.16.

174
qual não seria possível a devastação do mundo pela tecnociência
ao serviço da política económica mundial.
Esta generalizada confusão da consciência com o ego, legiti-
mada pela cultura dominante, que se desvela assim como a causa
principal da iminência de colapso ecológico – tanto mais grave e
operativa quanto menos reconhecida - , não parece todavia resis-
tir a um honesto exame reflexivo e de auto-análise, mais fácil se a
mente estiver livre da sua habitual dispersão e distracção mediante
o treino na introspecção e quietude meditativa. Seja como for, um
exercício simples possibilita que cada um possa fazer por si esta
verificação. Se reorientarmos, neste preciso momento, o fluxo da
nossa atenção dos objectos nos quais está habitualmente envolvi-
do - seja de modo disperso ou concentrado e sejam objectos dos
sentidos externos, como formas visuais ou auditivas, ou do sentido
interno, como pensamentos, imagens e emoções - para si mesmo
e para a sua fonte, se reorientarmos o fluxo da atenção para o que
habitualmente concebemos como o seu sujeito, o chamado “eu”,
o que parece acontecer é que este não se encontra como uma en-
tidade definida, isolada e separada, que tenha forma, localização
e outras características identificáveis e objectiváveis. Ao operar-
mos esta re-flexão, ou seja, etimologicamente, este regresso a si,
este virar-se para si, o que experimentamos - em vez do “eu” em
geral imaginado como o observador situado por detrás dos olhos
no interior do crânio - é um não-objecto, a ausência de qualquer
sujeito entificado, um espaço aberto sem forma e sem contornos:
o não-ente, a não-coisa e o não-eu indicados no inglês no-thing, no
francês né-ant, no italiano ni-ente e no alemão N-ichts. Impedindo
contudo uma visão niilista, há uma experiência disto, há uma cons-
ciência deste espaço que no fundo é o espaço da própria consciên-
cia, há a experiência desta ausência de forma ser ao mesmo tempo

Capítulo 5

Abertura da Consciência e Mudança de Civilização. 175


Repensar a Natureza, a Terra e Eros a partir de Hesíodo
Paulo Borges
uma presença autoconsciente que não se configura nem fixa em
qualquer subjectividade ou objectividade externa ou interna, sen-
do antes uma imensa abertura que acolhe, sem juízos e antes de
qualquer conceptualização, todos os fenómenos emergentes em
contínua mutação. O sentimento ou sensação de se ser este es-
paço aberto e ilimitado, este fundo sem fundo informe, vazio e
por isso omnipresente e omni-abrangente, no qual todo o mundo
aparece 42, é precisamente a experiência caósmica de si. Procurar-
-se a si mesmo, na reversão de todas as operações da consciência
ao seu imo, é não se encontrar, tentar ver-se a si mesmo é não
se ver, mas este não se encontrar e não se ver, como algo ou alguém
definido, delimitado e determinado, é precisamente o ver-se e o encon-
trar-se como um espaço sem dimensões, com uma profundidade e am-
plitude ilimitadas em termos de experiência e consciência. Esta
experiência de si como abertura sem contornos, anterior e alheia
à clivagem eu-outro ou sujeito-objecto, é uma experiência de si
como um abismo autoconsciente e exuberante de todas as possi-
bilidades, um nada que é tudo, como diria Agostinho da Silva, ou
um vazio pleno, na nossa proposta 43. Nesta reversão do conceito
egocêntrico de si à experiência zerocêntrica, holística e caósmica
de si, nesta conversão do conceito de si-mesmo como distinto do
outro à experiência de si como simultaneamente livre da distin-
ção mesmo-outro e inclusivo de todas as suas modalidades, dá-se
uma mutação do regime da consciência, do conceptual-represen-
tativo, discursivo e objectivante para o da silenciosa experiência
directa de um fundo sem fundo onde emergem todas as formas

42 Cf. D. E. HARDING, On Having No Head. Zen and the Rediscovery of the Obvious, Londres, The
Shollond Trust, 2014, pp.2 e 23-24.

43 Cf. Paulo BORGES, Vazio e Plenitude ou o Mundo às Avessas. Estudos e ensaios sobre espirituali-
dade, religião, diálogo inter-religioso e encontro trans-religioso, Lisboa, Âncora Editora, 2018.

176
e dinamismos fenomenais, inseparavelmente internos e externos,
tanto pensamentos, imagens, palavras, emoções e volições, quan-
to as indissociáveis percepções dos objectos e devires do mundo.
Nesta reversão a consciência experiencia-se como espaço aberto
sem contornos, a consciência descobre-se e sente-se intimamen-
te os próprios infinito, totalidade e vida exuberante que Hesíodo
mitopoeticamente referiu como Kháos, Gaia e Eros, embora em
última instância esta vivência seja irredutível a todos os conteúdos
e determinações, sejam conceitos, palavras ou imagens, incluindo
estes que apofaticamente usamos para tentar liminarmente indi-
car a experiên-humano. e si que habita o imo de cada ser, humao
ou namente estes que usamos para tentar expressar uma ncia ine-
fável que habita, reconhecida ou não, o imo de todos e cada um
dos viventes e sencientes, humanos ou não-humanos.
A esta luz, em vez de combater o quer que seja, a alternati-
va à crise do Antropoceno e a possibilidade de um novo começo
residem primeiro que tudo em promover pela positiva uma cultura
da consciência como o espaço de experiência ilimitada e fruitiva
onde todos os fenómenos aparentemente subjectivos e objectivos
se manifestam. Uma cultura reorientada, segundo o dizer de Rilke
na “Oitava Elegia”, da “Forma (Gestaltung)” para o “Aberto” (das
Offene), para esse “puro espaço” que não se reduz ao “mundo” de
entidades e objectos para o qual a educação nos volta, afastando-
-nos do “Aberto” do qual o poeta via mais próximos o animal, a
criança, os amantes e os que morrem 44. Em vez de uma cultura da
clausura numa concepção atómica, substancial, monádica, entifi-
cada, reificada e objectivada do real, do si e do mundo, trata-se de
promover uma cultura da experiência da chamada realidade como

44 Cf. Reiner Maria RILKE, “A Oitava Elegia”, in As Elegias de Duíno, Lisboa, Assírio & Alvim,
2002, p.91.

Capítulo 5

Abertura da Consciência e Mudança de Civilização. 177


Repensar a Natureza, a Terra e Eros a partir de Hesíodo
Paulo Borges
um espaço informe e aberto, caósmico, erótico e osmótico, inter-
dependente e interpenetrado, polimórfico, proteico e metamórfi-
co, que na esfera do si ecoe a interrogação de Bernardo Soares no
Livro do Desassossego: “Conhece alguém as fronteiras à sua alma,
para que possa dizer - eu sou eu ?” 45. No que respeita à situa-
ção ambiental contemporânea, eixo da crise civilizacional, a al-
ternativa passa por remover a consciência da fixação num ideal
acerca do que o mundo deve ser e por consequência nos aspectos
aparentemente negativos do estado do mundo natural e da Ter-
ra, o que reflecte ainda a expectativa humana de que a realidade
se conforme aos nossos desejos e interesses enquanto sujeitos
supostamente separados do processo do mundo, para a abrir ao
mesmo infinito espaço caósmico vislumbrado por Hesíodo que é
o da Natureza e da Terra a manifestarem-se tal como são, alheias
às ficções da consciência, perspectivas e interesses de qualquer
organismo psicofisiológico individuado e autocentrado, humano
ou não-humano. Aberta a consciência a esse espaço que no fun-
do é o do seu próprio fundo sem fundo, pode reconhecer-se e
experienciar-se que Caos/Gaia, ou seja, Natureza/Terra, são um
processo de mutação e metamorfose erótica onde tudo interde-
pende e se interpenetra em função das mutações e metamorfoses
de cada um e de todos os viventes, sendo por isso tão imprevisí-
vel, incontrolável e indomesticável quanto estes. Visto a este luz,
tudo o que emerge na imensidão do Caos ou Natureza primordial
é dela inseparável e transcende todos os conceitos e juízos, como
os de bem e mal, que em termos bíblicos só surgem com a trans-
gressão do interdito de comer da árvore do conhecimento do bem
e do mal, gerando o obscurecimento ou exílio do estado edénico
da consciência (Génesis, 3, 1-7).
45 Cf. Ibid., p.823.

178
O que Hesíodo designou como Caos é o Infinito omni-englo-
bante que as tradições espirituais da humanidade designam de mo-
dos diversos mas convergentes e que agora, mediante o exercício
atrás sugerido, podemos experiencialmente comprovar como a na-
tureza primordial da própria consciência, irredutível aos seus esta-
dos, conteúdos e determinações psicológicos. Um mestre budista
contemporâneo sugere-o assim:

“(...) uma vasta abertura que não é uma coisa em si mesma,


mas antes um fundo infinito e não-caracterizado contra o
qual e através do qual galáxias, estrelas, planetas, animais, se-
res humanos, rios, árvores, etc., aparecem e se movem. (...) A
vacuidade, ou infinita possibilidade, é a natureza absoluta da
realidade. Tudo o que surge da vacuidade – estrelas, galáxias,
pessoas, mesas, lâmpadas, relógios e mesmo a nossa percep-
ção de tempo e de espaço – é uma expressão relativa da infini-
ta possibilidade, uma aparência momentânea no contexto de
tempo e espaço infinitos” 46.

Um mestre cristão contemporâneo vai no mesmo sentido, usando


outra linguagem, ao dizer:

“[...] a experiência desta identidade-fundo que é uma com Deus


será registada na nossa percepção, se na verdade se regista,
como uma experiência de nenhuma coisa particular, um grande
e fluente abismo, um fundo sem fundo. Para aqueles que só co-
nhecem a mente discursiva, isto pode parecer um terror que lida
com a morte ou uma vertigem giratória. Mas, para aqueles cuja

46 MINGYUR RINPOCHE (e Eric SWANSON), The Joy of Living. Unlocking the secret and science of
happiness, prefácio de Daniel Goleman, Londres, Bantam Books, 2009, p.63.

Capítulo 5

Abertura da Consciência e Mudança de Civilização. 179


Repensar a Natureza, a Terra e Eros a partir de Hesíodo
Paulo Borges
mente se dilatou numa mente-coração, é um encontro transbor-
dante com o fluxo da vasta e aberta vacuidade que é o fundo de
tudo. Esta “não coisa” [“no thing”], esta vacuidade, não é uma
ausência, mas uma superabundância” 47.

Inúmeros exemplos poderiam ser dados de outras sabedorias e tra-


dições, mostrando a convergência da experiência do Infinito para
além da divergência das doutrinas filosófico-teológicas.
Se esta vacuidade tudo engloba como sua manifestação, e se
esta vacuidade em manifestação é o caosmos e a Natureza-Terra ori-
ginal, isto inclui o que no actual ciclo da mente humana se concep-
tualiza, distingue e muitas vezes se opõe como natureza e cultura,
natureza e civilização, humanidade e mundo, humanos e animais,
sabedoria e tecnociência, comunitarismo e capitalismo, preser-
vação e destruição do ambiente, etc. Ou seja, isto inclui o Antro-
poceno, as alterações climáticas, a destruição da biodiversidade,
a poluição e esgotamento dos recursos, etc., como outras tantas
epifanias de um Kháos-Gaia em constante mutação e metamorfo-
se interdependentes das acções dos viventes. Tudo isto ocorre no
imenso espaço que somos, tudo isto é o que somos e devimos a
cada instante. Proteja-se pois e preserve-se tudo o que se puder
proteger e preservar, em nome do bem relativo e sempre imper-
manente de todas as espécies de seres vivos, não só dos humanos,
mas acima de tudo proteja-se e preserve-se a experiência aberta,
trans-conceptual e não-judicativa, e a consciência de que, aconteça
o que acontecer a nível relativo, tudo está sempre bem a nível ab-
soluto, pois o caosmos é a Grande Perfeição que intemporalmente

47 Martin LAIRD, Into the Silent Land. The Practice of Contemplation, Londres, Darton, Logman
and Todd, 2009, p.14.

180
unifica e transcende todos os contrários e isso é a natureza invio-
lável de todo e de cada vivente. Esta abertura da consciência traz
já em si a mudança de civilização, que convida a refundar o modo
humano de habitar o mundo na experiência contemplativa do in-
finito e da totalidade e na amorosa comunhão inter-espécies que
nela se abre. É para isso que desde sempre apontam os olhos e as
asas do Eros iluminado.

Capítulo 5

Abertura da Consciência e Mudança de Civilização.


Repensar a Natureza, a Terra e Eros a partir de Hesíodo baracoa
editora

Paulo Borges
Jean-Jacques Wunenburger
Universidade Jean Moulin – Lyon 3

Professor emérito de Filosofia da Universidade


Jean Moulin (Lyon 3 - França) e Decano honorá-
rio da Faculdade de Filosofia de Lyon 3 (França).
Presidente da Associação Internacional Gaston
Bachelard, Presidente da Associação dos amigos
de Gilbert Durand e Codiretor do Centre de Re-
cherches Internationales sur l’Imaginaire (CRI2i).
É autor de numerosos livros que versam a rela-
ção do imaginário com a racionalidade.

CV: http://www.univ-lyon3.fr/
wunenburger-jean-jacques-110605.kjsp#body
E-mail: jean-jacques.wunenburger@univ-lyon3.fr
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-3667-4504

182
Alberto Filipe Araújo
Universidade do Minho

Professor Catedrático do Instituto de Edu-


cação da Universidade do Minho (Braga
– Portugal). Membro do Centro de Investi-
gação em Educação (CIEd) do Instituto de
Educação da Universidade do Minho. Os
seus principais domínios de interesse são
os seguintes: Filosofia da Educação, Es-
tudos do Imaginário e História das Ideias
Educativas e Pedagógicas.

CV: http://lattes.cnpq.br/8435522451809066
E-mail: afaraujo@ie.uminho.pt
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-4693-8681

183
Do Imaginário e de suas re-
lações com a mitopoética do
espaço

Resumo: O imaginário não pode suas reflexões múltiplas e, por


deixar de ser convocado numa fim, na nossa terceira parte
mitopoética do lugar onde os trataremos de uma antropo-
aspetos materiais e imateriais logia geral do imaginário. Em
do habitar na atualidade se conclusão, apresentamos uma
colocam hoje de um modo mais síntese das nossas reflexões
desafiante, mais complexo e, sobre o tema da mitopoética
por que não, mais interpelador do espaço.
do que outrora. Neste sentido,
a obra de Gaston Bachelard Palavras-chave: Imaginário,
continua a revelar-se heuristi- Gaston Bachelard, Mitopoética,
camente fecunda para ajudar- Espaço.
-nos a melhor compreender a
natureza mitopoética do espa-
ço que, por sua vez, é natural-
mente indissociável do imagi-
nário e da sua plasticidade. Na
primeira parte trataremos do
contributo de Gaston Bache-
lard, de Gilbert Durand, de Paul
Ricoeur e de Henry Corbin para
as teorias contemporâneas do
imaginário, na segunda parte
debruçar-nos-emos sobre o
imaginário e a imaginação nas

184
Of the Imaginary and its rela-
tionships with the mythopoetics
of space

Abstract: The imaginary cannot finally, in our third part we will


be left of being summoned in a deal with a general anthropolo-
mythopoetic of space where the gy of the imaginary. In conclu-
material and immaterial aspects sion, we present a synthesis of
of dwelling in the present are our reflections on the theme of
today placed in a more challen- space mythopoetics. 
ging, more complex and, why
not, more challenging way than Keywords: Imaginary, Gaston
yore. In this sense, the work of Bachelard, Mythopoetics,
Gaston Bachelard continues to Space.
prove to be heuristically fruitful
to help us understand the my-
thopoetic nature of space which,
in its turn, is naturally insepa-
rable from the imaginary and
its plasticity. In the first part we
will deal with the contribution
of Gaston Bachelard, Gilbert
Durand, Paul Ricoeur and Hen-
ry Corbin to the contemporary
theories of the imaginary, in the
second part we will focus on
the imaginary and the imagi-
nation in their multiple reflec-
tions and,

185
Capítulo 6

Do Imaginário e de
suas relações com a
mitopoética do espaço1
Alberto Filipe Araújo
Universidade do Minho
Jean-Jacques Wunenburger
Universidade Jean Moulin - Lyon 3

“O vocábulo fundamental que corresponde à imaginação não é a


imagem, mas o imaginário”
Gaston Bachelard, L’Air et les Songes, p. 5.

Introdução

O imaginário tem um conteúdo (semântica), estruturas (sin-


taxe), mas vincula-se sobretudo com uma intenção, com um
objetivo da consciência. Neste sentido, tudo é passível, dada
a função simbólica do conhecimento, de tornar-se imaginário,
mesmo aquilo que é considerado real? Tal acontece pela cons-
ciência ter a capacidade de lidar com conteúdos ausentes e não
atualizados. Por isso mesmo, compreende-se que o imaginário
seja encarado como aquele tipo de capacidade que abre possi-
bilidades múltiplas de transfiguração e que é dotado de uma di-
nâmica criadora interna (função poiética), de uma fecundidade

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 187


Editora Baracoa — 2019
simbólica (profundidade de sentidos segundos) e de um poder
de adesão do sujeito imaginante. O imaginário é uma categoria
plástica que compreende um vasto leque de expressões próprias
quer do imaginário individual, quer cultural: fantasia, lembran-
ça, devaneio, sonho, crença, mito, romance, utopia, ficção, etc.
O que impele, portanto, uma consciência a imaginar um
mundo diferente? O que espera um indivíduo de um imaginário?
E que valor atribuir a partir disso a um imaginário? Trata-se de
um valor empobrecedor, alienante ou libertador? Numa tenta-
tiva de respondermos a estas questões, ainda que de um modo
necessariamente abrangente, estruturaremos o nosso estudo
em três partes assim formuladas: na primeira parte trataremos
do contributo de Gaston Bachelard, de Gilbert Durand, de Paul
Ricoeur e de Henry Corbin para as teorias contemporâneas do
imaginário, na segunda parte debruçar-nos-emos sobre o imagi-
nário e a imaginação nas suas reflexões múltiplas e, por fim, na
nossa terceira parte trataremos de uma antropologia geral do
imaginário. Não deixamos de oferecer, igualmente, uma conclu-
são onde apresentamos uma síntese das nossas reflexões sobre
o tema que nos ocupa.

1. O contributo de Gaston Bachelard, de Gilbert Durand,


de Paul Ricoeur e de Henry Corbin para as teorias contem-
porâneas do imaginário

Entre 1940 e 1990 foram numerosas as contribuições de Sartre,


Gaston Bachelard, Roger Caillois, C. Lévi-Strauss, Paul Ricoeur,
Gilbert Durand, Henry Corbin, Gilles Deleuze, Jacques Derrida,
Jean-François Lyotard, Michel Serres. Estas beneficiaram de um
contexto intelectual favorável devido particularmente a novas

188
referências e orientações, mesmo se durante muito tempo per-
maneceram modestas ou marginais: antes de mais, as repercus-
sões da estética surrealista que permitiram, paralelamente à len-
ta difusão da psicanálise freudiana em França, promover práticas
imaginativas que datam do romantismo, ou até do ocultismo; em
seguida, o interesse pela psicossociologia religiosa, através do
impacto do pensamento de Émile Durkheim, dos trabalhos de
fenomenologia religiosa (Mircea Eliade) e mesmo de psicologia
religiosa (escola jungiana); finalmente, a lenta progressão de um
neokantismo que considera como adquirido o estatuto transcen-
dental da imaginação e a sua participação na constituição de um
sentido simbólico (Ernst Cassirer, Martin Heidegger).
Assim, não admira que a imaginação e a imagem tenham po-
dido ser integradas em novos métodos ou processos filosóficos,
embora cada uma delas exiba postulados e modelos de análise di-
ferentes: a fenomenologia, proveniente de Edmund Husserl, con-
sidera a imaginação como intencionalidade capaz de um desejo
eidético; a hermenêutica atribui às imagens uma função expres-
siva em termos de sentido, segundo alguns pontos de vista, mais
fecunda que o conceito (Heidegger, Hans-Georg Gadamer, Paul
Ricoeur, etc.), e os debates introduzidos pela Escola de Frankfurt
(Ernst Bloch, Herbert Marcuse, Theodor Adorno, Walter Benja-
min) obrigam a ter em consideração o mito e a utopia na história
sociopolítica. Quanto aos mais recentes trabalhos de filosofia e de
ciências cognitivas, estes revalorizam tanto a metáfora como as
representações visuais.
Neste contexto convém, no entanto, privilegiar quatro
obras particularmente criativas que vêm renovar a compreen-
são da imaginação e do imaginário: Gaston Bachelard, Gilbert
Durand, Paul Ricoeur e Henry Corbin. Vamos realçar o essencial

Capítulo 6

Do Imaginário e de suas relações com a mitopoética do espaço 189


Alberto Filipe Araújo e Jean-Jacques Wunenburger
dos seus contributos, muito especialmente naquilo que toca ao
de Gilbert Durand.

2.1 Gaston Bachelard

Muito mais que Sartre, Bachelard vai tornar manifesta a omni-


presença da imagem na vida mental, atribuir-lhe uma dignidade on-
tológica e uma criatividade onírica, fontes da relação poética com o
mundo. Com efeito, para o autor, o psiquismo humano caracteriza-
-se pela preexistência de representações metafóricas que, estando
fortemente carregadas de afetividade, vão imediatamente organizar
a sua relação com o mundo exterior. A formação do Eu pode en-
tão seguir duas vias opostas: na primeira direcção, o sujeito adquire
gradualmente uma racionalidade abstrata ao inverter a corrente es-
pontânea das imagens, ao purificá-las de qualquer sobrecarga sim-
bólica; na segunda direcção, deixa-se arrastar por elas, deforma-as,
enriquece-as para fazer nascer uma vivência poética que atinge a
sua plenitude no devaneio. A análise do imaginário pode, portanto,
efetuar-se quer por uma via negativa, na ciência, que apreende a
imagem como obstáculo epistemológico, quer segundo uma abor-
dagem positiva, sob a forma de poética geral, que a apreende como
uma fonte criadora. As imagens que se impõem como obstáculos à
abstração revelam-se, pelo contrário, positivas para o sonho, que é
desta forma exactamente o oposto da ciência, dado que "os eixos da
poesia e da ciência são em primeiro lugar inversos" (1994: 12). O poder
da imaginação, no sentido de faculdade de deformar as imagens,
enraíza-se efetivamente nas profundezas do ser:

a. Antes de mais, as imagens, longe de serem resíduos


percetivos passivos ou nocturnos, apresentam-se como

190
representaçõesdotadas de um poder de significação e de
uma energia de transformação. Próximo das análises de
Carl Gustav Jung (passado pouco tempo seguiram-se as hipó-
teses freudianas), Bachelard situa as raízes da imaginação em
matrizes inconscientes (os arquétipos), dissociando-se elas
próprias em duas polaridades, masculina (Animus) e femini-
na (Anima), que modificam o tratamento das imagens quer no
sentido voluntarista de luta, quer no sentido mais pacífico de
reconciliação. Longe de serem recalcadas, como para Freud,
estas imagens são depois transformadas por uma consciência
onírica em imagens novas aquando do contacto com elemen-
tos materiais do mundo exterior.

b. Em seguida, as imagens enchem-se de novas significações,


não subjectivas, aquando do contacto com substâncias ma-
teriais do cosmos que lhes servem de conteúdo. As nossas
imagens enriquecem-se e alimentam-se, de facto, da simbó-
lica dos quatro elementos (terra, água, ar e fogo), que forne-
cem "hormonas da imaginação", que nos fazem "crescer psi-
quicamente»: "Julgámos ter sido criados a partir de uma lei das
quatro imaginações materiais, lei que atribui necessariamente a
uma imaginação criadora um dos quatro elementos: fogo, terra,
ar e água" (1990: 14). Deste modo, a imaginação, se estiver
profundamente ligada ao inconsciente pessoal do sonhador,
apresenta-se antes de mais, do ponto de vista do seu conte-
údo, como uma imaginação material que os sonhos vão ligar
intimamente ao cosmos: "Somos arrastados para a procura ima-
ginária de matérias fundamentais, de elementos imaginários,
que têm leis idealísticas tão seguras quanto as leis experi-
mentais" (1990: 13);

Capítulo 6

Do Imaginário e de suas relações com a mitopoética do espaço 191


Alberto Filipe Araújo e Jean-Jacques Wunenburger
c. Por fim, as imagens encontram a sua dinâmica criadora na
experiência do corpo, como por exemplo, a actividade física de
expressão linguística ou do trabalho muscular através dos seus
movimentos, dos seus ritmos, a resistência das matérias tra-
balhadas pelo gesto e, finalmente, a consciência temporal des-
contínua que é composta por instantes sucessivos e inovadores
levados por um ritmo.

Gaston Bachelard já tinha proposto que as leis de produção das


imagens fossem explicitadas, estudando-as a partir das actividades
artísticas (dos criadores, poetas, artistas plásticos, espectadores ou
leitores) ou dos sonhos espontâneos do trabalhador ou do homem
de lazer. A vida das imagens assenta em leis de uma verdadeira físi-
ca onírica, que são tão constrangedoras como leis físicas. Bachelard
esperou mesmo, antes de renunciar a esta racionalização demasia-
do mecanicista, poder estabelecer o "diagrama poético"de um cria-
dor de imagens, que pressupõe que "as metáforas se chamam e se
entrançam mais que as sensações, ao ponto de um espirito poéti-
co ser pura e simplesmente urna sintaxe de metáforas"(1994: 185).
Ao longo dos seus estudos empíricos, Bachelard realçou contudo
invariantes dinamogénicas, entre as quais podemos destacar: a
constituição de "complexos"de imagens no sonhador, a pregnância
semântica da quaternidade dos elementos (fogo, água, ar, terra),
ela própria bipolarizada segundo os sonhos da vontade e do repou-
so: "A fisiologia da imaginação, mais ainda que a sua autonomia,
obedece à lei dos quatro elementos"(1990: 15). Para além disso, a
fecundidade criadora das imagens associadas de acordo com a lei
dos contrários assenta numa ambivalência que promove valoriza-
ções indefinidas, como ilustra a poética da água: o "sonho essencial
é a união dos contrários" (1976: 133).

192
2.2 Gilbert Durand

Ao situar-se ao nível de uma antropologia geral, este autor vai con-


tribuir para amplificar os benefícios bachelardianos e vai sistema-
tizar uma verdadeira ciência do imaginário. A semelhança da an-
tropologia de Cassirer e da poética de Bachelard, ele põe no centro
do psiquismo uma atividade de "fantástico transcendental" (Durand,
1993: 435-491). O imaginário, essencialmente identificado com o
mito, constitui o primeiro substrato da vida mental, da qual a pro-
dução conceptual é apenas um estreitamento. Embora se distancie
de Bachelard, ao contestar particularmente o antagonismo do ima-
ginário e da racionalidade, Durand retoma as suas orientações mos-
trando como as imagens se inserem num trajeto antropológico, que
começa a nível neurobiológico, para se estender ao nível cultural.
Gilbert Durand alarga a amostra do imaginário ao conjunto das
produções culturais (obras de arte, mitos coletivos, etc.) para aí evi-
denciar uma tripla lógica de "estruturas figurativas", própria do Homo
sapiens, que é igualmente Homo symbolicus. Preocupado em realçar
uma terceira via entre o estruturalismo, que privilegia o formalismo
(criado por Lévi-Strauss) e a hermenêutica (ilustrada por Ricoeur)
que acentua a manifestação subjectiva do sentido, Durand defende
que o imaginário deve a sua eficácia a uma ligação indissolúvel en-
tre, por um lado, estruturas que permitem reduzir a diversidade das
produções singulares de imagens a alguns conjuntos isomorfos e, por
outro lado, significações simbólicas, reguladas por um número finito
de schèmes2, de arquétipos e de símbolos. A expressão privilegiada

2 Em vez de traduzirmos a noção de schème pela palavra "esquema", como aliás faz Hélder
Godinho na tradução que realizou das Structures anthropologiques de l’Imaginaire para a língua
portuguesa, optamos por conservar este importante conceito durandino no original dado que
o schème não pode ser traduzido por “esquema” (schéma).Sintetizando: são duas coisas difer-
entes. Para melhor esclarecimento do leitor, damos a palavra a Gilbert Durand para apresentar

Capítulo 6

Do Imaginário e de suas relações com a mitopoética do espaço 193


Alberto Filipe Araújo e Jean-Jacques Wunenburger
das imagens encontra-se no mito, cujas imagens seguem a sequência
linguística: verbo, substantivo e adjetivo, sendo a função de substan-
tivação nominal tida como secundária em relação ao verbo, verda-
deira matriz arquetípica, ou em relação aos atributos que declinam a
pluralidade intrínseca do sujeito (do nome divino, por exemplo). Por
outras palavras, identificamos esta "matriz arquetípica" com a noção
de schème (verticalidade, queda, separação, descida, etc.), que por sua
vez se inclui na categoria do verbal, isto é, da acção e do gesto: o ver-
bo, nas línguas naturais, exprime a acção, uma vez que, segundo Gil-
bert Durand, os schèmes são o capital referencial de todos os gestos
possíveis da espécie homo sapiens. Para ele, o schème, e não o arquétipo
como em Jung, está na base da figuração simbólica dado que se trata
de uma "generalização dinâmica e afetiva da imagem, constitui a fac-
tividade e a não substantividade geral do imaginário [e forma] o es-
queleto dinâmico, a tela funcional da imaginação" (Durand, 1993: 61).
O schème faz, portanto, a junção entre os gestos inconscientes da sen-
soriomotricidade, entre os reflexos dominantes e as representações:
os reflexos posturais que regem a postura vertical, os reflexos diges-
tivos, de ingestão e de expulsão das substâncias e as posturas sexuais,
que são determinadas por uma rítmico corporal, constituem as prin-
cipais classes de formação das imagens (Durand, 1993: 15-66; Wu-
nenburger, 1991: 51-52). A classificação dos símbolos e dos arquétipos
organiza-se deste modo em torno dos principais reflexos dominantes

a noção anteriormente focada: "Em contrapartida, adaptámos o termo genérico de ‘schème’


que fomos buscar a Sartre, Burlou,e Revault d’Allonnes, tendo estes últimos ida buscá-lo, de
resto, à terminologia kantiana. O ‘schème’ (‘esquema’ na tradução portuguesa) é uma gener-
alização dinâmica e afectiva da imagem, constitui a factividade e não a substantividade geral
do imaginário. O ‘schème’ (‘esquema’) aparenta-se-se ao que Piaget, na esteira de Silberer,
chama ‘símbolo funcional’ e ao que Bachelard chama “símbolo motor”. Faz a junção já não,
como Kant pretendia, entre a imagem e o conceito, mas sim entre os gestos inconscientes
da sensoriomotricidade, entre as dominantes reflexas e as representaçõesSão estes ‘schèmes’
(‘esquemas’) que formam o esqueleto dinâmico, o esboço funcional da imaginação" (1989: 42).

194
(dominantes posturais, copulativas e digestivas). Por outras palavras,
a formação das imagens enraíza-se em três sistemas reflexológicos
que delimitam a infra-estrutura da sintaxe das imagens:

A diferença que existe entre os gestos reflexológicos que descreve-


mos e os schèmes consiste no facto de estes últimos já não serem
apenas engramas teóricos, mas sim trajetos encarnados em repre-
sentações concretas precisas; assim, ao gesto postural correspon-
dem dois schèmes: o da verticalização ascendente e o da divisão tan-
to visual como manual; ao gesto de engolir corresponde o schème
da descida e o do recolhimento nu intimidade (Durand, 1993: 61).

Aos gestos atrás descritos falta acrescentar um terceiro, que é o


gesto copulativo, ao qual correspondem os schèmes rítmico, dialé-
tico e messiânico.
Os arquétipos são apenas secundários, quer sejam epitéticos
(puro-maculado, claro-escuro, alto-baixo, etc.) ou substantivos (a
luz-as trevas, o cume-o abismo, o herói-o monstro, etc.): "consti-
tuem as substantificações dos schèmes" (1993: 62). Quanto aos
símbolos, designam, segundo Gilbert Durand, o processo geral
de pensamento, simultaneamente indirecto e concreto e que, por
conseguinte, constitui o dado fundamental da consciência humana
(1989: 18; 1984: 21-49; 1996b: 65-80). Deste modo, os símbolos desig-
nam, no sentido lato, a expressão cultural concreta do arquétipo e
especificam-se sob a influência do meio físico (clima, fauna, vegeta-
ção, etc.) ou cultural (tecnologia, práticas alimentares, organização
familiar ou social, etc.). Por isso, podemos afirmar que os símbolos
são extremamente ambivalentes, enquanto os arquétipos caracteri-
zam-se pela sua universalidade e falta de ambivalência:

Capítulo 6

Do Imaginário e de suas relações com a mitopoética do espaço 195


Alberto Filipe Araújo e Jean-Jacques Wunenburger
“Aquilo que diferencia precisamente o arquétipo do simples sím-
bolo, é geralmente a sua falta de ambivalência, a sua universalida-
de constante e a sua adequação ao schème: a roda, por exemplo, é
o grande arquétipo do schème cíclico, porque não se vê qual outra
significação imaginária se lhe poderia atribuir, enquanto a ser-
pente é o símbolo do cíclico, símbolo fortemente ambivalente”
(1993: 63).

Assim, por exemplo, enquanto o schème ascensional e o arqué-


tipo do céu permanecem imutáveis, os simbolismos que os ex-
pressam manifestam-se em diferentes imagens: escada, flecha
voadora, avião. Daí a possibilidade de uma transformação do
símbolo em sintema (René Alleau), isto é, de uma degradação do
símbolo em sinal puramente social onde a riqueza e a pluri-
vocidade deste desaparece e dá lugar à rigidez do estereótipo
(Alleau, 1996: 101-114). No prolongamento destas noções maio-
res, podemos igualmente reter a do mito. A este propósito, Du-
rand não a considera na acepção restrita que lhe conferem os
etnólogos ou os antropólogos; para ele o mito é um "sistema
dinâmico de símbolos, de arquétipos e de schèmes, sistema di-
nâmico esse que, sob o impulso de um schème, tende a trans-
formar-se em narrativa. (...) O mito explicita um schème ou um
grupo de schèmes" (1993: 64).
O imaginário, assim enraizado num sujeito complexo, não
redutível às suas percepções, não se desenvolve todavia em torno
de imagens livres, mas impõe-lhes uma lógica, uma estruturação,
que faz do imaginário um "mundo" de representações. A partir daí,
o estudo do imaginário permite elaborar uma lógica dinâmica de
composição de imagens (narrativas ou visuais), de acordo com
dois regimes ou polaridades nocturnos ou diurnos, que vão criar

196
três estruturas polarizantes: urna estrutura "mística", que induz
configurações de imagens que obedecem a relações fusionais; uma
estrutura heróica ou diairética, que instala clivagens e oposições
bem definidas entre todos os elementos; finalmente, uma estru-
tura cíclica, sintética ou disseminatória, que permite compor em
conjunto num "tempo" que engloba as duas estruturas antagonis-
tas extremas. E possível então tornar inteligíveis as configurações
de imagens, próprias dos criadores individuais, dos agentes sociais
ou das categorias culturais, identificando as figuras míticas domi-
nantes, identificando a sua tipologia e procurando ciclos de trans-
formação do imaginário por meio da mitocrítica. Esta visa em pri-
meiro lugar extrair das obras, recorrendo, se necessário, a métodos
de quantificação (estabelecimento de um quorum dc mitemas), os
cenários, os temas redundantes, os mitemas característicos, a fim
de identificar o mito diretor subjacente:

A mitocrítica evidencia, num autor, numa obra de uma determi-


nada época e meio, os mitos diretores e as suas transformações sig-
nificativas. Permite mostrar como é que um determinado sinal de
carácter pessoal do autor contribui para a transformação da mito-
logia estabelecida ou, pelo contrário, acentua este ou aquele mito
diretor estabelecido (1979: 313; 1996a: 181-202; 1996b: 229-242).

Já a "mitanálise", também proposta por Durand, estende o inqué-


rito ao conjunto das produções culturais a fim de proceder a uma
espécie de psicanálise das suas imagens dominantes, no sentido de
estabelecer uma tópica espaço temporal do imaginário. Esta per-
mite estabelecer o diagrama dos mitos dominantes de uma época,
a diversificação da matriz de acordo com "bacias semânticas», que
desviam as estruturas invariantes para variações epifenomenais,

Capítulo 6

Do Imaginário e de suas relações com a mitopoética do espaço 197


Alberto Filipe Araújo e Jean-Jacques Wunenburger
segundo estilos próprios, ou mesmo modelos de transformações
diacrónicas, encontrando-se os mitos dominantes submissos a ac-
tualizações e a potencializações sucessivas, de acordo com um rit-
mo aproximativo de três gerações. O modelo de evolução espado
temporal de uma corrente mitogénica desenvolve-se, segundo uma
metáfora de inspiração fluvial, em seis fases:

1.ª O afloramento das águas, que vê emergir, numa determinada


área-era, uma série heteróclita de pequenas formações imagi-
nárias;

2.ª A divisão das águas, que vê acentuar-se uma orientação global


devido ao abandono das orientações anteriores;

3.a A confluência, que coincide com o afluxo de contributos múlti-


plos convergentes;

4.ª A designação do rio, que passa pelo reconhecimento cultural de


um imaginário mítico englobante;

5.ª A criação das margens, onde o fluxo das referências míticas se


estabiliza e se consolida durante um certo tempo;

6.ª Finalmente a formação de meandros e de um delta, que significa


o desgaste das imagens, a sua saturação e o seu desaparecimento
em prol de um novo ciclo.

Podemos deste modo interpretar o imaginário coletivo europeu


como um ciclo onde se sucedem, durante estes dois últimos sé-
culos, as figuras emblemáticas de Prometeu, Dioniso e Hermes,

198
cuja simbólica ilumina a maior parte dos factos culturais (Durand,
1996a: 79-130; 1994: 66-76, Maffesoli, 1980).

2.3 Paul Ricoeur

O paradigma hermenêutico assenta num duplo deslocamento do


modelo de formação de um pensamento verdadeiro. Por um lado,
certos conteúdos de experiência, por exemplo, sinais culturais (tex-
to poético ou religioso, quadro), não desvendam totalmente o seu
conteúdo intuitivo, à semelhança de um objeto natural ou ideal.
Uma imagem poética ou uma narração simbólica excede o seu con-
teúdo literal, imediatamente acessível, porque é composta por uma
pluralidade repleta de significações. Apreender o sentido da ima-
gem implica, portanto, para além do sentido imediato, um desvelar
do sentido indirecto e escondido, do qual apenas uma parte superfi-
cial está presente na intuição primeira: "o símbolo é o movimento do
sentido primário que vos faz participar no sentido latente e, deste
modo, nos assimila ao simbolizado sem que possamos dominar int-
clcctuahnente a similitude"(Ricoeur, 1976: 22). Por outras palavras,
o representado, longe de ser claro e distinto, à semelhança de uma
evidência, existe num claro-obscuro opaco, numa reserva de ma-
nifestação. Simetricamente, o sujeito pensante, neste caso, jamais
esperaria aceder à verdadeira percepção da representação, coincidir
absolutamente com o conteúdo representado, deixando-se somen-
te afectar pelo seu conteúdo ou determinando-o por meio de uma
operação de julgamento do entendimento. Pelo contrário, tomar a
imagem inteligível obriga a apreendê-la indirectamente, a penetrar
na sua profundeza, a interpretar os seus diferentes níveis de sentido,
o que exige uma orientação particular e um saber prévio, sob pena
de não perceber os seus sentidos latentes, por não os pressupor.

Capítulo 6

Do Imaginário e de suas relações com a mitopoética do espaço 199


Alberto Filipe Araújo e Jean-Jacques Wunenburger
A hermenêutica valoriza um tipo de representações que escapa ao
imediatismo e à transparência e que exige um envolvimento activo
do sujeito na exploração de planos mediatos. Neste sentido, se para
a hermenêutica a imagem constitui o campo por excelência deste
processo de conhecimento particular, esta apenas ganhará com isso
uma reavaliação sem precedente devida ao reconhecimento da sua
complexidade e da sua riqueza intrínsecas.
A imaginação, de acordo com Paul Ricoeur, é mais um pro-
cesso do que um estado. Trata-se de um processo que se inspira
no discurso para se transformar, no final, em "imaginação produ-
tora"tornada manifesta por meio das práticas imaginativas (o par
utopia-ideologia). Podemos resumir o contributo de Ricoeur para
a teoria da imaginação da seguinte maneira:

A. A imaginação no discurso: o trabalho da imaginação consiste em


esquematizar a atribuição metafórica; este trabalho de difusão de
sentido nos campos sensoriais deve igualmente "suspender a sig-
nificação na atmosfera neutralizada, no elemento da ficção"(1986:
220). Ricoeur chama lhe utopia e esta já se confunde com a noção
da imaginação entendida como "um jogo livre com possibilidades,
num estado de não-envolvimento em relação ao mundo da percep-
ção ou da acção»(1986: 220; 217-220).

B. A imaginação na acção: a teoria da imaginação, para ser aplica-


da fora da esfera do discurso, exige uma "força referencial». Esta
força consiste numa referência de segundo grau que é na reali-
dade a "referência primordial"e que, para Ricoeur, não é senão o
"poder da ficção de redescrever a realidade"(1986a: 221; 220-222).
Este redescrever, que se entrecruza com a figura da utopia, exige
ser superado, dado que "redescrever é descrever de novo», isto é,

200
uma "reconstrução com valor descritivo». Uma poética da acção,
tendo em conta que não existe acção sem imaginação, requer que
a própria imaginação seja igualmente projectiva: a imaginação
tem uma "função projetiva que pertence ao próprio dinamismo
do agir"(1986a: 224; 222-224). Trata-se ainda de uma fenomenolo-
gia do agir individual que esquematiza os meus projectos (plano
do projecto), a figurabilidade dos meus desejos (plano da moti-
vação), até às variações imaginativas do eu "posso"(plano do pró-
prio poder de fazer): "é no imaginário que experimento o meu
poder de fazer, que eu meço o “eu posso”"(1986a: 225). E por con-
seguinte um percurso que progride em direcção a uma conceção
de imaginação enquanto "função geral do possível prático"(1986a:
225). Precisamente é esta função que nos permite transpor a es-
fera do individual em direcção ao imaginário social com as suas
práticas (a ideologia e a utopia). É através destas práticas que se
pode perceber melhor a constituição analógica do laço social "en-
tre diversos campos temporais, os dos nossos contemporâneos,
os dos nossos predecessores e os dos nossos sucessores"(1986a:
226). Por outras palavras, são estas mesmas práticas que nos per-
mitem compreender melhor a constituição analógica presente no
campo histórico da experiência. A tarefa da imaginação produtora
consiste simultaneamente em esquematizar a ligação analógica
e em fundamentar a possibilidade da "experiência histórica em
geral»: "à imaginação compete preservar e identificar, em todas
as relações com os nossos contemporâneos, com os nossos pre-
decessores e com os nossos sucessores, a analogia do ego"(1986a:
227). Daí resulta, por um lado, que a ligação analógica, que faz com
que cada homem seja meu semelhante, apenas se manifesta através
das práticas da imaginação produtora como, por exemplo, a ideo-
logia e a utopia; e, por outro lado, que a imaginação produtora não

Capítulo 6

Do Imaginário e de suas relações com a mitopoética do espaço 201


Alberto Filipe Araújo e Jean-Jacques Wunenburger
encontrou nenhuma outra forma de se exprimir senão através da
"crítica das figuras antagonistas e semi-patológicas do imaginário
social"(Ricoeur, 1986a: 229; 1986a: 213-236; 1986b: 379-392; Vieillard-
-Baron, 1989: 293-310).

2.4 Henry Corbin

Herdeiro da hermenêutica de Heidegger, inscreve-se sobretudo


na tradição da fenomenologia resultante de Husserl, aplicando
os grandes princípios desta última à consciência religiosa voltada
para o suprassensível e já não apenas para a percepção sensível.
Ao estudar os grandes textos das experiências místicas e visioná-
rias dos Persas zoroastrianos e dos Xiitas muçulmanos, redescobre
uma forma de imaginação suprapsicológica através da qual a cons-
ciência experimenta um mundo de representações sensíveis de um
mundo inteligível meta-histórico. Antes dele, muitas correntes da
filosofia religiosa (Rudolf Otto) ou da religião comparada (Lucien
Van der Leeuw, Mircea Eliade) apoderaram-se do método fenome-
nológico para descrever, do ponto de vista dos acontecimentos da
consciência, os fenómenos constitutivos da vida religiosa. As ima-
gens dos deuses, as representações de objetos tidos como sagrados,
só podem ser compreendidas se se resgatar a atitude específica da
consciência simbólica, que visa precisamente, através de uma for-
ma visível, uma sobrerrealidade invisível. Desta forma, cede-se o
lugar a um tipo de representações que excedem a manifestação das
coisas naturais e se referem à revelação, no psiquismo ou na alma,
de realidades percetivas que não podem ser reduzidas a ficções ou
a alucinações. Ao debruçar-se sobre estas imagens sobrenaturais,
a consciência reconhece a existência de seres visíveis ou sensíveis,
mas que não são exteriores à consciência.

202
Henry Corbin estabeleceu, assim, o modo como estes textos
espirituais assentam numa hierarquia metafísica com três níveis
de realidades: a de um mundo inteligível, do Uno divino, a de um
mundo sensível ao qual pertencemos através do nosso corpo, e fi-
nalmente a de uma realidade intermediária na qual o mundo inte-
ligível se manifesta de acordo com figuras concretas (paisagens,
personagens, etc.). Ao primeiro só consegue aceder a inteligência
pura, ao segundo apenas a percepção sensorial, ao terceiro a ima-
ginação visionária. Assim, só é possível compreender as imagens
deste mundo intermediário distinguindo, fenomenologicamente,
dois tipos de imagens: as que pertencem a uma imaginação psico-
fisiológica, inseparável da nossa condição encarnada, que permite
criar ficções irreais, e as que são produzidas por uma imaginação
criadora verdadeira, separável do sujeito, autónoma e subsistindo
em si, que permite oferecer à consciência intuitiva representa-
ções já não imaginárias mas sim "imaginais», tão afastadas quan-
to possível de todo o "psicologismo». Deste modo, os espaços
paradisíacos, as Cidades divinas, os anjos, que florescem nos tex-
tos religiosos visionários, constituem na realidade manifestações
imaginais indirectas do Absoluto divino. A descrição fenomeno-
lógica destas visões evidencia pois, ao lado do real e do irreal,
uma realidade imaginal, um mundo próprio onde o espírito se
corporaliza e onde os corpos se espiritualizam (mundus imagina-
lis). A consciência é, assim, o lugar de uma experiência interior de
corpos espirituais (ou corpo de ressurreição) e de espíritos que
se "tipificam"em corpos imateriais. Inversamente, através destas
imagens, a imaginação espiritual vai poder desligar-se da sua de-
pendência em relação ao mundo material, para se transformar
ela própria antes de aceder à visão directa de Deus. A alma pode
estar na presença de representações de realidades imateriais

Capítulo 6

Do Imaginário e de suas relações com a mitopoética do espaço 203


Alberto Filipe Araújo e Jean-Jacques Wunenburger
mas sensíveis (tempo e espaços), que lhe vão permitir, por meio
de um acto espiritual hermenêutico, caminhar em direcção aos
arquétipos. Os seres imaginais, Anjos ou Mestres espirituais, já
não são propriamente analogias de Ideias do mundo inteligível,
mas sim personificações reais.

2. Do Imaginário e da Imaginação: reflexões múltiplas

Num primeiro olhar, os domínios da imagem, da imaginação e


do imaginário não constituem objetos privilegiados da filosofia
contemporânea. Esta distinguiu-se sobretudo por um intelectu-
alismo vigoroso, que culminou no pensamento estruturalista (C.
Lévi-Strauss, Jacques Lacan, Michel Foucault, etc.), ao qual su-
cedeu progressivamente uma escola fenomenológica preocupada
principalmente com a restauração da primazia do sensível atra-
vés da percepção (M. Merleau-Ponty). Se é verdade que Jean-Paul
Sartre, depois de Henri Bergson, dedicou duas obras à imagina-
ção e ao imaginário, não modificou todavia os pressupostos tradi-
cionais, dado que assimila sempre a imaginação a um desejo ani-
quilador da consciência e o imaginário a uma irrealidade. Aliás,
a filosofia contemporânea tem sido geralmente herdeira de uma
tradição que data do século XVII (Descartes, Malebranche, Pascal)
e que encara a imaginação como uma actividade de produção de
ficções, que apenas encontra a sua legitimidade no campo da arte.
Esta tradição do pensamento é provavelmente responsável por
uma falta de curiosidade e de exigências conceptuais, que impe-
diram que se procedesse a diferenciações categoriais das imagens
e das actividades da imaginação tão ténues como no caso das ati-
vidades percetivas e sobretudo intelectuais. Porque a esfera das
imagens, que tanto compreende processos como obras, só pode

204
ser verdadeiramente pensada se se tiver previamente evitado
confundir processos e representações fortemente heterogéneas.
Por sua vez, uma abordagem filosófica do imaginário é insepará-
vel de um trabalho epistemológico de descrição, de classificação
e de tipificação das múltiplas faces da imagem.
Mas o que é o imaginário? A resposta de que trata de uma ins-
tância mental que armazena um emaranhado e complexo conjunto
de imagens (de)formadas por uma imaginação, quer de tipo repro-
dutor, quer de tipo criador, suscetíveis de serem, estudadas, inter-
pretadas e decifradas sejam elas ícone, fantasma ou simulacro, sím-
bolo e imagem simbólica (Wunenburger, 2011: 15-18) se à primeira
vista colhe, incita-nos, contudo, ir mais longe na sua caraterização.
Assim, importa salientar que a esfera mental (a psicosfera) de cada
sujeito é ocupada, por um lado, pela perceção do real (imediato ou
memorizado) e, por outro lado, por uma ideação-verbalização que
utiliza signos lógico-linguísticos convencionais e abstratos, que, por
sua vez, permitem discorrer sobre o mundo ( julgar, raciocinar, pen-
sar). Entre estas duas instâncias, encontra-se o imaginário que com-
preende no seu seio um conjunto diverso de produções subjetivas de
imagens (verbais e/ou icónicas, elementos ou composição presentes
nos quadros ou narrativas)3 que alargam as representações do mun-
do (recriação do passado, imagens de mundos distantes e exóticos,
de mundos possíveis, de realidades futuras – projeto, antecipação,
ficcionalização do futuro), assim como dizem respeito ao imaginário
individual (recordações idealizadas, os meus sonhos de férias e da
vida futura, os meus desejos eróticos, as minhas idealizações dos

3 O imaginário engloba, pelo menos, dois tipos de imagens: as visuais e aquelas produzidas
pela linguagem (às quais seria necessário acrescentar as imagens acústicas e musicais, ol-
fativas, etc.). Perguntamo-nos se é preciso confundir ou distinguir, desde logo, as imagens
linguísticas (tropos, metáforas, símbolos, mitos, narrativas ficcionais) e as imagens visuais
miméticas (gráficas, plásticas, numéricas).

Capítulo 6

Do Imaginário e de suas relações com a mitopoética do espaço 205


Alberto Filipe Araújo e Jean-Jacques Wunenburger
objetos técnicos, as minhas crenças religiosas, etc.). Por outras pa-
lavras, podemos afirmar que entre a realidade concreta apreendida
pelos sentidos e o mundo abstrato da razão, existe um plano, ou
uma esfera, intermediários constituídos de recordações, de afetos,
de antecipações, de simulações e de ficções que nos ocupam uma
grande parte do tempo e, que, por sua vez, influenciam e determi-
nam as nossas disposições e estados da nossa alma, que orientam os
nossos pensamentos, que orientam as nossas decisões, influenciam
os nossos comportamentos, enfim todo um conjunto de aspetos que
constitui a vida psíquica do “animal simbólico” (Ernst Cassirer).
As imagens que constituem o imaginário (mentais e ma-
terializadas na escritura ou na pintura) são naturalmente in-
separáveis de estados efetivos diversos – prazer-desprazer –,
de significações simbólicas múltiplas, e de crenças (adesão por
nostalgia, por esperança, por diversão, mas também por uma
sequência funesta de traumatismos, de temores e de angústias).
O imaginário tem o dom de enquadrar ou deformar a perceção
do mundo presente e impressiona os conteúdos do pensamento
que ele alimenta e que alarga. Neste contexto, podemos salien-
tar que o imaginário designa uma totalidade de representações
mentais que ultrapassam a perceção e a intelecção, que impreg-
nam a realidade de ecos afetivos, de analogias e metáforas, de
valores simbólicos segundos, mas segundo as formas e as forças
muito diferenciadas. Esta natureza múltipla das imagens pode-
ria inclinar-nos a acreditar que, por esta variedade e plastici-
dade, se aparenta com um universo prenhe de elementos não
racionalizáveis, caóticos, imprevisíveis. Mas, muito provavel-
mente, é o contrário, porquanto sob a pluralidade emaranhada
de imagens heterogéneas (imagens factuais, superficiais, este-
reotipadas, etc…) encontram-se estruturas germinais, matrizes

206
de produção de sentido linguístico e pré-linguístico reveladores
das potências da imaginação (linguística, poética e narrativa;
visual; psicológica e coletiva – Wunenburger, 2011: 24-27). A
imaginação, como o espírito em geral, exige também uma es-
pontaneidade que garante a invenção e a inovação, pelo inter-
médio de ruturas e de singularizações que se afiguram como
uma exceção. A imaginação é sempre uma manifestação um
pouco imprevisível do psiquismo, que nunca está assim longe
do ingenium, da engenhosidade, do “génio” no sentido de uma
emergência de imagens que se enraízam nas franjas e pregas
mais recônditas da psique humana. A imaginação é regida pela
regra do “como se” que permite que ela se desloque da ordem
das coisas e de prestar-se a uma imitação de uma outra realida-
de, na sua ausência. Neste sentido, a imaginação é uma função
de superação e de transformação das imagens irredutível a uma
técnica, mas que permanece uma arte escondida nas profundi-
dades do psiquismo humano.
Na base das quatro grandes contribuições acima expostas
(Gaston Bachelard, Gilbert Durand, Paul Ricoeur e Henry Corbin),
mesmo considerando as suas divergências e diferenças epistemo-
lógicas, elas permitiram estabelecer os fundamentos de uma nova
teoria da imaginação e do imaginário, que podem ser considerados
conhecimentos sólidos. Daí podermos estabelecer algumas linhas
mestras que merecem especial destaque e uma reflexão demorada:
1º. As representações metafóricas não se reduzem todas a agre-
gados de representações de origem empírica, ligados por simples
leis associacionistas. O imaginário obedece a uma "lógica"e está
organizado em estruturas a partir das quais se podem formular leis
(Bachelard, Lévi-Strauss, Durand). O carácter operatório das três
estruturas (místicas, diairéticas e sintéticas), identificadas e postas

Capítulo 6

Do Imaginário e de suas relações com a mitopoética do espaço 207


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à prova por Durand, permite mesmo definir um "estruturalismo
figurativo», que compõe formalismo e significações;

2º. O imaginário, ao mesmo tempo que se insere em infra-estru-


turas (o corpo) e superestruturas (as significações intelectuais), é
obra de uma imaginação transcendental que é independente, em
grande parte, dos conteúdos acidentais da percepção empírica. Os
sonhos para Bachelard, tal como os mitos para Durand, confirmam
o poder de uma "fantástica transcendental», que designa, desde
Novalis, um poder figurativo da imaginação que excede os limites
do mundo sensível;

3º. As obras da imaginação produzem desta forma representações


simbólicas onde o sentido figurado original activa pensamentos
abertos e complexos, que só a racionalização a posteriori restitui ao
sentido unívoco. A imaginação é de facto uma actividade simulta-
neamente conotativa e figurativa que nos leva a pensar para além
daquilo que a consciência elabora sob o controlo da razão abstrata
e digital (Ricoeur).

4º. O imaginário é inseparável de obras, psíquicas ou materializa-


das, que servem para que cada consciência construa o sentido da
sua vida, das suas acções e das suas experiências de pensamento.
A este respeito, as imagens visuais e linguísticas contribuem para
enriquecer a representação do mundo (Bachelard, Durand) ou para
elaborar a identidade do Eu (Ricoeur). Assim, a imaginação sur-
ge de facto, e é algo que Sartre tinha previsto, como um modo de
expressão da liberdade humana confrontada com o horizonte da
morte (Durand);

208
5º. Finalmente, o imaginário apresenta-se como uma esfera de re-
presentações e de afetos profundamente ambivalente: tanto pode
ser uma fonte de erros e de ilusões como uma forma de revelação
de uma verdade metafísica. O seu valor não reside unicamente nas
suas produções, mas também no uso que lhes é dado. A imaginação
obriga então a formular uma ética, ou mesmo uma sabedoria das
imagens.

Através destas teses, corroboradas tanto por trabalhos experimen-


tais (testes do AT9 de Yves Durand, por exemplo) como especula-
tivos (as tradições visionárias do neoplatonismo ocidental e orien-
tal, entre outros), a imaginação e o imaginário surgem enquanto
instâncias específicas da constituição antropológica e prestam-se
a interpretações inéditas tanto dos processos cognitivos como
pragmáticos. Estando a maior parte destas obras ainda em fase de
elaboração, a sua filosofia das imagens continua confrontada com
um grande número de questões, que podem ser consideradas ou-
tras tantas oficinas teóricas, nas quais os jovens investigadores são
convidados a trabalhar. A lista destes problemas é extensa, mas é
possível destacar alguns pontos fortes:

1º - Do ponto de vista do conhecimento representativo em primeiro


lugar (Theoria). A imaginação é sem dúvida essencialmente repro-
dutiva, na medida em que ela reutiliza materiais provenientes da ex-
periência perceptiva. Mas ela prova igualmente que é capaz de pro-
duzir uma informação própria, endógena, através da qual se liberta
dos dados adventícios. Tal como ilustrou Bachelard, na esteira de
Kant e de Ernst Cassirer, este poder de construção a priori refere-se
tanto à espacialização da consciência como à sua temporalização.
Convi ria sem dúvida procurar as raízes de todas as nossas imagens

Capítulo 6

Do Imaginário e de suas relações com a mitopoética do espaço 209


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do espaço e do tempo, que regem a própria percepção, numa espécie
de esquematismo rítmico através do qual a consciência configura
todas as suas representações apoiando-se em estruturas sensorio-
motoras. Mas a imaginação irriga também, em sentido contrário, os
processos cognitivos mais abstratos. Longe de se poder reduzir a
actividades puramente lógicas relacionadas com conceitos puros, a
racionalidade recorre efetivamente a schèmes figurativos que prepa-
ram as grandes ordenações da intelecção do real. Aliás, as ciências
revelam a fecundidade heurística destas imagens que intervêm tanto
nos fenómenos de invenção, nas atividades de modelização, como
nas práticas didáticas (Paul Feyerabend, Gerald Holton, Fernand
Hallyn, etc.). O pensamento filosófico teria certamente muito a ga-
nhar se fosse explicado a partir de um certo número de figuras (as
do círculo, do espelho, da balança, por exemplo) que subtendem a
reflexão, lhe servem de esboço, ou mesmo de guia na escolha das
grandes opções interpretativas. Assim, é surpreendente ver que os
pensamentos metafísicos podem integrar determinados processos
poéticos e mesmo experiências visuais contemplativas;

2º - Do ponto de vista da consciência actuante (praxis), a imagina-


ção participa igualmente no desenvolvimento da lógica pragmática
e mesmo ética dos agentes. Começamos a perceber melhor como é
que um indivíduo elabora a sua identidade pessoal, ao longo da sua
vida, através de uma conduta narrativa, fonte de sentido (Paul Ri-
coeur). Da mesma forma, as suas escolhas e compromissos éticos não
se limitam à esfera das obrigações racionais, recorrendo pois a imagens
do bem e do mal e a fins últimos a atingir (felicidade, beatitude). Quanto
às relações entre o indivíduo e a sociedade, estas são largamente tecidas
em representações religiosas e em sonhos coletivos.

210
Em todos os casos, uma teoria do imaginário pressupõe um esforço
para diferenciar mais claramente os processos e as representações,
muitas vezes encaixados de forma precipitada num léxico, particular-
mente pobre e redutor na língua francesa. Deste ponto de vista, pode-
mos esboçar pelo menos três níveis de formação de imagens:

1º nível: A imagética poderia designar o conjunto das imagens men-


tais e materiais que se apresentam antes de mais como representa-
ções do real, apesar das distâncias e das variações involuntárias ou
voluntárias em relação ao referente. Podemos incluir nesta categoria
as imagens fotográficas, cinematográficas, televisivas, o desenho pu-
blicitário, a pintura descritiva, as imagens mnésicas, etc., quando se
apresentam como "coisas"representadas. A imagem duplica assim o
mundo a fim de memorizá-lo, deslocá-lo ou estetizá-lo;

2º nível: O imaginário engloba as imagens que se apresentam como


substituições de um real ausente, desaparecido ou inexistente,
abrindo deste modo um campo de representação do irreal. Este
pode apresentar-se como uma negação ou denegação do real, no
caso da fantasia (poderemos então falar de um imaginário stricto
sensu, no sentido da psicanálise lacaniana), ou simplesmente como
um jogo com possibilidades, como no caso da ficção (como se), o
que nos permite entrar já no simbólico (no sentido kantiano);

3º nível: O imaginal (do latim mundus imaginalis e não imaginarius)


remeteria antes para representações metafóricas a que podería-
mos chamar sobrerreais, uma vez que estas têm a capacidade de
serem autónomas como objetos, colocando-nos simultaneamente
na presença de formas sem equivalentes ou modelos na experiên-
cia. Estas imagens visuais, schèmes, formas geométricas (triângulo,

Capítulo 6

Do Imaginário e de suas relações com a mitopoética do espaço 211


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cruz), imagens arquetípicas ou primordiais (andrógino), parábolas
e mitos, proporcionam um conteúdo sensível aos pensamentos,
impõem-se-nos como rostos, falam-nos como mensagens. O ima-
ginal, enquanto correlação da imaginação criadora, realiza o pla-
no superior do simbolismo que atualiza imagens epifânicas com
um sentido que nos ultrapassa e que não se deixa reduzir nem à
reprodução nem à ficção. Estas representações designam imagens
primordiais, com um alcance universal, que não dependem apenas
das condições subjetivas daquele que as percebe, que a elas adere,
mas que se impõem ao seu espírito como realidades mentais autó-
nomas, como factos noéticos.

Estas três categorias de imagens, frequentemente entrosadas uma


na outra na experiência mental, definem aliás três intencionalida-
des bem diferenciadas: metaforizar, imaginar e imaginalizar. A cada
uma delas corresponde igualmente um tipo de saber bem identi-
ficado: para o primeiro a semiologia, para o segundo as ciências
da fantasia e da ficção, para o terceiro uma espécie de iconologia
simbólica, com métodos ainda indecisos. São, no entanto, estas
últimas imagens as mais ativas no que se refere às atividades de
pensamento especulativo (Wunenburger, 2000: 9-18; 1991; 1997;
Chateau, 1972; Dufrenne, 1976: 99-132; Corbin, 1964; 1976). Deste
modo, uma conceção filosófica do imaginário parece capaz de ar-
rancar a imagem ao seu estatuto degradado e marginal, a fim de o
reabilitar enquanto instância mediadora entre o sensível e o inte-
lectual. Para além disso, o imaginário prolonga-se a montante e a
jusante, vindo imiscuir-se na perceção e prolongar-se nas ativida-
des conceptuais. Conviria desde logo retirar as consequências de
uma filosofia das imagens: a racionalidade, longe de se identificar
com uma espécie de palácio de cristal das ideias claras e distintas,

212
compreende contrastes de luz e de sombra. A imagem enquanto
sombra favorece na realidade uma profundeza das coisas e assegu-
ra uma melhor difusão da sua luminescência.

3. UMA ANTROPOLOGIA GERAL DO IMAGINÁRIO

O conjunto das hipóteses e das teorias herdado dos principais in-


térpretes do imaginário, acima evocado, permite esboçar os con-
tornos de um vasto campo de investigação, que se reconhece por
meio de um certo número de dados objetivos, de conceitos e de
modelos de análise comuns, de resultados operatórios largamente
partilhados. No cruzamento de várias disciplinas, o imaginário tor-
nou-se, portanto, uma questão viva, que suscita numerosas pesqui-
sas tendo como base uma problemática doravante bem identificada
e estabilizada. Propomo-nos lembrar, mais adiante, os pontos de
passagem obrigatórios de uma tal ciência do imaginário, em função
das suas principais tendências e dos seus saberes mais recentes.
O Homo sapiens conquistou sem dúvida a sua humanidade por
meio de um diálogo ininterrupto entre uma inteligência adaptativa
que recorre à criação de ideias abstratas e um psiquismo imagi-
nante que substitui o real pela sua representação mimética, que
antecipa ações através de uma imagem projetiva, que brinca com as
formas fictícias e, sobretudo, retira devaneios despertos dos seus
sonhos noturnos. A imaginação desempenha portanto, na espécie
humana, um papel essencial no que diz respeito à adaptação vital,
à criação de um meio cultural, à compensação das dificuldades de
viver através da arte, da religião ou da fabulação. Os trabalhos de
neurobiopsicologia contemporânea confirmam aliás a especifici-
dade das produções mentais dominadas pelo afeto (as emoções),
pela imagem e pela intuição (Henry Laborit, António Damásio), e a

Capítulo 6

Do Imaginário e de suas relações com a mitopoética do espaço 213


Alberto Filipe Araújo e Jean-Jacques Wunenburger
antropologia confirma o papel dos sonhos e dos fenómenos visio-
nários nas culturas mais antigas. Deveremos falar, à semelhança de
Edgar Morin, de um Homo demens que oporia aos constrangimen-
tos do Homo sapiens a exuberância do sonho, do jogo, da loucura?
Ou, pelo contrário, afirmar que a imaginação e as suas produções
interferem e interagem com as atividades intelectivas, sonhando
o homem em primeiro lugar com o que vai racionalizar seguida-
mente, como mostraria a invenção de muitas técnicas? As relações
entre o real e o irreal, entre o abstrato e o concreto, entre o digital
e o analógico, são, nesta perspetiva, objeto de interpretações con-
troversas (Bachelard-Durand) que os dados objetivos da história
só por si não poderão contrariar.
Passando agora do ponto de vista da espécie para o do indivíduo,
de que forma é que cada homem produz imaginário? A questão foi
abordada nos debates clássicos da filosofia do conhecimento, onde se
defrontam partidários do todo adquirido, do todo inato ou de fórmu-
las mistas. Sabemos o quanto as abordagens empiristas (dominantes
nos séculos XVII e XVIII), que condicionam as imagens de um sujeito
às experiências sensoriais efetivamente vividas, conduziram a uma
incompreensão e a uma desvalorização inaceitáveis e esterilizantes
da imaginação. Desde Kant, certos autores românticos alemães, e em
seguida os detentores da psicologia das profundezas, formularam a
hipótese segundo a qual a imagem provinha de uma estrutura trans-
cendental, que precisava de ser ocasionalmente ativada por experiên-
cias psíquicas concretas, mas que dota o sujeito de um poder, a prio-
ri, de produzir imagens elementares (imagens arquetípicas: alguns
protótipos simbólicos). Logo, a imagem não seria inteiramente uma
representação secundária, de origem exógena, enquanto resposta a
uma excitação ou a uma situação externa, mas sim, pelo menos em
certos casos, uma representação endógena, uma forma pré-empírica,

214
uma produção originária. Neste sentido, podemos inseri-la, do ponto
de vista espiritualista e platónico, numa pura noosfera (mundo de
ideias) dotada de conteúdos psíquicos próprios ou, de uma forma
mais materialista, podemos implantar estas imagens em montagens
neurobiológicas, os mecanismos reflexos elementares, por exemplo,
como propõe Gilbert Durand no seguimento de André Leroi-Gou-
rhan, de Adolf Portmann, de Konrad Lorenz, etc.
No entanto, mesmo sendo de origem interna, a imagem mis-
tura-se com os diferentes registos sensoriais que a dotam de con-
teúdos particulares e que, por sua vez, imprimem no imaginário
os contornos próprios dos seus canais de informações (mudando
a imagem de acordo com o facto de esta ser verbal, visual, táctil,
auditiva, etc.). Não se pode negar de facto que o imaginário depen-
de muitas vezes de uma sensorialidade dominante. As categorias
da representação metafórica e mesmo conceptual, provenientes
do helenismo, são desta forma fortemente marcadas pela experi-
ência visual do olho, enquanto a criatividade de filiação cultural
judia valoriza sobretudo as imagens verbais e os seus procedimen-
tos retóricos; assim, o falar suplanta o ver. Embora o imaginário,
no seu princípio, seja vicariante e sincrético e enriqueça através
da sua participação nos diferentes sentidos, devemos todavia ser
sensíveis à pregnância deste ou daquele meio de impressão e de
expressão, que lhe impõe valorizações específicas.
A infância constitui a etapa decisiva da formação do ima-
ginário. O lento desenvolvimento da inteligência abstrata du-
rante os primeiros anos (E. Wallon, Jean Piaget), associado às
fortes estimulações pulsionais e ao instinto de jogo, tornam o
psiquismo da criança particularmente recetivo à imaginação e
aos sonhos, de acordo com lógicas animistas ou vitalistas, es-
pecialmente fecundas em termos de imagens, mesmo que estas

Capítulo 6

Do Imaginário e de suas relações com a mitopoética do espaço 215


Alberto Filipe Araújo e Jean-Jacques Wunenburger
possam entravar a aprendizagem da razão (Bachelard, Piaget). A
fraca inibição dos afetos e dos desejos infantis sobrecarrega tam-
bém estas imagens de infância com valores sexuados, mais do
que estritamente sexuais, servindo doravante o imaginário para
estruturar, de acordo com modos diferentes (atracão-repulsão,
regressão, sublimação, etc.), as relações da criança com a esfera
parental ou familiar (Freud). Embora a psicanálise tenha sem dú-
vida sobredeterminado a importância e o conteúdo literal deste
imaginário (daí o modelo esmagador e discutível do complexo
de Édipo), ela tem, contudo, o mérito de identificar processos de
formação do inconsciente, condição de uma transformação de-
cisiva do imaginário pessoal. Numerosos materiais infantis vão
efetivamente conhecer, durante a infância, uma dissociação en-
tre consciente e não consciente, tornando-se a cisão (Spaltung)
ou o recalcamento (Verdrängung) uma fonte de transformação
de imagens antigas em novas, processo crítico que pode dar lu-
gar a temíveis formações patogênicas (neurose-psicose); quanto
ao próprio inconsciente, arcaico ou recalcado, vai servir ulterior-
mente para sobrecarregar ou revivificar numerosas imagens da
vida desperta da consciência adulta, em particular através dos
fluxos psíquicos que passam entre o sonho noturno e o devaneio
diurno. Se as imagens profundas do inconsciente permanecem
inacessíveis, a saúde psíquica e a criatividade da imaginação im-
plicam todavia uma capacidade de fazer circular afetos e imagens
de um nível para outro, sem que uma das instâncias oprima a
outra. O imaginário de cada indivíduo está assim enraizado numa
bio-história pessoal (temperamento, carácter, estrutura pulsio-
nal, fantasias arcaicas) que lhe proporciona a sua idiossincrasia,
e é igualmente levado a expandir-se, a renovar-se por meio de
processos de simbolização que o fazem participar na totalidade

216
do mundo (natureza e cultura). E esta articulação da introversão
e da extroversão, do passado e do futuro, é esta composição dos
níveis de imagens que Durand junta no termo "trajeto antropo-
lógico». Analisar um imaginário consiste sempre em esclarecer a
confusão que reina nestas camadas múltiplas, que só descambam
para o caos nos casos patológicos.
O trabalho da imaginação individual não é todavia entregue à
iniciativa de uma subjectividade fantasista. Imagens inconscientes
e conscientes obedecem a regras e a estruturas que regem a sin-
taxe e a semântica das imagens. Cada indivíduo organiza as suas
fantasias, sonhos e mitos pessoais servindo-se de dispositivos cria-
dores (símbolos, regras lógicas, operadores linguísticos como ver-
bos, substantivos, advérbios, etc.), que permitem construir mun-
dos imaginários coerentes, dotados de temáticas redundantes ou
obsessivas, de paisagens típicas, de situações actanciais dominantes
(unir-separar, reciclar). Embora cada indivíduo imaginante esteja
dotado de uma função de onirismo, de simbolização e de mitifica-
ção, nem todos atualizam o conjunto das práticas imaginantes. A
capacidade de transformar as imagens de um ser, para fazer com
que estas acedam a um nível estético ou simbólico novo e profundo
varia, o que constitui o mistério da criação artística ou a chave das
afinidades que deve reportar-se a uma estrutura narrativa mítica.
Os fenómenos religiosos fazem igualmente aparecer atividades de
mobilização das imagens que excedem os poderes comuns, com fre-
quência demasiado enfeudados relativamente à perceção sensível.
A imaginação ativa pode assim produzir influências à distância, psí-
quica (sugestão) ou mesmo física (parapsicologia), ou transformar-
-se em episódios visionários largamente explorados pelos êxtases,
transes, possessões, divinações ou xamanismos. A mística, por seu
lado, cultivou uma arte de tornar sensível o mundo suprassensível

Capítulo 6

Do Imaginário e de suas relações com a mitopoética do espaço 217


Alberto Filipe Araújo e Jean-Jacques Wunenburger
através das visões demónicas (os Anjos, por exemplo), que pode-
mos associar a um poder específico de figuração de níveis de reali-
dade ontológica, o imaginal (Henry Corbin).
O imaginário resulta geralmente da estratificação das suas
imagens engramadas, mas também do seu poder onírico, da sua ap-
tidão para a fabulação e para a mitificação dos acontecimentos com
que se depara na sua vida consciente. A opção transcendentalista
pela imagem não deve levar a subestimar o papel do ambiente psi-
cossocial. Certos modelos de instrução e de educação, demasiado
marcados pelo conceptualismo, certas ideologias sociais demasia-
do positivistas ou mesmo cientificistas, como as que foram promo-
vidas pelas Luzes, criam um ambiente iconoclasta que empobrece
as funções do imaginário ou mesmo a própria função simbólica (a
"pregnância simbólica"de Ernst Cassirer). O imaginário dinâmico e
criador exige portanto ser rodeado por uma cultura dupla, que sai-
ba igualmente dar lugar ao conceito e ao afeto, à ciência e à poesia.
A educação artística, a cultura religiosa, quando é alimentada por
ritos e mitos, ajudam o sujeito a manter um poder imaginante que
deverá contrabalançar constantemente com as normas e as exigên-
cias de uma cultura abstrata e digital. Quando o ambiente já não
oferece canais de expressão às imagens, o imaginário ou é atacado
de necrose atrofiando o psiquismo do homem, ou se toma selva-
gem para explodir sob a forma de condutas e aspirações irracionais
(Roger Bastide, Françoise Bonardel).
A compreensão da vida do imaginário obriga-nos a defender
uma autêntica reforma da cultura que deveria assentar numa pedago-
gia bipolar, do dia e da noite, numa terapia baseada na ressimbolização
de psiquismos anémicos (Robert Desoille), numa teoria da cultura
dupla (Edgar Morin, Gilbert Durand) que permitisse que os indivídu-
os satisfizessem os dois pólos da sua constituição. O imaginário deve

218
por conseguinte ser informado e formado a fim de aceder progressi-
vamente a uma liberdade criadora, em vez de ser entregue à fantasia
ou ao delírio. Mas uma tal aculturação do imaginário exige o apoio de
uma meta-racionalidade apta para integrar na vida do espírito situa-
ções e processos baseados numa lógica não identitária, alternativa à
razão conceptual. Porque as imagens, longe de negarem a racionali-
dade, obedecem mais a uma outra dialética baseada na bipolaridade,
no terceiro incluído, no princípio de contradição (Gilbert Durand,
Jean-Jacques Wunenburger), que importa dinamizar se se quiser to-
nificar o imaginário de acordo com a noção germânica de Bildung,
que designa simultaneamente a tarefa educativa, no sentido em que
esta dá uma forma ao ser, e o poder de criar imagens, de dar figura
(Wunenburger, 1993: 59-69). Na medida em que não "temos"apenas
imagens, mas "somos"ou tomamo-nos também as nossas imagens,
tomamos a sua forma, criamo-nos a nós próprios através delas. Para
isso, precisamos de um "novo espírito pedagógico"(Bruno Duborgel),
ou mesmo de uma "pedagogia do imaginário"(Georges Jean), co-ba-
seada em simultâneo numa "poética do devaneio"(Gaston Bachelard)
e de uma "razão contraditória"(Jean-Jacques Wunenburger): "Sonhar
os sonhos e pensar os pensamentos, eis sem dúvida ditas disciplinas di-
fíceis de equilibrar"(Bachelard, 1968:45). E precisamente neste equi-
líbrio que assenta uma das principais tarefas de uma pedagogia do
imaginário, e que consiste em reconhecer simultaneamente níveis de
especificidade e de irredutibilidade entre a razão (ciência) e a imagi-
nação (poesia). Com efeito, uma pedagogia do imaginário deve saber
perturbar a razão e, se o conseguir, junta-se à atitude bachelardiana.
A este respeito, sabemos muito bem qual a importância que a obra
de Bachelard teve para que a razão (abstração científica), através das
"hormonas da imaginação"(1990: 19) enquanto "reservas de entusias-
mo"(1968: 107), tivesse uma "ascensão feliz"(1993: 30) rumo a um

Capítulo 6

Do Imaginário e de suas relações com a mitopoética do espaço 219


Alberto Filipe Araújo e Jean-Jacques Wunenburger
sonho cosmologizante poético, mítico, sem esquecer, no entanto,
a importância de "pensar os pensamentos». Uma importância que
não nos fazem esquecer que se o esforço na direção da abstração
cientifica exige uma educação ascética, iconoclasta, a vitalidade e a
fecundidade oníricas necessitam, por sua vez, de um certo número
de incitações, de condições favoráveis que não se encontram reu-
nidas espontaneamente. Daí se entender que toda uma pedagogia
do imaginário (Duborgel, 1983; Jean, 1991; Teixeira, 2006: 215-227,
Teixeira; Araújo, 2009: 7-13; Wunenburger, 1993: 59-69) deva assu-
mir um papel crucial na criação de condições especiais para que o
sujeito imaginante possa, na verdade, “sonhar os sonhos” e “pensar
os pensamentos” tal como nos ensinou Bachelard.
O imaginário individual deve procurar inscrever-se e apoiar-se
num imaginário coletivo, que o alimenta e que se renove a si próprio
por ocasião das obras individuais. A dimensão de socialização do
imaginário assenta aliás num património de imagens e de processos
de simbolização comum à espécie. Todos os trabalhos de mitogra-
fia concluíram que se tratava de um isomorfismo entre sonhos in-
dividuais e mitos culturais, constituindo o imaginário, deste modo,
uma gramática simbólica bem mais profunda do que a das línguas
(Jung, Mircea Eliade). E este fundo comum de imagens primordiais
ou arquetípicas (protótipos simbólicos) e de símbolos que vai co-
nhecer uma atualização coerente no interior de um campo cultural,
passando pela mediação de línguas particulares e de especificidades
institucionais (religiões poli ou monoteístas, por exemplo). Cada
imaginário cultural consiste numa certa configuração retirada da to-
talidade das imagens possíveis, obedecendo a uma estrutura funcio-
nal universal. Podemos assim, como realçou de um modo demasiado
exclusivo o estruturalismo lévi-straussiano, extrair uma algoritmia
funcional de postos imaginários, que virão ocupar deuses, heróis,

220
acontecimentos fundadores de uma civilização (exemplo: a estru-
tura trifuncional indo-europeia evidenciada por Georges Dumézil,
1941). Embora todo o corpus imaginário pareça ter como função
antropológica o domínio do tempo organizando-o narrativamente,
tendo como fim último a desdramatização da morte, este vai, no en-
tanto, difratar-se em sistemas diferenciados de acordo com linhas
temporais, umas vezes cíclicas, outras vezes lineares. Podemos aliás
verificar que o imaginário de um tempo linear e progressista, prove-
niente do milenarismo joaquimita na Europa (século XII), favoreceu
particularmente a contaminação da cultura por uma racionalidade
iconoclasta, ao contrário do tempo cíclico que acolhe a maior parte
dos grandes imaginários religiosos (Mircea Eliade).

A modos de conclusão

Ao longo do nosso estudo apresentamos o contributo de Bache-


lard, Durand, Ricoeur e de Henry Corbin para a compreensão do
conceito de imaginário que é, como é comummente admitido,
uma noção ingrata e complexa. Seguidamente, refletimos sobre
a natureza do imaginário e da imaginação. Terminamos com uma
parte dedicada à antropologia do imaginário. Do exposto ante-
riormente, tentamos mostrar que o imaginário é um domínio
verbal-icónico de relevante importância para o “animal simbóli-
co” (Ernst Cassirer) que é o ser humano de hoje e de sempre. Os
seus conteúdos, como bem o mostrou Gilbert Durand, obedecem
a uma espécie de gramática do imaginário que ele ilustrou num
Anexo das suas Estruturas Antropológicas do Imaginário denomina-
do “Classificação Isotópica das Imagens” (1993: 506-507). Consi-
deramos que a classificação das imagens, pensada e elaborada por
Gilbert Durand, é um dos contributos mais originais e heurísticos

Capítulo 6

Do Imaginário e de suas relações com a mitopoética do espaço 221


Alberto Filipe Araújo e Jean-Jacques Wunenburger
no campo dos Estudos do Imaginário e que, por sua vez, pode ser
aplicada aos mais variados domínios quer das Ciências Humanas,
quer das Ciências ditas “duras”.
A descrição sistemática do imaginário humano, individual e co-
letivo, resulta de um grande número de disciplinas e de saberes par-
ciais (crítica literária, psicanálise, antropologia cultural, etc.). Mas o
avanço decisivo, realizado na segunda metade do século XX, deve-se
menos a uma acumulação de dados novos do que a uma teorização
propriamente filosófica. Porque o imaginário não é apenas um termo
que designa um conglomerado de imagens heteróclitas, mas remete
para uma esfera psíquica onde as imagens adquirem forma e senti-
do devido à sua natureza simbólica. Só uma teoria filosófica do es-
pírito, dos níveis das representações e dos níveis de realidade, que
se enraíza nas mais antigas metafísicas ocidentais (neoplatonismo,
hermetismo, etc.), poderia permitir a fundação de novos métodos de
análise que serão em seguida aplicados pelas ciências humanas a ob-
jetos particulares, à sociologia, à psicologia das profundezas, etc. A
compreensão da natureza do imaginário é mais condicionada por um
trabalho de fundo inseparável dos métodos recentes da filosofia, do
estruturalismo, da fenomenologia e da hermenêutica do que por uma
terminologia ou uma tipologia.
A linguagem do imaginário não é arbitrária na medida em que é
formada por grandes arquétipos (epitéticos e substantivos), por schè-
mes verbais e por símbolos e que se organiza em torno de dois regimes
(diurno e noturno) tipificados por três estruturas (heroicas, sintéticas
e místicas). Daí que não devamos temer que o psiquismo imaginante
se encontre à deriva ou preso de uma anomia perturbante dos ima-
ginários mítico e social. No entanto, temos que o admitir, é sempre
possível que os seus conteúdos possam ser contaminados por uma
espécie de vírus, cuja identificação é sempre difícil, que acabem por

222
conduzir o sujeito imaginante quer ao delírio, quer a uma exuberância
frenética onde a proliferação das imagens rompe com a lógica da sua
“classificação isotópica”. Tanto num caso como noutro, uma das con-
sequências mais imediatas para o imaginário é o seu empobrecimento
e degradação da sua semântica profunda.
Na direção apontada anteriormente, se a faculdade da imagi-
nação se ocupa da criação de imagens e da sua deformação, como
nos lembrou Gaston Bachelard, o imaginário é bem aquele conjunto
de produções, mentais ou materializadas em obras, com base em
imagens visuais (quadro, desenho, fotografia) e linguísticas (me-
táfora, símbolo, narrativa), formando coerentes e dinâmicos refe-
rentes a uma função simbólica no sentido de um ajuste de sentidos
próprios e figurados. Na base desta definição todo um horizonte se
abre diante do pesquisador em ordem a que abrace e compreenda os
desafios epistemológicos e as várias explorações do Imaginário, no-
meadamente no campo da mitopoética e lugar, para relembrarmos
aqui o tema que esteve na base do presente trabalho, e mesmo da
poética do espaço na senda de Gaston Bachelard: “O espaço captado
pela imaginação não pode permanecer o espaço indiferente à revelia
da medida da reflexão do geômetra. Ele é vivido. E ele é vivido não
apenas na sua positividade, mas com todas as parcialidades da ima-
ginação. Em particular, quase sempre ele atrai” (2012: 17). É neste
sentido, portanto, que podemos dizer que a nossa relação com o lu-
gar é menos vivido pelo lado material, isto é, físico e mais pela ima-
terialidade, leia-se pela imaginatividade, que nos une ao lugar onde
vivemos, por exemplo! Os valores de intimidade do lugar que nos
viu nascer, no qual permanecemos, tocam intensamente na nossa
interioridade e espicaçam as nossas lembranças. Pela imaginação,
certos lugares transfiguram-se de tal modo que o cosmos torna-se
um microcosmos.

Capítulo 6

Do Imaginário e de suas relações com a mitopoética do espaço 223


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WUNENBURGER, Jean-Jacques WUNENBURGER, Jean-Jacques


(1990). La raison contradictoire. (2000). L’Arbre aux Images.
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Capítulo 6

Do Imaginário e de suas relações com a mitopoética do espaço 227


Alberto Filipe Araújo e Jean-Jacques Wunenburger
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Filipe & MAGALHÃES, Justino
(Orgs.). História. Educação e
Imaginário (Actas do IV Colóquio
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Cortez Editora.

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(2007). O Imaginário. Trad. de
Maria Stela Gonçalves. São Paulo:
Edições Loyola.

228
Capítulo 6

Do Imaginário e de suas relações com a mitopoética do espaço


Alberto Filipe Araújo e Jean-Jacques Wunenburger baracoa
editora
Dirk Michael Hennrich
Universidade de Lisboa /
Fundação para a Ciência e a Tecnologia

Investigador de Pós- Doutoramento (BPD/


FCT) no Centro de Filosofia da Universidade
de Lisboa. Doutorou-se em 2014 na
Universidade de Lisboa e possui um Mestrado
em Filosofia, Literatura Moderna Alemã e
História da Universidade de Basileia/Suíça. É
colaborador estrangeiro do CISC PUS-São
Paulo), do Grupo de Pesquisa Mitopoética
da Cidade e do Laboratório de Psicologia
Socioambiental e Intervenção (IPUSP). Os
seus principais campos de investigação são
Filosofia da Paisagem, Filosofia da Mídia,
Idealismo Alemã, Pré-Romantismo Alemão e
Filosofia em Portugal.

CV: http://lattes.cnpq.br/9161515602433314
E-mail: dh@letras.ulisboa.pt
ORCiD: https://orcid.org/0000-0001-9680-916X

231
Paisagem como paradigma
político. Corpo e paisagem na
época das imagens técnicas

Resumo: Desde o aparecimen- formada pela imagem técnica


to do conceito de Paisagem e da sua política.
nas diversas línguas da cultura
ocidental existe uma relação Palavras-chave: Paisagem,
indissociável entre paisagem Política, Corpo Vivo, Ima-
e política. Significante para gens Técnicas, Ideologia.
compreensão da paisagem
como paradigma político da
atualidade, contudo é a abstra-
ção da paisagem como territó-
rio de uma identidade fechada,
percebendo as paisagens como
espaços abertos ao horizonte
onde se cruzam e desdobram
as múltiplas experiências hu-
manas e não-humanas. Neste
sentido inclui a política da
paisagem e a paisagem como
paradigma político, o pensar
sobre a paisagem e o corpo-
-vivo [Leib] que perambula a
paisagem, como também, cada
vez mais, o pensar sobre a
imaginação do espaço natural
e da natureza em geral

232
Landscape as a political para-
digm. Body and landscape in
the era of technical images

Abstract: Since the emergen- space and the nature in ge-


ce of the concept of landsca- neral formed by the technical
pe in the various languages of image and its politics.
western culture, there is an
inseparable relation between Keywords: Landscape, Poli-
landscape and politics. Howe- tics, Body, Technical Images,
ver, it is significant for the Ideology.
understanding of the lands-
cape as a political paradigm
nowadays, the abstraction of
the landscape as a territory of
a closed identity, perceiving
the landscapes as spaces open
to the horizon where the mul-
tiple human and nonhuman
experiences cross and unfold.
In this sense, it includes the
landscape’s politics and the
landscape as a political para-
digm, the tought about the
landscape and the living-body
[Leib] that wanders by the
landscape, as well as, increa-
singly, the tought about the
imagination of the natural

233
Capítulo 7

Paisagem como
paradigma político.
Corpo e paisagem na
época das imagens
técnicas
Dirk Michael Hennrich
Universidade de Lisboa / Fundação para a
Ciência e a Tecnologia

Na economia conceitual da época moderna surge o conceito da


paisagem como uma metáfora central e abrangente. As suas
múltiplas dobraduras e a sua capacidade de infiltrar cada vez
mais os diversos campos de saberes teóricos e saberes práticos
é única, embora desconhecida até os inícios do século vinte.1
Na sua origem porém encontramos a Política e a Arte, sobre-
tudo a arte pictórica, e assim a Estética, se a denominação da
disciplina não tivesse ocorrido somente finais do século dezoi-
to com Alexander von Baumgarten. Política e Estética aparecem
lado a lado no findar da ordem divina e do germinar da ordem
estritamente humana, do qual o humanismo renascentista é
1
SIMMEL, Georg (1913), Philosophie der Landschaft, 1913, trad. Filosofia da Paisagem, In: Filosofia da
Paisagem. Uma Antologia, pp. 42-51, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa: Lisboa, 2011.

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 235


Editora Baracoa — 2019
uma das primeiras emblemáticas facetas. Mas ambos não são
vinculados apenas numa dependência unilateral em que a arte
pictórica figura como a serva da Política para ilustrar e mape-
ar o território e a população dominada nas suas mais variadas
feições naturais e culturais como por exemplo no afresco de
Ambrogio Lorenzetti os Efeitos do bom governo na cidade e no
campo de 1337-1340. Mais do que isso encontra-se a suposta “ser-
va”, a Estética, no lugar de uma primeira noção, denominação
e realização da essência originária da época moderna, efetuan-
do o passo revolucionário para uma nova força da imaginação
[Einbildungskraft] no sentido de uma criação e formação perpétua
de imagens cada vez mais técnicas.
A arte pictórica, isto é, a pintura e aqui especialmente a
pintura paisagista, assume um lugar iminente na formação
e imaginação de uma nova era e somente muito mais tar-
de, depois da sua passagem e transformação pelo Roman-
tismo, o conceito da paisagem entra nos inícios do século
vinte no contexto das questões ecológicas e ambientais sen-
do também, ao mesmo tempo, fortemente incorporado no
discurso da identidade nacional, do nacionalismo europeu
e global. Nos primórdios da sua consolidação, o conceito
da Paisagem ainda não é apropriado por uma ideologia po-
lítica do porte das grandes ideologias do século vinte, do
comunismo soviético, do fascismo alemão ou do capitalis-
mo norte americano, justamente porque a ideologização
do mundo ocorre junto com o surgimento da Paisagem.2
O início da Paisagem é o início da ideologização do mundo,

2 O conceito da ideologia se refere aqui primeiramente à criação e a fixação da atenção num


certo espectro de imagens produzidos e proliferados para fins políticos e sobretudo para esta-
belecer e manter uma posição de poder social e económico.

236
isto é, da criação de uma determinada visão do mundo, do
mundo como imagem.3
Inicialmente a Política aparece sempre como algo antagônico
a Natureza, sendo a Natureza percebido e concebido como o rei-
no poderoso e imprevisível que apenas através de uma silenciosa
declaração de guerra e um monstruoso esforço ‘político’ pode ser
controlada e dominada. Enquanto a Natureza era criação divina,
perfeita, em si fechada, ela hospedava, por intermediário para os
humanos, os deuses, como por exemplo o grande Pã da mitologia
grega, que não sem razão era considerado como o filho de Hermes,
o mensageiro entre os mortais e os imortais. A Política, compreen-
dida como arte de governar, como assunto dos muitos que habitam
a cidade, é sempre e ainda um assunto dirigido para a convivência
dos humanos com os humanos, dirigido pelos interesses humanos
e apenas humanos e contra as tendências não-humanos sejam eles
de ordem orgânica ou não orgânica. Surge então com a Política des-
de os seus inícios a necessidade da subjugação, regulamentação e
instrumentalização e em geral do controle e domínio do humano,
da Cultura, sobre o não-humano, a Natureza. Tudo aquilo que ante-
riormente era protegido, legislado, oferecido ou retirado e sobre-
tudo usado contra os interesses humanos, enquanto na posse dos
deuses, cabe cada vez mais e, definitivamente, a partir da Renas-
cença – e com o devir de uma ordem estritamente humana – sob a
legislação humana. A Natureza já não é obra divina impenetrável e
enigmática e animada por forças sobrenaturais, mas morta e dis-
secável, descritível e esteticamente experimentável. A polis grega,
mesmo ainda não existindo o conceito da paisagem na antiguidade,
se constituiu através da separação entre a cidade [polis] e o fora da

³ HEIDEGGER, Martin (1938) Die Zeit des Weltbildes, trad. O tempo da imagem do mundo, In Camin-
hos da Floresta, pp. 95-138, Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 2002.

Capítulo 7

Paisagem como paradigma político. Corpo e paisagem na 237


época das imagens técnicas
Dirk Michael Hennrich
cidade [chora] como aparece exemplarmente no diálogo Fedro de
Platão, no qual Sócrates encontra-se com Fedro numa paisagem e
num santuário do deus Pã para dialogar sobre o belo. De um lado
já aqui, a cidade como o lugar do diálogo, da Filosofia, da Política,
da Legislação e em geral das questões das coisas humanas, e o ou-
tro da cidade que não interessava tanto para Sócrates, como Fedro
ressalta.4 Encontramos então desde os primórdios do conceito da
Paisagem, de um lado, a Natureza e de outro lado, a Política, mas o
que ocorre na época moderna sob o conceito da Paisagem é justa-
mente o desaparecimento paulatino do antagonismo entre Política
e Natureza e o aparecimento da Estética a partir das imagens e da
imaginação da Natureza como Paisagem.
Na época moderna, considerado aqui como o momento do
fim da Natureza ou decerto da decomposição da mesma, surge
a Estética como algo central para a existência humana e para a
auto-compreensão da modernidade. Só a partir da Renascença
é possível falar de imagens no sentido moderno como obras
de arte e de uma idolatria de imagens, sendo anteriormente os
ícones e relíquias os objectos de adoração. Também não existia
uma imagem do mundo [Weltbild] no sentido estrito, mas exis-
tiam as cosmovisões, as percepções da ordem universal, as dou-
trinas da mesma ordem e assim, sobretudo, uma representação
da criação divina do universo. Surge assim, nesta nova época,
entre o conceito da Natureza e o conceito da Política o con-
ceito da Paisagem e a Éstética como arte, da pintura paisagista
e das primeiras visões do mundo (Weltanschaungen) que dife-
rem essencialmente das cosmovisões – e não apenas devido a
⁴ PLATãO, Fedro (2016), São Paulo: Penguin Classics Companha das Letras. “E quanto a ti, ad-
mirável amigo, pareces um dos mais deslocados. Pois, do jeito como falas, fazes te passar por
um estrangeiro, quando és de fato natural daqui. E isso por nunca saíres da cidade cruzando a
fronteira, sem jamais te dirigires, ao que vejo, para além dos muros.” p. 79.

238
uma secularização geral da percepção humana ou devido a uma
certa compensação como ressaltava Joachim Ritter.5 A época da
imagem do mundo é o tempo em que o humano começa fazer
e capturar uma imagem da Natureza como se a Natureza fos-
se algo fora do circuito da ordem humana que não pode ser
contemplado esteticamente, mas que também já não constitui
uma ordem fixa e preestabelecida. As cosmovisões da antigui-
dade e da idade média surgem apenas no segundo plano, atrás
ou ao lado da representação do humano, da fisionomia humana
ou das ações humanas. Percebemos isso nas imagens ou íco-
nes da idade média, nos quais as figuras formam e representam
uma cena religiosa, enquanto no fundo das imagens aparece
algo como uma paisagem. Aqui não se trata de uma visão da
Natureza, mas sim de uma introspecção, de uma visão de Deus
e da sua criação. Não se trata de uma visão do físico, mas sim
de uma visão do meta-físico.
Com o início da imagem, da imagem artística, é dado pela
primeira vez a introspecção e compreensão da e na Natureza [Ein-
sicht in die Natur]. O tempo da imagem do mundo é um tempo
da imagem da Natureza, da natureza morta, da paisagem, e tam-
bém da ideia da representação autêntica da Natureza nas ciências
modernas, constatando que o momento do advento da pintura
paisagista e da pintura da natureza avistada, é também o momen-
to do grande renascimento da descrição e catalogação do corpo
físico humano através da anatomia. Esta ocorrência demonstra
bem que as ciências surgiram das artes, que as ciências assim
chamadas exatas são artes, isto é, formas da descrição do mundo

⁵ RITTER, Joachim (1963), Landschaft: zur Funktion des Ästhetischen in der modernen Gesellschaft.
trad. Paisagem. Sobre a função do estético na sociedade moderna, In Filosofia da Paisagem. Uma
Antologia, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011.

Capítulo 7

Paisagem como paradigma político. Corpo e paisagem na 239


época das imagens técnicas
Dirk Michael Hennrich
e contemplações do mundo físico.6 Com o tempo da imagem do
mundo aparece a Paisagem e aparece a Anatomia do corpo humano
como imagem. Já antes, deste os tempos pre-históricos, o corpo
era imagem mas não no sentido de uma imagem do corpo como
representação artística. Corpo e Paisagem aparecem no palco da
imagem do mundo ao mesmo tempo, e aparecem sob o olhar das
ciências que surgem da arte. O Corpo e a Paisagem surgem de uma
viragem na cultura ocidental e formam em seguida cada vez mais o
centro da política moderna sob o aspecto e o objetivo de uma regu-
lamentação e dominação do natural, do animal, do não-humano e
do irracional, sendo o humano considerado definitivamente como
medida de todas as coisas.
Para descrever o devir da paisagem como conceito central da
época moderna no seu desdobramento a partir da Renascença, no-
meadamente a partir do fim do século quinze para o século dezes-
seis, cabe considerar que o conceito da Paisagem passou nos últi-
mos quinhentos anos por três estados significativos. Manifesto já
levemente por volta dos meados do século catorze, a pintura paisa-
gista surge primeiramente em função de uma certa visualização e
catalogação do território dominado para além dos muros da cidade.
Nos seus inícios, a pintura paisagista é o retrato da natureza culti-
vada e da vida rural realizado por artistas como Pieter Bruegel ou
Albrecht Dürer e adquiridas ou até encomendas pela classe urbana
e burguesa que habitavam as cidades. O segundo passo que ocorre é
o momento em que as cenas paisagistas com todos os seus retratos
dos elementos, das tempestades, das chuvas, do sol, das nuvens,
da mudança das estações começam a ser não apenas uma repre-
sentação da natureza mas uma representação dela como paisagem
interior e das tentativas de captura das disposições que invadem
⁶ FEYERABEND, Paul (1984), Wissenschaft als Kunst, Frankfurt a. M.: Suhrkamp Verlag.

240
o espectador que se encontra mirando a cena natural. Isso ocorre
exemplarmente na pintura paisagista do Romantismo, nas paisagens
dos pintores e poetas do século dezoito para o século dezenove,
sendo um dos exemplos mais conhecidos as pinturas de Caspar Da-
vid Friedrich. O terceiro passo ocorre com a pintura moderna, finais
do século dezenove, com representantes como Claude Monet e so-
bretudo Paul Cezanne em que o interesse pelo olhar da Paisagem e
do natural assume o centro da pintura e que inclui a ideia de poder
capturar a autêntica impressão sensitiva da Paisagem. Esta, por as-
sim dizer, última etapa da pintura paisagista surge ao lado do auge
da fotografia e da convicção de que a fotografia é capaz de imprimir
a autêntica aparição do natural em imagens e que o aparelho foto-
gráfico seria o lápis da natureza [pencil of nature].7
A coincidência da instauração e proliferação das imagens fo-
tográficas com as grandes ideologias políticas não parece aleatória
porque remete a uma transformação descrita por Michel Foucault
quando aponta, na sua História da Sexualidade, a uma aparelhagem
fundamental da sociedade ocidental a partir do século dezoito8.
O aparato fotográfico surge numa época em que os aparatos em
geral se mostram e revelam em todos os níveis, sendo Immanuel
Kant com a sua Crítica da Razão Pura uma expressão inegável do
descobrimento e ao mesmo tempo da invenção de um aparelho que

⁷ TALBOT, Henry Fox (1844), The Pencil of Nature, London: Longman, Brown, Green and Long-
mans.

⁸ FOUCAULT, Michel (1988), História da Sexualidade 1. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições
Graal. “Pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete-se no político; o fato de
viver não é mais esse sustentáculo inacessível que só emerge de tempos em tempos, no acaso
da morte e de sua fatalidade: cai, em parte, no campo de controle do saber e de intervenção do
poder.” p. 133. “Não quero dizer que a lei se apague ou que as instituições de justícia tendam a
desaparecer; mas que a lei funciona cada vez mais como norma, e que a instituição judiciária
se integra cada vez mais num contínuo de aparelhos (médicos, administrativos etc.) cujas
funções são sobretudo reguladoras.” p. 134.

Capítulo 7

Paisagem como paradigma político. Corpo e paisagem na 241


época das imagens técnicas
Dirk Michael Hennrich
representa a suposta razão humana9. A sua tentativa de iluminar a
caixa preta do entendimento humano é nada menos do que uma
foto-crítica que antecipa as críticas da fotografia do século vinte.
Uma profunda crítica da fotografia e do aparelho fotográfico
encontramos em Vilém Flusser, que desenvolve a noção da caixa
preta, do aparato fotográfico, que não é apenas manipulado por
nós, mas que, ao contrário, manipula a nossa percepção tornando-
-nos seu servo10. A foto-grafia inventou as ciências exatas como são
conhecidas e reconhecidas hoje em dia, e que se baseiam comple-
tamente na ideia de objetividade e de medição. A crença na objeti-
vidade já inicia bem antes do surgimento efetivo da fotografia, da
máquina fotográfica, por exemplo, com o uso da câmera obscura,
mas não no sentido como surge no momento da invenção e insta-
lação da técnica fotográfica e da ideia de que o aparato é capaz de
produzir uma imagem fotográfica que representa exatamente aqui-
lo que lá fora existe verdadeiramente. Esta consideração de que
a representação interior coincide, através da imagem fotográfica,
com a representação exterior não percebe que a máquina fotográfi-
ca não copia, mas antes de mais nada cria aquilo que supostamente
encontra-se lá fora no mundo.
A Política da Paisagem trata de perceber e experimentar o natu-
ral e as paisagens em específico através da sensibilidade do próprio
Corpo-vivo [Leib] e criticar a percepção do natural e das paisagens
apenas através de dispositivos técnicos, de imagens técnicas, repro-
duções técnicas do natural em todas as suas formas possíveis. O cor-
po enquanto corpo-vivo é aquele fundamento que aparentemente
não é nada, que não aparece, ele é o fundo mudo da nossa existência
⁹ KANT, Immanuel, Kritik der reinen Vernunft, trad. Crítica da Razão Pura, Fundação
Calouste Gulbenkian: Lisboa 2001.

¹⁰ FLUSSER, Vilém (1985), Filosofia da Caixa Preta, São Paulo: Editora HUCITEC.

242
animada. O Corpo-vivo e a Paisagem posicionam-se de modo igual
no contexto da dicotomia entre Natureza e Cultura. Eles nem são
um nem o outro, deste modo não são atingidos diretamente pela
Política das imagens técnicas. A imagem técnica atinge a Natureza
e a Cultura mas não o Corpo-vivo e nem a Paisagem; atinge e foto-
grafa, filma, digitaliza o corpo físico, mas não consegue capturar o
que está entre Natureza e Cultura. Como o Corpo-vivo é a síntese de
todos os sentidos no pleno pulsar da vida, a Paisagem é a síntese e o
encontro das mais diversas manifestações do natural. Corpo-vivo e
Paisagem são corpos de ressonância, corpos pulsionais, determina-
dos pelas disposições e atmosferas, pelo que não pode ser capturado
em imagens técnicas nem dissecado pelas ciências exatas. A Política
da Paisagem inclui antes de mais nada uma crítica da transformação
da percepção do natural através das técnicas de olhar, inicialmente
as lentes macroscópicas e microscópicas e a partir do século deze-
nove as imagens fotográficas e digitais até os nossos dias. E também
em seguida, no contexto do conceito do Anthropoceno, a questão da
reprodutibilidade de paisagens no decorrer da transformação e re-
criação do natural, do não humano e do humano em escala global.
O conceito da reprodutibilidade técnica provém do conhecido
ensaio de Walter Benjamin sobre a obra de arte na época da sua
reprodutibilidade técnica transpondo a mesma, da obra de arte, e
aqui da pintura paisagista, para as paisagens naturais ou por assim
dizer, da experiência efetiva e sensitiva da Natureza como Paisa-
gem. A questão central de Benjamin era a transformação da obra de
arte, a sua transvaloração, através do processo da sua reprodução
técnica e da perda da sua aura no decorrer da sua reprodutibilidade
técnica. Com a reprodução a obra de arte perde a sua unicidade,
perde-se a aura assegurada e emergindo da mesma, sendo esta des-
truição do seu valor supremo ao mesmo tempo uma destruição da

Capítulo 7

Paisagem como paradigma político. Corpo e paisagem na 243


época das imagens técnicas
Dirk Michael Hennrich
tradição e do seu estatuto hegemônico. Por isto Benjamin interpre-
ta o processo em que entra a obra de arte na época da sua repro-
dutibilidade técnica não como uma destruição, mas sim como uma
desconstrução da obra de arte, como uma libertação da mesma de
um fechamento, de uma apropriação imprópria da obra de arte por
uma ideologia e idolatria burguesa. Esta desconstrução liberta a
obra de arte de uma apropriação inautêntica, uma aura falsa, para
abrir a mesma para a sua compreensão autêntica.
Transpondo assim esta temática, não apenas da represen-
tação artística da Natureza para a experiência direta e sensitiva
da Natureza, mas também da reprodução da obra de arte para a
reprodução de paisagens por si, põe-se a questão: como a repro-
dutibilidade técnica influenciou, desde a invenção da fotografia, a
nossa percepção de Natureza e a nossa criação de Natureza como
Paisagem? A invenção da fotografia transformou profundamente
a nossa percepção do natural ou para dizer com uma citação de
Benjamin, no seu ensaio sobre a obra de arte e também na Pequena
História da Fotografia: que é uma outra natureza que fala à câmera,
não a mesma que fala ao olhar.11
A percepção fotográfica e a imaginação técnica em geral se di-
fere radicalmente da percepção e imaginação mítica, da percepção
oral, circular e narrativa de mundos de imagens imateriais. Assim
deve-se propor aqui também que a fragmentação e a destruição
do natural, da natureza em geral, como termo metafísico, é tam-
bém, e não por pouca coisa, uma causa da produção inflacional de
imagens técnicas. A percepção condicionada pelas imagens técni-
cas, sobretudo da imagem fotográfica, possui um outro acesso ao
natural, fragmenta a circularidade narrativa e mítica em imagens

¹¹ BENJAMIN, Walter (1963), Kleine Geschichte der Fotografie, In Das Kunstwerk im Zeitalter seiner
technischen Reproduzierbarkeit, Frankfurt a. M.: Suhrkamp Verlag.

244
estáticas e mais tarde, na época das imagens digitais, em pontos e
pixels, atomizando o natural, criando átomos conforme o gesto da
física moderna. Ocorre uma instalação e um arranjo da Natureza, do
natural e todos os seus aspectos, das paisagens até os corpos vivos,
humanos e não humanos, em conformidade a esta nova ordem ima-
gética. A invenção da fotografia não é apenas uma técnica avançada
da câmera obscura conhecida já desde a antiguidade. Ela não é ape-
nas um passo no processo das técnicas que possibilitam uma trans-
crição mais detalhada do avistado, como por exemplo a câmera obs-
cura em relação ao caso da pintura. A fotografia é resultante e ao
mesmo tempo produtora de uma objetividade e uma objetivação
sem precedentes, que acompanha o desenvolvimento das ciências
naturais do Renascimento até os nossos dias. Causa e resultado da
especificação e especialização das ciências naturais, a objetivação
e anatomização do natural, da natureza exterior como também a
natureza interior, do corpo humano e todos os outros fenómenos
físicos, com a descoberta das mais diversas técnicas do olhar.
A fotografia é, logo do início, colocada como uma técnica que
copia a natureza, que fixa a realidade, que é infalível na sua repro-
dução e que supera na sua capacidade técnica de reprodução toda
a capacidade orgânica humana de reconhecer, captar e reproduzir
o natural, o mundo exterior, a assim chamada realidade. Mas a fo-
tografia, e aqui o filme e todos os derivados da técnica fotográfica
são incluídos, não é apenas uma forma bem específica de observar
e gravar os fenómenos mas também, como sabemos hoje, uma for-
ma específica de criar realidades ou mais precisamente Weltans-
chauungen [visões do mundo] e certamente Ideologias. A fotografia
é a produtora de Ideologias e Idolatrias. Ideologias porque estabele-
ce e delimita o espaço imaginativo de determinadas visões do mun-
do e idolatrias porque sustenta e alimenta tais ideologias com cada

Capítulo 7

Paisagem como paradigma político. Corpo e paisagem na 245


época das imagens técnicas
Dirk Michael Hennrich
vez mais, embora repetitivas, imagens específicas. Cada ideologia
produz as suas próprias imagens e na época da reprodutibilidade
técnica as ideologias alimentam-se e sustentam-se de imagens téc-
nicas. A fotografia é uma técnica do olhar completamente nova e
revolucionária que confronta e potencializa o espírito da época da
revolução industrial, que é uma invenção inerente da mesma e que
não pode ser pensada apenas como um acontecimento aleatório
da época em que surgiu. Ela possibilita apenas, até um certo pon-
to, uma composição e organização livre da imagem que recolhe o
fotógrafo, mas ela sempre impõe uma serie de parâmetros fixos.
A imagem fotográfica produz, como a pintura renascentista – a
época do início da pintura paisagista –, uma imagem estática em
que a organização da imagem ocorre sob a perspectiva central e
assim para um único ponto de fuga. O fotógrafo e a imagem que
produz surgem a partir de uma posição dominadora. A fotografia é
assim, de um lado a armação perfeita do animal predador do huma-
no pré-histórico, de outro lado, e ao mesmo tempo, instrumento
ideal da ordenação, calculação, matematização, iluminação e racio-
nalização do humano moderno esclarecido e iluminado. Sem dúvi-
da, ao longo da história da fotografia sempre houve e há tentativas
de transformar e superar seus parâmetros da para liberta-la da sua
ideologia e para dissolver as visões do mundo por ela instauradas.
Contudo, havendo sempre estas tentativas, sobretudo artísticas, a
inflação das imagens fotográficas na cultura ocidental desde a sua
invenção e no decorrer do século vinte no mundo inteiro, transfor-
mou e transforma ainda a percepção da multidão e estabeleceu, na
contínua produção desencadeada das imagens fotográficas, uma
percepção bem específica e ideológica do natural, das paisagens e
do próprio corpo humano. A canalização da imaginação no molde
da imaginação ideológica das imagens técnicas produziu e produz

246
uma visão de mundo específica e assim uma noção determinada do
natural em todas as suas expressões. Por isto o assim chamado An-
thropoceno, definido como a época em que o humano tornou-se um
supremo agente de todas as ocorrências globais, culturais e naturais,
políticas e climáticas, necessita uma crítica profunda da produção e
proliferação das imagens técnicas, da ideologia imagética. Tal crítica
é necessária, justamente para que a reprodução técnica de imagens
ideologicamente predeterminadas não produza paisagens ideologi-
camente determinadas: praças, jardins, paisagens, reservas naturais
como meras cópias, como produtos de uma imaginação reprodutora
e não criadora, isto é, a perda da singularidade das paisagens, da pai-
sagem como acontecimento único, a perda da sua aura, atmosfera,
disposição específica através da possibilidade da reprodutibilidade
técnica de paisagens na época do assim chamado antropoceno.
A criação e preservação de paisagens naturais, põe-se como um
problema essencial e grave que está intimamente ligado com a ques-
tão da imaginação e do imaginário, mas sobretudo da produção e re-
produção técnica das imagens fotográficas e digitais. Põe-se a ques-
tão: como dissolver a ideologia repressiva do natural, como inaugurar
um outro inconoclasmo, que dissolva a cristalização das ideologias
e idolatrias que se instauram através dos meios de comunicação? A
Ecologia precisa ser uma critica de ideologias, assim como a Filosofia
é uma crítica de ideologias, isto é, crítica conceitual e liquidação de
visões e visualizações do mundo [Weltanschauungen].12
Compreender a paisagem como paradigma político afasta-
-se da ideia ou da visão da paisagem como território, como es-
paço de domínio específico, como espaço delimitado, planeja-
do, distribuído e defendido internamente contra seu exterior.
A paisagem como paradigma político não corresponde a uma leitura
¹² ADORNO, Theodor W. (1973), Philosophische Terminologie 1, Frankfurt a. M.: Suhrkamp Verlag, p. 118.

Capítulo 7

Paisagem como paradigma político. Corpo e paisagem na 247


época das imagens técnicas
Dirk Michael Hennrich
política económica de um território nacional nem de qualquer or-
dem piramidal ou vertical de poder. A paisagem como paradigma
político é plena horizontalidade no significado essencial do Horizon-
te como uma plena abertura, de uma paisagem já não fechada em si,
mas sempre em mudança e em movimento e em transformação; e
também não delimitada como se a Paisagem fosse qualquer paisagem
emoldurada. Paisagens transgridem fronteiras e limites e se desdo-
bram em outras paisagens; são plenamente imanência e horizonta-
lidade, planos, cruzamento de múltiplos objetos, de múltiplos seres
humanos e não humanos. Entender a paisagem como paradigma
político deve partir do não-político, se o político é compreendido
como esfera de disputas de poder. Contudo, qual seria nesse caso a
definição da política no contexto da paisagem e por que a paisagem
é um paradigma político?
No contexto da abordagem da paisagem como paradigma po-
lítico, a paisagem é concebida como um conceito que transgride a
dicotomia entre Natureza e Cultura – ela não se insere mais como
o oposto da política. A Paisagem não é o oposto da Natureza nem o
oposto da Sociedade, da polis, do polo social no qual afloram as ciên-
cias, as artes a técnica e todos os outros domínios humanos, demasia-
do humanos. Ela é o lugar do encontro e do reencontro da sociedade
e do natural, da natura naturans e da natura naturata, daquilo que se
desdobra a partir de si mesmo e daquilo que se desdobra a partir da
força e da vontade do humano. O conceito da paisagem não se insere
e não pretende se inserir na polemica entre Natureza e Cultura, não
se compreende como produto de um polemos, de uma guerra da Cul-
tura contra a Natureza. A Cultura, no seu sentido mais originário, não
é algo oposto à natureza, porque a Cultura brota da Natureza como
uma planta brota do solo da terra e só depois se mescla e transfor-
ma em contato com outras naturezas e culturas. A Natureza não é o

248
contraste da Cultura mas sim a sua plena possibilidade, sendo a natu-
reza compreendida como a esfera da necessidade. As assim chamadas
‘leis naturais’ não apenas delimitam e encerram, mas elas, ao con-
trário, abrem o campo do desdobramento da cultura nos seus mais
diversos campos de saberes. A paisagem é o lugar do encontro, o lu-
gar da reunião, o lugar da redefinição da relação e da diferença entre
humano e não-humano, do objeto e não-objeto, sujeito e não-sujeito.
A época das ciências exatas e modernas é a época do fim da
Natureza. A época das ciências inicia-se com a Renascença, ini-
cia-se com o desenvolvimento das técnicas do olhar, com o
desenvolvimento das técnicas oculares para observar e dissecar a
natureza (morta), base do conhecimento das leis físicas e do seu
uso para os fins da técnica. A Natureza da ciência, a Natureza que a
ciência inventa, não é apenas nua; mais do que isto, ela é totalmen-
te descoberta e desprovida do enigmático e do desconhecido. E o
que aparece, neste fim da Natureza, é a Paisagem. A época da assim
chamada morte de Deus, da morte da Natureza e da morte do Humano
é igualmente a época do advento da Paisagem. Na época em que a
Paisagem substitui completamente o conceito da Natureza, ou no
sentido mais específico, em que o humano como força tectônica
assumiu o seu lugar na história da Terra com a pretensão de se co-
locar como o formador da terra, a arte não será mais compreendida
como a imitação do natural, mas como Vorahmung. Esta precipita-
ção [Vorahmung], mas não a imitação [Nachahmung] do natural,
necessita não apenas de um impulso criativo do artístico, mas do
impulso guiador, interrogador e dialogante da política – impulso
que é ausente na política ideologizada do presente.
A formação da terra pela mão humana, depois do fim da natureza
e antes do início de uma paisagem, uma natureza e um mundo total-
mente desenhado, necessita da Política. Estética e Política se revelam

Capítulo 7

Paisagem como paradigma político. Corpo e paisagem na 249


época das imagens técnicas
Dirk Michael Hennrich
como os pilares principais de um renovado habitar da terra. A política
das imagens técnicas não é uma política imposta às imagens técnicas,
mas uma política que surge da própria técnica e, assim como a escrita,
também as imagens técnicas são técnicas de conceber o mundo, for-
madoras de uma política específica. A época da escrita coincide com
o advento da época humanista/renascentista, formada pela produção
teológica, literária e filosófica da Antiguidade e da Idade Média, alimen-
tando-se até os fins do século dezenove da cultura escrita. A época da
imagem e sobretudo da imagem técnica pode ser considerada como
a época pós-humanista, que se forma lentamente a partir do renasci-
mento e ao longo da modernidade para se manifestar plenamente no
século vinte e vinte e um. Enquanto a formação do humano da cultura
humanista era formado pela escrita e os escritos, sobretudo da anti-
guidade, da cultura grega e romana, a formação do humano da cultura
pós-humanista ocorre através das imagens e da cultura imagética, da
pintura renascentista e moderna, da cartografia, da imprensa (letras
como imagens) e das imagens técnicas, da fotografia, do filme e das
imagens digitais como aparecem em todos os seus modos hoje em dia.
A formação do humano ocorre através de atos simbólicos; o hu-
mano é formado pela forma com que consegue simbolizar o mun-
do em que se encontra. A técnica de simbolizar o mundo é aquilo
que forma e transforma o humano e o seu mundo. O que diferencia
a época humanista da época pós-humanista (e não pós-humana)
não se baseia apenas no passo da cultura da escrita para a cultura
da imagem. A imagem, e mais precisamente a visão do mundo
como imagem, não é uma excepcionalidade da cultura ocidental,
mas no ocidente ela é ligada com a técnica da perspectiva central
e com o surgimento da pintura paisagista. Mas tão pouco como a
pintura figurativa explica a essência e a existência do corpo-vivo,
a pintura paisagista explica a essência e a existência da Paisagem.

250
Enfatiza-se que o Corpo-vivo e a Paisagem são definidos através da
presença da ausência, não são nem objeto físico nem corpo ana-
tómico. Eles são situados no entre, no invisível e se retiram da
objetivação. Corpo-vivo e Paisagem retiram-se de uma reprodução
técnica, cada corpo-vivo é único e inimitável, assim como qual-
quer paisagem, e eles não coincidem com a ideia de uma realida-
de objetiva. As imagens técnicas são simulacros, elas simulam um
mundo exterior, mas a ideia da realidade e sobretudo de uma única
realidade exterior é, em grande parte, uma consequência da ima-
ginação do mundo e da visão do mundo através de imagens, antes
de mais nada das imagens técnicas.
A Paisagem é um paradigma político e um conceito para uma
política ecológica do futuro porque, assim como o Corpo-vivo, é um
conceito que atinge os extremos do pensamento ocidental, trans-
gredindo o mero polemos entre Natureza e Cultura, sem instrumen-
talização nem objetivação; atinge a transversalidade e a reunião
dos opostos sem qualquer síntese dialéctica; sobretudo propicia
sensitividade e espaço para o inominado, lugar para o meta-físico,
em plena horizontalidade e imanência.

Capítulo 7

Paisagem como paradigma político. Corpo e paisagem na 251


época das imagens técnicas
Dirk Michael Hennrich
referências
ADORNO, Theodor W. (1973), KANT, Immanuel, Kritik der
Philosophische Terminologie reinen Vernunft, trad. Crítica
1, Frankfurt a. M.: Suhrkamp da Razão Pura, Fundação Calouste
Verlag. Gulbenkian: Lisboa 2001.

BENJAMIN, Walter (1963), Kleine PLATÂO, Fedro (2016), São Paulo:


Geschichte der Fotografie, In Das Penguin Classics Companha das
Kunstwerk im Zeitalter seiner Letras.
technischen Reproduzierbarkeit,
Frankfurt a. M.: Suhrkamp RITTER, Joachim (1963),
Verlag. Landschaft: zur Funktion des
Ästhetischen in der modernen
FEYERABEND, Paul (1984), Gesellschaft. trad. Paisagem.
Wissenschaft als Kunst, Sobre a função do estético
Frankfurt a. M.: Suhrkamp na sociedade moderna, In
Verlag. Filosofia da Paisagem. Uma
Antologia, Centro de Filosofia da
FLUSSER, Vilém (1985), Filosofia Universidade de Lisboa, 2011.
da Caixa Preta, São Paulo:
Editora HUCITEC. SIMMEL, Georg (1913), Philosophie
der Landschaft, 1913, trad.
FOUCAULT, Michel (1988), Filosofia da Paisagem, In: Filosofia
História da Sexualidade 1. A da Paisagem. Uma Antologia,
vontade de saber. Rio de Janeiro: pp. 42-51, Centro de Filosofia da
Edições Graal. Universidade de Lisboa: Lisboa
2011.
HEIDEGGER, Martin (1938) Die Zeit
des Weltbildes, trad. O tempo da TALBOT, Henry Fox (1844),
imagem do mundo, In Caminhos The Pencil of Nature, London:
da Floresta, pp. 95-138, Fundação Longman, Brown, Green and
Calouste Gulbenkian: Lisboa, 2002. Longmans.

252
Capítulo 7

Paisagem como paradigma político. Corpo e paisagem na


época das imagens técnicas baracoa
editora

Dirk Michael Hennrich


Helena Tassara
FAAP – Pós-Graduação /
Documentário: Estéticas e
Práticas

Cineasta, documentarista e escritora.  So-


cióloga (FFLCH-USP), é doutora e pós-dou-
tora em Ciências da Comunicação, na
área de Cinema (ECA-USP). Atua na idea-
lização, redação, planejamento, criação,
direção, curadoria e execução de projetos
culturais, educacionais e de comunicação
em diferentes mídias.

CV: http://lattes.cnpq.br/9043252126002200
E-mail: htassara@uol.com.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-5070-3252

255
Imaginação e poesia: entre a
tentação de ser soviético e a
vontade de ser russo. Pensan-
do sobre Andrei Roublev, um
filme de Andrei Tarkovski

Resumo: Imaginação e poesia: se refere às inspirações imagi-


entre a tentação de ser soviético nárias e poéticas do realizador,
e a vontade de ser russo é uma como no que ser refere à ence-
análise crítica do filme intitu- nação da vida de Roublev como
lado Andrei Roublev, de autoria alegoria nacional, no confronto
do cineasta russo Andrei Tarko- das raízes da Rússia profunda
vski, nascido na URSS, em 4 de com o mundo soviético.
abril de 1932 na cidade russa de
Zavrazhy e falecido em 29 de Palavras-chave: Andrei Rou-
dezembro de 1986, em Neully- blev, Andrei Tarkovski, Imagi-
-sur-Seine, França. Realizado ao nação, Poesia, Rússia
término do período soviético, o
filme centraliza-se em biografia
de Andrei Roublev, considera-
do o maior pintor russo de íco-
nes, afrescos e miniaturas para
iluminuras, nascido em 1360
no Grão Principado de Moscou
e falecido em 29 de janeiro de
1430 no Monastério Andro-
nikov, em Moscou. O ensaio
coteja leituras que relacionam
cinema e história, tanto no que

256
Imagination and poetry: betwe-
en the temptation to be Soviet
and the will to be Russian.
Thinking about Andrei Roublev,
a film by Andrei Tarkovski

Abstract: Imagination and poe- and poetic inspirations of the


try: between the temptation to be director, and in what refers to
Soviet and the will to be Russian the staging of the life of Roublev
is a critical analysis of the film as a national allegory, in the con-
entitled Andrei Roublev, written frontation of the roots of deep
by Russian filmmaker Andrei Russia with the Soviet world.
Tarkovski, born in the USSR on
April 4, 1932 in the Russian city Keywords: Andrei Roublev,
of Zavrazhy and who died on Andrei Tarkovski, Imagina-
29 December 1986 in Neully- tion, Poetry, Russia
-sur-Seine, France. Located at
the end of the Soviet period,
the film centers on a biography
of Andrei Roublev, considered
the greatest Russian painter of
icons, frescoes and miniatures,
born in 1360 in the Grand Prin-
cipality of Moscow and died on
January 29, 1430 in the Monas-
tery Andronikov, Moscow. The
essay contrasts readings that
relate cinema and history, both
with regard to the imaginary

257
Capítulo 8

Imaginação e poesia:
entre a tentação de
ser soviético e a
vontade de ser russo1.
Pensando sobre Andrei
Roublev2, um filme de
Andrei Tarkovski3
Helena Tassara
FAAP – Pós-Graduação / Documentário:
Estéticas e Práticas

O poeta tem a imaginação e a psicologia de uma criança, pois


as suas impressões do mundo são imediatas, por mais profun-
das que sejam as suas idéias sobre o mundo.
O poeta não usa “descrições” do mundo; ele próprio participa
da sua criação.
Andrei Tarkovski

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 259


Editora Baracoa — 2019
A ARTE SEGUNDO TARKOVSKI

Artista e cineasta bastante reflexivo e introspectivo, duro e


exigente, vivendo em circunstâncias históricas e pessoais que
muitas vezes produziram grandes intervalos de tempo entre a
realização de um filme e outro, Tarkovski, ao morrer, além de
filmes marcados por um estilo contemplativo, único, deixou
uma série de escritos produzidos nesses intervalos, alguns de-
les organizados a posteriori.
Na busca de sentidos e objetivos para seu trabalho, na ten-
tativa de estabelecer as características e peculiaridades diferen-
ciadoras da arte do cinema em relação às outras artes, na ânsia
de conhecer sua potencialidade como arte e de conseguir con-
frontar suas experiências particulares com a de outros artistas
e cineastas, Tarkovski acabou deixando expostas, por escrito,
suas concepções pessoais - muito pessoais, por sinal! - sobre a
natureza da arte em geral e da criação cinematográfica.
No segundo capítulo de seu livro Esculpir o tempo 4, cha-
mado Arte - anseio pelo ideal, Tarkovski fala de sua visão da
arte, a qual acredito ser importante ter sempre em mente
quando pensamos sobre seu trabalho. Esses escritos não dei-
xam dúvidas sobre a posição de Tarkovski frente à arte.
Associando da forma como faz, o trabalho e a criação
artísticos com termos e expressões tais como significado da
existência humana, busca sem fim da verdade absoluta, direito de
criar é a fé na própria vocação, homem espiritualmente receptivo,

⁴ Título original em russo Sapetschatljonnoje Wremja, publicado pela primeira vez em alemão
como Die Versiegelte Zeit em 1986; traduzido, no mesmo ano, do alemão para o inglês com o
título de Sculpting in time. Reflections on the cinema e do alemão para o francês com o título de Le
temps cellé; e, finalmente, traduzido em 1990 do inglês para o português com o título de Esculpir
o tempo pela Editora Martins Fontes.

260
ânsia eterna pelo belo, energia espiritual, dom, milagre, revela-
ção, iluminação, sacrifício, postulado de fé, crença, união, espírito
de comunhão, Tarkovski está considerando arte, aquela que
se realiza verdadeiramente - na qual inclui a sua própria arte,
a sua poesia e o seu cinema - como uma forma de ligação,
comunicação, vínculo com Deus e com o Cosmos. Para ele,
“l’art est une prière”, ou, em tradução livre da autora, “a arte é
uma forma de oração”.
Trata-se de uma ARTE com letra maiúscula, uma arte maior,
uma arte que não renunciou à busca do significado da existência
como fez, segundo ele, a arte contemporânea. E o cinema assim
realizado, pura expressão dessa arte mística, transforma-se tam-
bém em religião. Mas não se trata de messianismo, e sim pura
expressão de um sentimento cristão.
Para Tarkovski, a arte cinematográfica com sua forma parti-
cular de reproduzir o mundo a partir do registro de uma impressão
do tempo real, já nasce carregando um novo princípio estético. E este
só pode se realizar, massivamente, a partir do que ele chama de
uma organização sequencial de ações tomadas da realidade. Nada
de artificialismos, simbologias excessivas, alegorias ou cinema de
montagem. Será? No mesmo livro referido anteriormente encon-
tramos estas palavras:

O tempo em forma de evento real: volto a insistir nisso. Eu vejo a crô-


nica, o registro dos fatos no tempo, como a essência do cinema: para
mim, não se trata de uma maneira de filmar, mas uma maneira de
reconstruir, de recriar a vida. (p.73)

...no cinema, a condição essencial de qualquer composição plástica, o


seu critério decisivo, é o fato do filme ser ou não verossímil, específico

Capítulo 8

Imaginação e poesia: entre a tentação de ser soviético e a 261


vontade de ser russo. Pensando sobre Andrei Roublev, um filme
de Andrei Tarkovski
Helena Tassara
e real. (...) A pureza do cinema, a força que lhe é inerente, não se
revela na adequação simbólica das imagens (por mais ousadas que
sejam), mas na capacidade dessas imagens de expressar um fato es-
pecífico, único e verdadeiro. (p.83)

Isto porque, conforme conclui, quando o público procura o cinema


para ver um filme, vai em busca do tempo perdido, consumido ou
ainda não encontrado, de uma vivência experiencial concentrada;
uma busca que está ligada à necessidade puramente humana de
dominar e conhecer o mundo.
Como conseqüência, realizar um filme é como esculpir o
tempo - como um artista/escultor que a partir de um bloco de
mármore retira dele tudo o que não faz parte da sua visão onírica
do mundo que ele quer representar -; é transformar aquilo que
foi divina e espiritualmente revelado, iluminado, em experiência
humanamente compartilhada.
E assistir a um filme, ir a uma sessão de cinema passa a ser
equivalente a participar de um culto, cerimônia religiosa; trans-
forma-se em um ato de fé.
Mais do que isso tudo - se é que é possível algo mais do que isso
- é uma arte repleta de referências - diretas e indiretas - a um uni-
verso dos grandes criadores, dos grandes artistas, daqueles cujas
obras ficaram - e ficarão! - para sempre para emocionar aqueles que
são espiritualmente receptivos, obras que se reconhecem facilmen-
te. Obras de Tolstoi, Leonardo, Bach, Dostoievski, Shakespeare,
El Greco, Rafael, Proust, Mann, Carpaccio, Cervantes, e, final-
mente, Andrei Roublev e Arseni Alexandrovich Tarkovski, seu pai.

“Enquanto o homem existir, haverá uma tendência instintiva


para a criação. Enquanto o homem se perceber homem, ele

262
tenderá a criar qualquer coisa. É isso que o liga com seu Cria-
dor. O que é a criação? Para que serve a arte? A resposta para
essas interrogações se encontra em uma fórmula: ‘a arte é uma
forma de oração’. Isso diz tudo. Através da arte, o homem ex-
prime sua esperança. Tudo o que não exprime essa esperan-
ça, aquilo que não possui um fundamento espiritual, não tem
qualquer relação com a arte. Será, na melhor dos casos, uma
brilhante análise intelectual.”5

É nesse ambiente que se inscreve a personagem Andrei Rou-


blev de Tarkovski; são estes os principais argumentos sobre os
quais versa seu filme.

ANTES DE ROUBLEV

Em seu livro, o crítico de cinema e historiador Antoine de Baecque


do Cahiers du Cinéma define o período que separa a realização de A
infância de Ivan (1962), o primeiro filme de longa metragem realiza-
do por Andrei Tarkovski e Andrei Roublev (1966), como o momento
da definição e do amadurecimento do estilo cinematográfico que
o cineasta viria a criar e a desenvolver. Um estilo calcado numa
estética de la lenteur, que nasceu para servir como instrumento da
realização de sua expressão artística e poética, reafirmada tantas
⁵ Trecho de entrevista concedida a Laurence Cossé “Les mardis du cinéma”, publicada na
France-Culture de 7 de janeiro de 1986, e transcrita como apêndice no livro de Antoine DE
BAECQUE (Andrei Tarkovski. Paris: Editions de l‘Etoile/ Cahiers du Cinéma, 1989.) com o título
de: Portrait d’un cinéaste en moine poète. Entretien avec Andrei Tarkovski.“Aussi longtemps que
l’homme existera, il y aura une tendance instinctive à la création. Aussi longtemps quel’homme se sen-
tira homme, il tendera de créer quelque chose. C’est en cela qu’il a un lien avec son Créateur. Qu’est-ce
que la création? A quoi sert l’art? La réponse à ces interrogations tient dans une formule: “l’art est une
prière”. Cela veut tout dire. A travers l’art, l’homme exprime son espoir. Tout ce que n’exprime pas cet
espoir, ce qui n’a pas de fondement spirituel, n’a aucun rapport avec l’art. Ce sera, dans la meilleur
des cas, une brillante analyse intellectuelle.” (Tradução livre da autora ).

Capítulo 8

Imaginação e poesia: entre a tentação de ser soviético e a 263


vontade de ser russo. Pensando sobre Andrei Roublev, um filme
de Andrei Tarkovski
Helena Tassara
vezes, por ele mesmo, como necessidade vital humana, em geral, e
sua, em particular.
O crítico afirma como sua tese que, pode-se dizer que, até
aquela ocasião, do ponto de vista ideológico e estético, o cineasta,
ainda jovem e indefinido, oscilava “entre a tentação de ser sovié-
tico e a vontade de ser russo, no original “entre la tentation d’être
soviétique et la volonté d’être russe”. Em que sentido?

Ele mesmo responde:

“Tarkovski é um artista do século XIX perdido dentro do cine-


ma contemporâneio. Não que ele tenha renegado as possi-
bilidades da sétima arte – ao contrário, seu universo é com-
posto por suas visões retiradas das narrativas literárias -, mas
ele semre quis desertar do ‘cinema soviético’, essa arte for-
jada durante os anos 20 e, depois, congelada por Stalin. (...)
Definitivamente, ele foi mais longe. Tarkovski filma antes de
qualquer coisa a ‘arte soviética’, retirada do século XX, para
se reconectar ao passado cultural russo. Constantemen-
te, ele reivindicou esse ‘caminho russo’, percorrido desde
‘Andrei Rublev’, depois balisado por ‘O espelho’ ou ‘ Stalker’. (...)
Tarkovski plantou suas raízes no terreno exclusivo da cultura
russa.” (p.9)6

⁶ “Tarkovski est un artiste du XIXe siècle égaré dans le cinéma contemporain. Non pas qu’il ait renié les
possibilités du septiéme art - au contraire, son univers est fait de ces visions échappant aux récits littérai-
res -, mais il a toujours voulu déserter le “cinéma soviétique”, cet art forgé durant les années 20 puis glacé
par Staline. (...) En définitive, il est remonté plus loin. Tarkovski filme en amont de tout “art soviétique”,
échappe au XXe siécle, pour renouer avec le passé culturel russe. Il a constamment revendiqué ce “chemin
russe”, emprunté dès Andrei Roublev, puis balisé par Le Miroir ou Stalker. (...) Tarkovski (a) planter ses
racines dans le terreau exclusif (...) de la culture russe. (p. 9) (Tradução livre da autora ).

264
Assumo, em princípio, a verdade dessas palavras, tomando o rumo
traçado pelo crítico, para poder pensar sobre o segundo filme de
Tarkovski, Andrei Roublev, tema de partida desta análise.
Se esse foi o momento em que ocorreu a virada, se foi ali que
foram feitas as escolhas, em que se definiram as formas de expres-
são, em que a estética proposta para um projeto de Tarkovski para
o cinema se materializou pela primeira vez, pergunto como teria
sido essa passagem quase ritualística do jovem artista que gestou o
cineasta? Em outras palavras, como se definiu o lado para o qual a
balança penderia, entre a tentação de ser soviético e a vontade de
ser russo? E como foi o processo que o levou a encontrar sua posi-
ção no Pantheon dos grandes artistas que vieram para ficar?
Segundo o próprio Tarkovski, na entrevista para Laurence
Cossé referida antes, quando, ainda no início dos anos 60, mal
tendo terminado seus estudos na escola nacional de cinema de
Moscou, aceitou rodar de encomenda A infância de Ivan - filme
baseado em uma novela de Bogomolov que conta a vida cotidiana
no front durante a segunda guerra mundial, a partir da trajetória e
das vivências de um adolescente -, sabia que assumia a responsabi-
lidade de levar adiante uma produção com prazos apertadíssimos e
orçamento pela metade, pois a outra parte já havia sido consumida
pela equipe anterior sem que os resultados houvessem sido satis-
fatórios. Tarkovski sabia, também, que não havia ninguém interes-
sado em assumir a continuidade do projeto.
Para ele estava muito bom: apesar de ter de se manter fiel à
uma história definida a priori e, com ela, de certa forma, conservar
também um estilo pré-determinado - já que se tratava de realizar
um filme de guerra com características já definidas e, ao mesmo
tempo, trágicas e poéticas - para aceitar a empreitada, fez algu-
mas exigências.

Capítulo 8

Imaginação e poesia: entre a tentação de ser soviético e a 265


vontade de ser russo. Pensando sobre Andrei Roublev, um filme
de Andrei Tarkovski
Helena Tassara
Na posição de salvador de uma produção fadada ao desastre,
exigiu - é claro, tratando-se de Tarkovski - reescrever o roteiro a
partir de sua própria leitura da mesma novela, escolher novos ato-
res e técnicos para dar continuidade ao projeto e descartar, sem ao
menos assistir, todo o material filmado inicialmente. No entanto,
sabia também que comprava uma grande oportunidade para traba-
lhar e colocar em prática as idéias sobre as quais, como estudante,
vinha se debatendo no dia a dia de suas produções, em discussões
com colegas, professores e mentores intelectuais.
Além disso, apesar de proibidos para a quase totalidade do
povo que vivia sob a bandeira soviética, os estudantes da Esco-
la de Cinema de Moscou/VGIK, onde Tarkovski estudou, tinham
acesso aos trabalhos de cineastas ocidentais e orientais, tais
como Buñuel, Bresson, Mizoguchi, Bergman, Cassavetes, Kuro-
sawa e Fellini, para citar apenas aqueles que parecem ter tido
grande influência sobre o diretor.
Entre os russos, parece que Tarkovski esteve mais próximo do
trabalho de alguns realizadores seus contemporâneos, especialmen-
te do grupo originário do sul da União Soviética, das tradicionais Ge-
órgia e Armênia, destacando-se ali os nomes de Paradjanov, Ioseliani,
Abuladze e Shengelaya. Estes, talvez, tenham se tornado especial-
mente relevantes para o projeto de Tarkovski em virtude de seus fil-
mes apresentarem referências recorrentes às especificidades de suas
origens culturais e étnicas além das afinidades religiosas e místicas.
E assim, foi feito A infância de Ivan. Uma vez pronto, o filme foi
aprovado pelos dirigentes do Mosfilm. Apesar das seqüências de so-
nho e de fantasia, prenúncio do estilo tarkovskiano, o resultado obtido
pôde se inscrever em uma lógica bem de acordo com a linha soviéti-
ca de então. Segundo Antoine de Baecque, aquilo que Sartre batizou
como “surrealismo socialista”, reflexo de uma época em que o Comitê

266
Central, um pouco mais frouxo após a morte de Stalin, havia concedi-
do aos artistas soviéticos “o direito de escolher a forma de suas obra,
desde que eles não se omitissem de lhes dar um conteúdo socialista”.
O filme, como era apresentado então, passava a ser um típico repre-
sentante da chamada “nouvelle vague” soviética”. (p.10)
Apresentado em Veneza, em 1962, A infância de Ivan foi pre-
miado com o Leão de Ouro. Iniciou-se, então, uma grande polêmica
em meio à crítica ocidental, que trouxe o nome de Andrei Tarkovski
para o cenário cultural efervescente daqueles anos, concedendo-lhe
uma reputação cada vez maior. O clima geral transformava o jovem
Andrei na encarnação da renovação do cinema soviético.
Mais do que discutir apenas o trabalho de um jovem cineasta,
essa polêmica se movimentava no sentido de definir a existência
- ou não! - de uma escola nascente dentro do cinema soviético,
se essa escola ou se os novos cineastas teriam fôlego suficiente
para suplantar - ou não! - as diretrizes traçadas pelos burocratas
e propor algo novo.
O fato é que, mesmo entre críticas ao formalismo e ao precio-
sismo de certas seqüências, para o Ocidente, a partir de A infância
de Ivan, Tarkovski passou a representar a confirmação dessa espe-
rança no renascimento do cinema soviético.
Para Tarkovski, pessoalmente, nada disso interessava. Ele pa-
recia não gostar absolutamente que seu filme - apesar de todos os
elogios e da lisonjeira lista de defensores que possuía, e que in-
cluía Sartre - tivesse sido compreendido e interpretado a partir de
um ponto de vista histórico-filosófico, e que as idéias e os valores
ali contidos suplantassem, em importância, o filme em si mesmo.
Para ele, seus filmes, seu trabalho, sua obra, vistos como poesia,
deveriam ser compreendidos, estritamente, a partir do que eram:
como obras de arte realizadas por um artista.

Capítulo 8

Imaginação e poesia: entre a tentação de ser soviético e a 267


vontade de ser russo. Pensando sobre Andrei Roublev, um filme
de Andrei Tarkovski
Helena Tassara
Na mesma entrevista já citada, concedida em 1986 - o ano
que ele não veria terminar7 e 20 anos depois da realização de
Andrei Roublev, o filme que se seguiu a A infância de Ivan -,
Tarkovski disse, sobre aquele momento do passado: “Eu procu-
rava uma defesa artística, e não ideológica. Eu não sou um filó-
sofo, eu sou um artista.”8
No entanto, não foi ainda com esse filme que Tarkovski
mostrou a quê vinha. Mas foi ali que se gestou o artista que
conhecemos hoje.9
Como artista em busca da verdade absoluta, Tarkovski trabalhou
na realização de A infância de Ivan, acertando e errando, refletindo
sobre resultados práticos, reforçando ou reformulando concepções
que já tinha sobre a arte de criar em cinema, pondo em prática as
idéias que vinha acalentando, incorporando idéias novas que foram
surgindo durante o processo de sua produção. Acima de tudo, como
nos mostram seus escritos da época, trabalhou muito e procurou re-
fletir sobre tudo isso para poder criar e encontrar as formas de ex-
pressão que viria a utilizar em seus trabalhos subsequentes.

⁷ Tarkovski morreu, em Paris, no final de dezembro de 1986.

⁸ No original: Je recherchais une défense artistique, et non idéologique. Je ne suis pas un philosophe,
je suis un artiste.

⁹ Nas palavras de Antoine DE BAECQUE: “Ainda muito influenciado pelos anos de escola, rec-
heado de citações e de figuras de estilo, a obra desse jovem cineasta ainda não tinha atingido
a maturidade da competência de um projeto do Mosfilm. Mas, finalmente, hoje, o person-
agem de Ivan, criança-anormal, guarda uma força real. O restante – ritmo, pontos de vista,
intrigas... - serão, em seguida, abandonados pelo cineasta russo. “A infância de Ivan” pode,
dessa maneira, funcionar como uma brilhante variação em torno de um tema e de uma
estética sem surpresas.” ”Encore très influencée par les anées d’école, truffée de citations et de
figures de style, l’oeuvre de ce jeune cinéaste non encore parvenu à maturité relève en partir du
projet initial du Mosfilm. Seul finalement le personnage d’Ivan, enfant-monstre, garde aujourd’hui
une réelle force. Le reste - rytme, angles de vue, intrigue... - sera ensuite abandonné par le cinéaste
russe. L’enfance d’Ivan pouvait ainsi faire figure de brillante variation à partir d’un thème et d’une
esthétique sans surprise”.(p.11, tradução livre da autora).

268
NASCE ROUBLEV

Mas por que filmar a vida de Andrei Roublev? Por mais que em
seus relatos Tarkovski deixe claro que essa idéia tenha surgido
quase ao acaso, como uma sugestão de amigos em uma mesa de
bar, e que a princípio tenha lhe parecido um argumento irrea-
lizável, até mesmo detestável e absolutamente distante de seu
universo, ela foi rapidamente encampada. Talvez para usufruir
de seu sucesso momentâneo junto às autoridades soviéticas pe-
los louros obtidos com A infância de Ivan e aproveitar os feste-
jos pelo 6o centenário do nascimento de Roublev, “o pintor de
ícones que mesmo a Rússia soviética jamais pôde esquecer”, nas
palavras de Antoine de Baecque. E o argumento, conveniente a
todos, foi proposto e aprovado.
Em 1961 o roteiro começou a ser escrito. Em 1962 o contra-
to de produção foi assinado. Em dezembro de 1962, o roteiro foi
aceito. Em abril de 1964 as autoridades soviéticas liberaram o
roteiro para as filmagens, que foram realizadas entre setembro
de 1964 e novembro de 1965. Em agosto de 1966, Andrei Roublev
estava pronto para ser exibido.10 Porém, uma vez pronto, o filme
demorou alguns anos para ter sua exibição permitida pelas auto-
ridades soviéticas.11

¹⁰Esses dados constam do livro de Mark LE FANU, The cinema of Andrei Tarkovski. Londres:
British Film Institute, 1987.

¹¹ Antoine DE BAECQUE diz que: “O filme, uma das mais importantes produções de época, foi final-
izada em 1966. As autoridades do Goskino não gostam do resultado e postergam seu lançamento.
Em 1967, o delegado geral do Festival de Cannes em Moscou visiona uma cópia de trabalho e con-
vida Tarkovski. Sob o pretexto de uma nova montagem, o Goskino promete o filme para a edição
do ano seguinte. No entanto, o Festival de 1968 não recebe nada. Apenas em fevereiro de 1969, dois
anos após ser finalizado, Andrei Roublev é projetado em avant-première em Moscou, para alguns
milhares de convidados e, depois, em maio, em Cannes, fora de competição por solicitação dos
Soviéticos. O filmes ainda esperará mais dois anos até ser mostrado aos espectadores russos.” “Le

Capítulo 8

Imaginação e poesia: entre a tentação de ser soviético e a 269


vontade de ser russo. Pensando sobre Andrei Roublev, um filme
de Andrei Tarkovski
Helena Tassara
Em sua análise do significado desse momento na carreira do
diretor, conclui o crítico francês:

“Em 1966, Andrei Roublev, o produto final, resultado de um lon-


guíssimo trabalho e de uma intensa reflexão sobre a arte (...) de-
cepciona os oficiais. Era como se o cineasta tivasse traído sua
confiança. Com esse seu segundo filme, nasce contudo, o verda-
deiro Tarkovski. O Russo abandona o Soviético.
A cisão é, de fato, completa. Andrei Roublev abre com uma
experiência magnífica, que é a do homem que tenta voar. O
filme prossegue sobre o tom da dúvida: o pintor fica se inter-
rogando e não consegue produzir. No entanto o estilo tarko-
vsiano se afirma: o tempo está lá com certeza. O cineasta
assume seu ritmo próprio e propõe uma estética da lentidão.
É o contraste entre a fragilidade dos seres e as certezas esté-
ticas que surpreendem. (...) Ele reúne a experiência de toda a
vanguarda mas mostra, com muita certeza, que ele encontrou
um caminho.”12 (p.11-12).

film, une des plus importantes productions de l’époque, est achevé en 1966. Les autorités du Goskino ne
l’aiment pas et reportent sa sortie. En 1967, le délégué général du Festival de Cannes visionne à Moscou une
copie de travail et invite Tarkovski. Prétextant un nouveau montage, le Goskino promet le film pour l’an-
née suivante. Le Festival de 1968 ne voit pourtant rien venir. Ce n’est qu’en février 1969, deux ans après son
achèvement, qu’Andrei Roublev est projeté en avant-première à Moscou devant quelques milliers d’invités,
puis présenté, en mai, à Cannes, “hors sélection nationale” à la demande des Soviétiques. Le film attendra
deux nouvelles années avant d’être montré aux spectateurs russes.” (p.13, tradução livre da autora).

12 “En 1966, Andrei Roublev, le produit fini, aboutissement d’un très long travail et d’une
intense réflexion sur l’art (...) désole les officiels. Comme si le cinéaste avait trahi leur confiance.
Avec ce second film, naît pourtant le véritable Tarkovski. Le Russe délaisse le Soviétique.
La césure est en effet complète. Andrei Roublev s’ouvre sur une expérience magnifique, celle de l’hom-
me volant. Le film se poursuit sur le ton du doute: le peintre s’interroge et n’arrive plus à produire.
Cependant le style tarkovskien s’est affermi: le temps est là aux certidutes. Le cinéaste assume son
rythme propre et propose une esthétique de la lenteur. C’est ce contraste entre la fragilité des êtres et les
certitudes esthétiques qui surprend. (...) Il reunie l’experience de toute avant-garde mais montre avec
certitude qu’il a trouvé un chemin.” (p.11-12, tradução livre da autora).

270
Além de decepcionar as autoridades soviéticas, tomando um rumo
que desviava ideologicamente do que era esperado, foi com esse ar-
gumento que, pela primeira vez, Tarkovski deixou claro que havia
encontrado um caminho para a sua arte cinematográfica, registran-
do suas idéias em imagens e sons esculpidos no tempo.
Aqui, para efeito dessa reflexão, pergunto se teria sido apenas
coincidência que tal cisão - referida por de Baecque como o mo-
mento em que o cineasta fez uma opção estética e ideológica pelo
passado russo em detrimento do modernidade soviética - tenha se
realizado exatamente a partir de um argumento centrado na figura
de uma personagem histórica habitante do período que precedeu a
formação da Rússia como nação, em torno do qual circulavam to-
dos os elementos fundadores dessa mesma nação, os quais foram
calma e cruamente apresentados, um a um, ao longo do filme.
Tarkovski estaria, então, afirmando sua crença no passado
fundador da nação russa e estabelecendo ali suas raízes estéti-
cas, ao mesmo tempo em que apresentava e discutia a fragilida-
de e o sofrimento daquele que, num momento crucial de insta-
bilidades sociais e políticas, como ele próprio, sofria na busca
pela criação de uma arte coerente e verdadeira, aquela que per-
manece para a eternidade?
Nesse momento único de definição estética, se o argumento
fosse outro - para ficar em um de seus filmes mais conhecidos, por
exemplo, o argumento de uma ficção científica como Solaris ou de
uma ficção atemporal como Stalker - talvez Tarkovski tivesse feito
primeiro uma opção estética diversa, que o afastaria desse passa-
do russo que lhe é tão caro e que é tão claramente defendido em
Andrei Roublev, demorando um pouco mais para juntar as peças
que comporiam sua forma particular de representar o mosaico do
mundo, através do tempo esculpido.

Capítulo 8

Imaginação e poesia: entre a tentação de ser soviético e a 271


vontade de ser russo. Pensando sobre Andrei Roublev, um filme
de Andrei Tarkovski
Helena Tassara
Por outro lado, através da reafirmação incessante do passado,
das origens e das tradições, esta sua opção não poderia estar re-
fletindo - e porque não? - uma vontade inconsciente, um desejo
de posicionamento político, que estaria calcado num humanismo
que recusa a inserção em um modelo de cultura imposto por um
Estado nacional totalitário, definido pela força, onde nunca houve
o respeito às diferenças regionais nem às heranças culturais e reli-
giosas dos distintos povos que se mantinham subjugados?
Segundo afirma Tarkovski, não se tratava, seguramente, de en-
dereçar mensagens cifradas ao mundo soviético contemporâneo.
Ao ser questionado sobre o assunto na entrevista referida anterior-
mente, respondeu:

(...) não é realmente esse o meu problema. Eu não endereço men-


sagens à Rússia atual. Além disso, eu não desejei jamais dizer
coisa alguma aos russos. As virtudes desses “eu desejo falar ao
meu povo...”, “eu quero falar ao mundo inteiro...”, desses gêne-
ros proféticos não me interessam mais. Eu não sou um profeta.
Eu sou um homem a quem Deus deu a possibilidade de ser poeta,
ou seja, de rezar de uma maneira diferente daquela utilizada pe-
los fieis em uma catedral. Eu não posso e nem quero dizer nada
além. (...) Minha única preocupação, pessoalmente, é trabalhar,
somente trabalhar13.

Mas como trabalhar sobre uma figura como Andrei Roublev? As


¹³ (...) ce n’est pas vraiment mon problème. Je n’adresse pas de message à la Russie actuelle. Je ne veux
d’ailleurs plus jamais rien dire à aucune des Russies. Les vertus de ces “je veux dire à mon peuple...”,
“je veux dire au monde entier...”, de ces genres prophétiques ne m’intéressent plus. Je ne suis pas un pro-
phète. Je suis un homme à qui Dieu a donné la possibilité d’être poète, c’est-à-dire de prier d’une outre
manière que cella utilisé par les fidèles dans une cathédrale. Je ne peux et ne veux rien dire de plus. (...)
Mon seul souci, personnellement, est de travailler, seulement de travailler (tradução livre da autora)

272
informações disponíveis sobre a vida do pintor de ícones são tão
fragmentadas quanto àquelas relativas à vida de qualquer artista
que viveu na Rússia dos remotos tempos medievais. Nem mesmo a
data de seu nascimento é precisa.14
Sabe-se ao certo apenas que em 1390 ele já havia se instalado
como monge no Monastério da Trindade e de São Sérgio (Troitse-
-Sergeyeva) em Zagorsk, próximo de Moscou, cuja principal figura,
líder religioso e político, era Sergey Radonezhsky - mais tarde, reve-
renciado como um dos maiores e mais importantes santos russos.
Seguindo a trajetória de sua produção de ícones, pode-se inferir,
também, que no final da década de 90, Roublev ajudou na decora-
ção da Catedral da Dormição. Em 1400, tornou-se monge no Monas-
tério Andronikov em Moscou (atualmente o Museu Roublev). Em
1405, esteve com o importante pintor de origem bizantina Teofanes,
o Grego, trabalhando nas pinturas para a Catedral da Anunciação,
também em Moscou. Em 1408, foi chamado à cidade de Vladimir
para trabalhar em outra Catedral da Dormição. No restante de sua
vida, portanto até 1430, Roublev permaneceu no Monastério Andro-
nikov, tendo retornado brevemente ao Troitse-Sergeyeva entre 1411
e 1420, onde pintou seu mais famoso ícone entre todos os ícones
famosos que deixou para a humanidade admirar: a pintura alegórica
da Santíssima Trindade, deixada em memória de São Sérgio.15

¹⁴ Conforme nos informa Mark LE FANU, os estudiosos do assunto divergem quando ao


estabelecimento de uma data precisa para o nascimento de Andrei Roublev, que varia
entre 1360 e 1370.

¹⁵ Segundo nos conta Mark LE FANU: “O trabalho remanescente de Roublev não é numeroso.
(…) Aqueles que viram esses trabalhos nos falam de sua extraordinária harmonia e beleza.
As cores são brilhantes e opalescntes: rosas, lapis-lazulis, ouro pálidos. As formas humanas
são arredondadas mas não macias; as xpressões faciais dos santos e figuras sagradas carre-
gam, ao mesmo tempo, austeridade e compaixão. A importância da arte-histórica de Roublev
parece residir no estabelecimento de uma maneira particular russa de representar o sagrado,
rompendo com uma influência predominantemente grega (representada no filme pela severi-

Capítulo 8

Imaginação e poesia: entre a tentação de ser soviético e a 273


vontade de ser russo. Pensando sobre Andrei Roublev, um filme
de Andrei Tarkovski
Helena Tassara
Porém, seiscentos anos depois, a certeza ou a dúvida sobre fa-
tos ocorridos na vida verdadeira de Andrei Roublev pouco impor-
tavam para e na criação do filme de Tarkovski. Ao contrário, esta
ausência de precisão sobre os fatos relacionados à vida de Roublev
foi importantíssima para que a história pudesse ser conduzida sem
amarras pelos caminhos que interessavam ao cineasta, como ele
mesmo afirmou na entrevista já citada:

“Felizmente, sabemos muito pouca coisa sobre a vida de Roublev,


o que nos permitiu total liberdade de ação, liberdade que nos foi
de uma importância primordial. (…) Tudo aquilo foi inventado.
Mas, antes de fazer essa invenção, é claro que nós nos documen-
tamos, nós lemos muitíssimo. De certa maneira, nós inventamos
uma vida para Andrei Roublev, dentro dos limites históricos que
estavam em nosso poder, que eram do nosso conhecimento. (...)
Eu inventei um Roublev, mas eu aceitarei outras versões.”16

dade angular de Theophanes), que teve continuidade no século seguinte com o pintor russo
Dionysys of Theraponte. Mas a fama de Roublev se extendeu de tram maneira que, em 1531, o
conselho da Igreja proclamou seu estilo como o verdadeiro padrão da ortodoxia artística que
deveria ser seguido perpetuamente.” “The extant work of Roublev is not numerous. (...) Those
who have seen these works speak of their extraordinary harmony and beauty. The colours are shim-
mering and opalescent: pinks, lapis lazulis, pale golds. The human forms are rounded but not soft;
the facial expressions of the saints and holy figures are at once austere and compassionate. Roublev’s
art-historical importance seems to have been in the establishing of a particularly Russian mode of
holy representation, breaking away from predominantly Greek influence (representated in the film by
the angular severeties of Theophanes). This grave humanism was continued in the following century
by the next great Russian painter, Dionysys of Theraponte. But so wide was Roublev’s fame that a
Church council in 1551 proclaimed his style as the true standard of artistic orthodoxy ‘to be followed
in all perpetuity” (p.35-6, tradução livre da autora).

¹⁶ “Heureusement, on sait très peu de choses sur la vie de Roublev, ce qui nous a permis toute liberté
d’action, liberté qui était pour nous d’une importance primordiale. (...) Tout cela a été inventé. Mais,
avant cette invention, nous nous sommes bien entendu documentés, nous avons beaucoup lu. Nous
avons, en quelques sorte, inventé la vie d’Andrei Roublev dans les limites historiques qui étaient en
notre possession. (...) J’ai inventé un Roublev, mais j’en accepterais d’autres versions.” (tradução
livre da autora).

274
Na construção de seu filme, Tarkovski trabalhou com a idéia
de que o tempo passado no Monastério da Trindade e o contato
com Sergey desde a tenra juventude, influenciaram definitivamen-
te o trabalho de Roublev e a sua formação como homem e intelec-
tual de seu tempo.
Roublev viveu em uma época de medo, de guerra civil, de in-
vasões de povos tártaros e mongóis, de lutas fratricidas, de prínci-
pes em busca do poder a qualquer custo, de traições e de alianças
espúrias, de violência e instabilidade. Lutas sem fim provocadas
por príncipes que, por vários séculos, pretenderam unir pela força
povos de origens bastante díspares. Habitantes das florestas e pân-
tanos que ocupam as terras que ligam os mares do norte ao Mar
Negro e ao Mar Cáspio, muitos deles de ascendência pagã, esses
povos resistiam à idéia da organização de uma mesma nação Rus,
que se pretendia construir em torno do poder dos líderes espiritu-
ais religiosos da Igreja Ortodoxa, de origem bizantina.
Nessa atmosfera, a trindade fundamental consubstanciada nas
idéias de amor, de comunidade e de fraternidade, transformava-se
em lema político, única forma de sobreviver e de alcançar a almejada
nação, independente e religiosamente hegemônica, anseio dos ho-
mens que viviam nos monastérios e nos palácios. Para o Roublev de
Tarkovski, esta teria sido a principal fonte de inspiração evocada para
a criação e produção do ícone que representa a “Trindade”, a qual
transformou-se em seu mais famoso e conhecido trabalho, símbolo
da criação divina em todos os sentidos. Aqui a “Trindade” é, também,
o objetivo final do filme, imagem para onde o espectador vai sendo
conduzido, passo a passo, no desenlace da seqüência de imagens e de
fatos escolhidos para compor a construção de sua narrativa.
A partir do exemplo de Roublev, Tarkovski pretendeu explorar a
questão da psicologia da criação artística, analisando a mentalidade e

Capítulo 8

Imaginação e poesia: entre a tentação de ser soviético e a 275


vontade de ser russo. Pensando sobre Andrei Roublev, um filme
de Andrei Tarkovski
Helena Tassara
a consciência de um artista que criou tesouros espirituais de importância
eterna e que conseguiram sintetizar o ideal da fraternidade, do amor e
da serena santidade. Esta era, de acordo com o cineasta, a base artísti-
ca e filosófica do roteiro original para o filme Andrei Roublev.
Mesmo que o filme que hoje conhecemos tenha sido conce-
bido como resultado dessa liberdade, que criou e inventou uma
vida interior e exterior para o pintor do século XIV, é evidente
que Tarkovski e seu amigo Andrei Kontchalovski (co-roteirista do
filme) tiveram que pesquisar muito para escrever o roteiro final
de filmagem.
Por outro lado, essa falta de informações sobre o pintor de
ícones, reforçava e favorecia a idéia que Tarkovski já tinha de como
deveria ser a reconstrução histórica e artística da época de Roublev.
Ou de qualquer outra época onde um filme seu fosse ambientado.
Para ele, os fatos históricos, as pessoas e os artefatos - objetos
de cena, figurinos, utensílios - precisavam ser vistos não como a ori-
gem de futuros monumentos, mas como seres vivos. Não se tratava
do olhar de um historiador, arqueólogo ou etnógrafo, ou de reco-
lher e expor objetos de museu, tratados como relíquias. Dessa for-
ma, seus atores, assim como os objetos do passado vivificados no
presente, também teriam que representar o papel de personagens
essencialmente sujeitos aos mesmos sentimentos das pessoas suas
contemporâneas, portadores das mesmas verdades psicológicas.
Isto porque, além da impossibilidade de reconstruir com exati-
dão como transcorria a vida há seis séculos atrás, a consciência que
hoje se tem desse tempo é, certamente, diferente daquela que ti-
nham as pessoas que nele viviam. Tampouco as obras, os ícones dei-
xados por Roublev podem ser vistos, na atualidade, com os mesmos
olhos de seus contemporâneos. E é preciso ter clareza de que nem
esse olhar, nem aquela consciência, jamais poderão ser recuperados.

276
No entanto, essas obras sobreviveram aos séculos, e ainda têm
existência palpável. Ainda que seja nas paredes dos museus, seu
significado espiritual e humano persiste, está vivo e deve continu-
ar compreensível para a humanidade do século XXI. E, sendo arte,
ainda tem a capacidade de emocionar.
Partindo daí, Tarkovski optou por uma abordagem que, to-
mando este fato como elo de ligação entre as pessoas daquele tem-
po e as da atualidade, permitiu o afastamento de toda e qualquer
obrigação de fidelidade museológica ou histórica na representação,
na reprodução e na ambientação construída para seu filme.

Capítulo 8

Imaginação e poesia: entre a tentação de ser soviético e a 277


vontade de ser russo. Pensando sobre Andrei Roublev, um filme
de Andrei Tarkovski
Helena Tassara
referências
DE BAECQUE, Antoine. Andrei
Tarkovski. Paris, Editions de l‘Etoile/
Cahiers du Cinéma, 1989.

LE FANU, Mark. The cinema of


Andrei Tarkovsky. Londres, British
Film Institute, 1987.

TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o


tempo. São Paulo, Martins Fontes,
1990.

TARKOVSKI, Andrei. Sculpting in time.


Reflections on the cinema. Londres,
The Bodley Head, 1988. 2a edição.

TARKOVSKI, Andrei (diretor e


roteirista). Andrei Roublev.
Filme de longa-metragem
(183 minutos). URSS, Mosfilm,
dezembro de 1966.

XAVIER, Ismail Norberto. Cinema


e História: alegorias nacionais.
Curso de Pós-Graduação. Programa
de Pós-Graduação em Som e
Imagem. Universidade de São
Paulo, Escola de Comunicações e
Artes, ano acadêmico de 1997.

278
Capítulo 8

Imaginação e poesia: entre a tentação de ser soviético e a


vontade de ser russo. Pensando sobre Andrei Roublev, um filme baracoa
editora

de Andrei Tarkovski
Helena Tassara
Maribel Mendes Sobreira
Universidade de Lisboa

Arquiteta. Membro do Centro de Filoso-


fia da Universidade de Lisboa (CFUL).
Mestre em filosofia e doutoranda no
campo da estética e filosofia da arte na
Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa e na Universidade de Cagliari.
Coordena o NES_UL (Núcleo de Estudos
Simmelianos da Universidade de Lis-
boa). Seus tópicos de pesquisa incluem
urbanismo e qualidade de vida, a relação
entre arquitetura e filosofia, estética, filo-
sofia da arte e filosofia da cultura.

CV: http://cful.letras.ulisboa.pt/people/ma-
ribel-sobreira/
E-mail: maribel.sobreira@campus.ul.pt
ORCiD: https://orcid.org/0000-0001-9852-5750

281
Cidade como chôra e abrigo:
sobre a essencia da arquitec-
tura

Resumo: O principal objetivo ciência pura, onde através de


deste artigo é discutir uma pos- critérios matemáticos e outros,
sível conexão entre arquitetura como pesagem, medição, con-
e filosofia, particularmente ex- tagem, confere a possibilidade
plicitar a relevância da filosofia, de materializar edifícios que
ou seja, na sua visão platônica, não existiam antes. Vamos ver,
para uma melhor compreen- por exemplo, no diálogo Me-
são da essência da arquitetura. non, que figuras geométricas
Interpretando o conceito de lembram a alma a visualização
chôra como um esquema para da idéia pura. O que significa
entender a cidade, desta forma que o tékhton -de arquitetura-
podemos recusar a abordagem deve materializar o inteligível
mais comum para a arquitetu- através de uma linguagem geo-
ra, como sendo apenas focada métrica, encontrando a beleza/
em objetos arquitetônicos, e universal, bom, através de sua
identificar a sua essência: não estabilidade, solidez e bele-
saber o que é um edifício ou za, como explica Vitrúvio em
para descobrir a sua beleza De Architectura como utilitas,
ou utilidade, mas antes perce- venustas e firmitas. É impos-
ber o que é um abrigo e o que sível compreender verdadeira-
significa construir. Procedendo mente as cidades sem pensar
da idéia de que, para Platão, a na ligação entre o rito da cons-
arquitetura é uma das discipli- trução e o Gênio loci como um
nas essenciais da vida humana, lugar de pertença ontológica e
que ele classifica como uma a relação da paisagem com o

282
meio ambiente. Enraizados na
undação (Grund) da existência,
as cidades estão entre o ato
do pensamento e o ato da
construção. O objetivo deste
capítulo é
responder à seguinte pergunta:
se todos nós temos a capacida-
de de conceber, em pensamen-
to, uma casa, pode esse gesto
em si mesmo ser considerado
uma parte de uma cidade, e
como isso influencia a nossa
leitura da cidade?

Palavras-chave: Platão, chôra,


cidade, arquitetura, Genius
Loci

283
City as chôra and shelter: on
the essence of architecture

Abstract: The main purpose counting, confer the possibility


of this paper is to discuss a to materialize buildings that did
possible connection between not exist before. We will see for
architecture and philosophy, example in the Menon dialogue
and particularly to explicit that geometric figures remind
the relevance of philosophy, the soul the visualization of
namely in its Platonic view, for the pure idea. Which means,
a better understanding of the the tékhton – of Architecture
essence of architecture. Inter- – should materialize the intelli-
preting the concept of chôra gible through a geometrical
as a schema to understand the language by meeting the Beau-
City, we can refuse the most ty/Universal Good, through its
common approach to archi- stability, solidity and beauty, as
tecture as being only focused Vitruvius explains in De Ar-
on architectural objects, and chitectura as utilitas, venustas
identify its essence: not to and firmitas. It’s impossible to
know what a building is or to truly understand Cities wi-
find out its beauty or utility, but thout thinking the connection
to realise what is a shelter and between the construction rite
what means to build. Proce- and the Genius Loci as a place
eding from the idea that for of ontological belonging and
Plato, Architecture is one of the the relation of the landscape
essential disciplines of human with the environment. Rooted
life, which he classifies as a in the foundation (Grund) of
pure science, where through existence, Cities are between
mathematical and other criteria the act of thought and the act of
such as weighing, measuring, construction.

284
The aim of this chapter is to
answer the following question:
if we all have the capacity to
conceive, in thought, a house,
can that gesture in itself be
considered a part of a city, and
how does that influences our
reading of the city?

Keywords: Plato; chôra, city,


architecture, Genius Loci

285
Capítulo 9

Cidade como chôra


e abrigo: sobre
a essencia da
arquitectura
Maribel Mendes Sobreira
Universidade de Lisboa

Arquitectura entre ἀρχιτέκτων e οἰκοδομή

Antes de termos feito uma investigação mais exaustiva do ter-


mo “Arquitectura” na sua etimologia grega, a primeira noção da
palavra com que nos defrontamos, após uma pesquisa em dicio-
nários e em alguns livros versados sobre a temática da Arquitec-
tura, foi a de: ἀρχιτέκτων (arkhitekton), que em grego, combina
duas palavras. Por um lado, a ἀρχή (arché) que tanto pode sig-
nificar início como princípio. Designa um ponto de partida, um
fundamento, que Platão, nas Leis, livro VI (775e)1 associa a uma
espécie de divindade, que arraigada no ser humano o transforma
numa potência geradora de toda a actividade cognitiva (Fedon, 79d);

1 “Pues el principio, cuando arraiga en lo humano como una especie de divinidad, lo salva
todo con tal de que se le tributen por parte de cada uno de los que operan las honras que le
son debidas.”, Las leyes / Platon ; ed. bilingue, traduccion, notas y estudio preliminar por Jose
Manuel Pabon y Manuel Ferandez-Galiano. - Madrid : Instituto de Estudios Politicos, 1960. - 2
vol.  - (Clasicos politicos). - Texto paralelo em grego e espanhol.

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 287


Editora Baracoa — 2019
por outro lado τέκτων (tektōn) que está associado a τεχνη (te-
chnē) que significa construção, edificação, operário, técnica. A
arquitectura seria assim a operação que materializaria a ἀρχή,
dando-lhe forma.
Poderemos, também, reconhecer essa potência geradora na
palavra indo-europeia tek – gerar, dar nascimento a..; ou teks –
tecer, fabricar. Se entendêssemos a ἀρχή como a coisa prévia à
razão a Arquitectura seria, e é, uma actividade geradora [da pas-
sagem] da potência ao acto.
Contudo, uma investigação mais cuidada levou-nos a refu-
tar a ideia de que a palavra original em grego seria a que acima
expusemos. Esta seria antes οἰκοδομή (oikodomē), οίκοδομικήν
(oíkodoniken), οἰκοδομικός (oikodomikós), estas palavras2 deri-
vadas de oikos3 estão associadas à capacidade de o lugar se tornar
casa, lar, de se criar uma identificação ontológica com o territó-
rio; a palavra ἀρχιτέκτων (arkitekton), seria utilizada para desig-
nar o arquitecto e não a sua disciplina. A palavra associada à raiz
arché e tektōn surge quando se traduz a bíblia do hebraico para
o grego, aparecendo assim o termo ἀρχιτεκτονίας (árkitektóní-
as) para traduzir do hebraico: ma·ḥă·šā·ḇōṯ , mə·le·ḵeṯ, e também
mə·lā·ḵāh4 que em português é traduzido por: apto a idealizar
obras ou toda a espécie de trabalhos e ainda artesão. Como po-
deremos constatar nas traduções portuguesa, inglesa e gregas
do Êxodo 35:32 e 35:35:

2 In Biblissima. http://outils.biblissima.fr/lemmatiseur_grec/index.php?pos_ind=6729348. E
Perseus, http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.01.0167:book=1:sec-
tion=346d. Visitados a 15-06-2014.

3 In: A greek english lexicon of the new testament and other early christian literature, pp.561-564.

4 In Bible hub. http://biblehub.com/interlinear/exodus/35.htm. Visitado a 17-06-2014.

288
“EX.35:32 tornou-o apto a idealizar obras, a trabalhar o ouro, prata e o
bronze;”5

“EX.35:32 and to make skillful works, to work in gold, in silver, in


brass,” 6

por:

“ἀρχιτεκτονεῖν To-Be-Architect-Ing κατὰ Down / According To


/ As Per (+ACC), Agains (+GEN) πάντα All (NOM|ACC|VOC), EVERY
(ACC) τὰ THE (NOM|ACC) ἔργα WORKS (NOM|ACC|VOC) τῆς THE
(GEN) ἀρχιτεκτονίας ARCHITECTURE (GEN), ARCHITECTURES (ACC)
ποιεῖν TO-BE-DO/MAKE-ING τὸ THE (NOM|ACC) χρυσίον PIECE OF
GOLD (NOM|ACC|VOC) καὶ AND τὸ THE (NOM|ACC) ἀργύριον PIECE
OF SILVER (NOM|ACC|VOC) καὶ AND τὸν THE (ACC) χαλκὸν COPPER
OR BRONZE (ACC) “; 7

ou:

“Ex. 35:35 Encheu-os de sabedoria e talento para executar todas as


obras de escultura e de arte; para bordar em tecidos de púrpura
violácea, de púrpura escarlate, de púrpura carmesim e de linho
fino, e para levar a cabo, bem como planificar, toda a espécie de
trabalhos.”8

5 Bíblia Sagrada, Lisboa/ Fátima, Difusora Bíblica, 2009, p.157.

6 In Katabiblon. http://en.katabiblon.com/us/index.php?text=LXX&book=Ex&ch=35&inter-
lin=on#v32. Visto em1 7-06-2014.

7 Op. cit.

8 Bíblia Sagrada, Lisboa/ Fátima, Difusora Bíblica, 2009, p.157.

Capítulo 9

Cidade como chôra e abrigo: sobre a essencia da arquitectura 289


Maribel Mendes Sobreira
“Ex. 35:35 He has filled them with wisdom of heart, to work all kinds
of workmanship, of the engraver, of the skillful workman, and of
the embroiderer, in blue, in purple, in scarlet, and in fine linen,
and of the weaver, even of those who do any workmanship, and of
those who make skillful works.” 9

para:

“ἐνέπλησεν HE/SHE/IT-SATISFY-ED αὐτοὺς THEM/SAME (ACC) σοφίας


SAPIENCE (GEN) καὶ AND συνέσεως INSIGHT/DISCERNMENT (GEN)
διανοίας COGNITION (GEN), COGNITIONS (ACC) πάντα ALL (NOM|AC-
C|VOC), EVERY (ACC) συνιέναι TO-BE-BE-ING-TOGETHER; TO-BE-UN-
DERSTAND-ING ποιῆσαι TO-DO/MAKE, BE-YOU(SG)-DO/MAKE-ED!, HE/
SHE/IT-HAPPENS-TO-DO/MAKE (OPT) τὰ THE (NOM|ACC) ἔργα WORKS
(NOM|ACC|VOC) τοῦ THE (GEN) ἁγίου HOLY ([ADJ] GEN) καὶ AND
τὰ THE (NOM|ACC) ὑφαντὰ WOVEN ([ADJ] NOM|ACC|VOC) καὶ AND
ποικιλτὰ ὑφᾶναι TO-???, BE-YOU(SG)-???-ED!, HE/SHE/IT-HAPPENS-
-TO-??? (OPT) τῷ THE (DAT) κοκκίνῳ SCARLET ([ADJ] DAT) καὶ AND τῇ
THE (DAT) βύσσῳ FINE LINEN (DAT) ποιεῖν TO-BE-DO/MAKE-ING πᾶν
EVERY (NOM|ACC|VOC) ἔργον WORK (NOM|ACC|VOC) ἀρχιτεκτονίας
ARCHITECTURE (GEN), ARCHITECTURES (ACC) ποικιλίας” 10

O termo que entrou para a nossa linguagem seria, então, a tra-


dução que se fez do grego ἀρχιτεκτονίας (árkitektónías) para o
latim Architectura, para a qual Hubert Damisch chama a aten-
ção, dizendo que a Ars latina é diferente do sentido grego que
para Cícero seria “uma maneira de ser ou de agir, a habilidade
9 In Katabiblon. http://en.katabiblon.com/us/index.php?text=LXX&book=Ex&ch=35&inter-
lin=on#v32. Visto em1 7-06-2014.

10 Op. cit..

290
adquirida através do estudo ou da prática, um conhecimento da
natureza técnica”11.
É curioso depararmo-nos com a ideia de que a palavra, como
a conhecemos hoje, com que nomeamos a disciplina arquitectura
tenha aparecido depois, quando se tentou teorizar o métier do ar-
quitecto. Pois existiam outros conceitos para nomear a arquitectu-
ra, como vimos acima, o οίκοδομικήν que Platão nos seus diálogos,
como veremos no segundo capítulo, utiliza quando se quer referir
à Arquitectura. Nesta análise, podemos notar que a relação com a
ideia de arquitectura nasce de uma correspondência empírica com
a envolvente, carregando uma carga de concepção simbólica e mi-
tológica que molda a relação cognitiva com a envolvente que, neste
sentido, é intuída e pensada universalmente.
Refugiar-nos-emos nas palavras de Tomás de Aquino, para ex-
plicitar e tornar mais clara a noção de que a arquitectura reside na
universalidade de ser intuída e criada no mundo das ideias, “a casa
existe de antemão na mente do construtor, e a isto pode chamar-se
ideia da casa, porque o artífice intenta fazer a casa semelhante à for-
ma que concebeu na sua mente.”12. A casa surge na mente/ideia, mas
ela surge – de uma forma desapercebida – primeiro na sensação/
intuição que só depois é conceptualizada pela razão, sem se aperce-
ber da intuição, acreditando que a ideia surgiu apenas no intelecto.
Partindo da premissa de que existe uma universalidade no
acto de pensar uma casa, seguindo, por exemplo, Adolf Loos, que
sustenta que a “arquitectura desperta estados de ânimo nos ho-
mens. (...) Se encontrarmos um montículo num bosque, com seis

11 DAMISCH, Hubert, in: Enciclopédia Enaudi, vol.3, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda,
1984, p30.

12 Conforme citado em: FERREIRA, J.M. Simões, História da Teoria da Arquitectura no ocidente,
edições Vega, p.21.

Capítulo 9

Cidade como chôra e abrigo: sobre a essencia da arquitectura 291


Maribel Mendes Sobreira
pés de comprimento e três de largura, amontoado de forma pi-
ramidal, pôr-nos-emos sérios e no nosso interior algo nos dirá:
Aqui está alguém enterrado. Isto é arquitectura.”13 ou o arquitecto
Fernando Távora, quando diz que o arquitecto antes de ser arqui-
tecto é Homem [ser]14, então concluiremos que, de facto, muitas
vezes entendeu-se que a arquitectura está no acto de pensar e de
construir, quando, na realidade, está situada antes do pensamen-
to, está na sensação.
Veja-se a seguinte citação a este propósito: “a arquitectura sur-
ge-me como uma imagem forte, depois passa para o campo da ideia
(conceptualização) com a visualização do objecto (corporal ou físi-
co). As primeiras imagens são naïfs, destas imagens surge a arquitec-
tura, uma arquitectura que existe por ela mesma.”15. Intuir e pensar
a arquitectura é já um deixar-se habitar heideggeriano, fazendo parte
da essência do Ser, onde encontra o seu fundamento16 (grund), o seu
enraizamento na Terra, dialogando e partindo da Natureza.

Da Intuição inteligível à construção

Coloquemo-nos no papel do ser humano primitivo e pensemos na


necessidade de nos abrigarmos das condições meteorológicas [de
um mundo que nos era adverso e estranho], de uma mera função,
a protecção do ser humano da natureza. Pensemos no primeiro
13 Conforme citado em: FERREIRA,J.M. Simões, Arquitectura para a morte – A questão Cemiterial e seus
reflexos na Teoria da Arquitectura, Edições Fundação Calouste Gulbenkian, Maio de 2009, p. 856.

14 In ihttp://www.arquitectura.uminho.pt/uploads/eventos/EV_1817/20081001449363413750.pdf.
Visitado a 17/06/2012.

15 In https://www.youtube.com/watch?v=6uGcQAC0VUw . Visitado a 16/06/2014.

16 “Fundamento é aquilo, sobre o qual se apoia tudo o que para todos os entes já existe como
o sustentado.” HEIDEGGER, Martin, O Princípio do Fundamento, Lisboa, Edições Instituto Piaget,
1999, p. 181.

292
ser humano sobre a Terra, para quem a ideia de casa não existia
como conceito, a sua procura de abrigo surge de uma necessida-
de física, mas o que acontece antes dessa necessidade física, que
“pré-conceito” inteligível se dá no ser humano para que ele possa
pensar o abrigo?
Antes de qualquer conceptualização, o ser humano traz consi-
go as coordenadas gravitacionais que o fazem andar sobre a terra e
conhecer a sua posição espacial no território, ou seja, altura; largu-
ra; profundidade; alto; baixo; esquerda; direita; longe; perto. É com
estas indicações – que subtilmente o constituem e fazem parte da
sua intuição do mundo – que parte para a construção de espaço
habitável, ou seja, já tem em si arquitectura, isto é, é já arquitectura.
O ser tem arquitectura dentro de si, não há uma relação de exterior,
de dentro e fora com o objecto, porque ele só existe como objecto
quando o ser humano se explica por conceitos, conceptualizando
a sua experiência subtil com o espaço. O ser humano já traz consi-
go as referências espaciais antes do espaço físico e material. O ser
humano primitivo descobre a gruta por ter já em si a capacidade de
intuir um espaço; depois da sua descoberta, apercebe-se de si e do
que o envolve: conceptualiza a descoberta feita pela intuição.
No livro O Mito do Eterno Retorno, Mircea Eliade explicita-nos
a necessidade que o ser humano arcaico tinha de fazer a ligação
com o Cosmos, de se ligar ao sagrado suspendendo o tempo cro-
nológico através do Lugar. Essa suspensão acontecia quando, por
exemplo, construía - esse acto de edificar algo - religava-o ao ar-
quétipo original da criação do Cosmos. O rito de construção era a
possibilidade de “restaurar o instante inicial”17, através da imitação

17 ELIADE, Mircea, O Mito do Eterno Retorno, Lisboa, Edições 70, 2000, p.91.

Capítulo 9

Cidade como chôra e abrigo: sobre a essencia da arquitectura 293


Maribel Mendes Sobreira
do divino “surge uma "nova era"com a construção de cada casa”18.
Por sentir “a necessidade de reproduzir a Cosmogonia nas suas
construções, fossem elas de que espécie fossem, que esta repro-
dução o tornava contemporâneo no momento mítico do princípio
do Mundo e que ele sentia a necessidade de regressar, tão frequen-
temente quanto possível, a esse momento mítico, para se regene-
rar”19. Por não ter participado na criação inicial do Mundo, por ter
sido apenas criado e não ser o criador, necessita de se tornar real na
participação imitativa do arquétipo cósmico, anulando-se20.
Por o ser humano arcaico ser parte integrante e activa da Natu-
reza e não um mero observador, este vê-a como arquétipo Cosmoló-
gico. A caverna, por exemplo, simbolizava o útero materno da pró-
pria Natureza, que através dos ritos espaciais a tornam real, ou seja,
passa a conter ordem, significado. O espaço transforma-se em lugar
passando a ter valor existencial, “qualquer território ocupado com
vista à fixação ou à sua utilização como "espaço vital», é previamente
transformado de "caos"em "Cosmos»; isto é, por um ritual (…) que o
torna real”, este real - que dá forma à vontade de transformar o caos
em Cosmos - é o próprio sagrado, porque “só o sagrado o é de uma
maneira absoluta, age eficazmente, cria e faz durar as coisas”21.
A sacralização do lugar, por via do Homem, transforma-o no
Centro, estabelecendo o diálogo entre o "Céu"e a "Terra», entre as
energias superiores e inferiores, como refere Armando Rabaça, a

18 dem, Ibidem.

19 Op.Cit., pp. 91-92.

20 “ (…) só se reconhece como real na medida em que deixa de ser ele próprio ( para um
observador moderno) e se contenta em imitar e repetir os gestos de um outro (…) só se recon-
hece como real, isto é, como "verdadeiramente ele próprio», na medida em que deixa precis-
amente de o ser.”, Op. cit., p.49.

21 Op.Cit., pp. 25-26.

294
Montanha Mágica torna-se Centro através da sua sacralização, ad-
quirindo realidade ontológica, associando-a à criação do Mundo.
Para Mircea Eliade “ o "Centro"é pois a zona do sagrado por
excelência, da realidade absoluta” que transforma o tempo crono-
lógico em tempo mítico, dando-se a suspensão temporária no pró-
prio acto de edificação, porque “ao construir o templo, não se cons-
truía apenas o Mundo, construía-se também o Tempo Cósmico”.
Para o ser humano arcaico o rito de construção não passava
apenas pelo conforto vital, mas pela sua ligação à Grande Alma
do Cosmos. “Não é assim de estranhar que a mais elementar
construção sagrada consista na marcação de um ponto na pai-
sagem: erguer um menir em direcção ao Céu é construir uma
montanha sagrada (…)”22 que através de “revolver” a Natureza,
com a artificialidade do seu acto, mantinha-se em contacto com
o Espírito do Lugar, mais tarde denominado como Genius Loci
pelos Romanos.
A arquitectura é neste sentido, a conceptualização da ligação que
o ser humano arcaico tinha com o lugar, passa do campo da vivência
sensitiva para a racionalização do acto da criação construtiva, a arqui-
tectura dá corpo à relação intuitiva com a Natureza. A interacção com
o lugar passa a ser intelectualizada, como podemos ver nos escritos do
arquitecto Vitrúvio, o centro Cosmológico arcaico transfere-se para o
umbigo do Homem, este passa a ser a medida. Não é, por acaso, que na
Grécia antiga, nomeadamente em Platão, para denominarem arquitec-
tura não usavam o termo ἀρχιτεκτονίας, como vimos explicitado acima,
mas antes oikodomē que tem na sua concepção simbólica uma relação
ontológica com o lugar de pertença onde o acto de edificar tem lugar.

22 RABAÇA, Armando, Entre o Corpo e a Paisagem: Arquitectura e lugar antes do genius loci, Coim-
bra, Departamento de Arquitectura, Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de
Coimbra, 2011, pp.35-36.

Capítulo 9

Cidade como chôra e abrigo: sobre a essencia da arquitectura 295


Maribel Mendes Sobreira
Nos pré-socráticos, segundo Maurício Puls23, por exemplo, a
arquitectura era entendida como a estruturação do Cosmos, e não
estava relacionada de forma directa com o objecto arquitectónico,
na medida em que este teve um papel pouco importante nas suas
concepções do mundo. De uma forma geral, estes tentavam expli-
citar a relação entre o mundo e o Cosmos, onde o ser humano e ob-
jecto formavam uma totalidade una sem separações conceptuais.
Na filosofia pré-socrática24 a ideia de arquitectura passa por
entendê-la não de uma forma objectivada, mas por se fazer uma
analogia com a própria estruturação do Cosmos. A partir deste, dá-
-se o mundo sensível através da sua representação nos artefactos,
onde a noção de Beleza provém da relação arquetípica que o ser
humano tem com o Cosmos. Espelhando desta forma a Beleza do
Cosmos no mundo sensível através da ordem, harmonia e solidez.
É com Xenófanes que, aos poucos, ser humano e objecto se clari-
ficam, tornando-se distintos e autónomos, em que o tema da ar-
quitectura começa a ser abordado, quase que poderemos dizer que
numa espécie de relação pré-vitruviana.
Vejamos, por exemplo, como Xenófanes descreve como deve
ser a nossa relação com a casa: “Agora o chão da casa está limpo,
as mãos de todos e as taças; um cinge as cabeças com guirlandas
de flores, outro oferece odorante mirra numa salva; plena de ale-
gria, ergue-se uma cratera, à mão está outro vinho, que prome-
te jamais falar, vinho doce, nas jarras cheirando a flor; pelo meio
perpassa sagrado aroma de incenso, fresca é a água, agradável e
pura; ao lado estão pães tostados e suntuosa mesa carregada de
queijo e espesso mel; no centro está um altar todo recoberto de

23 PULS, Mauricio, Arquitectura e Filosofia, São Paulo, Annablume, 2009, pp.51-79.

24 Idem, Ibidem.

296
flores, canto e graça envolvem a casa. " (Fr.1) e " Ramos de pinho
circundam a casa firme"(Fr.17).
A Arquitectura, na sua pré-concepção, nasce da necessidade,
como afirma Demócrito, quando defende que o que fez com que
se criasse arquitectura foi a necessidade e que, por este motivo, as
suas criações não estão no plano do supérfluo mas antes no plano
vital para o Homem. Por a arquitectura imitar o modelo da natu-
reza, este facto confere-lhe uma importância ontológica e superior
às outras artes, como a música, pintura, etc., porque para além de
satisfazer a necessidade que o ser humano tem de habitar a ter-
ra, confere-lhe também a religação ontológica e metafísica com o
modelo primordial do Cosmos, replicando-o no mundo sensível,
religando o ser humano ao universo.
Para Mircea Eliade a ontologia arcaica tem uma estrutura pla-
tónica, este considera Platão como “(…) o filósofo por excelência
da "mentalidade primitiva», isto é, como o pensador que conseguiu
valorizar filosoficamente os modos de existência e de comporta-
mento da humanidade arcaica.”25 Se analisarmos os textos de Pla-
tão com as referências ao ser humano arcaico percebemos a sua
relação com o arquétipo original da criação e da transformação do
Caos em Cosmos, da necessidade de entender o que o circunda,
como nos diz - citado por Maurício Puls 26- no Protágoras: “o ho-
mem participava da herança divina e, devido ao parentesco com os
deuses, foi o único dos animais a acreditar neles. Assim, começou
a construir altares e imagens suas. Depois, rapidamente dominou a
arte dos sons e das palavras e descobriu a casa, vestuário, calçado,
abrigos e os alimentos vindos da terra” (321d-322a).

25 ELIADE, Mircea, O Mito do Eterno Retorno, Lisboa, Edições 70, 2000, p.49.

26 PULS, Mauricio, Arquitectura e Filosofia, São Paulo, Annablume, 2009, p. 91.

Capítulo 9

Cidade como chôra e abrigo: sobre a essencia da arquitectura 297


Maribel Mendes Sobreira
A casa passa a ser arquitectura quando se manifesta como re-
alização ontológica, onde o ser humano encontra o seu sentido:
sente-se, intui-se a intenção de quem a pensou. Esta é o refúgio pri-
mordial que tem a sua origem na intuição. Não tem de ser explica-
da para que seja apreendida pelos sentidos – quando tal acontece,
estamos perante a má arquitectura, a que não se intui, que não flui
dessa potência geradora primordial (a arché ou oikos da arquitectu-
ra) através da qual a existência do ser humano faz sentido. É ali que
tomamos consciência do que somos no mundo, de sermos corpo
que a percorre [à arquitectura], existindo-a na relação de conscien-
cialização de sermos no mundo.
O que tentamos entender não é o que é a arquitectura, mas an-
tes como ela se manifesta no homem, para que depois se materia-
lize pelo desenho ou na construção tridimensional. Ora, a intuição
da arquitectura acontece quando somos remetidos para a sensação
espacial e não para uma mera recordação visual; ou seja, por de-
trás dessa sensação espacial está o activar daquilo que primordial-
mente nos leva à consciencialização do espaço arquitectónico. Ou
como nos dirá Juhani Pallasma, “de igual maneira, a arquitectu-
ra tem origens próprias e, se ela se afasta demais dessas origens,
perde a sua eficácia. (...) significa redescobrir a sua essência mais
profunda [grund] ”27.
A arquitectura ao passar para o mundo, ao materializar-se, dei-
xa de ser pura porque passa a ter influências externas, a jogar no
campo do objecto: só é pura na ideia, no pensamento, e sobretudo
na intuição. Quando é sujeita à apreciação estética a sua pureza
transforma-se num mero objecto contemplativo e explicativo.

27 PALLASMA, Juhani, “A geometria do sentimento: um olhar sobre a fenomenologia da arqui-


tectura”, in Uma nova agenda para a arquitectura, Kate Nesbitt (org.), São Paulo, Cosac Naify,
2008, p. 482.

298
O ser humano traz consigo, na intuição, a arquitectura, e por
isso, a arquitectura situa-se no campo do “pré-conceito”, manifes-
ta-se antes de qualquer conceptualização, está no ser humano: ela é
o Ser, ambos uma única coisa. A arquitectura é ser-se na realização
ontológica, faz-se através de vínculos e de relações de afeição, não
é uma mera massa intervencionada pelo Homem, mas tem uma
(determinada) realidade própria, que através da identificação dá
sentido e vida ao espaço que se torna habitado. Em suma, pensar a
arquitectura é pensar o ser humano e a sua relação com a Natureza;
é universalizar a relação subjectiva do lugar através da carga simbó-
lica que este lhe desperta.
No livro Uma pequena História do Mito, Karen Armstrong di-
z-nos que “o mito lida com o desconhecido: com aquilo que não
tínhamos palavras, inicialmente”28, lida com o que não consegui-
mos nomear, servindo-nos das palavras de Samuel Beckett, com
o Inominável. Mas essa não-nomeação por ser desconhecida pelos
nossos mecanismos racionais, transforma-se em comunicação para
que assim o ser humano possa entender e dar forma ao Inominável.
Esse serve-se do mito para compreender a realidade que o circunda
e o faz ser.
Entendemos o mito como o suporte material da compreen-
são do ser humano em relação aos fenómenos que surgem, para
que assim possa participar no processo Cosmogónico da criação
do mundo, fazendo a ligação com o Cosmos, suspendendo o tempo
cronológico. Essa suspensão acontecia quando, por exemplo, cons-
truía - esse acto de edificar algo – religando-o ao arquétipo original
da criação do Cosmos.
Por isso a casa é o abrigo primordial. Ela é o espaço onde nos
sentimos seguros, onde as nossas lembranças e vivências estão
28 AMSTRONG, Karen, Uma pequena História do Mito, Lisboa, Editorial Teorema, 2006, p.9.

Capítulo 9

Cidade como chôra e abrigo: sobre a essencia da arquitectura 299


Maribel Mendes Sobreira
guardadas. Pensá-la não se trata apenas de descrevê-la29, mas de su-
blimar o espaço, de o sacralizar para que deste modo cheguemos à
“função original de habitar”30 através da Casa natal31, que é a primeira
referência que o ser humano tem de uma casa, levando-a consigo
na memória e tentando reproduzi-la das mais diversas formas.
A função de habitar e de sentir a casa é tão intrínseca à vivência
do ser humano, que criamos uma dependência de pertença a um
determinado lugar sem nos apercebermos da sua (des)sacraliza-
ção, vemo-la como um local sagrado que mesmo na morte tenta-
mos levar, materializando-a, por exemplo, na nossa última morada.
Segundo Heidegger32 o habitat/casa não deve ser só pensado
como algo estandardizado mas, como uma interacção do
lugar com a casa, com quem a habita, formando deste modo
uma comunidade, passando da identidade individual para a
identidade social, ou seja, o habitat/casa deve ser pensado como
uma correlação entre o sagrado e o profano. Poderemos enten-
der melhor essa correlação através de um diálogo que o discípulo
tem com o seu mestre Zen:

“Qual é a verdadeira natureza do Buda?


- O cipreste no pátio.”,33 responde o mestre, sugerindo a união en-

29 “Nessa comunhão dinâmica entre o homem e a casa, nessa rivalidade dinâmica entre a casa
e o universo, estamos longe de qualquer referência às simples formas geométricas. A casa vivi-
da não é uma caixa inerte. O espaço habitado transcende o espaço geométrico.”, BACHELARD,
Gaston, A Poética do Espaço, São Paulo, Martins Fontes Editora, 2005, p.62.

30 Op. cit., p.37.

31 Op. cit., p.3.

32 HEIDEGGER, Martin, Construir, Habitar, Pensar, Conferencias y Artículos, Barcelona, Serbal,


1994.

33 AA.VV., Os melhores contos Zen, Lisboa, Editorial Teorema, 2002, p.83.

300
tre o visível e invisível “o quotidiano humilde e a realidade final, o
relativo e o absoluto. O “cipreste no pátio”, a flor à nossa frente, a
pedra sob os nossos passos são os caminhos que levam para além
do além do mais além.”34

O acto de colocar o cipreste no pátio redimensiona-o, passamos do


profano para uma sacralização do espaço que adquire uma dimen-
são através de um acto Humano revelador da transcendência do Ser.
Habitar o mundo é actuar no mundo, transformá-lo em lugar de
pertença ontológica, diz-nos Norberg-Schulz no seu texto sobre O
fenómeno do lugar35 que é na possibilidade que o ser humano tem de
habitar o mundo, que o mundo se torna o seu interior realizando
a ligação heideggeriana entre o “céu” e a “terra”; entre o vertical e
o horizontal; entre o sagrado e profano. E é na transcendência do
espaço geométrico que o poeta José Luís Puerto se liga ao exterior
a partir do interior de uma casa metafórica:

“Desocupou a sua casa.


De todo o acessório, do inútil,
Para entender os seus limites.
E sentiu a partir de dentro
O interior vazio.
Procurava desvelar
O oculto em sua casa,
Sentir a transparência do lugar,
Chegar às entranhas Secretas. à matriz,
Aos fluxos onde a semente

34 Idem, Ibidem.

35 Norberg-Schulz, Christian, “O fenómeno do lugar” in Uma nova agenda para a arquitectura,


Kate Nesbitt (org.), São Paulo, Cosac Naify, 2008, pp.443-461.

Capítulo 9

Cidade como chôra e abrigo: sobre a essencia da arquitectura 301


Maribel Mendes Sobreira
Gera os corais da vida.
Desocupou a sua casa,
O ar tornou-se respirável,
Fez-se lugar, morada
Para o recolhimento.”36

É essa relação poética, que faz com que o lugar se materialize em


nós – “a arquitectura pertence à poesia, e o seu propósito é ajudar
o homem a habitar”37 - que o arquitecto Peter Zumthor pretende
materializar na sua arquitectura, criando lugares de pertença Cos-
mo-ontológicos, pensando os seus edifícios como “corpos e de
construí-lo assim: como anatomia e pele, como massa, membrana,
como matéria ou invólucro, tecido, veludo, seda e aço brilhante.
(...) Dou importância à temperatura do espaço, à frescura e às gra-
dações do calor que agraciam o corpo. Penso nos objectos pessoais
que, em certos espaços, as pessoas juntam à sua volta para traba-
lhar, para se sentirem em casa (...) arquitectura como arte do espa-
ço e do tempo, entre serenidade e sedução”38, comunicando através
de formas concretas a sua sensibilidade a um outro, corporalizan-
do-a através do movimento, reforçando a ideia de Norberg-Schulz
de que Arquitectura é poesia.
O ser habita essa pertença quando materializa a sensibilidade
abstracta e a transforma em algo concreto capaz de ser comunica-
do e apreendido. Segundo a análise que Heidegger faz da palavra
alemã bauen: “então, o que significa ich bin (eu sou)? A antiga pa-
lavra bauen, com a qual tem a ver bin, responde: ich bin, du bist
36 PUERTO, José Luís, Protecção das sílabas, Editora Licorne, p. 101.

37 Norberg-Schulz, Christian, “O fenómeno do lugar” in Uma nova agenda para a arquitectu-


ra, Kate Nesbitt (org.), São Paulo, Cosac Naify, 2008, p. 459.

38 ZUMTHOR, Petter, Pensar a Arquitectura, Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 2009, pg.86.

302
quer dizer: eu habito, tu habitas. O modo como tu és e eu sou, a
maneira pela qual nós, os seres humanos, somos na terra é baun,
o habitar.”39 Ou, dito de outra forma, “o homem habita quando é
capaz de concretizar o mundo em construções e coisas.”40, quando
consegue dar forma ao eu contenho e sou contido, à necessidade
que o ser humano, tanto o arcaico como o moderno, tem em se
re-ligar através do Lugar.
Se o paradigma mítico era a consciência de que o ser humano
só pertencia ao Mundo pela e na existência do Cosmos/Divino, fa-
zendo a sua ligação através do rito de construção. Na modernidade
esse paradigma altera-se, como defenderá Feuerbach41, Deus é uma
construção do Homem, só existe no pensamento e não fora dele,
não tem realidade material, sustenta-se nele para compreender a
sua mortalidade.
Esse paradigma moderno aliado ao diagnóstico da falência da
crença no religioso que Nietzsche faz, proclamando a morte de
Deus, faz com que o modernismo perca a âncora que o mantinha
ligado ao Cosmos, passando este a fazer a ligação consigo mesmo.
O arquitecto42, foi perdendo o seu enraizamento, para se tor-
nar assim o Cosmocrata43, já não é o mediador entre o Caos e o Cos-
mos, mas entre caos industrial e o Homem, para isso, por exemplo,

39 Norberg-Schulz, Christian, “O fenómeno do lugar” in Uma nova agenda para a arquitectura,


Kate Nesbitt (org.), São Paulo, Cosac Naify, 2008, p. 458.

40 Idem, Ibidem.

41 Feuerbach, Ludwig, Filosofia da Sensibilidade, escritos (1839-1846), Adriana Veríssimo Serrão


(trad. e org.), Lisboa, CFUL, 2005.

42 Entendido aqui no sentido actual do conceito, aquele que projecta e pensa o espaço to-
pológico aristotélico.

43 ELIADE, Mircea, O Mito do Eterno Retorno, Lisboa, Edições 70, 2000, p.25.

Capítulo 9

Cidade como chôra e abrigo: sobre a essencia da arquitectura 303


Maribel Mendes Sobreira
Le Corbusier cria o Modulor44, o “Cosmos” do seu universo arqui-
tectural. O Cosmocrata torna-se o próprio mito legitimando-se pe-
rante o inconsciente colectivo, substituindo o Cosmos.
A arquitectura, como vimos no capítulo anterior, nasce de uma
necessidade vital e ontológica, a necessidade de abrigar-se. As ar-
tes, segundo Platão, carecem desta necessidade levando o ser hu-
mano ao engano através da produção de meras imagens miméticas
que copiam o modelo eterno, afastando-se do Ser e da Verdade –
proliferando a doxa; “– Por conseguinte, a arte de imitar está bem
longe da verdade, e se executa tudo, ao que parece, é pelo facto de
atingir apenas uma pequena porção de cada coisa, que não passa de
uma apreciação. Por exemplo, dizemos que o pintor nos pintará um
sapateiro, um carpinteiro, e os demais artífices, sem nada conhecer
dos respectivos ofícios. Mas nem por isso deixará de ludibriar as
crianças e os homens ignorantes, se for bom pintor, desenhando
um carpinteiro e mostrando-o de longe a com semelhança, que lhe
imprimiu, de um autêntico carpinteiro.” (Rep. 598c)
Esta está num outro plano de entendimento, não se encontra
no plano da doxa, não copia o modelo do modelo eterno, mas an-
tes, cria o paradigma através da reprodução do modelo eterno, não
estando no campo da representação mimética do mundo sensível,
mas representando o inteligível no mundo sensível, o modelo da
arquitectura é o seu mesmo.
Geralmente quando se fala da filosofia de Platão, no âmbito
da arte e da arquitectura, associa-se frequentemente a uma teoria
estética do Belo, vendo-o ancorado na representação do objecto,
no plano do mundo sensível. Dado que, para Platão, a arquitectura
não está no mesmo campo conceptual do que a Arte, a forma de

44 Um sistema de proporções universais baseadas nas dimensões do Homem e nas leis da


geometria sagrada, publicado em livro na década de 40.

304
olharmos para a sua filosofia não poderá ser a mesma. O filósofo
não entende a arquitectura como sendo uma mera correspondên-
cia mimética com o mundo sensível como é o caso da Arte, no-
meadamente a Pintura. Apesar de ambas as áreas nos parecerem
similares, são, como veremos, bastante distintas entre si. Dada
esta constatação, pretendemos demonstrar a importância fulcral
do pensamento de Platão para uma teoria e filosofia da Arquitectu-
ra, defendendo que este poderia ser incluído como antecessor de
Vitrúvio, na conceptualização da arquitectura.
Partindo da ideia de que para Platão a Arquitectura é uma das
disciplinas  indispensáveis da vida humana, que este classifica (Fi-
lebo 56b-c) como sendo uma ciência pura, onde através de critérios
matemáticos e outros como: pesar, medir, contar,    é conferida a
possibilidade de materializar construções que antes não existiam.
Partindo da premissa de que a arquitectura seria, e é, uma
actividade geradora [da passagem] da potência ao acto, que ma-
terializa a sua technē através da sua verdade inteligível, teremos
que começar a entender como se dão as coisas à razão, ou como
chegamos a elas. Platão na Alegoria da Caverna (Rep. VII) explicita
essa passagem que começa por ser ilusória, o prisioneiro acredita
que as sombras que vê na parede da caverna são a realidade, bidi-
mensional - a realidade tridimensional, numa primeira abordagem,
não existe como coisa palpável - esta relação remete-nos para o
livro Flatland de Edwin A. Abbot em que várias figuras geométricas
bidimensionais tomam corpo como se fossem pessoas a viver num
mundo sem tridimensionalidade.
Depois, o prisioneiro sai da caverna e depara-se com um mundo
tridimensional, como uma outra realidade, sensitiva e palpável des-
cobrindo as ilusões criadas pelas sombras. Ora o arquitecto no seu
processo criativo frequentemente faz este percurso, começa com

Capítulo 9

Cidade como chôra e abrigo: sobre a essencia da arquitectura 305


Maribel Mendes Sobreira
uma ideia vaga, uma sombra da sua intenção e durante o seu proces-
so de conceptualização, de desenho e construção vai percebendo a
realidade do seu ímpeto, que se realiza através de uma linguagem
geométrica, que o remete para a relação primordial da arquitectura.
Vejamos, por exemplo, o  diálogo Ménon onde Sócrates pede ao
escravo que (re)descubra as figuras geométricas por si, decompondo
matematicamente a realidade sensível, acedendo assim ao inteligível,
em que essas figuras lembram à alma a sua visualização do inteligível.
Ou seja, a technē  – da arquitectura – deveria  materializar o inteligível
através de uma linguagem geométrica indo ao encontro do Belo, onde
este se identificaria com o Bem, através da sua estabilidade, solidez e
beleza que deveria reproduzir o modelo das ideias eternas, tal como
Vitrúvio explana no De Architectura, como: utilitas (utilidade), venus-
tas (beleza) e firmitas (solidez). Mas a diferença entre os dois é que,
para Platão a ideia de utilidade centra-se numa relação ético-estética,
enquanto que para Vitrúvio a utilidade é meramente funcional, não
tem significado ontológico, como se de uma máquina se tratasse.
A utilidade advém da habilidade para concretizar os lugares
que habitamos, sendo através desta que a arquitectura se aproxi-
ma do paradigma inteligível da criação45, em que o Bem e o Belo
estão correlacionados, “(...) ao que é útil chamamos Belo”(Hípias
Maior 295d). O arquitecto necessita de dominar tanto o saber te-
órico como o saber prático (Político e Filebo), para desta forma
45 “Para existir e ser cognoscível, a natureza, qualquer que seja a forma em que é entendida,
tem de possuir estabilidade. Esta é dada exclusivamente pelo facto de que as coisas deste
mundo são imagens das Ideias eternas e estáveis, a partir de Entidades matemáticas que per-
mitem uma notável matematização da ciência humana. Isto é evidente no Filebo 55d sgs., onde
Platão classifica as técnicas: existem aquelas menos puras que têm pouca ciência e são carac-
terizadas por conjecturas e práticas empíricas; as demais têm mais ciência, são conformes a
critérios matemáticos e outros referidos à mensuração: contar, medir, pesar.(…) entre as técni-
cas melhores Platão cita a das construções (…)” MIGLIORI, Maurizio, “A visão da Natureza em
Platão” in Filosofia e Arquitectura da Paisagem – Um manual, Adriana Veríssimo Serrão (org.),
Lisboa, CFUL, 2012, p.17

306
realizar as coisas úteis à comunidade, trazendo ao mundo algo
que à partida não existia, afastando-se assim das artes miméticas.
Desta forma na arquitectura o ético e estético têm de andar juntos,
“nem o Bom seria Belo, nem o Belo seria Bom, se cada um deles
fosse distante do outro” (Hípias Maior 303-304a).

Em Cármides (165d) diz-nos o que realiza a arquitectura:

“Se a propósito da arquitectura, me perguntares que obra realiza


ela, enquanto ciência da construção, responder-te-ia que os luga-
res onde habitamos.”46

Ou na tradução de Agostinho da Silva:

“E [[se]] me perguntares <que obra realiza> a construção, que


é a ciência de construir, responderia eu que as casas; e assim as
outras artes.”47

Deparamo-nos com uma ambiguidade nas diversas traduções,


pela própria polissemia da palavra, pois em grego o parágrafo é:

“ καὶ εἰ τοίνυν με ἔροιο τὴν οἰκοδομικήν, ἐπιστήμην οὖσαν τοῦ


οἰκοδομεῖν, τί φημι ἔργον ἀπεργάζεσθαι, εἴποιμ᾽ ἂν ὅτι οἰκήσεις:
ὡσαύτως δὲ καὶ τῶν ἄλλων τεχνῶν. χρὴ οὖν καὶ σὲ ὑπὲρ τῆς
σωφροσύνης, ἐπειδὴ φῂς αὐτὴν ἑαυτοῦ ἐπιστήμην εἶναι, ἔχειν
εἰπεῖν ἐρωτηθέντα, ‘ὦ Κριτία, σωφροσύνη, ’ ”48
46 PLATÃO, Cármides, tradução Francisco de Oliveira, Coimbra, INIC, 1988.

47 In http://pt.calameo.com/read/00003971121cc37bc9209. Visitado a 27-08-2014

48 Perseus. http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0175%3A-
text%3DCharm.%3Asection%3D165d

Capítulo 9

Cidade como chôra e abrigo: sobre a essencia da arquitectura 307


Maribel Mendes Sobreira
Geralmente é traduzida para o português como acima referi-
mos e para o inglês, francês e espanhol por:

“And so, if you should ask me what result I take to be produced


by building, as the builder’s science, I should say houses; and it
would be the same with the other arts. Now it is for you, in your
turn, to find an answer to a question regarding temperance—sin-
ce you say it is a science of self, Critias—and to tell me what ex-
cellent result it produces for us,”49

“ - Si tu me demandais, à propôs de l’architecture, quelle ouvre


ele reálise en tant que science de la construction, je te répondrais:
nos habitacions. Et ainsi de suite pour les autres arts.”50

“ -Y si, además, me preguntases por la arquitectura, que es algo


así como saber edificar, y qué efecto es el que tiene, te diría que su
efecto son los edificios. Y así, de las otras técnicas. En consecuen-
cia, para la sensatez, en cuanto que es, según tú, una cierta ciencia
o saber de uno mismo,”51

Como vemos nos excertos acima citados, a palavra οἰκοδομικήν


foi traduzida por: arquitectura/ habilidade para edificar; οἰκοδομέω
por edificar, construir; οἴκησις o acto de habitar, residência
(dwelling), casa, lugar; nesta frase começamos a constatar que a Ar-

49 In:http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0176%3Atex-
t%3DCharm.%3Asection%3D165d

50 Platão, Hippias majeur. Charmide. Lachès. Lysis, Ouevres complètes de Platon, tomo II,
Alfred Croiset (trad.), Paris, Belles Lettres, 1972, pp. 164e, 165d.

51 In http://www.edu.mec.gub.uy/biblioteca_digital/libros/P/Platon%20-%20Carmide.pdf. Vis-
itado a 28-08 -2014.

308
quitectura está habilitada a realizar os lugares e edifícios que habi-
tamos, ou seja, a transformá-los em lar. Não é apenas uma ciência da
construção de objectos inertes, mas confere aos lugares um acervo
ontológico e simbólico, ligando a alma ao mundo inteligível através
do sensível, dando-lhe identidade e ancoramento no habitar.

Espaço da Criação

No diálogo Timeu, a personagem Timeu começa por fazer a distin-


ção entre ousia e genesis, ou seja, entre o que é ser e o que virá a ser
(devir). Num segundo plano temos a distinção entre o que é apre-
endido pelo pensamento e a ideia que vem de uma mera opinião
(doxa) do mundo sensível (28a); existe ainda uma terceira distin-
ção entre o que vem a ser, por ser modelado num modelo eterno e
o que vem a ser através da modelação da cópia do modelo eterno.
A chōra (receptáculo, como comumente é conhecida) é um es-
paço – não topológico – que transforma através do movimento os
corpos que por lá passam, realizando a sua potência colocando-os
nos seus respectivos lugares. A chōra é uma abstração do lugar, que
transforma a potência das coisas em coisas em si e as coloca nos
seus devidos lugares. Esta, através de uma linguagem matemática,
faz a passagem do pré-cosmos para o Cosmos, da não-criação para
a criação do Cosmos, tal como, por exemplo, o ser humano primi-
tivo que remexe a terra para a sacralizar, através do acto de passar
do pré-cosmos para a representação do Cosmos no plano sensível.
As linguagens matemáticas e geométricas, diz-nos Francis M.
Cornford52, são atemporais e invariáveis, ao contrário dos objectos
do mundo sensível, que são temporais e estão em constante mu-

52 CORNFORD, Francis M., Plato’s Cosmology – The Timaeus of Plato, Indianopilis/Cambrigde,


Hackett Publishing Company, 1997 (1937).

Capítulo 9

Cidade como chôra e abrigo: sobre a essencia da arquitectura 309


Maribel Mendes Sobreira
dança, desta forma uma das linguagens do Demiurgo que nos mostra
o modelo eterno é a matemática, pois esta revela a verdade do Cos-
mos. A chōra tendo em si características do mundo sensível e inteligí-
vel, estrutura e organiza o mundo com a cumplicidade do Demiurgo.
A leitura do diálogo Timeu, foi acompanhada pelos estudos
de Francis M. Cornford (1937;1997); Luc Brisson (1995;2011) e
T.K. Johansen (2004). A linha de pensamento que seguiremos
para entender o que é o Demiurgo e qual a importância que este
tem no processo da criação, será a análise que Johansen e Brisson
fazem deste conceito, que do nosso entender podem ser comple-
mentares. Para o primeiro, o Demiurgo pode ser entendido como
praticante da technē, por este praticar a dēmiourgia53, de conseguir
dar forma ao conteúdo e, para o segundo, o Demiurgo é o intelecto
que transforma o inteligível numa linguagem compreensível no
mundo sensível.
A ideia de technē, para se materializar, pressupõe um intelec-
to e o intelecto para se materializar, através da chōra, necessita de
technē. Esta vai trabalhar com o intelecto no plano do inteligível
dando-lhe forma e espessura, pensemos no exemplo de um músico
que dá vida ao que está escrito na pauta. O Demiurgo daria vida às
formulações matemáticas – para nós estas não são apreensíveis pe-
los sentidos –, que a música tem em si mas que não são visíveis no
mundo sensível, têm a sua correspondência no mundo inteligível,
existe no processo do intelecto.
Este processo, como vimos, centra-se no campo das abstracções
que poderão ser materializadas, através da technē, no mundo sensí-
vel, sem nos darmos conta de que lá estão, de certa maneira estão e
não estão ao mesmo tempo. O Demiurgo, produz o intelecto através

53 JOHANSEN, T.K., Plato’s Natural Philosophy – A Study of the Timaeus-Critias, Cambridge Uni-
versity Press, 2004, p.83.

310
das construções de relações abstractas da realidade, de uma lingua-
gem abstracta, pura, ou seja, o Demiurgo através da technē, molda
o intelecto e dá a conhecer a linguagem do inteligível – do modelo
eterno – que depois servirá de cópia ao mundo sensível, ao artesão,
ao pintor, por exemplo. Dá luz a algo que é inatingível, transpondo-o
para uma linguagem compreensível, que apenas acontece devido ao
facto de o próprio Demiurgo ser intelecto e technē ao mesmo tempo.
É um artesão, no sentido em que utiliza a technē com o intelecto,
esta não é uma técnica puramente mecanizada tal como, por exem-
plo, o trabalho do arquitecto, que junta o saber teórico com o práti-
co, coordenando esses dois saberes.
O modelo eterno que o Demiurgo tem como referência é es-
tável e imutável, como vimos - é atemporal e invariável, não muda
de forma – para que através dele possa explanar no mundo sensível
a Beleza e consequentemente o Bem, o que não acontece com os
objectos que são gerados da cópia. (T. 28a, b, 29a).
Através de uma análise matemática e da medição geométrica
dos sólidos, Timeu explica-nos como se dá a formação do mundo
sensível, apoiando-se na relação que os quatro elementos (terra,
ar, água e fogo) podem ter com as figuras geométricas (T. 55b-56a).
Começa por uma dedução matemática de figuras planas que, com-
postas entre si, no plano bidimensional originam uma geometria
tridimensional, dando assim forma a essas figuras de representa-
ção abstracta. Desta forma, explicita-nos que o mundo e os corpos
são criados através de pressupostos geométricos e matemáticos,
estáveis, estruturados e proporcionais entre si, espelhando a bele-
za no mundo e com isso tornando-o Bom.

As regras dessa transformação baseiam-se em que:

Capítulo 9

Cidade como chôra e abrigo: sobre a essencia da arquitectura 311


Maribel Mendes Sobreira
“Os sólidos regulares reflectem a sua composição geométrica
(56c6-57b7). Um corpo de água (...) pode transformar-se em cin-
co corpos de fogo (tetrahedra) porque um corpo de água contém
vinte triângulos equiláteros e um corpo de fogo quatro triângulos
equiláteros (...) Apenas os corpos Terrestres não se transforma-
rão em nenhum dos outros tipos de corpos, dado que estes são
compostos de um diferente triângulo, o triângulo isósceles.”54

Esta alteração de estados acontece através do movimento da chōra,


que lhes dá corpo, expelindo-as para fora dela, colocando-os nos
seus devidos lugares adequados à sua nova natureza.
A chōra, na sua constituição evidencia características do in-
teligível e do sensível, não se deixando contaminar por estas. De
uma forma metafórica representa o ponto intermédio, ou seja, faz
a ligação entre o arquétipo e os particulares, o lugar em que se dá o
processo de participação e transmutação das duas partes. Podemos
considerá-la como um híbrido, um lugar que existe sem realidade
corpórea mas que também não é só um lugar abstracto.
Poderemos vê-la como um terceiro que faz a ligação entre as
partes ou numa linguagem arquitectónica poderá ser traduzida por
espacialidade, algo que tem as condições em si para originar espaço
sem que este se transforme, ou seja, sem que essa espacialidade
adquira características do que vai originar.
Arriscamo-nos a afirmar que a chōra pode ser entendida como
o lugar onde os elementos (inteligível) dão forma aos corpos (sen-

54 “the regular solids reflec their geometrical composition (56c6–57b7). One body of water
(icosahedron) may transform into five bodies of fire (tetrahedra) becouse one body of water
contains twenty equilateral triangles ando ne body off fire four equilateral triangle. (...) Only
the bodies of Earth will not transform into any of the others kinds of body since they are con-
posed of a diferente triangle, the isósceles triangle”, JOHANSEN, T.K., Plato’s Natural Philosophy
– A Study of the Timaeus-Critias, Cambridge University Press, 2004, p.125.

312
sível) mas nunca fica contaminada com as características de am-
bos. Neste sentido, o papel do Demiurgo é de introduzir uma or-
dem matemática na chōra, para dar medida, proporção e ordem aos
elementos aí introduzidos (T. 52d–53c).
Segundo a análise hegeliana que Payot faz da Arquitectura, esta
parte de um pressuposto simbólico da representação de um modelo
cósmico “o templo representa o mundo, mas o mundo, inversamen-
te, é construído como um templo.”55, onde desta forma a arquitectu-
ra começaria a funcionar como metáfora que sustenta o mundo, ou
seja, a “Arquitectura "realiza os corpos»”56. A Arquitectura é sempre
uma ideia de arquitectura, o objecto construído é sempre uma ideia
de Arquitectura, e não Arquitectura em si e por si.
De uma forma geral, parece-nos óbvio por que razão a Filoso-
fia se tenha interessado pela Arquitectura de uma forma directa ou
muitas vezes de uma forma indirecta no seu sistema discursivo. A
ideia mais comum da análise filosófica da Arquitectura centra-se
nos temas ligados a uma relação estética objectual, como se de um
objecto de arte se tratasse, dado que a filosofia da arte também se
interessa pelos temas mais objectuais da arquitectura.
Em contraposição, encontram-se aqueles que tentam cen-
trar-se na ideia de Arquitectura como elemento metafórico da
linguagem e também como algo que não se materializa no mundo
sensível, para antes se tornar verdade no mundo inteligível. A in-
vestigação filológica e etimológica é unânime em situar o concei-
to Arquitectura no grego mas, como vimos, ao lermos os textos
de Platão, e confrontando as várias traduções, quando se refere à

55 “Le temple re-présent le monde; mais le monde, inversement, est bâti comme une temple”,
PAYOT, Daniel, Le Philosophe et L’Architecte: Sur quelques déterminations philosophiques de l’idée
d’architecture, Editions Aubier Montaigne, Paris, 1982, p.68.

56 “ L’architecture "réalise des corps»”, Idem, Op.Cit, p.91.

Capítulo 9

Cidade como chôra e abrigo: sobre a essencia da arquitectura 313


Maribel Mendes Sobreira
arquitectura utiliza a palavra/conceito οἰκοδομή (oikodomē - lar) e
não ἀρχιτεκτονίας (árkitektónías), sendo esta a que passou para o
latim, como foi referido no primeiro capítulo desta tese, a Arqui-
tectura deste modo centra-se na dicotomia de um entendimento
entre uma Arquitectura real e uma Arquitectura representacional.
Como vimos a Arquitectura, por não ser meramente uma ciên-
cia da construção, confere aos lugares um acervo ontológico, através
do entendimento da relação entre a αρχη (arché) e o οἰκοδομή (oi-
kodomē). A arquitectura representacional é um desvio dessa relação
autêntica com a natureza da qual o oikodomē é o fundo original, neste
sentido é essencial um entendimento da arché do tekton, um entendi-
mento arquétipo, para uma construção ontológica do oikodomē.
Compreender a profunda conjunção entre a arché e o oikodomē,
é compreender que o lar do ser humano é a sua origem e também,
no sentido inverso, que a sua origem é o seu lar. A conscienciali-
zação deste vínculo, levar- -nos-ia a uma religação mais íntima,
profunda e frutífera com a Natureza, a solução seria a de resgatar
(re-ligare) a ideia de oikodomē (por oikodomē entendemos sempre o
lar no seu sentido originário) trazendo-a para a Arquitectura.
Desta forma, a ideia de Nietzsche de que já não somos con-
temporâneos da arquitectura, é um testemunho actual da nossa
relação distanciada com a ideia de Arquitectura. Esta deixou de ser
contemporânea de si própria para passar a ser contemporânea das
exigências antropocêntricas em relação à cultura e da transforma-
ção desmesurada da paisagem.
Na medida em que o ser humano actual entende a paisagem
como sendo destituída do seu elemento natural, pode-se dizer que
essencialmente não entende a paisagem, que outrora era reconhe-
cida como fundamental para a compreensão da própria arquitec-
tura. De tal maneira já se perdeu a ideia de paisagem natural, que

314
se torna necessário resgatar uma ideia de totalidade, como a φύσις
(phýsis) para os gregos. Se nos centrarmos apenas numa ideia de
paisagem urbana, não compreendemos que a arquitectura e conse-
quentemente a cidade perderam a sua metade.
Se regressarmos a Platão, este permite-nos pensar melhor a
ligação da Arquitectura com a Paisagem. Apesar de, a paisagem,
ser um conceito que surgiu na modernidade, se recuperarmos a
ideia da φύσις (phýsis) grega – entendida no seu sentido mais lato:
natureza – estando intrinsecamente na dimensão física mais pri-
mitiva do ser humano, que é dada na materialização da αρχη (ar-
ché) através da inter-relação com o seu meio natural, ou seja, essa
relação primitiva com a φύσις (phýsis) é despertada quando o ser
humano dá forma às coisas. Como é o caso da necessidade, ex-
plicitada por Mircea Eliade, de o ser humano encontrar as raízes
arcaicas do rito de construção para assim entender a sua relação
simbólica com a paisagem.
Com o desenvolvimento das sociedades e consequente-
mente com o crescimento do objecto arquitectónico, essa rela-
ção foi afastando-o cada vez mais do propósito com o seu meio
evolvente, o aceleramento do tempo e dispersão do espaço, le-
vou o ser humano a dar maior importância à técnica, levou-o a
ter uma relação virtual com a envolvente, através de espaços na
cidade cada vez mais especializados. Sendo necessário para que
se possa resgatar essa ideia original da relação com o elemento
natural, transpor para a nossa época contemporânea o entendi-
mento que os gregos tinham da φύσις (phýsis) como totalidade
de um mundo e não como sendo dispersa e passível de uma
análise de bisturi.
A separação da ideia de Arquitectura entre ciência, técnica e
arte leva-nos a grandes desentendimentos acerca de como enten-

Capítulo 9

Cidade como chôra e abrigo: sobre a essencia da arquitectura 315


Maribel Mendes Sobreira
der o seu significado conceptual e simbólico. Enraizado num mun-
do sensível, em constante evolução e transmutação, em que o con-
ceito de Arquitectura é visto consoante a visão que se tem dela em
cada época, centrando-se sobretudo no objecto e no seu criador.
Se virmos a Arquitectura, de uma forma epistemológica, como
ciência, técnica ou mesmo arte, nesse caso não estaremos face à
mesma realidade, nem o mesmo objecto, mas perante uma forma
de a ver subjectivamente. Ao centrarmo-nos apenas no mundo
sensível das concretizações objectuais da realidade, não entende-
remos o verdadeiro significado da Arquitectura.
A Arquitectura funciona como a própria evolução histórica e
cultural do ser humano. A questão acerca de qual terá sido a pri-
meira arquitectura remete-nos para uma necessidade de entender
o ser humano no espaço que este tem habitado, relacionando-o de
uma forma directa com a evolução histórica. Por este não se sentir
contemporâneo da própria ideia primordial, da qual surge o mundo
sensível, a Arquitectura poderia funcionar como um elo de ligação
deste com o mundo inteligível.
Como vimos, para se entender a Arquitectura, temos de en-
tender também as relações que esta cria e criou com a ideia de
paisagem, procurando recuperar a ideia de φύσις (phýsis) e não
concebendo a própria Arquitectura, como paisagem ou natureza, já
que, segundo a nossa concepção, esta faz parte de um todo, e não
está sujeita a um entendimento gestáltico com o mundo. Por isso
o Genius loci57, poderá ser um conceito operativo para podermos
resgatar essa totalidade.

57 Termo de origem Romana, para designar o espírito protector de um lugar, acreditava-se que
todos os Seres e coisas nasciam com um Genius (latim) – Genii (plural) - (espírito protector)
similar ao Daímōn grego; Locus (singular) Loci (plural) –significa lugar em latim. Na génese
da palavra Genius deriva a palavra gerar, nascer, e para os Romanos todos os seres e lugares
nascem com um espírito protector, um guardião.

316
Para entendermos um pouco melhor este distanciamento e
usurpação da Natureza por parte da Arquitectura, citaremos o arqui-
tecto Josep Maria Montaner que contextualiza um pouco essa ideia:

“a arquitectura buscou integrar-se à natureza durante a maior


parte da sua evolução histórica. De facto, a arquitectura, vis-
ta de uma forma mítica, pode ser entendida como imitação da
natureza.”58, que foi tendo relações cíclicas de entendimento, de
afastamento e de nostalgia da natureza perdida, e diz-nos que “a
realidade contemporânea se baseia cada vez mais no predomínio
do património artificial sobre o entorno natural, num fluxo de
crescimento contínuo das metrópoles(..).”59

O Genius Loci original, o do ser humano primitivo, passa na nossa


contemporaneidade, pelo retorno ao natural, pelo entendimento
de um mundo como totalidade e não gestaltico, pela integração da
φύσις [phýsis] grega nas nossas estruturas conceptuais.
Parece-nos que é precisamente este ideia, a da φύσις grega, que
a Filosofia da Arquitectura pode disseminar, trazer para dentro da
própria Arquitectura, ou seja, do seu discurso e produção.

Este afastamento do ser humano da natureza, deve-se ao facto de


se ter dado predomínio à ideia de que a Arquitectura é construção,
só se forma através da construção de objectos inertes, perdendo
a ideia de que a sua função é ensina-lo a habitar. Esta crise eco-
nómica veio trazer a necessidade de se mudar de paradigma, em
relação ao que se entende por Arquitectura, cada vez mais surgem

58 MONTANER, Josep Luis, A modernidade superada: arquitectura, arte e pensamento do século XX,
Editorial Gustavo Gili, Barcelona, 2001, p.193.

59 Op. cit., p.195.

Capítulo 9

Cidade como chôra e abrigo: sobre a essencia da arquitectura 317


Maribel Mendes Sobreira
artigos nos média a dar a conhecer movimentos e arquitectos que
começam a questionar se, de facto, a Arquitectura é só construção.
Vejamos o caso da arquitecta Julia King60, que na sua investigação
de doutoramento nas favelas da Índia, se deparou com a ideia de
que essa comunidade não necessitava de arquitectos, pois já sa-
biam construir. Em toda a história da Arquitectura, muitos foram
os arquitectos que deram importância à Arquitectura vernacular/
popular, por saberem que é ali que vão encontrar os pressupostos
ontológicos do que poderá ser habitar.

Por isso uma nova ideia de Arquitectura, terá de passar por integrar
na sua totalidade todas as realidades e perceber que a Arquitectura
não é só construção, é a realização ontológica com o lugar.

Para esta nova ideia de Arquitectura, teremos de ter em atenção


o que diz Josep Muntañola, utilizando o conceito de Lukács de
dupla mimésis61, ou seja, a Arquitectura tem uma relação directa
com o modelo primordial do Cosmos, da natureza e transforma-a
através da capacidade de construção mas, por outro lado, inter-
vém na habitabilidade social, política e psicológica do ser huma-
no. Ou seja, há uma relação mimética entre o puro e o mundo
sensível, espelhando ambos os lados da concretização.

A importância da Filosofia da Arquitectura para a Arquitectura si-


tua-se no entendimento de que para uma ideia de Arquitectura, te-
remos que dar atenção e importância a estes pressupostos: não há

60 in http://www.archdaily.com.br/br/751175/introduzindo-a-garota-penico-a-arquiteta-do-fu-
turo, visitado a 2014-10-29

61 MUNTAÑOLA, Josep, Poética y arquitectura – Una lectura de la arquitetura postmoderna,


Editoral Barcelona, Anagrama, 1981, p. 57.

318
Arquitectura sem a interligação ético-estética com seu inteligível e
a concretização através de uma filosofia do comprometimento com
a paisagem. Desta forma tentámos pensar radicalmente a Arquitec-
tura, isto é, descer às suas raízes e ao seu significado primordial,
procurando desbravar o caminho para a sua arché, o seu abrigo, e
sobretudo a sua chôra

Capítulo 9

Cidade como chôra e abrigo: sobre a essencia da arquitectura


Maribel Mendes Sobreira baracoa
editora
Rafael dos Santos Aquino
Universidade de São Paulo

Formado em Administração de Empre-


sas pela Universidade de São Paulo. Na
mesma instituição cursa atualmente a
graduação em História e defendeu sua
dissertação de mestrado, em que inves-
tigou a influência da cidade nos vínculos
no trabalho de servidores públicos.

CV: http://lattes.cnpq.br/1817353713555541
E-mail: rafael.aquino@usp.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0003-1961-6932

321
Apego ao lugar: panorama de
pesquisa e papel na Psicologia
Social

Resumo: O presente artigo Palavras-chave: Apego ao


busca apresentar o conceito de lugar; Psicologia Ambiental;
apego ao lugar como um vínculo Vínculo afetivo
afetivo que o indivíduo forma
com seus espaços relevantes de
forma a sintetizar os principais
avanços de sua pesquisa. Assim,
baseado no trabalho de Giuliani
(2003), traça-se a relação que
este vínculo tem com o conceito
de apego segundo o entendimen-
to de John Bowlby. Adicionado a
isso, em um contexto de grande
diversidade de conceitos e defi-
nições que concorrem para expli-
car a laço firmado entre pessoa e
lugar, o artigo apresenta também
o modelo integrador de apego
ao lugar proposto por Scannell
e Gifford (2010) que, explora e
concilia as diferentes abordagens
pelas quais o conceito de apego
ao lugar é tratado na literatura.

322
Place attachment: research
landscape and its role in the
Environmental Psychology

Abstract: The present article Keywords: Place attachment;


seeks to introduce the concept Enviromental Psychology;
of place attachment as an af- Affective bond
fective bond that the individual
forms with his relevant spaces
in order to synthesise the main
advances in the research on
the concept. Thus, based on
Giuliani’s (2003) work, we trace
the link between this bond and
the concept of attachment ac-
cording to John Bowlby. Added
to that, in a context of great
diversity of concepts and defi-
nitions that compete to explain
between place and person, the
article presents also the place
attachment integrative model
proposed by Scannell and Gif-
ford (2010) that explores and
reconcile different approaches
by which the bond is analysed
in the literature.

323
Capítulo 10

Apego ao lugar:
panorama de pesquisa
e papel na Psicologia
Social
Rafael dos Santos Aquino
Universidade de São Paulo

Introdução

É natural do homem desenvolver vínculos afetivos com diferentes


objetos e pessoas que circundam sua vida e este mundo de
sentimentos, humores e emoções criados a partir dessa teia de
vínculos que formados, como afirma Giuliani (2003), não apenas
permeia a vida diária de cada indivíduo como também aparece em
representações, idealizações e expressões da vida. A autora acres-
centa ainda que a relação desenvolvida com lugares não é diferen-
te. A afetividade permeia a relação que se estabelece com um lo-
cal de tal forma a lhe garantir um poder de qualificar a existência
não somente do indivíduo, como de todo grupo a que ele pertence.
Todo sentimento de afinidade mútua, comunidade e fraternidade
entre as pessoas, sejam as relações formais ou informais, institu-
cionalizadas ou não, tem como palco um lugar, um espaço, mesmo
que este seja virtual. Isso tem implicações profundas, dado que os

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 325


Editora Baracoa — 2019
sentimentos evocados por determinados lugares, assim como as
comunidades que ao mesmo tempo definem e são definidas pelos
lugares, têm a capacidade de influenciar a construção de identida-
des, de preencher a vida de significados e enriquecê-la com valores,
objetivos e importância (Giuliani, 2003).
Ciente disso, reconhece-se que o apego ao lugar, o vínculo for-
mado entre a pessoa, ou grupo, e ambientes e lugares significativos
(Scannell & Gifford, 2010), é uma necessidade humana fundamen-
tal (Relph, 1976). Porém, esta é uma necessidade que a sociedade
se torna cada vez mais incapaz de satisfazer, uma vez que o vínculo
entre pessoa e lugar vem se tornando mais frágil. Isso decorre de
um processo gradual decorrente da globalização que tende a tornar
os espaço cada vez mais uniformes, a mobilidade cada vez mais fá-
cil e, consequentemente, as relações estabelecidas com os espaços
pautadas puramente por seu aspecto funcional (Relph, 1976; San-
ders, Bowie & Bowie, 2003; Sennett, 2000). Desta forma, o concei-
to de apego ao lugar, vem ganhando atenção nas últimas décadas
(Giuliani, 2003; Low & Altman, 1992; Scannell & Gifford, 2010).
Há diferentes formas pelas quais um indivíduo pode se apegar
a um lugar (Scannell & Gifford, 2010). O apego pode decorrer de
memórias e experiências vividas em um espaço, o vínculo ao lugar
pode ser uma extensão do apego às pessoas que costumam estar lá
ou o próprio local pode ter características que atraiam o indivíduo.
Porém, em geral, o apego ao lugar se dá por uma confluência de
fatores e não pode ser explicada por uma relação causal única.
Assim, o apego ao lugar se apresenta como um fator de importan-
te influência no bem estar material e espiritual do ser humano. E ainda
que não se tenha definido e explicitado todas as nuances do conceito,
compreende-se que o vínculo afetivo com o lugar de fato existe e que
há indícios de que sua natureza é diferente de outros sistemas afetivos,

326
como aqueles direcionados a pessoas, objetos e ideias, (Giuliani, 2003).
Finalmente, é possível verificar que o conceito de apego ao
lugar tem um papel fundamental para a Psicologia Social e que,
embora o laço com o ambiente apresente uma relevância por si
mesmo, ele traz implicações para questões de natureza prática as-
sociada a preservação e manutenção dos espaços (Gifford, 2014).
Com isso, o objetivo deste trabalho é explorar o conceito de apego
ao lugar, baseado principalmente nos trabalhos de Giuliani (2003)
e de Scannell e Gifford (2010), de modo a apresentar a relação do
apego ao lugar com as teorias gerais sobre apego (Bowlby, 1980) e
uma sistematização das diferentes definições do conceito em um
modelo único e tridimensional (Scannell & Gifford, 2010).

Do apego interpessoal ao apego ao lugar

Para melhor compreender o apego ao lugar, Giuliani (2003) propõe


uma reflexão a respeito do conceito que tem como base as teorias de
apego interpessoal propostas por sobretudo por Bowlby (1969, 1980,
1988). Este modelo de apego interpessoal com que Giuliani (2003)
compara as teorias de apego ao lugar, tiveram início com as primei-
ras observações realizadas por John Bowlby a respeito dos efeitos
da privação materna em crianças e que hoje compõe um volume de
pesquisas empíricas e teóricas acumuladas durante décadas.
A autora, porém, alerta para mal entendidos. Ela deixa claro
que a validade preditiva dos padrões de apego de crianças não se
aplica necessariamente ao apego a lugares. Em oposição, ela ex-
pressa seu desejo para que os pesquisadores interessados no apego
ampliem seu escopo de trabalho para incluir a relação com lugares
visando um reconhecimento de que o apego seja visto como uma
teoria compreensiva. Simultaneamente, ela apela para um maior

Capítulo 10

Apego ao lugar: panorama de pesquisa e papel na 327


Psicologia Social
Rafael dos Santos Aquino
diálogo entre os pesquisadores de Psicologia Social e de apego, de
modo que seja possível elaborar uma teoria geral que abarque as
origens do apego, seu desenvolvimento normal e distorcido, e o
papel das primeiras experiências em expressões psicológicas pos-
teriores (Giuliani, 2003).
Ciente disso, é possível começar a explorar a teoria de apego
de John Bowlby. O apego pode ser definido da seguinte forma se-
gundo as palavras de Bowlby (1988):

A teoria de apego se refere a propensão a criar laços íntimos e


emocionais com indivíduos específicos como um componente
básico da natureza humana, já presente em sua forma germinal
em recém nascidos e que continua ao longo da vida adulta até a
velhice (...) Embora comida e sexo por vezes desempenhem um
papel nos relacionamentos de apego, a relação existe por si só
e possui uma função chave para a sobrevivência, notadamente a
proteção (pp. 120-121).

Entretanto, ao elaborar seu modelo, Bowlby não está preocupado


com o sentimento de apego, apesar da importância comumente
atribuída a ele, mas sim com o comportamento de apego. Bowlby
o define como “qualquer forma de comportamento que resulta no
indivíduo alcançar ou manter proximidade a alguma outra pessoa
claramente identificada que é vista como mais capaz de lidar com
o mundo” (Bowlby, 1988, pp. 26-27). Isso não significa dizer que o
autor siga uma linha behaviorista, uma vez que ele reconhece que
o comportamento de apego é mediado por um sistema de controle
organizado cujas raízes se encontram em processos neurofisiológi-
cos que extraem e interpretam informações do ambiente e permi-
tem que o comportamento seja planejado e executado de acordo

328
com um propósito (Giuliani, 2003).
Seguindo essa linha, os afetos, sentimentos e emoções podem
ser entendidos como “fases de uma avaliação intuitiva do indiví-
duo, seja ela a respeitos dos estados e impulsos para agir de seu
próprio organismo ou da sucessão de situações ambientais em
que ele se encontra” (Bowlby, 1969, p. 104). Já o que diferencia um
comportamento de apego e um vínculo de apego é que o primeiro
se refere a diferentes formas de comportamento que uma pessoa
executa de tempos em tempos para obter ou manter proximidade
a figura protetora, enquanto o segundo se trata de um laço afetivo
duradouro em relação a uma pessoa (Giuliani, 2003).
Com isso, o apego pode ser melhor entendido olhando-se para
o vínculo afetivo de forma mais ampla. Segundo Ainsworth (1989),
o vínculo afetivo pode ser definido como:

um laço relativamente longo em que o parceiro é importante


como um indivíduo único e é intercambiável com nenhum ou-
tro. Em um vínculo afetivo, há um desejo de manter a proximi-
dade com o parceiro. Em crianças e adultos mais velhos, essa
proximidade pode, até certo ponto, ser sustentada ao longo do
tempo e distância e durante as ausências, mas, no entanto, há
pelo menos um desejo intermitente de restabelecer proximida-
de e interação, e prazer - muitas vezes alegria - após a reunião. A
separação inexplicável tende a provocar angústia e a perda per-
manente causaria dor (p. 711).

E o que diferencia o apego de um vínculo afetivo genérico? Ter


um vínculo de apego não significa simplesmente sentir algum
tipo de afeto por algo ou alguém. Na realidade, isso implica em
obter um sentimento de bem estar e segurança a partir da pro-

Capítulo 10

Apego ao lugar: panorama de pesquisa e papel na 329


Psicologia Social
Rafael dos Santos Aquino
ximidade com uma pessoa ou apenas com sua disponibilidade
(Giuliani, 2003).

Assim, o sistema envolvido com o apego pode ser compreendido atra-


vés de seu oposto, o sistema exploratório. As pessoas em geral são mo-
tivadas a manter um equilíbrio entre comportamentos que as levam a
manutenção de um sentimento de familiaridade e de uma redução de
estresse, e comportamentos que as conduzem a extrair novas informa-
ções do ambiente em que se encontra (Giuliani, 2003). Por exemplo,
quando uma criança dispõe de uma base segura em que pode confiar,
ela se sente livre para se afastar dessa base e explorar ambiente.
Ou seja, a distinção entre apego e outros sistemas afetivos
(Bowlby 1969; Ainsworth, 1989) se encontra nas funções que cada
um deles satisfaz, como socialização, afiliação, reprodução, prote-
ção, dentre outros. Por outro lado, o que os vínculos afetivos em
comum é o papel do objeto com o qual se vincula na medida em que
ele seja um objeto único e que por isso não pode ser facilmente subs-
tituído por outro, ainda que possam haver um grande número de ob-
jetos com os quais o indivíduo possa estar apegado (Giuliani, 2003).
Por sua vez, o desenvolvimento deste vínculo afetivo, o apego,
ocorre em função da intensidade e qualidade da interação com um
dado objeto (uma pessoa, na teoria de Bowlby) ao qual se diri-
ge o comportamento de apego (Bowlby, 1980). A figura primária
de apego é aquela que mais toma cuidado e é mais responsiva às
necessidades da criança durante o período de mais sensibilidade
a formação de laços. Enquanto que posteriormente outras figu-
ras secundárias geralmente se tornam também objeto de apego
(Bowlby, 1969), há indícios de que quanto mais forte e saudável for
o apego à figura primária, maior a probabilidade de se formarem
apegos secundários (Bowlby, 1969).

330
O apego ao lugar na literatura

O trabalho desenvolvido por Fried (1963) a respeito dos efeitos psi-


cológicos da remoção forçada de uma população do subúrbio de
Boston, no contexto de reformar do bairro, é reconhecido como
o primeiro estudo a tratar especificamente do vínculo psicológico
que pode ser formado com o lugar. No caso investigado, as refor-
mas engendradas tinham como objetivo trazer melhorias para o
bairro, elas enfrentaram resistência da população local, uma vez
que elas ameaçavam a estrutura familiar e social ali fixadas, isto é,
as reformas colocavam em risco aquilo que mantinha a coesão de
uma comunidade fortemente unida. Após as reformas os residen-
tes demonstraram lamentaram e apresentaram sintomas de luto,
o que indicava, como concluiu Fried (1963), que tais sentimentos
podiam ser estendidos para a relação com o lugar. Posteriormente
ainda, Fullilove (1996) encontrou resultados semelhantes e pôde
concluir que o apego ao lugar é primariamente baseado no afeto.
Entretanto, o conceito de apego ao lugar voltou a atrair aten-
ção apenas mais de uma década após o estudo de Fried, quando,
durante a década de 80, o interesse por políticas públicas passou
a buscar embasamento teórico em disciplinas como a sociologia
da comunidade e a geografia humana (Giuliani, 2003). As ideias e
métodos dos geógrafos tiveram uma importante influencia na for-
ma como os psicólogos encaravam os métodos a serem utilizados
nas investigações a respeito da relação com o lugar. Os psicólogos
ambientais foram encorajados a experimentar alternativas aos mé-
todos quantitativos utilizados e a dar maior foco na experiência
individual e a estimular o debate dos efeitos psicológicos da estabi-
lidade de residência (Giuliani, 2003).

Capítulo 10

Apego ao lugar: panorama de pesquisa e papel na 331


Psicologia Social
Rafael dos Santos Aquino
Assim, enquanto que nos anos 80 o conceito de apego come-
çou a aparecer com mais frequência na literatura ambiental, foi nos
anos 90 em que os aspectos afetivos do apego da relação entre indi-
víduo e lugar se tornaram foco de pesquisas (Giuliani, 2003). Neste
processo, a identificação de relações entre características individu-
ais, contexto social e físico e respostas avaliativas e comportamen-
tais ganhou atenção nos estudos relacionados a vínculos afetivos,
como consequência da influência da sociologia e da psicologia da
comunidade nas pesquisas ambientais (Giuliani, 2003).
Alinhado a esta tendência, Shumaker e Taylor (1983) propuse-
ram um modelo para o apego ao lugar segundo o qual a intensidade
do vínculo é determinada pelas: características físicas e sociais do
ambiente; necessidades e singularidades dos indivíduos; avaliações a
respeito da situação atual do indivíduo quando comparado a alterna-
tiva; e possibilidades emocionais de escolher. Para os autores, o ape-
go ao lugar pode ser definido como “um vínculo afetivo positivo ou
associação entre indivíduos e seu ambiente de residência” (p. 233).
A formulação de Shumaker e Taylor (1983) apresenta ainda
um forte caráter funcional, uma vez que ela deriva do conceito
proposto por Stokols e Shumaker (1981) de dependência do lugar.
Com isso, a ideia principal do modelo decorre da congruência en-
tre as necessidades do indivíduo e os recursos sociais e físicos ofe-
recidos pelo ambiente, entendendo-se que à medida que o lugar
não seja capaz de satisfazer as necessidades de seus habitantes, o
apego tende a diminuir.
Por um lado a atenção talvez demasiada ao aspecto funcional
do apego na definição de Shumaker e Taylor (1983) pode ser alvo de
criticas. Como afirma Giuliani (2003), o que qualifica o apego não
é sua valência positiva do afeto, mas sim que ele é percebido como
um vínculo, com qualidades duradouras, dirigidas a um objeto es-

332
pecífico e não facilmente substituído por outro que apresente as
mesmas qualidades funcionais. Por outro lado, é preciso reconhe-
cer que muito cedo eles trouxeram em seu modelo as três dimen-
sões do apego, ainda que não identificadas assim, posteriormente
elaborada na síntese proposta por de Scannell e Gifford (2010).
O modelo tripartite apresentado por Scannell e Gifford (2010)
oferece um avanço em direção a solução de um dos maiores pro-
blemas enfrentados pela literatura de apego ao lugar: a imprecisão
de sua definição conceitual. Como afirma Giuliani (2003), o apego
ao lugar é tratado como um conceito guarda-chuva, abarcando uma
multiplicidade de afetos positivos que tem o lugar como objeto.
Isso leva ainda há uma grande variedade de definições assim como
um grande número de abordagens que tomam diferentes indica-
dores ou preditores atitudinais e comportamentais para medir a
presença e intensidade do vínculo (Giuliani, 2003). O trabalho de
Felippe e Kuhnen (2012) ilustra tal falta de precisão ao realizar uma
revisão da literatura e agrupar os indicadores usados para medir o
apego ao lugar por diferentes autores (Tabela 1).

Capítulo 10

Apego ao lugar: panorama de pesquisa e papel na 333


Psicologia Social
Rafael dos Santos Aquino
Tabela 1 – Conceitos relacionados à ocorrência de apego
ao lugar

Indicadores de apego ao lugar

1. Conforto 13. Preferência


2. Conhecimento do lugar 14. Satisfação de interesses e
necessidade
3. Desejo de defender o lugar 15. Segurança

4. Desejo de proximidade e envolvimento 16. Sensação de dependên-


cia
5. Dificuldades para substituição do lugar 17. Sentido de lar
6. Felicidade 18. Sentimento de enraiza-
mento
7. Grau de atração 19. Sentimento de identifi-
cação
8. Grau de cuidado com o lugar 20. Sentimento de orgulho
pelo lugar
9. Grau de influência do lugar sobre os 21. Sentimento de perda e/
acontecimentos ou deslocamento pela sepa-
ração
10. Mobilidade para a interação social 22. Sentimento de pertenci-
mento
11. Percepção de controle e possibilidade 23. Sentimento de proprie-
de ação dade
12. Prazer

Adaptado de Felippe e Kuhnen (2012)

334
Se o modelo de Scannell e Gifford (2010) não solucionam
totalmente os problemas de imprecisão na definição do apego ao
lugar ou o fato de este ser um conceito que sofre de esticamento
segundo o entendimento de Osigweh (1989), ele apresenta a van-
tagem de organizar décadas de pesquisa de forma estruturada e
compreensível a partir da qual é possível avançar na teoria.
Com isso, a próxima seção apresenta o modelo tripartite de
Scannell e Gifford (2010).

O modelo tripartite de apego ao lugar


De forma sucinta, o modelo de Scannell e Gifford (2010) organiza
de forma prática as diversas definições do apego ao lugar presen-
te na literatura estruturando-se em três dimensões (Figura 1). A
primeira delas é a da pessoa que auxilia a responder às questões
sobre quem está apegado e até que ponto o apego se baseia em
significados criados individualmente ou coletivamente. A segunda
dimensão é chamada de processo e se refere aos processos psico-
lógicos envolvidos no apego, de modo a expor como processos afe-
tivos, cognitivos e comportamentais se manifestam com o vínculo.
A última dimensão se refere ao alvo do apego, o lugar em si, o que
inclui características do local e a sua natureza.

Capítulo 10

Apego ao lugar: panorama de pesquisa e papel na 335


Psicologia Social
Rafael dos Santos Aquino
Figura 1 – Modelo tripartido de apego ao lugar

apego ao lugar
experiência cultural/ emoções felicidades
grupo orgulhos
realizações
amor
Pessoa
Processo cognição memória
Lugar conhecimento
religioso individual
significado
histórico social físico
comporta- manutenção de
arena social natural mento proximidade
símbolo so- construído reconstrução
cial de lugar

Traduzido de Scannell & Gifford (2010)

A dimensão da pessoa

O apego ao lugar pode ocorrer tanto no nível individual quanto


no nível coletivo e, embora algumas definições priorizem um nível
em detrimento do outro, os dois podem, na realidade, se sobrepor
(Scannell & Gifford, 2010). No nível individual, o apego envolve
conexões pessoais, por exemplo através de memórias que local
evoca, e contribuiu para a manutenção de um sentimento de esta-
bilidade quanto a essência pessoal do indivíduo, ou simplesmente
self (Twigger-Ross & Uzzell, 1996). Alinhado a isso, os lugares po-
dem adquirir significado através das experiências marcantes que
ocorreram nele, como marcos na história pessoal (Manzo, 2005).
No nível coletivo, o apego se desenvolve por meio de signifi-
cados compartilhados entre membros de um grupo (Low, 1992),
de modo que alguns autores chegaram a propor que o apego deve
ser entendido como um processo de comunidade (Fried, 1963;

336
Gans, 1962; Michelson, 1976). Segundo esses autores, os grupos se
apegam a áreas onde eles podem praticar e preservar sua cultura.
Porém esta não é a única forma de o grupo desenvolver o apego.
Como sugerido por Mazumdar e Mazumdar (2004), o apego pode
ser baseado também em crenças religiosas. Diferentes culturas
atribuem a lugares específicos o potencial de levar os seguidores
de uma religião para mais perto de seus deuses, o que torna tais
lugares – sejam cidades inteiras, como Meca e Jerusalém, como
também igrejas, templos, cemitérios e capelas – alvo de reverên-
cia e proteção que servem de reflexo à fidelidade a uma cultura ou
sistema de crenças. Adicionado a isso Low (1992) afirma que: “o
apego ao lugar pode ser aplicado a locais místicos que uma pessoa
nunca vivenciou, ou pode ser aplicado à propriedade ou à naciona-
lidade associada a uma terra que simbolicamente codifica sentidos
sociopolíticos ou também de experiência pessoal (p. 166)
Isso não exclui ainda a possibilidade de que a conexão religio-
sa ao lugar possa ser também individual (Mazumdar & Mazumdar,
2004). Uma única pessoa pode associar um lugar sentidos espiri-
tuais por meio de suas próprias experiências, como uma epifania,
revelação ou conversão, indicando que os níveis coletivos e indi-
viduais do apego ao lugar não são completamente independentes.

A dimensão de processo psicológico

A segunda dimensão do apego ao lugar, como estruturada por


Scannell e Gifford (2010), esclarece a natureza da interação psi-
cológica envolvida no laço formado por indivíduos e grupos com
um espaço. Scannell e Gifford (2010) sugerem que o conceito de
sentimento de lugar (sense of place) pode ser entendido como os
três processos psicológicos descritos aqui, nomeadamente os pro-

Capítulo 10

Apego ao lugar: panorama de pesquisa e papel na 337


Psicologia Social
Rafael dos Santos Aquino
cessos afetivos, cognitivos e comportamentais. Eles ressaltam ain-
da que as definições de alguns autores incluem os três processos,
enquanto outras ressaltam apenas um ou dois deles.
Primeiramente, como já apontado aqui e também por dife-
rentes autores (Cuba & Hummon, 1993; Fullilove,1996; Hidalgo &
Hernández, 2001; Manzo, 2003, 2005; Mesch & Manor, 1998; Riley,
1992), o vínculo entre o indivíduo e o lugar abrange uma conexão
emocional a um local específico. O conceito de topofilia, ou amor
ao lugar, cunhado por Yi Fu Tuan (1974), por exemplo, ilustra como
a geografia humana descreve o pertencimento a um lugar em ter-
mos emocionais, enquanto Relph (1976) define o apego ao lugar
como um vínculo autêntico e emocional que o indivíduo estabele-
ce com um ambiente e que satisfaz uma necessidade humana fun-
damental. Tais asserções encontram reflexos entre os psicólogos
ambientais, que defendem o papel central do afeto no vínculo, de
forma que definições como a de Hummon (1992), que estabelece
que o vínculo é um investimento emocional da pessoa com o lu-
gar, ou de Brown et al. (2003), que traz o sentimento de orgulho
e bem estar associado ao vínculo, apresentam o apego com foco
nas emoções. Os trabalhos de Fried (1963) e Fullilove (1996), que
investigam os efeitos da remoção forçada de um lugar causada por
desastres naturais, guerras, migração ou realocação, oferecem evi-
dência adicional ao substrato afetivo do apego.
Vale ressaltar que, apesar de a relação com o lugar poder fazer
emergir sentimentos negativos como medo, ódio e aversão deriva-
dos por vezes de experiências traumáticas ocorridas nele (Manzo,
2005), o apego geralmente é definido como um sentimento positi-
vo. Como afirma Giuliani (2003), o desejo de manter uma proximi-
dade a um local específico pode ser traduzido como uma tentativa
de vivenciar emoções positivas que ele é capaz de evocar.

338
O segundo processo psicológico implicado no apego ao lugar
é a cognição. Como afirmam Scannell e Gifford (2010), um espaço
pode se tornar significativo para um indivíduo através da associa-
ção mental entre esse espaço e memórias, conhecimento, crenças
e significados. Assim, o indivíduo cria cognitivamente significados
do lugar que o aproximam dele. Por exemplo, através da memó-
ria o indivíduo conecta a si mesmo com o lugar e, como apontado
por diversos autores, o apego pode se desenvolver justamente com
aqueles lugares onde eventos ou períodos memoráveis ocorreram
(Hay, 1998; Hunter, 1974; Manzo, 2005; Rubenstein & Parmelee,
1992; Twigger-Ross & Uzzell, 1996).
Diferentes abordagens descreveram o apego através de seu
componente psicológico: Fullilove (1996) aponta a familiaridade
como um elemento do apego, para ela ser apegado é conhecer e
organizar os detalhes de um ambiente; já Feldman (1990) defende
que as pessoas se apegam a determinadas categorias de lugares,
como subúrbios, parques e sítios; como mencionado anteriormen-
te também, Stokols e Shumaker (1981) veem o apego como depen-
dência ao lugar. Para todas essas abordagens, a informação sobre
as características de um espaço tem um papel central para o desen-
volvimento do apego ao lugar (Scannell & Gifford, 2010).
A identidade de lugar, que descreve “a socialização do mun-
do físico do indivíduo” (Proshansky et al., 1983. p. 57) ou as auto
definições derivadas da relação com o lugar, também está ligado à
cognição individual. Através dela uma pessoa traça similaridades
entre si mesma e o lugar, isto é, incorpora informações e caracte-
rísticas relevantes atribuídas ao lugar – sejam memórias, pensa-
mento, valores ou categorizações – a sua própria auto definição.
Deste modo, a conexão formada pelo indivíduo com o lugar torna
este uma representação de si mesmos (Scannell & Gifford, 2010).

Capítulo 10

Apego ao lugar: panorama de pesquisa e papel na 339


Psicologia Social
Rafael dos Santos Aquino
Nas palavras de Belk (1992, p. 38): “estar apegado a alguns dos nos-
sos meios é fazer deles parte do nosso eu estendido”.
A última subdimensão dos processos psicológicos implicados
no apego ao lugar é o comportamento, em que o vínculo é expresso
através da ação. Aqui, assim como no apego interpessoal descri-
to anteriormente, o apego ao lugar é representado principalmente
pelo comportamento de manutenção de proximidade ou, como de-
finem Hidalgo & Hernández (2001, p. 274), o apego ao lugar pode
ser entendido como “um vínculo afetivo positivo entre um indiví-
duo e um lugar específico, cuja característica principal é a manu-
tenção de proximidade com tal lugar”.
Definições como essa encontram suporte em estudos que
relacionam o comportamento de manutenção de proximidade a
tempo de residência e a busca por retornar ao lugar (Hay, 1998;
Kasarda & Janowitz,1974). Se por um lado tais resultados são im-
portantes, por outro é preciso ressaltar, como faz Giuliani (2003),
que os poucos estudos longitudinais realizados sobre o assuntam
não provam uma relação causal bem estabelecida entre o vínculo
e os comportamentos apontados.
É interessante notar ainda que, apesar de o apego ao lugar ser
visto sobre prismas positivos, ele pode se tornar disfuncional quando
um indivíduo com um vínculo ao lar muito rígido se recusa a deixa-lo
(Fried, 2000). Isso pode expô-lo a riscos quando o lugar não é mais
seguro ou até mesmo privá-lo de oportunidades para o seu desenvol-
vimento pessoal. Além disso, o processo dialético de estar ora próxi-
mo ora distante de casa tem um papel no desenvolvimento do signi-
ficado do lugar, como sugerem Case (1996) e Dovey (1985). Através
desta alternância entre viagens a lugares distantes e a manutenção de
proximidade ao lugar foco do apego, o sujeito se torna mais capaz de
apreciar e entender aspectos rotineiros do lugar (Case, 1996).

340
O comportamento de reconstrução do lugar também é encon-
trado na literatura como uma expressão do apego em locais que
passaram por desastres e eventos que causaram sua destruição.
Um caso interessante é descrito por Francaviglia (1978) em que,
após um desastre que causou a destruição de uma cidade no es-
tado de Ohio, nos Estados Unidos, os responsáveis pelo seu pla-
nejamento urbano buscaram retificar problemas que precediam
ao desastre, mas encontraram resistência da população local. Os
residentes e trabalhadores da cidade impuseram modificações no
plano de reconstrução da cidade de modo que ela permaneceu
muito semelhante antes e depois do desastre, o que aponta para
uma prioridade em reconstruir a familiaridade com o lugar do que
resolver seus problemas. O ato de recriar um local aparecem ainda
quando indivíduos que foram levados a se mudar contra sua vonta-
de buscam preservar o vínculo optando por se alocarem em lugares
similares ao que tiveram que deixar (Scannell & Gifford, 2010).

A dimensão de lugar

A última dimensão do apego ao lugar é tratada na literatura de modo


a distinguir suas duas bases: a social e a física. Segundo Riger e La-
vrakas (1981) o apego de caráter social consiste no sentimento de per-
tencimento a um bairro e familiaridade com as crianças e residentes
de lá, ou seja, um vínculo construído com base no contexto social de
um lugar. Já o caráter físico do apego, os autores acrescentam, pode
ser entendido como “enraizamento” e é influenciado pelo tempo de
residência, pela propriedade e pelos planos de permanecer no lugar.
O lugar, enquanto dimensão do apego ao lugar, foi estudada
em diferentes escalas geográficas, como casa, bairro e cidade.

Capítulo 10

Apego ao lugar: panorama de pesquisa e papel na 341


Psicologia Social
Rafael dos Santos Aquino
Por exemplo, Hidalgo e Hernández (2001) mediram os níveis
social e físico do apego ao lugar nas três escalas mencionadas e
encontraram que o apego de fato variava de acordo com a escala,
sendo a cidade o objeto mais forte de apego. Os pesquisadores
reportaram ainda que a base social do apego é mais forte do que
a física, porém eles ressaltam que ambas têm influência na in-
tensidade geral do laço e por isso ambas devem ser consideradas
ao medir o apego ao lugar.
De qualquer forma, a maior parte dos estudos sobre apego ao
lugar foca exclusivamente em aspectos sociais. Sociólogos urbanos
defendem a existência única da base social do apego (Hunter, 1974;
Kasarda & Janowitz, 1974) e por isso é comparada ao sentimento
psicológico de comunidade (McMillan & Chavis, 1986). A comu-
nidade pode ser definida como: “um complexo sistema de redes
de amizade e parentesco e laços de associação formais e informais
enraizados na vida familiar e no processo de socialização contínua”
(Kasarda & Janowitz, 1974, p. 329). Numa perspectiva mais restriti-
va, pesquisadores interessados no apego à comunidade, como Wol-
doff (2002), sugerem que o apego ao lugar significa o apego àqueles
que lá vivem e às interações sociais que lá ocorrem. Assim, segundo
essa perspectiva, as pessoas são apegadas a lugares que facilitem as
relações sociais e identidades grupais (Scannell & Gifford, 2010).
No entanto, o apego pode se desenvolver com base nas ca-
racterísticas físicas do lugar e o conceito de dependência ao lugar
(Stokols & Shumaker, 1981) aponta justamente isso, uma vez que
ele descreve como as amenidade e recursos do ambiente podem
auxiliar busca por objetivos do sujeito. Adicionado a isso, lugares
como casa, ruas, construções, lagos e montanhas podem se tornar
significativos para as pessoas (Manzo, 2003, 2005). Além disso,
o conceito traçado por Clayton (2003) de identidade ambiental

342
aponta para o fato de que a natureza pode ser inclusa na definição
pessoal do indivíduo.
Por fim, o modelo de apego ao lugar proposto por Stedman
(2003) ajuda a compreender como aspectos físicos do lugar po-
dem originar o apego. Segundo o modelo, as pessoas não se tornam
apegadas diretamente à característica física do lugar, mas sim aos
significados que tais características implicam.

Conclusão

O presente estudo teve como objetivo apresentar um panorama


sobre as pesquisas sobre apego ao lugar desde o estudo seminal de
Fried (1963). É possível verificar uma grande complexidade nas pes-
quisas a respeito do conceito devido ao grande número de definições,
abordagens e conceitos relacionados. Se por um lado tal diversidade
é enriquecedora, ela faz com que se torne difícil agregar o conhe-
cimento acumulado sobre o assunto e torna o apego um conceito
esticado (Osigweh, 1989), uma ameaça a validade de seus estudos.
Finalmente, como afirmam Scannell e Gifford (2010), a grande
complexidade do vínculo de apego sugere que são muitas as forças
unem o indivíduo com os lugares, alguns são mais fortes e rele-
vantes, enquanto outros possuem uma relação tão próxima que se
tornam difíceis de serem distinguidos e poucos são aqueles visíveis
ao observador externo. A rede de relações que descreve a natureza
da relação com os lugares se torna assim única para cada indivíduo.

Capítulo 10

Apego ao lugar: panorama de pesquisa e papel na 343


Psicologia Social
Rafael dos Santos Aquino
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348
Capítulo 10

Apego ao lugar: panorama de pesquisa e papel na


Psicologia Social baracoa
editora

Rafael dos Santos Aquino


Eda Tassara
Universidade de São Paulo

Professora Emérita e Titular do Instituto


de Psicologia da USP; é propositora e
coordenadora do laboratório de pesquisa
LAPSI (IPUSP/PST) e do grupo Política
Ambiental do IEA/USP. Foi professora
visitante e conduziu pesquisas em
paises da Europa e América Latina.
Autora de estudos críticos sobre a
contemporaneiadade nas interfaces
ética-psicologia social-política à luz da
Teoria da Ciência.

CV: http://lattes.cnpq.br/3889873314551168
E-mail: edatassara@uol.com.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-7592-8407

350
José Oswaldo Soares de Oliveira
Universidade de Taubaté

Arquiteto e urbanista, doutor em


Urbanismo com pós doutoramento em
Psicologia Social pela Universidade de
São Paulo, professor do Departamento
de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de Taubaté (SP),
pesquisador associado do Laboratório de
Psicologia Socioambiental e Intervenção
do Instituto de Psicologia e do Grupo
de Estudos em Política Ambiental do
Instituto de Estudos Avançados da
Universidade de São Paulo.

CV: http://lattes.cnpq.br/4650642006564154
E-mail: jose.oswaldo@uol.com.br
ORCiD: https://orcid.org/000-0003-4988-1016

351
Toxemia socioambiental. Estu-
do psicossocial da transforma-
ção do vale do rio Paraíba do
Sul (São Paulo, Brasil)

Resumo: A partir do panorama sociedade capitalista,


traçado por estudo naturalístico bem como propiciaria
da paisagem contemporânea uma interpretação de
do vale do rio Paraíba do Sul, fatores associados às suas
foi elaborado um sistema de determinações.
análise de transformações
psicossociais operadas em Palavras-chave: Transforma-
indivíduos e grupos por agentes ções Psicossociais, Colonia-
materiais e simbólicos que lidade do Poder, Sociedade
se constituem em substratos Capitalista, Resistência,
veiculadores, naquele território Toxemia Socioambiental.
brasileiro, do processo global
de produção em sua fase atual.
Conjectura-se que a análise
resultante da aplicação do
sistema categorial aos dados
levantados possibilitaria, à luz
do conceito de colonialidade
do poder, a identificação
de núcleos de resistência à
afirmação renovada do domínio
colonial ou de integração à
reprodução fortalecida do
modelo hegemônico de

352
Socio-environmental toxe-
mia. Psychosocial study of the
transformation of the Paraíba
do Sul River Valley (São Paulo,
Brazil)

Abstract: From the panorama reproduction of the hegemonic


outlined by a naturalistic study model of capitallist
of the contemporary landscape society, as well as providing an
of the Paraíba do Sul River Val- interpretation of the factors as-
ley, a system has been designed sociated to their determinations.
for the analysis of psychosocial
transformations in individuals Keywords: Psychosocial Trans-
and groups by material and formations, Coloniality Oo
symbolic agents that consti- Power, Capitalist Society, Resis-
tute themselves in conveying tance, Environmental Toxemia.
substrates in that Brazilian
region, from the global pro-
duction process on its current
phase. It is conjectured that
the analysis resulting from the
application of the categorical
system to collected data would
enable, in the light of the
concept of coloniality of power,
the identification of pockets
of resistance to the renewed
claim of colonial rule or to the
integration on the strengthned

353
Capítulo 11

Toxemia socioambiental.
Estudo psicossocial da
transformação do vale
do rio Paraíba do Sul
(São Paulo, Brasil)
Eda Tassara
Universidade de São Paulo
José Oswaldo Soares de Oliveira
Universidade de Taubaté

1. Apresentação:

Este ensaio fundamenta-se em resultados de pesquisas empíricas


realizadas na região do vale do rio Paraíba do Sul pelos autores
(Oliveira e Tassara, 2012; Tassara, 2013; Oliveira, 2014) e tem por
objetivo propiciar o aprofundamento de suas análises inscreven-
do-as em campo interdisciplinar e nelas introduzindo aspectos psi-
cossociais implícitos às questões abordadas que delas emergiam
como novo (ex novo)1.

1 Segundo enfoque preconizado pela Professora Tassara (2015) e que vem caracterizando as in-
vestigações conduzidas sob sua liderança no LAPSI/PS/IPUSP a partir de conceituação ofereci-

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 355


Editora Baracoa — 2019
A referida pesquisa estruturava-se sobre um processo de lei-
tura de paisagens contemporâneas2 compondo o território de

da por Fernandes (1969) e sobre a qual Tassara e Ardans (2008) desenvolveram extensa análise,
a Psicologia Social estuda a interação social considerada em si e por si mesma. Para os referidos
autores, a Psicologia Social se caracterizaria por três elementos: hibridismo, marginalidade e
interdisciplinariedade. Hibridismo que seria originário da diversidade de sociedades, de cul-
turas, de valores, de modos de vida, remetendo à problemática da identidade social, de sua
constituição, de sua permanência e de suas metamorfoses. Marginalidade porque situada nos
interstícios disciplinares, nas margens e nas fronteiras dos conhecimentos por elas alcançados.
Interdisciplinariedade vista conforme conceitua Barthes (1984), como consistindo na criação
de um objeto novo que não pertença a ninguém. Embora híbrida, marginal e interdisciplinar,
a Psicologia Social é apresentada por esses autores como fundamental para três disciplinas
científicas: a Psicologia, a Sociologia e a Antropologia. Consideram ainda que, a partir da aceit-
ação desse carater hídrido da interação humana, desenha-se um dos grandes desafios da Psico-
logia Social, a defesa da diversidade humana como pré-requisito ético da compreensão científi-
ca do humano, estabelecendo um elo necessário entre a Psicologia Social e a Política. Deve-se
acrescentar que a metodologia que revestirá prevalentemente a estrutura do presente estudo
psicossocial é a da Teoria Crítica da sociedade (Guba, 1990; Montero, 2001), abordada pela Pro-
fessora Tassara como um estudo pós-colonial, ampliando-se seu escopo através da introdução,
nas análises em processo, do conceito de colonialidade do poder. (Tassara e Ardans, 2011).

2 Sobre o significado adotado para o termo "paisagem», transcreve-se nessa nota o conteúdo
do verbete "paisagem"segundo o Dicionário Socioambiental: ideias, definições e conceitos
(Tassara e Tassara, 2008)

paisagem

A idéia de paisagem pode ter vários significados. Em Geografia, ela pode ser definida como um
conjunto de estruturas naturais e sociais presentes em um determinado território, no qual se
desenvolve intensa interatividade entre os elementos naturais e as relações humanas. As paisagens
podem ser naturais, aquelas em que se destacam apenas os elementos da Natureza (relevo, solos,
clima, rios, flora e fauna e suas interações) sem interferência humana; e humanizadas ou culturais,
rurais ou urbanas, que são aquelas que abrangem elementos construídos pela ação humana e que
interferem nas paisagens naturais (como pontes, ruas, edifícios, cidades, túneis, portos, ferrovias,
etc), além das relações humanas que ocorrem nas próprias paisagens e entre elas. No atual estágio
de desenvolvimento das culturas humanas não se pode mais dizer que exista lugar no planeta que
não tenha sofrido qualquer interferência antrópica, direta ou indireta. Paisagens que englobam o
mundo construído e o mundo natural podem ser denominadas como paisagens socioambientais,
na medida em que sempre se referem a uma relação dinâmica entre a organização humana sobre
os cenários naturais e os construídos. Uma paisagem contém tudo aquilo que se pode perceber por
meio dos sentidos (audição, visão, olfato e tato), sendo a visão o sentido que mais se destaca. Assim,
as paisagens podem, também, ser definidas como recortes em movimento que o olho humano faz
sobre os cenários que observa pelo mundo. Embora as paisagens pareçam algo dado e das quais

356
municípios situados nesse vale, prevalentemente Jacareí e São
José dos Campos, através de uma observação sistemática natura-
lística, aplicando-se no estudo um sistema teórico de quatro ca-
tegorias clássicas preconizadas pelos geógrafos Ab’Saber (2001)
e Santos (2006): ecossistemas naturais remanescentes, ecossis-
temas remanescentes oriundos de áreas definidas como rurais,
agro-ecossistemas pautados na industrialização, ecossistemas ur-
banos sobre bacias hídricas. Ao longo do estudo acrescentou-se
uma nova categoria - ecossistemas tóxicos presentes no ambiente
observado (Tassara e Oliveira, 2012), por ter sido a mesma consi-
derada, por esses últimos autores, como complemento necessário
à leitura contemporânea adequada daquela paisagem.
Para a análise dos descritores das paisagens ambientais de
Jacareí foram utilizados, como propôs Ab’ Saber (2001), os fatos
sociais que dão dinâmica às transformações das paisagens, tendo
como referência os parâmetros representativos da formação histó-
rica do território de estudo, de sua contextualização geográfica, da
planificação, da produção e da gestão do ambiente construído, e,
das formas de inserção do mesmo em instâncias econômicas.
A decisão de aplicação do método naturalista ao universo urba-
no (Mondada, 2000), implicou a exploração do objeto em observa-
ção (o socioambiente3: terra, natureza, cidade, território, homem e

os seres humanos são apenas receptores passivos, nesse sentido elas são sempre construções cul-
turais que dependem das experiências de vida dos sujeitos que as observam.

3 Sobre o significado adotado para o termo "socioambientalismo"e "socioambiente», transcre-


vem-se nessa nota os conteúdos desses verbetes segundo o referido Dicionário Socioambien-
tal (Tassara e Tassara, 2008)

socioambientalismo

Filosofia ambientalista que, baseada no conceito de socioambiente, preconiza a adoção de


soluções aos problemas e conflitos ambientais integrando suas dimensões sociais e ambien-

Capítulo 11

Toxemia socioambiental. Estudo psicossocial da transformação 357


do vale do rio Paraíba do Sul (São Paulo, Brasil)
Eda Tassara e José Oswaldo Soares de Oliveira
sociedade), mediante a construção de uma empíria a ser desvelada
gradativa e ininterruptamente, pressupondo-se a presença do ob-
servador em interação direta com o meio; um estudo in situ obser-
vacional em mão dupla. Desta exploração resultaram diários de via-
gem, escritos com a função de registrar impressões e descrições de
leituras das paisagens contemporâneas do territórios explorados,
instruídas pela aplicação do método naturalista, tendo como refe-
rência o sistema de 5 (cinco) categorias em pauta, a saber: ecossis-
temas naturais; áreas rurais sobre remanescentes naturais (peque-
nas propriedades de domínio familiar); áreas de agroecossistemas
(representados por indústrias de grande porte atuando na produ-
ção agropecuária, a exemplo da monocultura de eucalipto); áreas
de ecossistemas urbanos (bacias hidrográficas e redes urbanas) e,
áreas de ecossistemas tóxicos (áreas pontuais ou extensivas conta-
minadas quimicamente e impróprias e/ou indevidas ao uso social).
Deve-se notar que Ab’ Saber destacou ao formular seu siste-
ma de categorias, o que denominou de fatos sociais, definindo-os
como os fatores que dariam a dinâmica inter-ecossistemas, isto é,-
que determinariam e/ou condicionariam suas mutações e/ou trans-
formações, deixando em aberto que poderiam mesmo levá-los a
outros formações. Para efeitos desse estudo foram considerados,

tais (físicas e naturais), buscando a defesa dos bens e direitos sociais, coletivos e difusos, em
relação ao meio ambiente, ao patrimônio cultural e aos direitos humanos e dos povos. Com
sua maneira genuína de pensar e atuar, que pode ser resumida no slogan “socioambiental se
escreve junto”, o socioambientalismo é uma criação brasileira única no cenário do ambiental-
ismo internacional. Ver socioambiente.

socioambiente

Conceito presente nas ações e movimentos ambientalistas que considera que as dimensões
sociais, físicas e naturais dos ambientes são indissociáveis, devendo ser abordadas de forma
integrada. Ver socioambientalismo.

358
como fatos sociais, fatores históricos constitutivos da formação do
território em análise, de sua base geográfica, de suas caraterísticas
socioculturais, demográficas e econômicas, além de fatores regio-
nais derivados e emergentes dos processos de conurbação, abran-
gendo escalas macrometropolitanas e mesmo globais, tais como
as referentes à questão habitacional no contexto do quadro imo-
biliário brasileiro contemporâneo. Acrescenta-se a isso o desafio
instaurado por um processo de urbanização caracterizado como
contínuo e extensivo, constituindo-se em escala cada vez mais pla-
netária (Deak, C., 1991; Singer, P.; 2001, Santos, M., 2005).
Por outro lado, a leitura das paisagens deste vale do Rio Para-
íba do Sul foi sustentada por uma busca de compreensão do pro-
cesso de urbanização contemporânea, acoplando-a a parâmetros
frequentemente utilizados por estudos sociourbanos, tendo sido
escolhidos os seguintes descritores: limites e/ou condicionantes
presentes na geografia física local (relevos suaves ou acidentados,
bacias hídricas principais e secundárias); processo histórico de
formação da paisagem (os ciclos econômicos preponderantes: do
ouro, do café, do gado, da indústria, do comércio); constituição
do ambiente construído em suas diversas etapas e escalas urbanas
(aldeia, vila colonial, cidade administrativa do século XIX, cidade
da indústria nacional da metade do século XX e, depois, multina-
cionais até a cidade regional da passagem do século XX para este
século, atrelada à globalização); estrutura formada pelas vias de
circulação e comunicação em diversas escalas (macrometropolita-
na, metropolitana, regional, intermunicipal, municipal, local e de
vizinhança); estagnação da economia agrícola familiar e da produ-
ção agrícola comercial heterogênea; introdução da monocultura da
agroindústria; interesses imobiliários específicos na constituição
de grandes reservas de terra a curto e médio prazo; constituição de

Capítulo 11

Toxemia socioambiental. Estudo psicossocial da transformação 359


do vale do rio Paraíba do Sul (São Paulo, Brasil)
Eda Tassara e José Oswaldo Soares de Oliveira
clusters condominiais horizontais e verticais como nova forma de
se produzir a urbanização espraiada em fronteiras rurais; interes-
ses da incorporação imobiliária na produção urbana de empreendi-
mentos concentrados na acumulação do capital, mas comumente
aleatórios a um planejamento racional de recursos presentes no
plano sócio-urbanístico; investimentos econômicos prementes im-
postos pela entrada de capitais internacionais no Brasil (pós-crise
de 2008); planos regionais e municipais diretores de ordenamento
do território atendendo a partes dos interesses e pressões presen-
tes na constituição dos municípios em estudos.
Acrescentam-se a tais descritores, outros, até mais visíveis,
produzidos por ações situadas no plano econômico. Por exemplo,
atualmente, o ambiente construído nos contextos urbano e rural
vem incorporando uma nova escala e um novo modo de estabe-
lecer as edificações residenciais, de comércio e de serviços, vilas,
bairros e condomínios, comumente destoantes da ideia clássica de
cidade nuclear, expandindo-se gradativamente de acordo com o
paradigma centro-periferia.
Também evidenciam-se fatos sociais emergentes a partir do
desenvolvimento de plantas industriais em diversas escalas urba-
nas, algumas abrangendo grandes áreas; e, ainda, a partir dos es-
paços destinados a suportes urbanos, tais como, aterros sanitários,
lixões, represas e reservatórios de águas e a partir de zonas agrárias,
as de unidades familiares, as de agroindústrias e as de monocultura
presentes nesse universo.
Os registros efetuados como descrições das observações pro-
cedidas foram fundamentados em um intenso trabalho de campo
pautado por procedimentos de pesquisa voltados para a apreensão
empírica da realidade observada, optando-se por algumas formas de
aproximação com o território estudado, destacando-se as seguintes

360
operações orientadoras da observação sistemática: sucessivos per-
cursos pela região adotando escalas gradativas de aproximação, par-
tindo-se do geral para o particular e priorizando-se a orientação pe-
las grandes vias das estruturas rodoviária, ferroviária e hídrica, para
permitir a captação panorâmica da paisagem; incursões adentrando
os grandes setores do Município delineados pelos eixos de circulação
e relevos marcantes e, a partir desses, penetrando nos bairros e vilas
por caminhos de ligação com os primeiros eixos; contato com mora-
dores ao longo dos percursos, buscando informações sobre localida-
des e características das locais, assim como sobre as relações desses
moradores com os lugares e com a cidade; estudo de documentos
e obras relativos à formação histórica da região, tendo como guia
o clássico trabalho de Nice Lecoq Muller, intitulado O fato urbano
na bacia do Rio Paraíba do Sul (Müller, 1969); estudo complementar
do planejamento do Macroeixo Paulista, elaborado pelo Governo do
Estado de São Paulo; estudo do Macrozoneamento do Vale do Para-
íba, realizado pelo INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais)
e, ainda, o estudo do relatório do CODIVAP (Consórcio de Desenvol-
vimento Integrado do Vale do Paraíba) sobre o Vale do Paraíba no
transcorrer dos anos setenta, dentre outros; consulta à cartografia
existente em diversas escalas de representação da realidade 1:250000,
1:50000, 1:25000, 1:10000, 1.5000; elaboração de cartografias a mão
livre visando fortalecer a representação mental do espaço da região,
usando escala gráfica próxima da escala técnica 1:50000; construção
de maquete técnica representando o relevo dos municípios na escala
1:25000 e escala vertical ampliada três vezes para diferenciar as to-
pografias das várzeas e o relevo mais acidentado; registro fotográfico
dos percursos, privilegiando os ângulos de maior amplitude panorâ-
mica ou elementos de destaque; conferência sistemática dos mate-
riais cartográficos para subsidiar a orientação em campo e também

Capítulo 11

Toxemia socioambiental. Estudo psicossocial da transformação 361


do vale do rio Paraíba do Sul (São Paulo, Brasil)
Eda Tassara e José Oswaldo Soares de Oliveira
permitir o registro de elementos ausentes na cartografia, a exem-
plo de igrejas na zona rural, inexistentes nos documentos oficiais;
consultas frequentes a técnicos atuantes nos município, com des-
taque para as contribuições nas áreas de planejamento urbano e
regional, e no campo das ciências biológicas; elaboração de uma
cartografia das aglomerações sociais, quer na escala dos conjuntos
urbanos, quer das pequenas nucleações rurais a partir de imagens
de satélites e de visita a campo; construção de cartografia de tipo-
logias construtivas e padrões de habitação, apoiada em fotografias
dos locais e contextualizadas por imagens de satélites.
Os relatos descritivos das observações foram agrupados ao lon-
go de três dimensões: da natureza bruta a seus remanescentes apro-
priados pela agricultura de técnicas tradicionais e pela monocultura
agro-industrial intensiva; ecossistemas urbanos extensivos em ba-
cias hídricas regionais; ecossistemas tóxicos pontuais e extensivos.

2. A heurística do sistema proposto por Ab’Saber

Em síntese, pode se concluir que o referido estudo fundamentou


a avaliação do carater heurístico do sistema proposto por Ab’Sa-
ber levando à delimitacão de relevantes questões para uma com-
preensão da transformação da paisagem no vale do Rio Paraíba do
Sul, à luz da inserção do Brasil no contexto do processo global de
produção e conformando sua entronização no que Streeck (2014)
denomina "sociedade capitalista contemporânea».
A leitura das paisagens facultou a análise da configuração geo-
gráfica de domínios da natureza nos territórios conurbados do vale
do Rio Paraíba do Sul tendo como referência o sistema de cinco ca-
tegorias propostos. Cabe enfatizar que o estudo propiciou a consta-
tação do caráter heurístico do sistema proposto por Ab’ Saber para

362
uma leitura da paisagem contemporânea no vale do Rio Paraíba do
Sul. Cabe, ainda, enfatizar que a introducão da categoria ecossis-
tema tóxico, proposta como um complemento ao sistema de Ab’
Saber para a leitura das paisagens, emergiu da percepção de que
a dinâmica contemporânea das transformações das paisagens sob
observação, situava-se nas implicações do processo global de pro-
dução sobre a realidade brasileira. Podia-se observar, no cotidiano
dos lugares, a presença e o impacto do capital global na consti-
tuição do socioambiente, o que vem se intensificando a partir das
duas últimas décadas, determinando sua transformação abrupta.
As paisagens, lidas através dos recortes propostos pelo sistema
de categorias teóricas de ecossistemas, não necessariamente deve-
riam manifestar-se de forma empírica, o que de fato não ocorreu. O
momento das paisagens representaria uma iconografia geográfica
instantânea do socioambiente e a sua dinâmica de transformações
propiciaria a interpretação de sua história. Socioambiente seria,
portanto, geografia em processo dinâmico de construção histórica.
Por suas transformações, a leitura da paisagem permite a análise
geográfica e histórica e, portanto, política. Contudo, segundo Tas-
sara e Ardans (2008) a vinculação ética gera a indissociabilidade
da interface política-psicologia social, evidenciando os intestinos
psicossociais do político, de difícil explicitação.
Milton Santos (Santos, 1996) oferece contribuições para
fundamentar uma análise desta questão, classificando períodos
históricos em função de parâmetros caracterizadores do grau de
domínio da técnica neles prevalentes. Assim, pode-se delinear
fatos sociais a partir de marcos de transformações significativas
através do domínio da técnica, possibilitando a identificação e
compreensão de novos fatores emergentes que se manifestam
como fatos sociais. Santos propõe uma sequência composta por

Capítulo 11

Toxemia socioambiental. Estudo psicossocial da transformação 363


do vale do rio Paraíba do Sul (São Paulo, Brasil)
Eda Tassara e José Oswaldo Soares de Oliveira
três períodos decisivos, fundamentados nas transformações do
ambiente propiciadas pelo grau, domínio e impacto das técnicas
neles dominantes: o período do meio natural, do meio técnico
e do meio técnico-científico-informacional. O período referente
ao predomínio do meio natural representaria o tempo da civili-
zação no transcorrer do qual a manipulação do ambiente se faz
predominantemente pela força do homem e pela apropriação dos
elementos da natureza pelos homens, tais como o emprego de
animais ou do uso da força das águas e dos ventos. Já o período
correspondente à predominância do meio técnico, sinalizado pela
emergência da Revolução Industrial, teria propiciado um arsenal
de técnicas a partir da utilização das novas formas de energia. Ao
contrário, representaria um processo superior de domínio dos
elementos da natureza. A partir desse período, determinado pela
revolução industrial, passaram a ocorrer intervenções de maior
impacto ambiental atuando sobre a configuração das paisagens
dos domínios da natureza lidas pelo código científico dos seus
diversos ecossistemas, por implicações de interferência em maior
escala sobre processos naturais e, portanto, em maior rapidez
em romper o equilíbrio dos ecossistemas pregressos. O terceiro
período referente ao meio técnico-científico-informacional, teria
emergido a partir do fim da Segunda Grande Guerra Mundial,
consolidando-se nas três últimas décadas do Século XX. Surgiria,
assim, uma nova etapa de impactos sobre os ecossistemas ante-
riores, agora em escala global intensificada no Século XXI, que se-
ria pautada pela produção e disseminação da utilização de novas
formas de energia, em natureza e escala, com implicações cons-
trutivas e/ou destrutivas sobre o ambiente planetário.
Sob tal configuração, a inserção da categoria dos ecossiste-
mas tóxicos apresentava-se como adequada à leitura empírica

364
das paisagens, dada a presença massiva de regiões obviamente
poluídas4 poluição) na terra, na água e no ar, na vida social e
comunitária, configurando novos e desconhecidos padrões de
vida nesses ambientes: "para a terra, homens, animais e plantas".
Todavia, a sua identificação constitui tarefa difícil, por se
tratar de manifestações territoriais de toxicidade com abran-
gência tópica, observável em determinada localidade pontual, e
extensiva, quanto atingindo todo um território. Vide, por exem-
plo, a poluição produzida pelo uso de agrotóxicos em determi-
nada área de agro-indústria e de sua disseminação para os rios.
Ou, então, de vazamento de resíduo químico industrial pelo ar,
contaminando toda a região de estudo, em processo de conur-
bação. No momento, apresenta-se paroxístico o episódio do
rompimento da barragem da Mineradora Samarco em Mariana,
Minas Gerais, em 2016. O que permaneceu do socioambiente
pregresso na extensa área da bacia do Rio Doce e no próprio
leito do rio?
4 Sobre o significado adotado para o termo "poluição ambiental», transcreve-se nessa nota
o conteúdo do verbete paisagem segundo o Dicionário Socioambiental: ideias, definições e
conceitos (Tassara e Tassara, 2008).

poluição ambiental

Alteração indesejável dos fatores abióticos presentes no meio ambiente devida, em geral, à
introdução de concentrações demasiado altas de compostos prejudiciais ou perigosos, ao
calor, ruído, entre outros. Segundo a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), poluição
ambiental é qualquer tipo de contaminação do meio ambiente ou degradação da qualidade
ambiental resultante de atividades que, direta ou indiretamente: 1) prejudiquem a saúde, a se-
gurança e o bem-estar da população; 2) afetem desfavoravelmente a biota (conjunto da fauna
e da flora de uma região); 3) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; 4)
afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; 5) lancem matérias ou energia
em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos. A poluição acontece, na maioria das
vezes, como consequência das atividades humanas, mas resíduos produzidos por erupções
vulcânicas ou contaminações devido a corpos em estado de putrefação, por exemplo, também
podem produzir poluição ambiental. Existem diversas formas de poluição: visual, auditiva,
térmica, atmosférica, das águas, do solo, entre outras.

Capítulo 11

Toxemia socioambiental. Estudo psicossocial da transformação 365


do vale do rio Paraíba do Sul (São Paulo, Brasil)
Eda Tassara e José Oswaldo Soares de Oliveira
Observar-se que a introdução da categoria de ecossistemas
tóxicos não significou propriamente uma alteração no sistema pro-
posto por Ab’Saber, dado que, ao apresentá-lo, o eminente geógra-
fo já considerava os fatos sociais como sendo os veículos sinérgi-
cos das interrelações entre os componentes do referido sistema. A
consequência dessa anexação situa-se no fato de que a toxicidade
transcende à sua definição como categoria de leitura, passando a
constituir-se para além de um fato social como um novo compo-
nente da natureza, como um seu domínio emergente, reificando-se
como um fato social constitutivo da geografia do socioambiente,
produzida por poluição ambiental, a requerer a introdução de vin-
culações éticas no seu estudo situadas na interface política-psico-
logia-social. Caberia aqui citar Paulo Duarte, professor de Filosofia
fundador da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universi-
dade de São Paulo, quando afirma: " Quando a poluição se instala,
seja física ou intelectual, a ética se rompe e as nações estão perdi-
das"(Tassara, M., 1988).
O esmaecimento da manifestação empírica das quatro catego-
rias propostas originariamente por Ab’Saber aponta para o fato de
que manifestam-se que ecossistemas em mutação em decorrência
da predominância de intervenções antrópicas configuradas como
pertencentes no processo do meio técnico-científico-informacio-
nal conceituado por Santos. A identificação de manifestações a
serem incluídas na categoria ecossistemas naturais remanescentes
pressupõe a existência de fragmentos desses ecossistemas naturais,
os quais como se apontou, mesmo ainda existindo, já não são mais
naturais. De fato, esses ecossistemas estão permeados por ações
antrópicas e são objeto de alterações na composição do ar, da água
e do próprio solo, pacientes do impacto das ações de agentes con-
tíguos a essas regiões, sobretudo de natureza urbana e industrial.

366
A aplicação da segunda categoria como referência, a dos
ecossistemas constituídos por áreas rurais sobre remanescentes
naturais, revelou transformações nas paisagens contemporâne-
as denunciando a alteração da base social pregressa que previa a
manutenção possível de ecossistemas de base agrícola, em funcio-
namento compatível com o manejo do meio em harmonia com a
natureza bruta. A sua aplicação revelou, em primeiro lugar, a qua-
se não presença destes ecossistemas nas paisagens em estudo e,
em segundo, trouxe à tona uma nova dimensão da toxicidade da
poluição presente no território - as formas contemporâneas de
exploração capitalista do campo, liquidando as bases sociais da
vida coletiva nas áreas agrícolas tradicionais. Não seriam por acaso
poluídas, tóxicas, tais formas de ruptura dos modos tradicionais
de vida no campo, impondo novos padrões e ritmos de vida, de
trabalho, de alimentação e de consumo, às grandes levas de traba-
lhadores deslocados forçosamente para os aglomerados urbanos
dispersos nessa região conurbada? Não seriam poluidoras, tóxicas,
estas alterações disruptivas de formas de organização humana?
Essa poluição impregnaria de elementos tóxicos os ecossistemas,
seja pela negação das formas de vida no campo agrícola, seja pela
imposição das formas de vida urbana pautadas pelas novas manei-
ras de produção e consumo, rompendo o meio cultural presente
sob determinado ecossistema. O canto dos pássaros substituídos
pelo ruído das buzinas, dos carros e das fábricas.
A terceira categoria, a dos agro-ecossistemas pautados pela
industrialização, somada à quarta categoria, a dos ecossistemas ur-
banos sobre bacias hídricas, exterioriza os efeitos de intervenções
situadas no período do meio técnico proposto por Santos. Tais ca-
tegorias de ecossistemas, por sua vez, ainda estão presentes nas
paisagens do território em estudo. Pode-se concluir, portanto, que

Capítulo 11

Toxemia socioambiental. Estudo psicossocial da transformação 367


do vale do rio Paraíba do Sul (São Paulo, Brasil)
Eda Tassara e José Oswaldo Soares de Oliveira
ele se caracteriza como se constituindo em uma macrourbanização
em escala de conurbação regional e até mesmo macrometropoli-
tana, no qual as referidas categorias de ecossistemas relacionados
incorporam-se como partes secundárias, quase inexpressivas, so-
bretudo se considerado o seu papel de reservas ecológicas escassas.
Tal macrourbanização, incorporando os agroecossistemas in-
dustriais e os ecossistemas urbanos industriais sobre bacias hídri-
cas, constitui um contínuo entre formas de ocupação do solo, pau-
tadas pelo atual estado do meio técnico-científico-informacional e
pelo capitalismo global, tanto em sua vertente do neoliberalismo
americano, como em sua vertente estatal chinesa. Ainda no âmbito
da macroubanização, esses ecossistemas - sedes da agroindústria
e do urbano-industrial, são alterados de modo abrupto, em curto
tempo. Tais mutações não necessitam de mais de seis meses para
produzir uma radical transformação na paisagem, a exemplo do que
ocorreu na várzea do Rio Paraíba do Sul, transformada pela inva-
são das plantas das indústrias automotivas da Sany e Cherry. Neste
caso, novamente emerge a temática que fundamentou a proposição
da quinta categoria de ecossistemas tóxicos, em suas diversas ma-
nifestações, seja do ponto de vista físico-químico, seja das altera-
ções das propriedades de seus elementos internos.
Tóxicos também em suas formas violentas de ação, desmon-
tando as bases das paisagens sociais e rompendo as bases materiais
da memória coletiva. Tóxicos ao fragmentarem os espaços de con-
vivência por romperem assim a contiguidade dos espaços de vizi-
nhança, impondo novos containers urbanos ou containers agrários,
constituindo grandes muralhas cercadas para as suas funções de
fazendas agrárias e de áreas condominiais urbanas e industriais e
culminando no isolamento dos diversos aglomerados sócio-urbanos,
desestruturando os elos sociais passado-presente-futuro, dimensão

368
psicossocial essencial para propiciar uma saudável transmissão sim-
bólica intergeracional (Tassara, Rabinovich, Goubert, 2004 ).

3. O prosseguimento: hipóteses teóricas e paradigma de


método

Como base no exposto, conclui-se que as dimensões e implicações


das interferências poluidoras e suas consequências tóxicas sobre o
socioambiente requerem novos estudos para fundamentar a pro-
posição de um novo sistema de referência que incorpore dimen-
sões teóricas, compreensivo-racionais e empíricas, facultando a
observação, leitura e descrição das paisagens contemporâneas in
situ, possibilitando uma compreensão baseada nos princípios or-
todoxos da metodologia científica aplicada à etapa vigente de uma
economia capitalista globalizada e com base em compromissos
éticos e humanistas. Uma transformação vertiginosa e sobretudo
deslocada das bases dos lugares, portanto da escala humana de
vivência e apreensão dos domínios da natureza, lidos através de
recortes dos ecossistemas neles presentes, aí incluindo as suas di-
mensões sociais. Uma transformação em parte assentada sobre a
natureza pré existente - a terra como chão bruto - e, em outra parte,
conduzida pelas implicações da ação da máquina do capitalismo
global, cindindo identidades individuais e grupais com rupturas to-
pológicas de difícil trânsito entre estou dentro e estou fora, era e
é, aqui e ali, e outros. Ou seja rompendo modelos de urbanidade e
paradigmas de urbanização pregressos.
Sob tal perspectiva é que se propõe o prosseguimento de es-
tudos centrados em um novo objeto de conhecimento que esta-
mos denominando toxemia socioambiental, um objeto novo que
emerge no campo interdisciplinar como categoria contendo uma

Capítulo 11

Toxemia socioambiental. Estudo psicossocial da transformação 369


do vale do rio Paraíba do Sul (São Paulo, Brasil)
Eda Tassara e José Oswaldo Soares de Oliveira
dimensão sensu stricto da psicologia social. Uma dialética indis-
sociável de processos de interferências antrópicas no ambiente e
seus produtos sociais os quais, sob a égide da atual "sociedade capi-
talista brasileira"(Streeck, 2014) inscrevem-se no processo global
de produção e da luta geopolítica por sua manutenção.
Reafirmam-se, dessa forma, as vinculações éticas indissociá-
veis entre política-psicologia social, acrescidas frente à irreversibi-
lidade que reveste grande parte destas transformações socio-am-
bientais. Propõe-se assim uma arqueologia de um elo social em
vias de desaparecimento, ou desaparecido, como uma manifesta-
ção da dessocialização anômica (Meireles, 2004) produzida sobre
os homens nesta etapa do processo de globalização. O pressuposto
que sustenta sua proposição consiste em se assumir que no estudo
do socioambiente, as dimensões sociais, físicas, e naturais são in-
dissociáveis devendo ser abordadas de forma integrada, buscando-
-se soluções a problemas e conflitos interrelacionando dimensões
sociais e ambientais e buscando-se a defesa dos bens e direitos
sociais coletivos e difusos em relação ao meio ambiente, ao patri-
mônio cultural, aos direitos humanos e aos direitos dos povos.
Em Síntese, como base nos pressupostos acima elencados,
apresentam-se hipóteses que, para os autores, sustentariam uma es-
trutura dos estudos objetivados:

a) as leituras naturalísticas das paisagens do vale do Rio Paraíba


do Sul5 possibilitariam a delimitação de imagens transformadas de
regiões e episódios nelas recortados, identificando-se sua determi-
nação por ação de agentes de poluição socioambiental;
5 A proposta se refere a região do vale do Rio Paraíba do Sul, mas, poderia em princípio se aplicar
em outras regiões do planeta, desde que previamente descritas mediante mapeamentos exten-
sivos das configurações territoriais a serem analisadas. Supõe-se que essa extensão da investi-
gação seria mais adequada quando se estiver estudando os entornos territoriais de bacias hídricas.

370
b) tal delimitação sustentaria a derivação empírica de categorias de
análise da toxemia ambiental neles identificada;

c) o sistema categorial determinado pelo processo de derivação em-


pírica permitiria a compreensão objetivada de transformações psi-
cossociais operadas em indivíduos e grupos por agentes materiais e
simbólicos veiculadores da referida poluição ambiental;

d) a análise desenvolvida mediante a aplicação do sistema catego-


rial derivado possibilitaria a interpretação de fatores de renovação
da dominação colonial subjacente à toxemia ambiental, constituin-
do-se assim em uma crítica da colonialidade do poder. Em exten-
são, propõe-se como método de levantamentos de informações e
procedimentos de análises, as seguintes etapas para a realização do
estudo, aqui apresentadas, em sua ordem sequencial cronológica:

I. A partir da escolha de um conjunto de situações que, à luz dos


estudos já desenvolvidos, indicariam a ocorrência de transforma-
ções de suas paisagens por produção de interferências antrópicas
disruptivas, delimitar lugares representativos dessas manifesta-
ções. A escolha desses lugares deverá abranger a região em análise.
Em uma primeira aproximação desenvolveu-se uma tipologia de
situações que poderiam ser orientadoras dos estudos propostos.
São elas: esmaecimento das narrativas que sustentam a história
das paisagens sociais; desmantelamento das bases materiais da
memória coletiva; disrupções e distorções socioambientais produ-
zidas pela fragmentação do território de produção agrícola tradi-
cional; rompimento dos laços de convivência e de vizinhança pelas
interferências fragmentárias no espaço produzido; introdução de
“estrangeiras” hierarquias identitárias associadas aos modelos de

Capítulo 11

Toxemia socioambiental. Estudo psicossocial da transformação 371


do vale do rio Paraíba do Sul (São Paulo, Brasil)
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clusters urbanos condominiais no plano residencial, comercial, in-
dustrial e de serviços privados e públicos”, propagando modelos de
inclusão e exclusão (o dentro e o fora), que embora pautados por
valores arbitrários não se apresentam como tal; introdução de cir-
cuitos de infra-estruturas viárias, energéticas, informativo-comu-
nicacionais, de sistemas de abastecimento de água, determinando
a constituição de isolats sociais nos aglomerados sociais (urbanos
e rurais) quer tradicionais ou em processo de formação; veicula-
ção, pela a introdução desses circuitos de infra-estruturas, de um
novo espaço-tempo nos lugares, o espaço-tempo da globalização,
sem carrear concomitantemente o seu ethos, com as implicações
anômicas desse processo sobre indivíduos e grupos. Observa-se
que tal tipologia não implica, pelo momento, que a mesma esteja
constituída de classes mutuamente exclusivas de acontecimentos
e/ou situações.

ii. A partir da escolha do lugar/situação, aprofundar a descrição da


situação em função de transformações significativas nela ocorridas
ao longo dos últimos 20 anos, que sinalizaram a entrada do Brasil
(ou de um outro país) no processo global de produção.

iii. Elaborar, para cada situação eleita e em função de suas caracte-


rísticas materiais e não materiais, o método de análise crítica das
“perdas” identitárias ocorridas ao longo do período histórico em
estudo, tendo como referência a emancipação/esclarecimento6.

6 Ou seja, com o esmaecimentdo da história narrativa (Devoto, 2004), enfocando o tempo dos
acontecimentos no qual o passado inscreve-se em desdobramentos temporais contidos na dinâmi-
ca ininterrupta da mudança histórica, de estreita relação passado e presente, esvanece-se a história
analítica (Devoto, op cit), de longo tempo, que indaga em enquadramentos cronológicos amplos
atravessando espaços e cronologias, instalando-se assim a anomia psíquica e a alienação política.

372
iv. Aplicar o método de identificação, descrição e análise da referi-
da “perda”.

v. Interpretar os resultados obtidos através do desenvolvimento do


proposto no item 4, à luz do conceito de colonialidade do poder,
identificando núcleos de resistência à afirmação renovada do do-
mínio colonial ou de integração à reprodução fortalecida do mode-
lo de sociedade capitalista.

Capítulo 11

Toxemia socioambiental. Estudo psicossocial da transformação 373


do vale do rio Paraíba do Sul (São Paulo, Brasil)
Eda Tassara e José Oswaldo Soares de Oliveira
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Ambientais Contemporâneas IPUSP, 30 de novembro de 2015.

Capítulo 11

Toxemia socioambiental. Estudo psicossocial da transformação 375


do vale do rio Paraíba do Sul (São Paulo, Brasil)
Eda Tassara e José Oswaldo Soares de Oliveira
TASSARA, E. T. de O. Formas TASSARA, E. T. O. e ARDANS, O. A
organizativas de coletivos Relação e a Ideologia e Crítica
sociais e políticos em cidades nas Políticas Públicas: Reflexões
latino-americanas: um estudo a partir da Psicologia Social.
psicossocial do enraizamento em Psicologia Política, 14 (7), 2008.
fronteiras urbanas-periurbanas
no território de São Paulo.. TASSARA, E.T.O., RABINOVICH, E. P. e
Relatório Científico apresentado à GOUBERT, J.P. O Lugar da Poética
FAPESP (2010-51221-9). São Paulo, nas relações pessoa-ambiente.
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TASSARA, M. G. O Brasil, os índios e, E.T.O., RABINOVICH, E. P. e GUEDES,
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Universidade de São Paulo, 1988.
TASSARA, E E TASSARA, H. Dicionário
TASSARA, E. T. O. e ARDANS, H. Socioambiental: ideias, definições
O. Psicologia socioambiental, e conceitos. São Paulo, Brasil
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social. Reflexões sobre as
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sistema-mundo. In: TASSARA,
E.T.O. e RUTKOWSKI, E. W. (orgs.)
Mudanças climáticas e mudanças
socioambientais globais: reflexões
sobre alternativas de futuro.
Brasília, UNESCO-IBECC-SP, 2011. pp.
123-154.

376
Capítulo 11

Toxemia socioambiental. Estudo psicossocial da transformação


do vale do rio Paraíba do Sul (São Paulo, Brasil) baracoa
editora

Eda Tassara e José Oswaldo Soares de Oliveira


Yanci Ladeira Maria
Universidade de São Paulo

Doutora pelo Programa de Pós-Graduação


em Geografia Física da Universidade de
São Paulo (2016), mestre pelo Programa
de Pós-Graduação em Geografia Humana
(2011) e bacharel e licenciada em Geo-
grafia também pela USP. Suas pesquisas
abordam o conceito de paisagem a partir
da sua relação com a ciência e a dicotomia
entre cultura e natureza, propondo uma
reconceitualização deste conceito a partir
da perspectiva da trajetividade.

CV: http://lattes.cnpq.br/7123462790006058
E-mail: yanciladeira@hotmail.com
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-2383-3879

379
Ensaio sobre habitar

Resumo: Este ensaio procura


refletir sobre o habitar como
relação entre a humanidade e
a superfície terrestre que nela
deixa marcas e é marcada por
ela. Compreendendo que habi-
tar não acontece isoladamente,
mas sim num emaranhado de
fios de pontas soltas e se tece
tecendo o mundo num conjunto
entre seres, coisas e ambientes.
E propõe as relações de cuidado
e manutenção como necessárias
ao habitar, não apenas para a
conservação do mundo habi-
tável, mas influindo nas suas
potencialidades e devenir.

Palavras chave: habitar, ecú-


meno, cuidado.

380
Essay on living

Abstract: This essay intends to


reflect on living as a relation
between humanity and the
land surface where it lives, re-
marking how one is affected by
the other. Understanding that
inhabiting does not happen in
isolation, but in a coexisten-
ce of beings, things and envi-
ronments. In this perspective,
care and maintenance rela-
tionships are considered as
fundamental matters of living,
not only for the conservation
of the habitable world, but
also influencing their potential
and becoming.

Keywords: to live, ecoumene,


care.

381
Capítulo 12

Ensaio sobre habitar


Yanci Ladeira Maria
Universidade de São Paulo

1. Habitar é uma geografia (Jean-Marc Besse, 2013, p.8)

Conforme Jean-Marc Besse (2013), habitar é uma questão geográfi-


ca, ou melhor, é em si uma geografia:

Pois habitar é traçar linhas e desenhar superfícies, é escrever


sobre a terra, por vezes com letras fortes e nela deixar imagens.
Chamar-se-á isto geografia. E isto não é outra coisa senão trans-
formar a superfície da Terra em um tipo de grande morada, em
um interior universal. (BESSE, 2013, p. 10).

Nesse sentido apontado por Besse, habitar é grafar a terra ao


mesmo tempo em que fazemos dela a nossa morada, é a geografia
em ato no sentido dardeliano. Habitar é um ato permeado pela ge-
ograficidade – relação que liga a humanidade à Terra, que precede a
geografia ciência.
O habitar acontece na relação entre os seres e a superfície ter-
restre. Relação esta que é inerente à própria existência dos seres e
que transpassa os corpos e ambientes. Transpassar aqui poderia ser
entendido como uma linha de costura unindo um e outro. Mas este
ensaio busca uma reflexão que não reforce a união/separação entre um
e outro, entre o corpo e o ambiente, entre o material e o imaterial. A
imagem sobre a qual se pretende meditar, se pauta no fluxo entre um

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 383


Editora Baracoa — 2019
e outro, mais precisamente no vazamento apontado por Tim Ingold
(2012) entre os seres, o ambiente e as coisas. Assim o sentido de trans-
passar é aquele que borra o limite, vaza, transborda. E não aquele do
que une o que está precisamente delimitado. A imagem apontada por
Ingold é a de uma malha, uma trama de fios emaranhados cujas
pontas estão soltas1.
Assim, mais do que deixar traços na terra, habitar é tecer
a Terra, é tecer o mundo. Para Besse (2013, p.8-9) habitar é um
destino coletivo e uma experiência individual que se remetem à
organização por vezes conflitiva da vida, ou seja, “à definição de
um tempo, à medida de um espaço e à sua orientação geral”.

Habitar não é somente ser em qualquer parte, é ser-aí de uma cer-


ta maneira durante um certo tempo. Nós somos habitando (...) em
nossas atividades cotidianas ou excepcionais, em nossos gestos,
nossos hábitos, nossas maneiras diferentes de ser e estar (être)
presente no espaço e de nele conduzirmo-nos, certamente, de nos
deixarmos impregnar pelos lugares nos quais nós estamos regu-
larmente. O verbo habitar se encarna nos “modos de vida”, mas
também pode ser nos “momentos de vida”. (BESSE, 2013, p.10).

Conforme Besse, há um senso humano do habitar, que precede suas


formas e seus conteúdos, assim como, todos os lugares possuem
suas próprias qualidades, profundidades, memórias e ressoam em
nós. Podemos dizer então, que as histórias humanas acontecem no
habitar o mundo, são tecidas junto à tessitura do mundo.
A existência humana é terrena e é assim, pautada por esta
relação, que se dá o seu habitar. Esta relação entre a humanidade

1 Ingold se apoia na imagem de rizoma proposta por Deleuze e Guatarri na obra Mil platôs.
Vol.1, São Paulo: Ed. 34, 2011 (2ª.ed brasileira).

384
e a superfície terrestre é chamada por Augustin Berque (1996)
de ecúmena2, aqui chamada de relação ecumenal que, conforme
o autor, se estabelece de forma concreta no espaço e no tempo,
quer dizer, em um meio e em uma história.
Dessa maneira Berque chama a atenção para o sentido que a
história humana dá para a superfície terrestre, lembrando que os
sentidos se diferenciam de acordo com as sociedades, que no tra-
jeto entre o imaterial e o material, projetam seus modos de ver o
mundo e ao mesmo tempo os inscrevem nele. Nas análises de Ber-
que o foco está no trajeto, mas há, de certo modo, a delimitação
bem marcada entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo. Toda-
via, o trajeto entre um e outro encontra-se na região fronteiriça, na
área de trans-borda, que transborda.
Neste ensaio busca-se uma perspectiva aberta para o trans-
bordamento de fronteiras, e o trajeto e a trajetividade apontadas
por Berque são um bom início para começar a meditar a este
respeito. A abordagem trajetiva, compreende o trajeto, o cami-
nho que é reversível, uma incessante troca na interação e relação
entre o físico e o fenomênico, entre o material e o imaterial, en-
tre o ambiente, os seres, os corpos, o valores humanos, o agir e
o pensar. Pretende-se iniciar uma conversa sobre o habitar que
vá além das dicotomias que opõem as partes, abrindo o pensar

2 Ecúmeno é uma palavra grega que deriva do termo oikos (casa, lugar onde se habita) e, desde
os tempos de Strabão e Ptolomeu, como nos lembra Besse (2013, p.72), é compreendido como
o mundo humano ao qual caberia a geografia [ciência] “representar pelo nome, a descrição
e o desenho cartográfico, a posição, a grandeza, a forma e os conteúdos”. Desta maneira, o
ecúmeno era compreendido como a parte da Terra habitada pela humanidade, sendo definido
por contraste às regiões virgens de presença humana. E diante da realidade atual em que a pre-
sença humana alcança, mais que o além-mar, para além do planeta (com os satélites, sondas
e estações espaciais), Berque contemporiza o sentido de ecúmeno, que o autor prefere usar
no feminino – ecúmena. Para maior aprofundamento no tema ver: BERQUE, A. Être humains
sur la terre: príncipes d’éthique de l’écouméne. Paris: Galimard, 1996. e BERQUE, A. Écoumène:
introduction à l’étude des milieux humains. Paris: Belin, 2009.

Capítulo 12

Ensaio sobre habitar 385


Yanci Ladeira Maria
para os trajetos, as ligações, e mais ainda, para as tramas que nas
quais se tecem as relações.
Sob a ótica ecumenal, não faz sentido separar a humani-
dade da Terra, nem vice-versa, a Terra deve ser compreendida
enquanto ela é habitada pela humanidade e a humanidade en-
quanto ela habita a Terra.

A noção de ecúmeno, originada de oikos, implica o habitar hu-


mano. Este, comparado ao habitar de outras espécies existen-
tes, apresenta uma série de características particulares, que
podemos resumir dizendo que é sempre e necessariamente,
ao mesmo tempo, de ordem ecológica e de ordem simbólica.
Ele é ecosimbólico. Ele implica uma apropriação ao mesmo
tempo material e semântica da superfície terrestre, uma orga-
nização e uma interpretação do mundo, um ecossistema e um
ethosistema (um sistema moral), uma viabilidade biológica
e uma ordem axiológica (um conjunto ordenado de valores
concretamente incorporados nas coisas), o qual se refere por
fim a uma verdade que transcende este conjunto e que lhe dá
sentido. (BERQUE, 1996: 79-80)

Assim, a relação ecumenal, e podemos dizer o habitar huma-


no, implica em uma certa ética, porque todos os lugares são,
sempre, carregados de valores humanos. Conforme Berque,
quando agimos nós vivemos o sentido das coisas, não separa-
mos os significados dos objetos concretos. A existência huma-
na é como a das “coisas”: inserida na mediância de seu meio
e imbricada dos sentidos de sua época. As práticas humanas
se constituem no vínculo necessário entre o símbolo e a coisa
(1996, p.80).

386
2. Habitar é pipa-no-ar,

Dizer que habitar é pipa-no-ar é dizer que as coisas e os seres


existem em relação umas com as outras e no e com o mundo, em
meio a circunstâncias e dinâmicas, que elas não existem isolada-
mente e, desta forma, habitar se dá no meio deste conjunto.
Como apontado no início, o antropólogo Tim Ingold (2012) pro-
põe a ideia de “malha”3 (meshwork) para pensar a cultura material e
as relações de comunicação, integração e fluxos entre coisas. Ingold
reforça a ideia de que não se deve “retirar as coisas do fluxo que as
trazem à vida”. A vida das coisas se refere à compreensão destas em
meio ao fluxo de substâncias no qual elas existem, para o autor, se as
retiramos desse fluxo, elas são apenas objetos, e como tal estão mortos.
O autor propõe a retomada da noção de coisa, porosa e fluida,
perpassada por fluxos vitais e integrada aos ciclos e dinâmicas da
vida e do ambiente. É através da imersão das coisas nessas circula-
ções que elas são, conforme ele, trazidas à vida. Para Ingold (2012,
p.29 e 32) as coisas estão vivas porque elas vazam, transbordam das
superfícies que se formam temporariamente em torno delas.

Assim como a coisa existe na sua coisificação, a pipa-no-ar existe no


seu voo. (...). Poder-se-ia dizer o mesmo de um pássaro-no-ar, ou
de um peixe-na-água. O pássaro é o seu voar; o peixe, o seu nadar. O
pássaro pode voar graças às correntes e vórtices que ele introduz no
ar, e o peixe pode nadar velozmente devido aos turbilhonamentos
que ele causa com o movimento de suas nadadeiras e cauda. Cor-
tados dessas correntes, eles estariam mortos. (INGOLD, 2012, p.33).
3 Em oposição ao conceito de rede e da teoria ator-rede de Latour, Law e Callon que Ingold
critica por manterem e reproduzirem uma “divisão metafísica entre sujeitos e objetos (atribu-
indo a estes uma agência fetichizada) e ignorando a distribuição desigual de fluxos e sentidos
ao longo da rede.” (INGOLD, 2012, p.25).

Capítulo 12

Ensaio sobre habitar 387


Yanci Ladeira Maria
Um dos exemplos que Ingold traz para referir-se aos fluxos nos
quais as coisas estão integradas é o exemplo de uma árvore:

Lá está ela, enraizada na terra, seu tronco se erguendo e seus ga-


lhos se abrindo, balançando ao vento, com ou sem brotos ou fo-
lhas, dependendo da estação. A árvore é um objeto? Em caso po-
sitivo, como a definiríamos? O que é árvore, e o que é não árvore?
Onde termina a árvore e começa o resto do mundo? Essas não
são questões fáceis de responder (...). A casca, por exemplo, é
parte da árvore? Se eu retiro um pedaço e observo mais de perto,
constatarei que a casca é habitada por várias pequenas criaturas
que se meteram por debaixo dela para lá fazerem suas casas. Elas
são parte da árvore? E o musgo que cresce na superfície externa
do tronco, ou os liquens que pendem dos galhos? Além disso, se
decidirmos que os insetos que vivem na casca pertencem à árvore
tanto quanto a própria casca, então não há razão para excluirmos
seus outros moradores, inclusive o pássaro que lá constrói seu
ninho ou o esquilo para o qual ela oferece um labirinto de escadas
e trampolins. (...) Essas considerações me levaram a concluir que
a árvore não é um objeto, mas um certo agregado de fios vitais. É
isso que entendo por coisa. (INGOLD, 2012, p.28-29).

Assim, habitar corresponde a inúmeras relações e co-participações


que realizam a tessitura do mundo, no mundo onde os limites e
fronteiras vazam, transbordam, constroem-se e se reconstroem
constantemente e as possibilidades das formas estão abertas, guar-
dando potencialidades que podem ou não se realizar. Como diz In-
gold (2012, p.31-32) “O mundo aberto pode ser habitado justamente
porque, onde quer que haja vida, a separação da interface entre terra e
céu dá lugar à mutua permeabilidade e conectividade.”

388
Nós, seres humanos, habitamos o mundo conjuntamente a
uma infinidade de seres vivos e coisas, partindo do nosso corpo, da
nossa mente em relação porosa com este ambiente de seres e coi-
sas que nos cerca, ou melhor, nos adentra e envolve. Esta relação
pressupõe, como nos lembra Berque, sempre subjetivações.
Dessa maneira, o que se pretende reforçar é que habitar não
existe de maneira isolada. Habitar o mundo é habitar conjunta-
mente, como mostrado no exemplo da árvore. É um “destino co-
letivo” que transcende às sociedades humanas, pode ser também
uma “experiência individual” mas, sem retirar o indivíduo do ema-
ranhado de fios no qual sua vida se tece.
Ingold diferencia o ocupar e o habitar o mundo, relacionando o
primeiro aos objetos e o segundo às coisas.

Embora nós possamos ocupar um mundo repleto de objetos, para


o ocupante os conteúdos do mundo parecem já se encontrar tran-
cados em suas formas finais, fechados em si mesmos. É como se
eles tivessem nos dado as costas. Habitar o mundo, ao contrário,
é se juntar ao processo de formação. (INGOLD, 2012, p.31).

Assim, ocupar e habitar são termos que carregam em si filosofias e


posturas diante do mundo, da mesma forma que as relações que se
estabelecem com objetos ou aquelas com as coisas.
Há ainda, uma outra imagem trazida por Ingold que serve de
apoio para o próximo ponto que se quer abordar – o do cuidado e
da manutenção – tão necessários para se pensar sobre as maneiras
que habitamos o mundo e às transformações que almejamos para
este habitar. É a imagem da casa real, que o autor traz a partir de
um depoimento do arquiteto português Alvaro Siza4.
4 SIZA, A. Architecture writings. Ed. A. Angelillo. Milan: Skira Editore, 1997, p.47.

Capítulo 12

Ensaio sobre habitar 389


Yanci Ladeira Maria
A casa real nunca fica pronta. Ela exige de seus moradores um
esforço contínuo de reforço face ao vaivém de seus habitantes
humanos e não humanos, para não falar do clima! (...) A casa real
é uma reunião de vidas, e habitá-la é se juntar à reunião – ou, nos
termos de Heidegger (1971)5, participar com a coisa na sua coisi-
ficação. (INGOLD, 2012, p. 30).

Enquanto moradores, nós experimentamos a casa não como ob-


jeto, mas como coisa. (INGOLD, 2012, p.31).

3. Habitar é cuidar e manter

O exemplo da casa também é trazido por Besse (2013) para discor-


rer sobre cuidado e a manutenção como aspectos importantes do
habitar, que o autor traz a partir de uma reflexão sobre a arte ména-
ger termo em francês que se refere à limpeza e arrumação da casa
(faire le ménage). Aqui se podem reunir as ideias do habitar con-
juntamente dando sentido às coisas e deixando marcas no mundo
(marcas que participam do sentido que damos às coisas, ao mundo
e assim ao nosso próprio habitar).

Habitar um mundo, não é simplesmente viver, mas poder inserir a


vida em um sistema de coisas estáveis e que duram, e é poder com-
preendê-la em relação a um conjunto de obras cheias de sentido.
Este mundo que nós habitamos e no qual nós não nos contenta-
mos de somente viver, chamamos-o: uma casa. (BESSE, 2013, p.21).

Besse aponta para as relações de manutenção e cuidado como uma


maneira de relacionamento com as coisas e com o mundo que se
5 HEIDEGGER, M. Poetry, language, thought. Trans. A. Hofstadter. New York: Harper & Row, 1971.

390
diferencia, e se pode acrescentar, como alternativa ao paradigma
da produção6 como elemento determinante das condições mate-
riais da vida social.

Toda ação não é criação, produção ou fabricação. Em outras pa-


lavras, todas as ações não consistem em produzir objetos pela
transformação da matéria em função de um modelo pré-estabe-
lecido ou de uma forma prototípica. Há outras formas de pensar
a ação, outras maneiras de agir: manter (entretenir) é uma dessas
maneiras. O que significa então a manutenção, como uma ma-
neira de agir com as coisas e os seres? Qual é a extensão humana
deste tipo de atividade? (BESSE, 2013, p.25).

Besse atenta para a permanência das coisas7 no ambiente. Nós


nos inserimos num mundo onde coisas já existiam antes da
nossa chegada, quer dizer que elas foram mantidas e cuidadas
para que permanecessem existindo. Neste sentido, conforme o
autor (2013, p.28) “manter é receber, conservar, e transmitir”.
Manter e cuidar são atividades que não são exteriores ao meio
no qual se desenvolvem, “Ao contrário, ela(s) se insere(m) no
mundo, ela(s) participa(m) nele, ela(s) prolonga(m) o seu mo-
vimento”. Dessa forma Besse coloca a duração em oposição ao
ciclo do tempo, ao qual é inerente o desgaste, o desaparecimen-
to e a reposição.

6 De acordo com o antropólogo Philippe Descola (2005) o paradigma que coloca a produção
como meio de transformação do mundo pertence ao Naturalismo Moderno e não está pre-
sente nos outros sistemas de relação ontológica entre humanos e não humanos descritos pelo
autor em seu livro: Par-delà nature et culture. Paris: Gallimard, 2005.

7 Besse, nesse trecho de seu texto usa o termo objetos.

Capítulo 12

Ensaio sobre habitar 391


Yanci Ladeira Maria
Permanecer é durar, mas esta duração não é natural, pois o que
é natural, ao contrario, é o desgaste, o desaparecimento, e a re-
posição. O que é natural é o ciclo do tempo. Durar é resistir ao
desgaste. É conservar o objeto depois do uso. É manter para que
ele não desapareça. Habitar é também uma questão de manuten-
ção. Manter (maintenir) significa ter à mão (tenir à la main). Mas
também, segurar firmemente. (BESSE, 2013, p. 21).

De certa maneira o autor coloca em lados opostos o cultural, ou, o


não natural (o que é conservado e transmitido e, portanto, perma-
nece) e o natural, e não é neste contraponto que aqui se pretende
refletir sobre o habitar. Este ponto me remete ao debate, proposto
pelo filósofo italiano Rosario Assunto (2011), sobre a temporanei-
dade e a temporalidade, onde o autor reconhece o ciclo temporal
também por sua permanência, por seu tempo lento em que sempre
se re-faz, ciclicamente, oferecendo à humanidade a permanência
necessária para o reconhecimento do mundo. Enquanto a tempo-
raneidade do mundo moderno num perpétuo e veloz movimento
de destruição e construção obstrui o reconhecimento e sentimento
de pertencimento ao mundo, cada vez mais objetificado e ocupado.
Sob esta ótica, o cuidado e a manutenção necessários ao habitar se
conciliam ao ciclo do tempo.
Besse também refere-se a Tim ingold8 na distinção sobre ocu-
par e habitar como duas atitudes distintas e, neste ponto, manter e
cuidar se acordam com a temporalidade:

(...) aquela que vê o mundo como um conjunto de lugares a ocu-


par, que ele [Ingold] chama ainda de a perspectiva da constru-
ção, e aquela do habitante, “que, do interior, participa do mundo
8 Tim ingold. Une brève histoire des lignes, trad. S. Renaut, Paris, Zones sensibles, 2011, p.108.

392
em construção (en train de se faire) e que traçando um caminho de
vida, contribui para a sua tessitura e sua malha” (Ingold, 2011 p.108).
Habitar não é construir ou edificar, lembra ele a partir de Hei-
degger. É se colocar na temporalidade específica da manutenção,
ou seja, nesta espécie de conversação muda que se tece ao longo
de nossas relações cotidianas e ordinárias com o lugar onde nós
vivemos. É se colocar em um devenir do lugar, mais exatamente,
em suas linhas. (Besse, 2013, p28,29).

A partir deste ponto Besse faz uma distinção interessante entre


ocupar um lugar e se ocupar de um lugar.

Ocupar o lugar é preencher, por assim dizer, o espaço interior,


considerado como disponível, à disposição. Se ocupar de um lu-
gar, é consagrar tempo a ele, se preocupar com ele. É ser, de al-
guma forma, “parte integrante” de seus movimentos interiores e
também de suas asperezas, de suas qualidades e de seus ritmos
próprios: em outras palavras, é o arrumar (c’est le ménager).
(BESSE, 2013, p.29).

Para o autor, cultivar é o termo que melhor recobre as atividades de


manutenção relacionadas ao habitar. É possível encontrar nessa pa-
lavra e nas atividades designadas por ela a ideia do cuidado, da soli-
citude, da atenção. De acordo com Besse, cultivar é velar e preparar
a terra, é mantê-la para permitir que ela possa dar aquilo nela está
contido, para que possam se desenvolver os potenciais que ela escon-
de. E, ao mesmo tempo em que não se pode forçá-la, ela não pode ser
negligenciada. Como em uma plantação (cultivo), é preciso liberá-la
do que pode entravar o seu desenvolvimento, e, no entanto é neces-
sário deixá-la crescer por si, ao seu tempo (BESSE, 2103, p.29,30).

Capítulo 12

Ensaio sobre habitar 393


Yanci Ladeira Maria
Desta maneira, o cuidado e a manutenção ultrapassam a ideia
de conservar podendo ser relacionadas às possibilidades e ponten-
cialidades, ao fios de pontas soltas que tecem o mundo, ao devenir
e à abertura do futuro.

Habitar é cuidar deste “pode ser”, é se aplicar a este devenir, e é


saber esperar que ele cresça, que ele venha. É uma arte de ação
indireta. (BESSE, 2013, p.30)

4. Habitar é laço

Habitar acontece na relação e em relação com os lugares e os se-


res, coisas e ambientes que os compõe. Quando se diz relação, não
significa que há apenas uma única relação, são inúmeras e diversas
relações que acontecem em diferentes escalas (indivíduos, grupos,
coletivos, nações, sociedades). E os mais diferentes modos de ha-
bitar, também estão em relação, ocorrem simultaneamente em um
mesmo espaço: a Terra.
O laço entendido como aquilo que une, também pode ser cor-
tado, separando as partes. E não é sobre esta imagem de laço que
se tecem as relações entre a humanidade e a superfície terrestre e
sim na relação ecumenal – a Terra enquanto ela é habitada pela hu-
manidade e a humanidade enquanto ela habita a Terra – por mais
que sua subjetivação sobre esta a torne objeto e se fundamente na
separação.

394
referências
ASSUNTO, Rosario. A paisagem
e a estética (1973). In: SERRÃO,
Adriana Veríssimo. Filosofia da
Paisagem – Uma Antologia. Lisboa:
Centro de Filosofia Universidade
de Lisboa, 2011a, pp. 341-375.

BERQUE, Augustin. Être humains


sur la Terre. Principes d’éthique de
l’écoumène. Paris: Gallimard, 1996.

BESSE, Jean-Marc. Habiter. Um


monde à mon image. Paris :
Flammarion, 2013.

DARDEL, Eric. O Homem e a Terra.


Natureza da realidade geográfica.
São Paulo: Perspectiva, tradução
de Werther Holzer, 2015.

INGOLD, Tim. Trazendo as coisas


de volta à vida: emaranhados
criativos num mundo de materiais.
in: Horizontes Antropológicos,
Porto Alegre, ano 18, n. 37, p. 25-44,
jan./jun. 2012.

Capítulo 12

Ensaio sobre habitar


Yanci Ladeira Maria baracoa
editora
Mariana Malvezzi
Universidade de São Paulo

Psicóloga (PUC-SP, 1996), Psicanalista (CEP,


2015), Mestre em Psicologia Organiza-
cional (Universidad de Belgrano, 2003),
Doutora em Psicologia Social (PUC-SP,
2011). Pós-doutoramento em Psicologia
Sociambiental, LAPSI (IP-USP, 2017). Possui
consultório particular de psicologia e atua
também como professora no ensino supe-
rior na ESPM. Tem experiência de trabalho
internacional e em empresas nacionais na
área de psicologia atuando principalmente
com os seguintes temas: psicologia social,
identidade, cultura e sustentabilidade

CV: http://lattes.cnpq.br/0402023138863655
E-mail: mariana_malvezzi@yahoo.com
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-0297-352

397
Homem e Lugar: um ensaio do
Homem-fronteira na atualidade

Resumo: Com o objetivo de Palavras-chave: Identidade,


compreender a potencialidade Emacipação, Homem-Frontei-
da busca pela emancipação na ra, Periurbanidade
atualidade, cujo cenário vem
marcado por uma condição
de perirubanidade na qual o
estar dentro e o estar fora se
veem marcados por uma tênue
e instável fronteira, este artigo
buscou refletir sobre o conceito
de identidade e seus desdo-
bramentos na construção de
narrativas de trajetórias de vida
face a uma busca por autono-
mia e originalidade. Tal poten-
cialidade do Homem se observa
inibida e cerceada diante de um
sistema-mundo binário, cuja
organização social, marcada por
um núcleo intuitivo dogmático
impõe a todos uma condição
de negatividade psicológica e
positividade lógica. Para tanto
refletiu-se sobre o conceito de
Homem-Fronteira e seus des-
dobramentos na atualidade.

398
Man and Place: an essay by the
frontier-man today

Abstract: Adressing the un- Keywords: Identity, Emancipa-


derstanding of emancipation, tion, Frontier-man, Periurba-
and it’s potentiality search in nity
the present time, who’s scena-
rio is determined by a periruba-
nity condition in which being
inside and outside is marked by
a tenuous and unstable border,
this article sought to analyze
the concept of identity and its
advance in the construction of
life trajectory narratives in face
of autonomy and originality.
This potentiality is, as observed,
inhibited and restricted before
a binary world-system, whose
social organization, is marked
by an intuitive dogmatic nu-
cleus and imposes on everyone
a condition of psychological
negativity and logical positivi-
ty. To do so, frontier-man and
identity construction in the
present days were examined.

399
Capítulo 13

Homem e Lugar: um
ensaio do Homem-
fronteira na atualidade
Mariana Malvezzi
Universidade de São Paulo

A sociedade é uma realidade histórica em contínuo movimento, no


qual revela-se a si mesma em seu dinamismo e problemas. Guerras,
migrações, conhecimentos, tecnologias, culturas e fenômenos na-
turais produziram efeitos que, transformaram a vida tribal na atual
vida globalizada. Nessa transformação constatam-se saltos qualitati-
vos em todas as esferas da vida humana, que têm sido considerados
como desenvolvimento, assim como feitos que ameaçam a continui-
dade da própria sociedade. Desde o início da era industrial, a evolu-
ção da sociedade ganhou condições peculiares instituindo o desen-
volvimento e, ao mesmo tempo, o risco numa relação paradoxal que
ameaça a continuidade da própria sociedade. Para se produzir bens
para todos tem-se destruído muitos recursos naturais fundamentais
para o presente e o futuro. O estudo desse paradoxo é um desafio
que motiva, ao mesmo tempo em que obriga o pesquisador a se de-
bruçar sobre as condições da continuidade dos Homens no mundo.
Esse campo de reflexões tem sido denominado de sustentabilidade.
O estágio atual da evolução da sociedade expõe um momento
de transformações generalizadas, de difícil controle e com impactos

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 401


Editora Baracoa — 2019
visíveis nas condições de vida e em todas as instituições sob as quais
a própria sociedade está organizada. A compressão do tempo e do es-
paço, materializada pela disseminação das tecnologias de tele-infor-
mação e assumida como expressão da globalização tornou amplo o al-
cance dessas mudanças sobre todos os aspectos da vida das pessoas e
da sociedade. A sofisticação tecnológica, a globalização da economia,
a reinstitucionalização do trabalho, a exploração dos recursos físicos,
os novos modelos de família, a fragmentação da produção em empre-
sas redes, a dinâmica das identidades, o multiculturalismo e a bana-
lização da comunicação trouxeram benéficos e novos tipos de risco,
já generalizadamente reconhecidos e integrados às agendas diversas.
O crescimento da população, as frequentes crises econômicas e as
intervenções predatórias no ambiente, para a exploração de suas po-
tencialidades e recursos são aspectos preocupantes que já sensibili-
zam a reflexão e as ações por parte das diversas instituições e autori-
dades. Tal consciência dos riscos está manifestada nos investimentos
direcionados para a compreensão e na busca da sustentabilidade da
sociedade. Uma ilustração desta aparece na reflexão de Habermas
sobre o futuro da natureza humana ao analisar o avanço tecnológico
na área da genética e, seu avanço não correspondente na reflexão
da cultura moral e da ética (HABERMAS, 2004). Criam-se tecnologias,
que agregam benefícios e riscos, como novas condições de vida do
presente momento histórico, que gerarão impactos na sociedade do
futuro. A crescente consciência das potencialidades e riscos ao longo
dos últimos 30 anos colocou na pauta das agendas técnicas, políticas
e acadêmicas a reflexão e ações direcionadas à compreensão e viabi-
lização da sociedade auto-sustentável.
A busca da sustentabilidade, como problemática globalizada
é uma questão do século XXI, porque os riscos intrínsecos à socie-
dade atual não poderão ser controlados ou eliminados em curto

402
prazo. Ao se refletir e agir em prol da sustentabilidade, a socieda-
de está discutindo e agindo em prol de sua própria emancipação,
ou seja, de sua própria competência a viabilidade de seu futuro. É
possível sustentabilidade sem emancipação? Esta questão aparece
como problema prioritário para orientar as ações para o desenvol-
vimento da ciência, para a gestão da sociedade e para a criação da
sociedade futura (MALVEZZI, 2011).
O que seria a busca pela sustentabilidade se não a capacidade
de realização do ser humano por uma vida autenticamente humana
(JONAS, 1979), cujo movimento implica em assumir uma postura de
“não ao não-ser” para todos os Homens, de modo a proporcionar
para toda a humanidade a potencialidade de sua própria existência
enquanto tal. Desta forma, a consciência, o reconhecer a si mesmo
e ser reconhecido é imprescindível, a fim de garantir a liberdade
necessária em tamanha construção (HONNETH, 2003), tanto nas es-
feras individuais como coletivas.
Assim, atuar em termos da sustentabilidade significa dar “con-
tinuidade à existência e continuidade da reprodução das poten-
cialidades para o Homem seguir existindo” (MALVEZZI, 2011). Não
bastando, neste sentido, uma existência qualquer, mas sim “uma
existência que mantenha e reflita as condições que reproduzam a
existência inerente a constituição do Homem” [pg. 160].
Sustentabilidade, desta forma, deixa de ser uma questão am-
biental ou urbana, do lugar onde o ser humano se situa, para ser
uma questão de sua inerente condição humana e social, tornando-
-se uma dimensão de sua realização. Portanto, se a vida e a realiza-
ção humana dependem das condições do ambiente, a sustentabili-
dade pode até ser uma condição ambiental, mas cujo sentido e valor
não é independente de sua condição como recurso e instrumento
da realização do ser humano, como indivíduo e como sociedade.

Capítulo 13

Homem e Lugar: um ensaio do Homem-fronteira na atualidade 403


Mariana Malvezzi
Assim, a competência do agente torna-se imprescindível como
parte de todas as ações do Homem, a fim de garantir esta construção.
A ação sustentável, por conseguinte, não foge desta condição uma vez
que espera-se de todo agente, conhecimento sobre o que está sendo
feito por si mesmo e pelos outros. O conhecimento nesse sentido pa-
rece ser parte imprescindível deste processo. Desta forma, as ações,
por serem produtos de escolhas intrínsecas à condição eu-outro, de-
pendem também da clareza de algum ponto de chegada, das muitas
possibilidades dos personagens do Homem (CIAMPA, 1987) e do mundo.
O ser humano está em algum lugar concreto que afeta e impac-
ta a sua qualidade de vida. O Homem depende das condições e re-
cursos desse lugar. Esse lugar não lhe é dado, mas é produto de sua
ação, que constrói e destrói partes desse espaço, permitindo-lhe
explorar, ampliar, limitar, aproveitar, desperdiçar, criar ou ignorar
as potencialidades do lugar, do mundo no qual está inserido. O ser
humano, como agente, escolhe e por isso constrói ou destrói, e sua
ação enriquece ou empobrece, emancipa ou escraviza ao alterar o
lugar onde ele está. A vida humana, dependente do Homem, não
está dada, é necessário conquistá-la, buscá-la, é necessário lutar
por ela e merecê-la através de suas ações.
Essa ação humana consiste na integração das atividades das
pessoas que atuam como seres individuais e coletivos, e como to-
dos são dotados da potencialidade de agir e o local é compartilha-
do, a interação ganha valor na sua relação com o ambiente, reper-
cutindo na interdependência entre as pessoas. Assim, o agir é na
verdade, o agir com, que por sua vez é produto da subjetividade.
Esse fato coloca a psicologia e particularmente a psicologia social
como elementos obrigatórios da compreensão da sustentabilidade.
As pessoas agem a partir de negociações, de competências coleti-
vas e da formação de alianças. A força do Homem, enquanto agente

404
de mudança, está longe de ser um poder pessoal, mas um poder
construído dentro da interação eu-outro.
Dessa reflexão desponta a questão, “como atuar para fortale-
cer o empenho e a eficácia, a força do agente diante de um mundo
movido por sistemas órfãos, individualismo e fragmentação desin-
tegradora?” Questão que robustece mediante a força da tecnologia
que, por um lado integra o Homem nesse mundo, e também facilita
e descontextualiza o ganho de consciência dos riscos. Que condi-
ções deveriam nortear as negociações dos agentes? E mais, como
criar condições para que a negociação do agente com o mundo seja
pautada por uma ação verdadeiramente emancipatória?
O desafio diante destas questões emerge da própria natureza
do objeto de estudo. Pesquisar objetos complexos como susten-
tabilidade, identidade e emancipação demanda observação siste-
mática da realidade e crítica sobre os conceitos e teorias em suas
bases. Sendo objetos com fronteiras porosas, os alvos desta refle-
xão navegam com segurança no território da ciência se decorre-
rem da observação cuidadosa e sistemática, sempre mesclada com
a reflexão crítica. Por outro lado, a clareza das opções ontológico
epistemológicas se impõem como formas de verificação contínuas
sobre objetos que transcendem o olhar sobre o território e sobre o
Homem que o habita. A captura das identidades e da emancipação,
dentro desse território, implica na apreensão e transformação de
dados tendo em vista expor os elementos alienantes e ocultos da
relação do Homem com seu território, de forma a explicitar as ide-
ologias que subjazem à lógica desta relação.
Os próprios conceitos aqui referendados demandam atenção,
uma vez que não são passíveis de serem tratados de forma isola-
da. Em vista do exposto, os conceitos de sustentabilidade, eman-
cipação e identidade carecem de aprofundamento em toda a sua

Capítulo 13

Homem e Lugar: um ensaio do Homem-fronteira na atualidade 405


Mariana Malvezzi
significação e revisão em suas inter-relações. Uma vez que o Ho-
mem é indissociável de todos os elementos (visíveis e invisíveis)
que o cercam e o compõem, consequentemente a compreensão da
problemática da sustentabilidade e do possível esvaziamento das
possibilidades identitárias, como um desafio para uma ação mais
emancipatória do Homem, só poderá ocorrer se este for conside-
rado em toda sua complexidade.

Identidade e Homem-fronteira: o estar no mundo e seus


desdobramentos

A questão da identidade coloca uma categoria fundamental da


compreensão do ser social. A identidade tem sido questão aplicada
às pessoas, organizações e grupos porque sem a resposta à per-
gunta quem é você, fica difícil a articulação do eu e do outro como
interlocutores concretos. Sendo apreendida por meio de seus pre-
dicados, que são revelados pelas ações e vivências dos sujeitos, a
identidade compreende e explica, as vivências e colocações do ho-
mem e sua luta por reconhecimento, base fundamental da poten-
cialidade emancipatória de todos. Portanto a identidade expressa
as limitações das circunscrições imposta pelo sistema-mundo.
Como um dos temas centrais das ciências humanas, a com-
preensão do conceito de identidade não apresenta unanimida-
de quanto aos seus distintos predicados e processos. Erikson
(1968), na obra Identidade: juventude e crise, foi o primeiro a
empresar o termo apesar desta preocupação já ter sido sinali-
zada pelos filósofos gregos, tais como as contribuições de Ta-
les de Mileto (625a.c. aprox.), que acreditava em uma continua
transformação e consequente inter-relação de todos os elemen-
tos presentes na natureza, questão melhor problematizada por

406
Heráclito (540a.c. aprox.) que se referiu a contínua influência e
transformação de todos esses elementos.
É bastante conhecida e debatida pelas ciências humanas a
questão da identidade na atualidade. Entretanto, dada a complexi-
dade dessa questão, “quem é você?” não há unanimidade nas suas
diversas abordagens. Se reconhece hoje a identidade psicossocial e
a identidade pessoal como respostas distintas, porém igualmente
relevantes e interdependentes, tais como o interacionismo sim-
bólico da Escola de Chicago (BLUMER, 1969; SARBIN, 1968 e SCHEI-
BE, 1983). Mead (1934) foi um dos percursores dessa abordagem
ao se referir ao eu e ao mim como entes distintos. Já a teoria da
identidade (STRYKER, 1985) considera fundamentalmente o grau de
individualidade como fator chave para a atribuição da identidade
psicossocial. Goffman (1959) e Ricoeur (1990) também em suas
proposições reiteram a importância dos diálogos com o social, o
outro, para a construção do eu. Outras abordagens, como a Esco-
la de Bristol com suas Teorias da Identidade Social (TAJFEL, 1972)
e da Autotipicalidade (TURNER, 1985) reforçam significativamente
a importância da relação entre grupos e principalmente os movi-
mentos de categorização ou prototipização, uma vez que atuam
como ponto de partida e como referência para que o sujeito cons-
trua a possibilidade de diálogo e, desta forma, a própria ontologia.
Apesar das muitas perspectivas para a compreensão da identi-
dade, pode-se afirmar a existência de um aspecto a todos comum
referente ao reconhecimento que o exercício de construção da
identidade é implicado na prática do diálogo, a partir de uma expe-
riência, uma vivência, do mundo que coloca a todos como frontei-
ras do que os define como singular e o que os define como plural.
Neste sentido cada sujeito é em si o marco divisório do que lhe é
próprio e do que é compartilhado, cabendo a este sujeito traçar a

Capítulo 13

Homem e Lugar: um ensaio do Homem-fronteira na atualidade 407


Mariana Malvezzi
própria fronteira de sua identidade (sua participação na constru-
ção de si e de seu espaço no mundo). Desta forma, este sujeito, a
partir de aqui referido como Homem-fronteira, traça no decorrer
da sua vida, uma narrativa (uma viagem) cujas potencialidades de
ser estão pautadas na fronteira do “próprio movimento de fecha-
mento e abertura” que estabelece (HARTOG, 2004) [pg. 23] frente a
alteridade que se apresenta.
Ser Homem-fronteira significa, portanto, olhar e participar do
mundo com uma inquietação autêntica que permita os movimentos
de abertura e fechamento apontado por Castoriardis (1987) e de reco-
nhecimento e desconhecimento como proposto por Levinás (1993).
Abertura e fechamento, tal como sugerido acima, pode ser
entendido a partir de uma crítica às sociedade arcaicas e tradi-
cionais que impõem aos seus membros um “enclausuramento in-
formacional, cognitivo e organizacional” (CASTORIARDIS, 1987) [pg.
434], nos quais vive-se o novo, porém construído a partir da pró-
pria história, das próprias referências. Tal qualidade não permite
o questionamento das instituições e significações já estabeleci-
das e conhecidas. Desta forma, o “novo” não pode ser exatamente
como algo original, ou mesmo autônomo que tenha vindo a surgir.
Diante deste panorama, uma sociedade autônoma é aquela
que sempre põe em questão as instituições, as leis, as verdades.
Neste sentido, a autonomia fica entendida como um processo de
constante abertura frente a própria condição de existência:

“abertura ontológica, possibilidade de ultrapassar o enclausuramento


informacional, cognitivo e organizacional que caracteriza os seres au-
toconstituintes porém heterônomos. Abertura ontológica, pois ultrapas-
sar essa clausura significa alterar o “sistema” cognitivo e organizacio-
nal já existente, portanto constituir seu mundo e a si próprio segundo

408
diferentes leis, e portanto, criar um novo eidos ontológicos, um si-mes-
mo diferente em um mundo diferente”. (CASTORIARDIS, 1987, p. 434).

Este movimento de abertura, entretanto, não pode ser aleatório


uma vez que requer liberdade e reflexão, tomada por indivíduos
educados na e para a democracia. Educação neste sentido ganha
novos contornos e passa a compreender que leis e instituições são
criações humanas e, portanto, detentoras do sentido que lhes é
atribuído historicamente e não instituído por terceiros ou divin-
dades. Educação que constantemente questiona o caráter absoluto
de tudo, de forma a rever-se completamente e de forma autônoma.

“é somente a partir dessa convicção, profunda e impossível, da mortali-


dade de cada um de nós e de tudo o que fazemos, que se pode viver como
ser autônomo – e que uma sociedade autônoma se torna verdadeira-
mente possível”. (CASTORIARDIS, 1987) [pg. 442].

Voltando às reflexões acerca do Homem-fronteira (HARTOG, 2004)


como abertura e fechamento pode-se afirmar, a partir de Casto-
riardis, que a abertura é possível mediante a capacidade de autono-
mia individual e social de auto-instituir-se como capacidade livre
e reflexiva de todas as verdades, leis e instituições que julgam-se
verdadeiras. O Homem-fronteira, nestes termos estaria sempre
pronto para rever-se a si mesmo, ao outro e a rota de sua trajetória
de descobertas.
Já, no que se refere ao reconhecimento e desconhecimento,
também entendido a partir dos movimento do Homem-fronteira,
Levinás (1972) propõe que o Homem saia da postura de total indi-
vidualidade e de totalidade nos seus pensamentos, atos e valores e
se abra frente ao Outro. Deixando de ser-para-si e assumindo uma

Capítulo 13

Homem e Lugar: um ensaio do Homem-fronteira na atualidade 409


Mariana Malvezzi
nova ética de ser-para-o-outro, responsabilizando-se pelo Outro.
Neste movimento de abertura e de reconhecimento tal qual os
desígnios do Homem-fronteira, o Homem não retorna ao Eu,
ao que era antes de avançar sobre as fronteiras de si mesmo.
Isso porque, uma vez aberto para a exterioridade do Outro este
Homem sentirá desejo pelo infinito, pela grandiosidade da pró-
pria ontologia.

“a relação com Outro questiona-me, esvazia-me de mim mesmo e não


cessa de esvaziar-me, descobrindo-me possibilidades sempre novas.
Não me sabia tão rico, mas não tenho mais o direito de guardar coisa
alguma. O Desejo do Outro é um apetite ou uma generosidade? O De-
sejável não preenche meu Desejo, mas aprofunda-o, alimentando-me,
de alguma forma, de novas fomes”. (LEVINÁS, 1972) [pg. 56].

Dessa forma, Levinás propõe uma nova ética que esvazia o Homem
de “seu imperialismo e de seu egoísmo” [pg. 61], atirando-o em um
movimento de reconhecimento do Outro, capaz de “queimar de um
fogo diverso que o da necessidade que a saturação apaga, pensar além
daquilo que se pensa” [pg. 62]. Esta seria, portanto, uma condição
para emancipação nas metamorfoses da identidade.
Dando seguimento ao pensamento de Livinás, a ideia de In-
finito surge a partir do estabelecimento de uma relação Eu (Moi)
a Outro.

“a ideia do Infinito é Desejo. Ela consiste, paradoxalmente, em pensar


mais do que aquilo que é pensado e conservá-lo, assim, em seu “des-
mesuramento” em relação ao pensamento; em entrar em relação com
o inapreensível, mas garantindo-lhe seu estatuto de inapreensível”
(LEVINÁS, 1972) [pg. 62].

410
Infinito, nestes termos, seria o próprio movimento de descoberta,
de desvelar-se que o Homem-fronteira se submete quando parte
rumo ao desconhecido, a alteridade, cuja experiência em si mesma
revela a si mesmo e o Outro em uma autenticidade que permitiria
uma existência ausente de particularidades, exclusão, diferencia-
ções. Infinito, aqui desponta, como uma abertura total para o po-
tencialidade do Outro e do encontro com o Outro e como conse-
guinte, consigo mesmo.
O Homem-fronteira, dessa forma, estaria disposto (através de
uma educação que lhe garantisse tamanha liberdade e auto-institui-
ção) a, através de um movimento de abertura, refletir sobre si mes-
mo tanto a partir do questionamento das leis, verdades e instituições
(CASTORIARDIS, 1987), como a partir do Infinito (reflexão contínua e
aberta) que o estabelecimento da relação com o Outro lhe garante.
Observa-se entretanto a existência de três forças que juntas
operam como impedimentos para a racionalidade individual e cole-
tiva, no sentido de ganho de autonomia, reflexão e originalidade. São
elas: o núcleo intuitivo dogmático (HABERMAS, 1983), a positividade
lógica (CAORSI, 1994) e a negatividade psicológica (FREUD, 1921).
O núcleo intuitivo dogmático (HABERMAS, 1983),  oferecido
pela  tradição, funciona como uma base da formação socializado-
ra, tal como uma pele impossível de ser descartada. Esta condição
funcionaria como um impedimento para que os sujeitos critiquem
racionalmente suas crenças, dado que nossa subjetividade, dada a
nossa inaptidão à vida fora da sociedade e da cultura, é significada
e mediatizada socialmente (CASTORIARDIS, 1987). 
A positividade lógica (CAORSI, 1994), na sua lógica impede os su-
jeitos de reconhecerem outra coisa que não o que lhes é apresentado.
Entendendo tudo que lhes chega como algo natural. Não havendo es-
paço para uma abstração reflexiva (PIAGET,  1977) capaz de viabilizar

Capítulo 13

Homem e Lugar: um ensaio do Homem-fronteira na atualidade 411


Mariana Malvezzi
um meta abstração reflexiva sobre o mundo e si mesmo. No qual, ao
extrair as propriedade de sua ação sobre o objeto, ultrapassa o obser-
vável permitindo uma reorganização criativa sobre si e sobre o mundo. 
A negatividade psicológica  (FREUD, 1921) que  tolhe  o indivíduo
das suas potencialidades e possibilidades de reconhecimento, esbo-
ça a construção de uma frágil identidade. Ao impedir uma ação crítica
e reflexiva face o núcleo intuitivo dogmático e a positividade lógica, a
negatividade psicológica manuseia os sujeitos subjetivamente tolhen-
do qualquer possibilidade no sentido de reconhecer-se como alguém
digno de reconhecimento na sua inapreensibilidade (levinás, 1972).
Tendo em vista tais aspectos analisados, pode-se afirmar que as
discussões que tangem a questão da construção identitária na atu-
alidade fogem de uma mera questão psicossocial. Identidade é uma
questão política, social, psicológica e epistêmica. Guiada por signi-
ficantes a inclusão que se observa é perversa, uma vez que se acessa
os símbolos, porém não permite o acesso ao capital intelectual e
subjetivo necessário para a construção de um pensamento estraté-
gico. A poética se encontra inviabilizada e os homens se veem re-
duzidos a lógicas de eficiência, de entretenimento, de massificação. 

Identidade, Homem-fronteira: o espaço e o habitar na atu-


alidade

Tomando o espaço do século XXI, a intensificação e a velocidade


da evolução da sociedade reforçou a classificação binária (HARTOG,
2004) na qual operamos. A clivagem entre os que estão dentro e os
que estão fora aparece cada vez mais evidenciada no cotidiano dos
centros urbanos que,  por sua lógica de funcionamento, pelas rela-
ções que estabelecem com seus habitantes, por seu movimento cons-
tante de abertura e fechamento, de reconhecimento e de desrespeito

412
(HONETH, 2007) impõem a todos, no movimento da construção da
identidade, a partir das alteridades, um delicado limiar baseado nos
elementos simbólicos que pontuam o estar dentro ou o estar fora.
O urbano, desta forma, cuja disposição expõe os limites das
fronteiras entre o estar dentro e o estar fora para todos, aponta
para uma naturalidade, pois:

“nas relações entre seres humanos e circunstâncias histórico culturais


que condicionam sua existência e são por eles condicionadas, confi-
gurando um panorama complexo, face à amplitude planetária com
que emergem e, interagem entre si, informações, sobre a realidade a
explicar, interpretar e sobre a qual teorizar.... Seu território é o siste-
ma-mundo (sistema colonial-moderno), e sua dinâmica é a história,
plural e multireferenciada, herdeira de vários passados, comportando
leituras situadas em várias dimensões temporais convergentes em uma
arbitrária simultaneidade global” (TASSARA, ARDANS, 2008) [pg. 139].

Nessa lógica, o modelo estratificador do sistema-mundo (tas-


sara, ardans, 2008) reforça, ou melhor, está em sintonia com a
dualidade apontada na retórica da alteridade que aponta para uma
classificação binária (hartog, 2004) da relação, do reconhecimento
do eu-outro. Nestes termos, dentro do urbano e diante de uma
pauta que impera um entendimento binário (dentro-fora/ eu-outro/
bom-ruim), impõe-se situações de urbanidade e periurbanida-
de cuja natureza parece pautar a “viagem”, a busca, as descobertas
e as perguntas do Homem-fronteira. Ou seja, as situações de
urbanidade e periurbanidade apontam para a existência de um
roteiro prévio a ser seguido. Uma condição de ocupação do espaço,
do urbano e da própria história marcado por qualidades sempre
antagônicas de si e do Outro.

Capítulo 13

Homem e Lugar: um ensaio do Homem-fronteira na atualidade 413


Mariana Malvezzi
Desse modo, diferentemente do que nos aponta o personagem
Ulisses (HARTOG, 2004), a viagem a que os sujeitos de hoje pare-
cem realizar possui uma pauta previamente estipulada. Como uma
busca cuja chegada e cujo caminho já se encontra pautado. E mais,
cujo caminho não possui alternativas que não as já delimitadas
e esperadas pelo sistema-mundo, tal como, as identidades pressu-
postas (CIAMPA, 2004) que delimitam as possibilidades de ser e de
atuar no mundo. Nesta lógica, a busca a que se propõem os sujeitos
está no sentido de, diante da classificação binária, serem direcio-
nados em direção à civilização e não a barbárie (HARTOG, 2004),
aqui representada por uma situação de periurbanidade, e portanto
de periferia do sistema-mundo. Desta forma, “as dinâmicas identi-
tárias que se configuram em função de aberturas ou afastamentos em
relação a determinados campos simbólicos ou a algo que pode ser uma
invenção” (TASSARA, ARDANS, 2008) [pg 141] aparentam estar presas
ao campo simbólico do que, por exemplo, se considera desejável
ou não, limitando desta forma as possibilidades de autonomia e
originalidade dos Homens-fronteira da atualidade.
Diante deste cenário, de limitação de potencialidades, a ocupa-
ção do espaço atua no sentido de reforçar a classificação binária e a
periurbanidade uma vez que cerceia, em fronteiras do urbano a tra-
jetória de vida de seus ocupantes. Mais evidentes que as fronteiras
subjetivas impostas ao Homem-fronteira, marcadas pela positivida-
de lógica (CAORSI, 1994), pelo núcleo intuitivo dogmático (HABER-
MAS, 1983) e pela negatividade psicológica (FREUD, 1921), as frontei-
ras do urbano marcam seus ocupantes física e subjetivamente, nas
suas experiências cotidianas. As possibilidades de ser sobre a terra,
do habitar propriamente dito perdem seu caráter de autenticidade,
sua potencialidade de uma autentica e original construção.

414
“O jeito que você é e eu sou, o caminho de acordo com o qual somos ho-
mens na Terra, é o Buan, o habitante. A velha palavra dizia que o ho-
mem é tudo o que habita; mas esta palavra significa ao mesmo tempo:
cuidar e cultivar (...) Ambas as formas de construir - construir como
cultivar, colere em latim, cultura, e construir como construir edifícios,
construções, aedificare - estão contidas em uma construção autentica,
em habitar” (HEIDEGGER, 1954) [pg. 152] 

Desta forma, tal como estão estruturados os elementos atuais do


sistema-mundo, suas instituições, suas verdades e seus espaços
sociais que demarcam os estar dentro e o estar fora, as possibili-
dades de reconhecimento e de emancipação do Homem-Fronteira
se encontram inviabilizadas. Não apenas como uma possibilidade
de ação, mas em um estágio anterior, como um ofuscamento que
impossibilita sequer que seja reconhecido que se está diante de
uma situação de tolhimento e  manuseio das instituições, das
verdades e do habitar dos sujeitos. Diante da impossibilidade da
criação de espaços de ser-no-mundo que permitam a perpetua-
ção de suas possibilidades de autenticidade e originalidade, os
atuais Homens-Fronteiras se veem impedidos de se verem guar-
dados, cuidados e “protegidos em sua essência” (HEIDEGGER, 1954)
[pg. 161] .
Sempre em trânsito, o desafio do Homem-Fronteira está no
ganho de consciência do próprio movimento, de abertura e fecha-
mento, de reconhecimento e desconhecimento, de construção e
do habitar a que se submete dentro de seu estar-no-mundo.

Capítulo 13

Homem e Lugar: um ensaio do Homem-fronteira na atualidade 415


Mariana Malvezzi
referências
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Capítulo 13

Homem e Lugar: um ensaio do Homem-fronteira na atualidade


Mariana Malvezzi baracoa
editora
Marcello Giovanni Tassara
Universidade de São Paulo

Graduado em física (IFUSP), publicitário


(ESPMSP) e Doutor em Artes (ECAUSP);
professor co-fundador do Curso de
Cinema e do primeiro laboratório de
mídias digitais na ECAUSP; introdutor
dos estudos universitários de Cinema de
Animação no Brasil; professor visitante e
condutor de pesquisas na França, Itália,
Espanha, México e Reino Unido; realiza-
dor de cerca de 70 filmes; vencedor de
prêmios no Brasil e no exterior.

CV: http://lattes.cnpq.br/3530871747168028
E-mail: mgtassara@uol.com.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0001-6671-7969

419
420
Capítulo 14

Cidade do branco adeus


opulentia populorum
Marcello Giovanni Tassara
Universidade de São Paulo

A maior parte da civilização é baseada na covardia.


Frank Herbert (Duna)

- Exon!… Exon!… Você ‘tá aí, não ‘tá?…

A doce voz feminina suplicava.

- Exon… Onde você ‘tá, hem? Onde?… Responde, pô!…

A mulher dobrou a esquina da rua deserta. Desviava, com relutân-


cias de graça, os pés descalços das pedras soltas e machucantes do

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 421


Editora Baracoa — 2019
chão. No rosto, beleza quase selvagem. Cabelos escuros, sem pen-
teado, derramados até a cintura. Roupa rasgada mostrando corpo
magro. Seios nus, só cobertos por um colar jeitoso, feito de relógios
de pulso enferrujados: rescaldo de vaidade. Tempo ao seu redor
parado.


Cidade velha e grande. Ermo inteiro de cimento branco. De poeiras


brancas. Cidade abandonada, deixada feito herança desdenhosa para
os despossuídos: aqueles que ficaram para trás na grande marcha que
aconteceu. Sobras-sombras das hordas desfiguradas pela fome e pelo
medo. Cidade velha e grande, onde a sobrevivência é maldição.


Ela se deteve diante de um prédio alto. Mãos em concha, gritou


com seus pulmões pequenos.

- Exxxo-o-o-o-o-o-o-on!… Você ‘tá aí em cima?…

Uma vidraça quebrada caiu do lado de dentro, respondendo. De-


pois, o eco. Depois, nada. Continuou caminhando. Destroços, as-
falto rachado. Valetas abertas, mostrando as entranhas da cidade
morta. Lençol de pó branco, tal mortalha, cobrindo vergonhas que
a História esquecida esquece.
Cansada, ela sentou-se no banco de um automóvel sem rodas nem
portas, todo também coberto. Descanso que era desesperança. De-

422
pois continuou a caminhar, chamando. Voz fraca de dar dó. Altivez
impedindo lágrimas.

- Exon! Onde é que você se meteu?! Exo-on!…


Pó eficaz e poderoso, exterminador do perigo e do futuro. Desin-


fetou a cidade e acabou com a epidemia imensa que se espalhou
pelo mundo. Acabou com os doentes incuráveis que cairam feito
moscas… Inseticida de gente. Nem ervas daninhas havia mais por
lá. Poucos alguns despossuídos, os mais fortes, só entonteceram
com a violência do desinfetador, mas não lograram fugir - prisio-
neiros da cidade esbranquiçada. E o resto do mundo a refazer-se
novo. Ou continuando velho. Em outros lugares. Triste. Molhado
de lágrimas. Algumas doídas, outras fingidas. E vieram as patru-
lhas de resgate para recolher sobreviventes: pequeno remorso da
grande civilização.


Sol indo embora. Pânico em começo. A mulher alcançou uma rua


de casas baixas e viu uma sombra alongada que parecia chicoteá-
-las feito algoz: primeiro indício de alma alguma. Brilho em seus
olhos bonitos.

- É você, Exon safado?!… Me espera!… Sou eu!… Sou eu, me espe-


ra-a-a-a-a!!!…

Capítulo 14

Cidade do branco adeus 423


opulentia populorum
Marcello Giovanni Tassara
Correu aflita. Alcançou o homem de trajes remendados, magro
como ela, barbas como as de um Cristo. Embornal nos ombros,
mostrando contrariedade.

- Gessy… pô! Tantas quantas vezes já não te disse que é p’ra não vir
atrás de mim quando ‘tô fazendo compras?…
- É o garoto… é o garoto… que pegou a febre da poeira branca! Nós
fazer o quê?…

Exon parou. Seus olhos também pararam, sem nada enxergar ao


redor. Viraram puro enfezamento e indignação. Esmurrou o vento
como doido. Em silêncio. Parou. Esmurrou de novo. Parou. Con-
tinuou esmurrando. Quietou longamente da doideira e sentou-se,
ofegante, sobre uma banca de jornais tombada. Aí, respondeu com
toda decisão.

- Já sei! Vamos comprar remédio!

Entraram em uma farmácia em ruínas. Quatro mãos aflitas reme-


xendo as drogas apodrecidas nas gavetas. Descobriram um frasco,
metade cheio com um líquido espesso-escuro dentro de uma em-
balagem toda escrita.

- Gessy, este remédio é maneiro. Deve servir. Vamos comprar!

- ‘Tá bom!… Então, paga e vamos s’embora!…

O homem tirou um livro - um Bradbury - de dentro do embornal,


arrancou uma folha e depositou-a sobre um balcão empoeirado.
Ele não sabia ler, mas sabia que lá ficava o caixa porque, acima,

424
havia uma cruz meio deitada entre poucas outras letras: o “X” da
palavra. Sairam levando o frasco e caminharam apressados dentro
do fim da tarde. Foi quando, um tanto meio no afastamento, viram
a imagem esguia de uma garota riscando as terras brancas com um
cajado pontudo. Feito uma Anchieta pequena das areias secas.

- Exon, olha!… É Xeroquinha! O que é que ela ‘tá fazendo, tão longe
lá de casa?

- Sempre repetindo o mesmo rabisco no chão… Tantas vezes que já


não tem mais número p’ra contar.

- Vamos levar ela p’ra casa com a gente…

Gessy já ia correndo para chamar Xeroquinha, mas Exon deteve-a


bruscamente pelo braço.

- ‘Tá louca, Gessy! Vem cá! Vem cá! Vamos é s’esconder depressa!

Gessy ficou primeiro zangada depois assustada.

- Por quê??…

- Você não escuta, não? ‘Tá surda? É um ovo-de-anjo que ‘tá vindo
p’ra cá e já vai chegar!

Devagar, um ronco distante crescia, ferindo o silêncio que se pre-


parava para dormir com a noite.

- Gessy… depressa… vem… ele ‘tá quase aqui!

Capítulo 14

Cidade do branco adeus 425


opulentia populorum
Marcello Giovanni Tassara
Refugiaram-se no andar térreo de um edifício em quase destruição,
de onde tudo viam sem serem vistos.

- Exon… ‘Tô com medo!

- Cala a boca, mulher! É só não fazer barulho. Fica só quieta-escon-


dida, escutando-olhando.

O ovo-de-anjo era um veículo aéreo muito azul-prateado. Desceu


do céu, perto de Xeroquinha que nem ligou. Ela continuava a es-
crever seu poema comprido de uma letra só: era o “X”, o mesmo
do caixa da farmácia e de seu nome, escrito eternamente. Eterna
multiplicação sem juízo.
Uma abertura se abriu no ovo, era como casca quebrar. Dentro ha-
via dois seres (quem quiser que acrescente: humanos): uma fêmea
e um macho, enfiados em roupa azul atransparentada e muito es-
tirada. Sairam a andar, lentos, na direção da garota. Gessy repetiu.

- O medo meu é muito!…

- Você é boba. E vê se fica quieta, senão nós também vamos juntos…


O velho disse p’ra mim que quando os anjos-feios pegam alguém
não tem jeito! Eles levam mesmo… Vão levar Xeroquinha lá p’ra
terra deles… A Terra Feia.

Uma lágrima quebrou a altivez de Gessy. Ela procurou os ombros


contraídos de Exon que, diante da mágoa da companheira, reagiu
levantando os punhos na direção dos anjos.

- Qualquer dia eu vou lá e enfrento eles na porrada!

426
- Faz isso não! Por favor! Promete! Se o velho disse que não tem
jeito, não tem jeito!… Eles levam você… e aí como fico eu?

E os anjos-feios levaram Xeroquinha.


O resto da caminhada foi na calada e na claridão pouca. Somente a


Lua recortava suas figuras esguias. Exon movia-se por escombros e
poeiras com a agilidade das ratazanas que sobreviviam aqui e acolá.
Ela, mão dada, seguia-o como podia.

- Falta muito? ‘Tô cansada!…

- Você quis vir atrás de mim, agora ‘guenta!

Finalmente, uns luzires distantes. Meia-dúzia, não mais ou menos


mais. Tênues como as estrelas.

- Olha lá, Gessy, a Universidade… Já ‘tamos chegando!

Pés devorando os passos. Cruzaram as hortas cultivadas rustica-


mente e alcançaram a comunidade. Phililcus já esperava na porta.

- Vamos logo! Hilton-Pequeno não ‘tá muito bem, não… Helenarru-


binstâim toma conta dele!

Entraram apressados, ansiosos, tensos. Atravessaram a antiga Sala


da Congregação, onde um grupo de pessoas assistia tevê. Mas era
sem cor e sem imagem sequer. Sem eletricidade. Era hora de assistir
e ninguém contestava o costume que já andava com grande tempo.

Capítulo 14

Cidade do branco adeus 427


opulentia populorum
Marcello Giovanni Tassara
Os três achegaram-se onde estava o garoto. Um semáforo quebrado,
feito candeeiro, iluminava aquilo que fora sala de aulas ou, quem
sabe, gabinete de um reitor qualquer, distante em uma delonga qual-
quer. Helenarrubinstâim, a anciã meio-orate, sentada no sidecar de
uma moto quebrada e, de costas para o menino, penteava desajeita-
damente os longos cabelos brancos como a cidade. Velhos como o
mundo. Ele, deitado, sono-não-sono, gotas na testa refratando a luz
que era muito esquálida.

- ‘Tô com frio.

Helenarrubinstâim, sem interromper seu trato, sem virar-se, sem


mudar de cara.

- Não compreendo… Tão coberto…

Gessy apressou-se ao menino. Acariciou-o com as mãos quentes


de amor. Amor impotente, mas que sempre teima em ser, simples-
mente ser, mesmo quando isso já é tudo o que pode ser.

Acabou a hora da tevê e os outros foram também chegando para


ver o garoto. Presépio ao contrário. Phililcus falou.

- Exon comprou remédio… Vai chamar velho Grandefed p’ra dar


conselho. Só ele sabe ler.

E Phililcus saiu junto.


Grandefed era velho tanto. Também cabeça branca como a cidade.

428
Esfarrapado. Morava sozinho no que restava da biblioteca, tinha
muito papel e por isso era muito rico. Seus livros guardavam coi-
sas lá dos idos passados… e tinha um que ensinava uma urdidura
escrita hegemonia, sem sentido mais nenhum naquele mundo cheio
de desmemórias. Grandefed enraiveceu ao saber da doença de Hil-
ton-Pequeno.

- Febre, hem?!… É este lugar infernal!… Eu estou farto de dizer que


este lugar é amaldiçoado! Ah!…Mas vocês não me ouvem, insistem
em ficar aqui… Estão todos loucos! Todos imbecís!…

Phililcus falou.

- Mas… Grandefed… é este, só, o sítio que tem terra p’ra plantar… Se
a gente sair daqui… viver do quê?!

O velho lembrou-se dos livros que não podia carregar consigo e


com os quais comprava seu alimento sem trabalhar. Uma folha de
Shakespeare por uma folha de alface, uma folha de Einstein por
uma roda de tomate. Ponderou. Mudou de assunto.

- Pega minha bengala! Depressa!… Vamos ver Hilton-Pequeno!

As mulheres fizeram reverência quando Grandefed entrou. O me-


nino, tristonho, brincava com uma gaiola de vidro onde umas ba-
ratas se agitavam. Estranhos insetos que tudo suportam. Bichos
obstinados, mais do que os homens do planeta desditoso.

- Vem, vem… Sheltoxina! Corre, NeoCidinha!…


Elizabethardente foi quem interrompeu com muito jeito o pasmo das

Capítulo 14

Cidade do branco adeus 429


opulentia populorum
Marcello Giovanni Tassara
pessoas, ao verem o garoto adormecer e soltar a caixa no chão.

- Psssss…

Alguém falou baixo.

- Grandefed… Exon comprou remédio…

- Remédio?!!… Deixa eu ver… Idiotas! Essa droga tem mais de ses-


senta anos!… O que é que pretendem?? Dar pressa ao anjo negro?!…

Intuição é quase certeza. Certeza é dor profunda. As palavras do


velho amarraram um nó apertado no coração de Gessy. Exon em-
pertigou-se.

- Dar pressa?!… O quê?!… Como?!…

Grandefed puxou-o para fora da sala, para um canto, e falou a meia voz.

- Quer saber?! Quer saber?! Que ele não dura!… Nem dura nenhum
de nós! A febre veio para acabar com todos! Não se lembra Cloaca-
cola, mês passado? E o Zé Fuska, faz dois meses?…

Benettão apareceu.

- Hilton-Pequeno acordou e quer falar com Grandefed.

O ancião abeirou-se. O jovem doente, de olhos fechados como os de


um sábio que se recusa a olhar as chagas do mundo. Só pensando.
- Grandefed… você ‘tá aí?

430
- Descansa.

- Me conta uma história.

- Conto.

- Grandefed… Como era a cidade quando você era que nem eu pe-
queno e tinha muita barata p’ra brincar?…

Grandefed suspirou fundo. Suspiro cavernoso, tremido. Olhou para


o que estava dentro do passado, muito dentro dos relógios de Gessy.

- Antes, tinha gente na cidade… muita gente… As noites eram claras


que nem o dia. Tinha vidros cheios de luz de todas as cores…

- Como se… pedaços do sol enfiados dentro do vidro? E podia ser


coisa assim?…

- Pois era. E tinha automóveis que andavam pelas ruas, carregando


aqueles povos todos.

- Feito ovo-de-anjo, Grandefed?

- Sim… só que não arrastavam ninguém para longe; não levavam as


pessoas. Dava para entrar e sair sem impedimento; para ir de um
lugar para outro. E havia luz na televisão, também. Era como caixo-
te cheio de mágica… bonito como brinquedo prometido para crian-
ça comportada. Todo mundo trabalhava muito para comprar uma…
Sempre de olhos fechados, Hilton-Pequeno tudo ia vendo. Lem-
brança de velho misturada com fantasia de menino.

Capítulo 14

Cidade do branco adeus 431


opulentia populorum
Marcello Giovanni Tassara
- E tinha também o sabonete, a máquina fotográfica, o durex, a pas-
ta-de-dente e o cinema… que era uma televisão bem grande que só
funcionava no escuro e que tinha que pagar para ver…

Foi Phililcus quem perguntou.

- Por que é que os povos foram s’embora?

- Começou, eu mal tinha nascido, há muito tempo atrás, quando as


pessoas ousaram duvidar de Deus…

Todos os presentes fizeram um espécie de sinal da cruz atabalho-


ado e murmuraram uma oração curta. Fez-se pausa e Grandefed
prosseguiu, meio alterado.

- A coisa foi acontecendo… acontecendo… Ah!… Mas eu sei muito


bem!… Tudo começou mesmo, foi por causa da Ciência!

Dois perguntaram em coro.

- Ciência? O que é isso?

No rosto do velho estampou-se o ódio.

- Coisa ruim, ruim! Quem roubou foi Eva, mais Adão. Depois, a co-
bra fez ninho na Universidade e foi crescendo… crescendo… e en-
venenou a alma de suas pessoas. E elas aprenderam coisas que não
era para se aprender e as venderam aos demônios… e os demônios
usaram os segredos de Deus para seduzir as gentes da cidade. No

432
começo, ninguém desconfiou, pensando que Ciência era só fazer
automóvel andar, luz dentro dos vidros se acender, televisão fun-
cionar mostrando coisas… Mas a Ciência era poderosa… perigo do
mundo… Pior que qualquer folha maldita ou qualquer pó branco…

Ao som da reza repetida, a imaginação febril do garoto explodia:


automóveis, televisão, luzes coloridas, sabonetes…

Sempre enfurecido, Grandefed continuou.

- … e o cuidado era de se inventar palavras de uso inventado. E ha-


via quem mandava as gentes sujarem a cidade com as coisas feias-
-malfeitas e sem uso proveitoso que construiam, e depois diziam:
POLUIÇÃO!

Coro de indignação.

- Eles ficavam só olhando enquanto toda a gente ficava louca por


causa dos enganos-ilusões… e diziam: NEUROSE!

Coro de indignação.

- E havia quem dava aos cientistas páginas e páginas de livros


verdes como a intolerância para que eles criassem máquinas fe-
rozes; provocavam vingança nas almas desventurosas e diziam:
TERRORISMO!

Coro de indignação.

- E… depois?

Capítulo 14

Cidade do branco adeus 433


opulentia populorum
Marcello Giovanni Tassara
- Depois, veio a grande epidemia e as pessoas foram partindo…
Também, porque já não mais valor havia em ficar. Aqui, o papel
perdera quase toda sua voz. E as multidões foram levadas por
grandes ovos-de-anjo para uma terra distante… onde ninguém
compra nem vende.

Hilton-Pequeno sentou-se na cama em sobressalto.

- E como é que faz, então?… Pegam as coisas que querem… sem dar
papel em troca?!… Pecado, Grandefed!…

- Pois é. Pecado.

- Então, nós é que somos gente certa, que paga tudo certo, n’é mesmo?

O garoto parecia até melhor. Ainda perguntou.

- E por que é que ficaram só as nossas pessoas na Cidade Branca?

- Porque… bem… é que a Ciência foi ficando longe… longe de nós,


e nós fomos voltando para Deus… ao lado de quem todos vamos
estar, muito logo.

Um demorado coro repetiu Amém várias vezes. Améns que Deus


jamais ouviu. Entre Ele e aquelas almas, estava a cidade que
matava, mesmo depois de morta; que matava a vida e qualquer
eco seu recalcitrante… Em seguida, sobreveio um silêncio que
Elizabethardente cortou.

- Hilton adormeceu de novo. ‘Tá tranquilo.

434
Fez-se nova quietude ao redor. Aí, foi o velho quem falou.

- O menino agora está buscando a paz. Ele descansa e amanhã vai


ter a paz. É melhor a gente descansar também.

A comunidade calou-se. Noite profunda. O ruído de um ovo-de-


-anjo cresceu devagar. Passou. Escondendo os últimos gemidos de
Hilton-Pequeno para que Gessy não os guardasse.

Muitos dias passaram. Páginas como as de um livro em branco,


porque nada havia para nele se escrever. Noite dessas, Exon acor-
dou suavemente a companheira.

- Gessy!… Chega p’ra cá!…

- Não quero, não!

- Não quer?! Tem que querer!… Você é minha mulher!

- Não quero e pronto! Nunca mais!


- Mas, por quê? Por que, hem?! Responde!…

- Não quero perigar criança… Nunca mais! P’ra quê? Ninguém esca-
pa mesmo da febre do pó!…

Gessy já chorava, Exon zangado. Gessy soluçou mais, e discuti-


ram mais. Almas amigas em breve desmaio. Tanto se mexeram e
remexeram que seus corpos recurvados e seus panos, tudo ilu-
minado pela Lua rasante, desenharam uma galáxia pálida ao re-
lento. Duas pessoas tão pequenas e frágeis, tão cheias de riqueza

Capítulo 14

Cidade do branco adeus 435


opulentia populorum
Marcello Giovanni Tassara
como a Via Láctea. Miséria e grande mistério, grande tamanho,
tudo se atrapalhando na contradição.

Exon estava inquieto porque tinha o que confessar.

- Sabe… Gessy… ontem… conversei com os anjos!…

Ela arregalou os olhos. Pena que estava escuro e ninguém viu seu
espanto lindo.

- Você fez o quê??!!… Teve coragem?!… Como é que não te leva-


ram?…

- Resisti e eles disseram que eu só ia se queria. Eu disse que não


queria e aí eles ficaram só conversando. Falaram que Grandefed
mentiu quando disse da Ciência. Contaram que na Terra Feia é
tudo bonito…

- E… e depois?

- Depois, eles foram s’embora. Entraram no ovo-de-anjo que desli-


zou no céu… brilhando muito brilhoso.

Gessy acariciou o companheiro e molhou-o com seu pranto mudo.


Exon continuou a falar, olhando para o infinito negro e invisível, com
tantas galáxias escondidas, algumas cheias de gentes… talvez.

- Gessy… Estive pensando… Vamos p’ra lá?


- P’ra lá, onde, homem? Lá p’ra cima? Como?

436
- Não, não!… P’ra Terra Feia-Bonita, procurar remédio… alguma Ci-
ência poderosa que faça Hilton viver de novo…

Amor retorcido e sem sentido. Gasto. Dor no peito que é consci-


ência do inútil e do impossível. Última lágrima dos olhos de Gessy,
caindo em seus relógios, enferrujando mais. Tempo cada vez mais
parado.

Outras páginas do livro sem escrita. Primeiro, a febre branca visi-


tou mais a comunidade; o anjo negro visitou depois. Começou, foi
Helenarrubinstâim. Semana passada, foi Phililcus quem não resis-
tiu. Outro dia, Kodalita, Sony-hô e Nestélia. Cityzinha, Benettão e
Elizabethardente não demoraram. Fordebigode e o respeitável Ge-
neral Mórtor levados pelos anjos-feios. Aos poucos, foi a vez dos
vinte e tantos demais partirem. Quem sobrou foi Exon, mais Gessy,
mais Grandefed. Mais ninguém.

- Chega, Grandefed! Nós vamos s’embora! Não aguento mais


isto aqui.

- Doido! Onde pensa que vão poder chegar? Me diga, hem?…

- Na Terra Feia, feia-bonita! Se a gente não encontrar ovo nenhum


por aí, vai a pé mesmo!
Velho Grandefed até deu risada.

Capítulo 14

Cidade do branco adeus 437


opulentia populorum
Marcello Giovanni Tassara
- Ha!… ha!… Vocês estão completamente dementes!… Não vão sair
daqui, não! Não vão nem alcançar os confins da cidade!

- Não quero ouvir! Estou cansado de mentira! Conversei com eles


e eles disseram o que é Ciência. E disseram que dá p’ra viver em
muita paz com ela… quem quiser assim! Você disse errado e não
merece mais respeito, nem esse Deus que você vive falando!… Nós
vamos p’ra lá. ‘Tá decidido!

Gessy arrumava as coisas. Estava quase pronta.

- Não… não… Não façam isso!… Não me deixem sozinho!… Gessy…


Gessy… me ouça! A Terra Feia é a terra do pecado!… Do pecado,
está ouvindo?!…

Ela parou um instante, olhou para Grandefed com muita dó. Em


seguida, para Exon. Silenciosa, avizinhou-se do companheiro e co-
meçaram a mover-se. Grandefed, tresloucado, procurou detê-los,
agarrando o homem pelo braço. Exon livrou-se dele com gesto
brusco de sua força forte. E o velho quase foi ao chão. Foram indo.
Grandefed ficou branindo a bengala, como espada de arcanjo na
porta do paraíso. Só que chamando, ao invés de expulsar.

- Voltem!… Voltem para casa!…

Enfureceu-se tanto. Pegou uma pedra que atirou com toda sua
força fraca. A pedra rolou metro e meio adiante, quase carregando-o
junto. Cambaleou. Ficou esbravejando feito trovão enquanto Exon
e Gessy se faziam manchas diminutas no horizonte. Grandefed to-
cou a fronte com a mão trêmula: estava fria e suada como a fronte

438
de Hilton na última noite. Bengala caiu-lhe ao chão. Ninguém para
pegá-la. Ao tentar, caiu também. Cidade se esfarelando, tudo que
ainda não era branco, virando branco. Corpo inerte confundindo-
-se com as ruínas. Saliva de sua boca exangue misturando-se ao pó.
Em resmungo baixo febril, ainda murmurou (só Deus ouviu).

- Cidade maldita!

Sucumbiu.

A poucos passos do limite que separava a Cidade Branca do resto


do mundo, Gessy desfaleceu e não mais se levantou. Ficou ele a
soluçar, debruçado sobre seu corpo quente. Exon nunca chegou à
Terra Feia-Bonita.

Capítulo 14

Cidade do branco adeus


opulentia populorum baracoa
editora

Marcello Giovanni Tassara


Parte 2

441
Paulo Rodrigo Unzer Falcade
Universidade de São Paulo

Doutor em Psicologia Social pela


Universidade de São Paulo (USP).
Graduação em Psicologia pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie
(2009), Mestrado em Psicologia
Social pela Universidade de São Paulo
(2014). Professor convidado do Núcleo
Brasileiro de Pesquisas Psicanalíticas
(nPP), Membro do Grupos de Pesquisa
Mitopoética da Cidade e do Lapsi/IPUSP.

CV: http://lattes.cnpq.
br/9579157562000547
E-mAIl: paulounzer@gmail.com
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-2980-5430

443
Considerações sobre a
Psicologia Social

resumo: O presente artigo


busca tecer considerações
acerca do estado atual da
Psicologia Social a partir de
uma breve reconstituição
histórica da formação do seu
objeto de interesse específico,
a interação social. Busca-
se apontar e compreender
impasses atuais que a
disciplina atravessa devido a
compreensões equivocadas
de pontos específicos de Kurt
Lewin, um de seus teóricos
fundadores.

palavras-chave: história da
psicologia, psicologia social,
interação social.

444
Considerations on Social
Psychology

abstract: The present article


make considerations about
the actual state of Social
Psychology. Start with a brief
historical reconstitution of the
formation of his specific object,
the social interaction. There
is an attempt to understand
a current impasses that the
discipline goes through due to
misunderstandings of specific
points from its founding
theorists like Kurt Lewin.

keywords: history of
psychology, social
psychology, social
interaction.

445
Capítulo 15

Considerações sobre a
Psicologia Social
Paulo Rodrigo Unzer Falcade
Universidade de São Paulo

1. Breve panorama histórico da Psicologia Social

Adverte-nos Helmuth Krüger acerca da Psicologia Social:

É longa a história da Psicologia Social, desde que sejam acolhidas


como válidas todas as conjecturas e doutrinas a respeito da
natureza social do Homem; mas o percurso temporal dessa dis-
ciplina será muito breve se houver a restrição de só serem consi-
deradas as contribuições que hajam passado pelo crivo da meto-
dologia científica (Krüger, 1986, pp 14-15

É bastante comum encontrar em manuais de Psicologia uma


caracterização da Psicologia Social como uma especialidade
da Psicologia interessada particularmente na conduta humana
em situação de influência. Isso é, o objeto de estudo da
Psicologia Social seria o homem enquanto ser social, ou seja,
o exame de nossa conduta a partir da influência dos outros.
O nome que se convencionou dar a esse objeto é interação so-
cial. Assim, o objeto da Psicologia Social seria o fenômeno da
interação social.

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 447


Editora Baracoa — 2019
Mas isso não foi sempre assim. Há uma forma mais ou me-
nos habitual de se construir a evolução da Psicologia Social. Tal
forma, a despeito da advertência de Helmuth Krüger, estabelece
como marco zero o momento em que se pode implementar méto-
dos, técnicas e pressupostos da ciência moderna para a construção
conceitual específica. Dois nomes surgem de saída: W. McDougall
(1871-1938) e E.A. Ross (1866-1951). Ambos formam a primeira ge-
ração de Psicólogos Sociais. William McDougall fez seu nome ao
articular a ação humana (individual e coletiva) com os domínios
da biologia. Sua teoria é uma tentativa de explicar a ação humana a
partir de instintos ou impulsos finalistas. McDougall entendia que
a ação humana é, sem exceção, expressão de instintos inatos. Por
seu turno, E.A. Ross, também se interessa pela ação humana (indi-
vidual e coletiva) mas estreita laços com os domínios sociológicos,
apontando para a importância da imitação e da sugestão para o
objetivo assumido.
Contudo, não é por acaso que se considera ter sido na década
de 30 do século XX que a Psicologia Social Moderna foi efetiva-
mente inaugurada. Para muitos, o responsável pela inauguração foi
Kurt Lewin. Criador da Teoria de Campo, Lewin foi quem propôs
ser nosso comportamento um reflexo da cognição que temos da
realidade em que nos situamos (Krüger, 1986, pp. 11-12). O lega-
do de Lewin é importante. Destacadamente quando pensamos na
aplicação de uma metodologia de cunho científico à Psicologia So-
cial. Afinal, Lewin foi um pioneiro na aplicação do método expe-
rimental ao estudo de grupos sociais humanos. O resultado foi a
estruturação de uma área de pesquisas, teorizações e aplicações
práticas. Na época, a Psicologia ganhava corpo e status científico
com a abordagem behaviorista ao promover o comportamento a
objeto de interesse específico. Poderia definir-se enquanto ciência

448
do comportamento. Isso porque o comportamento, diferente da
mente e seus mecanismos, poderia ser objeto de observação, men-
suração, experimentação, ou seja, correspondia perfeitamente à
expectativa de cientificidade em voga à época.
A Psicologia Social, enquanto subárea da Psicologia, surge com
a ênfase dada por Kurt Lewin na interação. Lewin representou uma
inovação à abordagem behaviorista, dominante da época. Propôs a
investigação psicológica delimitando o fenômeno da interação en-
tre indivíduo e ambiente. Enquanto os behavioristas estavam sobre-
maneira interessados em demonstrar o ambiente como único fator
incidente no comportamento, Lewin destacava que o indivíduo
também deveria ser considerado.
Com a Teoria de Campo Lewin desenvolveu um modelo te-
órico que se converteu em poderoso instrumento de transforma-
ção individual e grupal. Tal instrumento orienta-nos a considerar
a totalidade da situação, incluindo os detalhes pessoais e ambien-
tais relevantes.
Aqui, chamo a atenção para o ponto de separação do modelo
teórico de Lewin para com o behaviorismo de Watson. O “campo”
da teoria de Lewin supunha a existência de duas forças opostas
em qualquer dinâmica social em que indivíduos ou grupos este-
jam: uma força de atração que direciona aos objetivos e uma for-
ça de repulsão que inibe o movimento aos mesmos. A Teoria de
Campo considerava indivíduo e ambiente enquanto um sistema
social. Lewin é, por muitos considerado, o pai da Psicologia Social
por ter conseguido desenvolver um modelo cientificamente válido
e, ao mesmo tempo, eficaz no âmbito das transformações sociais
pretendidas. Ao sair do antagonismo inerente a discussão nature/
nurture, considerando os aspectos individuais e ambientais como
formadores de um sistema social passível de ser entendido e modi-

Capítulo 15

Considerações sobre a Psicologia Social 449


Paulo Rodrigo Unzer Falcade
ficado, Lewin abriu as portas para uma área de pesquisa e atuação
que floresceu e se desenvolveu na geração seguinte. O enfoque na
interação social ganhou a dignidade de um objeto e serviu para a
Psicologia Social se desenvolver.
É importante dizer que a geração seguinte já vivia em um
mundo pós-Segunda Guerra Mundial. Isso significa que algumas
preocupações se sobrepunham à outras. Entender as engrena-
gens de acontecimentos catastróficos como Auschwitz passou
a ser um verdadeiro lema das Ciências Humanas e Sociais que
passaram a ter considerável influência do campo da filosofia que
se interessava sobremaneira por temas sociais e psicológicos. A
Psicologia Social pensada a partir do trabalho de Kurt Lewin tinha
suas contribuições específicas a dar. A ênfase dada pelos primei-
ros behavioristas ao ambiente em detrimentos aos aspectos in-
dividuais da ação humana determinou a necessidade dessa linha
da Psicologia rever algumas de suas premissas. Afinal, a desconsi-
deração do indivíduo impactaria na questão da responsabilidade
moral dos atos cometidos.
No campo da Psicologia Social, o legado de Kurt Lewin desdo-
brara-se em pesquisas que se focavam no fenômeno da interação,
isso é, no campo estabelecido entre forças individuais e ambientais
na formação da ação humana, individual e coletiva. Nomes como
os de Salomon Asch e Erving Goffman ganharam notoriedade pela
qualidade de seus trabalhos por volta da década de 50 do século
passado. Salomon Asch fez seu nome ao demonstrar experimental-
mente o modo como a conformidade e a obediência às normas es-
tabelecidas se estabelecem. Erving Goffman também se debruçou
na interação social e demonstrou o quanto nossa conduta é efeito
de expectativas – não necessariamente conscientes – de manipular
a maneira como o(s) outro(s) nos enxergam.

450
Ainda na rabeira da Segunda Guerra Mundial, aparecem os
famosos trabalhos de Stanley Milgram e Phillip Zimbardo que de-
monstravam, também de modo experimental, a capacidade que te-
mos de ignorar nossos valores morais em prol da obediência a algu-
ma autoridade instituída por uma situação específica. Tratando-se
de valores – isso é, de questões morais – as décadas de 60 e 70 foram
emblemáticas. Os principais centros urbanos do Ocidente entraram
em um movimento de diversos questionamentos ao establishment.
Questionamentos que iam em direção às normas, hábitos e costu-
mes vigentes, pululavam em uma intensa efervescência. Esse clima
de insatisfação generalizada criou uma agenda de transformação
da cultura e da sociedade na qual, de certo modo, estamos até hoje
imersos. Nesse contexto surgiram alguns nomes importantes na Psi-
cologia Social como Serge Moscovici, Kenneth Gergen, Lev Vigotsky,
Taylor Spence e Ignácio Martin-Baró. Nomes que trouxeram para as
quadras da Psicologia Social o espírito daquele tempo.
Com os trabalhos desses autores, passa a pairar no campo da
Psicologia Social o espírito crítico. Tal espírito servia como instru-
mento dos psicólogos sociais para avaliar teorias psicológicas, re-
pensar a própria Psicologia Social e encontrar uma utilidade práti-
ca específica para essa. Nessa altura, as exigências de cientificidade
absoluta já não eram consideradas um empecilho seja para a Psico-
logia Social, seja para as Ciências Humanas e Sociais como um todo.
Aos poucos, a utilidade específica das Ciências Humanas e Sociais,
incluindo a Psicologia Social, passava a ser a transformação social.
As Ciências do Homem – ou, as humanidades – incluindo a Psico-
logia passaram a se deter aos chamados problemas sociais, ou seja,
em questões de ordem moral, do homem e da sociedade.
Uma breve recapitulação da história da Psicologia Social é facil-
mente capaz de apreender o fato que essa disciplina tende à subtra-

Capítulo 15

Considerações sobre a Psicologia Social 451


Paulo Rodrigo Unzer Falcade
ção de seu objeto de interesse específico, isso é o fenômeno da in-
teração. Sistematicamente há tentativas de inflacionar apenas o polo
externo e foracluir o polo interno do campo teorizado por Lewin. Essa
inflação do polo externo pode vir representada por vários signos: a
sociedade, a cultura, o sistema, o meio, o grupo, a história, a insti-
tuição etc. Ao que me parece, caso os indivíduos sejam considerados
meros marionetes, receptores e absolutamente passivos de forças
extrínsecas a eles, não estamos mais tratando de Psicologia Social.
Em qualquer disciplina cientifica sempre é necessário lembrar
que há de se ter um objeto específico e independente. Sem isso,
não razão para essa ciência existir. No caso mesmo da Psicologia,
houve uma histórica dificuldade para sua elevação ao status de ci-
ência independente. Isso porque havia considerável dificuldade de
se delimitar seu objeto e métodos de investigação. Os processos
mentais e o método introspectivo não eram aceitáveis para os pa-
drões da época. Não por acaso, os comportamentalismos surgiram
e logo obteriam o prestígio de uma verdadeira ciência. Contudo, as
escolas de Psicologia surgiram, entre outras coisas, a partir da sim-
ples constatação de que nem sempre o observável coincide com o
vivido, pensado e/ou sentido. Isso é, o psicológico não se resume
ao nível comportamental observável. A Psicologia Social nasceu
com a vocação de articular os dois níveis em que a vida se dá: os
processos internos e externos. Embora Kurt Lewin seja normal-
mente apontado como seu fundador, é necessário apontar que não
haveria Psicologia Social sem as contribuições escola da Gestalt.

2. Escola da Gestalt e a Psicologia Social

A chamada escola da Gestalt surgiu na Alemanha com uma clara


tendência crítica à Psicologia que se desenvolvia nos EUA, isso é,

452
ao behaviorismo. Se a base epistemológica do behaviorismo era o
empirismo de Locke e Hume, a base da escola da Gestalt era cer-
tamente o pensamento de Kant e Brentano. Kant era um crítico
contumaz do empirismo radical. Haveria, segundo ele, proprieda-
des mentais que organizar-se-iam a despeito da experiência. Se-
riam formas a priori da experiência. Dentre estas formas estariam,
por exemplo, espaço, tempo e causalidade. Tempo e espaço não
seriam derivados da experiência, existiriam de forma inata na men-
te, como formas a priori da percepção. Assim, a percepção não seria
constituída passivamente, como uma tábula rasa, pelo somatório
de impressões impostas pela experiência. Não. A percepção seria
uma organização ativa, unitária e coesa dos elementos integrantes da
experiência. Franz Brentano serviu de inspiração para se delimi-
tar o interesse científico antes na forma de conhecer do que no co-
nhecimento das formas. A Psicologia deveria antes estudar o ato de
experimentar do que o conteúdo da experiência. Desse modo, o
pensamento brentaniano foi de fundamental importância para o
desenvolvimento do movimento fenomenológico do inicio do século
XX. Foi somente a partir da fenomenologia que se dignificou a experi-
ência imediata, tal como ela ocorria, através de descrições livres de
amarras sintomatológicas.
Todas essas inspirações e referencias constam no quadro
dos fundamentos da referida escola psicológica da Gestalt. Os
principais nomes dessa escola foram Max Wertheimer (1880-
1943), Wolfgang Köhler (1887-1967), Kurt Koffka (1886-1941)
além do próprio Kurt Lewin (1890-1947). Todos alemães, emi-
graram aos EUA no período nazista e, além de darem sequência
as suas pesquisas em solo americano, conviveram de perto com
o behaviorismo. Desde as pesquisas com animais realizadas por
Köhler até os estudos sobre o pensamento em seres humanos

Capítulo 15

Considerações sobre a Psicologia Social 453


Paulo Rodrigo Unzer Falcade
realizadas por Wertheimer, o que unia todos esses autores era
uma tentativa de criar uma teoria da percepção. Dentro desse
intuito suas pesquisas tinham uma vocação transdisciplinar.
Era considerado tanto o aporte cerebral quanto a experiência
psicológica. Um dos vários méritos dessa escola é o de ter pro-
duzido teorias psicológicas puras. Ao buscarem pelo estatuto
da percepção da realidade, desenvolveram apontamentos até
hoje atuais sobre processos psicológicos básicos como sensação,
atenção, memória, volição, aprendizagem, emoção, pensamento,
ação etc. A rigor, a escola da Gestalt foi a primeira escola de
pensamento psicológico moderna. Isso porque o behaviorismo,
ao não reconhecer a experiência imediata, não seria exatamen-
te uma teoria psicológica. Ao behaviorismo, desde sempre, falta
precisamente o psicológico entendido como os elementos consti-
tutivos da experiência imediata.
Em Psicologia da Gestalt (1968), Köhler aponta para a existên-
cia de dois tipos de comportamentos: o molar e o molecular. O
comportamento molar refere-se às ações do sujeito no ambiente,
por exemplo o ato de um sujeito se relacionar com um parcei-
ro. Já o comportamento molecular refere-se às ações ocorridas no
organismo, como por exemplo o trajeto de um estímulo no sis-
tema nervoso. Em Princípios de psicologia da Gestalt (1975) Kurt
Kofka entendia que o ambiente no qual o comportamento molar
desenrola-se deveria ser dividido em dois tipos: o geográfico e o
comportamental. É muito frequente associar os autores da Ges-
talt com a psicofísica, isso é, autores que buscavam realizar arti-
culações entre o campo da fisiologia com a experiencia imediata
a partir do método experimental. A noção de comportamento dos
autores da Gestalt, não corresponde ao conceito de comportamen-
to dos behavioristas, isso porque

454
(…) ao pensarmos na Psicologia da Gestalt, devemos perceber que
ela se volta para o estudo do comportamento molar ocorrendo num
ambiente comportamental que é a organização geográfica do modo
como o sujeito percebe, sendo essa percepção determinada por fa-
tores diretos da consciencia e também por fatores inconscientes que
completam o campo psicofísico (Carpigiani, B, 2002, p.67)

A Psicologia da Gestalt obteve ascensão no final do século XIX, na


Alemanha e na primeira metade do século XX nos EUA. Tratava-
-se de uma escola de grande abrangência e influência. No campo
específico da atuação e da teoria, a escola gestáltica foi bastan-
te significativa para a consolidação da Psicologia cientifica. No
campo da psicologia clínica, surge o nome de Frederick S. Perls,
desenvolvendo um procedimento terapêutico denominado Ges-
talt-terapia. Tratava-se de uma compreensão integrada do homem
com seu ambiente a luz do pensamento gestáltico. Basicamente, o
processo terapêutico consiste numa apreensão momentânea do
estado de coisas. O passado deve figurar enquanto uma Gestalt fe-
chada para que cada situação possa ser experimentada como uma
experiencia psicológica diferenciada.
Dentro dos interesses específicos desse artigo é de maior
relevância apontar que Kurt Lewin trabalhou junto com Wer-
theimer, Kofka, Kohler na Universidade de Berlim. Sua Teoria
de Campo só pode ser devidamente compreendida a partir da
influencia dos mentores da Psicologia da Gestalt. Com o ob-
jetivo de compreender, a um só tempo, o indivíduo e o meio,
Lewin (1970) estabelece a interação entre esses dois elemen-
tos como objeto de estudo específico de sua teoria. Para criar
esse novo conhecimento, Lewin se atem a princípios advindos
da Psicologia da Gestalt e busca bases metodológicas na Física.

Capítulo 15

Considerações sobre a Psicologia Social 455


Paulo Rodrigo Unzer Falcade
Lewin (1970) não se valeu da introspecção como método. Ao
contrário, buscou o método experimental e quis fazer da Psico-
logia uma ciência hipotético-dedutiva. Conforme já dito, a Teo-
ria da Campo supõe e busca pela existência de duas forças opos-
tas em qualquer dinâmica social em que indivíduos ou grupos
estejam: uma força de atração que direciona aos objetivos e uma
força de repulsão que inibe o movimento aos mesmos. Há alguns
conceitos que auxiliam tanto a compreensão quanto as possi-
bilidades de extensão proporcionadas pela Teoria de Campo.
Um bom exemplo seria o conceito de espaço vital que trata dos
elementos determinantes do comportamento de um indivíduo
em um dado lugar e momento específico. Complementarmen-
te, pode-se apontar para o conceito de campo psicológico, que
se refere a articulação ocorrida entre dois níveis de realidade:
física e fenomênica. A partir desse conceito Lewin deixa claro
que os níveis objetivo e subjetivo só podem ser entendidos em
interação, jamais isoladamente. Haveria, portanto, um estado
de equilíbrio, um campo estabelecido entre individuo(s) e seu
meio. Esse campo é tanto formado por linhas de força represen-
tadas por significados grupais quanto pela percepção particular
que os indivíduos podem ter desse espaço vital. Eventualmente
esse estado de equilíbrio pode ser ameaçado. A conceito de mo-
tivação trata exatamente disso: a busca de restauração do equilí-
brio comprometido do espaço vital. O comportamento humano
seria, assim, compreendido a partir da sequência tensão-ativi-
dade-alivio. A perturbação do espaço vital, a partir de linhas de
força extrínsecas ao individuo, produziriam tensão no campo
psicológico que, a partir de uma atividade motivada busca ree-
quilibrar o estado anterior de coisas, algo que produz alivio.

456
3. Psicanálise e a Psicologia Social

Talvez, além de uma mera possibilidade haja mesmo a necessidade


da referida inclusão. Isso porque ao psicólogo social que é conhe-
cedor dos fundamentos de sua disciplina, é patente o fato de que
a mencionada visão de campo proposta tanto por Lewin quanto, ao
seu modo, pelos autores da Gestalt, implica a inclusão de todos os
dados que integram as forças determinantes de um comportamento.
Conhecedor e crítico da Psicanálise e de suas possíveis con-
tribuições à Psicologia Social, Kofka (1975) se incomodava com o
conhecido reducionismo psicanalítico. Infelizmente, de fato, há
uma forte tendência de operar a psicanalise de modo a resumir ex-
cessivamente todo o nexo causal dos fenômenos humanos a trian-
gulações edípicas e/ou a afetos primitivos. Afora esses conhecidos
exageros que devem-se mais aos psicanalistas do que à Psicanálise,
Kofka reconhece e designa o termo de forças subterrâneas incidentes
no campo comportamental para fazer jus a contribuição freudiana.
Isso é, embora o reducionismo o incomodasse, Kofka reconhecia
que muito da psicologia profunda dizia respeito ao nosso campo
comportamental e psicológico. Ademais, Koffka assinala mesmo que
a totalidade de nosso comportamento não é explicável em termos do meio
comportamental, quer dizer, do externo ao organismo. Uma tal consi-
deração torna possível incluir os aspectos inconscientes como elementos
a serem considerados por uma teoria que se ocupe do campo psicológico1
Referências sobre a consideração de elementos da psicaná-
lise no âmbito do objeto específico da Psicologia Social não se
resumem apenas à Psicologia da Gestalt. Conforme nos lembra
Darmegian (1991), seriam falsas as acusações de que a teoria de
Kurt Lewin aufere maior relevância ao meio do que ao sujeito
1
Darmegian, 1991

Capítulo 15

Considerações sobre a Psicologia Social 457


Paulo Rodrigo Unzer Falcade
na composição do campo social. A esse respeito, é cabível aten-
tarmos que

(…) ao discutir a questão das forças ambientais e o desenvolvi-


mento individual, LEWIN (1975) faz observações que considera-
mos essenciais para nossa problemática. Ao tratar das proprie-
dades fundamentais das forças de campo através do conceito de
valência, diz que há uma variação em extremo quanto à direção
que a valência incute ao comportamento da criança. Esta varia-
ção não se dá ao acaso, mas está de acordo com o conteúdo das
carências e necessidades da criança (Darmegian, 1991)

Ainda sobre a consideração da importancia de variáveis internas na


produção das forças de determinação e influencia do campo, vale
dizer que Kurt Lewin (1975) não considerava o indivíduo como uma
espécie de massa amorfa pronta para ser moldada a partir de va-
lencias do campo. Lewin entendia que o indivíduo seria dotado de
intensidades, afetos que moldariam as valencias internas do campo.
É consideravelmente abrangente as pontuações lewianianas acer-
ca da formação das valencias internas do campo. Ademais, embora
não seja suficientemente aventado pelos psicólogos sociais, Kurt
Lewin reconhecia que no espaço de vida da polaridade interna do
campo social haveria níveis de realidade que estariam sobrepostas
uma à outra. Isso aperece, por exemplo, nas suas pontuações relati-
vas ao desenvolvimento vital. No decorrer desse processo quando o
indivíduo amadurece e adquire autodomínio ele separa mais nitidamen-
te seus desejos das expectativas. Seu espaço de vida diferencia-se em nível
de realidade e diversos níveis de irrealidade, como fantasia e o sonho2

2
Darmegian, 1991

458
Nesse reconhecimento da esperada divisão dos níveis de reali-
dade no polo interno da formação do campo social, isso é, em suas
considerações acerca do estatuto da influencia do nível individual
na montagem do fenomeno da interacão social depreende-se.

(…) portanto, sem nenhum mistério, a inclusão do inconsciente


na concepção lewiniana. Se Lewin considera que as fantasias, os
níveis de irrealidade fazem parte do espaço de vida, deve-se pen-
sar a totalidade dos acontecimentos possíveis para o indivíduo
num dado momento (= a espaço de vida) incluindo-se também
aqueles acontecimentos que dizem respeito ao dado inconscien-
te. Ou seja, o inconsciente (níveis de irrealidade, fantasias) está
representado, presente no espaço de vida. Nesse sentido, qual-
quer tentativa de prever e controlar o comportamento arrisca-se
a ser uma empreitada vil. Assim, esses dados de irrealidade do
espaço de vida devem ser considerados em termos de influência
que podem ter na interação com o meio (Damergian, 1991)

Seguindo de perto as considerações de Sueli Darmegian fica pa-


tente que a ausencia de articulação entre o objeto da Psicologia
Social e da Psicanálise é antes uma foraclusão do que uma incom-
patibilidade. A autora resgata a conhecida advertencia freudiana
acerca das dificuldades de assimilação da teoria psicanalítica junto
ao chamado psicólogo academico. Diferentemente das contribui-
ções dos autores da psicologia da gestalt, as contribuições psica-
nalíticas seriam mais dificeis de serem assimiladas pois a lingua-
gem dos afetos e das paixões humanas teria maior dificuldade que
a linguagem dos dados perceptuais para ganhar uma roupagem
cientificamente adequada.

Capítulo 15

Considerações sobre a Psicologia Social 459


Paulo Rodrigo Unzer Falcade
Em meio a constatação que a Psicologia Social brasileira fez
uma escolha de priorizar a lida com seu objeto a partir de um
aprouche que prima exclusivamente pelo aspecto cognitivo a partir
de uma base teórica importada da sociologia marxista, Darmegian
(1991) retoma Freud (1921, 1930, 1925) para nos lembrar que evitar
fatos e problemas não será jamais solução definitiva para o pensamento
científico, afinal, se não conseguimos ver as coisas claramente, pelo me-
nos veremos claramente quai são as obscuridades.

460
referências
carpegiani, b. Psicologia: KOFFKA, K. Princípios de psicologia
das raízes aos movimentos da gestalt. São Paulo, Cultrix, 1975.
contemporaneous. São Paulo, LEWIN, K. Problemas de dinâmica
Pioneira Psicologia. 2002. de grupo. São Paulo, Cultrix, 1970.

DAMERGIAN, S. O inconsciente na LEWIN, K. Teoria dinâmica da


interação humana. Psicol. USP,  São personalidade. São Paulo, Cultrix,
Paulo, v. 2, n. 1-2, p. 65-76,   1991 1975.

FREUD, S (1921) Psicologia de


grupo e análise do ego. Rio de
Janeiro, Imago, 1980, (Obras
Completas, 18).

FREUD, S. (1930) O mal estar na


civilização. Rio de Janeiro, Imago,
1980 (Obras Completas, 21).

FREUD, S (1926) Inibição, Sintoma


e Angústia. Rio de Janeiro, Imago,
1980 (Obras Completas, 20).

KRUGUER, H. Introdução a
Psicologia Social in Temas básicos
de Psicologia. Editora E.P.U. São
Paulo, 1986

KÖHLER, W. Psicologia da gestalt.


Belo Horizonte, Itatiaia. 1968.

Capítulo 15

Considerações sobre a Psicologia Social


Paulo Rodrigo Unzer Falcade baracoa
editora
Rafael de Santis Bastos dos Reis
Universidade de São Paulo

Psicólogo formado pela Universidade


Federal de São João del-Rei (UFSJ).
Mestre em Psicologia Social pela
Universidade de São Paulo (USP).
Participou do Grupo Caminhos
Junguianos da UFSJ. Atualmente
é membro do Grupo de Pesquisa
Mitopoética da Cidade do IPUSP.
Trabalha também como clínico em
consultório particular.

CV: http://lattes.cnpq br/7848664429811923


E-mail: rafasreis@uol.com.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-8853-7990

463
Psique e matéria: um estudo
junguiano a partir da Atlântida
de Platão e do sertão de
Guimarães Rosa

Resumo: Como se dá a relação pesquisa para conhecer o


entre imaginação e matéria? sertão, inspiração de sua
Esta pergunta, situada obra. Esta concreta região é
no âmbito da Psicologia o fundamento de uma obra
Analítica, norteia as reflexões que, entretanto, desprende-se
deste artigo. No tópico I, desta materialidade e aspira ao
apresentamos o conceito metafísico. Na criação roseana,
junguiano de fantasia, central à a imaginação revela autonomia
compreensão da questão. No II, em relação à matéria. Tais
abordamos um desdobramento fenômenos parecem aludir
histórico da narrativa platônica à dinâmica existente entre
sobre Atlântida: embora imaginação e matéria – em
estudiosos reconheçam seu última instância, ao problema
caráter alegórico, até hoje são psique-matéria. Trazemos,
realizadas buscas arqueológicas então, contribuições de Jung à
pretendendo comprovar esta discussão.
a existência concreta da
ilha. Neste fenômeno, Palavras-chave: Imaginação.
nos parece, a imaginação Matéria. Fantasia. Arquétipo.
revela sua dependência a Guimarães Rosa.
referências materiais. No III,
mencionamos a criação do
escritor Guimarães Rosa, que
realizou minuciosa

464
Psyche and matter: a Jungian
study as from Plato’s Atlantis
and the sertão of Guimarães
Rosa.

Abstract: How does the out a research to know


relation between imagination the sertão, the inspiration
and matter occur? This of his work. This concrete
question, situated in the scope region is the foundation of a
of Analytical Psychology, work that, however, release
guides the reflections of this itself from this materiality and
article. In topic I, we present aspires to the metaphysician.
the Jungian concept of fantasy, In Rosa’s creation, the
central to the understanding of imagination reveals autonomy
the question. In II, we present in relation to matter. Such
a historical repercussion of phenomena allude to the
Plato’s narrative on Atlantis: dynamics between imagination
although scholars allege and matter. So we bring
the allegorical character Jung’s contributions to this
of Atlantis, until today discussion.
archeological’s searches are
carried out intending to prove Keywords: Imagination.
the concrete existence of the Matter. Fantasy. Archetype.
island. In this phenomenon, Guimarães Rosa.
the imagination reveals its
dependence on material
references. In III, we mention
the creation of the writer
Guimarães Rosa, who carried

465
Capítulo 16

Psique e matéria: um
estudo junguiano a
partir da Atlântida de
Platão e do sertão de
Guimarães Rosa
Rafael de Santis Bastos dos Reis
Universidade de São Paulo

Introdução.

Que tipo de relação há entre psique e matéria? Tendo esta per-


gunta como norteadora e situando-a no âmbito da Psicologia
Analítica de Carl Gustav Jung (1875-1961), este artigo se divide
em quatro tópicos. No tópico I, apresentamos o que Jung com-
preende por fantasia e como este é um conceito central para
pensar as relações entre psiquismo e matéria em sua psicologia.
No tópico II, abordamos um peculiar desdobramento histórico
da narrativa de Platão sobre a Atlântida submersa: as buscas que
até hoje são empreendidas na esperança de se encontrar resquí-
cios físicos da ilha. Este fenômeno parece apontar para um mo-
vimento psíquico específico: a imaginação afirmando dependên-
cia em relação a referências na matéria.

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 467


Editora Baracoa — 2019
No tópico III, apresentamos algumas considerações sobre
o processo criativo do escritor mineiro João Guimarães Rosa
(1908-1967). O escritor foi ao sertão realizar minuciosa pes-
quisa, buscando na concretude de um lugar específico a inspi-
ração para sua obra. Entretanto, embora tenha mergulhado na
matéria prima de sua obra, Rosa, em seu processo imaginativo
criador, subjuga e desdobra as referências concretas que lhe
serviram de inspiração. Diferente do apresentado no tópico
anterior, o processo criativo de Rosa parece dizer respeito a
outro movimento psíquico: a imaginação afirmando autonomia
em relação à matéria. Juntos, estes dois movimentos, segundo
supomos, apontam para uma relação complexa entre matéria
e imaginação que, em última instância, diz respeito à relação
entre psique e matéria.
No tópico IV, apresentamos, então, alguns apontamentos
de Jung em relação a este assunto. As investigações do psiquia-
tra suíço sobre o fenômeno que denominou de sincronicidade,
e um longo intercâmbio teórico que manteve com o físico aus-
tríaco Wolfgang Pauli (1900-1958), constituem dois importan-
tes fatores na maturação de seu conceito de arquétipo, e em sua
abordagem da problemática psique-matéria. As questões em
torno desta problemática configuram um vasto campo de estu-
dos, para o qual convergem disciplinas diversas e, no qual, há
ainda mais perguntas do que respostas. Assim, nossa intenção
neste artigo é refletir em torno de algumas das contribuições
que Jung ofereceu à esta discussão, e mostrar o que nos pare-
cem ser certos correlatos entre suas considerações teóricas e
dois eventos específicos, no caso, as buscas por Atlântida e a
criação roseana.

468
I. Pelos caminhos da imaginação.

É experiência comum contar histórias para crianças, histórias


fantásticas nas quais a imaginação cria mundos, monstros e heróis.
Quem já contou histórias para uma criança ou, quando criança, já es-
cutou histórias, teve ocasião de notar o seguinte: aquele que conta uma
narrativa fantasiosa, de algum modo procura situar o narrado em um
tempo e espaço, como que aproximando a fantasia da concretude da
realidade vivida. Muitas vezes a narrativa se deu em um passado longín-
quo, além do alcance dos calendários, ou em alguma floresta ou bosque
que fica depois de todas as estradas. Não supomos que um adulto vá
contar uma história para uma criança dormir, dizendo: ‘Vou lhe contar
algo que nunca aconteceu, uma aventura inteiramente imaginada’. Pa-
rece que para se obter deleite ao ouvir uma história antes de adormecer
ela tem de estar assentada sobre certa referência material; havendo
esta base a imaginação se deixa rolar, devaneia-se.
Pensemos agora na seguinte situação: um professor de ensino
primário, em roda com seus alunos, propõe a construção coletiva
de uma história, juntos eles inventarão personagens, paisagens e
acontecimentos. Neste caso, o que ocorre é um exercício de abs-
tração e criação, que pode ser salutar e divertido, mas que exige
um esforço imaginativo que difere do deleite que se deseja ao ouvir
uma história fantástica antes de pegar no sono.
Clarice Lispector (1971/2009), em um texto intitulado, Duas
histórias a meu modo, faz comentários sobre uma ficção do escritor
francês Marcel Aymé, cujo personagem central se chama Félicien.
Proveniente de uma família e de uma região na qual todos são pro-
dutores de vinho, Félicien guarda um segredo que lhe é fonte de
grande sofrimento: ele não gosta de vinho. Em certo momento des-
ta história, Aymé, o escritor, se coloca no texto em primeira pessoa,

Capítulo 16

Psique e matéria: um estudo junguiano a partir da 469


Atlântida de Platão e do sertão de Guimarães Rosa
Rafael de Santis Bastos dos Reis
dizendo que já não estava gostando de escrevê-lo, e que iria parar.
Em seguida, passa a escrever sobre o que ainda poderia inventar na
história se quisesse, mas que não vai, pois não quer. A história de
Aymé é uma ficção que o tempo todo faz saber que é ficção. Sobre
isto, diz Clarice (1971/2009): “A verdade é que Aymé, enquanto vai
contando o que inventaria, aproveita e conta mesmo – só que nós
sabemos que não é, porque até no que se inventa não vale o que
apenas seria” (p. 155).
Sabe-se que a literatura é campo de experimentação da pala-
vra, e o escritor Aymé usa de um recurso, a incorporação do eu nar-
rador dentro da narrativa, cuja origem remonta à Boccacio. Como
bem notou Pontieri (2002), Clarice, em tom lúdico, escreve sobre
a história de Aymé, ampliando esta demiurgia narrativa, colocan-
do-se ela também na paródia da história e, por fim, transformando
o próprio Aymé em personagem. Contudo, nossa discussão não se
insere no campo da análise literária. Interessa-nos aqui o sentido
psicológico contido na frase de Clarice: “até no que se inventa não
vale o que apenas seria”.
Jung (1952/2016) distingue dois modos de pensamento: o pen-
samento dirigido e o pensamento fantasia. O pensamento dirigido
é verbal, abstrato e racional; tem, para o indivíduo, função adapta-
tiva ao meio social; caracteriza o eu consciente. O pensamento fan-
tasia, anterior na filogênese humana, é imagético, concreto, pré-
-verbal, e voltado para o mundo interior coletivo; os liames entre a
consciência do eu e a realidade circundante são frágeis.

O primeiro [pensamento dirigido] trabalha para a comunicação,


com elementos linguísticos, é trabalhoso e cansativo; o segundo
trabalha sem esforço, por assim dizer espontaneamente, com con-
teúdos encontrados prontos, e é dirigido por motivos inconscientes.

470
O primeiro produz aquisições novas, adaptação, imita a realidade
e procura agir sobre ela. O último afasta-se da realidade, liberta
tendências subjetivas e é improdutivo com relação à adaptação
(Jung, 1952/2016, §20).

A fantasia a que Jung se refere é espontânea: estamos, por exemplo,


distraídos fazendo uma atividade qualquer e, quando nos damos
conta, quando de repente nos percebemos, notamos que nosso
pensamento vagueava em devaneios, sem a nossa deliberação. So-
mos surpreendidos pela fantasia1. Mas qual seria a substância da
fantasia? Segundo Jung, o pensamento fantasia opera por imagens
no âmbito da consciência, mas o impulso que lhe origina provém
da psique arquetípica2. Nesta dimensão psíquica primária não há
imagens, mas as predisposições que pautam as possibilidades e os
limites para a formação de imagens: aquilo que Jung chamou de
arquétipo. Devemos notar que a psique é um todo dinâmico, e as
divisões que estabelecemos para estudá-la, na prática estão sempre
se tangenciando, aparecem quase sempre misturadas. Deste modo,
o fantasiar pode misturar memórias pré-conscientes, conteúdos do
inconsciente pessoal e do inconsciente coletivo. Jung, entretanto,
interessou-se sobretudo pela natureza arquetípica do fantasiar.
A fantasia é a função que faz mediação entre a psique arquetípi-
ca, que é impessoal, e a consciência egoica: “Pelo pensamento fan-
tasia se faz a ligação do pensamento dirigido com as ‘camadas’ mais
antigas do espírito humano, que há muito se encontram abaixo do
1 A fantasia é espontânea, isto é, possui relativo grau de autonomia em relação à consciência
que a percebe. No entanto, podemos criar condições para facilitar seu fluxo e a apreensão de
suas imagens. O artista, o cientista, em suma, todo inventor lida com isso. Em seu texto, A
Função Transcendente (1958), Jung descreve detalhadamente esses processos.

2 Adiante explicaremos o que o psiquiatra suíço entende por arquétipo e por imagem ar-
quetípica.

Capítulo 16

Psique e matéria: um estudo junguiano a partir da 471


Atlântida de Platão e do sertão de Guimarães Rosa
Rafael de Santis Bastos dos Reis
limiar do consciente” (Jung, 1952/2016, §39). Quando Jung se refere
às camadas antigas do espírito humano devemos ter em considera-
ção que para ele não há ruptura entre o inconsciente e a consciên-
cia, nem entre natureza e cultura. Jung (1924 e 1928/2016) entende
que a consciência emerge naturalmente do inconsciente durante o
processo de hominização, e é adepto da teoria de que a linguagem
possui origem onomatopeica e está assentada na sensorialidade.

A linguagem originalmente é um sistema de sons emotivos e


imitativos que exprimem susto, medo, raiva, amor, etc., que
imitam os ruídos dos elementos, o borbulhar e marulhar da
água, o rolar do trovão, o farfalhar e sussurrar do vento, as
vozes dos animais, etc., e finalmente, os que resultam da
combinação de percepção e reação afetiva. Os idiomas mais
modernos ou menos modernos reproduzem muitos resídu-
os sonoros onomatopeicos. Por exemplo, os que exprimem
o movimento da água: rauschen (murmurar), rielsen (ma-
rulhar), rûschen (fluir), rinnen (correr), rennen (correr), to
rush (impelir), ruscello (regato), ruisseau (riacho), river (rio)
(Jung, 1952/2016, §12).

Ainda sobre esta questão, Jung se reporta ao escritor francês, Ana-


tole France (1844-1924), em uma passagem espirituosa e bela. A ci-
tação é longa, mas vale a pena:

E o que é pensar? E como pensamos? Nós pensamos com pa-


lavras; só isto é sensual e reconduz à natureza. Lembrem-se
de que um metafísico, para constituir o sistema do mundo, só
dispõe do grito aperfeiçoado dos macacos e dos cães. Aquilo
que ele chama de especulação profunda e método transcen-

472
dental é colocar uma depois da outra, numa ordem arbitrá-
ria, as onomatopeias que gritavam a fome, o medo e o amor
pelas florestas primitivas e às quais pouco a pouco se asso-
ciaram significados que são considerados abstratos quando
estão apenas amortecidos. – Não tenham medo de que esta
sequência de pequenos gritos abafados e enfraquecidos que
compõem um livro de filosofia nos venha a ensinar coisas de-
mais sobre o universo para que não possamos mais viver nele
(apud Jung, 1952/2016, §13).

Retomando o que dizíamos, vemos então que o pensamento


imagético precede o pensamento abstrato, e o ato de narrar
uma história-fantasia a uma criança repete uma vivência que
está na base de todas as sociedades: a narrativa mitopoética.
Até onde se estende sobre nós o poder da narrativa? No antigo
Egito, quando um homem era picado por cobra, o médico-sa-
cerdote lia para ele uma passagem do manuscrito com a histó-
ria do deus Rá. Segundo o mito, Rá fora picado por uma cobra
e curado por intervenção dos outros deuses. Os médicos espe-
ravam que escutar a narrativa ajudasse a sobreviver ao veneno.
Esses antigos curadores de algum modo sabiam do poder pre-
sente na narrativa, capaz de atuar sobre o psiquismo e mesmo
sobre o organismo físico:

Os primitivos caminham sobre brasas e se infligem os maiores


castigos, sob certas circunstâncias, sem sentirem dor. E é bem
provável que um símbolo adequado e impressionante possa mo-
bilizar as forças do inconsciente a tal ponto que até o sistema
nervoso seja afetado (Jung, 1935/2016, § 231).
Mas será este fenômeno restrito à psicologia de povos antigos?

Capítulo 16

Psique e matéria: um estudo junguiano a partir da 473


Atlântida de Platão e do sertão de Guimarães Rosa
Rafael de Santis Bastos dos Reis
Imaginemos, como exemplo, esta cena cotidiana: uma mulher leva
o pequeno filho para tomar vacina e, para lhe infundir coragem,
conta histórias de quando seu avô enfrentou e venceu algum pe-
rigo. Neste caso, é o mito familiar que está atuando, o sentimento
de pertencer a uma linhagem de corajosos mobiliza a coragem na
criança. A mãe em questão pode ter incrementado a história sobre
o avô com imaginações que lhe ocorreram no momento; a história
é então expressa em narrativa, e a criança, ao escutar, é insuflada
pelos significados e afetos do narrado, de modo que, a própria dor
da vacina poderá doer menos.
A discussão científica sobre as possíveis relações imaginação-so-
matização é vasta, abrangendo investigações sobre hipnose, suges-
tão, efeitos placebo e nocebo, dentre outras. Este assunto, entretanto,
está inserido em um campo ainda maior, que é o da discussão sobre
as possíveis relações psique-matéria. Este campo é amplo e multifa-
cetado; toca questões que concernem a diferentes disciplinas, como
a Física e a Psicologia – aparentemente áreas distantes. Nosso objeti-
vo, contudo, é modesto. Apresentaremos, nos próximos dois tópicos,
algumas reflexões sobre as crenças e procuras por Atlântida perdida,
e sobre o percurso criativo de Guimarães Rosa. Tais reflexões cons-
tituirão uma espécie de prelúdio para, no último tópico, apresentar-
mos contribuições que Jung oferece à discussão psique-matéria.

II. Procuras arqueológicas por Atlântida perdida: imagi-


nação se afirma na matéria.

Timeu e Crítias são dois diálogos da maturidade de Platão. Os dois


ocorrem em sequência, compondo uma unidade. Na primeira par-
te, o tema central é a constituição do mundo e do homem e, na
segunda, a constituição do universo social. No início do Timeu,

474
é feita uma longa explanação sobre uma civilização antiga, a rica
Atlântida, que teria rivalizado com Atenas em um passado distante.
Desde Platão, esta narrativa sobre Atlântida gera controvér-
sias e inspira teorias, pesquisas, obras de arte e onerosas buscas
arqueológicas. Atlântida existiu geograficamente algum dia ou foi
uma invenção de Platão? Dentre as hipóteses arqueológicas que
foram aventadas ao longo do tempo, destacamos: a civilização mi-
noica da ilha de Creta; sociedades do continente americano; arqui-
pélagos dos Açores e da Madeira; Tartessos, civilização destruída
cerca de 500 a.C., que teria existido no sul da Espanha e, ainda, a
região onde hoje é a Suécia. Todas elas foram, até então, refuta-
das. Lopes (2011) revisou estudiosos que se ocuparam do tema
e defende a hipótese da anistoricidade de Atlântida. Segundo ele,
Platão se baseou em diversas referências culturais de sua época
para compor o mito de Atlântida: “uma geografia imaginária de
um mundo também ele imaginário e sobretudo imaginado, mas
sempre a partir do repositório cultural de que emerge o sujeito”
(Lopes, 2011, p. 62). Não seria difícil, diz Lopes, constatar a anisto-
ricidade e o caráter alegórico da Atlântida platônica. Seria possível
reconhecer na descrição de Atlântida referências a Hesíodo e a
Heródoto, além de elementos das culturas asiática e egípcia. Mas
o fundamental seria o fato de que Platão deixa claro que pretende
tratar naquele diálogo da questão da linguagem enquanto imita-
ção e representação. A composição ficcional de Atlântida seria en-
tão a efetuação deste programa por Platão. Diz o filósofo: “Aquilo
que todos nós pronunciamos é, necessariamente, uma imitação,
uma representação” (Crítias, 107b).
Todavia, a anistoricidade e o caráter ficcional enxergados
por Lopes e outros estudiosos não exercem o mesmo poder
de convencimento sobre todos. Atlântida inspirou e continua

Capítulo 16

Psique e matéria: um estudo junguiano a partir da 475


Atlântida de Platão e do sertão de Guimarães Rosa
Rafael de Santis Bastos dos Reis
inspirando desde calorosos debates até as mais curiosas teorias.
Basta uma pesquisa simples na internet para encontrarmos cente-
nas de reportagens, livros e produções diversas que orbitam em tor-
no da crença de algumas pessoas na existência concreta de Atlânti-
da, que estará perdida, submersa em algum ponto no oceano. Não é
nossa intenção aqui tomar parte dentre os que negam a existência
de Atlântida, nem dentre os que afirmam que algum dia ela esteve
presente no globo. Nosso interesse de estudo é: por que mais de
vinte séculos após Platão ainda se procura por Atlântida? Em outras
palavras: de onde provém o impulso de buscar as bases materiais
de uma narrativa? A procura por uma Atlântida concreta parece
expressar um determinado movimento psíquico: a imaginação afir-
mando certa dependência em relação a referências materiais3.
Tendo em vista o que expusemos acima, a seguir apresentare-
mos um movimento diferente deste. O escritor mineiro, João Gui-
marães Rosa, para elaborar seu livro, Grande sertão: veredas, busca
como matéria prima o sertão, realidade geográfica e social determi-
nada e, a partir dela, cria uma obra de caráter universal e aspiração
metafísica. No processo criativo de Rosa a imaginação parece afir-
mar um caráter de autonomia em relação à matéria.

III. O percurso criativo de Guimarães Rosa: imaginação des-


dobra matéria.

O regionalismo foi um importante movimento que se estendeu por


longo tempo na literatura brasileira. Tendo iniciado na segunda
década do século XIX, seguiu se transformando influenciado por

3 Poderíamos comparar a procura por Atlântida com casos de grupos de pessoas que realizam
buscas por fósseis de sereias, dragões e outros seres míticos. Com facilidade encontramos
relatos sobre isso disponíveis na internet.

476
diferentes tendências culturais, atravessando o século XX. O movi-
mento regionalista pode ser dividido em três períodos: inicia foca-
lizando peculiaridades humanas e regionais; no segundo momento,
sob influência positivista, adota um tom descritivo científico e, no
terceiro período é marcado por preocupação político social. To-
davia, quer seja focalizando o pitoresco humano, a paisagem ou a
política, o regionalismo sempre teve como característica central a
referência ao lugar humano.
Paralela ao regionalismo, desenvolvia-se no Brasil outra linha
literária que, distante das preocupações da grande política e de
descrições sócio geográficas, se voltava para a interioridade huma-
na, cogitando problemas de ordem espiritual, o mistério e a ques-
tão do bem e do mal. O romance católico francês do período entre
guerras exerceu influência sobre essa literatura introspectiva que
tem em Clarice Lispector seu maior expoente.
Segundo Galvão (2006), Guimarães Rosa incorpora estas duas
grandes linhagens literárias ao criar sua obra:

Do lado do regionalismo, lá estão a matéria do sertão, as perso-


nagens plebeias, a oralidade etc. Do lado da reação espiritualista,
acham-se a preocupação com a subjetividade e com a transcen-
dência, a perquirição da religiosidade, o sopro metafísico, a son-
dagem do sobrenatural (Galvão, 2006, p. 184).

Como visto, uma região concreta, com sua geografia física


e social, é o núcleo das obras regionalistas. Rosa, para compor
sua obra, também se baseou em uma determinada região. Mais
que isto, tal qual um etnógrafo, realizou viagens de pesquisa, bus-
cando vivenciar o lugar no qual ambienta alguns de seus livros,
em especial Grande Sertão: veredas. Antonio Candido conta que

Capítulo 16

Psique e matéria: um estudo junguiano a partir da 477


Atlântida de Platão e do sertão de Guimarães Rosa
Rafael de Santis Bastos dos Reis
a primeira vez que ouviu falar sobre Rosa foi em 1945, através de
Vinicius de Moraes, e diz:

Vinicius me disse que havia um colega dele do Itamaraty que es-


tava escrevendo uns contos, mas era um tipo muito peculiar, por-
que escrevia os contos preparando como se fosse um trabalho
científico. Eram contos regionais, e esse colega tinha um fichário
em que ele tinha todos os passarinhos, todos os acidentes geográ-
ficos, plantas com nomes científicos, costumes, como se estives-
se fazendo um trabalho de sociologia (Candido, 2011, p. 19)

No entanto, Candido (2011) relata que, assim que leu Sagarana, pri-
meiro livro publicado por Rosa, percebeu que aquele não era um
autor regionalista. Tal percepção se confirmou quando leu Grande
Sertão, sobre o qual diz: “vemos misturarem-se em todos os níveis
o real e o irreal, o aparente e o oculto, o dado e o suposto” (Candi-
do, 1964, p. 135) e comenta ainda sobre o livro: “podemos ver que o
real é ininteligível sem o fantástico, e que ao mesmo tempo este é
o caminho para o real” (p. 139).
Grande Sertão: veredas, único romance de Rosa, é ambientado
numa região específica, formada pelo Noroeste de Minas Gerais,
o Oeste da Bahia e o Nordeste de Goiás, e fato curioso é que bió-
logos, pesquisadores e habitantes da região até hoje se surpreen-
dem ao encontrar certas fidelidades entre a obra e a realidade ge-
ográfica do lugar. Sabe-se que além das viagens etnográficas, Rosa
estudou mapas e dados geológicos, procurou conhecer a fauna e a
flora desta região. Todavia, Rosa parte do regional, mas cria uma
obra de caráter universal, que tangencia o numinoso e sonda o
metafísico, de modo que, segundo Candido (2011), o escritor mi-
neiro inaugura uma nova categoria literária: o transregionalismo.

478
Há muitos artistas que também buscaram conhecer de perto
a matéria prima de suas criações, no entanto, o percurso criativo
de Rosa, em especial, demonstra bem o que tentamos dizer, uma
vez que sua criação comporta uma espécie de contraste. Apesar de
seu acurado esforço “científico” de levantar dados, nomenclaturas
e detalhes regionais, este sertão tangível, enquanto realidade mate-
rial, no processo de elaboração da obra se desprende de seus deter-
minismos concretos e é trabalhado livremente pela imaginação do
autor. A realidade concreta se torna substrato para um movimen-
to imaginativo que lhe é próprio. Sua obra, “quanto mais gravada,
quanto mais cravada no documento e no detalhe, mais ela se libera
[...] é o paradoxo da extrema fidelidade com a extrema liberdade”
(Candido, 2011, p. 21).
A obra, engendrada a partir das buscas de Rosa, é uma criação
do autor: algo novo e original. O livro, enquanto entidade material,
é a materialização desta criação imaginativa, mas, de certo modo, é
também uma repatriação no mundo da matéria de algo que neste
mundo teve seu germe. É significativo este dizer de Rosa (1965):
“comecei a transformar em lenda o ambiente que me rodeava, por-
que este, em sua essência, era e continua sendo uma lenda” (p. 79).
Guimarães Rosa se mostra capaz de perscrutar o viço poético la-
tente nas coisas: em sua criação, a concretude do mundo se revela
passível de ser desdobrada em fantasia.
Se, como propusemos antes, a procura pela existência física
de Atlântida diz respeito a certo movimento psíquico, a imagina-
ção revelando uma dependência a referências na matéria; o per-
curso criativo de Rosa, por sua vez, nos aponta outro movimento:
neste, é a matéria que parece desvelar-se prenhe de alma. A ma-
terialidade é subjugada e desdobrada pela imaginação, que nisto
revela um caráter de autonomia. Consideramos que, juntos, estes

Capítulo 16

Psique e matéria: um estudo junguiano a partir da 479


Atlântida de Platão e do sertão de Guimarães Rosa
Rafael de Santis Bastos dos Reis
dois exemplos apontam para a complexa dinâmica existente en-
tre imaginação e matéria que, em última instância, nos remete ao
problema psique-matéria. A seguir, abordaremos como esta rela-
ção/dinâmica foi discutida no âmbito da psicologia de Jung.

IV. Psique e matéria: algumas contribuições de Jung à discussão.

“Quereis ver o que é a alma? Olhai para um corpo sem alma”


Pe. Antonio Vieira.

Como foi visto, segundo Jung, o pensamento fantasia tem origem


na psique arquetípica e, deste modo, para podermos compreen-
der as relações entre imaginação e matéria é necessário que, antes,
compreendamos o que é arquétipo.
A tentativa de categorizar o que seja o arquétipo (determinar
aquilo o que ele é, e delimitar aquilo o que ele não é) possui um pro-
blema epistemológico, uma vez que aquilo que Jung nomeia como ar-
quétipo é algo que precede e prefigura a operação mental categórica.
Se aceitarmos que, o que quer que seja arquétipo, ele é algo que vem
antes da função categorizadora e, mais que isso, está na origem des-
ta função, categorizá-lo seria então uma tentativa de compreensão
inversa. A sinapse não pode explicar o que seja o neurônio e muito
menos todo o sistema nervoso, assim como a paixão e a raiva, em si
mesmas, não contêm a explicação do que seja a capacidade de sentir
emoções. Diz Jung (1946/2016): “parece-me provável que a verdadei-
ra natureza do arquétipo é incapaz de tornar-se consciente” (§ 417)4.

4 Theodor Lipps (1851-1947) já dizia que a natureza da vida psíquica é inconsciente. Jung refere-se
a Lipps bem como a outros pesquisadores do século XIX que o antecederam nas discussões so-
bre o inconsciente e a natureza da psique. Alguns dos importantes nomes que o influenciaram
neste sentido são: Carl G. Carus (1789-1869), Theodor Fechner (1801-1887) e Karl R. Eduard von
Hartmann (1842-1906).

480
O arquétipo é, portanto, uma hipótese inferida a partir de certos
fenômenos, considerados seus efeitos. Tais fenômenos, Jung os de-
nominou imagens arquetípicas: variações mais ou menos constantes,
presentes em todos os tempos e povos, e que orbitam em torno de
certos eixos comuns.
Jung constatou a existência das imagens arquetípicas por meio
de longa e metódica investigação. Fez isto observando fantasias,
sonhos e expressões plásticas de pacientes psicóticos (atendidos
por ele e por colegas), e notando a semelhança entre estes conte-
údos e variadas expressões culturais (com as quais estes pacientes
muitas vezes nunca tiveram contato). Daí ele afirmar que sua teo-
ria dos arquétipos tem base empírica.
As imagens arquetípicas apontam para a existência dos ar-
quétipos, que são os estruturadores do psiquismo, no entan-
to, não conseguimos conhecer o arquétipo em si mesmo. A ir-
representabilidade do arquétipo e a impossibilidade de se ter
acesso direto a ele coloca a Psicologia de Jung em uma situa-
ção epistemológica parecida com a da Física Moderna. Diz Jung
(1946/2016): “Encontramos situação semelhante a esta na Física,
onde as partes mínimas são em si irrepresentáveis, mas produ-
zem efeitos de cuja natureza é possível deduzir um certo modelo.
A representação arquetípica, o chamado tema ou mitologema, é
uma construção deste gênero” (§ 417). Isto é, a unidade elemen-
tar da vida psíquica (o arquétipo), e a unidade elementar da ma-
téria são inacessíveis diretamente. Visto isso, Jung (1946/2016)
coloca a seguinte questão: “Quando se admite a existência de
duas ou mais grandezas irrepresentáveis, existe consequente-
mente sempre a possibilidade – do que em geral não nos damos
suficiente conta – de que se trata não de dois ou mais fatores,
mas apenas de um” (§ 417).

Capítulo 16

Psique e matéria: um estudo junguiano a partir da 481


Atlântida de Platão e do sertão de Guimarães Rosa
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Psique e matéria teriam a mesma natureza? Em diferentes
momentos Jung levanta tal cogitação, deixando transparecer sua
inclinação em considerar psique e matéria como dois aspectos de
uma única realidade.

Como a psique e a matéria estão encerradas em um só e mesmo


mundo, e, além disso, acham-se permanentemente em conta-
to entre si, e em última análise, assentam-se em fatores trans-
cendentes e irrepresentáveis, há não só a possibilidade, mas
até mesmo uma certa probabilidade de que a matéria e a psi-
que sejam dois aspectos diferentes de uma só e mesma coisa
(Jung, 1946/2016, § 418).

Há dois importantes motivadores para Jung construir tal ponto de


vista sobre esta questão: suas pesquisas durante anos sobre o fenô-
meno que denominou sincronicidade5, e diálogos teóricos mantidos
com o campo da Física. Vejamos como isso se dá.
Jung (1952/2016) denominou de sincronísticos eventos que ocor-
rem no tempo e no espaço, possuem relação de significado, mas não
apresentam relação causal. Conforme percebeu, a sincronicidade pode
ocorrer tanto entre eventos psíquicos, como entre eventos psíquicos
e eventos não-psíquicos. Exemplos do primeiro caso: uma pessoa está
dormindo e sonhando com um amigo, quando acorda com o telefone
tocando e é justamente o amigo na linha; Dois conhecidos se encon-
tram em uma esquina e revelam surpresos que estavam um pensando
no outro. Casos desse tipo permeiam constantemente a vida cotidiana,
mas em geral sua discussão é considerada polêmica e deixada de lado.
Jung, entretanto, não se furtou a olhar com seriedade para tais assuntos.

5 Para maior aprofundamento, conferir: C. G. Jung (1952/2016), Sincronicidade: Um princípio


de conexões acausais. (Obra Completa, v. 8/3). Petrópolis: Vozes.

482
Casos de sincronicidade entre eventos psíquicos e eventos
não-psíquicos, embora mais difíceis de serem investigados siste-
maticamente, foram discutidos por Jung, e a pesquisa sobre estes
fenômenos foi importante na elaboração de sua concepção sobre a
relação entre matéria e psique.
Um caso desse tipo, que se tornou célebre, é o caso de Swe-
denborg, que foi inclusive relatado por Kant. Swedenborg teve
a visão de um incêndio que ocorria em Estocolmo, apesar de
estar em uma cidade há quilômetros de distância e sem pos-
sibilidade de ter informações de lá. Sua premonição depois foi
confirmada pelos fatos. Jung comenta este ocorrido, sugerindo
que o arquétipo,

não pode ser localizado, porque, em princípio, ou se acha todo


inteiro em cada indivíduo ou é o mesmo em toda parte. Nunca
podemos dizer com certeza se o que parece acontecer no incons-
ciente coletivo de um indivíduo particular não acontece também
nos outros indivíduos ou organismos ou coisas ou situações
(Jung, 1952/2016, § 902).

Ele então levanta a hipótese de que, havendo um rebaixamento


do limiar da consciência, haveria a possibilidade de se acessar o
espectro psicoide e poder realizar uma precognição, e diz sobre
Swedenborg: “O incêndio de Estocolmo ardia, em certo sentido,
também dentro dele” (Jung, 1952/2016, § 903).
No início da década de 1930, Jung conheceu Wolfgang Pau-
li, físico austríaco laureado com o prêmio Nobel, e ambos inicia-
ram um intercâmbio teórico que se estendeu por longo tempo.
Esse diálogo contribuiu de modo fundamental na maturação do
conceito de arquétipo e na concepção de Jung acerca do problema

Capítulo 16

Psique e matéria: um estudo junguiano a partir da 483


Atlântida de Platão e do sertão de Guimarães Rosa
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psique-matéria (Xavier, 2003). O arquétipo, Jung passa a conside-
rar, é o fundamento da psique, todavia, ele não é puramente psí-
quico, mas é psicoide, ou semipsíquico: “sua posição estaria situada
para além dos limites da esfera psíquica, analogamente à posição
do instinto fisiológico que tem suas raízes no organismo material e
com sua natureza psicoide constitui a ponte de passagem à matéria
em geral” (Jung, 1946/2016, § 420). 6
Isto é, os arquétipos são os fatores estruturantes da vida psí-
quica, que delineiam as possibilidades e limites da psique, e são
fatores objetivos. Assim como, por meio de nossos órgãos dos sen-
tidos nos defrontamos com a realidade e as leis do mundo material,
por meio de nossa psique nos defrontamos com a realidade e as
leis do espírito. A psique constitui uma instância particular, mas
submetida a estas duas realidades e suas leis, e incapaz de acessar
a natureza primeira delas, e sem saber também se não se trata de
uma única natureza.

Tanto a matéria como o espírito aparecem, na esfera psíquica,


como qualidades que caracterizam conteúdos conscientes. Am-
bos são transcendentes, isto é, irrepresentáveis em sua natureza,
dado que a psique e seus conteúdos são a única realidade que nos
é dada sem intermediários (Jung, 1946/2016, § 420).

6 O conceito de arquétipo foi trabalhado por Jung ao longo de toda sua obra. Segundo Xavi-
er (2003), há três principais momentos na maturação deste conceito. Em 1912, Jung ainda
não fala ainda em arquétipo, mas refere-se a uma “imago” que seria a “independência viva
na hierarquia psíquica, aquela autonomia que se cristaliza como particularidade essencial do
complexo de sentimentos às custas de experiências múltiplas” ([1912]1952/2016). Em 1919,
Jung utiliza pela primeira vez o termo arquétipo para referir-se às “formas a priori, inatas, de
intuição, quais sejam os arquétipos da percepção e da apreensão, que são determinantes
necessários e a priori de todos os processos psíquicos” (1919/2016, § 270). Na década de 1940,
por influência do diálogo com Pauli, Jung amplia o conceito, passando a considerar o arquéti-
po como psicoide, denotando com isso seu aspecto “quase psíquico”, ou semipsíquico.

484
Wolfgang Pauli (1946) faz um interessante comentário a esse res-
peito, afirmando que a “Psicologia moderna” (referindo-se à psico-
logia que investiga os aspectos objetivos do inconsciente) poderá
contribuir com a “psicologia meramente subjetiva da consciência”:

De um lado, só se pode deduzir o inconsciente indiretamente, a par-


tir de seus efeitos (organizativos) sobre os conteúdos conscientes.
De outro lado, qualquer observação do inconsciente, isto é, qual-
quer percepção consciente dos conteúdos inconscientes exerce um
efeito reativo inicialmente incontrolável sobre estes mesmos con-
teúdos inconscientes (o que, como sabemos, exclui em princípio
a possibilidade de esgotar o inconsciente tornando-o consciente).
Assim, o físico concluirá, per analogiam, que este efeito retroativo
incontrolável do observador sobre o inconsciente limita o caráter
objetivo da sua realidade e ao mesmo tempo confere a esta uma
certa subjetividade. [...] É inegável que o desenvolvimento da ‘mi-
crofísica’ aproximou imensamente a maneira de descrever a natu-
reza nesta ciência daquela da Psicologia moderna: ao passo que a
primeira, em virtude da situação de princípio que designamos pelo
nome de complementaridade, se vê em face da impossibilidade de
eliminar os efeitos do observador com correções determináveis,
sendo, assim, obrigada a renunciar, em princípio, a uma compre-
ensão objetiva dos fenômenos físicos em geral, a segunda pode su-
prir a Psicologia meramente subjetiva da consciência, postulando a
existência de um inconsciente dotado de um alto grau de realidade
objetiva (Pauli, apud Jung, 1946/2016, nota 129).

Focalizamos, até então, a influência que as investigações sobre a


sincronicidade e o diálogo com a Física tiveram sobre a formulação
do conceito de arquétipo e suas possíveis relações com a maté-

Capítulo 16

Psique e matéria: um estudo junguiano a partir da 485


Atlântida de Platão e do sertão de Guimarães Rosa
Rafael de Santis Bastos dos Reis
ria. Todavia, Jung angariou contribuições em diversas outras áreas,
como a religião comparada, a mitologia e a filosofia. Shamdasani
(2005, p. 257) mostra, nesse sentido, como o conceito kantiano de
categorias a priori foi incorporado pela psicologia junguiana e am-
pliado do pensamento lógico à toda a psique7.
Como visto, Jung confere estatuto de objetividade ao ar-
quétipo, tanto como à realidade externa. Disso decorre que
não acessamos de maneira imediata nem a natureza objetiva
da psique, o esse in intellectu, nem a objetividade material, o esse
in re. Temos acesso direto (não mediado) apenas às imagens
psíquicas, isto é, à realidade em nós: a um esse in anima.

A realidade viva não é dada exclusivamente pelo produto do compor-


tamento real e objetivo das coisas, nem pela fórmula ideal, mas pela
combinação de ambos no processo psicológico vivo, pelo esse in ani-
ma. Somente através da atividade vital e específica da psique alcança
a impressão sensível aquela intensidade, e a ideia, aquela força eficaz
que são os dois componentes indispensáveis da realidade viva. Essa
atividade autônoma da psique, que não pode ser considerada uma
reação reflexiva às impressões sensíveis nem um órgão executor das
ideias eternas é, como todo processo vital, um ato de criação contí-
nua. A psique cria a realidade todos os dias. A única expressão que me
ocorre para designar esta atividade é fantasia (Jung, 1921/2016, § 73).

Devemos notar que a palavra fantasia é empregada por Jung para


nomear conceitos diferentes. Algumas vezes ele utiliza “fantasia”
para se referir a unidades fantasiosas (por exemplo: “uma certa
fantasia relatada por um paciente”); e noutras vezes a palavra fan-

7 Segundo Shamdasani (2005, p. 258), Jung formula seu conceito de arquétipo de um modo
assimilativo e sincrético.

486
tasia é sinônimo de imaginação. Aqui, no entanto, há um terceiro
uso: a palavra fantasia está nomeando a faculdade criativa da psi-
que, faculdade esta que é também a vinculadora entre as diferentes
funções psíquicas, e entre psique e mundo externo.

Por isso, a fantasia me parece a expressão mais clara da atividade


específica da psique. É sobretudo a atividade criativa donde pro-
vém as respostas a todas as questões passíveis de resposta; é a mãe
de todas as possibilidades onde o mundo interior e exterior for-
mam uma unidade viva, como todos os opostos psicológicos. A fan-
tasia foi e sempre será aquela que lança a ponte entre as exigências
inconciliáveis do sujeito e objeto (Jung, 1921/2016, § 73).

A discussão sobre a natureza da psique e da matéria é ainda um


campo de estudo em que há mais perguntas que respostas. Jung
(1946) considerava esta uma área ainda a ser desbravada, e acredita-
va que o diálogo entre Física (sobretudo a que estuda os processos
subatômicos) e Psicologia era fecundo e deveria ser aprofundado.
Para encerrar, retomemos Guimarães Rosa, escritor que tran-
sitou com maestria por entre os caminhos da matéria e da alma, pa-
recendo ter criado sua obra desde este espaço de tensionamento, o
lugar do meio: matriz simbólica. Rosa busca pela fantasia que dorme
na matéria do mundo para com ela compor sua obra. Ele a encontra
e a coloca em seus livros e, por isto, estes são criações de sua auto-
ria, mas, ao mesmo tempo, são confirmações do mundo onde tive-
ram origem. Em uma passagem curiosa, nos diz o escritor de Minas:
“Uma vez eu passava por uma estrada no interior e reconheci o cami-
nho. Não sabia de onde, mas o estava reconhecendo. Junto de uma
palmeira descobri: eu havia descrito a estrada em Sagarana, veja só”
(Rosa, 1967/2006, p. 84).

Capítulo 16

Psique e matéria: um estudo junguiano a partir da 487


Atlântida de Platão e do sertão de Guimarães Rosa
Rafael de Santis Bastos dos Reis
referências

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Xavier, C. R. (2003). A permuta
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Capítulo 16

Psique e matéria: um estudo junguiano a partir da


Atlântida de Platão e do sertão de Guimarães Rosa baracoa
editora

Rafael de Santis Bastos dos Reis


Vania Bartalini
Universidade de São Paulo

Psicóloga, analista existencial de adultos e


casais; especialista em pesquisa qualitativa
fenomenológica; especialista em
coordenação de grupos psicoterapêuticos.
Doutoranda do programa de Pós-Graduação
da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade de São Paulo (FAU/
USP), com co-orientação no Instituto de
Psicologia/USP.

CV: http://lattes.cnpq.br/2016796800053562
E-mail: vania.bartalini@gmail.com
ORCiD: https://orcid.org/0000-0001-6349-7446

491
A paisagem como experiência.
Abordagem qualitativa
fenomenológica e o fenômeno
paisagem

Resumo: Paisagem tomada sua atuação e subsidiando


como fenômeno a ser proposições programáticas.
compreendido não do ponto
de vista morfológico, mas a Palavras-chave: Paisagem
partir da experiência sensível, Experiência Compreensão
é tarefa premente. A captura Abordagem qualitativa
da rede de sentidos aberta Fenomenologia
pela experiência da paisagem
demanda o desenvolvimento
de uma postura particular: a
postura de pesquisador que,
em contato com o modo
como paisagem se dá para o
outro - num dado momento,
num dado lugar - possa
compreender o sentimento
que vigora nesse contato.
A abordagem qualitativa
fenomenológica pode
instrumentalizar o pesquisador
/paisagista no caminho de
aproximação ao fenômeno da
paisagem do ponto de vista de
quem a vivencia, oxigenando

492
The landscape as experience.
Phenomenological qualitative
approach and the landscape
phenomenon

Abstract: Landscape taken as a its performance and subsidizing


phenomenon to be understood programmatic propositions.
not from the morphological
point of view, but from the Keywords: Landscape
sensitive experience, is a Experience Understanding
pressing task. The capture Qualitative approach
of the network of senses Phenomenology
opened by the experience of
the landscape demands the
development of a particular
posture: the posture of a
researcher who, in contact
with the way the landscape is
given to the other - at a given
moment in a given place - can
understand the feeling which
is in force in this contact. The
phenomenological qualitative
approach can instrumentalize
the researcher / landscaper in
the way of approaching the
phenomenon of the landscape
from the point of view of those
who experience it, oxygenating

493
Capítulo 17

A paisagem como
experiência.
Abordagem qualitativa
fenomenológica e o
fenômeno paisagem
Vania Bartalini
Universidade de São Paulo

Paisagistas de diferentes matizes teóricas têm se debruçado sobre


a questão da paisagem, somando perspectivas que ao longo de tem-
po vem contribuindo para o aprofundamento do tema. Uma delas
é, sem dúvida, a matiz fenomenológica que ganha espaço através
de filósofos, geógrafos e paisagistas, interessados em compreender
a paisagem não apenas do ponto de vista geográfico e morfológico,
mas particularmente como trajetividade humana que permanece
ao longo do tempo, compondo modos de ser. É como expressão
de modos de ser, ou seja como fenômeno, que a paisagem pode
se aproximar da Psicologia Social e particularmente da abordagem
qualitativa fenomenológica, somando-se assim a outros saberes no
caminho de desvelar a polissemia de sentidos que a compõe.
Na perspectiva fenomenológica paisagem é, fundamentalmen-
te, o traçado que a humanidade desenha sobre a Terra, fruto de

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 495


Editora Baracoa — 2019
uma relação íntima e indissociável que se constrói diuturnamente.
Por se definir como fazer humano, compreendê-la demanda com-
preender de forma rigorosa “Como a paisagem se dá” em vez de so-
mente perguntar “O que é paisagem”.
Estudiosos da área (paisagistas, geógrafos, filósofos) têm-se
aberto a essas indagações e indicado um rico trajeto a percorrer.

Simmel parte da constatação de que observar os mais diversos objetos


que se apresentam à visão – árvores, água, colinas, casas, nuvens, ruas
etc – bem como as mais sutis variações da luz, ‘não basta para termos
a consciência de ver uma paisagem (Simmel, 1988). Para que haja efe-
tivamente paisagem, continua ele “a consciência deve apreender, além
dos elementos, um novo conjunto, uma nova unidade, não ligado aos
significados particulares de cada elemento, nem decompostos mecani-
camente da sua soma’ (idem). O seu ensaio é justamente uma tenta-
tiva de interpretar o processo que engendra esta unidade a que se dá o
nome de paisagem (PaisagemTextos 1 -Publicação FAU/USP, 2013).

O fator essencial para esta unificação é identificado por Simmel como a


Stimmung, palavra que pode ser aproximadamente traduzida por ‘at-
mosfera’ ou ‘estado de alma’. (...) ‘a paisagem não reside nem somente
no objeto, nem somente no sujeito, mas na interação complexa destes
dois termos (PaisagemTextos 1 – Publicação FAU/USP, 2013).

É no caminho traçado por teóricos de peso como Berque, Simmel,


Dardel, entre outros, que se manifesta um promissor veio de apro-
ximação entre abordagem qualitativa fenomenológica e o estudo
da paisagem.
Definida como forma de compreensão de modos de ser, a
abordagem qualitativa fenomenológica visa a relação pesquisado/

496
mundo, buscando aproximar-se do que ocorre a partir da experi-
ência sensível, cotidiana, fática. É, portanto, na compreensão da
paisagem como modo de ser humano que a abordagem qualitati-
va fenomenológica pode ser instrumento auxiliar do pesquisador /
paisagista, ampliando seu horizonte de compreensão e subsidiando
eventuais partidos programáticos. Sua relevância está justificada,
na medida em que a finalidade última da atividade do arquiteto pai-
sagista é propositiva - na proposição se concretizam concepções de
mundo e caminhos de devir. E como proposições se transformam
e se reinventam em conformidade com o contexto e tempo vivido,
fica clara a necessidade de compreender tempo /espaço como ex-
periência sensível, que orienta o pensar.
Na atividade projetual, o que décadas atrás era reverenciado
como projeção máxima da singularidade estética, política e técnica
do arquiteto paisagista, parece ser hoje revisitado à luz de valores
particulares ao chamado da temporalidade atual.
Instada pela necessidade contemporânea de maior participa-
ção popular, floresce o conceito de cidade como construção coletiva,
onde o diálogo e os processos participativos começam a se deline-
ar como caminho possível para a construção de um futuro a curto,
médio e longo prazos. Pensar a cidade como lugar de todos e, por
isso mesmo expressão de diferenças, convoca o arquiteto paisagista
a uma postura desenhada mais à medida da nova ordem, que requer
aproximação direta ao experenciador. Para isso, a formação de uma
postura própria e adequada de pesquisador se coloca como questão.
Não há dúvida de que levar o arquiteto paisagista ao encontro
de seu público, colocando em ação um modus operandi diferente
do convencional é um grande desafio. A ruptura com o modelo tra-
dicional de conceber paisagem e, como consequência a atividade
projetual, se faz ver em muitas dimensões.

Capítulo 17

A paisagem como experiência. Abordagem qualitativa 497


fenomenológica e o fenômeno paisagem
Vania Bartalini
Hoje, no discurso de profissionais sintonizados com as ques-
tões contemporâneas, ecoam expressões como cidadania ativa e
direito do cidadão que, sem dúvida, estão referidas aos processos
de consulta, cada vez mais usuais e mais relevantes para a cons-
trução conjunta. Admitindo-se que se está diante da contingência
de buscar novas práticas que tenham o cidadão como foco, passa a
ser importante indagar: O que é consultar e consultar para que?
Consultar significa pedir opinião a alguém sobre alguma
coisa, quer o tema lhe seja próximo, quer não. O significado do
termo indica de saída o território acionado: pensamento lógico /
articulado, racionalidade, posicionamento e, na prática do arqui-
teto /paisagista, espelha a intenção de responder assertivamente
ao que o outro diz que deseja, pensa, precisa... Isso, na maioria
das vezes é tido, inadvertidamente, como o mesmo que compre-
ender. Porém, embora tomadas como sinônimo, consultar não é
o mesmo que compreender – o que não indica que um conceito
seja mais legítimo que o outro. Indica sim, que são diferentes e,
por mais que possam ser tratados como conceitos “irmãos”, não
podem ser confundidos entre si.
Compreender, particularmente do ponto de vista fenomenoló-
gico existencial, evoca território particular...Compreender dispara
o universo das impressões, daquilo que está aquém das palavras, do
que se sente antes de tudo e que apenas depois pode ser “reescrito”
e reinterpretado sob a forma de linguagem articulada. Compreen-
der tem a ver com o que se faz presente como sensação, impacto
corpóreo, intuição...o que (não por coincidência) dispara o senti-
mento de paisagem concebida não como espaço físico, mas como
atmosfera, uma certa pré-disposição, um sentir impresso no corpo.
Capturar essa dimensão na medida do que é possível ser des-
velado, aproximar-se do que acontece com o experenciador nessa

498
abertura por vezes silenciosa, anterior à análise é a principal busca
da abordagem qualitativa fenomenológica.
A apreensão daquilo que se experencia não é tarefa banal; ao
contrário, requer escuta peculiar, interessada e acolhedora, que
propicie o desvelamento de uma trama de sentidos concernente
a ambos (àquele que expressa e àquele que acolhe). Essa rela-
ção dialógica define o que se dá entre pesquisador e pesquisado
quando, sob a perspectiva fenomenológica, a experiência é am-
pliada num movimento permanente de investigação e testemu-
nho do vivido como impressão, sensação e sentimento no que se
desvela como paisagem.
Na visada fenomenológica a tradicional posição sujeito /objeto
cede lugar a uma interação entre sujeitos (pesquisador /pesquisa-
do) que se aproximam e se afastam, se interpelam mutuamente e
se avizinham de dimensões humanas por vezes inesperadas.
Tal orientação de “conduta” seria impossível se o pesquisador
não se visse implicado no processo – ele também experenciador de
paisagem é , pela fala do outro, em contato com sentidos explícitos
e implícitos de sua própria experiência. Eis aqui algo de importân-
cia fundamental: a constatação de que pesquisador e pesquisado
compartilham um mundo que os afeta e os compõem, de modo
a ser impossível conduzir-se pela pretensa neutralidade científica
como forma de obtenção de resultados.
Na abordagem qualitativa fenomenológica, a formação da pos-
tura de pesquisador se dá mediante discussões, reflexões e o fazer
prático. Nesse caminhar ocorre a gradativa depuração exigida para
a condição de pesquisador: o aprimoramento da escuta ativa e da
compreensão interpretativa. Isso faz ver que o desenvolvimento de
tal postura requer formação específica para o bom aproveitamento
do potencial analítico do ferramental em questão.

Capítulo 17

A paisagem como experiência. Abordagem qualitativa 499


fenomenológica e o fenômeno paisagem
Vania Bartalini
Método enquanto experiência do caminho

Sendo paisagem sinônimo de experiência humana, e sendo


experiência humana a tessitura de complexa rede relacional, cabe
interpretá-la à luz de sua época, de seu ethos. A necessidade de
circunscrever as interpretações às injunções epocais e conferir o
devido valor ao mundo sensível, levou muitos pensadores a se de-
bruçaram sobre a questão da episteme das ciências humanas e a
urgência de construir rigor necessário para que as humanidades
ganhassem respeito e seriedade no meio acadêmico e científico.
Entre os muitos que se dedicaram a essa tarefa destaca-se
W. Dilthey, que no século XIX elaborou as condições de pos-
sibilidade para o desenvolvimento do conhecimento histórico
como ciência rigorosa. Dilthey coloca a perspectiva histórica
em foco e defende a separação entre as ciências naturais e hu-
manas, pela simples constatação de que a cada uma cabem ob-
jetos de conhecimento distintos.

Nas ciências naturais, os sujeitos com os quais o pensamento arti-


cula necessariamente as predições por meio das quais todo conhe-
cimento ocorre são elementos que só são conquistados hipotetica-
mente por meio de uma decomposição da realidade exterior, de uma
destruição e um esfacelamento das coisas. Nas ciências humanas,
eles são unidades reais, dadas na experiência interna com os fatos
(Dilthey W., 2013).

(...) ao buscarmos produzir um conhecimento causal pleno, somos ba-


nidos para o interior de uma nuvem de hipóteses, para as quais não
há nenhuma esperança de que se possa comprová-las a partir de atos
psíquicos (idem).

500
Inicia-se então, a pavimentação do caminho que leva ao pensa-
mento fenomenológico como projeto de compreensão do humano,
através de sua “morada” constitutiva: o mundo.

A antropologia fenomenológica existencialista dá o quadro de referên-


cia...que será investigado pelas ciências humanas empíricas. A com-
preensão do indivíduo implica a reconstrução do seu mundo, na ex-
plicitação dos horizontes implícitos que conferem sentido a seus atos e
vivências, no desvelamento do projeto existencial que subjaz a todas as
suas ações (Figueiredo L. C., 2014).

A crítica às aporias (Giacóia, 2013), o borramento das fronteiras su-


jeito /objeto, até sua total dissolução com Martin Heidegger (1988) e
a orientação de “voltar às coisas mesmas” (Martins, 2005) rompem
paradigmas científicos e instituem um olhar mais abrangente.
A abordagem qualitativa nasce na esteira dessa abrangência de
olhar e com a fenomenologia ganha profundidade e rigor:

...pesquisar é perseguir uma interrogação em diferentes perspectivas...a


interrogação se comporta como um pano de fundo onde as perguntas
do pesquisador encontram solo, fazendo sentido...A interrogação inter-
roga. O que ela interroga? O mundo. Não o mundo em sua generalida-
de vazia, mas aspectos específicos do mundo que se mostram em suas
fisicalidades pragmáticas, teóricas, tecnológicas (Bicudo, 2011).

Essa postura exige do pesquisador estudo permanente e deta-


lhado das questões humanas, reflexão sobre o mundo em que
vive, além de requerer permanente atenção à investigação de seu
próprio modo de ser no mundo. Para isso, é imprescindível que
ele se mantenha aberto ao que se expressa, que esteja sempre

Capítulo 17

A paisagem como experiência. Abordagem qualitativa 501


fenomenológica e o fenômeno paisagem
Vania Bartalini
em busca, “rente” ao fenômeno, interpretando-o no contexto em
que surge, tendo sempre em vista que a atenção àquilo que se ex-
pressa deve ir além de pressupostos. Embora a captura do senso
comum seja por demais importante, a abordagem qualitativa fe-
nomenológica busca a desconstrução de conteúdos cristalizados,
para evidenciar a rede de percepções advindas do contexto his-
tórico, cultural e pessoal que atravessa toda a percepção humana,
toda fala, todo gesto, em qualquer situação. Isso leva a importan-
tes questões metodológicas.

A interrogação como processo

Mesmo que a discussão sobre método escape ao escopo do


presente artigo, é importante notar que é preocupação de longa
data, permanecendo como questão também para pensadores como
Dilthey, Gadamer, Husserl, Heidegger, Ricouer, que fizeram da dis-
cussão metodológica elemento fundamental para questionar o
modo de operar da tradição científica e filosófica.
O conceito de “destruição” (referido ao questionamento do
método da tradição) foi empregado por Heidegger e é assim des-
crito por Paulo E. R. A. Evangelista:

Sendo incontornável, não é possivel uma suspensão para além ou para


fora da tradição. Mas é possível torná-la tema de pesquisa, refletindo
cuidadosamente a cada passo. Heidegger nomeia este movimento de
‘destruição’ (Destruktion), que significa “dar fluidez à tradição emper-
denida e remover os encobrimentos que dela resultaram (Heidegger,
1927/2012 - in Evangelista, 2016).

502
Portanto, pesquisar em fenomenologia significa perguntar siste-
maticamente, interrogar-se a cada etapa, tendo em mente que Todo
perguntar é um buscar. Toda busca tem sua direção prévia a partir do
buscado (Heidegger, in Evangelista, 2015).
Aqui, é preciso observar que à interrogação corresponde uma
certa “posição” assumida pelo pesquisador, que não mais se pauta
por premissas esquadrinhadas, visto que para interrogar é neces-
sária a tomada de consciência de um “não saber”, que conduz à
posição de abertura e reverência ao desconhecido.
O pesquisador é, na verdade, “veículo” da pergunta...
Imprescindível considerar então que, para apreender o que se
mostra, é preciso refletir sobre os modos de aproximação, não apenas
àquele a quem se pergunta, mas também àquilo que se pergunta.
Indicando Heidegger, Evangelista afirma:

...o modo de acesso ao que se quer investigar não é algo de que se possa
lançar mão. Pelo contrário, é o tema mesmo da pesquisa que precisa
indicar como pode ser acessado... as coisas elas mesmas determinam
seu modo-de-tratamento (Evangelista, 2015).

A interrogação move o processo de pesquisa fenomenológica do co-


meço ao fim. Isso porque pesquisar tem o sentido de perguntar so-
bre algo que instiga o pesquisador, confronta-o, coloca-o em questão,
fazendo assim da indagação um trajeto a ser percorrido de forma
aberta, porém rigorosa. Se pesquisar é perguntar sobre o que instiga,
é preciso convir que o tema da pesquisa é, inevitavelmente, concer-
nente àquele que pesquisa e associasse-se, no mais da vezes, à inquie-
tações, indigações do próprio pesquisador. Como nos diz Bicudo:

Capítulo 17

A paisagem como experiência. Abordagem qualitativa 503


fenomenológica e o fenômeno paisagem
Vania Bartalini
A interrogação é correlata ao interrogado e a quem interroga.
Essa complexidade não pode ser ignorada ou menosprezada
(Bicudo, 2011).

A manutenção da abertura ao que se mostra é uma das maiores difi-


culdades e um dos maiores “testes” para quem investiga fenomeno-
logicamente. A visada fenomenológica exige alto grau de flexibilida-
de e capacidade de suportar incertezas, inconstâncias e paradoxos;
essa é a postura a ser desenvolvida para garantir rigor metodológico,
na medida em que facilita a expressão verdadeira do que acontece
com o pesquisado e a situação que o corresponde.
O processo interrogativo faz caminhar em direção à trama de
sentidos que se oferece – e conduzir-se por ele exige preparo e de-
senvolvimento de um modo de olhar e se relacionar com o que se
pesquisa, permitindo o aparecimento do outro, na voz do outro.
A relação pesquisador/ pesquisado/ tema é sempre pautada por
uma sucessão de indagações que vão se fazendo no percurso da
pesquisa. A direção temática é dada pelo pesquisador que, antes
de mais nada, deve estar atento ao modo daquele a quem se dirige,
pois o desenho é sempre traçado pelo pesquisado.
No processo importa menos o que perguntar e mais como
perguntar e por quê perguntar, num movimento contínuo de des-
velamento do “em virtude de que” se orientam as indagações. Nes-
se sentido, o preparo do pesquisador demanda disposição pessoal,
emocional e, em certo sentido, existencial, pois pesquisar feno-
menologicamente pede desgarramento do lugar onde se praticam
as certezas, para assumir a ignorância e habituar-se à prática da
humildade diante do desconhecido.
Há nisso certo desconcerto...a concepção de pesquisa tra-
dicional é tão familiar a todos que ao deparar-se com o modo

504
de pesquisar fenomenológico não é raro observar no pesquisa-
dor uma dose de desconfiança, receio ou descrença. É difícil se
deixar levar por um processo que promete incertezas, demanda
perguntar-se a si próprio e sinaliza de onde se sai, sem garantir
onde se chega. No entanto, como dito anteriormente, essa é
a forma rigorosa e precisa de investigação do humano: apro-
ximar-se, por-se a escutar, ser absorvido pelo modo de ser do
outro, descrevê-lo e interpretá-lo a partir desse modo, lançan-
do luzes que podem ir além da compreensão desse ou daquele
indivíduo em particular.
É importante reforçar que na perspectiva qualitativa fenome-
nológica não há objeto observado e sujeito observador e sim: o par
fenômeno /percebido”(Bicudo, 2011). Ainda segundo Bicudo,

Não há uma separação entre o percebido e a percepção de quem per-


cebe...Nesta perspectiva não se assume uma definição prévia do que
será observado na percepção, mas fica-se atento ao que se mostra”
(idem).

“O par fenômeno /percebido” é modo de aproximação bastante


adequado ao estudo do fenômeno da paisagem, quando com-
preendida como experiência sensível, resultante de uma atmos-
fera afetiva, que se dá na intersecção “percebido e percepção de
quem percebe” (idem). Perceber, experenciar, ser afetado se dão
sempre segundo o que o mundo permite e abre como possibi-
lidades vivenciais. Portanto, também vale a pena reforçar que
historicidade é elemento chave na compreensão do humano e,
como decorrência, na compreensão do fenômeno paisagem, no
sentido de apreender de que modo se dá, como afeta, o que fala
sobre o experenciador...

Capítulo 17

A paisagem como experiência. Abordagem qualitativa 505


fenomenológica e o fenômeno paisagem
Vania Bartalini
Compreensão, círculo hermenêutico e facticidade na pes-
quisa qualitativa fenomenológica

Para Dilthey, a perspectiva histórica se coloca como a única possibili-


dade metodológica capaz de conferir seriedade às ciências humanas,
pois é nela que a vida se dá. Para ele, o horizonte histórico implica sem-
pre uma hermeneûtica particular, ditada a partir das possibilidades da-
das em determinado momento, o que é o mesmo que dizer que her-
meneûtica é sempre compreensão e interpretação de uma época.

De fato, a ideia de compreensão ocupa lugar de destaque no pen-


samento de Dilthey. Para ele, compreender é capacidade humana de
estar diante do outro numa atitude empática; compreender é poder se
colocar no lugar do outro. Ricouer descreve assim a posição diltheyana:

Toda ciência do espírito – todas as modalidades do conhecimento do


homem implicando uma relação histórica – pressupõe uma capacida-
de primordial: a de se transpor na vida psíquica de outrem. No co-
nhecimento natural, o homem só atinge fenômenos distintos dele, cuja
coisidade fundamental lhe escapa. Na ordem humana, pelo contrário,
o homem conhece o homem (Ricouer, 1977).

A afirmação indica que em Dilthey compreender é atributo hu-


mano que nos define e distingue. Segundo Ricouer, essa con-
cepção abre importantes vertentes de pensamento, mas ao
colocar o indivíduo como centro de toda a possibilidade de
compreensão, Dilthey se apoia quase que exclusivamente nos
pressupostos enunciados pela psicologia, e priorizando aquele
que compreende se afasta da questão mesma da compreensão
e da interpretação.

506
No seu entender, a capacidade de compreender e interpretar
devem ganhar relevo mesmo se o foco da investigação não se deti-
ver naquele que compreende - o que será objeto de crítica tanto de
Heidegger quanto de Gadamer.
Segundo Ricouer, com ambos:

...surge uma questão nova: ao invés de nos perguntarmos como sabe-


mos, perguntaremos qual é o modo de ser desse ser que só existe com-
preendendo (Ricouer, 1977).

A mudança de perspectiva parece sutil, mas traz inegáveis consequ-


ências: ao contrário de Dilthey, em Heidegger compreensão não é
atribuição humana e sim a própria matéria humana – o modo de ser
humano é o modo da compreensão: “é constitutivo do dasein, como
ser, uma pré-compreensão ontológica” (Ricouer, 1977). Em outras pa-
lavras, é fundante do humano uma compreensão anterior a qualquer
tipo de análise, reflexão, racionalização. Isso que Heidegger nomeia
como pré-compreensão se dá na relação imediata com o mundo e
antecede tudo, como uma intuição. Se para Dilthey, compreensão
está associada à possibilidade de se colocar no lugar do outro, em
Heidegger compreensão nomeia a relação com o mundo: “Ao munda-
nizar o compreender, Heidegger o despsicologiza” (Ricouer, 1977).
O movimento de “despsicologizar” corresponde não só um
retorno à questão do ser daquele que compreende, como reve-
la uma verdade essencial: é na pré-compreensão que somos no
mundo; é em meio a ela que nos movemos cotidianamente; é nela
que estão expressos valores e juízos a cerca do mundo, dos outros,
de nós mesmos.
Sendo no mundo, nos é impossível pensar, sentir e atuar
descolados dele.

Capítulo 17

A paisagem como experiência. Abordagem qualitativa 507


fenomenológica e o fenômeno paisagem
Vania Bartalini
Heidegger e Hurssel, por exemplo, deixam clara a impossibi-
lidade de escapar ao que mundo dita, pois a facticidade dirige nos-
so olhar, sustenta nossas interpretações, nos faz reagir ao mundo
sempre filtrados pela compreensão possível a cada momento.
Conceituado por Dilthey, esse enredamento que direciona nos-
so olhar e impossibilita a captura do mundo em sua totalidade e de
modo isento foi chamado de círculo hermeneûtico. Composto pela
tríade situação-compreensão-interpretação, o círculo se dá na re-
lação dialógica sujeito/objeto, estando ambos implicados um ao ou-
tro (o sujeito que conhece o objeto é também determinado por ele).
Em linhas gerais, o círculo hemeneûtico indica que todo e qualquer
ato humano se dá em uma dada situação, que determina o modo de
compreender e interpretar o mundo. Não há portanto como sair do
círculo, já que estamos sempre e inevitavelmente imersos num con-
texto histórico, previamente dado e que nos abarca.
A inexorabilidade do círculo como condição humana aparece
aos olhos de Heidegger como uma preocupação tardia, de segunda
ordem. Para ele, não importa refletir sobre as possibilidades de esca-
par ao círculo; o importante é capturar sua estrutura, compreender
como se dá ou em virtude de que se dá. Em outras palavras, o impor-
tante é identificar que o círculo tem sua estrutura calcada naquilo
que chamou de pré-compreensão, ou seja, naquilo que é naturaliza-
do pelo mundo fático e que nos serve de referência no dia a dia.
Para Ricouer, esse modo de ser, quando analisado pelo viés
acadêmico, pode levar o nome de preconceito; no entanto, na lida
diária é a base sobre a qual nos movemos. É essa base que deve,
segundo Heidegger, ser compreendida radicalmente.
A mudança de perspectiva tem impacto direto na abordagem
qualitativa fenomenológica, na medida em que espelha seu maior
interesse: estar à disposição para captar a maneira pela qual o

508
pesquisado (ou o segmento pesquisado) descreve sua experiên-
cia sobre o tema, abrindo-se para aquilo que lhe acontece. Essa
forma de abordagem traz outra perspectiva à compreensão do
fenômeno da paisagem, que então se mostra como relação que
inexoravelmente se dá, num dado momento, sob determinadas
condições, a partir de modos de ser no mundo.
É possível concluir afirmando que, a tentativa de capturar o
que desta forma se revela como sentimento de paisagem, seja o
principal intuito daquilo que se entende por desenvolvimento da
postura de pesquisador qualitativo fenomenológico. No exercício
intenso e permanente, exigido do pesquisador, talvez resida o ne-
cessário para tornar mais transparente a estrutura pré-compreen-
siva e fática da relação homem /lugar (ou paisagem).

Capítulo 17

A paisagem como experiência. Abordagem qualitativa 509


fenomenológica e o fenômeno paisagem
Vania Bartalini
referências

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510
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JOEL, Martins e Maria Aparecida
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M. Matrizes do pensamento em Psicologia – Fundamentos e
psicológico. Editora Vozes, recursos básicos. Centauro Editora,
Petrópolis, 2014 São Paulo, 2005

GADAMER, Hans – Georg. Verdade LIMA, Catharina. Miranda


e Método. Tradução Flávio Paulo Magnoli, orientadora. Um
Meurer. Editora Vozes, Petrópolis, processo dialógico e compreensivo
2015 de construção do conhecimento.
Rev. Paisagem Ambiente: ensaios -
GIACÓIA, Oswaldo. Heidegger n. 21. São Paulo - pp. 73-80, 2006.
Urgente. Ed Três Estrelas, São
Paulo, 2013 POMPEIA, João Augusto e Bilê
Tatit Sapienza. Na presença do
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. sentido. EDUC, São Paulo, 2004
Tradução Márcia de Sá Cavalcante
Schuback. Editora Vozes, SZYMANSKI, Heloísa. A entrevista na
Petrópolis, 1988 pesquisa em educação – a prática
reflexiva. LiberLivro, Brasília, 2011
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e
Conferências. Tradução Emmanuel VERGEZ, André e Denis Huisman,
Carneiro Leão, Gilvan Fogel, História dos filósofos ilustrada
Márcia Sá Cavalcante Schuback. pelos textos. Tradução Lélia de
Editora Vozes, Petrópolis, 1997 Almeida Gonzalez. Livraria Freitas
Bastos, Rio de Janeiro, 1984

Capítulo 17

A paisagem como experiência. Abordagem qualitativa


fenomenológica e o fenômeno paisagem baracoa
editora

Vania Bartalini
Rinaldo Miorim
Universidade de São Paulo

Doutor em Psicologia Social e Mestre em


Psicologia Escolar e do Desenvolvimento
Humano pelo IPUSP. Especialista em
Saúde Coletiva pelo HC-FMUSP e atua
como psicoterapeuta na área de saúde
mental. Membro do Grupo de Pesquisa
Mitopoética da Cidade do IPUSP onde
aborda os temas do imaginário nas artes
e na literatura, das relações entre o
habitar, a experiência psíquica e o
mal-estar na contemporaneidade.

CV: http://lattes.cnpq.br/4978786560596770
E-mail: rinaldo2201@usp.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-4453-8385

513
Reflexões sobre os trajetos:
imaginário, espaço e
metrópole contemporânea

Resumo: Este artigo aborda as os comportamentos e a


afinidades entre imaginário e subjetividade, considerando
espaço, alcançando algumas a crise nos grandes centros
reflexões sobre os sentidos urbanos, no sentido de propor
do habitar na metrópole um compromisso junto ao
contemporânea. Pensando solo de que dependemos como
o trajeto antropológico, o seres vivos e como lugar de
trânsito e a estruturação das experiência psíquica.
imagens entre sujeito e mundo,
através de seus esquemas, Palavras-chave: Psicologia
símbolos e arquétipos, mas Social. Imaginação. Cidade.
também destacando o trajeto Sofrimento Psíquico.
mesológico entre o ser
humano e sua ligação com
a Terra, foram relacionadas
algumas características da
imaginação simbólica como
sua função em relação ao
tempo e a morte, do fator de
equilibração psicossocial e da
cidade como local de cultivo
psíquico. Aspectos que abrem
possibilidades para refletir
sobre os modos de habitar a
cidade e a paisagem,

514
Reflections on the paths:
imaginary, space and
contemporary metropolis

Abstract: This article the city and landscape, the


approaches the affinities behaviors and the subjectivity,
between imaginary and considering the crisis in the
space, reaching some big urban centers, in the sense
reflections on the meanings of proposing a commitment to
of living in the contemporary the soil on which we depend as
metropolis. Thinking living beings and as a place of
about the anthropological psychic experience.
path, the transit and the
structuring of the images Keywords: Social Psychology.
between subject and world, Imagination. City. Psychic
through its schemas, symbols Suffering.
and archetypes, but also
highlighting the mesological
path between the human being
and his connection with the
Earth, some characteristics of
the symbolic imagination were
related such as its function in
relation to time and death, the
psychosocial balance factor
and the city as a place of
psychic making. Aspects that
open possibilities to reflect on
the ways of inhabiting

515
Capítulo 18

Reflexões sobre os
trajetos: imaginário,
espaço e metrópole
contemporânea
Rinaldo Miorim
Universidade de São Paulo

O Imaginário e seus trajetos de organização simbólica

A imaginação em sua potência criativa, o amor e o desejo, apare-


cem como uma linguagem do coração para Samuel Taylor Colerid-
ge, ele que foi um poeta que tratou dos fenômenos da imaginação
vistos por meio das analogias entre natureza, unidade e nostalgia,
como pode ser apreciado em seu poema Desire:

Where true Love burns Desire is Love’s pure flame;


It is the reflex of our earthly frame,
That takes its meaning from the nobler part,
And but translates the language of the heart.
(Coleridge, 2009, p. 485)

O amor, como expressão da alma, e o desejo, como potência que


leva ao movimento, são unificados pelo coração, enquanto órgão

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 517


Editora Baracoa — 2019
sutil de sensibilidade. Amor e desejo como dinamismos presentes
na imaginação criativa e que relacionam nossa experiência psíqui-
ca à materialidade terrena. Para o poeta inglês, segundo Franca
Neto (2005), a imaginação criativa acontece como uma repetição
na mente finita do ato eterno de criação infinita, estruturando as
coisas e acontecimentos, organizando a vida cotidiana e funcio-
nando como uma forma essencialmente vital de atuar no mundo,
uma vez que sem ela o mundo dos objetos pareceria fixo e morto;
daí a importância da arte e da poesia, da metáfora, como agentes
de coligação do mundo em sua vitalidade e apreciação estética in-
dissociáveis. Se na poesia, a imaginação opera no sentido de fundir
sentidos separados, já a fantasia faz a justaposição dos sentidos,
costurando uma tessitura de elementos onde ecoam vibrações do
infinito no finito, propondo sentidos através da conexão de ele-
mentos que poderiam parecer contraditórios ou em oposição, mas
que vistos através da poética, integram arte e natureza dentro de
uma mesma linguagem simbólica.
Para Wunenburger (2010), o imaginário pode ser apreendido
através de diferentes perspectivas, quer dizer, primeiro, poden-
do ser entendido como uma espécie de imaginação reproduto-
ra, decorrente da atividade da memória, ou ainda, relacionado
à produção de fantasias irreais, mas em uma segunda visão, é
compreendido enquanto imaginação produtiva e criadora, como
uma atividade verdadeiramente simbólica de produção de ima-
gens e fantasias. A primeira definição, presente em discursos que
privilegiam a razão instrumental, trata os fenômenos da imagi-
nação enquanto crenças, memórias passivas, imagens neutras e
sem possibilidade de uma existência verificável, o que pode levar
a uma definição negativa do imaginário, já a segunda concepção
nos leva a compreender o imaginário em termos de agrupamen-

518
tos sistêmicos de imagens que são capazes de um tipo de orga-
nização autopoiética, que em termos da poética do devaneio de
Bachelard (1996), ressoa por meio de uma abertura do psiquis-
mo em direção à experiência e ao conhecimento do novo, uma
visão do imaginário muito próxima de uma imaginação criativa
e criadora, tal como aparece na poesia de Coleridge. Já sobre a
expansão da utilização do conceito de imaginário a partir da pós-
-modernidade, Wunenburger (2010) aponta sua relação com uma
descrença crescente quanto ao sujeito autônomo e autor de suas
próprias representações, levando-nos para perspectiva de produ-
ção de imagens onde o aleatório e o lúdico ganham importância
no léxico da produção das imagens. Isso permite uma retomada
da concepção da imaginação criativa e instauradora de sentidos
para compreensão do mundo contemporâneo e para formulações
e interpretações acerca da sociedade, dos comportamentos e da
experiência subjetiva, além de propostas de investigação cientifi-
ca do humano, da psique e da sociedade.
Conforme Wunenburger e Araújo (2003), o Imaginário des-
crito por Gilbert Durand está essencialmente identificado com
o mito, como o “primeiro substrato da vida mental, da qual a
produção conceptual é apenas um estreitamento” (p. 26). Des-
ta maneira, o Imaginário se diferencia de uma simples imagética,
isto é, das diversas formas representações do mundo, das pessoas,
animais, paisagens, cenários, eventos e objetos, obtidos através
de fotos, desenhos, filmes e outras técnicas de captura e registro
das imagens, uma vez que o Imaginário, mais que uma imagética,
se aproxima do que Henry Corbin chamou de imaginal, do cam-
po intermediário entre as sensações e a experiência divina, um
espaço composto por paisagens e personagens imaginais marca-
dos pelo encontro do simbólico. Entretanto é mister notar que

Capítulo 18

Reflexões sobre os trajetos: imaginário, espaço e 519


metrópole contemporânea
Rinaldo Miorim
as dimensões de apresentação das imagens se sobrepõem e se
interconectam na experiência psíquica, trazendo um questiona-
mento daqueles saberes que, defendendo a exclusividade de uma
racionalidade instrumental purificadora, excluem a imaginação
como forma válida e confiável de exploração da realidade. Mas
também é importante observar que tudo isso não significa des-
merecer o valor do pensamento racional, muito pelo contrário, a
integração da imaginação com a racionalidade funciona como um
jogo de luz e sombras. Se considerarmos a razão como a luz e a
imaginação como a noite, a “imagem enquanto sombra favorece
na realidade uma profundeza das coisas e assegura uma melhor
difusão da sua luminescência.” (Wunenburger & Araújo, 2003, p.
37), apresentando um contraste dos fenômenos que possibilita
uma maior discriminação dos detalhes e das análises, como no
caso da pesquisa científica.
Gilbert Durand (1988) contribuiu para a compreensão do Ima-
ginário, sua estrutura, suas funções simbólica e poética, avançan-
do sobre métodos de pesquisa que possibilitam a sua investigação.
Em sua Antropologia do Imaginário, a imaginação simbólica
possui uma importante função na forma de se lidar com o tempo
e com a morte, na mediação antropológica do mundo, nos proces-
sos de equilibração psicossocial, além de sua relação com a expe-
riência do sagrado. Já suas estruturas, relacionam os símbolos, ar-
quétipos e esquemas à noção de trajeto antropológico, ou seja, “a
incessante troca que existe ao nível do imaginário entre as pulsões
subjetivas assimiladoras e as intimações objetivas que emanam do
meio cósmico e social” (Durand, 2001, p. 41); um intercâmbio da
experiência corporal em sua relação com o meio material, cultural
e simbólico, numa mediação que não cai na armadilha do psicolo-
gismo, mas que também evita o risco de desembocar dentro de um

520
culturalismo, uma vez que o imaginário se encontra no entre, no
espaço de trânsito dos fenômenos que comunicam o subjetivo e o
objetivo. Logo, a proposta de Durand (2001; 2004) ao falar do ima-
ginário e seus fenômenos por meio das trocas entre o espaço vital
com seu ambiente de relação e os reflexos neurobiológicos inatos,
desencadeadores daqueles gestos fundamentais para a organiza-
ção neuropsicológica do ser humano, apresenta uma fenomeno-
logia da imagem que evita cair em cisões equivocadas e permite
relacionar sujeito e objeto através de um terceiro campo. São os
gestos dominantes como os de: posição, da postura ereta que pri-
vilegia a verticalidade e a visão evitando a queda abrupta; nutrição,
da sucção labial, orientação da cabeça e peristaltismo digestório
de descida; copulativo, dos esquemas e reflexos inatos propulso-
res de acasalamento. Em suma, esquemas reflexos organizadores
das funções psicofísicas, sensoriais e motoras que se apresentam
enquanto processos matriciais que, na sua relação com o universo
cósmico e social, correspondem aos grandes agrupamentos de re-
presentação e imaginação, relacionados aos diferentes universos
das imagens, seus símbolos instauradores, as formas de se lidar
com a angústia, as estruturas linguísticas, entre outros aspectos
ancorados nos diversos universos míticos e suas estruturas arque-
típicas: do imaginário diurno heroico-esquizomórfico, de corte e
oposição, da ascensão, da tentativa polêmica de vencer o mal e
superar as forças do tempo através da luta; do imaginário notur-
no, místico-antifrásico, das imagens da descida e da intimidade,
da acomodação que transforma a morte e a temporalidade; do
imaginário noturno, dramático ou sintético-disseminatório, da
organização da narrativa e da integração dos opostos, tendo no
eufemismo as tramas da conciliação entre diferentes dinamismos
simbólicos do campo psicossocial.

Capítulo 18

Reflexões sobre os trajetos: imaginário, espaço e 521


metrópole contemporânea
Rinaldo Miorim
O espaço como ser sensível da função imaginativa

Vale a pena notar que o trajeto antropológico das imagens rela-


ciona integrações entre o espaço dos locais, lugares e ambientes
sociais com uma fenomenologia psicológica e corporal onde a ver-
ticalidade e a horizontalidade, a subida e a descida, os movimentos
cíclicos e rítmicos se expressam por meio dos conteúdos de lendas
e narrativas que remetem aos mitos, mas também compõem uma
experiência psico-socio-cultural formadora e transformadora de
tais imagens. Partindo da experiência junto à fenomenologia do es-
paço e seus trajetos, do corpo e do ambiente de relação, aspectos
matriciais das imagens e de seus sentidos, temos a imagem, o es-
paço e a poética, tais como aparecem em Bachelard (2008), onde a
poética é força de coligação entre espaços possíveis e a imaginação
criativa, a poiésis enquanto ato criador, gesto espontâneo que mo-
dela as imagens através das matérias, terra, fogo, ar e água, como se
fossem verdadeiros hormônios reguladores da imaginação, seguin-
do a intuição proposta por Bachelard.
Conforme pode ser visto em Ribeiro (2015), a noção de trajeto
que aparece na obra de Gilbert Durand, também se faz presente na
filosofia da paisagem do geógrafo e orientalista Augustin Berque.
Se no primeiro observamos o trajeto antropológico, no segundo te-
mos um trajeto mesológico, que apesar de suas diferenças concei-
tuais, têm na noção de trajeto uma forma promissora “para a com-
preensão do modo como construímos, conhecemos e habitamos
nosso mundo” (Ribeiro, 2015, p. 13), considerando que tratam das
maneiras como as condições internas dos organismos interagem,
se relacionando com as características do ambiente externo, afe-
tando os comportamentos e além do mais, estabelecendo relações
sobre qualidades que dizem respeito ao desenvolvimento cogni-

522
tivo e afetivo, questões de ordem simbólica, construindo pontes
que possibilitam o entendimento das interações intersubjetivas
e intergrupais, ou seja, a noção de trajeto abre caminho para um
entendimento dos modos de vinculação com o outro e com o am-
biente, com a cidade e a paisagem, tratando do vínculo com a Terra,
numa abordagem que, além de ecológica, abre-se para os modos de
interação simbólica e da relação psíquica entre grupos e pessoas.
Numa concepção de espaço e trânsito entre ser humano e am-
biente, onde sujeito e objeto, o humano e a Terra são ligados por
uma relação de contínua interação, Berque (2011), inspirado no fi-
lósofo Watsuji Tetsurô (que por sua vez se fundamentou em Mar-
tin Heidegger), desenvolveu a noção de mediância, como o fenôme-
no da relação de uma sociedade com a extensão terrestre, onde a
própria relação é um meio e cujo sentido combina: a extensão do
mundo físico ou objetivo; as relações ecológicas que intercambiam
a espécie humana ao seu ambiente; a paisagem, “onde atuam as
relações de ordem simbólica, pelas quais uma cultura naturaliza
a subjetividade coletiva” (Berque, 2011, p. 193). Se a condição do
ser humano é medial, as trocas simbólicas e ecológicas entre o ser
humano e seu meio seguem um trajeto que não é nem objetivo e
nem subjetivo, uma trajeção, onde um incessante movimento em
espiral produzindo uma realidade trajetiva, que é semi-subjetiva e
semi-objetiva, como condição de interação com nossos meios.
No cruzamento entre duas concepções de trajeto, o antropo-
lógico e o mesológico, pode-se circunscrever algumas expressões
do Imaginário em sua dimensão espacial, uma vez que entendemos
que as noções de espaço, lugares, território e o habitar se articulam
com o universo da imagens, temas e mitos, que também é o fun-
damento criativo e criador dos mesmos, interagindo sempre com
o ambiente cósmico, material e simbólico. O trajeto antropológico

Capítulo 18

Reflexões sobre os trajetos: imaginário, espaço e 523


metrópole contemporânea
Rinaldo Miorim
relaciona corpo e espaço dentro de um campo simbólico, expres-
sando-se através dos esquemas de corte, ligação e correspondência,
se desdobrando por meio das estruturas da imaginação. Através
das narrativas, os trajetos organizam as veredas dos diferentes
universos simbólicos, o diurno (heroico), da antítese, e o noturno
(místico e dramático), do eufemismo, que organizam perspectivas
de perceber o mundo, além das formas de se lidar com a angústia
e com as faces do tempo. Fazem parte dos movimentos do regime
diurno do Imaginário as formas heroicas de confrontar o tempo e
lidar com as angústias relacionadas à morte, que se torna inimigo a
ser derrotado como nas lendas dos heróis matadores de monstros.
Separar, avançar e subir fazem parte de um amplo conjunto de te-
mas, lendas e histórias que têm na fuga do tempo e na luta contra a
morte um leitmotiv comum, que além da resposta antitética quanto
ao mal e aquilo nos assombra, possuem no avanço e conquista dos
espaços, na divisão, na subida e elevação, mecanismos e processos,
desdobramentos com os modos como habitamos nossos espaços e
construímos os lugares em que podemos viver e nos relacionar. Por
sua vez, o regime noturno do Imaginário desenvolve movimentos
de descida e de acolhida, fornecendo imagens de aprofundamen-
to, que nas lendas e mitos se apresentam como cavernas, grutas,
túneis, choupanas, o que nos lembra os espaços da intimidade e
da serenidade. Aqui a atitude não confronta o monstro, mas sim
inverte o sentido do mal, assimilando o tempo na sua vagarosidade
viscosa, se aderindo ao que ameaça, a morte se apresenta então não
como um fim e nem como aniquilamento, mas como promessa de
renovação e transmutação, tal qual a terra que assimila a matéria
orgânica se fertilizando de sua energia e nutrindo novas formas de
vida. Se o herói tenta vencer o monstro com sua espada, o místico
com sua taça procura a intimidade das misturas e das aderências,

524
transmutando o mal em bem, sem evasão ou distanciamento, pro-
curando habitar as imagens na sua concretude do aqui-e-agora. Do
ponto de vista espacial, a verticalidade heroica procura a luz como
numa busca da ascensão do espírito, já nos processos matriciais
da mística, é na descida da imagem, das suas brumas e espumas,
na sua umidade, que se inverte o sentido assimilando inclusive as
formas imagéticas da escuridão.
Entre a verticalidade e a horizontalidade do universo antropo-
lógico das imagens, a partir da encruzilhada que forma o centro e
a circularidade de seu entorno, ainda no regime noturno da ima-
gem, observa-se um terceiro campo de imagens que tem na roda
e nos ciclos de integração a expressão dramática do universo mi-
topoético, trata-se da conciliação dos opostos e da organização do
tempo na forma narrativa. É o universo simbólico capaz de colocar
em questão os limites entre o que aprendemos a chamar de vida
e de morte. Em sua imagética pictórica tem-se as geometrias dos
mandalas tântricos, dos yantras, entre tantas outras formas circula-
res e espiraladas cujo centro se confunde com a periferia, como ex-
pressivas imagens da totalidade da psique. Nas narrativas ocorrem
mitos onde bem e mal, vida e morte, o rei e a rainha, se conjugam
formando um terceiro elemento, que pode ser um filho divino, ou
ainda surgir como uma joia, da obra que se realiza em sua plenitu-
de transformativa e simbólica, como foi bem apresentado por Jung
(2011). Enfim, nesse caso o movimento espacial é circular e cícli-
co, ou ainda ritmado, conciliando um polo com o outro em suas
diferenças e assimetrias. Vale bem destacar a relação que Durand
estabeleceu entre o tempo e o espaço, sendo a função fantástica da
imaginação a condição do eufemismo e, também, da transformação
das angústias do tempo e da morte através da espacialização. No
prolongamento do tempo-espaço, as narrativas criam condições de

Capítulo 18

Reflexões sobre os trajetos: imaginário, espaço e 525


metrópole contemporânea
Rinaldo Miorim
relativizar o tempo e suas angústias, quando a experiência simbó-
lica integra a consciência com os substratos psíquicos da profundi-
dade arquetípica, tendo nos esquemas corporais e espaciais forma-
dores de imagens as formas de interagir com a temporalidade, seja
nas narrativas, nos sonhos, nos ritos e mitos, nas artes, nas formas
arquitetônicas e nos modos de interação e organização social.
Durand (2002) tomou o espaço como o “ser sensorium geral
da função fantástica” (p. 406), desta forma, o espaço se apresen-
ta fundamentalmente como o poder eufêmico dos pensamentos
enquanto o lugar das figurações e de suas imagens. As proprieda-
des deste espaço fantástico e da sua condição de manter o tempo
comprimido confere uma estabilização espacial ao ser, tal como no
espaço poético de Bachelard, que na antropologia do imaginário
de Durand corresponde as dimensões da ocularidade, profundidade
e ubiquidade da imagem. Por ocularidade compreende-se a condi-
ção visual da imagem, que à semelhança da expressão musical, de-
pendente da altura, volume e medida, opera no caráter visual da
imagem um prolongamento para uma experiência imaginária que
a partir da contemplação do mundo tende sempre a transformar o
objeto observado. Já a profundidade é aqui entendida não somente
em seu aspecto literal geométrico, mas também enquanto profun-
didade psíquica, tal como na ilusão de um desenho, onde a superfí-
cie e a profundidade se comunicam na medida “que o olho se ‘deixa
enganar’” (Durand, 2002, p. 410) e vagar por suas formas, pois a
profundidade do espaço é ela mesma um convite à “viagem longín-
qua” pelo reino da imaginação. Por fim, Durand (2002) escreveu
sobre como a ubiquidade da imagem espacial também é convite a
experiência de um símbolo pleno: “Qualquer árvore ou qualquer
casa pode se tornar o centro do mundo” (p. 411), um convite a ex-
periência junto ao mito e a transcendência, sendo a homogeneida-

526
de do espaço o que confere uma estabilização ontológica, mesmo
quando vivenciado pelo deslocamento, permitindo ao mesmo tem-
po “a participação e a ambivalência das representações imaginá-
rias” (p. 412). Dito assim, o espaço é o próprio trajeto imaginário
que permite a função fantástica se apresentar como uma função
de esperança, de transformação das angústias frente ao tempo e à
morte, cuja topologia se expressa pelas funções afetivas das estru-
turas da imaginação, da elevação, luminosidade e dicotomia trans-
cendentes, da inversão e profundidade na intimidade e na síntese
do processo da circularidade e da repetição cíclica, movimentos e
trajetos que têm na trama da rede simbólica seus pontos de ligação.

Imaginação, paisagem e metrópole contemporânea

Partindo de uma percepção crítica sobre a condição da metrópole


contemporânea, como São Paulo ou outra grande cidade, pode-se
sugerir como sua representação algo como uma grande laje con-
cretada de prédios e avenidas acinzentadas, pontilhada por minús-
culos nichos de verde aqui ou acolá, com edifícios agressivamente
espelhados, cercados de direções confusas, ruas estragadas e aveni-
das congestionadas, transporte público lotado, esgotos entupidos,
piscinões repletos de lixo, becos e vielas onde se escondem formas
enigmáticas, excessos que escondem falhas e buracos, como ar-
madilhas inesperadas para quem anda desatento. Prédios e praças
abandonados que viram habitações para as populações vulnerá-
veis, fontes que se transformam em chuveiros públicos, muros que
servem de sanitários, rios e córregos ocultos que transbordam na
cidade na época de chuvas. Tudo isso permeado por um clima de
insegurança e desconfiança dos demais, relativo à incerteza de um
mundo liquefeito e com bordas irreconhecíveis, cujo sentimento

Capítulo 18

Reflexões sobre os trajetos: imaginário, espaço e 527


metrópole contemporânea
Rinaldo Miorim
de medo é quase que uma marca, tanto para quem vive na cidade
como para quem assiste a espetacularização insana do que frequen-
temente aparece como uma representação do mundo atual. Nos
dias quentes, um cenário desértico e poluído onde se vê o despon-
tar torres, que brotam e se erguem numa velocidade surpreendente,
em meio à nuvens cinza-castanho da densa poluição, casas e vilas
que desaparecem num espetáculo cruel que destrói a memória da
cidade para dar lugar a voracidade de interesses econômicos que
pouco se importam com o sentido do habitar, que se esqueceram
do ethos como lugar para o acontecer humano e psíquico. Cidades
pós-modernas que parecem tornar presente a barbárie civilizató-
ria e o esvaziamento subjetivo, do narcisismo epidêmico, como foi
bem descrita por Damergian (2012). Paradoxalmente, apesar de
tal estado de gravidade, James Hillman (1993) ao tratar do mundo
como um vale da alma, também apresenta a cidade como um local
do cultivo psíquico, apesar de ser surpreendente pensar que um
local violento, poluído e adoecido, cercado de contrastes sociais e
injustiças, muitas perpetradas pelos próprios poderes públicos e
interesses privados, do entorpecimento, da anomia e da falta cida-
dania, possa ser um local de cultivo da alma. Para Hillman (2010),
formar imagens através de metáforas, deformá-las pelo contato
com o pathos, ver através de ideias psicológicas reflexivas e reverter
para o substrato mítico, convergem para a imagem psíquica como
um fator transformador de eventos em experiências, sendo o es-
paço, o mundo ou a cidade, não somente um local de encontro do
psíquico, mas o local da formação e transformação psíquica através
do retorno ao mito e ao arquetípico, tendo na metáfora, na poéti-
ca e na recuperação da estética, os seus caminhos de formulação
como um processo de fazer alma. A questão difícil que se apresen-
ta é como reverter, de uma civilização maníaca em sua aceleração

528
ácida e destrutiva, para o retorno às possibilidades de cultura e de
cultivo das imagens que estruturam o psiquismo. Hillman (1993)
faz a ligação do espaço com o psíquico, sugerindo o movimento
de descida e a lentidão, a atenção à beleza dos pequenos detalhes,
como veredas de trabalho psíquico, imaginando a presença nas si-
nuosidades e os cantos das coisas, como também no andar vagaro-
so que permite encontrar diferentes visadas, da paisagem da mon-
tanha aos percursos e trajetos urbanos. Existindo um parentesco
entre a experiência psíquica e a apreciação estética, assim como o
patológico que pode servir de elemento impulsionador ao trabalho
criativo e artístico.
Uma descida às imagens e simbolismos da cidade também
podem ser verificadas em Paula Carvalho (1990, pp. 146-147) nas
“cinco ordens arquetípicas”, relativas aos modos de orientação da
imaginação sobre a cidade humana e que foram descritas por Gil-
bert Durand quando tratou da cidade romana. Fundamentando-se
no princípio de que as estruturas do imaginário antropológico (he-
roica-esquizomórfica, mística-antifrásica, sintética-disseminatória)
operam condições para cinco diferentes modos de organização
social, vistos através de seus correlatos mitos, eventos, ritos e fi-
gurações da realidade socio-histórica, por esse caminho observa-se
cinco ordens imagético-simbólicas em seu trajeto relacional sobre
as pessoas, o social e seu espaço. São as ordens: marcial, da tensão
entre as forças de ataque e fuga, do imperativo da agressão; patri-
monial, da dialética entre a demanda de consumo e a produção; mer-
cantil, a instituição da troca comercial, mas também do conflito en-
tre o roubo e comércio; sacerdotal, da dialética entre poder mágico
e poder gnóstico; imperial, da coerência e soberania organizacional.
Pensando nas grandes cidades brasileiras, ou em alguma outra
que possa trazer presente elementos da crise civilizatória contem-

Capítulo 18

Reflexões sobre os trajetos: imaginário, espaço e 529


metrópole contemporânea
Rinaldo Miorim
porânea, de uma aceleração maníaca movida por um gozo mascara-
do de busca da felicidade, com fantasias que nutrem a sociedade de
consumo, de cenários em que o sagrado perde o sentido simbólico
e a liderança organizacional se dissipa na indefinição, não é difícil
perceber um caminho que regride, alcançando um ambiente agres-
sivo, tenso e intolerante, que necessita de forças de segurança, em
seu extremo apelando para uma militarização do cenário urbano
ou construindo prédios semelhantes a fortalezas ou bunkers. Se
o consumismo excede a produção, o que inclusive traz consequ-
ências deletérias quanto ao meio ambiente esgotando os recursos
naturais, se a voracidade se sobrepõe as trocas, quando o diálogo
se enfraquece diante da intolerância, então, a estrutura de ataque-
-fuga e da disciplina unilateral de uma razão instrumental que se
distancia da vida, passa a ser desencadeada em automatismos que
se combinam com a falta de solidariedade e com o narcisismo, sub-
jetividades que se esvaziam e que perdem a ligação com a vida, se
afastam da natureza e de suas paisagens. Em vez da imaginação
do corpo-matéria e da materialização-corporificação da imagem,
ocorre, vias de fato, a separação entre matéria e espírito, ou dito
de outra forma, um afastamento alienado entre vida e sentido, do
esvaziamento do símbolo em sua dimensão instauradora de signi-
ficados. O esquecimento da psique e de seu centro é ofuscado na
identificação com as massas em uma cidade banal e acelerada, sem
o contato com as belas paisagens que outrora traziam a lembrança
do Cosmos. A psicopatologia social, que é evidente nas grandes
cidades, bem que demonstra a fragilidade da coligação entre as rea-
lidades visíveis e invisíveis. Partindo do suposto que a co-presença
destas realidades também fundamenta a vida e o mundo, no limite
extremo, seu esquecimento conduz a um mundo que se destrói.
Disse o Zaratustra de Nietzsche (2014, p. 22-23) que o homem é

530
somente uma ponte sobre o abismo, uma ponte não é um fim em
si mesmo, como acredita o homem inflado e banalizado, o último
homem, massificado e tomado pelos mesmos mitos que desdenha,
evita e recusa. A grande cidade, como triunfo da mente racional,
parece estar alinhada a uma sociedade que escolheu o desespero
do abismo à ponte, afinal a experiência sagrada está morta, a poéti-
ca se distanciou da magia, a infraestrutura invisível e significadora,
da esperança de encantar o mundo, parece estar perdida.
Tratando da relação entre paisagem e cidade, como dois cam-
pos complementares necessários, não apenas para a formação do
sentido, mas inclusive para a manutenção das condições que per-
mitem uma vida plena e diferenciada, Serrão (2012) fala da paisa-
gem e da cidade como duas formas individualizadas do ser e estar,
pois se “a cidade está na paisagem, tal como a paisagem penetra a
cidade” (p. 67), existe uma urgência da reaproximação entre cida-
de e paisagem através da natureza e que vai ao encontro da con-
dição medial que Augustin Berque apresentou como ontológica e
vital para o ser humano e sua relação com o mundo, que além de
ecológica, também é uma relação de sentido e de condição para os
laços de convívio psicossocial.
Mas também, natureza e imaginação são interpretadas aqui
como análogas em sua essência. Imaginar é estar em contato
com a natureza, descer para a cidade é o acontecer e fazer psí-
quico, conforme descrito pela psicologia imaginal de J. Hillman.
A escolha por uma caminhada poética, pode ser a tentativa do
resgate entre o visível e o invisível. Como citado no início des-
te texto, os poetas, como Coleridge, já apontavam a imaginação
criativa como ponte entre vida e sentido, organizadora do mun-
do cotidiano, que não é mera cópia ou representação, mas cuja
natureza é dotada de potência significadora. A metáfora se di-

Capítulo 18

Reflexões sobre os trajetos: imaginário, espaço e 531


metrópole contemporânea
Rinaldo Miorim
ferencia da linguagem matemática das ciências e da argumenta-
ção crítica da filosofia possibilitando modos de reconexão com o
mundo, paisagem e cidade, ser humano e a Terra. Completando
essas reflexões, cabe lembrar do poeta lisboeta Fernando Pessoa
e de seu semi-heterônimo Bernardo Soares, flâneur das ruas e
apreciador das paisagens que se misturam com o desassossego
do habitante da cidade.

De resto, de que servem estas especulações de psicologia ver-


bal? Independentemente de mim, cresce erva, chove na erva
que cresce, e o sol doira a extensão da erva que cresceu ou vai
crescer; erguem-se os montes de muito antigamente, e o ven-
to passa com o mesmo modo com que Homero, ainda que não
existisse, o ouviu. Mais certa era dizer que um estado da alma é
uma paisagem; haveria na frase a vantagem de não conter a men-
tira de uma teoria, mas tão-somente a verdade de uma metáfora.
(Pessoa, 2011, p. 105)

Onde a paisagem se encontra com a alma? Viver e habitar a me-


trópole contemporânea traz um sentido desafiador. Talvez mais
do que nunca, numa crise intensa, marcada por uma avalanche
de contingências comportamentais e massificações, que esvazia
subjetividades criando condições desfavoráveis para criar e pensar
ideias capazes de refletir o psíquico, se apresente a necessidade
do desafiador resgate da conexão entre cidade e paisagem, entre
vida e sentido, que também parece pedir o retorno para um movi-
mento dentro das imagens, em busca de uma maior abertura para
com nosso ethos e para com a matérias que formam o solo de que
dependemos, não apenas como seres viventes, mas como fator de
experiência da alma.

532
Considerações finais

O imaginário criativo vai muito além da reprodutibilidade das


imagens, possibilitando a instauração de novos sentidos e signi-
ficados que coligam pessoas, comunidades, espaços e ambientes
de convivência. Sua dimensão poética, ou mais especificamente
mito-poética, permite o trânsito das imagens, vivenciadas a partir
da experiência simbólica intrapsíquica e intersubjetiva, que têm
no espaço o próprio ser sensível da função imaginativa, transfor-
mador de eventos em experiências, que permite lidar por diferen-
tes caminhos com as angústias frente a passagem do tempo e a
morte, se apresentando como um fator de equilibração psicosso-
cial. Retornar a imagem psíquica estabelece relações entre o amor,
enquanto força de ligação, e o desejo, enquanto impulso em busca
de novos caminhos. Imaginação, amor e desejo como elementos
particulares à uma poética de re-encantamento do mundo em dire-
ção de um novo ethos.
Dentro de uma definição geral, tem-se o trajeto como um es-
paço necessário para se percorrer a fim de alcançar algum pon-
to, para comunicar diferentes locais, ou ainda um itinerário de
viagem ou percurso de deambulação. Os trajetos antropológico
e mesológico relacionam pessoas e grupos ao espaço e ambiente,
trazendo uma maior aproximação de sentido entre o psíquico e
a Terra, lembrando da necessidade do vínculo permanente com
a Terra, percorrendo a sua materialidade e espiritualidade conju-
gadas, sem as quais o valor atribuído a vida vai perdendo direção
e o próprio tecido social em suas conexões intersubjetivas se en-
fraquece e esgarça, da escalada da violência, do anonimato, dando
lugar para um incremento da sensação de medo e insegurança, do
mal-estar e sofrimento permanente do mundo contemporâneo e

Capítulo 18

Reflexões sobre os trajetos: imaginário, espaço e 533


metrópole contemporânea
Rinaldo Miorim
particularmente das grandes cidades. Daí a importância de apro-
ximação entre cidade e paisagem, história e natureza conectadas
também pela imaginação poética. A paisagem apresenta na linha
do horizonte o encontro entre o Céu e a Terra, cujos trajetos são
espaços de encontro simbólico que relacionam psique e matéria
e de apreensão estética evocativa de uma nostalgia da vivência
mito-poética original.
A cidade como local de cultivo psíquico, apesar de seus pro-
blemas, conflitos, contradições e contrastes, é expressão daque-
les conteúdos antropológicos, cujas estruturas atemporais tam-
bém são apresentadas na experiência sensível junto as formas
arquitetônicas e suas paisagens fugidias. Diferentes estruturas
da imaginação se fazem presentes e são expressas no ambiente
social. A cidade contemporânea parece apresentar um trânsito
de imagens que expressa, tanto no comportamento social quanto
em seus conteúdos culturais e materiais, uma decadência e crise
civilizatória, apresentando uma indiferenciação e homogeneiza-
ção crescentes que provoca focos de tensão permanente, apazi-
guados pela voracidade, seja no consumismo, pelas demandas por
sedação e anestesia, ou ao contrário, através de uma excitação
permanente ou por outras maneiras de busca de satisfação ime-
diata, seja numa inundação de signos esvaziados ou mantidos por
atitudes unilaterais e compulsivas. Por outro lado, as reverbera-
ções míticas e estruturas emergentes se relacionam as fontes que
permitem o poetizar da vida, da deformação das imagens, como
um modo excepcional de enxergar através do pathos, percorren-
do os trânsitos, encruzilhadas e giros em torno da relação entre
a psique e o ethos, enquanto possibilidades de poder vir a ser e
do viver em lugares habitáveis, espaços do devir que se abrem à
transformação dos eventos em experiência psíquica.

534
referências
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Capítulo 18

Reflexões sobre os trajetos: imaginário, espaço e 535


metrópole contemporânea
Rinaldo Miorim
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In J. C. Paula Carvalho, domínios, teorizações, práticas
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(pp. 141-158). Rio de Janeiro:
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Pessoa, F. (2011). Livro do


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Ribeiro, S. M. P. (2015). Preâmbulo.


In S. M. P. Ribeiro, & A. F. Araújo,
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imaginário (pp. 7-14). São Paulo:
Zagodoni.

Serrão, A. V. (2012). Pensar a


natureza e trazer a paisagem
a cidade. In S. M. P. Ribeiro

536
Capítulo 18

Reflexões sobre os trajetos: imaginário, espaço e


metrópole contemporânea baracoa
editora

Rinaldo Miorim
Rodrigo Feliciano Caputo
Universidade de São Paulo /
Unisalesiano

Professor do Centro Universitário


Católico Salesiano Auxilium (Unisale-
siano). Mestre em Psicologia Social pelo
Departamento de Psicologia Social e do
Trabalho no IP-USP (2014). Especialista
em Psicologia Clínica pela Universida-
de do Sagrado Coração (2011). Gradu-
ado em Psicologia pelo Unisalesiano
(2008). Membro dos Grupo de Pesquisa
Mitopoética da Cidade e do Lapsi/IPUSP.

CV: http://lattes.cnpq.br/4206815066423072
E-mail: caputo_br@yahoo.com.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0003-1643-4834

539
A morte e os vivos: um estudo
comparativo dos Sistemas
Tanatológicos linense e Bororo

Resumo: O texto apresenta hermenêutica. As conclusões


resultados de um estudo ressaltam que, conquanto
comparativo dos aparatos seus respectivos Sistemas
técnico e simbólico de lida com Tanatológicos apresentem
a morte, típicos de dois grupos nítidas diferenças, ambos os
humanos contemporâneos que grupos têm vivenciado um
apresentam características progressivo distanciamento
histórico-culturais bastante dos indivíduos adoentados,
distintas: moradores da cidade moribundos e enlutados,
de Lins-SP, e remanescentes indicativo de “ataques” aos
Bororo que vivem em onze seus respectivos sistemas de
aldeias no estado de Mato lida com a morte, inobstante
Grosso, baseado em pesquisas o fato de que, em ambos,
documentais e empíricas, além estes Sistemas continuem a
de revisões bibliográficas representar um importante
integrativas. Dentre os organizador psicossocial.
resultados alcançados, destaca-
se a elaboração de terminologia Palavras-chave: Sistema
mais precisa para delimitar o Tanatológico; Ritos de
campo de estudos em questão, Morte; Interações Sociais;
bem como de interpretações Contemporaneidade.
teóricas das informações
obtidas quanto aos grupos
estudados, na perspectiva da
fenomenologia

540
Death and the living: a
comparative study on the
thanatological systems linense
and Bororo

Abstract: The text presents perspective of hermeneutic


results of a comparative phenomenology. The
study of the technical and conclusions highlight that,
symbolic apparatuses of although their respective
dealing with death, typical Thanatological Systems show
of two contemporary human clear differences, both groups
groups that show very have experienced a progressive
distinct historical-cultural detachment from the suffering,
characteristics: citizens of the moribund and bereaved
city of Lins-SP, and remnants individuals, indicative of
Borobo living in eleven villages “attacks” on their respective
of the state of Mato Grosso, systems of dealing with death,
based on documental and despite the fact that, in both
empiric researches, in addition cases, these Systems keep on
to integrative bibliographic representing an important
reviews. Among the results psychosocial organizer.
achieved, the elaboration of
the most precise terminology Keywords: Thanatological
to establish the fields of System. Death Rites.
studies in question stands Social Interactions.
out, as well as theoretical Contemporaneity.
interpretations of the obtained
information regarding the
studied groups, from the

541
542
Capítulo 19

A morte e os vivos: um
estudo comparativo dos
Sistemas Tanatológicos
linense e Bororo
Rodrigo Feliciano Caputo
Universidade de São Paulo / Unisalesiano

Introdução

Boa parte (senão todos) os fundamentos culturais de uma socie-


dade convergem em seu modo particular e sistemático de lidar
com a morte, formulando prescrições técnicas e simbólicas que
permitam integrar a morte à realidade social e garantir a restau-
ração da vida comunitária após a morte de um ou alguns de seus
membros. Assim, condicionam largamente todas as interações
sociais que compõem a vida cotidiana das pessoas - por isto mes-
mo, os sistemas de lida com a morte apresentam grande interesse
para a Psicologia Social, embora venham sendo estudados inci-
pientemente neste campo. O presente estudo visa contribuir para
o necessário aprofundamento conceitual e metodológico sobre
o assunto, primeiramente, através da delimitação de campo dos
sistemas de lida com a morte, a descrição de suas estruturas e
funcionalidades e o estabelecimento de uma terminologia clara;

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 543


Editora Baracoa — 2019
adicionalmente, através do estudo comparativo de dois grupos
humanos contemporâneos: linenses e os remanescentes Bororo,
buscando compreender como tais modos de lidar com a morte
repercutem sobre a vida dos membros desses grupos.

Sistemas de lida com a morte

Segundo alguns grandes pensadores, o homem é o único ente que


tem consciência de sua morte, possuindo uma terrível certeza de
que não pode evitá-la (p.e.: HEIDEGGER, 1989; SCHOPENHAUER, 2006;
MONTAIGNE, 1987); além disso e inobstante os aspectos certos e es-
perados, a morte é permeada por incertezas, tais como o tempo
(quando), o espaço (onde) e a qualidade desta (fim ou transição).
De modo ambivalente, o homem sabe da sua finitude e sente medo
da morte (DURAND, 1994), bem como traz em si o desejo da eterni-
dade (FREUD, 1915/1974), ou seja, o homem traz em si um antago-
nismo: sabe-se mortal e, contudo, sente-se imortal (MORIN, 1970).
Isso, evidencia que a lida com a morte é um dos elementos consti-
tuintes essenciais do homem (HEIDEGGER, 1989).
Dada a importância do vínculo afetivo na formação e manu-
tenção do eu e dos grupos humanos, em igual medida também
é grande o impacto, individual e coletivo, da ruptura. A experi-
ência da morte do outro e, consequentemente, a antecipação da
própria morte, estabelece a situação limite por excelência para
o indivíduo, de tal modo que o mobiliza gerando angústia, medo
e horror, provocando assim um grande colapso psíquico, que
demanda a ressignificação da sua biografia (BERGER; LUCKMANN,
2001) e elaboração do luto (FREUD, 1915/1974). No campo social
as funções e papéis que eram exercidos pelo morto precisam ser
assumidos por outro(s).

544
É para minimizar tal padecimento que toda sociedade desenvol-
ve sistemas de lida com a morte, os quais são relevantes para os agru-
pamentos humanos. Contudo, há superficialidade das definições, a
falta de delimitação do tema e uma imprecisão terminológica. Tais
esclarecimentos são fundamentais para que, posteriormente, faça-
mos as análises dos sistemas de lida com a morte linense e Bororo.
Existem poucas publicações tratando especificamente sobre
as organizações coletivas de lida com a morte. Em uma pesquisa
realizada no dia 18 de dezembro de 2017, na Plataforma Brasil e
Scielo – Scientific Electronic Library Online, enviando ordem de
busca em todos os índices, foram pesquisadas (uma por vez) as se-
guintes palavras-chave: necro-sistema(s); sistema(s) mortuário(s);
sistema(s) funerário(s) e sistema(s) tanatológico(s). Nas pesqui-
sas feitas na plataforma Brasil, a resposta obtida foi que não havia
documentos referentes àquelas buscas. No Scielo houve poucas
publicações resultantes da busca (p.e. ABBEG; BASTOS; MENEGHEL,
2003; SANTOS, 2009), sendo que nestas a terminologia sistema
mortuário e/ou sistemas fúnebres não possuem nenhuma defini-
ção, delimitação do tema ou justificativa do uso de tal termo.
Cunha (1978), utiliza o termo “sistema funerário”, porém não
discute a escolha deste termo e também não realiza uma definição
do mesmo. Porém, delimita o campo nas tarefas funerárias que an-
tecedem à morte (p.e. presságio, últimas disposições, etc.) e as que
lhe sucede (enterro, luto, etc.).
Kastembaum e Aisemberg (1983) nomeiam de diferentes mo-
dos os conjuntos integrados de lida com a morte: Sistema mortuário,
tanatológico, fúnebre e necro-sistemas e os apresentam como sinô-
nimos, porém define que estes consistem nas “[...] palavras e ações
concernentes à morte sejam consideradas como constituindo, juntas,
um sistema. Todas as sociedades desenvolveram um ou mais sistemas

Capítulo 19

A morte e os vivos: um estudo comparativo dos Sistemas 545


Tanatológicos linense e Bororo
Rodrigo Feliciano Caputo
fúnebres pelos quais podiam se entender com a morte nos seus aspec-
tos pessoais e sociais” (KASTEMBAUM; AISENBERG, 1983, p. 151).
No intuito de ampliar e refinar a conceituação, propõe-se, que
os sistemas de lida com a morte consistem nos modos instituciona-
lizados de organizar, orientar e modular o repertório das condutas
humanas individuais e coletivas diante da morte. Estes possuem pré-
-indicações dos modos de pensar, sentir e comportar-se, bem como
dos atores sociais, papéis e funções a serem exercidas nas situações
de morte. Tais modos são legitimados por um universo simbólico,
transmitido pela socialização, tornando-o reconhecido como válido
e comum a um determinado grupo, por meio de identificações e ne-
gações. Desta maneira, com base em Kaës (2005), funcionam como
um organizador social, oferecendo um sentido à morte e meios, su-
postamente eficazes, para a “(re)organização” nas esferas psíquicas
e sociais dos membros do grupo para lidar com a morte.
Entendemos também, que os constituintes e funcionalida-
des dos sistemas de lida com a morte podem ser resumidos em
três categorias, as quais delimitam o tema: não deixar morrer,
preparação para o morrer e o morrer propriamente dito e as
ações humanas pós-morte.
Parece-nos, portanto, que os termos: sistema fúnebre, sis-
tema mortuário ou necro-sistemas, embora nomeiem bem ao
momento da morte (agonia, funeral, sepultamento, etc.) e do
pós-morte (escatologia), porém, se mostram insuficientes para
nomear as ações que tentam evitar a morte (os resgates, rituais
de cura, proteção contra a morte violenta, etc.) e que também,
entendemos pertencer ao campo dos sistemas de lida com a mor-
te. Assim, parece-nos mais pertinente que estes, sejam intitulados
de “Sistemas Tanatológicos (ST)”, pois tal termo, remete-nos ao
universo mítico dos gregos no qual, Thanatos busca o moribundo

546
no mundo dos vivos para conduzi-lo ao mundo dos mortos - bus-
ca à qual os homens defrontarão a mais encaniçada resistência
(p.e. mito de Sísifo e na luta com Herácles); resistência que, fa-
dada ao insucesso, cederá lugar, afinal, aos rituais funerários e às
construções escatológicas.

Percurso da investigação

A pesquisa aqui relatada consistiu em um estudo exploratório, a fim


de aumentar o conhecimento sobre o fenômeno estudado (MARCO-
NI; LAKATOS, 2010), tal estudo foi de cunho descritivo e compara-
tivo, pois assim permite a descrição e comparação da população e
fenômeno estudado (GIL, 2002).
A população estudada foram dois grupos sociais: “linenses” e
“Bororo” que guardam diferenças marcantes, sobretudo, nos modos
de manejo da morte e as implicações desta distinta maneira nas inte-
rações humanas. Os linenses são os habitantes da cidade de Lins-SP,
com população estimada, em cerca de 77.021 habitantes (IBGE, 2017).
Os Bororo atualmente se distribuem pelas bacias do rio Ara-
guaia e do rio São Francisco, no estado do Mato Grosso. Em 2014,
havia 1.817 “Bororo”, distribuídos em onze aldeias, situadas em
seis Terras Indígenas no estado de Mato Grosso (Meruri; Sangra-
douro; Jarudori; Tadarimana; Teresa Cristina e Perigara (POVOS,
2017 apud Siasi/Sesai, 2014).
Os procedimentos metodológicos utilizados foram revisão
bibliográfica e a pesquisa empírica consistiu no exame de fontes
documentais. Estas informações foram complementadas por ob-
servações participantes ocorridas na cidade de Lins e na aldeia
Bororo Meruri e, em acréscimo, por onze entrevistas semiestru-
turadas, com sete linenses pertencentes as instituições que lidam

Capítulo 19

A morte e os vivos: um estudo comparativo dos Sistemas 547


Tanatológicos linense e Bororo
Rodrigo Feliciano Caputo
com a morte e o morrer (médico cirurgião e legista; agentes fune-
rários; coveiro; delegado de polícia; bombeiro; resgatista e padre)
e quatro Bororo (dentre estes o critério primordial na escolha dos
depoentes foi o vínculo tecido na pesquisa de campo, pois os pro-
cessos relativos a morte e o morrer são acessíveis a grande parte
dos moradores). O tratamento dos dados foi inspirado nos meios
propostos pela História Oral Temática, que consiste em uma técni-
ca, na qual se busca do depoente o seu esclarecimento ou opinião
a respeito de um assunto específico (MEIHY, 1996). Os dados colhi-
dos foram interpretados à luz das teorias estudadas, na perspectiva
da fenomenologia hermenêutica de Gadamer (1999), por meio da
qual buscamos realizar uma análise comparativa, visando compilar
aquilo que se manifestou nos Sistema Tanatológico Bororo e o Sis-
tema Tanatológico Linense e os respectivos reflexos nestes grupos.

Breve descrição do Sistema Tanatológico Linense (STL) e


do Sistema Tanatológico Bororo (STB)

Dada a dimensão desta pesquisa, sendo que os ST espraiam-se para


quase todos (senão todos) os campos da atuação humana, descre-
veremos o STL e o STB focando nos seus fundamentos estruturais
e funcionais. O STB e STL possuem semelhanças quanto a sua es-
trutura e finalidades, já que ambos partem de um modelo triádico,
com três frentes que visam: evitar a morte, lidar com a morte e dar
sentido a morte e ao morrer. Embora, esses dois ST se estabelecem
em um modelo tripartite, a construção cultural dessas frentes e a
qualidade dos arranjos se mostram distintos.
O STL, na atualidade, possui mais de uma instituição nas fren-
tes que compõem a tríade, sendo que dentre as instituições que ten-
tam evitar a morte podemos citar Bombeiros, Resgate Rodoviário, os

548
Estabelecimentos de Saúde, a Defesa Civil, Polícias Militar e Civil;
as que cuidam dos mortos podemos citar os Velórios, Cemitérios,
Empresas Funerárias, e há instituições religiosas e laicas que, além
de oferecer assistência aos moribundos e entes queridos durante os
estágios do morrer, também oferecem a estes um modelo escatoló-
gico que visa dar algum sentido à morte (com predomínio da crença
na escatologia cristã – baseada na ressureição da alma). Assim, O STL
orienta os linenses nas diversas situações de morte (naturais ou vio-
lentas), nas quais pré-indica os aparelhos sociais que devem ser acio-
nados e à quais atores sociais pode-se, ou mesmo deve-se, recorrer.
Na história linense, percebe-se que, antigamente, estes eram
próximos dos processos da morte e do morrer, já que muitas dessas
ações eram exercidas e acompanhadas pelos próprios familiares
(cuidados ao adoecer - remédios e tratamentos caseiros -, a agonia
do moribundo e o velar o defunto) e muitos procedimentos ocor-
riam no âmbito doméstico. Na atualidade, percebe-se uma crescen-
te terceirização e profissionalização nos cuidados concernentes ao
processos do morrer, as quais são deixadas a cargo de profissionais
e instituições específicas, cujos locais não são familiares e possuem
restrições no acesso como: hospitais, velório e cemitérios.
Ao que tudo indica, esses fatores provocaram o distanciamen-
to dos linenses dos estágios do morrer, tornando-os alheios a tais
processos. Segundo Ariès (1989), a transformação da “morte do-
mesticada” em “morte interdita” passou a ocorrer em todo ociden-
te e, ao que parece, tal fenômeno passou a ocorrer gradativamente
na sociedade linense, praticamente, na mesma medida que a cidade
tornava-se mais urbana, mais industrial e mais globalizada.
Os Bororo em decorrência dos processos de aculturamen-
to sofrido pelo contato interétnico, traz no seu modo triádico de
enfrentamento da morte, um modelo próprio, proveniente de sua

Capítulo 19

A morte e os vivos: um estudo comparativo dos Sistemas 549


Tanatológicos linense e Bororo
Rodrigo Feliciano Caputo
tradição, que resiste (em algumas frentes precariamente) a outro
modo presente nas aldeias oriundas dos barae (não índios), no caso
o modelo ocidentalizado (inclusive, parecido com o dos linenses).
Dada a riqueza cultural desta etnia será possível apenas indicar e
realizar breves descrições.
Na frente que visa proteger-se da morte violenta os Bororo
possuíam guerreiros e estratégias bélicas (ZAGO, 2005). Porém,
seja aqueles que foram tutelados pelo SPI (Serviço de Proteção aos
Índios) ou catequizados pelas missões salesianas, praticamente,
abriram mão de guerrear e, hoje, tais serviços são realizados pela
FUNAI (Fundação Nacional do Índio), que possui poder de polícia
nas áreas de reserva.
Os modos Bororo de evitar a morte, por meio de tratamen-
tos que visam curar são realizados através da medicina tradicional,
sendo que o bári (médico-feiticeiro) – que já não existem em algu-
mas aldeias (p.e. Meruri) – realiza rituais de cura, outro persona-
gem importante são os benzedores (geralmente, anciãos da tribo),
por fim, deve-se destacar o uso do erúbo ou “remédio do mato”,
plantas que são utilizadas com fins profiláticos ou curativos (HART-
MAN, 1967). Os Bororo também lançam mão da medicina dos barae,
que possuem alguns programas específicos para os indígenas e tem
como base o SUS (Sistema Básica de Saúde) com serviços primá-
rios, secundários e terciários, por sinal, muito precários.
Na impossibilidade de evitar a morte, os Bororo a pressen-
tem (por meio de sonhos, sinais dados pelo doente, etc.) e pre-
param as despedidas acompanhando o moribundo na agonia e na
morte, por meio de um ritual fúnebre sofisticado, denominado
Itagá, através do qual há ações coletivas, por meio das quais, cui-
dam do morto e dos enlutados (VIERTLER, 1982). Além, do funeral
tradicional, na atualidade, ocorre o funeral cristão pelos Bororo

550
convertidos ao cristianismo. Há casos em que tanto o funeral cris-
tão, quanto o Itága são realizados.
Os Bororo acreditam que o Itagá permite ao aróe (alma) o des-
locamento da aldeia dos vivos para a aldeia dos mortos, chefiada pe-
los heróis míticos Bakororo e Itubore (NOVAES, 2006). Sua nova ha-
bitação será similar em todos os sentidos a aldeia dos vivos, pois na
aldeia dos mortos também há divisão em clãs e subclãs; bem como
os aróe desejam caçar, pescar e se alimentar. O aróe é um espírito
imortal, porém, depois de algum tempo se cansa de ficar na aldeia
dos mortos e, caso queira, poderá transmigrar voluntariamente e
de modo provisório encarnando-se em um animal qualquer, para
fazer uso do seu corpo e obter algum alimento que deseje, porém
quando quiser pode retornar à aldeia dos mortos, seja por meio da
morte do animal ou saindo espontaneamente. Na escatologia Boro-
ro, independente de suas ações em vida, todas as almas possuem o
mesmo destino, pois para eles as sanções e recompensas são recebi-
das em vida (ALBISETTI; VENTURELLI, 1962). Há também entre os Bo-
roro, conforme fora dito, aqueles que se converteram e se pautam
na escatologia cristã, do catolicismo e, por meio desta, buscam dar
sentido à morte e ao morrer.
Algumas práticas do STB se extinguiram, outras são raras e ou-
tras perduram. A partir do contato interétnico, os Bororo se apro-
ximaram dos modos de viver e de morrer dos civilizados; embora
resistam em pontos fundamentais, este sistema alternativo tem
recebido a adesão de membros desta etnia, que tem colhido as
vantagens e desvantagens desta inserção, dentre essas últimas um
maior distanciamento dos processos do morrer. Embora, ao menos
até agora, para os Bororo a morte continua “domesticada”, o que
se mostra na proximidade dos trabalhos e cuidados com os doente,
moribundos, mortos e enlutados.

Capítulo 19

A morte e os vivos: um estudo comparativo dos Sistemas 551


Tanatológicos linense e Bororo
Rodrigo Feliciano Caputo
Dois modos de lidar com a morte, dois modos de viver

A descrição feita acima, embora breve, permite-nos tecer algumas


comparações entre os dois ST, em questão. O STL consiste em um
arranjo complexo de multitarefas, interconectadas e com algum
nível de interdependência, porém, com divisões claras, sobretudo,
distingue os que lidam com os vivos e aqueles que lidam com os
mortos, sendo que os primeiros possuem maior status e suas res-
pectivas instituições recebem maiores investimentos financeiros e
socioculturais em detrimento aqueles que lidam com os mortos.
No STB, há divisão em três partes no manejo com as matizes da
morte; no entanto, se mostram mais integradas e interligadas, com-
pondo um todo. No passado, essas três frentes pareciam ser mais
equilibradas; porém, atualmente, parece haver um desnível com a
predominância de maiores investimentos no funeral. Nesta cultura
a representação da vida e da morte é mais integrada; assim, aqueles
que cuidam dos doentes e os que cuidam dos mortos são dotados
de status semelhantes e, muitas vezes, acumulam as duas funções.
Os especialistas Bororo, antes de assumirem as suas funções,
são preparados, geralmente pelos anciãos e líderes culturais, sen-
do que mais que o repasse de técnicas, são transmitidos modos de
viver e de morrer, que serão repassados à todos da comunidade.
Nas entrevistas e observações, percebemos que a lida com a
morte, mediada pelo STL vigente, tal como outras esferas da vida na
sociedade ocidental, tem sido marcada pelo avanço significativo da
técnica em detrimento da ética (DAMERGIAN, 2009). Sendo que, há
uma invejável tecnologia para evitar mortes, porém, a comunidade
linense não tem sido um Ethos para abrigar os mortos e os enlutados.
Na sociedade Bororo, os modos tradicionais de “evitar a mor-
te” diminuíram consideravelmente o seu espaço e os modos dos

552
civilizados se mostram ineficientes. Apesar disso, os modos cultu-
rais, os arranjos institucionais e as interações sociais Bororo na lida
com a morte e o sentido dado a esta (p.e. ritual funerário e lutos
coletivos - tempo de resguardo propício para o restabelecimento
individual e coletivo), além de permanecer, ainda se mostram efi-
cientes diante os impactos da morte. Porém, ao que parece, entre
os Bororo, há um luto difícil de ser elaborado, marcado por perdas
contínuas - aquele relativo à morte cultural.
As entrevistas e observações indicam que entre os linenses,
de modo geral, há mais sofrimento quando morrem crianças e
jovens e as piores situações eram os adoecimentos prolongados,
com muita agonia ou subitamente em tragédias. Entre os Bororo
as mortes mais dolorosas são aquelas em que morrem os anciãos,
os detentores dos saberes Bororo.
Na sociedade linense, a “interdição da morte” tende a perdu-
rar, pois este recalque transcende o nível individual e surge também
em um esforço coletivo de reprimir pensamentos, sentimentos e
comportamentos que remetam à morte e ao morrer. Com base em
Kaës (2005), podemos propor que essa interdição da morte tor-
nou-se uma produção grupal do recalque, gerado e mantido por
uma aliança inconsciente que o mantém e o fortalece.
Isso parece ter implicações diretas na transmissão da lida com
as matizes da morte, no processo de socialização; sendo que, du-
rante a socialização primária, as crianças têm sido vetadas de fre-
quentar (hospitais, cemitérios, velórios, etc.) e falar de morte e,
assim, ficam impedidos de criarem estratégias para lidar com esta.
A negação da morte também marca o processo de socialização se-
cundária, pois a maioria dos especialistas entrevistados relatou que
teve uma formação técnica, porém não foram preparados para li-
dar com os impactos psicossociais relativos ao morrer.

Capítulo 19

A morte e os vivos: um estudo comparativo dos Sistemas 553


Tanatológicos linense e Bororo
Rodrigo Feliciano Caputo
Tal fato parece ser reflexo de uma sociedade capitalista, voltada
à produção e o consumo, nesta perspectiva a morte é contrassenso,
pois mortos não produzem, não consomem e atrapalham os vivos de
fazerem isso; bem como contrasta em uma sociedade hedonista, tal
como a linense, que, predominantemente, voltada ao prazer, não sabe
o que fazer com o sofrimento, sobretudo aquele que provém da morte.
Segundo Santos (2000) e Vilar (2000), a negação da morte é
um problema das sociedades individuais, nas quais o luto é mais
intenso do que nas sociedades coletivas, as quais possuem relações
sociais que possibilitam a diluição da dor na coletividade e que a
morte seja vista de modo mais natural. Isso parece se confirmar
neste estudo, pois a sociedade individual linense apresenta maio-
res dificuldades de enfrentar o sofrimento proveniente da morte se
comparada aos Bororo (sociedade coletiva).
A negação da própria morte e da morte dos seus parece provo-
car a saturação da morte do estranho, daquele com quem não se tem
vínculo afetivo e, que, muitas vezes, é utilizado instrumentalmente
para observar aquilo que, geralmente, não se pode olhar, em uma
espécie de voyeurismo mórbido. Assim, percebe-se o excesso de espa-
ço público e tempo para tratar sobre a morte de desconhecidos e, em
contrapartida, a insuficiência de espaço público e tempo para tratar
da própria morte ou da perda de um ente querido, o que dificulta a
elaboração da dor e da atribuição de sentido à tais ocorrências.
Em resumo, entre os linenses, emergem duas categorias de
práticas e discursos concernentes ao processo do morrer, que po-
dem ser nomeadas de “interdição da morte” e “saturação da mor-
te”. No primeiro caso, o manejo das situações do morrer é restrito
e negado; no segundo, a lida para com a morte é escancarada e sa-
turada, gerando indiferença. Ambos, criam obstáculos, psíquicos e
sociais, no trabalho de elaboração do luto.

554
O homem, na busca de escapar da angústia oriunda do fato de
a morte ser insuperável, embora indeterminada, se lança em preo-
cupações e ocupações cotidianas que o distraiam de tal condição,
caracterizando, assim, aquilo que Heidegger (1989) denomina de
vida inautêntica; porém quando se, leva em conta, tal condição
consiste na vida autêntica. Com base nisso parece que o modo pre-
dominante de vivenciar aos processos do morrer entre os linenses
caracterizam-se no modo inautêntico. Grande parte dos Bororo pa-
recem viver de modo autêntico tais processos, porém, caso ociden-
talizem os seus modos de lida com a morte, correm o risco também
de transformar a “morte domesticada” em “morte interdita”.
Suportar a dor oriunda da morte nunca fora fácil e nunca será,
mas, na atualidade, entre os Bororo parece que isso tornou-se um
pouco mais difícil. Já entre os linenses, a morte ganha o status de in-
tolerável, o que leva a necessidade de mantê-la no desconhecimen-
to. O STL e o STB, enquanto organizadores sociais, sofreram grandes
ataques e, com isso, foram fragilizados e perderam parte da sua ca-
pacidade de regulação e suporte, de modo que hoje, ambos realizam
as suas funções com maiores dificuldades do que antes. Assim, no-
ta-se a negação da morte entre os linenses e entre os Bororo maior
distanciamento dos processos do morrer.

Considerações finais

Os resultados permitem constatar que ambos os grupos, frente às


alterações socioculturais intensificadas nas últimas décadas, viven-
ciaram um progressivo distanciamento dos indivíduos adoentados,
moribundos e enlutados. Contudo, e a despeito do intenso proces-
so de aculturação dos “Bororo”, este grupo ainda guarda diferenças
marcantes em relação aos “linenses” quanto ao modo de lidar com

Capítulo 19

A morte e os vivos: um estudo comparativo dos Sistemas 555


Tanatológicos linense e Bororo
Rodrigo Feliciano Caputo
a morte. Sobretudo, os “Bororo” mantém a possibilidade de expres-
sar coletivamente sua dor e de vivenciar o luto comunitariamente,
enquanto aos “linenses” restam apenas formas privadas e discre-
tas; além disto, os “Bororo” guardam maior proximidade com tudo
o que cerca a morte e o morto. Em ambos os grupos confirma-se
que o aparato técnico e simbólico de lida com a morte representa
um importante organizador psicossocial, pois orienta e auxilia as
pessoas no enfrentamento individual e/ou coletivo da morte, fa-
vorecendo a elaboração dos impactos psíquicos e a reorganização
dos papéis e vínculos sociais. Também se verificou, em ambos os
grupos, fenômenos indicativos de “ataques” aos seus respectivos
sistemas de lida com a morte que, ao que parece, contribuem para
aumentar o distanciamento de todas as faces e nuances da morte.
Tomando-se a terminologia utilizada por Ariès (1989), quando
denomina de “domesticada” a morte, poderíamos dizer que, devi-
do à condição humana a morte é “selvagem”, mas, com organiza-
dores sociais mais estruturados, pode tornar-se “domesticada” - tal
como já afirmava Montaigne (1987): para domar a morte basta dela
se avizinhar. Porém, isso só é possível através de ST que, de fato,
proporcionem a lida com a morte com um mínimo de terror. Ao
que parece, o STB ainda exerce tal função, porém, o STL cada vez
mais caminha para um modo muito ineficiente de lidar com aquilo
que se evidencia a toda hora: a morte.

556
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Capítulo 19

A morte e os vivos: um estudo comparativo dos Sistemas


Tanatológicos linense e Bororo baracoa
editora

Rodrigo Feliciano Caputo


Tiago Pilotto Rodrigues Alves
Universidade de São Paulo

Possui graduação em Psicologia pela


Universidade Presbiteriana Mackenzie
(2016). Atualmente é psicólogo - Con-
sultório Particular. Tem experiência
na área de Psicologia, com ênfase em
Psicologia Analítica, atuando principal-
mente nos seguintes temas: psicoterapia
analítica, jornada do herói e mito. Tam-
bém é Orientador Profissional e utiliza
Caixa de Areia (Sandplay). 

CV: http://lattes.cnpq.br/6417500340659664
E-mail: tiago.pilott22@gmail.com
ORCiD: https://orcid.org/0000-0001-6361-3822

561
O Morto-Vivo como símbolo e
sintoma da destrutividade do
ethos contemporâneo

Resumo: O presente artigo


possui como objetivo analisar
a imagem do Morto-Vivo
assim transmitida pelo seriado
televisivo “The Walking
Dead” como representação
artística da destrutividade
e negatividade do ethos
contemporâneo. Alguns
personagens e suas relações
também foram analisadas,
apresentando-se como
indicadores desta corrupção
pós-moderna.

Palavras-chave: Morto-Vivo;
zumbi; The Walking Dead;
Símbolo; ethos

562
The undead as a symbol and
symptom of the degeneration
of contemporary ethos

Abstract: The objective


of this article is to analyze
the image of the Undead,
transmitted by the television
series “The Walking Dead”
as an artistic representation
of the degeneration and
negativity of the contemporary
ethos. Some characters and
their relationships were
also analyzed, presenting
themselves as indicators of this
postmodern corruption.

Keywords: Undead; zombie;


The Walking Dead; Symbol;
ethos

563
Capítulo 20

O Morto-Vivo como
símbolo e sintoma da
degeneração do ethos
contemporâneo
Tiago Pilotto Rodrigues Alves
Universidade de São Paulo

Introdução: O Morto-Vivo (Zumbi)

O Morto-Vivo, comumente conhecido como Zumbi, é um monstro que


se faz presente em muitos filmes, quadrinhos, jogos de tabuleiro e vi-
deogames. Este ser povoa o imaginário coletivo, em falas, brincadeiras
e expressões, aparecendo às vezes até em jogos de Role Playing Game
(RPG), onde os participantes imaginam e fantasiam situações que vi-
vem como personagens de histórias criadas em grupo. Neste tipo de
jogo, imagina-se como sobreviver ao tão temido “apocalipse zumbi”. O
Apocalipse Zumbi se refere à completa destruição da sociedade devido
à rápida proliferação de mortos-vivos, normalmente iniciando-se em
grandes centros urbanos e se alastrando pelo resto do país e do mundo
(efeito da grande facilidade de transportes intercontinentais, da rápida
disseminação do fenômeno zumbificante, etc.). Quanto mais pessoas
aglomeradas, pior o prognóstico geral e maior é a desolação causada
pelos mortos que caminham (e às vezes correm).

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 565


Editora Baracoa — 2019
Desprovido de consciência ou moral, é um resíduo putrefato
de um ser humano, transformado de morto a ser movente, mas
“inanimado”, extirpado de “anima”, de alma. Sua única volição é a
de consumir carne; de preferência a carne humana. Na sociedade
ocidental pós-moderna, raro é encontrar um habitante urbano que
jamais ouvira falar em Mortos-Vivos. Este monstro é bem conhe-
cido principalmente pela população jovem, que em determinados
grupos discute exaustivamente sobre suas formas de funciona-
mento e, sobremaneira, como sobreviver durante a ocorrência de
um “Apocalipse Zumbi”. Guimarães (2014) faz um estudo muito
interessante com um grupo de jovens pertencente a um fórum
online de domínio do Facebook sobre o fenômeno urbano Zom-
bie Walk. Caracterizado por um “passeio” macabro pelas ruas do
centro da cidade. Os participantes desta “parada cadavérica” se
fantasiam de Mortos-Vivos, assustando os transeuntes e gerando
olhares de espanto.
A série televisiva “The Walking Dead”, que retrata os mor-
tos-vivos e os humanos inseridos no contexto pós-apocalíptico é
exibida pela empresa AMC desde 2010 e se encontra em sua oitava
temporada. Extremamente famosa, é alvo de infindáveis discus-
sões em fóruns e grupos de bate-papo. Com críticas geralmen-
te positivas e alto índice de visualizações, é a série que possui o
maior número total de telespectadores na temporada de outono
com classificação indicativa entre 18 e 49 anos na televisão a cabo
americana (site da AMC1, visualizado em 02/09/2018). O presente
artigo se propõe a analisar a série, os mortos-vivos e alguns perso-
nagens e suas relações, como enunciador do sintoma da degenera-
ção presente no Ethos contemporâneo.

1 http://www.amc.com/shows/the-walking-dead/talk/2012/12/the-walking-dead-season-3-ratings

566
O caráter arquetípico do Morto-Vivo

Ainda pensando sobre o problema que apresenta o morto-vivo,


devemos buscar teóricos e pensadores que auxiliem no processo
de sua compreensão. Carl G. Jung, pai da Psicologia Analítica, de-
monstra a existência de um Inconsciente Coletivo, comum a todos
os seres humanos e “local” capaz de abrigar os Arquétipos. Esta é
base e premissa para todo o desenrolar e construir da teoria jun-
guiana. Largamente discutido, o conceito de arquétipo aparece
desde o seu estabelecimento pelo teórico entre 1909 e 1912, quando
este ainda estava colaborando com Freud, mas já estava investigan-
do mitologia e escrevendo seu famoso livro Psicologia do Incons-
ciente (Stein, 2005, Jung, 2012). Para Jung (2006), os conteúdos
inconscientes se projetam por natureza na realidade externa, com
o objetivo último de serem introjetados de forma positiva e assim
elaborados, formando então, na consciência, símbolos energéticos
de cunho ideoafetivos (imagens mentais e respostas emocionais)
deste conteúdo emergente. Quando um arquétipo se manifesta no
aqui e no agora, denominamo-los Símbolo (Jacobi, 1988).
Para a psicologia analítica (Jung, 2006, 2008a), os símbolos
são expressos através de contos de fadas, folclore, mitos e so-
nhos. Contemporaneamente, estas manifestações simbólicas se
apresentam através de filmes, revistas em quadrinhos, jogos ele-
trônicos e outras formas de veiculação midiática de longo alcance
e grande velocidade de reprodução e divulgação (Jung, 2008a).
Toda imagem que cresce de maneira exagerada dentro de certa
cultura com muita segurança apresenta algum conteúdo simbó-
lico e, portanto, arquetípico. Existem inúmeros exemplos deste
fato, como, por exemplo, a atriz Marylin Monroe representando
um dos vários aspectos da Anima, ou a figura fictícia Mr. Hyde

Capítulo 20

O Morto-Vivo como símbolo e sintoma da degeneração do 567


ethos contemporâneo
Tiago Pilotto Rodrigues Alves
como símbolo da Sombra, no famoso romance de Robert Louis
Stevenson (Jung, 2008a).
É neste ponto que se encaixa tal qual uma luva a imagem
simbólica do Morto-Vivo como apresentado na série “The Walking
Dead”. Extremamente atraente para o público adolescente e jovem
adulto, o monstro simboliza algo presente no psiquismo contempo-
râneo. Seu sentido torna-se mais claro a cada momento, aquele que
aponta em direção à patologia, à depressão, angústia e à violência.
A bibliografia científica referente a esta temática em portu-
guês é escassa. Em relação à psicologia foram encontrados poucos
trabalhos publicados.
Guimarães (2014), cuja pesquisa é pautada na psicologia analí-
tica, voltada à área clínica, levanta dados a respeito das fantasias de
jovens acerca da imagem do morto-vivo, abrangendo aspectos im-
portantes da psique humana em seu estudo. Através de um questio-
nário realizado pela internet, categoriza diferentes características
presentes nos Mortos-Vivos e explicitados por seus colaboradores
nos questionários. É possível perceber a grande carga emocional
que o morto-vivo elicia, bem como a grande quantidade de energia
movimentada dentro dos colaboradores, que se expressam através
de suas fantasias e discussões nos fóruns online. Ao final, Guima-
rães explica que deu apenas o primeiro passo em direção a uma
maior compreensão do símbolo do Morto-Vivo e propõe que ele
continue sendo estudado para avaliar as evoluções que sofre e gera
na psique humana.
Fora da área da psicologia mas de caráter agregador ao tema,
Del Olmo (2013) adentra de forma marcante o passado ocidental,
tocando a idade média, ao alcançar as representações de “não-mor-
tos” através de imagens e outras formas de comunicação utilizadas
na época medieval e apreende em seu trabalho as diferentes possibi-

568
lidades representacionais do zumbi no decorrer do tempo e Gomes
(2014) faz uma leitura do espaço narrativo no qual são encontradas
estas figuras aterrorizantes, demonstrando cada vez mais sua apro-
ximação do comum e vulgar; aquele que antes habitava lugares som-
brios e misteriosos, agora aparece no espaço coletivo e próximo ao
cotidiano, em centros urbanos, shopping centers, casas familiares, etc.
Colăcel (2017) é um autor romeno que discorre sobre o vide-
ogame The Last of Us, que também retrata, em sua história, uma
figura muito parecida com um morto-vivo clássico, mas com al-
gumas diferenças básicas, como sua constituição, transformação e
causa de adoecimento. Em sua pesquisa na área linguística, anali-
sa os discursos dos personagens e faz paralelos importantes entre
algumas falas e um aspecto religioso constituinte do pensar dos
personagens, no sentido de expiação dos pecados e da culpa de co-
meter atos hediondos em prol da sobrevivência. O autor também
aborda os processos de identificação daquilo que é “ser humano”,
no sentido de perceber-se e constituir-se como pessoa, a partir do
foco na descaracterização do morto-vivo, apresentando-o como
um “não humano”, devido à desfiguração do monstro. No geral, ele
elucida uma forma de discurso que não é apenas verbalizado, mas
apresentado através de imagens. Seja entre grupos - sobreviventes,
monstros, animais, etc - ou entre pessoas -Elie, Joel, etc-, formas
de comunicação se apresentam de diversas maneiras, criando um
pano de fundo emaranhado de significados. Para ele, os diversos
estilos de comunicação e a forma como eles são encenados den-
tro do videogame amontoam-se em uma linguagem processual que
joga uma luz sobre os diversos mundos nos quais habita o gamer, o
jogador deste tipo de mídia.
As pesquisas são no geral bastante recentes e, na área da psico-
logia, muito escassas, demonstrando que apenas na última década

Capítulo 20

O Morto-Vivo como símbolo e sintoma da degeneração do 569


ethos contemporâneo
Tiago Pilotto Rodrigues Alves
o tema tem chamado a atenção de estudiosos no âmbito acadêmi-
co, por mais que certas camadas da população tenham nutrido o
apreço pela figura desde o seu desenvolvimento mais contemporâ-
neo, no final do século XX.
O zumbi passou por crescentes modificações ao longo da his-
tória e continua a se modificar a cada ano. Estas transformações
caracterizam-se em sua imagem, ou seja, na forma em que ele se
expressa em determinada cultura. Desde a década de 1990, por
exemplo, a imagem do morto-vivo era a de um ser em estado de
putrefação, agressivo e devorador de carne humana, criação esta
do diretor norte americano George Romero (1968, 1978). Antes
disso, porém, em meados de 1930, o zumbi era uma espécie de “es-
cravo” mental, sem vontade ou identidade, controlado por alguém
com habilidades mágicas (1932). Estas duas imagens, a princípio
diferentes, expressam um mesmo princípio psíquico básico, deno-
minadas pela Psicologia Analítica de “Arquétipos”. Os arquétipos,
entre outras coisas, são responsáveis pela gênese de imagens no
consciente humano, através do conflito entre este e o inconsciente
(pessoal ou coletivo), e estas imagens arquetípicas são denomina-
das “Símbolos”. Nos aprofundaremos nestes dois temas a seguir.

Arquétipos e Símbolos

Largamente discutido, o conceito de arquétipo aparece desde o


seu estabelecimento por Jung entre 1909 e 1912, quando este ain-
da estava colaborando com Freud, mas já estava investigando mi-
tologia e escrevendo seu famoso livro Psicologia do Inconsciente.
(Stein, 2005)
Foram coletados vários estudos revelando o funcionamento
dos arquétipos, tanto de Jung com especial ênfase em sua obra

570
Arquétipos e o Inconsciente Coletivo (2012), até Withmont (1995),
Edinger (1995) e Stein (2005).
Jung (2011c, 2012, 2013) afirma que os arquétipos constituem
um relato indispensável da ideia do inconsciente coletivo, que in-
dica a existência de determinadas formas na psique, presentes em
todo o tempo e em todo o lugar. Assim sendo, o inconsciente não
pode ser circunscrito a determinada época ou cultura, mas que está
presente intrinsecamente na existência do ser humano, desde seu
surgimento. Segundo o psiquiatra, o inconsciente coletivo se dis-
tingue do individual no fato de não ser uma aquisição pessoal. Para
o teórico, além do inconsciente pessoal, possuímos um inconscien-
te relacionado à espécie humana:

”Minha tese é a seguinte: à diferença da natureza pessoal da psique


consciente, existe um segundo sistema psíquico, de carácter cole-
tivo, não pessoal, ao lado do nosso consciente, que por sua vez é
de natureza inteiramente pessoal e que – mesmo quando lhe acres-
centamos como apêndice o inconsciente pessoal – consideramos a
única psique passível de experiência. O inconsciente coletivo não
se desenvolve individualmente, mas é herdado. Ele consiste de
formas preexistentes, arquétipos, que só secundariamente podem
tornar-se conscientes, conferindo uma forma definida aos conteú-
dos da consciência.” (Jung, 2012, p.52, parágrafo 90)

Não é possível discorrer sobre os arquétipos sem antes abordar o


conceito de inconsciente coletivo. Segundo Jung (2008a, 2008b,
2012a, 2013) existem tantos arquétipos quanto situações típicas na
vida, porque eles representam exatamente as formas de reagir a es-
tas experiências, presentes na vida de todo e qualquer ser humano.
As vivências típicas presentes na raça humana, como as de morte,

Capítulo 20

O Morto-Vivo como símbolo e sintoma da degeneração do 571


ethos contemporâneo
Tiago Pilotto Rodrigues Alves
separação, união, transformação, renascimento, amadurecimento,
etc., possuem um substrato instintivo; em seu âmbito físico, bioló-
gico; e um caráter também imagético, em seu lado psíquico, mental.

“Quando algo ocorre na vida que corresponde a um arquétipo,


este é ativado e surge uma compulsão que se impõe a modo de
uma reação instintiva contra toda razão e vontade, ou produz um
conflito de dimensões eventualmente patológicas, isto é, uma
neurose.” (Jung. C. G., 2012, p.57, parágrafo 99)

Portanto em todo instinto está presente a existência e força de um


arquétipo. Essa presença é tão forte e marcante que Jung chega a
afirmar que os arquétipos são imagens inconscientes dos próprios
instintos:

“[…] os instintos não são vagos e indeterminados por sua nature-


za, mas forças motrizes especificamente formadas, que perseguem
suas metas inerentes antes de toda conscientização, independen-
do do grau de consciência. Por isso eles são analogias rigorosas
dos arquétipos, tão rigorosas que há boas razões para supormos
que os arquétipos sejam imagens inconscientes dos próprios ins-
tintos; em outras palavras, representam o modelo básico do com-
portamento instintivo.” (Jung, C. G., 2012, p.53, parágrafo 91)

Assim como o inconsciente coletivo, que é tudo, menos um siste-


ma pessoal encapsulado, sendo objetividade ampla como o mundo
e aberta para o mundo (Jung, 2006, 2012a, 2013; Whitmont, 1995,
Stein, 2005), é possível afirmar que os arquétipos também o são.
Para o teórico, outra forma de expressão bem conhecida se en-
contra nos mitos e nos contos de fada (Jung, 2012). O arquétipo

572
representa conteúdos inconscientes que se modificam através de
sua conscientização (pelo indivíduo ou pela cultura – o consciente
coletivo). (Stein, 2005; Whitmont, 1995; Edinger, 1995; Jung, 2012)
Desta forma, conforme determinada coletividade ou pessoa entra
em contato com a imagem arquetípica enviada pelo inconsciente
coletivo, esta é modificada e trabalhada de forma a se adequar em
determinado tempo, local e vivência.

Morto-Vivo como mitologia contemporânea

Um mito atual é o do zumbi. Este ser é uma representação sim-


bólica e imagética de um arquétipo que o representa. Para Jung
(2012), “as figuras do inconsciente sempre foram expressas através
de imagens protetoras e curativas, e assim expelidas da psique para
o espaço cósmico”.
É possível fazer um paralelo desta afirmação de Jung
sobre as figuras positivas expelidas da psique com as figuras
negativas. Demônios, monstros, seres obscuros e maléficos que
sempre habitaram a psique lado a lado com as figuras de criação,
desenvolvimento e luz também são expelidas pela psique através de
projeções. Os zumbis, portanto, são projeções da psique coletiva.
Suas características, formas de atuação e comportamento são
imagens simbólicas desenvolvidas através da atuação do arquétipo
na cultura contemporânea. Para Jung, os mitos (como o do zumbi),
são antes de mais nada manifestações da essência da alma que
foram negados até os nossos dias.
Deve-se pensar agora no motivo de sucesso deste gênero de terror.
O zumbi, sendo uma imagem arquetípica, exprime conteúdos incons-
cientes da psique coletiva. Estes conteúdos trazem uma força energéti-
ca que exerce um determinado grau de terror, espanto, encanto.

Capítulo 20

O Morto-Vivo como símbolo e sintoma da degeneração do 573


ethos contemporâneo
Tiago Pilotto Rodrigues Alves
Porém, os símbolos têm passado por um crescente e grave
processo de perda de energia. Eles já não são considerados à luz da
consciência e possuem pouca representatividade no mundo mo-
derno como imagens significativas e transformadoras. Jung adver-
te claramente a respeito deste fenômeno e explica suas possíveis
consequências, em longo prazo:

“Seria insensato rejeitá-los pelo fato de, em termos racionais,


parecerem absurdos ou despropositados. Constituem-se em ele-
mentos importantes da nossa estrutura mental e forças vitais
na edificação da sociedade. Erradicá-los seria uma grave perda.
Quando reprimidos ou descurados, a sua energia específica de-
saparece no inconsciente com incalculáveis consequências. Essa
energia psíquica que parece ter assim se dispersado vai, de fato,
servir para reviver e intensificar o que quer que predomine no
inconsciente – tendências, talvez, que até então não tivessem en-
contrado oportunidade de se expressar ou, pelo menos, de se-
rem autorizadas a levar uma existência desinibida no consciente.
(2008a, p.118-119)

O teórico continua sua explicação, afirmando que é formada, en-


tão, uma espécie de “sombra” na consciência coletiva, que mobiliza
os seres humanos a formas perigosas de comportamento, muitas
vezes inconscientes. O exemplo dado por ele foram as atrocidades
cometidas na segunda grande guerra, em relação ao pensamento in-
gênuo e positivista da primeira década do século XX (Jung, 2008a)
Sua crítica continua:

“Seres mitológicos antigos são, agora, curiosidades de museu.


Mas os arquétipos que exprimiam não perderam o seu poder de

574
atingir as mentes humanas. Talvez os monstros dos filmes de
horror modernos sejam versões distorcidas de arquétipos já não
mais reprimidos.” (Jung, 2008a, p.118)

Este é um dos pontos cruciais que embasam a reflexão presente


neste texto. O morto-vivo, sendo uma imagem arquetípica, pos-
sivelmente faz parte desta categoria de arquétipos não mais re-
primidos. Isto explica porque alguns segmentos da grande massa
coletiva são tão movimentados pelas imagens de zumbis. Algumas
pessoas sonham com estas figuras, outras as desenham. A Zom-
bie Walk é um fenômeno cultural que movimenta uma grande
quantidade de pessoas, com o objetivo de se vestirem de mortos-
vivos e caminharem pelas ruas da cidade. Edinger (1995), em seu
livro Ego e Arquétipo, explica:

“Os símbolos penetram no ego, levando-o a identificar-se com


eles e a trabalhar com eles inconscientemente; ou passam para
o ambiente externo, através das projeções, levando o indivíduo
a ficar fascinado e envolvido com objetos e atividades externos.”
(1995, p.158)

Estas projeções e seu resultante fascínio retroalimentam a cultura


de jogos, cinema, quadrinhos etc., aumentando sua produção e, em
grande parte, mantendo o ser humano neste funcionamento autô-
nomo e inconsciente, muitas vezes impedindo-o de refletir a res-
peito dos aspectos simbólicos desta imagem exteriorizada. É possí-
vel afirmar que poucas pessoas, na atualidade, discutem os valores
presentes na figura do zumbi. Seu caráter de expressão anímica,
isto é, relacionado à psique e seus conteúdos, tem gradativamente
se perdido.

Capítulo 20

O Morto-Vivo como símbolo e sintoma da degeneração do 575


ethos contemporâneo
Tiago Pilotto Rodrigues Alves
O Morto-Vivo como sintoma

Da mesma forma que assustam, espantam. Atraem na mesma me-


dida em que são profundamente repulsivos. O morto-vivo se apre-
senta com uma série de características das quais é possível identi-
ficar-se ou observar em sociedade. Entre estas, identificamos uma
que aqui possui grande importância: seu modo de operar coletivo
e massificado. Porém este funcionamento não se dá por interesse
grupal ou intencionalidade, mas por acaso, numa busca incessan-
te de uma vítima, uma presa. Caso diferentes membros, se é que
podemos utilizar este termo, de uma horda sejam atraídos para lo-
cais opostos, este agrupamento se esfacela com a mesma facilidade
com que se formou. Esta característica remete novamente à crise
existente no relacionamento interpessoal e a fraqueza presente
cada vez mais no vínculo humano contemporâneo.
Podemos observar o funcionamento massificado nos meios de
produção, no qual o ser humano, transformado agora em um autô-
mato, trabalha tal qual máquina biológica, motivada também pela
recompensa monetária, muitas vezes escassa. Da mesma forma
que um morto-vivo, a sociedade é capaz de desenvolver formas de
massificar o ser humano, aplainá-lo e homogeneizá-lo, destituin-
do-o de força vital e individualidade.
Psicologicamente falando, podemos atribuir ao zumbi a ca-
pacidade de expressar simbolicamente um resultado possível e
muitas vezes demonstrado pelas pessoas de tédio, apatia, cansaço
físico e mental. Temos vivido um tempo de crise sob o julgo de do-
enças mentais “da modernidade”, como a depressão e a ansiedade.
Em contrapartida, no seriado The Walking Dead, dificilmente
encontraremos um personagem (vivo) entediado ou afastado emo-
cionalmente de seus pares ou da terra em que pisa. Sempre em

576
busca daquilo que vai além de um abrigo melhor, Rick busca um
lugar para chamar de Lar. Os personagens principais, como Glenn
ou Carol não se satisfazem com a mera sobrevivência e o tempo
todo buscam algo a mais, algo além. Esta é uma diferença crucial
entre os viventes e os não-vivos.
A impossibilidade de exercer a compreensão e a empatia para
com outrem são também sintomas da “zumbificação”. A pessoa
torna-se fixada em um modo de operar raso e seco, perdendo a
capacidade de vincular-se humanamente de forma saudável e dura-
doura. Olhar o outro e não o ver como indivíduo é uma das carac-
terísticas sempre presentes e altamente assustadoras na figura do
morto-vivo. Este é capaz de devorar aquela que era a esposa; aquele
que era o irmão, sem remorso, culpa ou piedade. Esta “psicopa-
tia” está intimamente relacionada com a ligação exagerada com a
“carne” e seus correlatos físicos voltados à satisfação pessoal e à
perseguição cega dos desejos pessoais. Perseguir o prazer, em suas
variadas formas (alimentação, dinheiro, fama e status) não é essen-
cialmente negativo; porém quando funciona de forma unilateral,
priva o ser humano da capacidade de sacrifício, e, portanto, entre-
gar-se ao outro, senti-lo. A palavra “sacrifício”, do latim sacrificium,
quer dizer “ofício sagrado”. Quando algo é sacrificado, este objeto
ganha o caráter de númen e adquire matizes místicos ou “além” do
objeto; além do humano. O objeto torna-se uma oferenda ao deus
ou deuses, para agradá-los ou apaziguá-los. O sacrifício possui pa-
pel central na evolução psíquica, como forma básica e necessária
para auxiliar no processo de individuação. A Psicologia Analítica
aprofunda enormemente esse conceito, bem como o do simbolis-
mo alquímico da mortificatio como reação necessária para o desen-
volvimento pessoal (Edinger, 2006). Esta forma de sacralização é
cada vez mais inexistente na contemporaneidade, principalmente

Capítulo 20

O Morto-Vivo como símbolo e sintoma da degeneração do 577


ethos contemporâneo
Tiago Pilotto Rodrigues Alves
quando a lente de observação utilizada possui a finalidade de en-
xergar a entrega pessoal e a capacidade de abrir mão do “ego”, o Eu
pessoal e consciente.
O morto-vivo é incapaz de sentir pelo outro. Possui a impossi-
bilidade de empatia ou compreensão. Nas relações de trabalho isso
é expresso através da capacidade em devorar o próximo por meio
de cargas horárias exaustivas, baixa remuneração e insensibilidade
à vida de funcionários ou colegas de trabalho. Toda vez que o ou-
tro é visto como um objeto, colocado na posição de máquina, este
observador se encontra na posição de morto-vivo. Este é incapaz
de ver a vida existente à sua frente. O outro nada mais é do que um
pedaço de carne a ser devorado, presente apenas para a satisfação
pessoal, da forma que ela apareça. É necessário perceber também
que, tendo a própria condição transformada em “morto-vivo”, co-
loca-se o outro na mesma posição. Quando tenho uma existência
apática, o outro também se torna morto-vivo como resultado de
meus próprios atos e ações.
Se estou profundamente doente, adoeço aqueles ao meu re-
dor. Em minha condição de zumbi, maltrato meu cônjuge até este
também estar morto em vida; exploro meu funcionário ou cole-
ga de trabalho até este ter sua energia por mim exaurida; abuso
de meus filhos até a própria relação com eles nada mais ser do
que carne (uma aparência) desprovida de sangue, pulsação e alma
(afeto, empatia e compreensão).

Considerações Finais

Para concluir, é possível avaliar que a forma como temos vivido e


levado nossas vidas é, muitas vezes, sem vitalidade, como aponta a
emergência e o impacto causado por esta imagem. Podemos pensar

578
em uma saída: a conscientização da degeneração e destrutividade
presente no cotidiano e nas relações humanas leva à possibilidade
de agir diferente, de escolher, de sentir. E este sentir não é apenas o
sentimento do ego ou o que volta a pessoa para si mesma, mas tam-
bém a empatia. Sentir o outro e tudo aquilo que forma e fortalece re-
lações verdadeiras, baseadas também na afetividade. O morto-vivo
não sente, não se relaciona, não reflete e olhando para ele ganhamos
uma ferramenta a mais na construção de um ethos mais saudável.

Capítulo 20

O Morto-Vivo como símbolo e sintoma da degeneração do 579


ethos contemporâneo
Tiago Pilotto Rodrigues Alves
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Capítulo 20

O Morto-Vivo como símbolo e sintoma da degeneração do


ethos contemporâneo baracoa
editora

Tiago Pilotto Rodrigues Alves


Angelita Corrêa Scardua
Universidade de São Paulo / SCHOLA
- Clínica e Formação Continuada em
Psicologia

Psicóloga Clínica (SCHOLA - Clínica e


Formação Continuada em Psicologia) e
Professora de pós-graduação. Doutora
e Mestre em Psicologia Social pela USP,
com estágio de pós-graduação em Neuro-
ciências e Comportamento pela mesma
instituição. Especializada em Psicologia
Analítca e nos estudos sobre Felicidade e
Desenvolvimento Adulto.

CV: http://lattes.cnpq.br/5901743864707801
E-mail: angelitascardua@usp.br 
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-2129-1180

583
Do interior para o exterior: o
exílio de Hestia e o lugar do
coração na cidade

Resumo: Na Antiguidade expansivas da vida urbana


Clássica Hestia era a deusa contemporânea não inibam o
do fogo sagrado que guardava poder da imaginação e a busca
e preservava o estilo de vida de significado para a vida.
das famílias e da civilização.
Associada à casa e à cidade, Palavras Chave: Psicologia
Hestia era tida como o centro Arquetípica, Mitologia,
e a essência das coisas e Cidade, Habitação, Cotidiano,
do mundo percebido. Essa Feminino.
conexão com a origem
relacionava Hestia ao coração.
A associação entre centralidade
da existência e coração abre
inúmeras possibilidades para
se pensar a alma da cidade.
Uma dessas possibilidades
se dá pela via dos elementos
arquetípicos que configuram a
função de Hestia na ordenação
da vida pública e privada como
veículo de acesso à sacralidade
dos espaços vividos. Nesse
sentido, o coração, como fonte
imaginal, pode fornecer os
recursos para que as exigências

584
From the interior to the
outside: the exile of Hestia and
the place of the heart in the city 

Abstract: In Classical can provide the resources so


Antiquity Hestia was the that the expansive demands
goddess of sacred fire who of contemporary urban life do
guarded and preserved the not inhibit the power of the
lifestyle of families and imagination and the search for
civilization. Associated with meaning for life.
the house and the city, Hestia
was held as the center and Keywords: Archetypal
the essence of things and Psychology, Mythology, City,
the perceived world. This Housing, Daily life, Feminine
connection with the source
related Hestia to the heart.
The association between
the centrality of existence
and heart opens up many
possibilities for thinking the
soul of the city. One of these
possibilities is through the
archetypal elements that
configure the function of
Hestia in the ordering of public
and private life as a vehicle for
access to the sacredness of the
lived spaces. In this sense, the
heart, as an imaginal source,

585
Capítulo 21

Do interior para o
exterior: o exílio de
Hestia e o lugar do
coração na cidade
Angelita Corrêa Scardua
Universidade de São Paulo / SCHOLA
- Clínica e Formação Continuada em
Psicologia

Hestia, a casa e a cidade

Na Antiga Grécia, Hestia era a deusa do coração, e o fogo sagrado


que alimentava sua chama era o centro da casa e da vida na cidade.
A visão grega – de centralidade baseada no envolvimento com a
rotina da vida cotidiana – refletia uma condição psicológica básica,
na qual a percepção do mundo girava em torno do espaço vivido:
doméstico, conhecido, familiar. Seja em um nível individual ou co-
letivo, essa percepção posicionava o sujeito no centro do drama
da vida e definia, de muitas maneiras, a forma como as pessoas se
relacionavam com o lugar que habitavam e com seus habitantes.
No imaginário grego, Hestia ocupava o lugar de protetora das
famílias, das moradias e, também, das cidades. Seu culto era mui-
to simples, sendo consagrado pelo pai ou pela mãe nas famílias e

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 587


Editora Baracoa — 2019
pelas autoridades políticas nas cidades. Sua chama sagrada e per-
pétua era mantida nos lares, nos templos e no centro político de
cada cidade. Hestia simbolizava a permanência e a continuidade
da família e da civilização. Nesse sentido, as relações das pessoas
com e na cidade assentavam-se na História comum. No passado,
eram nos espaços públicos que as histórias das cidades eram feitas,
narradas e compartilhadas por quem nelas vivia (Mumford, 2004).
Locais como o Fórum Romano, na Antiga Roma, representa-
vam a centralidade da vida nutrida pelo fogo sagrado de Vesta, o
equivalente latino da deusa Hestia. O Fórum, uma grande praça
retangular em torno da qual encontra-se a maioria das estruturas
arquitetônicas mais importantes da cidade antiga, tais como o Co-
liseu e o Palácio Imperial, foi por séculos o centro da vida pública
romana. Nele aconteciam cerimônias cívicas e religiosas, as elei-
ções, os discursos públicos, os processos criminais e tudo o mais
que fazia de Roma uma metrópole efervescente em sua época. É
também no Fórum que se encontra o Templo de Vesta (século VII
a.C.), onde nutria-se o fogo sagrado considerado a alma da cidade
de Roma. O fogo de Vesta era alimentado e cuidado por suas Sa-
cerdotisas, as Vestais. A importância simbólica da perpetuação do
fogo de Vesta se dá pelo fato de que se acreditava que ele assegura-
va aos Romanos que o seu estilo de vida, os seus lares e a sua cidade
estavam protegidos e guardados pela Deusa (Worsfold, 2010).
A associação entre Vesta e a estabilidade dos modos de vida
conhecidos no imaginário greco-romano está intrinsecamente li-
gada à origem e função de Hestia. O nome de Hestia tanto sig-
nifica “essência” como “coração”: a verdadeira natureza de tudo.
Ou seja, à Hestia tanto corresponde aquilo que é fundamental na
existência, portanto, imutável e natural, quanto o vínculo afeti-
vo produzido pelas emoções e imagens que a constituem. Para os

588
gregos, a extinção da chama de Hestia equivalia à morte, a uma
existência fria e estéril.
Apesar de representar a substância da própria vida, Hestia tor-
nou-se praticamente desconhecida. Há entre estudiosos da Mito-
logia Grega quem se refira à deusa Hestia como “a deusa esqueci-
da” (Paris, 1991). Talvez isso se deva ao fato de que, ao contrário
de outras divindades gregas, Hestia não tem uma “história”. Há
pouquíssimos relatos de aventuras que a envolvam. Hestia sim-
plesmente “é”! Não são suas ações que a definem, mas suas vir-
tudes: leveza, suavidade, tolerância, serenidade, dignidade, calma,
segurança, estabilidade, acolhimento, perdão, equilíbrio. Ou seja,
o que define Hestia são os efeitos de sua presença. As emoções e
sentimentos que ela gera e acalenta. Talvez por sua associação com
o que é imaterial, por sua intangibilidade, o coração de Hestia foi
sendo progressivamente substituído pelo espírito apolíneo.

A transformação da casa e da cidade

Apolo, ao contrário de Hestia – que representa o centro de si-mes-


ma, da casa, da cidade, do mundo – simboliza a expansão, o deslo-
car-se para fora. O exílio simbólico de Hestia do Olimpo promove
um redirecionamento da visão de mundo e de espaço nele vivido.
Move-se de uma percepção da vida centrada no lugar de origem
para o entendimento de uma existência heliocêntrica, forjada na
razão do conhecimento do cosmos, do que está para além dos ter-
ritórios familiares, fora das fronteiras baseadas nas histórias nar-
radas pelo senso comum, pelas escolhas imaginativas do coração.
Essa mudança promoveu uma intensa ampliação na cultura e
no pensamento humano. Um crescimento no entendimento dos
fenômenos naturais, nas leis físicas que regem a vida e o universo,

Capítulo 21

Do interior para o exterior: o exílio de Hestia e o lugar 589


do coração na cidade
Angelita Corrêa Scardua
um alargamento do espaço e dos lugares habitados e percebidos.
Tais transformações, que parecem se propagar horizontalmente,
tendem, contudo, a desconsiderar a conexão com a dimensão ver-
tical da existência. A dimensão representada pela profundidade das
virtudes de Hestia. Virtudes baseadas na experiência do coração e
que a circundam como a deusa que está inteira, “um completo den-
tro de si mesma”, cuja existência se dá na sacralização do espaço
interno. Assim, enquanto Hestia encarna o espaço sagrado, onde
as pessoas se reúnem e a alma tem um lugar. O espírito apolíneo
profana os limites da interioridade, projetando a alma num espaço
destituído de centro.
Nas casas e nas cidades modernas, apolíneas, o interior é sacri-
ficado em nome do exterior. As famílias já não se reúnem mais em
torno de alguma coisa, seja um fogão ou uma televisão. Cada vez
mais as casas vão sendo ordenadas e compartimentadas de forma
a isolar seus moradores em cômodos individuais. Pouco se inte-
rage nas casas modernas. Não há jardins luxuriantes, nos quais o
excesso estético de Afrodite convida a apreciação da beleza. Não
há hortas e pomares nos quais a fertilidade de Deméter sinaliza os
ciclos da vida. Não há refeições diárias à mesa, preparadas no calor
da cozinha, no coração da casa, onde Hestia nutre os corpos e as
almas. As casas modernas, assim como as cidades, são espaços que
não promovem o convívio, o encontro, a troca, a criação de histó-
rias sobre a existência e a vida. Elas são espaços áridos, regidos pela
pureza das linhas retas, pela claridade ofuscante das luzes intensas,
quase solares, que querem revelar as sombras, as dúvidas, os segre-
dos, os mistérios da vida.
As cidades modernas oferecem à visão grandes panorâmicas,
com edifícios que apontam para o céu, desviando o olhar da terra e
do horizonte. Quando olhamos para cima perdemos a intimidade

590
do contato, nos distanciamos do princípio do centro e perdemos
a habilidade de no concentramos em nós mesmos e nos outros.
Abandonamos a perspectiva do lugar sagrado onde se cultiva a
alma. Retiramos das construções seu arcabouço histórico, sua fun-
ção de repositório de lembranças pessoais e coletivas. No mundo
apolíneo, as edificações ideais são erigidas de forma que não se
permita a consolidação das marcas do tempo, como ocorria com
as estruturas típicas dos prédios antigos em seus beirais e sacadas
(Hillman, 1993). Ao dessacralizar os espaços construídos, sacrifica-
mos o interno em detrimento de um projeto de externo idealiza-
do na atemporalidade, na perfeição mecânica da razão. Banimos a
Hestia do centro da casa e da cidade. A perda da centralização de
Hestia tem levado a uma fragmentação de nós mesmos, e nossas
cidades espelham isso.

Hestia e Hermes: Do interior para o exterior

Um aspecto forte da fragmentação de nós mesmos na cidade mo-


derna talvez seja a conectividade virtual. Hoje, nos centros urba-
nos, as pessoas, nos espaços privados e públicos, conectam-se no
ciberespaço. James Hillman (2007) viu Hermes como a figura ar-
quetípica dominante nas redes de comunicação interconectadas,
globais e instantâneas de hoje, das quais a internet é a mais emble-
mática. Na visão do autor, Hermes é do lado de fora e Hestia é do
lado de dentro. Nesse sentido, pode-se pensar que a conectividade
permite que Hermes invada o espaço que, anteriormente, era pró-
prio de Hestia. Enquanto Hestia ocupava o epicentro da habitação
humana, simbolizando permanência, imutabilidade e centralidade,
Hermes está sempre correndo entre os mundos, habitando muitos
e diferentes lugares sem pertencer a nenhum deles.

Capítulo 21

Do interior para o exterior: o exílio de Hestia e o lugar 591


do coração na cidade
Angelita Corrêa Scardua
É comum encontrarmos o estabelecimento de uma certa
complementariedade entre Hermes e Hestia. Eles funcionariam
como extremidades opostas de um espectro, mas parte do mesmo
conjunto. Por um lado, Hermes sem Hestia torna-se livre. Uma li-
berdade irresponsável e sem propósitos ou direção. Ele se torna,
como a humanidade, vagabundo (Goux, 1983). Por outro lado, Hes-
tia, mantém as coisas ordenadas em casa, com sua atenção focada e
disciplinada (Hillman, 2007). Hestia garante o lugar seguro e quie-
to para o qual o viajante poderá voltar quando se cansar de suas
aventuras. O descompasso, a fragmentação, então, pode ocorrer
quando a invasão do espaço de Hestia por Hermes – de “dentro”
pelo de “fora” – não deixa lugar para o privado, o íntimo, o pessoal
e, assim, não se pode retornar à casa porque não há lugar interior
para regressar que se diferencie do mundo exterior.
No pensamento grego, uma espécie de casamento simbólico
existiu entre Hermes e Hestia, embora Hermes nunca cruzasse seu
limiar. Psicologicamente, a união desses deuses tão distintos per-
mitiu a conexão com o coração como o centro. De certa forma, a
união de Hermes e Hestia oferece uma representação arquetípica
de viver e explorar o mundo exterior criativamente, mas sempre
podendo retornar ao interior, ao centro.
No imaginário grego a imagem cultural do centro era a deu-
sa Hestia. Como uma imagem compartilhada socialmente, qual-
quer indivíduo tinha acesso fácil a referência simbólica do cen-
tro: o coração. Naquele contexto, o coração foi descrito como o
símbolo da comunidade, do lar. Esse símbolo, enquanto vivo e
culturalmente importante, era uma conquista cultural disponí-
vel para todos cidadãos, cujo significado anímico povoava tanto
a vida individual e privada quanto a coletiva e pública. Um exem-
plo disso foi a cidade grega de Delphos. Delphos era conhecida

592
como Omphalos (o umbigo da terra). Os gregos acreditavam que
todas as partes da terra giravam em torno deste umbigo, razão
pela qual o maior templo da cidade era dedicado à Hestia. Como
centro, não apenas simbólico, mas também topográfico, Hestia
era um centro de paisagens: um local geográfico, uma cidade, a
casa e nossos próprios centros pessoais (Paris, 1991).
Se quisermos recuperar o lugar do centro no imaginário atual,
retornando a alma a seu lugar sagrado na vida cotidiana nas casas
das cidades, devemos primeiro recuperar o seu órgão: o coração.
A imersão na vida significativa, em seu sentido anímico, exige um
refinamento da percepção, que deve ser baseada no coração que
imagina e sente. O pensamento do coração é o pensamento das
imagens. O coração é a sede da imaginação, e esta é a voz autênti-
ca do coração, de forma que se falamos do coração, devemos falar
imaginativamente (Hillman, 1979).
Para Hillman, o poder retórico e imaginativo do coração re-
side em conceber, imaginar, projetar, desejar ardentemente. Sem
esse poder do coração somos sequestrados pelas ilusões psicológi-
cas modernas. Perdemos a referência do que é essencial e interno.
Quando negligenciamos a imaginação, como fonte de acesso ao
que é subjetivo e fundamental, adoecemos. Não é à toa que as do-
enças cardíacas, assim como o adoecimento afetivo, ocupam tanto
espaço na vida urbana contemporânea.
A vida na cidade favorece o adoecimento, não porquê a exis-
tência ideal se dá na natureza, mas porque o estilo de vida urba-
no tem nos afastado do centro. Perdemos o contato com Hestia,
desaprendemos a perceber o mundo com o coração, a imaginar.
Optamos pelos caminhos expansivos e discriminatórios do espí-
rito apolíneo. Preferimos classificar, categorizar, crescer, planejar
e desqualificamos o aguardar, nutrir, cultivar, acolher, preservar.

Capítulo 21

Do interior para o exterior: o exílio de Hestia e o lugar 593


do coração na cidade
Angelita Corrêa Scardua
Com essas escolhas, permitimos a invasão descontrolada de Hermes
nos domínios de Hestia e já não conseguimos mais retornar à casa.
A casa na cidade, hoje, é dormitório, passagem. Espaço interno
no qual nos mantemos conectados com o externo, e nele projeta-
mos todos os nossos desejos, temores e esperanças. Vivemos fora,
mas não é o fora da Ágora grega ou do Fórum Romano. Não é o
fora no qual interagimos com os outros olhando nos olhos, trocan-
do informações, ideias, imagens, sentimentos, pensamentos. Não
é um fora que nos ajude a dar significado ao dentro. Vivemos fora
do centro da vida, e a chama de Hestia já não é mais alimentada no
coração dos templos, das casas ou das pessoas.

Hestia e o lugar do coração na cidade e no Imaginário

Nas cidades contemporâneas, assim como nas casas, e talvez tam-


bém nas pessoas, o coração perde sua relevância imaginal. O cora-
ção já não é mais a fonte do poder de imaginar e de desejar, uma
vez que ele há muito deixou de ser o centro. No Imaginário atual o
centro da existência passou a ser o cérebro, com seu poder de “re-
velar” os mistérios por trás dos sentimentos, pensamentos e ações.
Nesse universo desvelado não há lugar para o intangível, para o que
não possa ser classificado, para o que escapa ao escrutíneo apolí-
neo ou para a urgência comunicativa de Hermes. O centro da exis-
tência foi tomado de assalto pelo ordenamento masculino!
Arquetipicamente falando, o espaço feminino, tanto nas casas
quanto nas cidades foi sendo progressivamente subjugado pelo mas-
culino. O fogo sagrado de Hestia pouco tem crepitado nos lares. O nu-
trir, o agregar e o acolher não encontram mais abrigo na vida cotidia-
na. Cada vez mais, nos projetos arquitetônicos das moradias urbanas,
as cozinhas – “O coração da casa” – têm encolhido, tornando-se um

594
lugar para refeições rápidas preparadas no micro-ondas. Até mesmo
os fogões vão perdendo a chama ao serem substituídos pelos cook-
tops ou pelos serviços de delivery de comida. O ato de cozinhar, tão
próximo das tarefas atribuídas ao reino privado e familiar de Hestia,
tornou-se um espetáculo público, no qual experts exibem-se para os
convidados nos finais de semana ou nas telas das televisões.
As televisões, que em um passado recente agregavam as famílias
em torno de sua luz para o mundo, perderam essa função nas casas.
Os habitantes das moradias contemporâneas trocaram as televisões
pelos smartphones e pelo egoísmo da “tv” no quarto ao invés de na
sala. Não há mais o que congregue a alma das famílias em torno de
um centro. Não há mais o deleite dos sentidos, invocado pelas deida-
des femininas como Afrodite ou Deméter que fazem pulsar o coração
seduzido pela beleza ou pela necessidade. Nas casas ou nas cidades, a
função utilitária de tudo confere status ao que é mais novo, mais fun-
cional, mais ostensivo. Nas casas e na vida urbana contemporânea,
até mesmo a estética tem sido tomada como um recurso de afirma-
ção de poder e de distanciamento do centro.
Quanto mais poderosa e rica for a casa ou a cidade, mais os
recursos estéticos considerados agradáveis e desejáveis serão uti-
lizados para afastar o centro. Muitos compartimentos e múltiplas
zonas de convívio fazem das belas casas e cidades atuais espaços
fragmentados, onde o coração (o centro) é subtraído de seu papel
de levar o fluído vital aos extremos do corpo, às vísceras e ao cére-
bro. É dessa forma que as cozinhas e as salas das casas se esvaziam,
tornando-se não-lugares no espaço doméstico, nos quais os mora-
dores apenas transitam ou recebem convidados. Enquanto os quar-
tos e banheiros aparecem como o espaço preferido para a vivência
de uma interioridade, ainda que frequentemente conectada com o
exterior por meio dos aparelhos eletrônicos.

Capítulo 21

Do interior para o exterior: o exílio de Hestia e o lugar 595


do coração na cidade
Angelita Corrêa Scardua
Similarmente, as cidades se organizam em extremos. Contra-
pondo os bairros que crescem desordenadamente pelo fluxo con-
tínuo das idas e vindas de “estrangeiros” e não “cidadãos” que tra-
fegam hermeticamente entre os espaços urbanos em busca de suas
propagadas oportunidades. Ora nos condomínios, de luxo ou não,
cujo planejamento guia-se pela regularidade e pela norma apolínea
da simetria que promete segurança e proteção. Assim, os Centros
das cidades vão sendo abandonados, com construções malcuida-
das e comércio clandestino. A maioria dos Centros das cidades
contemporâneas tornaram-se o espaço dos elementos sombrios da
sociedade, das figuras que não circulam sob a luz ofuscante do es-
pírito apolíneo ou que não conseguem se deslocar e se comunicar
com a desenvoltura de Hermes.
Os drogados, os marginais, os que vivem nas bordas, que não
têm lar ou centro, os destituídos de Hestia, passaram a povoar os
Centros das cidades. É ainda nos Centros de muitas cidades, po-
rém, que as vidas se cruzam, pelo menos por breves instantes, nas
grandes estações de metrô e de trem, nos terminais de ônibus. Um
cruzamento instantâneo, que ao invés de minimizar o distancia-
mento e a fragmentação, expõe. As grandes vias de circulação de
pessoas e veículos explicitam como o contato físico diário entre os
moradores das cidades já não mais corresponde a um encontro de
afetos e de sentidos. Ao contrário, demonstra o crescimento das
cidades para as margens e a segmentação das vidas. E isso expõe
o coração da cidade, suas veias entupidas nas quais o fluído vital
encontra dificuldade para irrigar o centro da existência cotidiana.
O coração adoece com a alimentação empobrecida, com a falta
de contato humano significativo, com a correria diária que acelera
seu ritmo e embota a percepção de suas necessidades. O coração
adoece na cidade conectada, na qual os olhares, agora, se fixam nos

596
aparelhos celulares e se quer divisam o horizonte ou as linhas ver-
ticais das edificações pelas quais poderia se vislumbrar o céu. Ao
adoecer, o coração perde seu poder imaginativo limitando a possi-
bilidade de atribuir-se sentido a própria vida.
Hillman (1993) oferece uma perspectiva alternativa para o lu-
gar do coração na cidade. Ao apresentar sua concepção de Alma
da cidade, o autor desenvolve o termo grego aisthesis, que está as-
sociado ao processo de internalização das reações estéticas frente
as imagens que nos são apresentadas. Ou seja, ele nos fala sobre a
relevância de se apreender as imagens do cotidiano através do co-
ração. Compreender o mundo por meio das emoções que o próprio
mundo desperta em nós. Uma compreensão que não é racional,
mas um arrebatamento afetivo, um deixar-se afetar. Uma compre-
ensão do mundo na qual imaginar e sentir as coisas ocorrem con-
comitantemente.
Esse coração capaz de internalizar as imagens do cotidiano
não pode ser reduzido às sensações corpóreas. Ele é um coração
desejante e, por isso, imaginativo e criativo. Um coração desper-
to, animado pela Anima Mundi. Nos diz Hillman - “Para sentir pe-
netrantemente devemos imaginar e, para imaginar com precisão,
devemos sentir” (Hillman, 1993, p. 17). A perspectiva que ele nos
oferece para realocar o coração na cidade, e nas vidas de seus ha-
bitantes, exige o resgate da alma que há em cada coisa cotidiana.
O resgate da alma das coisas cotidianas nos leva de volta ao
universo feminino de Hestia, no qual a interioridade física do cen-
tro oferecia um lugar sagrado para o coração. Nesse espaço sa-
grado, o coração atribuía sentido à existência pelo acolhimento
do desejo e da necessidade de nutrir-se os vínculos, fossem estes
entre as pessoas ou com o lugar vivido. Na construção desses vín-
culos a imaginação dava forma à experiência, individual e coletiva,

Capítulo 21

Do interior para o exterior: o exílio de Hestia e o lugar 597


do coração na cidade
Angelita Corrêa Scardua
colocando o sujeito no centro do drama da vida. Talvez, após as
incursões de Apolo e de Hermes no território de Hestia, já não
faça mais sentido a perspectiva do cultivo da alma, da cidade ou
das pessoas, em espaços físicos sagrados. Talvez, e apenas talvez,
o chamado para o mundo exterior nos exija a capacidade de sacra-
lização dos espaços intangíveis da percepção e da imaginação. E
talvez, apenas talvez, devamos pensar na alma como uma possibi-
lidade imaginativa sobre o mundo e as coisas, cujo recurso seminal
é um coração que deseja e, por essa razão, capaz de criar espaço e
sentido de vida onde aparentemente não há.

598
referências
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heteronomous appellations. In of souls. Thompson, CT: Spring
Hillman, J. (ed.). Facing the gods Publications, Inc.
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Publications, Inc. Mumford, L. (2004). A Cidade
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Goux, J. (1983). Vesta, or the place transformações e perspectivas.
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__________. (1991) Psicologia Worsfold, T. C. (2010). History


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Kajava, M. (2004). Hestia: Hearth,


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in Classical Philology. No 102:1-20.

Capítulo 21

Do interior para o exterior: o exílio de Hestia e o lugar


do coração na cidade baracoa
editora

Angelita Corrêa Scardua


Pedro Teixeira Carvalho
Universidade de São Paulo

Psicólogo graduado pelo Instituto de Psico-


logia da Universidade de São Paulo (IPUSP).
Doutorando pelo Programa de Psicologia
Social do IPUSP, sob a temática de dificul-
dades amorosas na contemporaneidade.
Membro do Laboratório de Psicologia So-
cioambiental e Intervenção (LAPSI - IPUSP)
e do Grupo de Pesquisa “Mitopoética da
Cidade” (IPUSP), e coordena grupos de es-
tudo de Psicologia Analítica no IPUSP.

CV: http://lattes.cnpq.br/5191076206180217
E-mail: pedro.teixeira.carvalho@usp.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0001-55667855

601
Existe amor em São Paulo?
Um estudo do amor urbano
contemporâneo

Resumo: O presente trabalho discussão, então, na sequência


se propõe a levantar uma apresentar-se-á uma análise da
reflexão teórica e imaginativa música Não existe amor em SP,
sobre as dificuldades amorosas de Criolo, buscando analisar os
na contemporaneidade, e sua espaços imaginados na música,
relação com o ethos urbano. e a relação proposta entre amar
Iniciando com um apelo vindo e habitar.
da arte urbana, desenvolver-
se-á uma reflexão de forma Palavras-chave: Relações
transdisciplinar, passando pela Humanas; Amor; Arte Urbana;
Filosofia, Geografia, Psicologia Temporalidade
e Sociologia, buscando
embasar teoricamente a
afirmação de que existe uma
relação entre a forma como
interagimos e a forma como
ocupamos a cidade – as duas
seriam, de acordo com a
reflexão, o mesmo fato psíquico.
Na sequência, será discutida
a forma, o método através
do qual pode-se observar tal
fato: através das imagens, que
são emanações da alma. Para
ilustrar e aprofundar a

602
Is there love in São Paulo? A deepen the discussion, then, an
study of the contemporary analysis of Criolo’s song “Não
urban love existe amor em SP” will be
presented, seeking to analyze
Abstract: This work proposes the spaces imagined in music,
to raise a theoretical and and the proposed relationship
imaginative reflection on between loving and dwelling.
the amorous difficulties
in contemporaneity, and Keywords: Human Relations;
its relation with the urban Love; Urban Art; Temporality
ethos. Starting with an appeal
coming from urban art, a
reflection will be developed
in a transdisciplinary way,
going through Philosophy,
Geography, Psychology and
Sociology, seeking to base
theoretically the affirmation
that there is a relation between
the way we interact and the
way we occupy the city - the
two would be, according to the
reflection, the same psychic
fact. In the sequence, the way,
the method by which one
can observe this fact, will be
discussed: through the images,
which are emanations of the
soul. In order to illustrate and

603
604
Capítulo 22

Existe amor em São


Paulo? Um estudo
do amor urbano
contemporâneo
Pedro Teixeira Carvalho
Universidade de São Paulo

Uma flor nasceu na rua: a súplica amorosa que nasce no


cinza da cidade

São Paulo, a cidade da abundância. De riquezas, de cultura, de di-


versidade, por um lado; por outro, de desigualdade, de pressa, de
violência. Abundância de cores: da pele das pessoas, do verde das
árvores, das casas, das linhas de metrô e trem. Há certas cores, po-
rém, que desagradam: para alguns, são as cores dos grafites; para
outros, são os tons de cinza das construções, do asfalto, da maioria
dos carros, das nuvens. Deste desagrado, eis que surge a questão –
que chegou, por vezes, ao confronto político: o que faz São Paulo
ser uma “cidade linda”? E a resposta, rápida, vem dos porta-vozes
da cidade, aqueles que a gerem: as cores do grafite definitivamente
não fazem de “Sampa” uma cidade linda.
Longe de adentrarmos uma discussão cujo objeto seria a esté-
tica urbanística, o que nos interessa aqui é o ethos que lhe subjaz. O

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 605


Editora Baracoa — 2019
mesmo discurso que acinzenta a cidade é o discurso que promete
acelerá-la1, mesmo que às custas da humanidade daqueles que a
habitam: isto é, o discurso do neoliberalismo, que fornece um mo-
delo econômico de gestão da subjetividade, tendo em vista o au-
mento constante da produtividade, em detrimento dos atores em
questão – nós todos. Em meio a esse mar de cinza (que, mesmo se
volta como uma questão ainda mais forte em 2017, já vem de mais
tempos atrás), eis que surge uma cor: o vermelho. Como a rosa de
Drummond (Andrade, 1978), que fura o asfalto, o tédio, o nojo, o
ódio, surge um movimento nas ruas da maior cidade do Brasil, o
movimento “Mais amor, por favor”.
Esse movimento nasceu em 2009, idealizado por Ygor Marotta2,
realizando intervenções artísticas na cidade, inicialmente contendo
apenas a frase que lhe deu nome, em pixos e cartazes (“lambe-lam-
bes”), principalmente. O objetivo dessas intervenções é, para o artis-
ta, através do apelo de um pedido “tão simples”, levantar reflexões,
gerar pausas na rotina acelerada “para pensar a respeito de toda
agressividade, indiferença e velocidade vivida no dia a dia dentro de
uma cidade tão grande”.
E, dessas reflexões, surgiu uma música – que será nosso prin-
cipal objeto de análise no presente trabalho. “Não existe amor
em SP”, de Criolo, surge nas andanças do cantor pela cidade, que
depara com pichações desse movimento (Criolo, 2014). O apelo
o faz pensar sobre a vida em São Paulo, torna-se música, que re-
percute nas vozes dos paulistanos e da crítica: ganha o prêmio de
melhor música no ano de seu lançamento, 2011, em premiação
do canal MTV.
1 Vale lembrar do slogan “Acelera SP”.

2 Manifesto disponível no site do artista: http://ygormarotta.com/filter/mais-amor-por-favor/


(Acessado em 07 de junho de 2017).

606
Por fim, um último desdobramento que nos interessa ocorreu no
ano seguinte, 2012: o festival “Existe amor em SP” (G1, 2012). Inspi-
rado na música de Criolo e no movimento artístico de Ygor Marotta,
o festival, ocorrido na Praça Roosevelt, tinha, por um lado, finalidade
política (em ano de eleição municipal, queria apelar aos principais
candidatos por uma maior pauta cultural) e, por outro, o mesmo ob-
jetivo que a música e o movimento supracitados: refletir sobre as re-
lações humanas, a cidade, e a interinfluência destes dois elementos.
Desses três movimentos, o que vemos de comum, e irrefutá-
vel, é o desejo dos citadinos por um ambiente menos hostil àquilo
que chamam de amor. E como podemos contribuir para a cons-
trução de uma cidade na qual o amor possa existir, possa habitar?
Tentaremos, com este trabalho, enriquecer em alguma medida esse
debate vibrante que corre solto pelas ruas de São Paulo.
Para tanto, num primeiro momento, pretendemos estudar a
própria questão lançada por esses movimentos artísticos, indire-
tamente: existe amor em São Paulo? Esta pergunta, por si só, já
implica um pressuposto: de que há uma relação intrínseca entre
a forma de nos relacionarmos com os outros e como habitamos
o espaço em que vivemos. Para elucidar esta relação, traçaremos
um entendimento transdisciplinar da cidade usando conceitos da
filosofia, com Heidegger; da geografia, com Berque; da psicologia,
com Hillman; e das teorias do imaginário, com Bachelard e Du-
rand. Disto, pretendemos sugerir que tanto a cidade é moldada
pela forma na qual seus habitantes se relacionam, como esta forma
é moldada pela cidade em que habitam. E que esta forma pode ser
saudável ou não, e uma maneira de analisar essa questão é através
das imagens produzidas dentro desse contexto espaçotemporal.
Em seguida, tomando a alma da cidade como objeto de in-
vestigação, buscaremos elementos que nos ajudem a entender a

Capítulo 22

Existe amor em São Paulo? 607


Um estudo do amor urbano contemporâneo
Pedro Teixeira Carvalho
relação entre as dificuldades amorosas na contemporaneidade e a
vida urbana. Analisaremos, neste momento, as imagens evocadas
na música de Criolo, e o apelo da pichação “Mais amor, por favor”.
Podemos dizer, pela grande repercussão que essas manifestações
artísticas tiveram, que elas tocam em questões que atravessam o
espírito de nossa época, dando suporte imagético para diversas
angústias presentes no cotidiano paulistano. Articularemos esta
análise com as exposições teóricas feitas anteriormente, acrescen-
tando contribuições do pensamento sociológico de Bauman e de
Simmel. Disso, pretendemos extrair algumas relações sobre a tem-
poralidade do amor versus a temporalidade das grandes cidades.
Acreditamos que a relação entre estas duas temporalidades é es-
sencial para se teorizar de forma sólida sobre as dificuldades con-
temporâneas dos relacionamentos amorosos nas grandes cidades.

A cidade atravessada pelo amor

Como dissemos anteriormente, os três movimentos artísticos em


pauta para nosso trabalho abordam uma pergunta central: existe
amor nas grandes cidades? Começaremos pensando nos pressu-
postos teóricos que permitem que uma tal pergunta seja feita – o
que nos possibilita pensar que o amor está na cidade? Existe uma
profunda relação entre os modos de nos relacionarmos e como ha-
bitamos o mundo. O que nos leva a pensar que, quando um vai
mal, o outro também vai. Ambos são fenômenos emergentes de um
mesmo ethos, que chamaremos aqui de “pós-moderno” – e espera-
mos deixar clara a escolha do termo ao longo do texto, principal-
mente no diálogo com as ideias de Bauman.
Num segundo nível, podemos pensar que não apenas esses dois
fenômenos remetem a um mesmo ethos, mas que eles, por si só, se

608
interinfluenciam. Ou seja, que a forma com que construímos, habi-
tamos e pensamos o espaço modula, em alguma medida, a forma com
que construímos, habitamos e pensamos os relacionamentos amo-
rosos. Para ilustrar esta ideia, podemos pensar na imagem da pessoa
trabalhadora, cada vez mais comum nos tempos pós-modernos, que
“prefere investir na carreira do que na vida amorosa” – mas, pelo
menos, possui um carro, roupas, apartamento: objetos de desejo.
Reflitamos sobre o espaço e nas possibilidades de atravessa-
mento entre o físico, concreto, e o psíquico, imaterial. Heidegger
(1954/1999), ao pensar sobre a crise habitacional, ressalta que ela não
consiste na falta de habitações, mas em algo muito anterior: o de-
senraizamento, o não pensar na essência do habitar; e a consequente
perda desta essência, que aponta para o núcleo da existência humana.
Para o autor (Heidegger, 1999), a essência do construir é muito
mais do que uma finalidade para o habitar. Indo às raízes do verbo
bauen, mostra como há uma relação intrínseca entre construir e
habitar, que está na essência do ser: “A maneira como tu és e eu
sou, o modo segundo o qual somos homens sobre essa terra é o
Bauen, o habitar”. Construir também possui sentidos mais usuais,
como cultivar, proteger, edificar. É em função destes sentidos que
as relações do construir com o habitar vão se afastando, e o “sen-
tido próprio do construir, a saber, o habitar, cai no esquecimento”.
O que Heidegger faz é uma inversão: não habitamos como
consequência de construirmos, mas construímos na medida em
que habitamos a Terra. Devemos, então, chegar à essência das
coisas, reduzi-las àquilo que há de mais próprio a determinada
coisa. O autor, nesse momento, traz o exemplo da ponte. Começa
com uma ponte concreta, e aí vai derivando até uma ideia “pura”,
essencial, da ponte como algo que liga, reúne e integra as mar-
gens, o céu e a terra etc. Não é um exemplo fortuito, e que vem

Capítulo 22

Existe amor em São Paulo? 609


Um estudo do amor urbano contemporâneo
Pedro Teixeira Carvalho
profundamente ao encontro do conceito que apresentaremos a
seguir, sobre o trajeto mesológico de Augustin Berque.
Finalizando o texto de Heidegger (1999), temos uma prescri-
ção de para onde devemos caminhar, se quisermos resolver essa
crise: “conduzir o habitar a partir de si mesmo até a plenitude de
sua essência”. Construir (isto é, ser-na-terra) de forma planejada
– pensada, num pensar meditativo, poderíamos dizer –, refletindo
sobre a essência do habitar. Ou seja, implicar o ser no processo,
para que o habitar seja pleno, e não apenas técnico, mecânico. Sig-
nifica, por fim, cultivar a essência deste habitar levando em conta
dois elementos: a estância (o lugar) e a circunstância (as condições
de existência). Construir o espaço significa colocar-se em relação
aos elementos físicos, mas também às condições imateriais. O es-
paço é o que surge como resultado do habitar: “Os mortais são,
isso significa: em habitando têm sobre si espaços em razão de sua
de-mora junto às coisas e aos lugares”.
Em suma, o problema que Heidegger circunscreve em seu
pensamento, da crise habitacional, e as relações feitas entre ho-
mem e espaço através da essência do habitar elucidam um ponto
fundamental para as indagações que aqui fazemos: a possibilidade
do amor existir na cidade reside no fato de que o espaço, tal como
pensa o autor, não é simplesmente o lugar físico, o topos, mas a in-
teração3 deste com os homens que lá habitam.
Podemos dizer que esse é um entendimento trajetivo da exis-
tência urbana do amor. Para Berque (2000), trajetividade é a qua-
lidade subjetiva da percepção da realidade – uma combinação do
topos (lugar) com o chôra (meio tecno-simbólico, prolongação de
3 Aqui vale a diferenciação feita por Munné (1995) entre relação e interação. As relações
correspondem às formas ideais de sociabilidade, enquanto as interações dizem respeito ao
caráter concreto, real, da socialização – que gera, por fim, influência entre os sujeitos que
interagem, como uma abstração a posteriori daquela interação.

610
nossa corporeidade para além dos limites de nosso corpo animal)
animada pela “ida-e-vinda incessante, pela pulsação de nossa exis-
tência”. Tal conceito demandaria um desenvolvimento muito além
da proposta de nosso trabalho, então vale dizer aqui, de forma re-
sumida, que a trajetividade consiste justamente no entre das coisas
– principalmente, entre o subjetivo e o objetivo (Ribeiro, 2015).
Podemos dizer, com as contribuições de Heidegger e Berque,
que o amor é um fenômeno trajetivo. Com isso, queremos deli-
mitar nosso objeto (o fenômeno amoroso na vida urbana) como
uma característica intrínseca ao habitar; relação dialética entre
espaço e pessoas que o habitam. O que nos leva a responder que,
sim, o amor pode existir na cidade (desde que essa existência não
seja entendida como apenas ligada ao espaço em questão, mas da
relação dos seres com este espaço), e é por ela profundamente
influenciado e modulado.
Marcada esta existência trajetiva do amor-urbano, sigamos
adiante, para uma questão metodológica: como observá-lo? Re-
correremos, primeiramente, ao nosso campo propriamente dito:
a psicologia. Especificamente, à vertente arquetípica da psicologia
analítica, proposta por James Hillman. Em uma coletânea de textos
seus, publicados em Cidade & alma (Hillman, 1993), está uma das
propostas centrais do autor, de sair da interioridade do consultório
e ir em busca da alma naquilo que há de mais humano: a cidade.
O autor lembra, até mesmo, que a própria psicologia clínica nas-
ceu nas grandes cidades – o que indicaria, por um lado, o potencial
“adoecedor” dessas cidades; mas, por outro, a quantidade de alma
a ser vista e entendida, em cada canto, em cada esquina.
Buscar essa alma no mundo (ou, nas palavras de Hillman, fa-
zer-alma), esta anima mundi, implica um trabalho direto com as
imagens e com o imaginar. Significa ver com o coração:

Capítulo 22

Existe amor em São Paulo? 611


Um estudo do amor urbano contemporâneo
Pedro Teixeira Carvalho
Com o coração, entramos imediatamente na imaginação. Quan-
do o cérebro é considerado o centro da consciência, procuramos
localizações literais, ao passo que não podemos considerar o co-
ração com o mesmo literalismo fisiológico. O movimento para o
coração já é um movimento de poiesis: metafórico, psicológico
(Hillman, 1993, p. 18).

A cidade está profundamente marcada por imagens dos mais


diversos tipos, que de uma forma ou de outra nos remetem à alma:
seja por nos “des-almarem”, por serem signos vazios, produzidos
com este mesmo propósito (como no caso dos avisos ou da publi-
cidade poluída dos grandes centros urbanos), ou por nos “anima-
rem”, por nos deixarem de alguma forma em contato com a alma,
a nossa e a do mundo.
Um desses tipos de imagem “animadoras” é o pixo, que foi ob-
jeto de análise de Scandiucci (2014) em sua tese de doutorado, sob
a ótica da psicologia arquetípica. De suas ideias, ressaltaremos uma
que será de grande importância para o entendimento que estamos
construindo aqui: a do (não) lugar ocupado pelas pichações, o que
nos faz pensar sobre a função destas em relação ao nosso tempo, e
na relação entre elas e o amor urbano.
O autor retoma um conceito apresentado por Marc Augé (1994,
citado por Scandiucci, 2014) sobre o “não-lugar”: para Augé, há
uma espécie de nomadismo intrínseco à pós-modernidade, repre-
sentado espacialmente pelos não-lugares. São aquelas instalações
cuja finalidade é fazer circular de forma acelerada as pessoas que
por elas passam, e os próprios meios de transporte, grandes cen-
tros comerciais, entre outros. Scandiucci (2014) reflete sobre a co-
municação nos não-lugares, focado em textos visuais prescritivos
(como “não fume”, por exemplo). Eles tornam-se, então, espaços

612
retóricos, lugares construídos com a única finalidade de ser passa-
gem provisória. Se retomarmos a ideia heideggeriana de habitar,
pensamos que esse projeto pós-moderno vai contra a própria es-
sência de um habitar o mundo saudável, pois implica um desenrai-
zamento do homem em relação à terra – e isso seria o nomadismo
pós-moderno. O autor promove o diálogo da ideia de não-lugar
com as teorizações de Bauman sobre a modernidade líquida (2001,
citado por Scandiucci, 2014). Para este sociólogo, o não-lugar seria
um espaço criado para nos fazer sentir confortáveis, como se es-
tivéssemos em casa. Nem tanto, porém, pois não nos é permitido
comportarmo-nos como se de fato lá estivéssemos: “Um não-lu-
gar seria então um espaço destituído de expressões simbólicas de
identidade, relações e história” (p. 84).
É nesse não-lugar que o pixo encontraria sua existência, a
ponto de algumas pichações utilizarem-se até mesmo dessa lin-
guagem dos espaços retóricos: de forma “curta e grossa”, passam
mensagens tão imperativas como as frases prescritivas encontra-
das nesses espaços. É nesse contexto que está inserida a pichação
“Mais amor, por favor” – Scandiucci (2014, p. 85) até a usa como
exemplo. Pensando no problema do ethos pós-moderno, marcado
por esta aceleração, vemos suas primeiras consequências na
desterritorialização (um agravamento, podemos dizer, da crise
habitacional da qual fala Heidegger) e, num segundo momento, no
enfraquecimento das relações. Uma das funções do pixo (e do rap,
ampliando para objeto de nossa investigação) é, então, refletir de
forma crítica e desveladora sobre esse ethos, marcando a reflexão
nas imagens cravadas nesse mesmo espaço do não-lugar.
Respondemos parcialmente à pergunta metodológica feita an-
teriormente. Para saber como observar esse amor urbano trajetivo,
precisamos em primeiro lugar saber onde observá-lo: na alma e em

Capítulo 22

Existe amor em São Paulo? 613


Um estudo do amor urbano contemporâneo
Pedro Teixeira Carvalho
suas emanações. Aqui, especificamente, em algumas manifestações
artísticas urbanas como o pixo e o rap. E sabemos, como nos indica
Hillman, que essa observação deve ser feita com o coração – isto é,
com uma visão que leve em conta as imagens.
Se é pela imaginação – isto é, pelo ato de produzir imagens
– que habitamos o mundo, então é trabalhando com as imagens
que podemos analisar a forma com que o temos habitado. Podemos
fazer um paralelo com o pensar meditativo de Heidegger (2001),
segundo o qual esta seria a forma mais plena de contato com a es-
sência das coisas, em contraposição ao pensar técnico, que tende à
repartição do mundo. Entendê-lo em sua complexidade, trabalhan-
do com as imagens que emanam da anima deste mundus, mostra-se
tarefa essencial para compreender, até mesmo, a essência dos pro-
blemas de nosso mundo.
Com o que expusemos neste trecho, pretendemos fornecer
um substrato teórico suficientemente firme para enraizar nosso
entendimento de que, num certo nível, a forma pela qual habita-
mos a cidade e a forma pela qual nos relacionamos são o mesmo
fato psíquico, provêm do mesmo esforço humano em lidar com a
existência em sua essência. E, em sendo psíquico, pode ser analisa-
do através de suas produções imagéticas.

A cidade habitada pelo amor

Iniciando nossa análise imagética, temos a narrativa de Crio-


lo sobre São Paulo, pautada pela inexistência do amor na cida-
de. Com esta música4, acreditamos que ilustraremos o proble-
ma apresentado anteriormente, que poderíamos chamar de a

4 Letra disponível em https://www.vagalume.com.br/criolo/nao-existe-amor-em-sp.html


(acessado em 08 de junho de 2017).

614
“crise habitacional do amor”. Ao mesmo tempo que ela fornecerá
elementos mais localizados, voltados para uma cidade específica,
pensamos que ela aponta para um cenário mais geral sobre as
grandes metrópoles contemporâneas.
A música é atravessada fortemente por uma levada de soul,
com a presença de instrumentos mais lentos, sincopados e melan-
cólicos. De “Não existe amor em SP” emana tristeza, antes mesmo
de Criolo cantá-la. Ele, então, começa com a frase que dá título à
música e na sequência dá início a uma narrativa descritiva sobre a
cidade. Vemos como é uma descrição que compreende a essência
daquilo que ele vê como a inexistência de amor, uma essência po-
ética e imagética.
O primeiro espaço que Criolo descreve é o de um labirinto mís-
tico. Temos aí duas imagens que, superpostas, formam um panora-
ma interessante. O labirinto tem uma fenomenologia extremamen-
te complexa, cujo detalhamento ultrapassaria o escopo do presente
artigo. Por ora, fiquemos com sua etimologia grega e a definição:
labirinto é uma construção com passagens confusas, complicadas.
Portanto, podemos pensar que, em sua essência, o labirinto é um
espaço onde não se circula de forma fluida e coerente – a própria
construção não favorece o trânsito livre, podendo levar até a morte
aqueles que não conseguirem encontrar a saída.
Como nos aponta Lima de Freitas (1975), o labirinto possui
profundos paralelos com o mundo contemporâneo. Vivemos num
mundo fragmentado, contraditório, angustiante, transformado
num labirinto, num espaço em que há perda de referência: “O pla-
neta inteiro descobre-se prisioneiro de uma rede gigantesca de
conexões, cada dia mais apertada e complexa, a braços com uma
malha infinita de percursos por onde circula uma massa crescente
de mercadorias, de informações e de pessoas” (p. 15).

Capítulo 22

Existe amor em São Paulo? 615


Um estudo do amor urbano contemporâneo
Pedro Teixeira Carvalho
A cidade torna-se labirinto: deixa de ser, como sua ideia ori-
ginal outrora propusera, um espaço de proteção contra os males
do exterior (Mumford 2001), e torna-se o espaço habitado pelo
próprio Minotauro antropófago. A silhueta das cidades, planejadas
com o intuito de assegurar o bem-estar de seus citadinos e acelerar
o progresso, “contraditoriamente, parecem bloquear cada vez mais
o desenvolvimento harmonioso das capacidades e potencialidades
humanas” (Freitas, 1975, p. 19).
Mais adiante, o autor define a relação entre a crise moderna e
a cidade, indo ao encontro das ideias aqui expostas: “a crise toma a
forma de cidade e a cidade é a materialização ou a imagem patente
da crise” (Freitas, 1975, p. 26). A construção da cidade afasta-se gra-
dualmente de seu sentido original (isto é, coincidente com o habi-
tar, com a dimensão mais essencial da existência humana), e passa
a funcionar apenas em função do lucro, da urgência – construção
esta chamada por Lima de Freitas de “selvagem”. Torna-se labirin-
to, na medida em que se apresenta de forma caótica – refletindo,
para o autor, a situação psíquica de seus habitantes. “A cidade mo-
derna perpetua um espaço labiríntico pseudológico, falsamente ra-
cional e ordenado, amplificando e complicando a confusão interior
que a angustia” (p. 26).
O místico, por sua vez, está ligado ao fechamento dos olhos:
por um lado, diz respeito ao mistério, ao obscuro, secreto (sentido
que pode ser entendido como análogo ao de labirinto). Por outro,
pode ser visto como relacionado ao contato com uma essência in-
terior – fecha-se os olhos para olhar para dentro.
O labirinto místico, em sua complexidade, apresenta então
uma imagem paradoxal da cidade de São Paulo. Nela temos a
ideia de confusão, complicação, caoticidade, mas que é mística,
que aponta para uma transcendência, um contato íntimo com a

616
essência própria das coisas. O que vemos, na cidade, é de fato
essa dimensão caótica, remetendo, no entanto, para o cantor, a
algo a mais, a algo além. Podemos dizer, tendo em vista a dis-
cussão realizada anteriormente, que não é a confusão física, la-
biríntica, da cidade concreta, que causa sua caoticidade. O caos
da cidade estaria, então, como aqui propomos, na relação dos ci-
tadinos com o topos da cidade. Estaria na falta de amor entre os
seres que a habitam.
Podemos ampliar neste momento a discussão apoiando-nos
num ponto da Teogonia, de Hesíodo (2006), que fala sobre a ori-
gem de Eros. Para ele, este deus teria surgido não como filho de
Afrodite, mas como semelhante ao Caos (Torrano, 2012). O que po-
demos extrair desta visão? Que o caos da cidade, por si só, não é
o suficiente para minar as possibilidades de existência do amor.
Retomando a ideia do amor urbano como trajetivo, ilustramos com
a música de Criolo nossa concordância com Heidegger sobre seu
diagnóstico da “crise habitacional” como a perda da essência do
habitar, a perda da transcendência intrínseca a um habitar plena-
mente pensado, refletido. Podemos falar na perda da visão místi-
ca desse labirinto que habitamos, o que o transforma num espaço
inóspito, por reação.
Prosseguindo na análise da música, Criolo nos dá algumas
pistas sobre a forma pela qual temos habitado esse labirinto sem
observar seu caráter místico. Os grafites gritam – emanam alma,
poderíamos relembrar com Scandiucci (2014). Esse grito (“Mais
amor, por favor!”) não pode ser considerado como se fosse uma
frase adocicada de postal. Em seguida, adverte o ouvinte: cuidado
com doce. E esclarece: São Paulo é um buquê, composto, na ver-
dade, por flores mortas num lindo arranjo usado como gesto de
“amor” (“feito pra você”).

Capítulo 22

Existe amor em São Paulo? 617


Um estudo do amor urbano contemporâneo
Pedro Teixeira Carvalho
Do labirinto místico ao buquê de flores mortas, onde erramos
nós, paulistanos? Criolo aponta para a perda da dimensão mística
por aceitarmos o primado da aparência. As imagens dos cartões-
-postais são doces, as frases escritas neles podem ser lindas, mas
devemos ter cuidado: delas não emana alma, elas estancam, matam,
ainda que mostrem São Paulo num arranjo atraente. A paisagem
não é aquilo que está no postal. A paisagem, dirá Berque (2009),
é trajetiva. Isto é, não se constitui simplesmente pelo espaço físi-
co, mas pela relação entre os seres e o espaço. É propriamente o
espaço onde habitamos, naquele sentido atribuído por Heidegger.
A não consciência dessa dimensão trajetiva, em função de uma co-
mercialização estética do espaço, resulta numa perda da essência do
espaço em que habitamos e, por consequência – não cansaremos
de frisá-lo –, numa dificultação das possibilidades de construção de
relações amorosas saudáveis.
Podemos ver as consequências dessa primazia do estético va-
zio em detrimento da essência do habitar nas interações³ tais como
se dão no cotidiano. Criolo canta: os bares estão cheios de almas
tão vazias. E continua: a ganância vibra, e a vaidade excita. Então
pede (à cidade?) que devolvam sua vida e morram afogados em seu
próprio mar de fel; e profetiza que, aqui, ninguém vai pro céu.
Continuamos a descida. Se aqui ninguém vai pro céu, é porque
aqui já estamos no céu – seja concretamente, nos prédios cada vez
mais altos, ou metaforicamente, com o desejo de êxtase que lota os
bares (ou a cracolândia), numa tentativa de tirar os pés desse chão
tão caótico. Por outro lado, se aqui ninguém vai pro céu, é porque
aqui não há salvação. Para Jung (2011a), o tema da salvação pos-
sui grande significação psicológica. De forma resumida, podemos
dizer que este é o paralelo mítico (ou religioso, ou alquímico) de
um processo psíquico, o processo de individuação (Jung, 2011b), ou

618
seja, o processo de elaborar e tornar-se cada vez mais a sua própria
essência. É neste ponto que encontramos a função religiosa da psi-
que – ou seja, a função de religar (Jung, 2004) o homem com sua
própria essência. Em termos junguianos, religar com o Si-mesmo,
arquétipo central no psiquismo humano, no qual estariam contidas
todas as potencialidades do desenvolvimento individual.
Os dois sentidos apresentam-se numa relação causal: a ausên-
cia de salvação dos habitantes das grandes cidades reside em sua
relação com esse espaço. A forma em que temos habitado a cida-
de, nos desenraizando e perdendo a essência do habitar, e a per-
da do contato saudável com o Si-mesmo são duas faces da mesma
moeda. A estas faces, acrescentaríamos uma terceira: a da perda
de relacionamentos amorosos saudáveis. Neste ponto, Criolo nos
mostra como a falta de amor em São Paulo tem como causa ultima
o afastamento dos homens em relação à sua essência, em relação
ao Si-mesmo, em busca daquilo que é aparente, da estética rasa. E
o resultado de tudo isso só pode ser a perda da essência da vida em
meio a um mar de fel – ou, em termos psicológicos, na formação de
sofrimento e sintomas.
Na parte final, Criolo canta a outra frase que será repetida em
seus versos, além da que dá nome à música: “não precisa morrer
pra ver Deus”. O Si-mesmo, como Jung (2013) o formula, é a imago
dei (isto é, a imagem de Deus). E o contato com Deus, em sentido
psicológico, pode ser feito ainda em vida, na medida em que indivi-
duar-se significa entrar em contato com os símbolos do Si-mesmo
e elaborá-los. É possível acessar nossa própria essência (ou seja, é
possível ver Deus). O que vemos, porém, numa cidade em que não
há amor é também a dificuldade em encontrar caminhos saudáveis,
simbólicos, que sirvam de meio para o processo de individuação
tal como, para isso, outrora nos serviam os mitos, por exemplo.

Capítulo 22

Existe amor em São Paulo? 619


Um estudo do amor urbano contemporâneo
Pedro Teixeira Carvalho
Criolo nos lembra, então, que podemos encontrar esses caminhos
em vida – pois eles ainda podem estar lá, na medida em que são
trajetivos, ou seja, dependem também do próprio homem.
Prosseguindo na estrofe, Criolo diz que “não precisa sofrer pra
saber o que é melhor pra você”. Em termos formais, parece haver
um paralelismo entre este verso e o anterior: não precisa (morrer/
sofrer) pra (ver Deus/saber o que é melhor pra você), o que pa-
rece apontar para uma semelhança em relação aos seus significa-
dos. Se olharmos atentamente o verso, vemos o cantor dizer que
o sofrimento não é essencial para o autoconhecimento. O proces-
so de individuação, como o contato criativo com os símbolos do
Si-mesmo, é a maneira saudável de chegar à nossa própria essên-
cia. Nesse sentido, o processo de conhecer-se a si próprio pode vir
sem sofrimento (pelo menos, sem aquele sofrimento sintomático),
por meio do processo de individuação. Por outro lado, como vi-
mos anteriormente, perdemos cada vez mais, nas grandes cidades,
o contato saudável com símbolos que sirvam de meio para esse
processo – o que tem como consequência o desenraizamento do
qual falamos anteriormente, que, por sua vez, gera esse sofrimento.
Assim, da mesma forma que se acredita que para ver Deus é preciso
morrer, pensa-se que saber o que é melhor para si próprio só pode
vir como consequência de sofrer.
Na sequência, Criolo canta: “Encontro tuas nuvens / em cada
escombro, em cada esquina”. Se pensarmos no que há de seme-
lhante entre a nuvem e São Paulo, acreditamos que damos suficien-
te contorno à questão: ambas nos remetem ao cinza, como exposto
na abertura de nosso trabalho. Não é preciso ir longe para ver as
expressões de perda da essência humana na cidade: está em cada
escombro e esquina (o que, em São Paulo, equivale a dizer “em
toda parte”). Então, Criolo pede um gole de vida. Não um gole de

620
vinho – bebida que, hoje, não é mais associada aos cultos místicos
ou religiosos, mas aos bares “cheios de almas vazias” –, mas um
pouco de vida. O pedido do cantor ressoa as questões que atraves-
sam toda a música – a falta de vitalidade labiríntica de São Paulo,
o cinza que está em todo lugar –, mas ele não pede uma solução
urbana, isto é, que tome lugar no próprio topos da cidade. Ele pede
por vida para ele próprio, pois, se a vitalidade e o amor na cidade
podem ser lidos como fenômenos trajetivos, nossa tarefa é fazer-
-alma, lembrando Hillman, dentro de nós mesmos, entre nós e os
outros, e entre nós e a cidade. Talvez um gole seja o suficiente para
começar a mudança.

A cidade amada pelos habitantes

À guisa de fechamento, o que esperamos ter demonstrado com o


presente trabalho é a possibilidade da existência de um amor urba-
no saudável. Sendo um fenômeno trajetivo, não depende exclusi-
vamente do lugar físico da grande cidade, mas da forma em que o
construímos e o habitamos. A cidade tem sido construída em dire-
ções patológicas, de forma que nos vemos num momento de crise
marcada pela exponencial perda de nossa própria essência, por um
crescente desenraizamento, por uma perda de suportes simbólicos
no espaço que nos auxiliem em nosso processo de individuação.
Vemos essa crise refletida, entre vários fenômenos, nos rela-
cionamentos amorosos. Há uma dificuldade intrínseca às grandes
cidades para o amor saudável, pois esses espaços não são constru-
ídos em função de ser palco de relações humanas saudáveis, mas
sim de ser, por meio da técnica, espaço rentável, acelerado e luxuo-
so. A consequência desse construir está na perda da alma da cidade
– e devemos resgatá-la! Se pensarmos exclusivamente no escopo

Capítulo 22

Existe amor em São Paulo? 621


Um estudo do amor urbano contemporâneo
Pedro Teixeira Carvalho
de nosso trabalho, o amor urbano, queremos ressaltar um ponto
que acreditamos ser central para o entendimento das dificuldades
dos relacionamentos nas grandes cidades: o descompasso entre as
temporalidades do amor e da cidade moderna.
Como esperamos ter demonstrado, as grandes cidades con-
temporâneas são marcadas pela liquidez cada vez mais acentuada
do espaço e do tempo: seus projetos político-econômicos, refleti-
dos em sua arquitetura, estão marcados pela otimização em fun-
ção da produtividade. Por outro lado, o amor saudável resiste a
este processo de aceleração – entendemos que o amor funciona
num outro registro temporal, mais marcado pela desaceleração,
pelo cultivo, tal como expusemos em trabalho anterior (Carvalho,
2017). O que temos, então, é a incompatibilidade crescente entre
o ritmo urbano e os relacionamentos amorosos. O termo amor lí-
quido é uma tentativa de conciliar estes opostos. Mas, na prática, o
lado que vem perdendo é o amor
Por fim, o que podemos dizer é que os aspectos saudáveis dos
relacionamentos amorosos e da vida nas grandes cidades podem
ser cultivados, se levarmos em consideração os problemas apre-
sentados aqui – em especial, o do descompasso entre as tempora-
lidades do amor e das cidades modernas. Peçamos por mais amor
– desde que peçamos com educação! Pois, não podemos esquecer,
é a busca por (cada vez) mais, um acúmulo de bens externos em
detrimento do contato interno, que engendrou os problemas que
esperamos ter circunscrito em nosso trabalho.

622
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Capítulo 22

Existe amor em São Paulo? 623


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Pedro Teixeira Carvalho
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Zagodoni.

Capítulo 22

Existe amor em São Paulo?


Um estudo do amor urbano contemporâneo baracoa
editora

Pedro Teixeira Carvalho


André Ferreira Bezerra
Universidade de São Paulo

Mestrando no programa de Psicologia


Social do Instituto de Psicologia da Uni-
versidade de São Paulo (IPUSP). Membro
do Grupos de Pesquisa Mitopoética da
Cidade e do Lapsi/IPUSP. Possui Especia-
lização em Semiótica Psicanalítica pela
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP). Graduado em Comu-
nicação Social pela Escola Superior de
Propaganda e Marketing (ESPM).

CV: http://lattes.cnpq.br/8745715491580680
E-mail: bezerra.afb@gmail.com
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-2274-5463

627
O lugar do sujeito na lógica do
discurso capitalista

Resumo: O artigo que aqui crítica da obra lacaniana, se


se apresenta propõe uma mostrará fundamental para
análise lacaniana do lugar do compreensão mais detalhada
sujeito capitalista. Para tal, do discurso capitalista. Assim,
será feita uma comparação de a partir da distinção entre
dois lugares essencialmente esses dois lugares, pretende-
diferentes, tomando como se mostrar a disparidade
contraste a relação que se entre ambos para refletir as
estabelece no interior de uma consequências disto na posição
análise. Nesta construção a do sujeito contemporâneo para
reflexão inicial se encontra no com o seu desejo.
seminário sobre a transferência
(seminário VIII, 1960-1961), Palavras-chave: Psicanálise,
no qual o psicanalista francês Discurso capitalista, Mais-de-
problematiza a questão gozar, Gadget.
do lugar do analista e do
analisando na clínica, o que
futuramente será de grande
importância na formulação de
seus quatro discursos que dão
forma aos vínculos sociais. No
que diz respeito ao lugar do
sujeito capitalista, a discussão
se estabelecerá a partir do
conceito de gadget, que, ao se
considerar a parte mais

628
The place of the subject in the
logic of capitalist speech

Abstract: This article proposes prove to be fundamental for a


a Lacanian analysis of the more detailed understanding of
place of the capitalist subject. the capitalist discourse. Thus,
For this, a comparison of two from the distinction between
essentially different places will these two places, this study
be made, taking as contrast intends to show the disparity
the relation established within between both to reflect the
a psychoanalytic analysis. In consequences of this to the
this construction the initial contemporary subject in its
reflection is found in the relatioship with its desire.
seminar on transference
(seminar VIII, 1960-1961), Keywords: Psychoanalysis,
in which the French Capitalist Discourse, Surplus-
psychoanalyst problematizes jouissance, Gadget.
the question of the place of the
analyst and the analysand in
the clinic, which in the future
will be of great importance
in the formulation of his four
discourses that shape social
bonds. With regard to the
place of the capitalist subject,
the discussion will be based on
the concept of gadget, which,
considering the most critical
part of the Lacanian work, will

629
Capítulo 23

O lugar do sujeito na
lógica do discurso
capitalista
André Ferreira Bezerra
(Universidade de São Paulo)

A IDEIA DE LUGAR NA OBRA LACANIANA

A ideia de lugar na obra de Lacan tem aparições múltiplas, o


autor utiliza este significante em diversos momentos ao longo
de seus desenvolvimentos teóricos ao ponto de que, pensar tal
ideia, é algo muito familiar para aqueles que se interessam pela
psicanálise praticada pelo francês. No entanto, o significado
atribuído está longe de uma compreensão aproximada ao en-
tendimento da Geografia, que tende a valorizar, principalmente,
uma localização relacionada à um ambiente exterior em par-
ticular. Em seus seminários e escritos a ideia de lugar aparece
associada, em grande parte das vezes, aos diversos esquemas
gráficos e topológicos utilizados para esclarecer a psicanálise de
um ponto de vista de um inconsciente estruturado como lingua-
gem. A ideia de lugar é utilizada como um artifício para dizer de
um entendimento de sujeito que se constrói a partir de arranjos
diversos, das relações entre instâncias psíquicas, da posição do
sujeito para com seu desejo.

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 631


Editora Baracoa — 2019
Pode-se, por exemplo, falar da ideia de lugar a partir dos re-
gistros Real, Simbólico e Imaginário, tal associação levaria prova-
velmente a prática, muito comum entre os lacanianos, de localizar
metaforicamente conceitos no interior de um ou mais registros.
Pode-se também pensar a ideia a partir de uma estrutura especí-
fica, do esquema R, do esquema L, do grafo do desejo. Mas, de
maneira mais direta, pensar na ideia de lugar juntamente a teoria
lacaniana talvez tenha uma relação mais explícita na relação entre
o sujeito e o seu discurso, na qual, a fala é entendida sempre como
vinda de algum lugar. Está última ideia pode ser observada na cita-
ção abaixo de 1971, um ano após Lacan formular sua teoria sobre os
quatro discursos:

Estou, será que estou presente quando falo com vocês? Seria pre-
ciso que a coisa a propósito da qual eu me dirijo a vocês estives-
se aqui. Ora, basta dizer que a coisa só pode escrever-se como a
acoisa, como acabo de escreve-la no quadro, o que significa que
ela está ausente ali onde ocupa seu lugar. Ou, mais exatamente,
que, uma vez tirado, o objeto pequeno a que ocupa esse lugar só
deixa nele, nesse lugar, o ato sexual tal como eu o acentuo, ou
seja, a castração. (LACAN, 2009) [p. 71].

Para estar em determinado lugar, então, é preciso que acoisa com a


qual o sujeito fala, seu objeto de desejo, esteja articulado de alguma
maneira com os semelhantes presentes em um ambiente qualquer.
Acoisa, como Lacan coloca, com este a que antecede a palavra, re-
mete ao objeto a, ao vazio inerente, ao desejo que constitui o sujei-
to. O lugar onde o sujeito fala, com isso, é o lugar desta acoisa. É sob
este raciocínio que se pretende refletir a ideia de lugar neste artigo,
mais especificamente o lugar do sujeito capitalista. No entanto, se

632
considerarmos o capitalismo como uma imposição simbólica, se
faz necessário, antes de entrar nesta lógica específica, esclarecer o
lugar do sujeito dando atenção a sua estrutura. Por isso, primeiro
será apresentado uma explanação a respeito de como a análise tra-
balha numa orientação que busca evidenciar na fala do analisando
acoisa da qual este se referencia. Uma vez explicado este percurso,
será mais fácil refletir o lugar do sujeito capitalista de um ponto de
vista mais crítico, já que o leitor terá também a noção de como tal
posição se diverge da orientação da análise.

O LUGAR DO SUJEITO NA ANÁLISE

Se levarmos em conta que a fala é sempre dirigida a alguém, Acoisa


mencionada na introdução deste artigo, pode ser aproximada com
a ideia de grande Outro. Até a década de 1960, a troca subjetiva era
compreendida numa relação que considerava uma imagem especu-
lar do semelhante e, simultaneamente, o Outro como lugar onde o
sujeito articula seu discurso, onde recebe sua própria mensagem
de maneira invertida (LACAN, 1998) [p. 299]. Tal ideia pode ser
observada de maneira mais clara no esquema L. Nesta topologia,
considera-se uma noção de alteridade como o elemento articula-
dor da fala do sujeito, uma instância que organiza a percepção. Nas
palavras de Lacan:

Se a fala se fundamenta na existência do Outro, o verdadeiro, a


linguagem é feita para remetermos de volta ao outro objetivado,
ao outro com o qual podemos fazer tudo o que quisermos, inclu-
sive pensar que é um objeto, ou seja, que ele não sabe o que diz.
Quando fazemos uso da linguagem, nossa relação com o outro
funciona o tempo todo nesta ambiguidade. Em Outros termos,

Capítulo 23

O lugar do sujeito na lógica do discurso capitalista 633


André Ferreira Bezerra
a linguagem serve tanto para nos fundamentar no Outro como
para nos impedir radicalmente de entende-lo. E é justamente dis-
so que se trata a experiência analítica. (LACAN, 1985) [p. 308]

Se o Outro é o lugar onde a fala se fundamenta, percebe-se a impor-


tância dele para os processos identificatórios e, consequentemen-
te, para determinação do lugar da fala do sujeito. Porém, ao mesmo
tempo em que a linguagem é constituinte, ela também formaliza a
castração pela inserção no simbólico. Percebe-se aqui que a noção
abrange de maneira transversal diversas outras questões. O Outro,
além do que foi apresentado acima, possui interpretações que am-
pliam o conceito para aproximá-lo ao próprio inconsciente, ao sexo
e, inclusive, à uma orientação clínica. Tal extensão do conceito se
dá a partir do seminário VIII, no qual a ideia de transferência, ou
seja, a própria intersubjetividade, que determina tanto a constitui-
ção quanto o lugar de fala do sujeito, é abordada de maneira especí-
fica. Nesta aula, Lacan atenta para a troca transferencial que ocor-
re no processo analítico e como o desejo do analista está inserido
neste contexto. Para que a análise ocorra, com isso, é necessário
considerar um “sujeito do suposto saber”, um lugar vago ao desejo
do paciente para que este se realize como desejo do Outro. (LACAN,
1992) [p. 109]. Em tal relação na qual o sujeito diz direto ao Outro,
se estabelece uma relação transferencial que coloca em questão a
própria troca subjetiva, ou seja, coloca em questão também o lugar
de onde o sujeito fala. O desejo do analista deve dar lugar ao sujeito
do suposto saber que, ao ser considerado pelo paciente, substitui
uma relação entre semelhantes por outra que atenta para interfe-
rências orientadas na negatividade do desejo. Cabe aqui eviden-
ciar a importância desta orientação em direção ao desejo do Outro.
Tal colocação teórica implica uma desvalorização do sentido para

634
evidenciar a estrutura significante. Posteriormente, no seminário
sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964), Lacan
coloca:

[...] é na medida em que o desejo do analista, que resta um x, tende


para um sentido exatamente contrário à identificação, que a
travessia do plano da identificação é possível, pelo intermédio da se-
paração do sujeito na experiência, [ou seja, pela distinção do sujeito
($) em relação ao objeto a]). (LACAN, 1993) [p. 259]

Ao mencionar a utilidade da noção de Outro na clínica, já se entende


em grande parte sua função constitutiva no lugar da fala do sujeito.
Mas, para deixar ainda mais claro, vale lembrar que logo antes dessa
ressignificação do papel da transferência na clínica, Lacan havia se
dirigido a questão de maneira mais direta na colocação amplamente
conhecida: “um significante é aquilo que representa o sujeito para
outro significante” (Lacan, J. Seminário VIII. 1992. p.833). Ele aten-
ta com isso para o caráter vazio do sujeito em termos linguísticos,
este nada mais é que o lugar onde se direciona os predicados, nada
mais é que o próprio significado o qual, dentro desta lógica, é redu-
zido a cadeia de significantes representada pelo Outro.
Percebe-se, então, que para sustentar o processo analítico, o
psicanalista deve assumir uma posição claramente determinada
pela teoria. Pois somente nesta posição a transferência estabeleci-
da na análise pode assumir o papel de interpelar o desejo do ana-
lisando. Tal posição, porém, não é o único fator que se coloca em
jogo no interior de uma análise, cabe ainda pontuar como a posição
do sujeito do suposto saber se relaciona com a ideia de ato ana-
lítico. Para tal, o psicanalista francês desenvolve também um se-
minário exclusivo para a questão (seminário XV de 1967-1968), no

Capítulo 23

O lugar do sujeito na lógica do discurso capitalista 635


André Ferreira Bezerra
qual apresenta o ato no centro da ação, a pura evidência que pode
ser encontrada na inscrição do Outro, algo que está inconscien-
temente estipulado antes da ação e que se manifesta no processo
analítico. Para Lacan “um ato é ligado à determinação do começo, e
muito especialmente, ali onde há a necessidade de fazer um, preci-
samente porque não existe” (LACAN, 2008) [p. 78]. No ato, o sujeito
reinstaura um começo lógico que representa uma pura evidência
daquilo que o constitui, fato este que permite uma ressignificação
orientada para a negatividade do desejo, do significante, que se di-
reciona ao objeto a.
O sujeito então se constitui na sua relação com o Outro, na
qual o seu desejo puro, o objeto a, se inscreve sobre a forma de
um significante. Tal processo orienta os seguidores de Lacan para
uma clínica do desejo como falta, do processo analítico como uma
de-suposição de saber. Uma análise orientada para aquilo que não
é considerado, para o real. Tal orientação, tem a ver com o fim da
análise e consequentemente com a passagem do analisando à ana-
lista a partir de um des-ser, da negatividade de seu próprio desejo.
Para Lacan:

Nesse des-ser revela-se o inessencial (sic) do sujeito suposto sa-


ber, donde o futuro psicanalista entrega-se ao αγαλμα (agalma)
da essência do desejo, disposto a pagar por ele em se reduzindo,
ele e seu nome, ao significante qualquer. (LACAN, 2003) [p. 259]

Portanto, o fim de análise implica na redução do nome próprio a


um significante qualquer. Dito de outra maneira, o final de análise
pode ser compreendido através do entendimento do lugar de fala
como uma posição de um significante qualquer. Significante este
que, mais uma vez, representa o sujeito para outro significante.

636
Percebe-se assim, a amarra linguística do inconsciente da qual La-
can faz questão de evidenciar sempre que pode. Colocado estes
esclarecimentos, este artigo pode então ir em direção a problema-
tização proposta.

O GADGET E O LUGAR CAPITALISTA

Após apresentado as estruturas que regem a análise do ponto de


vista da psicanálise lacaniana, quer-se agora fazer uma contrapo-
sição dessa experiência no que pode ser observado no cenário ca-
pitalista. Para tal utilizaremos dois desenvolvimentos: o discurso
capitalista, e o conceito de gadget. É válido lembrar, no entanto,
que Lacan, propõe estes conceitos não como uma mudança ou al-
teração daquilo que já havia proposto, mas sim como uma atuali-
zação pela qual a mesma falta inerente ao sujeito se reencena. O
gadget, portanto, se apresentará como um sintoma atual, enquanto
o discurso capitalista se mostrará como uma articulação contem-
porânea do vínculo social.
Talvez seja possível introduzir ambos os conceitos simultane-
amente numa análise da afirmação de Lacan em 1974 de que o au-
tomóvel pode ser entendido no cenário capitalista como uma falsa
mulher. Da maneira com a qual o autor coloca, ao se ter o carro
como tal, tenta-se fazer “questão absoluta de que isso seja um falo”
(LACAN, 1980) [p. 159]. A ideia de falo, que nada tem a ver com o
pênis masculino, senão com a ideia de que este poderia represen-
tar algum tipo de potência, aponta para o caráter significante, este
que, como já discutido anteriormente, diz da falta de um objeto.
Esta comparação, portanto, mostra sobre outra perspectiva, que o
desejo do sujeito, do falo, é o desejo de Outra coisa. Ou seja, ao se
considerar o automóvel como uma falsa mulher, tenta-se colocá-lo

Capítulo 23

O lugar do sujeito na lógica do discurso capitalista 637


André Ferreira Bezerra
na posição fálica, de um significante que, na dialética do desejo,
busca dar corpo ao gozo. Neste sentido o autor reafirma suas con-
ceituações referentes ao desejo de maneira a dar outro olhar para
seu aforismo “não existe relação sexual”, que aparece diversas ve-
zes no decorrer de sua obra.
Há, com isso, para Lacan, uma subversão a partir de um des-
locamento da função tecnológica, na qual esta deixa de ser função
para se tornar objeto de desejo. Para Lacan, quando a ciência, e
consequentemente a tecnologia, é reduzida a um papel semelhante
ao do objeto fálico, uma posição para além de uma utilidade espe-
cífica, o objeto em questão se transforma naquilo que denominou
de gadget:

Por um lado, esse discurso engendrou todo tipo de instrumento


que precisamos, do ponto de vista que aqui se trata, qualificar
de gadgets. Desde então, vocês são, infinitamente muito mais do
que pensam, os sujeitos dos instrumentos que, do microscópio
ao radio-televisão, se tornam elementos da existência de vocês.
Vocês nem podem atualmente medir o vulto disso, mas isso não
faz menos parte do que eu chamo o discurso científico, na medida
em que um discurso e aquilo que determina uma forma de liame
social. (LACAN, 1982) [p. 110]

O gadget é o objeto tecnológico colocado em uma posição para


além de sua função, uma posição fetichizada. Lugar no qual a tecno-
logia perde parte de sua potencialidade virtual para ser transforma-
da em Outra coisa, em objeto de desejo, em uma forma de excesso,
em uma forma de gozo prêt-à-porte. A partir dele, os sujeitos que se
colocarem sob esta lógica se movimentarão na direção daquilo que
fazem questão que seja falo numa tentativa de driblar a castração.

638
Percebe-se no gadget uma utilidade Outra das engenhocas, algo
que se liga ao sujeito na medida em que este não tem como fugir da
estrutura linguística que amarra o desejo a um significante. Posterior-
mente, o lugar que hoje é tomado pelo gadget, poderá ser substituído
qualquer outro produto que tentará se passar por falo. Independente-
mente disso, a orientação do desejo pelo gadget é o que se observa na
experiência contemporânea. Ou seja, o gadget, é também uma outra
forma de dizer do desejo de algo material que se observa na essência
do capitalismo.
Posto isso tem-se o gadget como o objeto que está em jogo no
cenário aqui em questão, mas só ele não seria suficiente para que o
sujeito o comprasse para si. Pode-se dizer que para efetivá-lo enquanto
falo, o gadget precisa de uma racionalização própria que sustente esta
forma de gozo e, é justamente aí que se observa o discurso capitalista.
Uma derivação dos quatro discursos apresentados no seminário XVII
(1969-1970), na qual Lacan estabelece uma estrutura derivante de al-
gumas posições que se distribuem a partir do lugar em que o sujeito as-
sume. Na estrutura do discurso tem-se um agente que sustenta sua fala
através de uma verdade e que, ao dirigir-se ao outro, forma uma produ-
ção, um resto, decorrente daquilo que manifesta. É válido pontuar que
a verdade não pode ser inteiramente dita e é acessível somente através
do “semi-dito”, justamente por isso que na figura (figura 1) apresenta-
da é possível observar as barras (//) que marcam a interdição entre a
produção e a verdade; todas as articulações possíveis se estabelecem a
partir dela, assim como se mostra na imagem a seguir:

Figura 1 – estrutura dos discursos

Capítulo 23

O lugar do sujeito na lógica do discurso capitalista 639


André Ferreira Bezerra
O discurso do capitalista, no entanto, não foi formulado junto
aos demais. Lacan leva um tempo para cunhar e dar atenção para
o termo em específico e somente em 12 de maio de 1972 (LACAN,
1978), é que este discurso é tratado como um conceito propria-
mente dito. O psicanalista o apresenta como o discurso que de-
termina a civilização e que se constrói a partir do momento em
que o objeto mais-de-gozar1 (aquele que se obtém como produto
de um discurso) tenta se passar por objeto a. Em outras palavras,
os objetos materiais das produções científicas, ao serem tomados
como objeto de desejo, ao virarem gadget, determinam uma lógica
material e quantitativa para o objeto mais-de-gozar. Para Lacan, é
no encontro do discurso universitário (científico) com a necessi-
dade capitalista de se objetivar a ciência que o discurso do capita-
lista se funda. “Não se esperou, para ver isso, que o discurso do
mestre tivesse se desenvolvido plenamente para mostrar sua clave
no discurso do capitalista, em sua curiosa copulação com a ciência”
(LACAN, 1992) [p. 103]
Dos quatro discursos originais, do mestre, do universitário,
do analista e da histérica, Lacan pensa um deslocamento a par-
tir do primeiro. No discurso do mestre, assim como nos demais
discursos o agente dirige-se diretamente ao outro, escondendo
sua castração (verdade) para gerar um gozo (produção). Des-
ta maneira, se considerados os termos do discurso do mestre,
o agente se dirige ao outro através de um significante mestre
(S1) que, por sua vez, o assimila como significante do saber (S2).
Nesta relação o que se produz é o pequeno a como causa de de-
sejo, mas a verdade interditada é que o agente fala de um lugar

1 Vale ressaltar que o conceito de mais-de-gozar é construído por Lacan em homologia ao con-
ceito de mais–valia de Karl Marx. Tal construção pode ser observada de forma mais detalhada
na primeira lição do seminário XVI de 1968-69.

640
castrado marcado pela barra ($). No discurso do capitalista há
uma inversão do agente e da verdade da maneira que Lacan co-
loca no discurso do mestre. Há uma inversão do lugar do agente
e da verdade de maneira que S1 se mostra como a verdade inter-
ditada. Tal inversão do discurso do mestre pode ser observada
no esquema a seguir:

Figura 2 – discurso do mestre e discurso do capitalista

O lugar da verdade ao ser assumido por S1, a mensagem do


capitalista, implica numa intensificação produtiva que se desen-
volve num modo de gozo quantitativo e contábil que, sob uma
análise específica da produção capitalista, poderia ser também
o lugar do gadget. Uma materialização, portanto, da posição de
mais-gozar. Percebe-se, no interior desse discurso uma lógica
que intensifica a natureza quantificável do gozo, o que para a
racionalidade econômica capitalista, funciona de maneira muito
vantajosa. É na relação entre a estrutura do sujeito com o que
se observa na civilização contemporânea, que Lacan formula o
discurso do capitalismo. Através disso, de uma dinâmica que
empurra o gozo à uma constante intensificação, Lacan parece
sustentar uma análise social crítica que fala de um deslocamen-
to da experiência do sujeito para uma colonização do gozo.

Capítulo 23

O lugar do sujeito na lógica do discurso capitalista 641


André Ferreira Bezerra
CONCLUSÃO

Considerando o gadget como uma forma assumida pelo dispositivo


de mais-gozar capitalista e considerando ainda a formação subje-
tiva do sujeito como a formação também de um lugar de fala, é
possível estabelecer uma crítica psicanalítica a partir da oposição
entre as posições apresentadas. A estrutura capitalista talvez seja
a principal variável nessa reflexão, pois sua lógica aprisiona não só
o sujeito o inscrevendo sob uma dinâmica que coloca a intensifica-
ção do prazer como a única forma de gozo possível, como também
a tecnologia que nesse contexto limita sua característica funcional
e virtual ao se tornar gadget.
Em realidade, o gadget é consequência de uma subversão da
experiência da tecnologia no sujeito capitalista. Perde-se a carac-
terística virtual ao limitar o funcionamento a uma utilidade produ-
tiva na qual a única possibilidade de gozo se encontra no excesso,
na constante mercadológica do gadget. Como vimos, a experiência
analítica orienta-se por uma de-suposição de saber que culmina na
liquidação da transferência. Tal experiência é observada de forma
dispare sob a lógica neoliberal capitalista na qual o progresso, a
produção e o utilitarismo dirigem-se sempre a uma intensificação
infinita. No capitalismo a produção se direciona para uma perpetu-
ação da experiência de um gozo quantitativo e contábil, enquanto
que na experiência analítica a produção deve visar a morte do sujei-
to do suposto saber. Enquanto no discurso do capitalista o gadget
tenta incorporar o objeto a, o percurso analítico se volta para a
falta significante. São experiências que podem ser tomadas como
divergentes na raiz, enquanto uma visa a perpetuação da signifi-
cação através do gadget, outra se volta para o impossível, para o
real, para o lugar de fala como lugar de acoisa. Dessa forma, o que

642
se observa no discurso capitalista é um lugar que coloca o sujeito
em um modo subjetivo específico que estabelece uma dinâmica de
gozo orientada a partir do gadget, colocando assim o sujeito num
lugar de impotência para com sua capacidade de satisfação, numa
estrutura de eterna busca pela intensificação de prazer, enquanto o
caminho da análise, se encontra exatamente na contramão.

Capítulo 23

O lugar do sujeito na lógica do discurso capitalista 643


André Ferreira Bezerra
referências
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psychanalytique: Discours de de Janeiro: Jorge Zahar.
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Jorge Zahar Editor. Janeiro: Jorge Zahar..

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Janeiro: Jorge Zahar, LACAN, J. (2009). O seminário,
livro 18: de um discurso que não
LACAN, J. (1993). O Seminário fosse semblante. Rio de Janeiro:
XI: os quatro conceitos Jorge Zahar Editor.

644
Capítulo 23

O lugar do sujeito na lógica do discurso capitalista


André Ferreira Bezerra baracoa
editora
Regiane Santos Flauzino de Oliveira
Universidade de São Paulo

Doutoranda em Psicologia Social e do


Trabalho no IPUSP. Mestrado em Desen-
volvimento, Tecnologias e Sociedade na
Universidade Federal de Itajubá - UNIFEI
(2013-2015). Pós-Graduação em Qualida-
de e Produtividade pela UNIFEI (2012) e
em Docência para o Ensino Profissional
- Faculdade SENAC (2012). Graduação
em Administração de Empresas - UNIFEI
(2000-2005).

CV: http://lattes.cnpq.br/5414991113254890
E-mail: regiane_flauzino@yahoo.com.br
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-3281-4362

647
A morada do ser: reflexões so-
bre a casa e o lugar

Resumo: A casa e o lugar são re- lar, condensando o passado e


fletidos neste texto, referente à pacificando o presente.
epistemologia, sob uma abor-
dagem compreensiva. A casa Palavras-chave: Casa, Lugar,
evoca o si mesmo a partir de Ontologia.
sua natureza memorativa, re-
cordando ao sujeito sua ontici-
dade, os fatos biográficos e para
além, desvela os aspectos onto-
lógicos do habitar e do perten-
cer ao mundo. A casa é o lugar
do repouso, pois condensa uma
história e remodela a conduta
pela narratividade. O repouso
diz respeito ao excedente de
sentido que o lugar comunica
ao sujeito. Esse vértice ontoló-
gico é observado a partir de tre-
chos da obra de Ítalo Calvino,
em Cidades Invisíveis e uma
reflexão de Walter Melo sobre
a casa de infância de Nise da
Silveira. Sob a guisa do tempo,
a casa conserva valores, ofere-
cendo ao sujeito, pela lembran-
ça, um momento único, singu-

648
The inhabitation of the Being:
reflections on the home and the
place

Abstract: The home and the membrance, a unique, singular


place are reflected in this text, moment, condensing the past
as far as epistemology is con- and pacifying the present.
cerned, in a comprehensive
approach. The home evokes Keywords: Home, Place, Onto-
the self from its memorial na- logy.
ture, remembering the subject
of its onticity, the biographical
facts; and beyond, it reveals the
ontological aspects of inhabit-
ing and belonging to the world.
The home is the place of rest,
as it condenses a story and re-
shapes the conduct by narrativ-
ity. Rest is about the surplus of
meaning, which the place com-
municates to the subject. This
ontological vertex is observed
from excerpts from the work of
Ítalo Calvino, in Invisible Cities
and a reflection by Walter Melo
on the childhood home of Nise
da Silveira. Under the guise of
time, the home preserves val-
ues, ​​offering the subject, by re

649
Capítulo 24

A morada do ser:
reflexões sobre a casa
e o lugar
Regiane Santos Flauzino de Oliveira
Universidade de São Paulo

“Eu digo: Mãe. Mas é em ti que penso, ó Casa.”


(Milosz, 1929 citado por Bachelard, 1958/1978, p.227)

“Quem comanda a narração não é a voz, é o ouvido”1. Certamente


a categoria da escuta a que se refere Ítalo Calvino em Cidades Invi-
síveis (1972/2002) diz respeito às categorias do ser e do pertencer.
A escuta identifica os errantes à sua terra prometida – “a Casa” – e
descrevê-la significa definir o lugar. O lugar, neste sentido, oferece
ao sujeito um trabalho de pensamento como configuração de uma
narrativa aos moldes do que se refere Ricoeur (1997), encerrando
numa refiguração2 da experiência temporal. Nesta acepção, o lugar
resolve o repouso; lá cessam as perguntas, pois o lugar é composto
de respostas. Isto porque o lugar guarda uma narrativa. As respos-
tas se referem à experiência temporal e, conforme Ricoeur (1997,
p.8), são “aspectos implicitamente temporais da remodelação da

1 Calvino (1972/2002, p. 9).

2 Grifo do autor.

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 651


Editora Baracoa — 2019
conduta pela narratividade”. Por essa razão, o lugar, enquanto mo-
rada do ser, justifica-se quando refletido a partir da remodelação da
conduta. A remodelação se dá a partir do encontro feito à luz das
experiências, em que, descreve Ricoeur (1997, p.8), é “tematizado
o tempo enquanto tal”. Neste sentido, o encontro é compreendido
pela experiência temporal que ocorre na conjugação de historio-
grafia, narratologia e a fenomenologia da consciência do tempo,
utilizando expressões de Ricouer (1997). Desta forma, a reflexão
sobre o lugar como morada do ser se aproxima da temática da
errância, definida como “à procura de caminhos”. “A essência da
casa, do caminho, da água; o que eles buscam? É a casa ou é o lar?”.
Neste trecho, Tassara (2015), referindo-se aos fluxos migratórios
da contemporaneidade, lança sobre a temática da errância, a refle-
xão sobre a busca de um auto-reconhecimento; de uma recupera-
ção do lugar. E o que é o lugar? O lugar se relaciona à pertença, que
é o reconhecimento de si mesmo metamorfoseado em um espaço.
Quando tocado pelos sentidos, reconfigura uma história; acessa-
do pela poética, tonifica a alma, conforme expressa Wunenburger
(2015, p.27): “o devaneio poético sobre as matérias confirmam o
valor inato que Gaston Bachelard acorda à força da alma e à von-
tade”. O lugar carrega uma narrativa que é ativada pela lembrança,
trazendo à consciência um “momento único, singular, não repeti-
do, irreversível da vida3” (Bosi, 2007, p.49). A casa é um lugar, e,
enquanto edificação de pedras, tem essa propriedade cognitiva. Ela
narra de forma particular ao sujeito, sussurrando a ele algo que só
ela poderia contar; daí seu caráter único e exclusivo. É sobre a casa

3 Ecléa Bosi, em Memória e sociedade: Lembranças de velhos (2007), refere-se à imagem-lem-


brança, não de caráter mecânico, mas evocativo do seu aparecimento por via da memória. “A
imagem-lembrança tem data certa: refere-se a uma situação definida, individualizada, ao passo
que a memória-hábito já se incorporou às práticas do dia-a-dia. A memória-hábito parece fazer
um só com a percepção do presente” (Bosi, 2007, p.49).

652
que repousam valores condensados que só são acessados por meio
do encontro. Este encontro é próprio do fenômeno4 que aparece e
narra. O fenômeno acessa a imagem-lembrança e desvela os senti-
dos que ela contém. O que entendemos como valores e sentido são
próprios do que define Bosi (2007) como uma substância memora-
tiva no fluxo do tempo; história densa que aparece com clareza nas
biografias da mesma forma como nas paisagens, na qual há marcos
no espaço onde os valores se adensam. Estes valores estão conser-
vados em um espaço como na cidade de Zaíra:

Ela não conta seu passado; ela o contém como as linhas da mão,
escritos nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corri-
mãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das
bandeiras, cada seguimento riscado por arranhões, serradelas,
entalhes, esfoladuras (Calvino, 1972/2002, p.7).

O lugar contém uma narrativa, ainda que suas pedras fossem


propositalmente dispostas, e parecessem amorfas ao passante,
como a cidade de Tâmara:

O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas: a cida-


de diz tudo que você deve pensar, faz você repetir o discurso, e,
enquanto você acredita estar visitando Tâmara, não faz nada além
de registrar os nomes com os quais ela define a si própria e as suas
partes (Calvino, 1972/2002, p.8-9).

Seus símbolos assustam o transeunte, mas para aquele familiari-


zado, suas ruelas, signos e placas, por vezes esfareladas na ferrugem,

4 Fenômeno significa “aquilo que se mostra, não somente que aparece ou parece”. A fenome-
nologia é uma reflexão sobre aquilo que se mostra (Bello, 2006, p. 17).

Capítulo 24

A morada do ser: reflexões sobre a casa e o lugar 653


Regiane Santos Flauzino de Oliveira
comunicam alguma trajetória, seja ela assombrosa e aterrorizante,
um triunfo ou uma conversa marcante com um amigo. O lugar mar-
ca, portanto, uma relação entre percepção e memória. Recorda-se
aqui o cuidado de Bergson, que se ocupa em entender as relações
entre a conservação do passado, a sua articulação com o presente, e
a confluência de memória e percepção como explica Bosi (2007). Por
essa razão, quando desfeitas as pedras, logo se interpõe uma “inter-
rogação5”. As alterações no espaço vivido podem incorrer em alar-
gamentos paralisantes, estreitamentos angustiantes, perda de pers-
pectiva, subversões da ordem, como afirma Melo (2007), a respeito
dos aspectos psicológicos inerentes a essas mudanças. No entanto,
ao pensar no espaço de forma estritamente geográfica, a resposta às
indagações apresenta-se simplificada: a rua, a casa e a cidade serão as
mesmas para todos (Melo, 2007). De tal modo, refletir a casa como
o Lugar significa, utilizando a metáfora, olhar o avesso do desenho; a
“matriz genuína de expressão da sensibilidade”, como escreve Serrão
(2014, p.16) a respeito da estética na contemporaneidade que se en-
contra “limitada à objetividade do Belo”.
Sob a interpretação do aspecto natural humanizado, bem como
do sócio-cultural, é possível refletir como os ambientes diversos –
incluindo as cidades – tem influência, seja positiva ou negativa, na
naturalidade do aspecto humano no que se refere à corporalidade e
sensorialidade pelas ações e movimentos (Serrão, 2014). Referente
ao que é sensível, o lugar, enquanto natureza e natureza como casa,
para além da propriedade cognitiva, resolve o mistério. O mistério
não pode ser acessado. E ainda sendo incógnito, ele é resposta, pois
é composto de um horizonte capaz de sossegar o ser. Assim, um
deserto fatigante pode se constituir de beleza, pois ele resolve o

5 Conforme corrobora Melo (2007, p.102): “Os espaços do mundo externo e do interno sofrem
alterações que, se forem levadas em consideração, criam inúmeras interrogações”.

654
mistério para o transeunte. Desta forma, a beleza nega as funções
estéticas fundadas em uma calologia6 para calar no mistério.

Tradicionalmente, na história do pensamento humano, tem-se


abordado a questão do posicionamento do ser humano frente à
realidade sob três perspectivas fundamentais: a Verdade, a Beleza
e o Bem. Pela Verdade, o real apresenta-se no seu anseio de co-
nhecer; no registro daquilo que é; a partir da sensibilidade do ser
humano, apresenta-se como Beleza e ainda se abre ao ser humano
frente ao seu querer, como um Bem. Esses três aspectos que fo-
ram tratados na história do pensamento humano sobre inúmeros
vértices e perspectivas falam então da própria condição humana
frente ao real (Safra, 2006).

A Beleza aparece ao ser humano por meio de fenômenos estéticos


(Safra, 2006). No entanto, a experiência da Beleza não se consti-
tui uma “tábua rasa”, utilizando de metáfora; antes, porém, é uma
confluência entre Verdade e o Bem, o que constitui sua profun-
didade. Assim, aborda-se o lugar sob uma visão integral, tal qual
Serrão (2014) reflete a ideia de Natureza considerando a paisagem
como uma unidade integrada aos espaços do habitar. Pode-se dessa
forma conciliar o fundamento natural com atividades constituti-
vamente humanas, tal como a História e a Cultura (Serrão, 2014).
Desta forma, os ambientes são vividos por meio das modalidades
de gosto, gesto e memória de cada cultura e moldados por atos
constantes e respostas, tanto físico-culturais quanto sociais (Ser-
rão, 2014). Todas essas modalidades, gosto, gesto e memória, estão
6 Para Serrão (2014), esta visão se esquiva de encarar com profundidade a ideia de Natureza,
fundamentada em uma visão integral do mundo: “Mas a estética está bem mais próxima de
uma calologia que acaba por tornar redundante o apelo da individualidade do observador”
(Serrão, 2014, p.19).

Capítulo 24

A morada do ser: reflexões sobre a casa e o lugar 655


Regiane Santos Flauzino de Oliveira
alicerçadas na dimensão da Verdade, da Beleza e do Bem, questões
que atravessam o ser humano e que permitem abduzir um caráter
recíproco entre ética e estética.

Sendo o ambiente tanto o que envolve o homem quanto os luga-


res em que este habita – decorrente da matriz arquitetônica que
Berleant substitui à pictórica – não é alternativa, mas a recipro-
cidade que pode fundar tanto a ética quanto a estética (Serrão,
2014, p.20).

Para Serrão (2014), a estética da continuidade defendida por Ber-


leant é uma nova episteme7, pois dispõe o ser humano em uma
nova situação: “o ambiente não só designa o que nos envolve (ex-
teriormente), mas também o que nos penetra e modela (interior-
mente)” (Serrão, 2014, p.20). Neste ponto, recorda-se a dimensão
do pensamento, da sensibilidade e da vontade, pelos quais o real
toca o ser humano. Tomando assim uma visão integralizada do
aspecto humano, é possível refleti-lo pela perspectiva da sensibi-
lidade do ser no e com o lugar, tal como no capítulo “As cidades e
o desejo” em Calvino (1972/2002), que descreve diferentes sen-
sibilidades, a do cameleiro e a do marinheiro, ao avistar a cidade
chamada Despina:

O cameleiro que vê despontar no horizonte do planalto os piná-


culos do arranha-céu, antena de radar, o sobressalto das birutas
brancas e vermelhas, a fumaça das chaminés, imagina um navio a
vapor com a caldeira que vibra na carena de ferro e imagina todos
os portos, as mercadorias ultramarinas que os guindastes descar-
regam nos cais, as tabernas em que as tripulações de diferentes
7 Grifo da autora.

656
bandeiras quebram garrafas na cabeça umas das outras, as janelas
térreas iluminadas, cada uma com uma mulher que se penteia.
Na neblina costeira, o marinheiro distingue a fora da corcunda de
um camelo, de uma sela bordada de franjas refulgentes entre duas
corcundas malhadas que avançam balançando; sabe que é uma
cidade, mas a imagina como um camelo de cuja albarda pendem
odres e alforjes de fruta cristalizada; vinho de tâmaras, folhas de
tabaco, e vê-se ao comando de uma longa caravana que o afasta do
deserto do mar rumo a um oásis de água doce à sombra cerrada
das palmeiras, rumo a palácios de espessas paredes caiadas, de pá-
tios azulejados onde as bailarinas dançam descalças e movem os
braços para dentro e para fora do véu (Calvino, 1972/2002, p.10).

Para falar da sensibilidade do transeunte sobre a cidade, é necessá-


ria uma visão compreensiva. Assim, com Serrão (2014), integração
e reversibilidade fundamentam esta visão compreensiva, da mes-
ma forma que uma ética valorativa conscienciosa, de que o homem
é feito pelos ambientes. Serrão (2014) refere-se ao ambiente como
espaço de habitação.

“Será que todos aqueles que circulam pela rua de Boa Vista pas-
sam pela mesma rua? Quantas casas foram habitadas nas três ca-
sas de infância de Nise da Silveira8? Quantas cidades existem na
cidade de Maceió?” (Melo, 2007, p.102).

É por meio de uma via sensível que o passante transita o espaço ou


nele reside, cada qual de forma diversificada. Nesse sentido, Lei-
tão (2014) assinala a ênfase cultural de Hall e Michel de Certeau a

8 Nise da Silveira é um expoente no campo da memória social, e tem contribuições originais


no campo da saúde mental no Brasil (Melo, 2007).

Capítulo 24

A morada do ser: reflexões sobre a casa e o lugar 657


Regiane Santos Flauzino de Oliveira
respeito do espaço habitado e a difícil definição do espaço,
considerando ele próprio marcado pela experiência pessoal
e intransferível. Assim expressa Hall (1966) citado por Leitão
(2014), afirmando que,

para os alemães, o espaço edificado é um prolongamento de si mes-


mos, o que estabelece a importância deste espaço construído. Já os
ingleses não têm suas relações sociais fundamentadas nas estruturas
sociais, mas no estatuto social; Os franceses tem sua singularidade
espacial expressa na maneira como utilizam as edificações de uso co-
letivo. O ambiente da casa é reservado aos familiares; ser convidado
é distinção de poucos (Hall, 1966 citado por Leitão, 2014).

Ao contrário, na casa de Nise da Silveira, sempre aberta para os


não-familiares, recebia-se amigos e convidados que se refrescavam
na brisa da tarde e que na hora das refeições eram servidos far-
tamente. O ambiente dotado de acolhimento era o lugar em que
os pais de Nise da Silveira recebiam artistas que se apresentavam
à plateia alagoana, bem como os intelectuais passantes (Sant’Ana,
2001 citado por Melo, 2007). “É a sensibilidade que abre os olhos
do pensamento, que lhe pede uma atenção ao mundo, uma atenção
aos seus acontecimentos” (Feuerbach, 1843/2005, p.16). O lugar,
enquanto morada do ser, compreende um existir com, utilizando
neste caso a expressão de Feuerbach (1843/2005, p.16): “existir é
um coexistir”. A coexistência expressa está relacionada com a du-
plicidade subjetiva e objetiva próprias da dinâmica da vida, huma-
na e natural (Feuerbach, 1843/2005). Assim, entende-se neste caso
a confluência do aspecto subjetivo como matéria da sensibilidade
presente especialmente na busca da tríade supracitada que atraves-
sa o aspecto humano: a Verdade, o Belo e o Bem, que permeiam as

658
atividades humanas por excelência no lugar de habitação. Por essa
razão, o lugar de habitação se justifica ainda como morada do ser,
no sentido do encontro com o si mesmo. Tomando como exemplo
as características principais da casa de infância de Nise da Silveira,
elas se constituíram como um ponto de encontro para o estímu-
lo da produção cultural, estendendo-se ainda para a casa em que
Nise, em idade adulta, se mudou com o marido para o Rio de Janei-
ro (Moreira, 2001 citado por Melo, 2007).

Essa casa se mostrava como um lugar ameno, com fartura de ali-


mentos, de alegria, de respeito e de afeto, tornando-se, anos mais
tarde, para a idosa Nise da Silveira, numa casa onírica, misto de
imaginação e memória (...) (Melo, 2007, p.102).

A casa de infância é um reservatório de imagens que condensam


um passado e podem pacificar o presente, tonificando a alma para
seguir sua trajetória ao tom de uma descoberta. A descoberta é
resultado da imaginação poética que, para além de uma “vetori-
zação do sujeito”, utilizando a expressão de Wunenburger (2015,
p.27), é “portadora de um devir de si, de um apelo à mudança, de
uma orientação em direção a um mais-ser ou um super-ser”. De tal
modo, Nise da Silveira descobria o lugar pela imaginação poética:

A menina se admirava, pois não fazia diferença entre espaço geo-


gráfico e espaço poético. Dessa maneira, o pensamento tende para
a concretude e cria, paradoxalmente, uma cena de pura imagina-
ção: uma cortina imensa que cobre toda a América. Neste caso,
tratar-se-ia realmente de um ato de descoberta, pois as terras
estavam escondidas. Mas como não enxergar tamanha cortina?
(Melo, 2007, p.103).

Capítulo 24

A morada do ser: reflexões sobre a casa e o lugar 659


Regiane Santos Flauzino de Oliveira
Descortinados pelos sentidos, cada qual, ouve a narrativa do
lugar. No entanto, “jamais se deve confundir uma cidade com o dis-
curso que a descreve” (Calvino, 1972/2002, p.59), pois o lugar é feito
do desejo e da memória.

660
referências
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Capítulo 24

A morada do ser: reflexões sobre a casa e o lugar 661


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662
Capítulo 24

A morada do ser: reflexões sobre a casa e o lugar


Regiane Santos Flauzino de Oliveira baracoa
editora
Acácio de Toledo Netto
Universidade de Taubaté /
Universidade de São Paulo

Doutorando em Psicologia Social do


Instituto de Psicologia da Universida-
de de São Paulo (IPUSP). Professor da
Universidade de Taubaté desde 1988;
efetivo desde 2005 na disciplina Direito
e Sociologia Ambiental. Bacharel em Ad-
ministração de Empresas (1985), Direito
(1996) e Arquitetura e Urbanismo (2014).
Mestre em Ciências Ambientais pela
Unitau (2005).

CV: http://lattes.cnpq.br/4238227557793219
E-mail: acaciotnetto@gmail.com
ORCiD: https://orcid.org/0000-001-9637-1428

665
Esse lugar chamado “merca-
dão”: um estudo fenomeno-
lógico da paisagem

Resumo: A complexa e dinâmi- dade, as vivências, as memó-


ca reflexão sobre o conceito de rias e as aspirações dos tauba-
paisagem trouxe para os dias teanos, ilustrativas de como
de hoje uma formação para as experiências subjetivas e as
além do território, a noção de interações intersubjetivas são
“paisagem fenomenológica”. O condicionadas pelo lugar (físi-
texto discute a ideia da repre- co e também simbólico), onde
sentação de um dado lugar, à se concretizam.
luz da proposta bachelardiana
de uma “topoanálise”, con- Palavras-chave: Mercado,
trapondo-o a necessidade de Paisagem, Imaginário, Lugar,
sentir esse lugar concreto e Subjetividade
suas “rugosidades”. A partir da
exposição oral, este trabalho
busca realizar um estudo, a
construção de um olhar, acerca
das relações existentes entre
o universo fenomenológico e
imaginário de seus atores e das
imagens do lugar e do espaço,
inspirado pela obra A poética
do espaço de Gaston Bachelard.
Desde o seu surgimento, o
“mercadão” abriga aspectos su-
tis que caracterizam a sociabili

666
This place called "merca-
dão": a phenomenological
study of its landscape

Abstract: The complex and of Space. Since its inception,


dynamic reflection on the con- the “mercadão” shelters subtle
cept of landscape has brought aspects that characterize the
to our days a formation beyond sociability, experiences, me-
the territory, the notion of mories and aspirations of the
“phenomenological landsca- Taubateans, illustrative of how
pe”. This text discusses the subjective experiences and
idea of the representation of intersubjective interactions are
a certain place, in the light of conditioned by the place (phy-
the Bachelardian proposal of sical and also symbolic), where
a “topoanalysis”, opposing it they materialize.
to the need to feel this concre-
te place and its “roughness”. Keywords: Market, Landscape,
Through the oral exhibition Imaginary, Place, Subjectivity.
of the licensees and regulars,
of the municipal market of
Taubaté (SP) - the “mercadão”,
this work seeks to carry out a
study, the construction of a
gaze, about existing relations
between the phenomenological
and imaginary universe of its
actors and the images of place
and space, inspired by Gaston
Bachelard’s The Poetics

667
668
Capítulo 25

Esse lugar chamado


“mercadão”: um estudo
fenomenológico da
paisagem
Acácio de Toledo Netto
Universidade de Taubaté /
Universidade de São Paulo

1. Paisagem, espaço e lugar: realidade ou representação?

Vi quando o Cordeiro abriu o sexto selo, e sobreveio um grande


terremoto. O sol se tornou negro como saco de crina, a lua toda
tornou-se vermelha como sangue, e as estrelas do céu caíram
pela terra, como a figueira, quando abalada por vento forte, deixa
cair seus figos verdes, e o céu recolheu-se como um pergaminho
quando se enrola. Então, todos os montes e ilhas foram movidos
do seu lugar. (BÍBLIA, 1999, p. 204)

As cenas da natureza descritas acima, do capítulo apokalypsis (em


grego), poderia ser classificado como um dos mais temidos da Bí-
blia. O “livro das revelações” trata detalhadamente, entre outros,
de uma das conhecidas profecias sobre o fim da civilização terres-
tre, ou o fim da vida; o fim da história. Desde a antiguidade, o ho-

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 669


Editora Baracoa — 2019
mem ocidental e sua cultura nutre um fascínio pela possibilidade
do fim (D’ANGELO, 2009). Parece que este aflitivo fascínio se retro-
alimenta pela finitude da vida e os momentos irreversíveis da eter-
nidade do tempo (GLEISER, 2001). A história vem patenteando que
esse ímpeto exploratório não é diferente com a noção de paisagem,
espaço e lugar: uma realidade ou uma representação?
Assim como o “fim da história”, o “conceito de paisagem”,
desde a modernidade, ainda passa por questionamentos nas mais
diversas áreas do conhecimento, como por exemplo, da filosofia,
da história, da geografia, da arquitetura, da pintura, entre outras.
São os mais variados “conceitos” de paisagem, dependendo, mui-
tas vezes, do interesse, da história, das relações, do contexto social
e cultural, de quem as define e que poderá vir a ser a base de um
pensamento científico.
Dessa polissemia da paisagem, poderíamos acolher, como no-
ção de paisagem, baseado na reflexão de alguns autores, neste es-
tudo abordados, numa representação social-filosófica e nos mais
variados momentos histórico-espaciais, a relação do imaginário
coletivo do Mercado Municipal de Taubaté – SP, o “mercadão”, e
sua inserção cultural ao longo da história, como um “marco”, um
“recorte” da natureza no município de Taubaté, que despertou um
fascínio exploratório deste estudo. Um começo e não um fim.
Na multiplicidade de sentidos da “paisagem”, encontram-se
redações que indicam, de modo singular, algumas formulações dos
primeiros passos de um “novo olhar” para a modernidade, atri-
buindo-se a Petrarca, como a pessoa, do cume do monte Ventoux,
nos Alpes franceses, a experiência da contemplação desinteressada
do mundo natural exposto ao olhar. Diz respeito ao olhar a natu-
reza não por meio dos livros, como era o costume na Idade Média,
mas com os próprios olhos. Ele “viu a natureza por ele mesmo”.

670
Deste modo, a ascensão de Petrarca ao monte Ventoux é um mo-
mento “constitutivo do sentimento da paisagem”, como uma expe-
riência interior universal (BESSE, 2014, p. 2).
Os escritos de Simmel (2013) sugerem, que a observação dos
mais variados objetos/elementos que se apresentam à visão, muitas
vezes “num raio visual efêmero” (SIMMEL, 2013, p. 20), não bas-
ta para “definir” o que vem a ser “paisagem”. Ainda para Simmel
(2013, p. 20) “a consciência deve apreender, além dos elementos,
um novo conjunto, uma nova unidade, não ligados aos significados
particulares de cada elemento, nem composto mecanicamente da
sua soma”. Assim, suas abordagens, entre sujeito e objeto, decor-
rem em pensamentos de que a paisagem parece ser o meio entre
sujeito e objeto. De seus escritos, podemos depreender que sujeito
e objeto se fundem para formar a paisagem. A paisagem, então,
vem a ser um espaço de mediação.
Seja no olhar subjetivo da noção de paisagem, com seu cará-
ter estético e até pela sua relevância, como tema entre renomados
pintores (CLARK, 1961); a partir de autores, como George Simmel,
podemos notar que a ideia de paisagem revela também um cará-
ter filosófico da arte e da estética, que, como espaço de mediação,
questiona seus efeitos para o indivíduo ou para a coletividade, na
relação tempo/espaço, na história.
Ritter (2013) aborda uma reflexão sobre o surgimento do sen-
timento estético da natureza na tradição ocidental. O autor evoca
que o sentimento estético da paisagem nasce do “divórcio” entre ho-
mem e natureza. O autor muda nossa forma de olhar o lugar. “Olhar
é ver e é também conhecer o todo como todo” (RITTER, 2013, p. 31).
Este seu pensamento mobiliza “nosso olhar para a cidade
como lugar da existência da liberdade” (RITTER, 2013, p. 31). Ritter
vai para além da paisagem como estética na sociedade moderna.

Capítulo 25

Esse lugar chamado “mercadão”: um estudo fenomenológico 671


da paisagem
Acácio de Toledo Netto
O pensamento de Ritter é o próprio pensamento sobre a paisagem.
Há, em Ritter, um verdadeiro resgate do fundamento filosófico, em
que ele constrói

a questão tal qual ela emerge na tradição ocidental e do modo


como ela constitui, hoje, o embasamento da situação contempo-
rânea. O horizonte deste volume abre assim uma fenomenologia
da paisagem, sendo que o texto de Petrarca prefigura um momen-
to fenomenologicamente constitutivo daquilo que George Sim-
mel denominará o sentimento da paisagem. (RITTER, 2013, p. 31).

A menção, neste trabalho, de variados autores, não significa afir-


mar que comungam do mesmo pensamento da noção de paisagem,
mas são obras produzidas em diferentes momentos e que guardam
significativa relação com os propósitos deste trabalho e denotam
um verdadeiro fascínio pelo tema através dos tempos e da história.
Assim, a concepção de que a paisagem não é puramente estéti-
ca, abraçada a um gênero específico da pintura, a partir dos séculos
XVII e XVIII, mas uma concepção mais abrangente da paisagem, do
espaço e do lugar, em possuir uma significação, que se pode ter como
territorial e geográfica, é também largamente explorada por Besse
(2014). A partir de então, a visão de enquadramento, ou janela, da
paisagem se dissipa, dando à paisagem uma dimensão subjetiva. A
paisagem passa a ser compreendida “como espaço objetivo da exis-
tência, mais do que como vista por um sujeito” (BESSE, 2014, p. 21)
Portanto, do que se lê, pode-se apreender, que o termo paisa-
gem possui uma relação espacial, mas sob aspectos distintos. Um
deles é que a paisagem pode ser caracterizada com uma designação
de unidade territorial, onde a vida humana acontece, mas também,
sob outro aspecto, é que a paisagem pode ser possuidora de uma

672
representação, de onde o observador “filtra” seu olhar, que pode-
ríamos invocar como uma estética fenomenológica do espaço, que
comunga com a visão de Jean-Marc Besse.

2. Essência e percepção da paisagem, do espaço e do lugar

Kenneth Clark (1961) em seus escritos, coloca-nos distantes das


coisas determinadas e fixas. Os elementos por ele evocados no
texto, contêm uma distância implícita e são descritos como um
fragmento de natureza, o que já os tornaria uma “pintura de pai-
sagem” aproximando-nos da noção de “sentimento” de natureza.
Sua obra trata exclusivamente de pintura e se fundamenta sobre o
fato de que a palavra “paisagem”, designa, indiretamente, a reali-
dade ou sua representação.
A partir desse sentimento de natureza prenunciado por Ken-
neth Clark (1961), este trabalho adota a noção de paisagem discuti-
da por Besse (2014), como uma experiência vivida, de base fenome-
nológica, que entende a paisagem como uma construção social e
cultural, nutrida pelas interações entre indivíduos e que comparti-
lham suas experiências. Para tanto, adotamos que a paisagem não
é apenas algo que se contempla, que se admira, que se vê e que se
percebe, mas paisagem é também o sentir. “A geografia está do
lado da percepção, a paisagem do lado do sentir. (...) A paisagem é
da ordem do sentir. Ela é a participação e o prolongamento de uma
atmosfera, de uma ambiência” (BESSE, 2014, p. 79).
Reforçamos que não é a proposta deste trabalho fechar ques-
tão sobre a noção de paisagem, mas uma reflexão fundamentada
em alguns saberes, já que, dependendo da questão ou problemá-
tica e seu referencial de interpretação, a noção de paisagem pode
dispor de outro modo, como uma linha tênue. Porém, consentir

Capítulo 25

Esse lugar chamado “mercadão”: um estudo fenomenológico 673


da paisagem
Acácio de Toledo Netto
que a paisagem é um campo polissêmico, como já abordado, é fun-
damental quando a paisagem transpõe para a categoria de objeto
de estudo.

3. Da geografia a paisagem: a fenomenologia

A geografia clássica possui um forte caráter pautado no visual, ao


passo que a geografia atual, está mais intimamente ligada ao cará-
ter fenomenológico das ciências sociais,

cristalizado no conceito de espaço. (...) A geografia, na sua ver-


são positiva, tornou-se uma ciência social que estuda as distribui-
ções espaciais, as estruturas espaciais, as circulações espaciais, os
comportamentos espaciais de atores supostamente racionais e,
portanto, ‘modelizáveis’. (BESSE, 2014, p. 77)

Reforça, ainda, o autor que, foi por meio da fenomenologia,


que tornaram possíveis atitudes mais abrangentes nas definições
“dos objetos e na escolha dos métodos” (BESSE, 2014, p. 77).
Instaurou-se pela fenomenologia, no estudo da “paisagem”, no-
vas possibilidades de pesquisa, despertando o “interesse pelas per-
cepções, representações, atitudes diante do espaço” (BESSE, 2014, p.
78). Hoje, novos elementos têm saberes e significações geográficos,
como por exemplo, tradições literárias, religiosas, as artes plásticas,
entre outros. E sob essa nova perspectiva, a paisagem passou a ser
compreendida como uma representação, dotada de valor da vida
humana e sua formação cultural do que um mero objeto.
O espaço geográfico é decomposto por um sistema de coorde-
nadas, é sistematizado, é fechado. “A paisagem, segundo Strauss, não
é uma categoria – e menos ainda uma experiência – antropológica.

674
Ela é pré-cultural, pré-antropológica” (BESSE, 2014, p. 80). Ainda,
segundo Besse (2014, p. 81) “a paisagem é o espaço do sentir (...) é
habitar o espaço (...) sem pressuposição nem finalidade”.
Dardel, segundo Besse (2014), está preocupado não com o “ob-
jeto construído”, tampouco uma “modelização espacial dos fenôme-
nos sociais” (BESSE, 2014, p. 86), mas seu olhar é para a questão fe-
nomenológica do espaço geográfico. Um espaço percebido e vivido.
O espaço de Dardel (BESSE, 2014, p. 88) possuí propriedades
“materiais”.

O espaço geográfico possui uma ‘solidez’ que resiste às operações


combinatórias do entendimento científico, mas também aos es-
forços da ação voluntarista (...) mais do que um ‘objeto’ colocado
diante de um ‘sujeito’. É um dado elementar da vida do espírito
humano em contato com a Terra. É uma qualidade essencial do
lugar em que o homem se encontra, dando à sua experiência do
momento uma essência e uma densidade próprias. (...) o mundo
a partir deste lugar.

Assim, de acordo com Jean-Marc Besse, abre-se uma larga perspec-


tiva para o estudo da paisagem: uma hermenêutica dos elementos
da superfície da Terra, que segundo Dardel incluiríamos também os
espaços construídos, que serão considerados nas suas significações
e repercussões da sensibilidade e do pensamento humanos.
Dardel e Bachelard (2012) estão muito próximos, mas Dardel
vai além. Suas indagações estão

no centro da fenomenologia da percepção, uma interrogação que


visa o nascimento das significações no próprio âmago do sensível.
(...) O espaço geográfico é um espaço da vida, mas um espaço pela

Capítulo 25

Esse lugar chamado “mercadão”: um estudo fenomenológico 675


da paisagem
Acácio de Toledo Netto
qual a vida se expressa, um espaço no interior do qual a vida desco-
bre significações que são indissoluvelmente as suas e lhe concernem,
numa interexpressão do subjetivo e do objetivo, que é distintivo da
vida real (BESSE, 2014, p. 89 e 90).

Antes de qualquer experiência visual, a paisagem é expressão da


existência.

A paisagem é essencialmente mais mundo do que natureza, ela é o


mundo humano, a cultura como encontro da liberdade humana com
o lugar do seu desenvolvimento: a Terra. (...) não há Terra sem ho-
mens que a habitem e contribuam para lhe dar seu sentido de Terra
para existência humana. (...) a Terra concebida unicamente como
planeta não é Terra, mas apenas um corpo indiferente ao mundo das
significações e dos valores. A terra do geógrafo não é um planeta,
(...) a base da existência humana. (...) esta é, sem dúvida, a missão
filosófica que Dardel atribuiu à geografia (BESSE, 2014, p. 92).

4. A poética de Gaston Bachelard

Na obra A Poética do Espaço, o filósofo francês Gaston Bachelard,


elabora uma reflexão de espaços e lugares, no qual o autor mostra
sua intenção de elevar o objeto de sua análise, definido pelo próprio
autor como “topoanálise”, que é o estudo psicológico sistemático
dos lugares físicos de nossa vida íntima. Para o autor, é analisar os
espaços e os lugares ao nível poético do devaneio.
Para mostrar que há poesia nos principais espaços preferidos pelo
indivíduo, Bachelard se utiliza da faculdade humana da imaginação,
por vezes adormecida, mas que tem o poder de fazer nascer, renascer
e criar novas formas de vida e de intimidades, proporcionando aos ob-

676
jetos e coisas um importante significado, que por si só não possuem.
Bachelard, em sua obra, relaciona o espaço a uma fenomenolo-
gia da imaginação poética, naquilo que o autor denomina de “ima-
gens poéticas”. Uma transfiguração do mundo real, um estado de
devaneio. Um universo ainda vivo, nutrido pelas nossas recorda-
ções, algumas lembranças dormentes. E por que não uma forma
de conhecimento?
Nesse universo de imagens, Bachelard restringe sua análise ao
exame das imagens simples, as imagens do espaço feliz, do qual o
autor denomina como topofilia (BACHELARD, 2012, p. 19), determi-
nando os valores humanos dos espaços de proteção, a casa. Desta
forma, para o autor, a imagem poética do espaço permeia uma linha
que se inicia com a poética da casa, como instrumento de proteção
para a alma humana, partindo para os valores da casa dos indivídu-
os, suas cabanas, e das suas coisas, como: gavetas, cofres e armá-
rios; dos ninhos a conchas; dos cantos e dos espaços da miniatura
à imensidão; da dialética do exterior e do interior, e, finalizando,
do vigor ontológico das imagens e da fenomenologia do redondo.

5. O cenário: Mercado Municipal de Taubaté - SP

Segundo Benévolo (2009), a origem das cidades remonta a 5.500 a.


C. na região da Mesopotâmia, a partir da divisão social nos aldea-
mentos dos povos que deixaram de ser nômades após a revolução
agrícola. A estruturação das cidades tem íntima relação com as ati-
vidades comerciais. Nesse processo o mercado, desde as primeiras
cidades, sob o aspecto de forma e função, apresenta papel de desta-
que e ao mesmo tempo, um “cenário” condicionante para a repro-
dução das relações sociais. Historicamente a cidade e seus múlti-
plos usos apresentam-se em constante transformação de acordo

Capítulo 25

Esse lugar chamado “mercadão”: um estudo fenomenológico 677


da paisagem
Acácio de Toledo Netto
com os anseios da sociedade e ao longo de cada período histórico.
A história se repete e não é diferente hoje nos municípios onde se
encontram os mercados municipais.
Assim foi também na próspera vila de São Francisco das Cha-
gas de Taubaté, o povoado da antiga aldeia de “taba-etê”. De acor-
do com Reis (2013, p. 17), em seus estudos, Félix Guisard Filho
descreve o surgimento da necessidade de um local para comer-
cializar produtos da roça: "Começando, inicialmente na praça da
igreja matriz e mais tarde no Largo da Bica e no Largo do Tanque".
Assim surgiu o Mercado Municipal de Taubaté - SP, mais que um
espaço mercantil, um ponto de encontro, onde também, à época,
realizavam-se trocas de mercadorias de primeiras necessidades e
produtos básicos, mas acima de tudo uma construção contígua da
história, intimidades ali registradas ao longo do tempo.
O “mercadão” é uma tradicional feira de frutas, verduras e
produtos dos sítios da zona rural, inclusive artesanato, doces e qui-
tutes da cultura caipira. Ainda, um raro exemplar arquitetônico
do período eclético no Brasil, descrito por Carlos Lemos (1989)
na sua obra Alvenaria Burguesa, muito embora suas características
mais visíveis ficaram camufladas por alterações ao longo do tempo,
desconsiderando a sensibilidade do conjunto.
Sua importância maior está na convivência cotidiana dos per-
sonagens que compõem a riqueza da história, como os agriculto-
res, os permissionários, os artesões, os tropeiros, os comercian-
tes, os músicos, os artistas, os frequentadores, entre outros, como
se percebe nas entrevistas. Um ponto de encontro para as trocas
mercantis de primeiras necessidades e produtos básicos para a
subsistência da população. A intimidade e proximidade das rela-
ções ali estabelecidas, criavam-se, muitas vezes, laços de amizade.
Comenta o historiador Armindo Boll (REIS, 2013, p. 17-18):

678
Ao mesmo tempo em que ocorria a transação comercial, havia
trocas que formariam a mentalidade e a cultura do taubateano.
(...) Dessa forma, a tradição fica reavivada, e o convívio fica for-
talecido. O novo e o velho entrecruzam-se, e a cultura é preser-
vada. (...) O Mercado Municipal de Taubaté faz parte da vida dos
habitantes da nossa região. É um patrimônio material e imaterial
que merece um olhar atento e uma pesquisa dos mais diversos
aspectos que compõem a sua história.

Explorar o mercado de Taubaté, além da questão arquitetônica e


mercantilista, depreende que este “gigante taubateano” responde
também por determinadas funções humanas: elementos sobre-
viventes; abrigos de memórias, que guardam cumplicidades de
épocas de seus atores. É um processo cotidiano de uma relação
complexa entre a morfologia do mercado municipal e a força das
relações sociais que emergem e se expressam nas representações
imaginárias de cada um. O mercado hoje, além de um sonho rea-
lizado é também referência regional, dada sua importância no co-
mércio local e regional. Foi “ali, naquele pátio, que muitas famílias
começariam uma atividade que fomentaria sucessivas gerações”
(REIS, 2013, p. 37).

6. Esse lugar chamado “mercadão”: um mosaico de rela-


ções fenomenológicas?

Besse (2014) evidencia o papel de uma geografia muito mais atual,


que está mais intimamente ligada ao caráter fenomenológico das
ciências sociais, “cristalizado no conceito de espaço” (BESSE, 2014,
pág. 77), voltada, muito mais, ao estudo das distribuições espaciais,
das estruturas espaciais, das circulações espaciais e dos comporta-

Capítulo 25

Esse lugar chamado “mercadão”: um estudo fenomenológico 679


da paisagem
Acácio de Toledo Netto
mentos espaciais “de atores supostamente racionais” do que o cará-
ter visual da geografia clássica. Isto foi possível somente por meio
dos estudos fenomenológicos das relações sociais dos espaços.
A luz da sua obra, podemos sugerir, ao objeto de estudo deste
trabalho, o mercado municipal de Taubaté - SP, como um “espaço”
com ressonâncias simbólicas e de bases arquetípicas, inerentes ao
ser humano. Imagens não construídas pelo cotidiano, mas ima-
gens formadas pelos atores desse cenário como um ato fenomeno-
lógico, que aqui será discutido, na esteira bachelardiana.
Capturar essa identidade no “mercadão; descrever esse mapa
afetivo nos seus espaços ou realizar uma leitura dos espaços a par-
tir das imagens simbólico-espaciais de seus atores, não é um pro-
cesso trivial. Para elaboração dessa leitura, tornou-se necessária
a elaboração de um acervo das fala dos atores do “mercadão”, a
partir dos depoimentos orais (WHITE, 2005 e MEIHY, 2007), para
elaboração da leitura fenomenológica desse “lugar”.
Essencialmente todas as entrevistas demonstram do espaço
“mercadão” ressonâncias simbólicas, que vão do mais amplo, segun-
do Bachelard, a casa, até o menor, a concha, onde pode-se observar
o espaço feliz de seus atores. O mercado é para eles um lugar onde
se sentem seguros, ficam à vontade, o próprio lar, a própria casa, a
sua “morada”, cada qual com sua particularidade. Dona Geni, por
exemplo, como tantos outros, vê no mercado sua casa, seu ninho:

Eu nasci aqui. (...) É. Minha mãe tinha banca lá naquele poste.


Daí ela passou mal o guarda levou ela pro hospital Santa Isabel,
ela teve eu, voltou comigo no colo. E eu me criei aqui embaixo da
banca. 52 anos que eu tenho. É, eu nasci aqui... (...) Mas eu trabalho
aqui e não pretendo sair daqui não. Tive um enfarte aqui no mer-
cado... Tô a vida inteira aqui mesmo. E pretendo ficar por aqui..

680
Ao mesmo tempo que lá é o seu lar e o vê com ”luz,” como um “céu
limpo e azul”, como se estivesse no sótão, ela vai ao porão, com
sentimentos de medo e escuridão, quando relata a coisa ruim do
mercado, na sua visão:

Aqui a única coisa que é ruim é muito maloqueiro, que tem sabe.
Muito maloqueiro. Muita gente pedindo, muita gente fedida de
bairro, sabe (...) Minha vida foi tudo aqui, né. Sempre trabalhei.
Tudo que eu tenho é daqui do mercado

Pode-se constatar, a partir das entrevistas, além da questão arqui-


tetônica e mercantilista, que o mercado responde também por de-
terminadas funções humanas: elementos sobreviventes; abrigos de
memórias, que guardam cumplicidades de épocas de seus atores.
Carmen relata:

Então, assim, aqui é um histórico, né. Começou do meu pai. Meu


pai tem 49 anos de feira, né? E eu tenho 8 anos. Então, passou
de pai pra filha (...) A gente cresceu aqui, vendo o nosso pai tra-
balhar. Tudo que a gente tem em casa, saiu daqui do Mercado. O
pai criou a gente tudo. A gente tem uma vida boa em casa. Tem
nossa casa, né. Hoje eu estudei o meu filho, engenheiro, com o
dinheiro do Mercado.

É um processo cotidiano de uma relação complexa entre a morfo-


logia do espaço mercado municipal e a força das relações sociais
que emergem e se expressam nas representações imaginárias de
cada um. E, essa intimidade afetiva expressada pela imagem, tem
base na obra de Bachelard, para que se compreenda a natureza da
imagem, conforme relata Luis Carlos:

Capítulo 25

Esse lugar chamado “mercadão”: um estudo fenomenológico 681


da paisagem
Acácio de Toledo Netto
Olha, na parte humana, o que faz parte é o calor humano. O Mer-
cado tem muito calor humano. A pessoa tem um contato mais
direto (...) Você forma amigos no Mercado Municipal. É um doce
veneno. É um doce vício. É sempre bom vir comer um pastel,
tomar uma cachaça, bater papo, ir na breganha, ver o que que
tem, quem tá lá, o que que eu posso trocar, o que que eu posso
comprar, né

Nas entrevistas pode-se constatar, ainda, o não-saber da imagina-


ção, já que os atores nem sempre relacionam a simplicidade de sua
imagem à sua história, ou a partir do seu passado. Nos surpreen-
demos com os relatos acerca da realidade sensível dos atores. O
mercado e a casa não se opõem, percebe-se, a partir dos relatos,
que a intimidade da casa está contida na diversidade espacial do
mercado. Este, percebe-se nos relatos, permite a multiplicação
das possibilidades de relações sociais que são estabelecidas nele.
E mais, é a partir de espaços urbanos, como o mercado municipal,
que o homem contemporâneo realiza boa parte de suas necessida-
des. A sensibilidade do “Seu Chico” pode ser percebida na sua fala

lá fora não vive sem a parte de dentro e a parte de dentro não


vive sem lá fora (...) estou aqui há 47 anos, desde 13 anos de
idade, e eu só vi acrescentar é, devido ao tempo, à perseverança,
porque são pessoas diferentes, que vem a frequentar o nosso
ponto, que se torna, assim, é, gostoso de trabalhar nesse ramo.
Porque muitas pessoas começam crianças trazidos pelos pais,
quando, é, as crianças crescem, vão lembrar de quando eram
crianças e retornam pra matar a saudade. Então, eu já estou aqui
praticamente, estive fazendo as contas, com três gerações. Os
avós, filhos, e os netos.

682
No mercado há os que trabalham, negociam, compram e vendem
bens necessários à sobrevivência; nele seus atores se divertem, en-
contram pessoas e novas relações emergem a partir dai, “vemos e
somos vistos”. Na correria ou na calmaria contemplativa, o merca-
do abriga suas vidas.
Apesar da significativa diferença entre as faixas etárias, em to-
das as entrevistas, é possível verificar o vínculo afetivo das pessoas
com esse lugar. Trabalham lá porque gostam, apesar das dificulda-
des que relatam haver no cotidiano dali. E o que parece fortalecer o
vínculo são as relações construídas com as outras pessoas que ali es-
tão, trabalhadores ou fregueses. Gisele, filha do Gil, fala sobre isso:

Desde que eu nasci... Fui criada aqui embaixo, pelos meus pais
(...) Acho que o melhor que o mercado tem é o pastel... Pastel com
vinagrete. (...) Acho que tem muito andarilho. Muito pedinte.
Muito sujo, com mal cheiro... Isso afastou muito as pessoas... Os
ciganos também atrapalham bastante. Porque eles ficam cutu-
cando, batendo a mão, pedindo dinheiro, quando a pessoa não dá,
eles respondem, eles falam palavrões. É bem chato

A troca do passado e a compra e venda do presente. A troca ainda


permanece, mas como hábito de alguns feirantes que não abrem
mão desta possiblidade em momentos de necessidade de ambas as
partes. Esse hábito do passado resiste ainda em meio ao capitalis-
mo atual. Sueli relata sua experiência na feira da “breganha”

Minha mãe trabalhava. Até pouco tempo. Minha mãe ainda é


viva, graças a Deus. Mas só que agora ela não... ela tem muito pro-
blema de saúde, e ficar o tempo todo assim, no sol, né? (...)mas
deixa eu falar, eu gosto de ir pra breganha! Que é meu único dia

Capítulo 25

Esse lugar chamado “mercadão”: um estudo fenomenológico 683


da paisagem
Acácio de Toledo Netto
livre, né? Com os meus filhos. Aí eu falo: até uma hora, eu vou pra
breganha. Depois eu sou mãe, sou vó, sou esposa, sou dona do lar.
Por enquanto, não sou nada.

A riqueza dos relatos permite-nos, ainda, um nível de detalhamen-


to acerca das escolhas de alguns espaços no mercado, a “morada
ideal”, um verdadeiro reduto, com cantos e recantos. Espaços proi-
bidos, que os atores evitam sempre que possível ou que temem, por
exemplo os “ciganos e maloqueiros”. Espaços desejados, espaços
especiais, que buscam quando querem encontrar alguém, recordar.
Elegem espaços para sentir paz. Por exemplo, a “Casa do Norte do
Edilson e da dona Fátima”. Para se sentir seguros, por exemplo, o
antigo Banco “Banespa”, um verdadeiro “cofre com chave”, ou uma
concha.
Também durante as entrevistas é possível perceber expres-
sões, traduzidas nos gestos, em frases inconclusas, raciocínios que
se esvaíam, mas também metáforas, jogos de palavras, diferentes
entonações, cheios de encantamento. Enfim, dezenas de pequenas
pistas que merecem tempo e dedicação para uma melhor compre-
ensão dos relatos dos diversos atores e seus imaginários.

Considerações

Parece-nos muito natural pensarmos a cidade a partir de seus luga-


res e espaços. Mencionar um lugar encontra em nossa imaginação
um imediato apelo de visualização. Se esse lugar nos é conhecido,
fez parte da nossa infância, essa visualização certamente irá intu-
mescer nossa memória e, dependendo da qualidade e intensidade
de nossa experiência com esse lugar, opera-se uma rica reconstru-
ção de seus espaços físicos e, por que não, poéticos.

684
Poderá operar-se uma sucessão frenética de imagens espaciais
e, dependendo da intimidade que temos com estes lugares, pode-
remos nos surpreender pela imagem de um rosto conhecido ou de
um habitante de quem pouco se conhece, mas comumente visto
por ocasião de nossa passagem. Aos poucos essas imagens dis-
sipam-se e misturam-se a outras, até associarmos a sensações de
bem-estar que atribuímos a algum momento de nossa vida. Como,
por exemplo, aquele dia comendo um bolo de fubá e bebendo café
na casa da avó que, mesmo sendo uma forma de imagem, pede-se
por uma visualização que a explique.
Será que esse cheiro provinha do fogão a lenha onde prepa-
rou-se aquele bolo e o café? Será frustrante a constatação de que
não poderemos mais reconstruir o que já se foi, o passado, o vivido,
mas isto aguçará ainda mais nossas lembranças e, como humanos
que somos, recriaremos sensações e sentimentos que se confundi-
rão entre o real e o imaginário e, então, dar-nos-emos conta de que
estamos num verdadeiro processo de imaginação.
Os lugares e as transformações sociais também são vítimas das
mudanças, mas este trabalho não enfatizou a mera descrição dos
espaços, mas a narrativa do espaço “como um instrumento de aná-
lise da alma humana” (BACHELARD, 2012, p. 20), mas citamos aqui
algumas das reclamações mais presentes nas entrevistas como: a
melhoria da higiene; mais estacionamentos; um calçadão, seguran-
ça, eventos culturais no mercado, melhorias para o turista, entre
outras. Por esta razão, sugerimos a divulgação deste trabalho para
a administração pública municipal e para os atores desse cenário.
Por fim, parece que este trabalho encontra eco na obra de Bache-
lard, na fenomenologia da imaginação, afim de demonstrar que o espa-
ço, como instrumento de análise da alma humana, nos faz entender
melhor o espaço poético do “mercadão”, esse “gigante taubateano”.

Capítulo 25

Esse lugar chamado “mercadão”: um estudo fenomenológico 685


da paisagem
Acácio de Toledo Netto
referências
BACHELARD, Gastão. A poética do Paisagismo, AUP 5834 A Paisagem
espaço. 2ª ed. 1ª reimp. São Paulo: no Desenho do Cotidiano Urbano
Martins Fontes, 2012 e AUP 5882 Paisagem e Arte –
Intervenções Contemporâneas,
BENÉVOLO, Leonardo. História do curso de pós-graduação da
da Cidade. 4a. ed. 2a. reimpr. São Faculdade de Arquitetura e
Paulo: Editora Perspectiva, 2009 Urbanismo da Universidade de
São Paulo. São Paulo: FAUUSP,
BESSE, Jean-Marc. Ver a Terra: 2009
Seis ensaios sobre a paisagem e
a geografia. Tradução Vladimir GLEISER, Marcelo. O Fim da
Bartalini. São Paulo: Perspectiva, Terra e do Céu: O Apocalipse na
2014. Religião e na Ciência. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001
BÍBLIA, Português. A Bíblia
Sagrada: Antigo e Novo LEMOS, Carlos A. C. Alvenaria
Testamento. Traduzida em Burguesa. . 2ª ed. São Paulo:
português por João Ferreira de Nobel, 1989
Almeida. Revista e Atualizada
no Brasil. 2 ed. Barueri – SP: MEIHY, José Carlos Sebe Bom.
Sociedade Bíblica do Brasil. 1999. História oral: como fazer, como
pensar / José Carlos Sebe Bom
CLARK, Kenneth. Paisagem na arte. Meihy, Fabíola Holanda. São
Lisboa, Editora Ulisseia, 1961. Paulo: Contexto, 2007

D’ANGELO, Paolo (Coord.) REIS, Hélio Monteiro dos.


Estética e Paisagem. “Estetica e Tanque da Aguada: A história do
Paesaggio”. Bologna, Il Mulino, Mercado Municipal de Taubaté.
2009. Trad. Bartalini V., para Hélio Monteiro dos Reis;
uso exclusivo da disciplina AUP Organizadores: Ana Paula Alves

686
e Lincoln Santiango C. de Souza.
Taubaté, SP: Gráfica Santuário –
2013.

SIMMEL, George. Filosofia da


Paisagem. Tradução de Vladimir
Bartalini disponível em Paisagem
Textos I, coletânea de traduções
deste professor com a finalidade
exclusiva de subsidiar as
disciplinas AUP 5834 A Paisagem
no Desenho do Cotidiano Urbano
e AUP 5882 Paisagem e Arte –
Intervenções Contemporâneas,
do curso de pós-graduação da
Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de
São Paulo. São Paulo: FAUUSP,
2013, p. 20-27. Publicação original:
La tragédie de l aculture et autres
essais. Tradução do original
alemão para o francês: Sabine
Cornille e Philippe Invernel, Paris,
Editions Rivages, 1988.

Capítulo 25

Esse lugar chamado “mercadão”: um estudo fenomenológico


da paisagem baracoa
editora

Acácio de Toledo Netto


Josef David Yaari
Universidade de São Paulo /
Instituto ProLíbera

Psicólogo e Pedagogo, Bacharel em Farmá-


cia e Bioquímica, Terapeuta Familiar e de
Casais, Consultor Biográfico Multidiscipli-
nar, Mestre em Ciências Ambientais e Dou-
torando em Psicologia Social pela Universi-
dade de São Paulo (USP). Membro do Grupo
de Pesquisa Mitopoética da Cidade e do
Laboratório de Psicologia Socioambiental e
Intervenção (Lapsi/IPUSP). Autor dos livros
“Psicologia da Metamorfose”, “Os Novos
Ritos de Passagem”, “Os Doze Sentidos” e
“Cadernos de Psicologia Metaformal e Con-
sultoria Biográfica Multidisciplinar”.

CV: http://lattes.cnpq.br/8411562788556370
E-mail: josefyaari@gmail.com
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-7092-7085

689
O Indivíduo como fenômeno
trajetivo

Resumo: Normalmente
considera-se o indivíduo
como fenômeno subjetivo, ou
seja, sujeito à sua história e
dependente de fatores culturais,
sócio econômicos, raciais...
Para ampliar e aprofundar
essas afirmações é nossa
proposta neste artigo enumerar
alguns dos principais fatos
morfológicos diferenciais na
embriogênese humana em
relação aos outros primatas,
como também citar fatos
morfológicos que levam ao andar,
falar e pensar, fundamentais
para que cada indivíduo, por sua
pró-atividade, possa assumir-se
como fato, não só subjetivo ou
objetivo, mas trajetivo.

Palavras chave: objetivo,


subjetivo, trajetivo,
presença, “Si Mesmo”, Eu,
configuração morfo/
antropológica.

690
The individual as a trajective
phenomenon

Abstract: The individual


is usually considered as a
subjective phenomenon, that
is, subject to its history and
dependent on cultural factors,
socioeconomic, racial ... To
broaden and deepen these
statements is our proposal in
this article to list some of the
main differential morphological
facts in embryogenesis
human relationship to other
primates, as well as to cite
morphological facts that lead
to walking, speaking and
thinking, fundamental for
each individual, through his
proactivity, to assume as fact,
not only subjective or objective,
but “trajective”.

Keywords: Objective,
subjective, trajective,
presence, “Self”, I,
morpho/anthropological
configuration.

691
692
Capítulo 26

O Indivíduo como
fenômeno trajetivo
Josef David Yaari
Universidade de São Paulo / Instituto ProLíbera

1) A grande Ordem
O fato de vivermos num mundo do qual pouco sabemos e que, por
seus mistérios, nos deixa perplexos, é uma realidade inerente e
obrigatória a todas elaborações científicas, filosóficas e religiosas.
No entanto, isso nos faz refletir sobre a revelação de uma ordem,
uma regularidade, algo muito maior do que nossa compreensão
abarca. Nosso corpo continua tendo muitos mistérios e o espaço
sideral mais ainda. É isso: há uma Ordem Imanente que justifica a
ciência e todas elaborações culturais. Porque a existência da ciên-
cia e as outras elaborações culturais pressupõe a regularidade e a
ordem no mundo.
Por outro lado, parece evidente e inerente ao que foi dito aci-
ma que nós como seres humanos, apresentamos uma postura úni-
ca nesta Ordem, pois nos mantemos perante esta Ordem e simul-
taneamente dentro dela. Como isso acontece? Quem é este ser cuja
presença (não necessariamente como sinônimo do dasein heideg-
geriano, mas como representação de força e potência) é capaz de
se colocar perante a Ordem e, ao mesmo tempo, situar-se dentro
da mesma? Como por nossa atuação essa Grande Ordem Imanente
se torna Ampliada e Emanente?

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 693


Editora Baracoa — 2019
2) Mais que o instinto há uma vontade que se traduz em
busca

O ser humano, mistério a ser compreendido, se revela desde a


tenra infância como vontade, busca. Há em nós uma intenciona-
lidade. Queremos! Eu sou um Eu que quer! Edmund Gustav Al-
brecht Husserl (1859-1938), acentua que esta busca tem funda-
mento na intencionalidade que opera em toda prática científica.
É importante notar que a intencionalidade é fato que escapa à
maioria dos pesquisadores na atualidade. Muitas vezes se esquece
que o ser humano é um ser ativo e por decisão própria pode se
tornar pró-ativo e realizar atividades como um ser objetivo como
fato apodítico que se vale tanto de sujeitos como de coisas para
sua atuação. Este fato contraria a visão comum de sermos sujeitos
(assujeitados) de nossa história.
Ora, assumindo estes preceitos, há a possibilidade de uma ação
de conhecer que dispensa a metafísica e se atém à fenomenologia,
mantendo a partir daí, uma permanente atividade hermenêutica,
como sendo, então, uma fenomenologia hermenêutica que nunca
define ou explica, mas caracteriza cada fenômeno em sua expres-
são circunstancial em forma de “simbolizações eficazes”, com todo
o rigor do método científico (que deve sempre desconfiar da mera
observação dos sentidos e, mais ainda, das conclusões, afirmações
ou explicações). Sempre, na prática, a ciência trabalha com simbo-
lizações eficazes como é a teoria atômica, a espiral do DNA e, afinal,
todas as elaborações culturais da humanidade que, para os pesqui-
sadores sérios nunca são “explicações definitivas dos fenômenos”.
E, aqui então, aproximamo-nos de Franz Brentano (1838 –
1917), psicólogo austríaco e professor de Husserl e de Sigmund
Schlomo Freud (1856 – 1939). Brentano aproxima-se de Goethe

694
quando se refere à consciência como ato e não como conteúdo.
Ou seja, a consciência não é algo que está dentro de um recipien-
te corporal ou comportamental, mas um ato que visa um objeto.
Outro fato central é apontado por Eudoro de Souza em seu
livro “Mitologia” quando logo na primeira página diz: “O homem é o
animal que se recusa a aceitar o que gratuitamente lhe deram e gratuita-
mente lhe dão. (…) o homem é a própria recusa, antes de ser o quer que
seja ou o quer que venha a ser.” Ou seja, o ser humano se diferencia
amplamente dos outros primatas por uma atitude não natural, co-
locando-se assim, como já dito acima, perante o mundo e, simulta-
neamente, dentro do mundo.

3) A configuração morfo-antropológica e sua complemen-


tação pela fenomenologia do andar, falar e pensar

É da ordem do Real, paralela, aquém ou além de esquemas, mode-


los e discursos de qualquer natureza, a presença silenciosa do “Si
Mesmo” que, como ato, vai tornando possível ser no mundo sobre
o chão. A sensação (pelo uso da organização sensorial) e depois o
sentimento (pelo uso da organização anímico/psicológica) dessa
presença, como sendo o “Si Mesmo” em cada um de nós, já ocorre
desde a primeira infância.
Esta presença foi apontada por Heidegger e quando ele traz o
conceito de dasein, nos diz que somos, constitutivamente, “Ser-Aí
entre as coisas e todos os outros seres” e sendo sempre o meu Aí, posso
me abrir à possibilidade de uma maior consciência da responsabi-
lidade individual de chegar ao “Eu Sou” (ou ao que Heidegger indi-
cava como processo de singularização). O caminho que vai do “Si
Mesmo” para a assunção do “Eu”, ocorre em torno dos dois anos e
meio de idade, em média. A partir daí se dá aquilo que vai nos ocu-

Capítulo 26

O Indivíduo como fenômeno trajetivo 695


Josef David Yaari
par a vida inteira: chegar ao “Eu Sou”, que significa assumir a postu-
ra de protagonista de sua história e, não, como já dito antes, de ser
“assujeitado à sua história”, o que modifica boa parte das posturas
sociológicas e antropológicas que dominam a Psicologia Social.
É retomada a prioridade da Biologia, fazendo, no entanto, a
evolução da Biologia para a Antropologia Física que demonstra
objetivamente a emergência do indivíduo epistêmico que “Sendo
Aí” (Dasein) pode se tornar responsável por sua existência e que,
assim, pode indicar a emancipação real do ser livre e criativo. Com
essa forma, a matriz fenomenológica da psicologia mantém o rigor
científico, que agora ainda deve ser ampliado pela visão do Con-
ceito da Integralidade, que assume a perspectiva contemporânea
da complexidade, aproximando-nos das elaborações do professor
Frederic Munné (professor e pesquisador em Psicologia Social na
Universidade de Barcelona, além de ser atuante em várias outras
universidades, principalmente de língua espanhola).
Munné, em lugar de circunscrever o uso de conceitos a li-
mites determinados e precisos, propõe o compromisso episte-
mológico da perspectiva da complexidade, que está posto sobre
o impreciso, o difuso, o indeterminado e, fundamentalmente,
sobre o possível. Assim, em sua obra afirma que: “isso significa
que uma coisa pode pertencer ou não pertencer, a um mesmo conjun-
to, simplesmente porque os critérios de pertinência não são nítidos”
(Munné, 2013). Dessa forma, o autor questiona, põe em dúvida,
a prevalência das definições operacionais que caracterizam o de-
senho e o controle experimental, algo que considera uma típica
estratégia reducionista da investigação científica em Psicologia,
abrindo o campo para a compreensão dos processos inerentes
à criatividade e pensamento científico mais abrangente. Esta
postura nos aproxima do que acima caracterizamos como o fato

696
que nos permite afirmar que a atividade humana, na Ciência, na
Arte – afinal, em todas as suas expressões pelo uso de simboliza-
ções eficazes – não necessita e nunca realizou “explicações” ou
“verdades definitivas”.
Ampliando esta perspectiva, valemo-nos da obra do filósofo
Hans-Georg Gadamer, que pela proposição de superar a herme-
nêutica comum, enfatiza o ser humano como a questão central
do conhecimento e propõe o já citado conceito da Integralidade.
Este conceito vem sendo lentamente acolhido nas premissas da
comunidade científica, promovendo o contínuo diálogo com as
mais diversas disciplinas do conhecimento do ser humano e pro-
vocando a retomada de vários aspectos das pesquisas científicas e
a constatação da necessidade de reestudar importantes descober-
tas, além de integrar conhecimentos de várias tradições culturais
que afinal, como Jean Piaget (1974) deixou claro, sempre se orien-
tam por uma lógica intrínseca. Por isto, o Conceito da Integrali-
dade vem sendo proposto com muita ênfase na área da formação
médica, em confronto com o chamado “Relatório Flexner”1, que
ainda domina boa parte da visão epistemológica, influenciando
conclusões e procedimentos considerados cada vez mais discutí-
veis por vários autores (p.e., PAGLIOSA & DA ROS, 2008). Justamen-
te por integrar outras disciplinas à biologia, fazendo-a “conver-
sar” com as questões antropológicas, sociológicas e, ainda, com
os determinantes econômicos, jurídicos e culturais contemporâ-
neos (incluindo as mesmas questões e determinantes das anti-
gas tradições), o conceito em questão contém em sua gênese a
possibilidade de compreender mais amplamente a expressão dos
1 Documento “Medical Education in the United States and Canada – A Report to the Carnegie
Foundation for the Advancementand Teaching”, publicado em 1910, que propõe a expansão
do ensino clínico, priorizando a ênfase na pesquisa biológica como forma de superar a era
empírica deste ensino, tornando-se um guia da formação médica em nível internacional.

Capítulo 26

O Indivíduo como fenômeno trajetivo 697


Josef David Yaari
fenômenos acessíveis às ciências em geral, mas principalmente as
assim chamadas Ciências Humanas ou “Ciências do Espírito”. As-
sim, Hans-Georg Gadamer não se atém apenas ao “como interpre-
tar”, mas também à indicação de um sentido para a compreensão
do humano como o objeto essencial do conhecimento. Para ele, o
fenômeno humano, exige ir além do método científico predomi-
nante nas ciências naturais.
Diante dessas elaborações, sugerimos o estudo e a prática do con-
ceito da Integralidade por meio da proposta fenomenológica denomi-
nada de “goetheanismo”, desenvolvida por Rudolf Steiner a partir de
seu trabalho de catalogação e reorganização dos estudos científicos de
Goethe (arquivos de Goethe e Schiller em Weimar na Alemanha). O
goetheanismo vai além do racionalismo e indica a necessidade de in-
cluir a realidade da permanente metamorfose, não só na visão biológi-
co/sistêmica, mas podendo atingir a Antropologia Geral e outras dis-
ciplinas científicas. A biologia teve grande evolução com os estudos da
Abordagem Goetheanística, em função desta demonstrar as metamor-
foses dos diversos tecidos celulares ao longo do desenvolvimento dos
seres vivos. Estes estudos também evidenciam como certos tecidos, de
maneira única no ser humano, se estabeleceram na sua formação em-
briológica e na formação posterior, de maneira muito diferente da dos
outros mamíferos. Tudo isso parece indicar claramente a necessidade
de uma Antropologia Física de abordagem goetheanística, uma Antro-
pologia Física Goetheanística. Mas quando propomos esta abordagem
é preciso que se faça uma ampla reordenação da Antropologia Geral,
no sentido de incluir novas propostas e caminhos para a expressão hu-
mana em suas dimensões não só físicas, mas também anímico/psicoló-
gicas e culturais/espirituais.
Na abordagem Goetheanística, a arte é prioritária como a
atividade essencial para o conhecimento dos fenômenos naturais

698
e culturais. Devemos observar que essa prioridade, tem funda-
mento no “impulso lúdico”, tão bem expresso por Johan Cristoph
Friederich von Schiller (1759 – 1805) e mais recentemente por
Johan Huizinga (1872 – 1945). Assim, a efetiva ação do conhecer,
desde a infância, se exprime quando a criança cria brincadeiras e
brinquedos que imitam a sensação e percepção dos fenômenos
externos e internos. Este processo continua nas elaborações de-
senvolvidas ao longo do crescimento e amadurecimento e, ain-
da, por meio de atividades que chegam à sofisticação cultural e
tecnológica da atualidade. Acima de tudo, reiteramos que a arte
supera a ilusão das certezas pela elaboração do que denominamos
“simbolizações eficazes”, como o são o modelo atômico, os mo-
delos biológicos, as várias formas de expressão dos modelos usa-
dos na Química, Física e, afinal, na formulação de ideologias ou
doutrinas. Essas “simbolizações eficazes” tornam-se importantes
por seus resultados práticos e tem o valor de, ainda assim, não
assumirem o foro de verdades definitivas.
Aqui, não se pode deixar de citar a extraordinária contribuição
de Gaston Bachelard (1884 – 1962), que colocou a expressão artísti-
ca, com foco na poética, como afirmação essencial e superior da ati-
vidade de conhecer a realidade. É também o caso de Gilbert Durand
(1921 – 2012), discípulo e seguidor da obra de Bachelard, quando
afirma o dinamismo organizador da imaginação, visto como potên-
cia dinâmica que amplia as cópias pragmáticas fornecidas pela per-
cepção. Com estas ampliações, a Antropologia Goetheanística abre
a possibilidade de criação de novas e surpreendentes configurações.
Mas é preciso frisar que Goethe chamou atenção para a priori-
zação da forma, dando-lhe o mesmo valor que o conteúdo. A forma
da planta, da rocha, do osso, de um órgão e, afinal, de qualquer
fenômeno é tão importante de ser estudada quanto o conteúdo.

Capítulo 26

O Indivíduo como fenômeno trajetivo 699


Josef David Yaari
Por isso, podemos demonstrar os fundamentos físicos e fisiológi-
cos que permitem a revelação da presença do indivíduo objetivo
epistêmico que, por sua atividade (como um “acting” permanente,
criativo e não só instintivo) elabora seu destino próprio, a cultura
e o acesso a diferentes universos de diversas dimensões espaço/
temporais; além do fato indiscutível da elaboração das identidades
sociais onde se constituem como sujeitos psicológicos, que, sen-
do assim, são indivíduos subjetivos. Aqui proponho lançar mão do
conceito de “trajection”, desenvolvido por Augustin Berque2.
Berque, valendo-se da expressão “trajeto antropológico”
cunhada por Gilbert Durand (1989), estabelece o conceito de “tra-
jection” (trajetividade), colocando em questão a dualidade carte-
siana de sujeito e objeto. Tomo esta expressão – trajeto antropo-
lógico – e daí trajetividade, caracterizando-a como a permanente
co-atuação entre as pulsões subjetivas integradas às exigências
objetivas, que emanam do Eu pró-ativo, ou seja, da atuação do que
venho chamando de “Fator Anthropos”, adiante melhor explici-
tado como sendo a ação da “presença de espírito”, da realidade do
espírito nas coisas e da realidade das instâncias sociais. Assim, do
conceito de trajetividade resulta a “mediance” (conceito de Berque
que pode ser traduzido aproximadamente como “mediação”) no
sentido de que os fatos também são valores e os valores também
são fatos. Ou seja, fatos e valores são realidades trajetivas e não
podem ser classificadas como dados objetivos ou subjetivos. Com
isso, Berque nos indica que na prática somos seres efetivamente
trajetivos que evitam e repelem a velha divisão sujeito e objeto.
Assim, este indivíduo se mantém em constante relação dinâmica
2 Nascido em Rabat (Marrocos) em 1942, o francês Augustin Berque é geógrafo, orientalista e
também considerado filósofo, sendo atualmente diretor da Ecole de Hautes Etudes em Sci-
ences Sociales em Paris e membro do Centre de Recherches du Japon, sendo que também
lecionou na Universidade de Miyagi no Japão entre 1999 e 2001.

700
entre o subjetivo e o objetivo, chegando aos elementos universais
do conhecimento e das práticas humanas.
Assim, as singularidades trajetivas são espacialmente objetivas
e subjetivas, materiais e imateriais, pois o protagonista é um
“guerreiro”3 que transita e elabora infinitas trajetórias, dando im-
portância ao trajeto, enquanto que para o ser humano “civil seden-
tário” prevalece a divisão entre o sujeito e o objeto. E aqui então
retomo o “Ser-Aí” de Heidegger, no sentido de que “Ser-Aí” é “Ser-
-Entre” ou “Entre-Ser”. “Entre-Ser” pode ser tomado por “Entre-
-Tecer-Se”, como uma forma de se colocar num permanente estado
meditativo diante dos fatos, sem ceder à tentação de logo “expli-
car”, elaborar alguma teoria. Isso se dá como se uma experiência
ou um fato, fizesse conosco uma “Entre-Vista”, nos perguntando:
“E então? O que acontece?” E nossa resposta fosse um convite para
que meditássemos e deixássemos nossas percepções sensoriais e
percepções das ideias convergentes conviverem entre si, até que
os fatos se revelem por si mesmos. Isso também é “Entre-Ter-Se”.
Isso é verdadeiro Entretenimento, e não a forma macambúzia de
sedentarismo. Nesse sentido, a atividade do cientista, pesquisador,
operário, artesão, terapeuta, professor, engenheiro, dona de casa,
poeta, músico, etc., pode ser lida como entretenimento, forma de
entreter-se com seu objeto de ocupação, mantendo-se assim, per-
manentemente trajetivo!

3 Fernando Oliveira de Moraes escreve: “Sobre as condições impostas por um mundo racional
e tecnológico, Paul Virílio é extremamente crítico quando afirma: De que serve a um homem
ganhar o mundo inteiro se ele termina por perder sua alma? (…) Lembremos que “ganhar”
significa tanto “chegar” e “alcançar” quanto “conquistar” ou “possuir” (…) Perder sua alma,
anima, ou seja, o próprio ser do movimento. Historicamente nos encontramos diante de uma
espécie de divisão do conhecimento do “ser no mundo”, de um lado o nômade das origens,
para quem predomina o trajeto, a trajetória do ser: e, de outro, o sedentário, para quem preva-
lece o sujeito e o objeto, movimento em direção ao imóvel, ao inerte, que caracteriza o “civil”
sedentário e urbano, em oposição ao guerreiro nômade (…).”

Capítulo 26

O Indivíduo como fenômeno trajetivo 701


Josef David Yaari
O equívoco de separar o lazer do trabalho, entendendo-se la-
zer como algo feito apenas para relaxar, nos afasta do entreteni-
mento do realizar, buscar o prazer, substituindo-o por um outro
entretenimento de não realizar, que apenas atende à carência das
sensações, nos afastando do ocupar-se no dia a dia com a alegria,
que se entretêm com o ritual da atividade e do descanso. Assim:

I. Há uma configuração morfo-antropológica no ser humano que


permite a constatação de uma presença, um “Si Mesmo”, em cada
um de nós. Ora, esta constatação atesta a interferência de um
novo impulso no caminho da evolução que, a partir daí, deixa de
ser apenas uma evolução biológica, mas assume uma realidade
também antropológica. Por isso, ouso afirmar a interferência do
que venho chamando de “Fator Anthropos”. Explicitando melhor:
em função de seu desenvolvimento embrionário pelo qual alguns
órgãos não se especializam como nos outros primatas, o que ca-
racteriza uma certa inadequação para a sobrevivência física, bem
como certa pobreza instintiva, o ser humano tem condições não só
para a emergência da cultura, mas também para a descoberta desta
presença, acima caracterizada. A sensação e posterior sentimento
do “Si Mesmo como fato apodítico, ou seja, fato dado pela expe-
riência sensorial direta, é também devida à gracilização cranial e
consequentes mudanças fisionômicas, além das muitas alterações
sensoriais e mesmo anatômicas nos três primeiros anos de vida da
criança, pelo desenvolvimento do andar. Pelo andar, realizamos
mudanças fundamentais no sentido do equilíbrio, por assumir a
postura ereta, e com o sentido cinestésico, com foco na laringe, de-
senvolvemos a articulação dos sons o que nos permite a fala que já
expressa seu pensar4. Há ainda o fato de que a sensação do “Si Mes-
4 A sequência dada pelo andar, falar e pensar, segue uma organização neurológica particular

702
mo” se faz mais presente especialmente pelo tato (pele sem pelos)
e pelos outros órgãos de sentidos (paladar, visão, térmico, cenesté-
sico, etc.). O fato primordial é que esta “presença” se revela como
ato e é fundamental compreender que a contínua atividade interna
faz com que esta presença se efetive e desenvolva cada vez mais o
ser humano como um todo. Assim, desde muito cedo a criança atua
chamando a atenção pelo choro, pelo movimento em todas suas
expressões, principalmente no brincar, para apreender o mundo e
se colocar cada vez mais perante este mundo5. Os muitos experi-
mentos e estudos realizados com chimpanzés tem demonstrado
que após a idade de um ano, há crescente e rápida perda da capaci-
dade de aprender, na medida em que seu cérebro vai diminuindo e
sendo substituído pelo crescimento dos músculos necessários para
as atividades da mandíbula que passa a crescer.

ii. Ao descobrir, a princípio de forma inconsciente, este “Si Mes-


mo”, cada criança continua a elaboração de sua morfologia, ana-
tomia e fisiologia, principalmente nos três primeiros anos de vida,
na sequência do levantar a cabeça, sentar, gatinhar e finalmente,
assumindo sua ativa postura ereta, andar. Esta postura antinatural
por excelência, permite a liberação das mãos e, ainda, a relativa
liberação do movimento da cabeça o que permite manter o cére-
bro em repouso enquanto caminha ou corre. No entanto, isso tem
ainda muitas outras consequências em toda estrutura óssea e mus-
cular e na organização dos órgãos dentro do corpo. Pelo andar toda
movimentação corporal facilita que a musculatura fina se dedique

que é estudada com vários detalhes na neurociência contemporânea.

5 E quando seu movimento fica restrito, ou em outras palavras, não ocorrem seus atos, por
quaisquer razões que sejam, a criança não se desenvolve e, daí, não consegue se colocar per-
ante a realidade!

Capítulo 26

O Indivíduo como fenômeno trajetivo 703


Josef David Yaari
a movimentos mais profundos, como ocorre na laringe, que se or-
dena para a complexa atividade da fala6. A partir daí essa mesma
musculatura fina, pelo movimento geral do corpo, abre simultane-
amente o acesso à atividade do pensar, que já está no inconsciente,
mas se desenvolve conjuntamente com a articulação da fala. Simul-
taneamente, a criança reafirmando a atividade de seu “Si Mesmo”,
elabora a criação de suas primeiras identidades sociais subjetivas;

iii. Mais tarde a criação destas identidades subjetivas se faz de ma-


neira muito ampla para fazendo uso de uma imagem antiga de autor
desconhecido, cada pessoa realizar-se como “Empreendimento”,
como ato que nasce da vontade inerente, a princípio inconsciente.
Falando de outro modo: a partir deste “Si Mesmo” que se expressa
por um “Eu” também inconsciente, cada pessoa se constitui, pela
atividade inerente, como um “Empreendedor”. Este rapidamente
cria um “Gerente”, sua personalidade principal, que se caracteriza
como o que comumente se chama de Ego. E o “Empreendedor”
junto com seu “Gerente” “contrata” “Colaboradores” que são seus
personagens e máscaras. Todas estas figuras relacionadas aqui são
subjetivas e, sem a ativação interna, cada pessoa mantém-se no
“buraco negro” de sua subjetividade, com suas paixões e redundân-
cias (Gilles Deleuze, 1995). Ou seja, só o assumir-se pela vontade
consciente como um “Eu Sou”, sem apelo a qualquer elaboração
metafísica, torna possível chegar ao indivíduo trajetivo e epistê-
mico, como fato objetivo. Quando esse assumir-se não se realiza, a
pessoa fica no lugar comum, preso à personalidade, ao Ego, que é,
no dia a dia, sua identidade social estável e subjetiva;
6 O movimento da musculatura fina que exige a articulação das palavras, também passa a ter
atuação formativa em toda organização corporal. As pesquisas em fonoaudiologia, mormente
nas práticas de Reorganização Neurológica Funcional, têm demonstrado com muita ênfase
esse fenômeno.

704
iv. Estas identidades subjetivas vão exercitando um contínuo apre-
ender no mundo por meio do impulso lúdico, o brincar - funda-
mento da criatividade e, portanto, da arte. Pelo brincar entramos
em contato, inicialmente pelas sensações, com as coisas e com as
outras pessoas. E assim, lentamente, vai-se delineando, pelo brin-
car em seu mais amplo sentido e pelo pensar, o indivíduo trajetivo,
como fato objetivo que, então elabora seu conhecer pela criativi-
dade não instintiva e, pelo acesso ao pensar, aos significantes das
assim chamadas “Ciências do Espírito” (Matemáticas, Química, Fí-
sica, Psicologia, História, Estudos das Ideologias, Doutrinas, Direi-
to, Literatura, etc.) que são os fundamentos para todas as ciências;

V. E, então, o ser humano, claro resultado da presença do “Fator An-


thropos” vai-se diferenciando intensamente em relação aos outros
primatas, pois em seu brincar descobre novos elementos e passa a
não aceitar o mundo como é dado, caracterizando sua permanente
ação transgressiva, fundamento de toda a arte;

VI. A arte é a forma mais ampla de acesso e conhecimento do real,


expressando-se pelas elaborações simbólicas e pelas muitas formas
de expressão do imaginário, do pensar inspirativo e do pensar intui-
tivo. Por ser sempre integradora a arte não elimina ou aparta qual-
quer conhecimento ou experiência. E o Goetheanismo é a postura
fenomenológica orientada pela abordagem artística da realidade,
ou seja, pela abordagem que constata ser a arte a expressão mais
elaborada do impulso lúdico, como o ato soberano para conhecer
a realidade. Ora, a arte por sua própria natureza, faz a contínua
integração das diversas contribuições individuais, científicas e cul-
turais. Por isso estamos propondo a Antropologia Goetheanística
que, por sua apresentação artística da morfologia e especialmente

Capítulo 26

O Indivíduo como fenômeno trajetivo 705


Josef David Yaari
desta configuração morfo-antropológica, abre uma amplitude que
vai muito além da antropologia clássica e da epistemologia;

vii. Schelling, com base no idealismo absoluto iniciado por Fichte


estabeleceu o caminho filosófico para a constatação desta presen-
ça do “Si Mesmo”. No entanto, sua visão idealista, com base na
metafísica, só faz sentido para uma época em que não se sabia da
configuração morfo-antropológica citada acima, que constata o “Si
Mesmo” como sensação imediata do Ser, que “não tem necessi-
dade de explicação e de nenhuma metafísica”. Shelling, em obra
citada abaixo, constata que este “Si Mesmo” se caracteriza por um
contínuo imobilismo. Para superar este imobilismo, sugere que
cada pessoa acesse sua vontade com consciência para realizar sua
afirmação como “Eu Sou”, assumindo seu protagonismo no senti-
do ativo de ser no mundo.

viii. A maneira de assumir-se como um “Eu Sou” com plenitude


foi delineada por Rudolf Steiner em seu livro “A Filosofia da Li-
berdade” , no qual ele chama a atenção para atividade interna que
trabalha para acessar a cognição intuitiva, possível pelo que venho
chamando de “método científico integral”, que inclui os protocolos
do método científico geralmente aplicado, ampliado pela atitude
de permanente hermenêutica como acima já caracterizada, e tam-
bém ampliado por fazer permanentemente o caminho das cate-
gorias do pensar intelectual, imaginativo, inspirativo e intuitivo, o
que implica contínua meditação e cuidado.

ix. A bem vinda retomada da prioridade do corpo com suas


demandas de prazer e vida ativa, como forma trajetiva de
atuar no mundo, enfatiza a também prioritária presença do

706
“Si Mesmo” que, por assumir-se conscientemente como um
“Eu Sou” (conforme indicado no item VIII), ativa de maneira
inédita o ser “creador”, artístico, e, por isso, necessariamen-
te aberto pelo exercício permanente de realizar constatações
que podem ser resultados de juízos, sem julgar fatos ou com-
portamentos de acordo com qualquer critério normatizador,
iluminista, moralista ou modelador. Por essa conquista, ou
seja, por essa atividade inerente e por isso constatada por
qualquer pessoa, cada ser humano pode perceber também
que ocorre simultaneamente a demanda interna, na maioria
das vezes inconsciente, da busca contínua da sutil harmonia
entre prontidão e serenidade.

X. Por outro lado, permitimo-nos afirmar que a maioria das doen-


ças em todos os níveis físicos, mentais, psicossomáticos, etc., ocor-
re devido ao sentimento, em geral inconsciente, de impossibilidade
de dar este passo em direção ao assumir-se como “Eu Sou”;

xi. Como já dito anteriormente, a atividade artística supera a ilusão


das certezas não só por suas obras, mas também por que realiza o
que venho chamando de as muitas “simbolizações eficazes”, como
vemos no modelo atômico, nos modelos biológicos (por exemplo
a “espiral do DNA”) e, nos modelos em todas outras ciências. Esta
é, afinal, a forma universal utilizada pelo “fazer” científico, ou seja,
elaborar modelos para expressão das descobertas e para a devida
operacionalidade que permita a atuação e ampliação do compreen-
der (apreender com) a realidade, que se expressa nos fenômenos
das “Ciências Naturais” (os fenômenos físicos) e das “Ciências
do Espírito” (os fenômenos da atividade do pensar). Assim tive-
mos essa maravilhosa atuação do ser humano que chegou hoje às

Capítulo 26

O Indivíduo como fenômeno trajetivo 707


Josef David Yaari
elaborações práticas em todos os níveis, não só na engenharia, na
física, na química e na medicina, com todas as tecnologias a que
hoje temos acesso, mas também nas elaborações de ideias, histó-
rias, mitos, imagens e tudo o mais que expressa nossas buscas e
possibilidades de atuação ética, estética e solidária no contínuo
aprendizado do amor aos fenômenos naturais, às pessoas e às in-
finitas possibilidades de expressão no mundo em que estamos. E
isso ainda nos permite afirmar que a atividade humana na Ciência,
na Arte e, afinal, em todas as suas expressões pelo uso das “simbo-
lizações eficazes” não necessita e nunca realizou “explicações” ou
“verdades” definitivas.

4) Estabelecendo uma forma dinâmica de organização co-


munitária em um

novo lugar e uma nova paisagem

As elaborações feitas até aqui sugerem o estabelecimento de


um grupo de estudos e trabalhos, com atuação imediata na co-
munidade pela consciência do impacto e consequências destas
elaborações em todas as áreas de atividades humanas – sendo
exemplo o Atelier Transdisciplinar de Investigação e de Práticas In-
tegrativas e Complementares (ATIPIC). A concepção deste gênero
de atelier visa tornar possível a efetiva e contínua elaboração e
reelaboração de projetos sociais, comunitários e iniciativas em
todos os âmbitos individuais, de grupos como empresas, con-
domínios de moradias e empreendimentos, não com a institui-
ção de modelos prontos, mas como um processo permanente
de configuração artística, a partir da concepção de um atelier
social que, tendo como centro uma escola para crianças base-

708
ada numa pedagogia do fazer artístico inspirado na Pedagogia
Waldorf (elaborada pelo mesmo Rudolf Steiner, formulador do
Goetheanismo), tende a converter-se num círculo de funda-
mentação e irradiação da comunidade. A partir deste centro,
se dá o caminho de educação continuada com adultos num
percurso de crescimento, que vai da Identidade Infantil/Bio-
lógica, passando pela Identidade Madura/Antropológica para
chegar à Identidade Sábia, representada pelas pessoas que se
responsabilizam totalmente por si mesmas com a consciência
das demandas existentes em toda comunidade. Outra sugestão
derivada das considerações acima corresponde ao conceito de
Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS), que
abrange todas as atividades previstas na Política Nacional de
Práticas Integrativas e Complementares do Ministério da Saú-
de (PNPIC/MS), aprovada pela Portaria 971 do MS em maio de
2006 (TELESI JR., 2016).
Trata-se de um caminho que, em suma, pode ser balizado
pelo que tenho denominado como Oito Princípios Antropo/Noéti-
cos, orientados pela igualdade de oportunidades para todos, fra-
ternidade na vida sócio/econômica e liberdade na vida cultural/
espiritual, e fundamentados na compreensão de que, comprova-
damente, o ser humano caracteriza-se como:

1. Sendo indivíduo único e livre no sentido de não ser mais compre-


endido apenas como uma espécie biológica e social/cultural, mas
como um ser essencialmente antropológico;

2. Sendo respeitado e estimulado para a plenitude de sua vocação


para a realização plena de seus sonhos mais essenciais pela contí-
nua criatividade;

Capítulo 26

O Indivíduo como fenômeno trajetivo 709


Josef David Yaari
3. Sendo totalmente responsável por seu destino como ser empre-
endedor, que elabora de maneira abrangente sua personalidade,
seus personagens e máscaras, como estratégias eficazes para um
agir guiado pela imaginação ética e moral para cada circunstância;

4. Sendo estimulado a vivenciar os multiversos, este indivíduo


único por ter, acesso a estes multiversos e muitos campos e
hologramas, acessando daí campos intergeracionais e diversas
dimensões de espaço/tempo, nos quais todos nós convivemos
consciente ou inconscientemente;

5. E que, por isso mesmo, não se deixa guiar por roteiros que
constituem crenças limitadoras em todos os níveis pessoais,
profissionais e sociais;

6. Assumindo, assim, exercitar continuamente o ser contente, por não


se deixar dominar por suas ansiedades, abrindo-se para a experiência
e vivência da diversidade de seus conteúdos, sem reprimir, mas con-
tendo seus impulsos, desejos, instintos e quaisquer comportamentos
dirigidos por excessiva antipatia ou simpatia. Isso indica que ser con-
tente se dá por um sacro-ofício de cada indivíduo e que se expressa na
contenção. Essa contenção se explicita já na formação embrionária e
depois no controle dos esfíncteres, no controle das emoções, vonta-
des e da ansiedade de resolver logo seus desafios e dúvidas;

7. Firmando-se, desta maneira, como eterno aprendiz perante a


enorme amplitude e situações inesperadas na vida;

8. E, finalmente, assumindo a prioridade do encontro com os ou-


tros em círculos comunitários que tenham como centro uma es-

710
cola voltada para o caminho de crescimento, que vai da identidade
infantil/biológica para a identidade madura/antropológica e, daí para o
estímulo da busca da identidade real sábia, no sentido de estimular e
ser estimulado para contínuas metamorfoses criativas, exercitando
assim o permanente aprendizado do amor.

Capítulo 26

O Indivíduo como fenômeno trajetivo 711


Josef David Yaari
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Capítulo 26

O Indivíduo como fenômeno trajetivo 713


Josef David Yaari
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TELESI JR. Emílio. (2016). Práticas


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S0103-40142016.00100007

714
Capítulo 26

O Indivíduo como fenômeno trajetivo


Josef David Yaari baracoa
editora
Giancarlo de Aguiar
Universidade de São Paulo /
Universidade do Oeste de Santa Catarina

Professor da Universidade do Oeste de


Santa Catarina- UNOESC. Doutor em
Filosofia da Cultura pela Universidade
de Lisboa (2016). Mestre em Filosofia
da Natureza e do Ambiente pela Uni-
versidade de Lisboa (2010). Membro
Colaborador do Centro de Filosofia
da Universidade de Lisboa e Pós-Dou-
torando no Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo.

CV: http://lattes.cnpq.br/4932554514710224
E-mail: giancarlodeaguiar@gmail.com
ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-4487-9569

717
Arquétipos da Ecologia do Ser

Resumo: O presente artigo que expressa a função


trata dos conceitos acerca dos transcendente ao co-criar o
arquétipos enquanto matrizes novo Ethos na ecologia pessoal,
ou padrões primordiais na social e planetária.
aproximação da ecologia do
ser, a condição da natureza Palavras-Chave: Arquétipos,
humana e sua interação com Ecologia, Poética, Função
o ambiente e a paisagem. A Transcendente, Ethos.
atuação do humano em
diferentes contextos socio-
ambientais promove uma
temática de reflexão da
dimensão entre natureza e
cultura. Alguns autores são
aqui convocados para uma
aproximação hermenêutica,
entre eles, Leonardo Boff,
Eudoro de Sousa, Gaston
Bachelard e Carl Gustav Jung.
A possibilidade de articular
uma análise dos elementos
arquetípicos na psique humana
leva a considerar os reinos e
elementos que na linguagem
em diálogo integra a filosofia,
a psicologia e a poética, de
experiência humana metafísica

718
Archetypes of the Ecology of
Being

Abstract: This article deals language integrate philosophy,


with the concepts about psychology and poetics,
archetypes as primordial of human metaphysical
matrices or patterns in experience that expresses
the approximation of the transcendent function of
the ecology of being, the co-creating the new Ethos in
condition of human nature personal, social and planetary
and its interaction with ecology.
the environment and the
landscape. The performance Keywords: Archetypes,
of the human in different Ecology, Poetics,
socio-environmental contexts Transcendent Function,
promotes a theme of reflection Ethos.
on the dimension between
nature and culture. Some
authors are called here for
a hermeneutical approach,
among them Leonardo Boff,
Eudoro de Sousa, Gaston
Bachelard and Carl Gustav
Jung. The possibility of
articulating an analysis of
the archetypal elements in
the human psyche leads us
to consider the realms and
elements that in dialogue

719
Capítulo 27

Arquétipos da Ecologia
do Ser
Giancarlo de Aguiar
Universidade de São Paulo / Universidade do
Oeste de Santa Catarina

Tratamos do tema Arquétipos da Ecologia do Ser com base nas obras


de autores nacionais e internacionais ao tecer o conhecimento da
inter-subjetividade humana na sua ecologia profunda. Para disser-
tar sobre este assunto trazemos alguns importantes nomes que
contribuíram muitíssimo com esta área do saber; Leonardo Boff,
Eudoro de Sousa, Gaston Bachelard e Carl Gustav Jung. Conside-
rando a categoria de Arquétipos, cuja transliteração da língua grega
é Arkhétypou, Carl Gustav Jung apresenta como primeiros modelos
ou estruturas, Arché = Princípio, que nos leva a fazer uma reflexão
sobre a arqueologia do corpo-alma, arqueologia esta que desvenda
o padrão primordial da natureza humana, a origem que a faz existir,
vincular e plasmar na realidade cognoscível. Sabe-se através da Psi-
cologia Analítica que estas formas e padrões arquetípicos da psique
precisam de ser nutridos e cultivados com a energia vital para que
os mesmos possam ser integrados na consciência.
Entretanto, pode-se afirmar que este processo depende de outra
estrutura, a chamada “bússola da psique”, descrita por Jung, estas
quatro funções psíquicas (o pensar, o intuir, o sentir, e a sensação/
percepção) estão sempre a atuar para que a consciência experiencie

in: Ethos humano e mundo contemporâneo. Diálogos e estudos.

Organização e Coordenação Sandra Patrício 721


Editora Baracoa — 2019
de maneira plena a manifestação “extrínseca” e “intrínseca” do Ser.
Mas como compreender a vasta complexidade da consciência huma-
na nos seus diversos estados da alma, se não classificarmos e criar-
mos correspondências para os seus distintos entendimentos?
As funções psíquicas remodelam-percepcionam e conduzem
esses arquétipos repletos de muitíssima carga instintiva, emocio-
nal, que, juntamente com símbolos inconscientes, podem ganhar
um forte poder de transformação na vida da pessoa humana. É nos
bastidores, por detrás das cortinas do teatro da vida, que o grande
cenário cénico é criado para ser lançado para o outro lado, é nesta
dança de duas realidades que nos aproximamos de uma concepção
platónica, pois ‘o mundo das ideias’, e aquilo que está acima desta
esfera, isto é, dos elementos transpessoais da consciência da natu-
reza humana, cujo conteúdo é etérico, através da essência subtil, é
a quintessência que modela os atributos que serão plasmados na
realidade deste mundo cognoscível em seus diferentes ambientes,
paisagens e naturezas.
O que distingue, então, figuras arquetípicas “internas”, por exem-
plo, quando se trata da Natureza da paisagem, de uma árvore, de uma
flor, ou ainda, da própria natureza humana, um sábio, das suas pró-
prias presenças visíveis no mundo “exterior”? No inconsciente, no seu
estado de ecologia interna, este arquétipo distingue-se pela sua capa-
cidade de integração da personalidade com a natureza, pelo poder de
transformação que exerce na natureza humana e, sobretudo, pela sua
importância de unificação ao criar uma ponte entre estes dois mun-
dos. Sobre esta relação arquetípica dos elementos da Natureza expres-
sa muito bem o teólogo e filósofo brasileiro Leonardo Boff: “As coisas
todas estão em nós como imagens, símbolos e valores. O sol, a água, o
caminho, as plantas e os animais vivem em nós como figuras carrega-
das de emoção e como arquétipos.” (Boff L, 2000, p.37).

722
Com base na filosofia Pré-Socrática e também em Platão quan-
do se refere à ética e à profundidade da alma, relaciona o Eros com
a beleza da alma humana, temos acesso a um atributo mais refina-
do e subtil desta categoria, que se trata de um Amor de natureza
etérica. Ao estar de acordo com o facto de a capacidade do ser de
bem cuidar e bem viver a presença da essência pura do amor, o
Eros é o que preenche transversalmente a natureza humana no seu
estado das categorias de Anima e Animus, com a energia capaz de
criar um novo Ethos, podendo este ser um estado de consciência e
virtude, um corpo ou a casa da morada humana, em termos mais
abrangentes o próprio planeta Terra enquanto organismo vivo.
Sendo assim, a qualidade de saber cuidar depende da presen-
ça do Eros, todavia, se a presença da pessoa humana no seu equi-
líbrio feminino e masculino não estiver receptiva à sintonia desta
presença, de que modo o cuidado poderá estar presente? Não haverá
cuidado efectivo, tão pouco duradouro na ausência de Eros, pois na
ausência do Amor nada se sustenta, lembrando aqui a filosofia de
Empédocles que afirmava em sua tese cosmológica ser Eros o quin-
to-elemento primordial que sustenta dos demais. Será impossível
criar um Ethos verdadeiro com bases éticas sem a presença do espíri-
to de Eros, a que podemos chamar ainda de quintessência, a essência
que sustém os quatro elementos descritos em Timeu, de Platão.
A energia de Eros na sua primordial relação de movimento em
rito e mito, na dança cósmica emana arquétipos oriundos da Physis,
Natureza de Eros como exalta Eudoro de Sousa: “A dança nasce
com o próprio universo; é tão remota como Eros, o mais antigo dos
deuses”. Sousa E, 2000, p.112).
Encontramos em Leonardo Boff o desenvolvimento do concei-
to junguiano de arquétipo quando destaca as figuras arquetípicas in-
timamente ligadas à ecologia humana no que respeita à sua natureza

Capítulo 27

Arquétipos da Ecologia do Ser 723


Giancarlo de Aguiar
simbólica e mitológica, que tem ainda uma profunda ligação com a
espiritualidade. O padrão arquetípico que é preenchido por energia
psíquica estabelece uma interacção anímica com a natureza humana
e, por esta razão, a pessoa poderá personificar em si mesma a expe-
riência de qualquer elemento, reino ou estado da natureza e com
isso ter uma manifestação no seu “interior” ainda maior do que o
fenómeno natural propriamente dito na sua forma “exterior”. Le-
onardo Boff na obra Ecologia Mundialização e Espiritualidade revela
o seguinte: “O conhecimento não poderá ser apenas científico mas
também místico e simbólico. Participando destas várias formas de
conhecimento e de realização de si mesmo, o ser humano integra-se
no todo, harmoniza-se e transforma-se efectivamente no jardineiro
e no sumo-sacerdote da criação.” (Boff L, p. 2000, p.76).
Na tradição xamânica da Sibéria e da Americana do Norte, a fi-
gura totémica do animal para os antigos ritos de passagem tinha um
poder de ação maior do que o próprio animal em si, dado que o xamã
interage com estas duas realidades e estabelece um equilíbrio entre o
simbólico e o diabólico. Poderão as funções psíquicas ser condutoras
dos elementos essenciais, dos símbolos e figuras do imaginário para
uma melhor constituição arquetípica, mitológica e, por fim, chegar a
colaborar na prática vivencial da história da pessoa humana?
É de fundamental importância que o Ser humano mantenha
uma boa relação e comunicação com esses elementos inconscientes
para que atinja o seu processo de individuação e de integração com
a natureza de todos os elementos. Quando o eu em sua estrutura
egóica começa a percorrer a consciência como um todo, em contac-
to com aspectos conscientes e inconscientes, este já não é mais o
centro, pois abre espaço para o Selbst, que é a unidade integradora.
Em termos junguianos, a individuação é a libertação das limi-
tações da identificação com o eu pessoal para a expansão de uma

724
natureza inconsciente mais vasta, que atinge o desenvolvimento
da totalidade, para ‘torna-se si mesmo’ Verselbstung. Para Leonar-
do Boff, os princípios do feminino e do masculino presentes no
homem e na mulher são “a natureza de uma realidade ontológica,
a categoria que marca esta realidade é a relação, que vem marca-
da por conflitos, muita opressão, violência, lágrimas e sangue. Mas
não somente, também por trocas, enternecimento, amor e fusão
bem-aventurada”. (Boff L, Ribeiro L, 2007, p.50).
Com isto aproximamo-nos de uma categoria transpessoal, na
medida em que esta identidade pessoal alarga os limites da consci-
ência para que a manifestação da profunda realidade inconsciente
se mostre para a integração da sua sexualidade e espiritualidade
nos aspectos do animus e anima e também do androgynis esta últi-
ma categoria aqui apresentada não foi totalmente desenvolvida na
obra de Jung e é retomada mais tarde por Bachelard a partir de uma
psicanálise dos elementos da Natureza.
Encontramos em Bachelard a mesma linha da tradição analítica
de Carl Gustav Jung com a divisão da tipologia psicológica das fun-
ções entre: o pensar, o sentir, o intuir, a sensação, em conformidade
com os elementos: o ar, a água, o fogo e a terrra. Gaston Bachelard
tem um profundo comprometimento com esta nova visão, de uma
psicanálise da ecologia humana, onde o ser encontra o seu sentido
ontológico pela experiência ambiental e planetária. Através de uma
herança pré-socrática, ao invocar os elementos primordiais e definir
a eleição de um princípio criador na imagética prototípica da Natu-
reza, pelo plasmar corpóreo na função de cada um dos elementos;
“uma lei das quatro imaginações materiais, lei que atribui necessaria-
mente a uma imaginação criadora, um dos quatro elementos: fogo,
terra, ar e água. A fisiologia da imaginação, mais ainda que sua anato-
mia, obedece à lei dos quatro elementos.” (Bachelard G, 1990, p.8).

Capítulo 27

Arquétipos da Ecologia do Ser 725


Giancarlo de Aguiar
Urge promover o encontro entre o humano e a natureza
(elementos e reinos que a constituem), lugar de criação e con-
tato mitopoético. O humano não vive sem horizontes de símbo-
los naturais, todavia o conflito e tensão humana está diante do
artificial enquanto fuga dos elementos naturais na ausência do
orgânico humano que se estabelece pelo intervalo da alternati-
va de encontro com o natural. A tecné na sociedade moderna se
apresenta como ruído, obstrução da vida e do próprio sentido
pleno e fluídico da poiésis. Concordamos com Gaston Bachelard
quando afirma: “L’image poétique est une émergence du lan-
gage,” (Bachelard G, 1974, p.10). Assim, é preciso criar possi-
bilidades de aplicação da linguagem em um campo de contato
e intervenção em meio natural, ambiente e meio biótico social,
que favoreça a ecologia do ser enquanto condição sine qua non
para a natureza da pessoa humana; é preciso sair do impasse da
dualidade entre os símbolos da degenerescência e os símbolos
da regenerescência para realizar a síntese da essência do Ser.
De outro modo, encontramos também em Gaston Bachelard a
importância de um retorno da consciência humana para os ele-
mentos da natureza, ou ainda, como em Eudoro de Sousa em sua
crítica sobre o mundo construído pela realidade humana, afirma
o autor; “ele não pode construir o Mundo senão à custa da des-
truição da Natureza; mas, se a destrói, a si mesmo o destrói. Aí
está o trágico, no limite de uma operosidade que não quer saber
de limites.” (Sousa E, 2004, pp. 54-55).
Nesta perspectiva, o contexto social e o ambiente natural é
a referência para a aplicação da base teórica, a partir da obra de
Jung, pela Vida Simbólica na via do inconsciente colectivo. A relei-
tura de Bachelard com a proposta dos Quatro Elementos possibi-
litará a atuação dos arquétipos na ecologia da corporalidade pelos

726
elementos da natureza no ambiente social. A substancial perda do
vínculo tecido com as forças da Natureza e a própria vida, revela
a necessidade de reconexão pelo movimento. A persona sendo o
principal arquétipo de mediação entre sujeito e as diferentes reali-
dades do mundo, o corpo psíquico, desempenha o papel de compus
e corpus poético enquanto símbolo regulador da Vida, pode atuar na
intervenção social com a transmutação do ambiente para e com a
Natureza, na recuperação do estado do ser contranatura, mais es-
pecificamente da anima agere cuja natureza debilitada passa para a
anima retinere onde a natureza é recuperada. (Aguiar G, 2014, p.155).
De certo modo esta atuação na experiência dos elementos foi
vivenciada por Bachelard na manifestação da natureza como po-
demos evidenciar em sua escrita: “De fato, diante dos espetáculos
do fogo, da água, do céu, o devaneio que busca a substância nos
aspectos efémeros não era de modo algum bloqueado pela realida-
de. Estávamos verdadeiramente diante de um problema da imagi-
nação; trata-se precisamente de sonhar numa substância profunda
o fogo tão vivo e tão colorido.” (Bachelard G, 1991, p.2). A sensível
vivência deste espectacular fenómeno indelével que regista impor-
tantes instâncias arquetípicas entre o consciente e o inconsciente,
segue a sua reflexão de autoconhecimento; “tratava-se de imobili-
zar, diante de uma água fugidia, a substância dessa fluidez; enfim,
era preciso, diante de todos os conselhos de leveza que nos dão as
brisas e os vôos, imaginar em nós a própria substância dessa leveza,
a própria substância da liberdade aérea.” (Bachelard G, Idem).
Uma estrutura arquetípica na criação da poesia inerente a di-
mensão mais profunda da alma humana, de matrizes prototípicas
primordiais da natureza: a sublimação é o dinamismo mais normal
do psiquismo, poderemos mostrar que as imagens saem do próprio
fundo humano (Bachelard G,1991, p.3). Gaston Bachelard nos fala

Capítulo 27

Arquétipos da Ecologia do Ser 727


Giancarlo de Aguiar
sobre “uma experiência táctil que vem somar-se à observação visu-
al” (Bachelard G, 2002, p.111). È neste sentido que compreendemos
nossa temática com a base na substância dos elementos entre a na-
tureza do ambiente e a experiência humana. Trata-se de enveredar
pelos caminhos clássicos de investigação do problema da Nature-
za: desde a cosmologia pré-socrática dos filósofos da Natureza até
Schelling e Jung, o tratamento das questões da vida humana entre
a natureza, cultura e arte tem sido intentado pela via do idealismo
transcendental. Podemos contar com a epistemologia de Gaston
Bachelard considerado como um filósofo da natureza da paisagem
que aqui trazemos como articulador entre o método científico epis-
temológico e também artístico pela via da poiésis (princípio de
criação). Temos algumas referências centrais do idealismo alemão
que influenciou Bachelard na escrita de sua obra, encontramos a
Arte enquanto noção do Absoluto com base teórica em Schelling e
Jung. É importante também destacar a superação da própria ciência
a partir da afirmação de Novalis: “O poeta compreende a natureza
melhor que o cientista”. (Carvalho M, 2013, p.49). Resgatamos nesta
declaração de Novalis toda uma herança arquetípica de Platão e no
que diz respeito a cosmologia grega pré-socrática sobre a origem
dos elementos em correspondência com a Physis (Natureza).
Trazemos algumas combinações essenciais, tais como: cria-
tividade e ecologia, social e ambiental, cultura e na própria natu-
reza; montanha e árvore, mar e horizonte na integração de ele-
mentos arquetípicos, como afirma Gaston Bachelard: “de nossas
lembranças inconscientes, no mar azul ou na montanha verde”.
(Bachelard G, 2016, p.120).
Chegaremos aos aspectos culturais e naturais do Ethos huma-
no? Qual a condição humana que se estabelece diante da neces-
sidade de viver na cidade? E longe dela? E próximo da natureza?

728
Como compreender a atitude e a conduta da pessoa no espaço va-
zio? Nalgum ambiente? E diante da paisagem? Da própria natureza,
reinos e elementos que a constituem?
Priorizamos a trajetória de um caminho que demonstre a evi-
dência do simbólico e do ecológico paisagem natural, ou de outro
modo, na própria natureza; montanha, árvore, mar, horizonte. Nes-
ta busca de integração da vida humana mais próxima da natureza
é que passamos a descrever algumas passagens que a obra Bacher-
diana revela a partir dos elementos. Na obra A Terra e os Devaneios
da Vontade. Ensaios sobre a imaginação das Forças após indagar sobre
a natureza da substância de todos os elementos Bachelard eviden-
cia a importância do elemento terra: “com a substância da terra, a
matéria traz tantas experiências positivas, a forma é tão manifes-
ta, tão evidente, tão real, que não se vê claramente como se pode
dar corpo a devaneios relativos à intimidade da matéria.” (Bache-
lard G, 1991, p.2). O autor percorre dimensões da subjetividade e
da objetividade até chegar ao caminho de acolhimento, repouso e
intimidade, o encontro com o arquétipo da anima, com a própria
natureza? “as grandes imagens do refúgio: a casa, o ventre, a gru-
ta. Encontramos uma oportunidade para apresentar, de uma forma
simples, a lei da isomorfia das imagens da profundidade” (Bache-
lard G, 1991, pp.10-11).
É nesta busca e diálogo com a natureza que Bachelard trata do
elemento terra no reino vegetal, com as suas raízes, e da robustez pela
experiência solidificada: “para bem compreender o seu papel, é pre-
ciso, pelo menos uma vez na vida, ter amado uma árvore majestosa,
ter sentido agir o seu conselho de solidez.” (Bachelard G, 1991, p.56).
É nesta solidez que a episteme bachelardiana traz como complemento
fundamental a poesia: “reanimar uma linguagem criando novas ima-
gens, esta é a função da literatura e da poesia.” (Bachelard G, 1991, p.4).

Capítulo 27

Arquétipos da Ecologia do Ser 729


Giancarlo de Aguiar
O ato de vontade e sonho realizado revela a ligação das funções psí-
quicas na aproximação dos elementos: “Nesse onirismo ativo estão
unidas as duas grandes funções psíquicas: imaginação e vontade.”
(Bachelard G, 1991, p.40). A paisagem se torna fundamental para
o sentido da vida, as funções psíquicas e os elementos da natureza
criam um mesmo compus e corpus integrativo, naquilo que está mais
alto relativo ao ar e ao céu, ou o mais baixo, no que concerne a terra, a
montanha e demais matérias densas, como esclarece o autor: “Parece
assim que, numa espécie de diálogo entre rochedos e nuvens o céu
vem imitar a terra. A rocha e a nuvem completam-se uma à outra.”
(Bachelard G, 1991, p. 149).
É no elemento ar que fica mais clara a fluidez e dinâmica dos
elementos, ultrapassando-os até chegar ao quinto elemento unifi-
cador: “Parece que o ser voante ultrapassa a própria atmosfera em
que voa; que um éter se oferece sempre para transcender o ar; que
um absoluto completa a consciência de nossa liberdade” (Bache-
lard G, 1990, p. 8). Traz também um sentido amplo, remete-nos
ao estado do ambiente na paisagem em meio aberto: “o ar natural
é o ar livre”. Liberdade e movimento que nutre com alento toda a
realidade visível por uma natureza do espírito invisível: “o dina-
mismo aéreo é antes um dinamismo do sopro brando”. (Bachelard
G, 1990, p. 17). Esta inter-troca nutridora e constante que propor-
ciona o elemento ar e flui no alento da respiração do corpo até a
substancial natureza anímica da imaginação.
Tratamos agora do elemento fogo, em Bachelard a psicanálise
do fogo é de uma origem propulsora e corpórea: “o fogo é ultravivo.
O fogo é íntimo e universal. Vive em nosso coração. Vive no céu.
Sobe das profundezas da substância e se oferece como um amor.”
(Bachelard G, 1972, p. 22). Um fogo que ilumina o sentimento
humano. É central a concepção de um fogo que alimenta a alma;

730
“o devaneio diante do fogo, o doce devaneio consciente de seu bem-
-estar, é o mais naturalmente centrado.” (Bachelard G, 1972, p. 23).
Contemplativo, facilmente é possível imaginar um fogo vivo
e visceral, na silenciosa intimidade dos movimentos das brandas
labaredas incandescentes, lambem a madeira em línguas de fogo
que provam o tronco nu do vegetal em lume vivo; “do fogo cal-
mo, regular, dominado, onde a grossa lenha queima em pequenas
chamas. É um fenómeno monótono e brilhante, verdadeiramente
total: ele fala e voa, ele canta.” Pensa-se num fogo de sentido uni-
versal e cosmogónico, de iluminação solar, ou ainda, de natureza
lunar, de luzes noturnas: “O devaneio opera como estrela. Retor-
na ao seu centro para emitir novos raios.” (Bachelard G, Idem). É
nesta ampliação da consciência que Bachelard traz a sua visão de
infinitude e princípio de autocriação eterna. Encontramos nesta
temática Arquétipos da Ecologia do Ser uma proposta de meditação,
reflexão profunda da natureza humana, sentido, busca e encontro
com elementos vivos que ganham significado para a existência,
não somente humana, mas também de todos os reinos e elementos
que constituem o Planeta e a própria Natureza. Eis o compromisso
do verdadeiro modo de ser e viver, um caminho de vanguarda que
prevê a possibilidade de um outro mundo, tecendo e co-criando o
novo Ethos na ecologia pessoal, social e planetária, na resignifica-
ção dos ecossistemas ao natural do humano.

Capítulo 27

Arquétipos da Ecologia do Ser 731


Giancarlo de Aguiar
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Arquétipos da Ecologia do Ser


Giancarlo de Aguiar baracoa
editora
aUtOres

Acácio de Toledo Netto - Adriana Veríssimo Serrão


Alberto Filipe Araújo - André Ferreira Bezerra
Angelita Corrêa Scardua - Dirk Michael Hennrich
Eda Terezinha de Oliveira Tassara - Giancarlo de Aguiar
Helena Tassara - Jean-Jacques Wunenburger
José Oswaldo Soares de Oliveira - Josef David Yaari
Marcello Giovanni Tassara - Mariana Malvezzi
Maribel Mendes Sobreira - Paulo Alexandre Esteves Borges
Paulo Rodrigo Unzer Falcade - Pedro Teixeira Carvalho
Rafael de Santis Bastos dos Reis - Rafael dos Santos Aquino
Regiane Santos Flauzino de Oliveira - Rinaldo Miorim
Rodrigo Feliciano Caputo - Sandra Maria Patrício Ribeiro
Tiago Pilotto Rodrigues Alves - Vania Bartalini
Vladimir Bartalini -Yanci Ladeira Maria

baracoa
editora

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