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©2010 SEMA
Acre (Estado) - História. 2. Acre (Estado) – Política economia. 3. Identidade social – Acre
(Estado). 4. Geografia humana – Acre (Estado). I. Título. II. Acre, Governo do Estado do.
CDD. 331.76338952098112
Izabella Teixeira
Ministra do Meio Ambiente
Revisores
TRAJETÓRIAS ACREANAS – ÍNDIOS, SERINGUEIROS,
RIBEIRINHOS, SÍRIO-LIBANESES E SULISTAS COMO
ATORES DA FORMAÇÃO DO ACRE
Magaly da Fonseca S. T. Medeiros, Me. em
Desenvolvimento em Meio Ambiente | SEPLAN/EAB
Conceição Marques de Souza, Esp. Gestão de Recursos
Hídricos | SEMA – Revisão Técnica
dentro, tentaram então expulsá‑los de suas cimento nacional, desta vez, se oferece com
localidades, foi deflagrado o conflito não só sua cultura peculiar para o diálogo com as
pela terra, mas também pela cultura e ide‑ ciências, escolhendo parceiros e convocan‑
ologia dos povos da floresta. Surgiu então do a todos para a construção da Florestania,
o movimento de resistência que projetou um modo de vida em que conceito e senti‑
Chico Mendes como defensor da floresta e mento se completam.
dos povos que nela vivem. Assassinado em Os textos aqui publicados aprofundaram
dezembro de 1988, a mando de fazendeiros, os estudos sobre essa realidade acreana
o líder seringueiro tornou‑se símbolo do para facilitar o diálogo. “Identidades, Ter‑
ambientalismo internacional. ritórios, Territorialidades e as Relações de
Após a morte de Chico Mendes, o movi‑ Poder no Acre”, mostra a pesquisa sobre os
mento continuou crescendo e em 1998 ele‑ atores da sociedade da floresta perscrutan‑
geu o Governo da Floresta. Determinado a do identidades, sentimentos e aptidões. No
construir uma sociedade sustentável, esse texto seguinte, “Trajetórias Acreanas temos:
Governo reeleito em 2003, criou o termo Índios, Seringueiros, Ribeirinhos, Sírio‑Liba‑
Florestania, para expressar um estilo de neses e Sulistas como Atores da Formação
vida inspirado na economia extrativista, na do Acre”. Os autores levantam dados e refle‑
história, cultura e sentimento dos que vivem xões sobre o tema, concluindo: “A territoria‑
em contato permanente com a natureza. lidade construída por índios, seringueiros,
Em doze anos desse Governo, o Estado regatões, ribeirinhos e sulistas condiciona
do Acre teve significativas mudanças. As sua participação no processo de construção
finanças do Estado foram recuperadas e os de uma identidade acreana”.
serviços públicos melhoraram; o Governo No texto “Patrimônio Histórico e Paisa‑
Federal sem os militares e com a colabo‑ gístico do Estado do Acre”, o autor mergulha
ração das agências nacionais e internacio‑ floresta à dentro e rios acima, para mostrar
nais de desenvolvimento ajudaram o Acre a riqueza do patrimônio natural, antropoló‑
gico, social, territorial, cultural, místico etc. a Bolívia”, um tema que escancara a janela
– que o Acre pode expor sem acanhamento. para as relações globais.
Em “Cidades do Acre: Experiências de Através destas relações e com esse pa‑
Planejamento e Gestão”, a autora analisa o drão de conhecimento, o Acre pode arguir
Estado a partir de suas cidades e levanta com sua peculiaridade hospitaleira e huma‑
informações para as diretrizes básicas do na, para impedir que mágoas do passado in‑
Plano Habitacional de Interesse Social, com terfiram nas conquistas presentes e futuras
o qual o Governo percorre os caminhos da para as Amazônias brasileira, peruana e bo‑
democracia e do bem estar social. Por fim, liviana. E, com o coração e mente acolher e
o grupo RETIS/UFRJ elabora o estudo “Acre: escolher, criteriosamente, outros parceiros
Interações Transfronteiriças com o Peru e no mundo.
Elson Martins
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
Livro Temático | Volume 4
Cultural Político:
Memórias, Identidades
e Territorialidades
1
Capítulo
Trajetórias Acreanas – Índios, Seringueiros,
Ribeirinhos, Sírio-Libaneses e Sulistas Como
Atores da Formação do Acre
Sírio-LibaneseseSulistasComoAtoresdaFormaçãodoAcre
Trajetórias Acreanas – Índios, Seringueiros, Ribeirinhos,
12
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
LIVRO TEMÁTICO 4
A
década de 1970 inaugura um novo ção e inserção na economia mundial sob a
momento na história acreana com argumentação de que a selva rica, diversa,
a investida da fronteira agropecuá- natural, primitiva, exótica precisava ser civi-
ria até a região. Até então, o extra- lizada para que nela fosse instaurado o rei-
tivismo - como modo de vida e não apenas no da ordem, do progresso, da ciência e da
como atividade econômica - se constituía civilidade. Portanto, nos anos 70, o discurso
como base da sociedade edificada nesse oficial subverteu-se com a perspectiva de
pedaço verde da Amazônia Sul Ocidental. A destruir a selva na medida em que esta sig-
Amazônia e o Acre, com a tomada do poder nificava atraso, e o que se configurava como
pelos militares em 1964, foram inseridos em o necessário desenvolvimento era impor as
um novo modelo político e econômico cujas bases capitalistas do uso da terra excluindo
diretrizes foram delineadas pelos Progra- os trabalhadores extrativistas, não mais da
mas de Desenvolvimento Nacional (PNDs). selva e sim da floresta.
O discurso construído em fins do século Nesse contexto, a Amazônia passa a ser
XIX, e que perdurou até os anos 40, era de vista como um espaço vazio não só de pes-
uma Amazônia vista como selva. Essa sim- soas, mas de capital. Tal fato se reveste de
bologia foi utilizada tanto pelo Estado re- maior gravidade na medida em que os ali-
publicano como pelas elites nacionais para cerces da economia acreana estavam cen-
justificar sua conquista, ocupação, explora- trados na organização extrativista da pro-
1 Doutora em História | IFAC
2 Arqueólogo/historiador | Prefeitura Municipal de Rio Branco
Trajetórias Acreanas – Índios, Seringueiros, Ribeirinhos,
Sírio-LibaneseseSulistasComoAtoresdaFormaçãodoAcre
dução baseada no seringal tradicional, em cercada por países andinos, que na épo-
moldes pré-capitalistas. ca também tinham os seus próprios mo-
Embora os movimentos de trabalhadores vimentos revolucionários. Diante deste
e capital para a Amazônia sejam anteriores contexto a doutrina da segurança nacional
aos governos militares, foi, inegavelmente, passa a ser o fundamento de uma nova ge-
após 64, que a expansão para a Amazônia opolítica amazônica que previa não só sua
assumiu um aspecto grandioso, inclusive ocupação militar como sua ocupação pelo
para atender os objetivos do Estado brasi- capital, para se constituirem em barreiras
leiro caracterizado pelo autoritarismo e pela à resistência revolucionária.
formulação da geopolítica e da doutrina de Nesse “tabuleiro de xadrez” geopolítico,
segurança nacional. com a ocupação econômica da Amazônia a
O discurso construído pelos ideólogos sua população seria integrada social e po-
do Estado autoritário, escudado pelos inte- liticamente, constituindo-se em um “bloco”
lectuais da Escola Superior de Guerra, tendo contra a iniciativa revolucionária, legitiman-
como expressão máxima o general Golbery do a expansão capitalista na região. A ocu-
do Couto e Silva, colocava o Brasil no con- pação da Amazônia passa a ser implementa-
texto da geopolítica mundial como uma re- da pelo discurso ideológico de “precisamos
gião estratégica frente à reduzida distância ocupar a Amazônia”.
deste para a Ásia e África. Tendo-se em men-
te, ainda, que no período da Segunda Guerra 2. CAPITAL X EXTRATIVISMO
Mundial, o Brasil foi estrategicamente re-
levante para o dominio do Atlântico pelos É importante considerar que a época do
Aliados. A nova concepção geopolítica con- autoritarismo militar foi caracterizada por 13
siderava este fato um “trunfo”, um fator fun- certa euforia econômica, nos anos do “mila-
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CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
damental para que o Brasil, mesmo inserido gre econômico” que possibilitaram grandes
no universo da hegemonia norte-americana, lucros por parte dos empresarios do Centro-
tivesse um papel de destaque como “grande -Sul e do Sudeste do país. O capital exceden-
potência”. Por isso a Amazônia assumiu uma te gerado nesse período de crescimento ne-
grande importancia por seu tamanho, seu cessitava de novos canais de investimentos
território, sendo seu contexto interno vis- e a Amazônia passa a ser um desses canais
to pelos militares como uma “guerra civil” privilegiados por possuir terras e, sobre-
permanente cujo inimigo era caracterizado tudo, porque teria várias formas de valori-
pelos movimentos populares de esquerda zação, sendo uma delas a valorização pela
articulados com o comunismo internacional, renda, que por sua vez depende de vários
através da antiga União Soviética (URSS - fatores como a localização e a infraestrutu-
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) ra. Nesse aspecto, se configuram os investi-
e Cuba. mentos realizados pelos governos militares
Esse raciocínio levava à conclusão de na Amazônia.
que era preciso combater o inimigo inter- Outro aspecto a ser mencionado e que
no e a Amazônia estava imbricada nesse atribuía valor a terra eram os subsídios
processo por vários fatores. Em primeiro governamentais, sendo estes instrumentos
lugar, havia no Brasil, grupos de esquerda para captar capital excedente e lucro consi-
que resistiam à ditadura, inclusive atra- derável. Assim sendo, a possibilidade de vir
vés da luta armada e da guerrilha urbana para a Amazônia significava grandes lucros
e cujo projeto maior era criar bases para para os que buscavam um canal de inves-
lançar um processo de guerrilha rural, timento a mais, e essa prática não ocorreu
uma revolução a partir do campo. A Ama- apenas na compra de terras, mas, também,
zônia passou a ser vista como território nos empreendimentos minerais, minero-me-
potencial para a organização da guerri- talúrgicos devido aos volumosos incentivos
lha brasileira, agravada pelo fato de estar e ganhos de capital.
Sírio-LibaneseseSulistasComoAtoresdaFormaçãodoAcre
Trajetórias Acreanas – Índios, Seringueiros, Ribeirinhos,
Outro fator que merece ser menciona- tal se rebateu sob a estrutura da sociedade
do no âmbito social foi o enfrentamento extrativa gerando conflitos violentos frente
de classe. E, nesse sentido, ressaltamos que à desagregação do extrativismo tradicional,
durante o regime militar, em pleno “milagre que já vinha atravessando um processo fa-
econômico” a grande burguesia nacional se limentar, dando lugar a conflitos pela ter-
fortaleceu consideravelmente. Seu poder ra em grandes proporções, os quais foram
era incontrolável, era quase insuperável, e amplamente divulgados pela mídia nacional
os incentivos fiscais eram demonstrações e estrangeira.
concretas do seu poder, na medida em que E, nesse contexto é importante assinalar-
esta burguesia exercia um forte impacto sob mos que o conceito de propriedade capita-
o Estado, levando, inclusive, à imbricação lista difere do conceito de propriedade da
entre Estado e Capital, fazendo com que al- economia extrativista tradicional, que apre-
guns estudiosos de forma simplista, identifi- senta como particularidade a visão de que
cassem Estado e Capital por considerar que para o seringalista o que importava não era
o Estado tinha se tornado um objeto do Ca- a propriedade exclusiva da terra. No serin-
pital ou tinha sido privatizado por este. gal, a propriedade era quase “plural”, múlti-
Logo, em virtude de sua posição favorá- pla, só que hierarquizada. Para o seringalis-
vel, a grande burguesia contribuiu, sobrema- ta não importava que o seringueiro tivesse a
neira, para a implementação de mecanismos posse de sua colocação e o direito de neste
de incentivos fiscais da SUDAM, BASA, atra- permanecer o tempo que desejasse. Era um
vés de programas como o POLAMAZÔNIA3 tipo de propriedade diferente, típica da re-
e o PROTERRA4 (DUARTE, 1987, p. 50-51) produção do extrativismo.
14 entre outros, além das concessões de gran- No capitalismo, a propriedade era dife-
des áreas para a mineração, e outras formas rente, tinha que ser exclusiva, a terra trans-
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
LIVRO TEMÁTICO 4
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CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
fato também ocorreu no Brasil, ensejando a seca de 1877, ocorreu o espetáculo trágico
criação da teoria dos ciclos econômicos pela da movimentação da população em retirada
historiografia brasileira clássica, a qual tem pelo sertão e litoral do Nordeste, tangidos
sofrido críticas por não comportar outras das fazendas e pequenas propriedades. Até
modalidades de atividades econômicas e de então, esse “excedente” humano não se fize-
relações de trabalho não escravistas. ra tão evidente durante o secular processo
Outro aspecto a considerar é o caráter de estagnação da agricultura nordestina.
endêmico que a colonização das terras bra- Essa mobilização nordestina para a Ama-
sileiras assumiu, na medida em que estas zônia teve grande impacto pelo número de
eram vistas como um eldorado, um paraíso. pessoas que deslocou. Segundo Celso Furta-
Aliás, esse aspecto foi enfocado por Sérgio do (1977, p. 128) estima-se em 500.000 no
Buarque de Holanda na obra “A visão do
paraíso”, cuja análise corrobora o ideal de
estabelecimento de uma civilização cristã Financiados por grupos econômicos
na América que se coadunava com o cultivo internacionais, através de uma com-
da terra. plexa rede que envolvia exportadores,
Na Amazônia, o processo foi diferente e bancos e grandes empresas indus-
apesar do extrativismo das “drogas do ser- triais, as casas aviadoras de Belém e
tão” ter gerado ganhos de capital, se consti- Manaus e os seringalistas formaram
tuiu uma atividade pontual, o que os coloni- grupos de agenciadores que recruta-
zadores almejavam era a implementação da vam mão-de-obra nos portos do litoral
agricultura que possibilitaria um ganho eco- e mesmo em pleno sertão. Resultou
nômico, cujo valor se reproduziria. E esse disso um êxodo dirigido, comandado
imaginário cultural presente nos primórdios em última instância pelos interesses
da colonização impregnou o desenvolvimen- econômicos de grandes empresas
to brasileiro e a cultura da burguesia agrária
Sírio-LibaneseseSulistasComoAtoresdaFormaçãodoAcre
Trajetórias Acreanas – Índios, Seringueiros, Ribeirinhos,
acompanhados por família, nem em gru- vam miséria, nos campos e nos refúgios
pos de vizinhos ou parentela. A grande dos núcleos urbanos” (SANTOS, 1980,
maioria se constituía de homens, jovens p. 108).
ou adultos que vinham como força de tra-
balho despojada de qualquer condição ou Não havia por parte desses imigrantes
instrumento de produção para se engajar a preocupação de fincar raízes no Acre. As
na empresa extrativa da borracha. circunstâncias de emergência e imprevisão
Outro aspecto a considerar é que não nas quais se processou o seu deslocamento
era mais uma migração “espontânea”, na nos conduz a compreensão das ausências de
medida em que esse deslocamento foi espírito colonizador para a maioria dos ho-
organizado pelo capital mercantil, repre- mens que desbravaram a região.
sentado pelas casas aviadoras e pelos se- E era, sobretudo, a região do Acre e dos
ringalistas, interessados tão somente na altos rios rica em hévea que mais atraía es-
capacidade de trabalho da população. E ses imigrantes. Dentre as causas desta pre-
como se explica a preferência dos nordes- ferência, Martinello (2004) aponta “a busca
tinos pela Amazônia? de recursos imediatos e temporários, a inci-
dência da seringa na região, a necessidade
a) Pelo preconceito do próprio trabalhador de novos espaços visando possibilitar a ocu-
nordestino relativamente ao trabalho pação de todo o potencial disponível de mão
nos cafezais, que era tradicionalmente de obra, a demanda pelo aumento da produ-
considerado escravo, ao passo que, em ção gumífera estimulada pelos crescentes e
relação à Amazônia, o trabalhador so- vantajosos preços oferecidos pelo mercado
nhava operar como se fosse empreiteiro externo e o esgotamento parcial das árvores
de si mesmo, seringueiro autônomo, não produtoras do látex nas regiões dos baixos
sujeito sequer a regime salarial, pois o lá- rios. A banda da Amazônia Sul Ocidental es-
tex que vendesse lhe pertencia; tava sendo ocupada pelos migrantes”.
Trajetórias Acreanas – Índios, Seringueiros, Ribeirinhos,
Sírio-LibaneseseSulistasComoAtoresdaFormaçãodoAcre
E, para que se tenha uma idéia do volume, provenientes da Ásia chegaram a América
Ferreira Reis “situa em torno de 200.000 do Sul após uma longa migração.
indivíduos o volume migratório iniciado
em 1870 sendo que, dentre estes, cerca de
70.000 encontravam-se no Acre, quando da Esses grupos humanos perseguiam
incorporação deste ao território brasileiro” as grandes manadas de animais gre-
(REIS, 1940, p. 41). Num crescente, ao longo gários que durante a idade do gelo se
dos anos, a ocupação da região assumiu in- espalhavam pelas vastas savanas do
tensidade numérica significativa. O desloca- mundo. A Amazônia era então uma
mento destes nordestinos frente à emergên- ampla extensão dessas savanas, com
cia de uma atividade econômica centrada no apenas algumas manchas de floresta
extrativismo implicou no surgimento de um ao longo dos rios que cortavam as
sistema de produção e de relações de pro- terras baixas. Era o tempo dos gran-
dução cuja característica fundamental era o des animais como o mastodonte, a
trabalho compulsório. preguiça gigante (megatherium), o
Esses nordestinos vieram para a Amazô- toxodonte e diversos outros exem-
nia devido à existência de certas condições plares de megafauna que serviam de
internas do Nordeste como: o desemprego base alimentar para aqueles bandos
estrutural e a persistência das estiagens e, de caçadores nômades. Esses animais
ainda, por outra variável tão importante se extinguiram com o fim do pleisto-
quanto as anteriores, ou seja, a posição de ceno, a última das grandes idades do
subordinação da economia brasileira face às gelo, e seus fósseis localizados, ain-
mudanças ocorridas na divisão internacio- da hoje, nos barrancos de muitos dos 17
nal do trabalho. rios acreanos. (NEVES, 2004, p. 10)
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CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
E à medida que os seringais iam sendo
criados à margem dos rios, os conflitos en-
tre os nordestinos e os primeiros habitantes Outro aspecto a mencionar é que a par-
do Acre, os povos indígenas, foram ocor- tir de 12 mil anos atrás, o clima do planeta
rendo - na perspectiva de que não se ocupa começou a esquentar e esse fato ocasionou
uma terra que já é habitada sem resistência um aumento da umidade e expansão dos
por parte dos que se encontravam na região sistemas florestais. Assim, os últimos rema-
– passaram a ocorrer então as chamadas nescentes da megafauna desapareceram
correrias5 que junto a outros fatores, como devido à retração das áreas de pastagem e
as doenças trazidas pelo branco levaram à a expansão da floresta contribuindo para a
completa desestruturação das sociedades proliferação de uma fauna terrestre de pe-
indígenas que aqui já se encontravam a mi- queno porte e da fauna aquática através do
lhares de anos. crescimento dos cursos de água que ficavam
cada vez mais caudalosos.
4. “PRÉ-HISTÓRIA” E Nesse contexto ocorreram profundas
SOCIEDADES INDÍGENAS DO mudanças climáticas e ambientais e o sur-
ACRE gimento de novas formas de organização
social, fazendo com que os seres humanos
Contrapondo a história oficial, é funda- daquela época passassem a contar com re-
mental ressaltarmos que o povoamento hu- cursos alimentares mais variados, em virtu-
mano do Acre teve início, provavelmente, de do ambiente de florestas tropicais, além
entre 20 e 10 mil anos atrás, quando grupos de, gradativamente começarem a desenvol-
5 Termo regional que se refere às expedições armadas realizadas por seringalistas e seringueiros para
expropriar territórios indígenas e implantar seringais. Tiveram início já no século XIX e se estende-
ram pelo menos até meados do século XX.
Sírio-LibaneseseSulistasComoAtoresdaFormaçãodoAcre
Trajetórias Acreanas – Índios, Seringueiros, Ribeirinhos,
ver as primeiras experiências de domestica- Xipanamu e no Madre de Dios até sua con-
ção de plantas e animais. fluência com o rio Madeira.
Na América Central e nos Andes, tive- Para contextualizar os espaços ocupa-
ram início os cultivos de milho e de outras dos pelos povos nativos, não apenas nos
sementes, enquanto nas terras baixas da limites do atual Estado do Acre, mas, tam-
Amazônia foram desenvolvidas as primeiras bém de áreas circunvizinhas que integram
experiências do plantio de raízes – especial- a grande região indígena da Amazônia Sul
mente da mandioca - que se tornou a base do Ocidental, podemos dizer que esses povos
cardápio alimentar desses grupos. E, como indígenas estavam distribuídos em cinco
parte dessas mudanças, surgiu, aproximada- grandes grupos:
mente há 5 mil anos, a “Cultura de floresta
tropical”, caracterizada por grupos que pra- 1. No médio curso do rio Purus, hoje Es-
ticavam uma agricultura ainda incipiente tado do Amazonas, habitavam povos
complementada pela caça, pesca e coleta de de língua Aruan do tronco Aruak. Gru-
frutos e sementes da floresta. Foi, também, pos poucos aguerridos eram geralmen-
nessa fase da organização social dos grupos te submetidos por outros grupos mais
humanos que estes passaram a fabricar ce- fortes ou se refugiavam na terra firme,
râmica e a ocupar certas áreas por períodos espalhando-se por diversos afluentes
mais prolongados. No Acre não foi diferente de ambas as margens do médio Purus.
do resto da Amazônia e aqui se multiplica- Dentre os grupos dessa região podemos
ram os grupos ceramistas horticultores. citar os Jamamadi, os Kamadeni, além
Importante destacarmos ainda que, em de outros já desaparecidos. Segundo re-
18 linhas gerais, em meados do século XIX a centes análises de lingüísticas essa famí-
ocupação dos povos nativos nos altos rios lia teria uma antiguidade em torno de 2
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LIVRO TEMÁTICO 4
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e numerosos grupos falantes da língua melhanças étnicas e culturais, mas também
Pano. Eram os Kaxinawá, Jaminawá, às alianças que foram sendo estabelecidas
Amahuaca, Arara, Rununawá, Xixinawá, ao longo do tempo. Como também as ex-
dentre outras denominações tribais. Es- tensas redes de comércio e comunicação
tes faziam parte de um grupo lingüístico que cortavam os diversos vales acreanos
muito antigo com cerca de 5 mil anos, aonde chegavam notícias e produtos de
mas que teria se originado em outra re- áreas longínquas.
gião, invadindo só mais recentemente A esse respeito, Chandless, um viajante
as terras acreanas. Devido o seu caráter e descobridor europeu, em sua viagem ao
guerreiro, os Pano conquistaram seu rio Aquiri noticiou que os Apurinã comu-
território através da guerra contra tri- mente recebiam dos Kaxarari pedras trazi-
bos de outras línguas, mas também con- das dos rios Abunã e Madeira para fabri-
tra grupos do mesmo tronco. Este fato car lâminas de machado, enquanto que os
torna explicável, em parte, a fragmen- Manchineri já possuíam diversos objetos de
tação que as muitas tribos Panos apre- metal, provavelmente resultado do comér-
sentavam quando finalmente os brancos cio realizado com os peruanos. Euclides da
começaram a chegar na região. Cunha demonstrou ser possível sair do rio
Javari e, utilizando a vasta rede indígena de
É interessante fazer menção de que a caminhos e varações chegar ao vale do rio
simples divisão lingüística dos grupos nati- Madeira depois de alguns dias de viagem.
vos do Acre nos últimos 5 mil anos “escon- Era um tempo em que desde os grupos in-
de” o caráter múltiplo de culturas indígenas dígenas mais fortes e numerosos que ocu-
e a complexa territorialidade estabelecida pavam as várzeas dos rios até os menores
a partir das alianças e rivalidades tribais. grupos familiares que perambulavam pelas
Como a existente entre os Apurinã e os cabeceiras, todos possuíam liberdade e o
Manchineri, nos rios Purus e Iaco, onde direito à uma identidade própria.
Sírio-LibaneseseSulistasComoAtoresdaFormaçãodoAcre
Trajetórias Acreanas – Índios, Seringueiros, Ribeirinhos,
5. O ENCONTRO DE CULTURAS
E A CRIAÇÃO DE UMA NOVA cessita para viver: ocupa-lhe as terras,
SOCIEDADE dissocia suas famílias, dispersando os
homens e tomando suas mulheres,
Logo ao início das primeiras viagens de destrói a unidade tribal sujeitando-a
exploração, a partir de 1860, apesar da pre- ao domínio de um estranho incapaz
sença dos indígenas, o potencial de riqueza de compreender suas motivações e
natural dos rios acreanos despertou a cobi- proporcionar-lhe outras. Enfim sub-
ça dos exploradores. Em 1870, teve início a mete o índio a um regime de explo-
corrida para a Amazônia e em poucos anos ração, ao qual nenhum povo poderia
as margens dos rios acreanos tornaram-se sobreviver. Assim diante do avanço
cenários dos seringais. dessa civilização representada pelos
A demanda internacional por borracha extratores só resta ao índio resistir
fazia com que o látex extraído da seringuei- e, quando isto se torna impraticável,
ra, depois de defumado e transformado em fugir para mais longe, mata adentro,
“pélas”6 fosse exportado para abastecer as para as zonas altas onde não cresce
indústrias européias e norte-americanas, a seringueira. Entretanto, essa mu-
cada vez mais ávidas por esse produto. A dança de ambiente muitas vezes lhe é
partir de 1878, a empresa seringalista al- fatal.” (RIBEIRO, apud., PICOLLI, vol.2,
cançava a boca do rio Acre subjugando todo 1993, p. 484)
o médio Purus e já em 1880 ultrapassava a
linha Cunha Gomes, limite final das frontei-
20 ras legais brasileiras.
Nesse mesmo contexto, caucheiros peru- Com a penetração dos exploradores vie-
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
LIVRO TEMÁTICO 4
anos vindos do sudoeste cortavam a região ram também as doenças dos brancos para as
das cabeceiras do Juruá e do Purus, enquan- quais os índios não possuíam defesas. O sa-
to que os primeiros seringalistas bolivianos rampo, a gripe, a tuberculose, dentre outras
começavam a se expandir pelo vale de Ma- doenças que se alastravam entre os grupos
dre de Dios e invadiram as terras acreanas indígenas da região dizimando aldeias intei-
pelo sul. Frente a essas investidas, os povos ras diante dos pajés que não sabiam como
nativos da região viram-se cercados por curar aquelas moléstias desconhecidas.
brasileiros, peruanos e bolivianos sem ter E a reação dos diferentes grupos indíge-
para onde fugir ou como resistir a enorme nas existentes no Acre a chegada dos colo-
pressão que vinha do capital internacional nizadores foi variada como diversificadas
que dependia da borracha amazônica. Para eram as culturas presentes na região. Uma
os índios inaugurou-se um novo tempo: de grande parte das tribos de língua Aruan e
senhores das terras da Amazônia Sul-Oci- Aruak, como os Jamamadi, Apurinã, Man-
dental passaram a ser vistos como entra- chineri e Ashaninka optaram por colaborar
ves a exploração da borracha e do caucho em certa medida com os brancos. Destes al-
na região. guns se tornaram remadores, guias, matei-
ros e seringueiros. Outras aldeias passaram
a se relacionar com os seringais negocian-
“Para o índio, o seringal e toda indús- do os produtos da caça ou de sua lavoura
tria extrativa tem representado a mor- em troca de ferramentas, armas e objetos
te pela negação de tudo o que ele ne- dos brancos.
Ressaltamos que grupos de língua Pano,
em sua maioria, resistiram à invasão de
6 Termo regional que designa as bolas de borracha defumada com cerca de 40 a 50 Kg. Eram estas pé-
las de borracha solidificada que eram produzidas pelo seringueiro e comercializadas pelos seringais.
Trajetórias Acreanas – Índios, Seringueiros, Ribeirinhos,
Sírio-LibaneseseSulistasComoAtoresdaFormaçãodoAcre
seus territórios ancestrais, procurando evi- também foram perdendo suas línguas ma-
tar contatos ou relações de qualquer espé- ternas e aprendendo o português ou o espa-
cie com os não índios. A perseguição que se nhol. Inaugurou-se para os índios do Acre o
abateu sobre os povos nativos do Acre foi tempo do cativeiro (CPI, 2002, p. 65).
grande e certos grupos na tentativa de se
proteger passaram a esconder sua identida- 6. FORTUNA E DECADENCIA
de, como um pequeno grupo de Jaminawá DO 1º CICLO DA BORRACHA
que passou a se dizer Katuquina. (BRANCO AMAZÔNICA
SOBRINHO, 1950).
O encontro das culturas foi marcado pelo Neste novo contexto vivia-se o espetácu-
confronto que se expressou de forma cruel lo do esplendor da economia gumífera. “Em
e excludente. Entre os anos de 1880 a 1910 1878, 100% da produção mundial de borra-
quando o ritmo da exploração da borracha cha era brasileira. Em 1890 a participação
foi intenso, o extermínio aumentou fazen- decresceu para 90%. Entre 1895 e 1909,
do com que inúmeros grupos se extinguis- a Amazônia contribuiu para o consumo
sem a exemplo dos Canamari que desapa- mundial com 443.200 toneladas. A África,
receram da grande floresta, ou os Takana a América Central e Malásia com 374.510t.
que migraram para o sul até a Bolívia para Havia, portanto, um saldo para o Brasil de
nunca mais retornarem ao território acre- 68.960 toneladas” (REIS, 1941, p. 65). No
ano, ou ainda os Apurinã que tiveram seus entanto esse quadro de prosperidade estava
vastos domínios reduzidos a ponto de não com os dias contados. Para a época era di-
possuírem hoje nenhuma terra indígena fícil imaginar que aquela euforia fosse pas-
demarcada no Estado do Acre, parte de seu sageira, pois a “Amazônia possuía o maior 21
território ancestral. reservatório de borracha natural de que se
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
Além disso, é inconteste que o estabeleci- tem notícia e, além disso, o domínio do mer-
mento da empresa extrativista da borracha cado” (SOARES, 1927, p. 35).
alterou as formas de organização social dos Pelo quadro abaixo de exportação brasi-
índios. Alguns pequenos grupos ainda con- leira de borracha, entre 1821 e 1947 fica
seguiram se refugiar nas cabeceiras mais visível a contribuição deste produto na pau-
isoladas dos rios, mas a grande maioria foi ta das exportações brasileiras. Por outro
pressionada a se modificar para não desa- lado, também evidencia, a partir de 1912,
parecer. Passaram então a adotar o modelo a perda do apogeu da produção, voltan-
de casa cabocla amazônica, começaram a do a reanimar-se no contexto da Segunda
depender das ferramentas dos não índios e Guerra Mundial.
Fonte: BENCHIMOL, Samuel. Amazônia: um pouco antes e além depois. Manaus: Calderaro, 1977, p.
252., apud., MARTINELLO, 2004, p. 55.
Conforme esclarece Martinello, a expan- 1911. Não havia, portanto, nada a temer.
são da borracha entre 1880 e 1920 foi imen- A riqueza da região parecia inesgotável”
sa e sua participação na economia brasileira (MARTINELLO, 2004, p. 55-56).
crescente. Neste sentido, “entre os anos de No entanto essa euforia econômica não
1880 e 1897 a borracha responde, em mé- iria durar por muito tempo, pois as semen-
dia por 11,8% da exportação total brasileira; tes transladadas por Wickham da Amazônia
entre 1898 e 1910, por 25,7% entre 1911 por volta de 1876, proporcionaram aos in-
e 1913, por 20%; entre 1914 e 1918, por gleses o início do cultivo de seringueiras em
12%. Este significativo volume exportado é bases racionais em suas colônias do Oriente.
acompanhado, também, pelos excepcionais E alguns anos mais tarde a produção destas
preços internacionais do produto. Em 1840, desbancou a produção brasileira no cenário
45 libras por tonelada; em 1850, 41 libras; mundial, pois a partir de 1913, a borracha
em 1860, 125 libras; em 1870, 182 libras; cultivada no Oriente superava a produção
em 1905, 512 libras, preço que perdura até amazônica com quase “48.000 toneladas en-
Trajetórias Acreanas – Índios, Seringueiros, Ribeirinhos,
Sírio-LibaneseseSulistasComoAtoresdaFormaçãodoAcre
quanto a brasileira decrescia para 39.560t” guiram escapar ao domínio dos não-índios
(PAULA, apud., MARTINELLO, 2004, p. 58). e resistiram ao cerco cada vez mais aperta-
O monopólio brasileiro da goma elástica es- do dos “civilizados”, perambulando sempre,
tava definitivamente quebrado. sem se fixar, ultrapassando a região das ca-
A perda da supremacia brasileira da bor- beceiras aonde os brancos não chegavam.
racha foi ocasionada por vários fatores tais Com a crise da borracha surgiu no Acre
como: altos custos da extração do produto, uma economia baseada na produção de vá-
que impossibilitavam a competição com as rios produtos agrícolas como mandioca, ar-
plantações do Oriente, pela inexistência de roz, feijão e milho e os seringais passaram a
pesquisas agronômicas em larga escala de- não produzir somente borracha. Importante
vidamente amparadas pelo setor público, mencionar também a exploração de couros e
pela falta de visão empresarial dos brasilei- peles e a criação das primeiras colônias agrí-
ros ligados ao comércio da goma elástica, colas no entorno a Rio Branco, as quais se
pela carência de uma mão de obra barata da constituíam alternativas de trabalho para os
região, elemento essencial ao sistema pro- seringueiros, além de possibilitar a melhoria
dutivo, pela insuficiência de capital financei- do abastecimento de Rio Branco no que se
ro aliada à distância e às condições naturais referia aos produtos hortifrutigranjeiros. A
adversas da região. partir dos anos 30 a castanha passou a ser
E, a acentuada queda nos preços inter- mais explorada e as madeiras e oleaginosas
nacionais da borracha fez com que ficasse também passaram a ser desenvolvidas.
cada vez mais difícil trazer nordestinos para
o corte de seringa, o que por sua vez gerou 7. A BATALHA DA BORRACHA
a necessidade cada vez maior do aprovei- E O 2º CICLO DA BORRACHA 23
tamento dos índios como mão de obra, tor- AMAZÔNICA
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
nando comum a prática dos patrões-serin-
galistas de reunirem grupos dispersos de A eclosão da Segunda Guerra Mundial
diversas etnias para trabalharem em seus em 1939 possibilitou um novo alento a
seringais. Alguns desses patrões notabiliza- economia extrativa da borracha em decor-
ram-se como “amigos” dos índios, a exemplo rência da “batalha da borracha”, quando a
de Angelo Ferreira, famoso “amansador” de Amazônia tornou-se novamente a grande
índios que reuniu muitos Kaxinawá, Jami- fornecedora de “látex” para os países alia-
nawá e Kulina entre outros para trabalhar dos (França, Inglaterra e EUA) em conflito
sob suas ordens. No entanto, a maioria dos com os países do Eixo (Alemanha, Itália e
patrões-seringalistas tratava os índios muito Japão), através da assinatura dos Acordos
pior que aos seringueiros. Como estes não de Washington, em 3 de março de 1942, de-
sabiam ler e poucos entendiam a língua do vido ao fato dos seringais da Malásia terem
branco, eram lesados no peso da borracha, sido tomados pelos japoneses.
no preço da mercadoria, na desvalorização Para evitar a vitória da Alemanha no con-
de seus produtos, no pagamento da renda flito mundial e tentando manter em dia o
anual da estrada de seringa. Dessa forma os seu estoque de borracha, os EUA buscavam
índios acumulavam enormes dívidas com os armazenar 500 mil toneladas de borracha
barracões dos seringais tornando-se “prisio- na tentativa de vencer a guerra. Nesse con-
neiros” dos seus patrões. texto, a borracha era considerada o “nervo
Por outro lado, os pequenos grupos de in- da guerra”. Como parte da “batalha da bor-
dígenas que conseguiram se esconderem no racha”, novas levas de nordestinos foram
centro da mata ou nas cabeceiras, os chama- mobilizadas e transferidas para a Amazônia
dos índios “brabos”, foram caçados sistema- para produzir borracha visando atender o
ticamente para serem “amansados” e desta esforço de guerra.
forma incorporados a sociedade nacional. Importante considerarmos que neste
No entanto, alguns destes grupos conse- contexto o Brasil mantinha acordos de ca-
Sírio-LibaneseseSulistasComoAtoresdaFormaçãodoAcre
Trajetórias Acreanas – Índios, Seringueiros, Ribeirinhos,
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CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
tados órgãos como o DNI (Departamento e social. Transformados compulsoriamente
Nacional de Imigração), SEMTA (Serviço de em seringueiros ficaram a margem de qual-
Mobilização de Trabalhadores para a Ama- quer legislação que os amparasse.
zônia) e CAETA (Comissão Administrativa Esse quadro só começou a passar por mu-
de Encaminhamento de Trabalhadores para danças a partir da instalação da ajudância da
a Amazônia). Isso tudo porque no perío- FUNAI do Acre e sul do Amazonas em 1976,
do de 1920 a 1940 a taxa de crescimento quando o “tempo dos direitos” começou a
demográfico da Amazônia chegou ao “per- ser descortinado para os índios do Acre, ini-
centual irrisório de 0,05%. A população do ciando uma longa e desigual luta pela de-
Pará decresceu 0,01% ao ano, a do Estado marcação das terras legadas por seus ances-
do Amazonas cresceu à taxa de 0,1% ao ano, trais. Importante destacarmos que a partir
enquanto que no antigo território do Acre a dos anos 1970, o jornal “O Varadouro” es-
população decresceu à taxa de 8,8% ao ano, pécie de “Pasquim” acreano denunciava far-
transformando-se numa zona de repulsão tamente os conflitos de terra envolvendo os
demográfica” (VERGOLINO, apud., MARTI- índios, bem como o engajamento de diver-
NELLO, p. 227). sas entidades indigenistas não governamen-
Outros órgãos ligados à mobilização de tais como a Comissão Pró-Indio (CPI-Acre), o
trabalhadores para a Amazônia foram o Conselho Missionário Indigenista (COMIN),
SESP (Serviço Especial de Saúde Pública) e e o Conselho Indigenista Missionário (CIMI),
o SNAPP (Serviço de Navegação do Porto do entre outras envolvidas na causa indígena,
Pará), este último responsável pelo abaste- acrescentando-se a atuação de lideranças
cimento dos seringais acreanos. Importante indígenas que passaram a agir de forma or-
mencionarmos que as condições de viagem ganizada e articulada politicamente.
a que esses nordestinos eram submetidos se Como partes dessas ações foram cria-
caracterizavam pela precária higiena, pés- das as primeiras cooperativas com o intui-
sima alimentação e acomodações terríveis. to de viabilizar a “quebra” do domínio dos
Sírio-LibaneseseSulistasComoAtoresdaFormaçãodoAcre
Trajetórias Acreanas – Índios, Seringueiros, Ribeirinhos,
borracha não iriam para a guerra. Como eu A gente foi morar numas barracas
tinha muita vontade de conhecer a região do tamanho de um quartinho, pois a
amazônica me alistei para vir. Já próximo à maioria dos seringueiros não tinha
minha vinda, fui sorteado para o exército” família e por isso não precisava mo-
(OLIVEIRA, 1980, p. 2-3). rar num lugar grande. Na barraca não
Esse entre tantos outros depoimentos tinha quase nada, só um pote velho
corrobora a contribuição fundamental des- para colocar água, um fogão de lenha,
ses nordestinos tranformados em soldados uma rede, uma espingarda, umas la-
que, fugindo do flagelo das secas, por espíri- tas para guardar alguns mantimentos
to de aventura, ou impelidos por promessas e muitas vezes não tinha nenhuma
mirabolantes e apelos patrióticos foram ali- mesa e nem banco para se sentar. Mi-
ciados pelo Estado brasileiro Varguista. Por nha vida era muito difícil. O homem
sua vez os jornais da época se constituem que nunca cortou seringa nunca tra-
registros históricos através das manchetes balhou na vida dele. (ARAÚJO, depoi-
que exaltavam o patriotismo e à contribui- mento oral, 1977)
ção dos soldados da borracha para o desfe-
cho da guerra em prol dos aliados.
A precariedade das condições em que se
processava o deslocamento do Nordeste ao
Quando se escrever a história desta Acre, o enfrentamento da nova realidade a
grande luta em que se empenham to- ser vivida no seio da floresta, a exploração
dos os povos livres, é preciso reservar de suas forças físicas pelo sistema produtivo
um capítulo especial para a contribui- da borracha são testemunhos de que esses
ção anônima desses trabalhadores ad- nordestinos vieram em busca da riqueza, de
miráveis que não medem sacrifícios e dias melhores, mas o que encontraram foi
pobreza.
Trajetórias Acreanas – Índios, Seringueiros, Ribeirinhos,
Sírio-LibaneseseSulistasComoAtoresdaFormaçãodoAcre
Todavia após o término da Segunda agrícolas, na medida em que a capital acrea-
Guerra Mundial, a saga do nordestino no na tinha se tornado o espetáculo dos desen-
Acre foi a de constituir a “legião dos esque- ganados da falácia do “ouro negro”.
cidos”, tanto do grande capital quanto do
governo brasileiro e só muitos anos depois
é que foram “reconhecidos” como “soldados A cidade ficou cheia de “arigós”, sol-
da borracha” e passaram a ter direito a uma dados da borracha em trágica retira-
aposentadoria de dois salários mínimos. da que estavam abandonados, rotos,
Muito menor, portanto, que a pensão paga doentes com os filhos empazinados.
aos pracinhas da Segunda Guerra, contra- (SANTOS, Carta ao Velho Cintra,
riando o que havia sido prometido durante 1946).
a mobilização.
Sem a borracha do Acre, considerada no
contexto da guerra como uma das melho- E à medida que a crise da economia ex-
res, teria sido bem mais difícil para os paí- trativista da borracha se acentuava os serin-
ses aliados vencerem o conflito mundial. No galistas reivindicavam do governo federal
entanto, em 1946, ao assumir o governo do uma política de valorização da borracha.
Território do Acre, José Guiomard dos San- Nessa direção foram realizadas as conferên-
tos assinala que os: cias nacionais da Borracha, no período de
Diante da crise social vigente, Guiomard 1946 – 50. Entretanto, em que pese às polí-
Santos desapropriou terras do seringal Em- ticas implementadas pelo governo brasileiro
a produção da borracha acreana não mais
voltou aos patamares do período da guerra. 27
Soldados da borracha constituem uma
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
coluna de fracassados cujo processo 8. PAULISTAS NO ACRE E O
de reabilitação está se processando, CICLO DA EXPANSÃO DA
mas que ainda demanda tempo e re- FRONTEIRA AGROPECUÁRIA
cursos. Este governo já se acha em
contato com a Comissão de Amparo Os anos 1970 e 1980 desenharam outro
aos Retornados da Campanha de Bor- contexto para o Acre com a vinda dos “pau-
racha e num trabalho de colaboração listas”. A esse respeito, vale destacar que o
está encaminhando a solução deste uso do léxico: “paulistas” embora venha sen-
problema nacional (SANTOS, 1946, do utilizado largamento para definir gran-
p. 12). des empresários que vieram investir nas
terras acreanas ou transformá-las em mer-
cadoria da especulação fundiária, na verda-
presa criando núcleos coloniais no entorno de se constituíam uma minoria quantitativa,
a Rio Branco. Estes núcleos eram constituí- pois a maioria era composta de colonos e
dos por lotes de terra doados aos trabalha- não de fazendeiros.
dores que deixavam os seringais e deveriam
explorar simultaneamente o extrativismo, a
agricultura familiar e a criação de pequenos Quando os ‘paulistas’ chegaram aqui,
animais. Para tanto os núcleos coloniais pos- isso tudo era mata; não tinha escola,
suíam estruturas de apoio tais como escolas, nem posto de saúde. Esse ramal a
postos de saúde e núcleos mecanizados para gente chama de Ramal dos Paulistas,
o beneficiamento da produção. porque moravam treze famílias que
Dessa forma não só criava alternativa de chegaram aqui, tudo de fora, de São
trabalho para os ex-soldados da borracha, Paulo, do Paraná, de Minas, era gente
como também melhorava o abastecimento de todo lado; um povo branco chega
da cidade no que se referia aos produtos
Sírio-LibaneseseSulistasComoAtoresdaFormaçãodoAcre
Trajetórias Acreanas – Índios, Seringueiros, Ribeirinhos,
Fonte: INCRA/AC In: NASCIMENTO, Francisco José. A colonização direcionada no Acre – os mineiros
no Ramal dos Paranenses, p. 20.
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CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
ria como havia sido proposto. O motivo se 9. SERINGUEIROS,
deu pelo fato do incentivo se limitar ao aces- COLONOS E BRASIVIANOS –
so a terra e não prover condições dignas de CONSEQÜÊNCIAS SOCIAIS DA
vida necessárias através de ações como saú- PECUARIZAÇÃO DO ACRE
de, educação, habitação e produção. Frente
a esses aspectos, IANNI afirma que Muito embora seringueiros e ribeirinhos
acreanos não fizessem uma pressão direta e
aberta, à medida que o excedente de mão de
[...] a colonização dirigida na Amazô- obra ia sendo dispensado das áreas rurais,
nia não se limita a ser uma contra- um contingente de desempregados se for-
reforma agrária nessa região, mas mava nos bairros e no entorno das cidades
adquire o caráter de uma contra-re- acreanas ainda despreparadas para recebê-
forma agrária também no Nordeste, -los. Diante desse fato, o governo do Estado
no sul e em outras regiões. Para não do Acre sentia-se pressionado a viabilizar
distribuir terras, em nenhuma área ou alguma alternativa socioeconômica para re-
região de ‘tensão social’ no mundo ru- solver tal situação.
ral, o Estado foi e continua a ser leva- Frente a esse quadro social, o governador
do a realizar a modesta ‘distribuição’ Geraldo Mesquita7 pleiteou junto ao gover-
ou ‘redistribuição’ de terras devolutas, no federal a desapropriação de áreas para
tribais ou ocupadas em algumas áreas serem destinadas aos pequenos produtores
da Amazônia (IANNI, 1979, p. 103). rurais (acreanos expropriados ou em vias de
expropriação dos seringais e fazendas, bem
como trabalhadores rurais do centro-sul ex-
7 Geraldo Mesquita governou o Acre entre 1975 e 1978 e tentou reverter a política de atração dos “pau-
listas” e venda de terras do Acre empreendida pelo Governador Vanderlei Dantas que o antecedeu.
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número de seringueiros que impediam (em- alguma coisa, algum tipo de traba-
patavam) sem o uso de armas que áreas de lho, borrifação da malária, mas todo
florestas fossem derrubadas. Essas pressões mundo é seringueiro brasileiro, tudo
dos seringueiros se explicam por seu ama- é brasileiro, você conta os bolivianos
durecimento político ao perceber a neces- por esse trecho do Pavilhão, São João
sidade de uma tomada de posição frente à do Caramano, meu tio morou lá e eu
expropriação que sofriam de suas posses. também. Quando era criança fiquei
Outro dado importante elucidado por muito tempo lá na casa dele, ninguém
Maia via boliviano ali não.8
[...] é que após a venda das terras para Por outro lado à luta pela sobrevivên-
os ‘sulistas’ ou ‘paulistas’ aos serin- cia nas cidades acreanas - e nesse aspecto
gueiros só restavam duas alternati- Rio Branco se constituia o maior pólo de
vas: fugirem rapidamente para a pe- atração dos que migravam das zonas ru-
riferia das cidades ou deslocarem-se rais - impelia o ex-serngueiro a trabalhar no
para os seringais bolivianos, que na que aparecesse.
época estavam desocupados e dispu-
nham de boa capacidade produtiva
[...] surge [também] uma terceira al- Eu gostaria de tá catando seringa, né?
ternativa que vai estar ligada direta- Porque é o seguinte, lá dentro do se-
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
de limitação da ascenção social, pois o este- terras ancestrais, configurando a constru-
reótipo formado do seringueiro na cidade é ção de um outro tempo, o dos direitos.
uma imagem que o liga ao analfabetismo, ao Acerca da história dos fazendeiros no
atraso, a pobreza, a indigência e a violência. Acre já existe uma larga produção constru-
Somada a discriminação sobrevem outras ída por historiadores, economistas, geógra-
dificuldades ao ex-seringueiro. Como garantir fos e antropólogos. Portanto, nos interessa
o sustento de sua família? No espaço do serin- no âmbito desta historicidade, e, na pers-
gal, havia outras possibilidades como a caça, pectiva de “olhar” a história a partir dos de
a pesca, uma pequena criação nos arredores baixo, “separar o joio do trigo”, pois se na
da casa, um pequeno roçado. Enquanto que época mais acirrada dos conflitos havia fa-
na cidade se não tem dinheiro, não tem co- zendeiros que queimavam casas, expropria-
mida. Torna-se praticamente inevitável uma vam e matavam pequenos trabalhadores
desestruturação familiar. rurais. Muito atuais pecuaristas passaram
O deslocamento do seringueiro para a ci- a ser vistos com os mesmos olhos com que
dade implicou na formatação de múltiplos eram vistos aqueles responsáveis por tantos
sujeitos, e, embora o termo seringueiro seja estragos e misérias.
utilizado como uma categoria homogênea, É necessário destacar que grandes fa-
fundadora de um esteriótipo cultural pra- zendeiros e trabalhadores rurais tinham
ticamente imutável, de caráter quase gené- propósitos diferentes. Os grandes fazendei-
tico, como sendo seres naturais imbuídos ros vieram em função dos incentivos fiscais
de identidade particular, o ser seringueiro é oferecidos pelo governo federal que naquela
caracterizado pela mobilidade, flexibilidade oportunidade promovia o Plano de Desen-
e porosidade. volvimento da Amazônia, liberando impos-
9 SILVA, Antônio Pedro da: depoimento. In: MAIA, Op. Cit. p. 27.
Sírio-LibaneseseSulistasComoAtoresdaFormaçãodoAcre
Trajetórias Acreanas – Índios, Seringueiros, Ribeirinhos,
10 CARVALHO, Angelina Pereira. (migrante de Minas Gerais): depoimento. In: MAIA. Op. Cit. p. 39-40.
Trajetórias Acreanas – Índios, Seringueiros, Ribeirinhos,
Sírio-LibaneseseSulistasComoAtoresdaFormaçãodoAcre
lho, a precariedade da vida, o descaso para A fronteira do próprio homem, isto é,
firmar-se na nova terra tiveram que expe- vencer suas próprias dificuldades de con-
rienciar a solidariedade do trabalhador vencimento dos familiares em abandonar
acreano, o rompimento com alguns dos um ambiente já construído, do trocar o cer-
seus preconceitos, a liberdade de traba- to pelo incerto, do fazer tudo de novo e do
lhar em uma terra própria, a possibilidade refazer-se, na verdade é que constituíram
de criar os filhos longe dos riscos do meio obstáculos ao deslocamento, haja vista que
urbano e enfim poder continuar sonhando. as paisagens em si não eram totalmente des-
Nesse processo como trabalhadores rurais conhecidas. A violência externa dos agentes
esses migrantes construíram novos mo- que provocaram os deslocamentos perma-
dos de vida, construindo e reconstruindo necia viva em suas mentes. O tormento para
suas identidades, além de influenciarem esses indivíduos, invisíveis para as elites, era
na construção e reconstrução das identi- atemporal, não espacial, e os seguia mesmo
dades do trabalhador rural acreano. quando estavam no outro lado.
Merece destaque acentuarmos que para Dessa forma, a fronteira que os impedia
os seringueiros que migraram para a Bolí- de deslocar-se não era a fronteira geográfi-
via para continuarem sendo seringueiros, ca, mas, sim, outras fronteiras, dentre elas a
apesar dos conflitos existentes quando da socioeconômica, a política e, principalmente,
conformação dos limites do Acre com o a sociocultural. São elas que impõem as ne-
Peru e a Bolívia, o atravessar a fronteira cessidades de vencer, cotidianamente, suas
de um lado para outro foi uma experiência próprias fronteiras. São lutas incessantes.
histórica nos municípios vizinhos às fron-
teiras do Brasil com os países andinos, que 10. RIOS, RIBEIRINHOS E 33
marcou suas vidas. REGATÕES
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
No entanto, há que se ressaltar diferen-
ças étnicas, culturais, linguísticas e, às ve- Reconstituir trajetórias implica também
zes, religiosas. Quando se sai de um país assinalar que os rios na Amazônia consti-
para outro, se experimenta também uma tuem os caminhos de água e no processo de
mudança no sistema de poder, no sistema ocupação econômica do território acreano
monetário e até de preços. No entanto, no se tornaram as vias de penetração dos que
espaço fronteiriço entre o Estado do Acre dirigiam a região desde a segunda metade
e o Departamento de Pando (Bolívia), as do século XIX e foram nas suas margens
condições de isolamento e o distanciamen- que os seringueiros foram sendo instalados
to das populações bolivianas eram tão evi- e, posteriormente, a maioria das sedes dos
dentes, que esses sintomas não se fizeram municípios também foram criadas.
sentir com intensidade para os chamados Além disso, os rios do Acre mais do que
de “brasivianos”. acidentes geográficos que marcam a geo-
Em cada etapa desse deslocamento, grafia da região, desenvolveram ao longo do
os membros da família, os compadres, os processo histórico acreano papéis os mais
antigos vizinhos já chegados acolhiam os diversos: elo de ligação com o mundo exte-
que vinham depois e serão acolhidos mais rior, espaço de lazer e de convivência social
adiante pelos que se foram antes. A estru- e cultural, meio de subsistência de atores
tura social de referência dessas popula- sociais distintos que do rio retiram o neces-
ções de fronteira não é o local visível. Ela sário para sua sobrevivência.
se espalha num amplo território, num raio No passado a figura dos regatões, verda-
de centenas de quilômetros, e é uma espé- deiros “mascates” das águas se fazia sentir
cie de estrutura migrante, uma estrutura como aqueles que aportavam às margens
social mediada pela migração e pela ocu- dos seringais abastecendo os seus morado-
pação temporária, ainda que duradoura, res de produtos os mais diversos inclusive
de pontos do espaço percorrido. das miudezas, destacando-se dentre esses
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LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
Foi o período em que a participação polí- sibilitava a nossa vida.11
tica dos árabes e seus descendentes aumen-
tou consideravelmente. Logo alguns dos
representantes da colônia alcançavam posi- Importante considerarmos que o vai
ções políticas destacadas. Entre os diversos e vem das águas ou o tempo das chuvas e
deputados de ascendência árabe, a história da estiagem caracterizava uma concepção
acreana registrou também a presença de se- peculiar de tempo, o tempo da natureza, o
nadores e governadores do Estado do Acre. qual interferia tanto na dinâmica econômica
Os imigrantes sírio-libaneses e seus des- quanto no cotidiano e nas práticas culturais
cendentes obtiveram completo sucesso ao dos acreanos. A noção de territorialidade, o
vencer a opinião corrente que um dia os sentimento de pertencimento e a constru-
considerou marginais. Neste aspecto pesa- ção da própria identidade ligavam-se ao rio.
va também o fato de que, com o passar do “Nasci no Juruá”, “Fui feliz no Envira”. “Me
tempo, houve uma gradativa miscigenação casei no Abunã”.
com a população local, proporcionando uma
descendência de legítimos “filhos da terra”.
Como acreanos natos os filhos da colônia Meu avô, Domingos Assmar, natural-
árabe estavam em igualdade de condições mente Abdala Assmar, ele chegou no
com os filhos de outros imigrantes nacionais Acre nas águas de um, permaneceu
ou estrangeiros. Porém, o bem estar econô- até as águas de quatro. Eu lhe digo
mico alcançado por muitos sírio-libaneses águas porque eles chegavam no fim
proporcionou uma educação de boa quali- do ano e sem precisar muito a data e
dade para seus filhos. Estes eram mandados
11 ISPER, Alegria: depoimento [12 de julho de 1996]. Entrevistadora: Maria José Bezerra. Rio Branco – Ac.
Sírio-LibaneseseSulistasComoAtoresdaFormaçãodoAcre
Trajetórias Acreanas – Índios, Seringueiros, Ribeirinhos,
12 ASSMAR, Emílio: depoimento [12 de julho de 1996]. Entrevistadora: Maria José Bezerra. Rio Branco – Ac
Trajetórias Acreanas – Índios, Seringueiros, Ribeirinhos,
Sírio-LibaneseseSulistasComoAtoresdaFormaçãodoAcre
de vida que historicamente vêm constituindo O reconhecimento das territorialidades
numa relação tensa e conflituosa de uns com e identidades desse atores sociais e a com-
os outros e de todos com a natureza. Portan- preensão de suas diferenças histórico-cul-
to, as trajetórias históricas e culturais expe- turais constituem os elementos fundantes
rienciadas por tão diferentes atores sociais da concepção de um zoneamento ecológico
ao longo da formação da sociedade acreana, econômico do Acre enquanto instrumento
revelam a criação de uma sociedade multi- de um modelo de desenvolvimento, cen-
facetada que, mais do que uma síntese das trado na perspectiva da sustentabilidade,
diferenças, realiza e atualiza a noção de uma gestado a partir de sua própria história e
identidade regional a partir de sua interação. configuração social.
37
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
Livro Temático | Volume 4
Cultural Político:
Memórias, Identidades
e Territorialidades
2
Capítulo
Identidades, Territórios, Territorialidades e as
Relações de Poder no Acre
Identidades, Territórios,
Territorialidades e as
Identidades, Territórios, Territorialidades e as
40
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
LIVRO TEMÁTICO 4
1. INTRODUÇÃO
O
objetivo deste texto será o de fa- Neste sentido, a intenção deste texto re-
zer uma breve discussão acerca flete a idéia de que a construção do Acre
de como os diversos territórios consiste em afirmar também a sua invenção
do Estado do Acre foram cons- pelos atores que se consolidaram nessas
truídos a partir dos atores neles envolvi- terras. Para alguns deles, as fronteiras já
dos. Para isso, levaremos em consideração estão bastante definidas. Par outr o s, elas
a discussão acerca das identidades que são imaginárias, prevalecendo relações
permearam os mesmos, assim como os dis- culturais existentes.
cursos que eles tiveram para legitimar as Para isso, trataremos muito rapidamente
unidades territoriais construídas. de algumas categorias: territórios e territo-
O espaço acreano e os lugares sempre rialidades seringueira tais como seringais,
foram “barganhados”, seja através de inter- Reservas Extrativistas, Áreas de Relevante
venções diretas, ou mesmo através de jus- Interesse Ecológico; Projetos de Assenta-
tificativas constantes sobre suas ocupações. mento, Ribeirinhos e Terras Indígenas.
As diversas ocupações dos territórios,
em muitos casos, foram provocadas por um 2. ACRE: NOVOS TERRITÓRIOS E
conjunto de interesses de grupos sociais. TERRITORIALIDADES
Neste caso, a afirmação de um grupo sobre
um lugar refletiu a negação de outros em Território3 pode ser definido como uma
vários momentos da história acreana, tama- área construída por um ou mais indivíduos.
nho os jogos de tensões existentes. Ele torna-se uma consequência do espaço,
1 Mestre em Antropologia Social | Prefeitura Municipal de Rio Branco
2 Doutor em Solos e Nutrição de Plantas | Consultor ZEE
3 Derivado do latim terra e torium que significa terra que pertence a alguém.
uma vez que é uma apropriação humana.
Nesta apropriação existem jogos de interes- de a afirmação econômica, do modo
ses, aspirações que demarcam as diferenças de vida (de produção e de subsistên-
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
Neste caso, a tendência da maioria dos estabelecido através das relações provoca
territórios é o de serem regulados, seja pelo mudanças significativas nas posturas dos
uso de seus recursos ou pela jurisdição dos sujeitos. De acordo com o autor,
mesmos, o que permite afirmar a existência
de atores reguladores, sendo o principal de-
les o Estado (Federal, Estadual e/ ou Muni- a territorialidade assume um bem
cipal). particular, pois reflete o multidimen-
O conflito dos atores sobre o domínio de sionamento do ‘vivido’ territorial pe-
territórios não faz com que o território de- los membros de uma coletividade,
sapareça. É justamente através das tensões pela sociedade em geral. Os homens
que novos territórios aparecem e produzem, vivem ao mesmo tempo o processo
inclusive, novos significados. territorial e o produto territorial por
Com relação a território, a opinião mais intermédio de um sistema de relações
oportuna para este trabalho provém de existenciais e/ ou produtivas (RAS-
Rego. Para ele o território corresponde a FETTIN, 1980, p. 158).
forma subjetiva, cria uma consciência as quais a étnica, campo clássico da Antro-
de confraternização entre elas (AN- pologia que para Oliveira (1976) consti-
DRADE, 1995). tui uma das discussões mais importantes
da alteridade.
Para o autor, a identidade étnica reflete
Para Oliveira (1999), a idéia de territo- inicialmente o debate de “grupo étnico” ex-
rialidade remete sempre a um processo de posto por Fredrick Barth (1969)5. Segundo
reorganização social na qual pode existir a este teórico um grupo étnico,
criação de novas unidades socioculturais, a
constituição de mecanismos políticos, o con- a Perpetua-se principalmente por
trole social sobre os recursos naturais e a meios biológicos;
42 re-elaboração da cultura4. a Compartilha valores culturais fundamen-
A territorialidade envolve ao mesmo tais, postos em prática em formas cultu-
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
LIVRO TEMÁTICO 4
4 A discussão efetuada por João Pacheco de Oliveira é oriunda das reflexões sobre etnicidade dos
Povos Indígenas. Porém, a sua abordagem permite ampliar o debate para outras categorias.
5 BARTH, Fredrick (org). Ethnic Groups and Boundaries: the social organization of culture difference.
Boston: Little Brown & Co., 1969.
os índios. O olhar etnocêntrico dos primei- dade produtora na qual a principal ativida-
ros fomentou um grande genocídio, já ca- de econômica consistia na extração do látex
racterizado nas páginas da história acreana. (ARAÚJO, 2000).
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
Sudeste, tampouco os seringais que agre-
gam grande parte de nordestinos, permitiu Falamos anteriormente que um dos
outros atores no processo de extração do lá- grandes impactos da instalação da unidade
tex. Da mesma forma, as cidades que podem, territorial foi o processo de dizimação indí-
de certa maneira, sintetizar o grande mosai- gena durante o período áureo da borracha
co de identidades das unidades territoriais (1887–1912) ou para a subordinação des-
do Acre6. tes ao seringal após 1912, quando a pro-
Frisamos a necessidade de observação na dução de borracha da Amazônia começou a
maneira como as unidades foram constituí- entrar em declínio devido a forte concorrên-
das, assim como a forma pela qual os atores cia com os seringais de cultivo do Ceilão e
fizeram a intervenção no processo de conso- da Malásia.
lidação dos territórios. Além disso, é preciso Grandes contingentes de homens vieram
refletir sobre as “redes” estabelecidas por para o Acre devido a fatores como a seca,
esses atores no processo de afirmação dos forte propaganda ideológica e pela estraté-
territórios construídos. gia internacional para a obtenção de mão
– de – obra barata. Estes homens tinham
O Seringal como Estratégia de Domina- pela frente o desafio de se “adaptarem” a um
ção Fundante novo tipo de paisagem natural e “humana” e
foram usados com o propósito de modificar
No Zoneamento Ecológico – Econômico a paisagem, antes ocupada apenas pelas ma-
(fase I), definimos o seringal como uma uni- locas indígenas floresta adentro.
6 Há um notável avanço com relação a este debate no Zoneamento Econômico, Ambiental, Social e Cultural
do Município de Rio Branco no sentido de que se fez necessário observar as paisagens culturais existen-
tes na capital acreana. Observar a paisagem na visão dos técnicos implica também em verificar quais os
atores que fazem parte desta paisagem, como fazem o uso do território, quais as características culturais,
valores, crenças e quais os obstáculos e perspectivas futuras para lidar com o território.
A corrida pelo “ouro branco” produziu o nativo considerado como um ser inferior
essas transformações nos povos nativos ao civilizado e portanto inculto (CASTELO
modificando as suas organizações sociais, BRANCO, s/d).
Identidades, Territórios, Territorialidades e as
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
vida. É um movimento pela constru- por seringueiros, valendo-lhe o ódio
ção de um futuro sustentável. (...) é a dos fazendeiros. Foi o que ocorreu
atualização de identidades no mundo nas áreas pretendidas por Darli Alves
da complexidade ambiental em uma (CUT, 1989, p. 15).
bifurcação de sendas no devir históri-
co traçados pelos movimentos sociais
pela reapropriação da natureza (GON- Foram então criadas as Reservas Extrati-
ÇALVES, 2003, p. 08). vistas, considerada por muitos como a Refor-
ma Agrária dos seringueiros. Este reconheci-
mento de áreas tradicionalmente ocupadas
As tensões sociais de meados de 70 fize- por eles só foi possível através de intenso for-
ram com que trabalhadores rurais do Acre se talecimento político tais como a formação do
organizassem na defesa de seus interesses9. Conselho Nacional de Seringueiros e da alian-
Os grupos organizados instituíram o 1º ça dos povos da floresta. A criação das RESEX
Sindicato para lutar pelos seus interesses: o foi uma das formas de resistência à pressão
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasi- provocada pelo processo de pecuarização
léia, no ano de 1976. Em seguida, no ano de no Acre.
1977 foi criado o de Xapuri. Foram desses Com relação aos Projetos de Assentamento
sindicatos que saíram líderes como Wilson Pi- Extrativistas, estes tiveram como idéia inicial
nheiro e Chico Mendes. estabelecer uma espécie de assentamento di-
Parte da história do movimento ecológico ferente dos modelos convencionais da década
é proveniente da histórica luta dos seringuei- de 70. Pessoas que tinham perfil extrativista
ros no Acre, especialmente no Alto Acre, isto passaram a ocupar determinadas áreas10.
9 Para maiores esclarecimentos, favor verificar os textos “Breve Histórico de Ocupação Territorial do
Acre” (ZEE/ AC – fase I) e “Trajetórias Acreanas” (ZEE/ AC – fase II).
10 Observou-se, porém, que nem todas tinham esse perfil, modificando as relações de uso do território.
A idéia central era a de criar condições fundiária, o que provocou novas formas de
sustentáveis no intuito de que as popula- apropriação e uso do território.
ções tradicionais pudessem explorar de Os equívocos relacionados a implanta-
Identidades, Territórios, Territorialidades e as
11 Portaria INCRA/ P/ Nº 268 DE 23/10/1996 que instituiu os Projetos de Assentamentos Agro – Ex-
trativistas.
12 Especialmente os Projetos de Colonização (PC) e os tradicionais Projetos de Assentamentos (PA).
apenas ao Acre, foram além de suas frontei-
gridade de seu modo de vida próprio, ras. Neste caminho, Michael Taussig (1993)
sua identidade, seu ambiente natural apontou que esta prática era recorrente em
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
para as cidades, abrir estradas de seringa,
roçados e dentre tantas outras atividades
ainda foram fortemente discriminados, sen- nando – o sempre a conquista13.
do chamados de caboclos. Desarticulados, Entretanto, houveram alguns focos de re-
acabaram sendo ludibriados pelos seringa- sistência pelos indígenas. Neste sentido:
listas que tiravam proveitos destes através Lembramos que as frentes de expansão
da renda da borracha. Entretanto, o princi- se convertiam em duas. A primeira, cauchei-
pal impacto estava na proibição de práticas ra, não gerou nenhum movimento social e
cerimoniais e ritualísticas, além da desarti- era avassaladora no processo de desarti-
culação da organização social (AQUINO & culação e destruição indígena. Todavia, em
IGLESIAS, 1994). oposição ao “nomadismo” da frente cauchei-
Esta concepção também é aceita por ra estava o “sedentarismo” dos seringais.
Neves (2002) que expôs que nem o fim Esta atividade mudou o cenário do processo
do primeiro surto da borracha diminuiu a de ocupação indígena na região. Ela se tor-
pressão a esses grupos que já estavam en- na a conquista da ocupação, metáfora que
fraquecidos e desarticulados politicamente. serve para destacar as mudanças culturais
Os seringais, espalhados ao longo dos rios desenfreadas promovidas pelo contato e
tornaram-se unidades de dominação sobre
as aldeias que contaram com algumas estra-
tégias, dentre elas as correrias. Ao serem incorporados nos seringais,
Correrias eram espécies de expedições as populações indígenas foram obri-
com o intuito de escravizar ou mesmo dizi- gadas a abandonar seus tradicionais
mar os indígenas do território acreano. No padrões de moradia e de organização
entanto, essas práticas não se restringiram
13 As palavras “reducir” e “rescatar” tinham o mesmo sentido da palavra inglesa conquista (TAUSSIG,
1993, p. 46).
política. Deixaram as aldeias e cupi- Acre, mais de 36 grupos desaparece-
chauas, que abrigavam grupos fami- ram (CALIXTO, et al.).
Identidades, Territórios, Territorialidades e as
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
Este é o caso também de outras catego- Naturais (IBAMA), uma vez que as famílias
rias espalhadas Brasil a fora como as terras residem no norte do Parque Nacional da
de quilombo, “babaçuais livres”, “castanhais Serra do Divisor.
do povo”, dentre tantas outras que poderiam
aqui ser mencionadas. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Identificar, reconhecer ou regulamentar
Terra Indígena no Acre implica na incorpo- Este texto refletiu apenas alguns exem-
ração definitiva de populações étnicas ditas plos de territórios e territorialidades exis-
“tradicionais” no estado – nação. Este pro- tentes no Acre. Evidentemente o debate é
cesso de incorporação é tipicamente territo- ainda maior se levarmos em consideração
rial (OLIVEIRA, 1999). as demais categorias existentes.
As 34 Terras Indígenas existentes no Neste sentido, exemplificamos o caso
Acre possibilitou algumas estratégias de in- das cidades acreanas que foram alvo de es-
tervenção interessantes: a) o “fechamento” tudo no Zoneamento Ecológico – Econômi-
do corredor ecológico do oeste da Amazônia co em sua segunda fase. Ainda assim resta
(juntamente com a Estação Ecológica do Rio orientar que o aprofundamento deste estu-
Acre, Reserva Extrativista Chico Mendes, do seja feito em escalas mais amplas pelos
Parque Estadual do Chandless e Parque Na- Zoneamentos municipais ou Ordenamentos
cional da Serra do Divisor), b) continuidade do Território.
de sobrevivência de povos indígenas e c) re- A ampliação desta discussão sobre os
vitalização de alguns destes como foi o caso territórios deve ser incorporada aos ins-
dos Nawa e Contanawa na região do Juruá. trumentos de planejamento dos municí-
A formação das Terras Indígenas consti- pios. Esta recomendação leva em conta a
tui uma legitimação central para a identidade possibilidade de planejamento mais eficaz
14 Para Oliveira (1999), este fenômeno étnico levou a revitalização de várias identidades emergentes,
não somente o caso de índios mas também de quilombos e outras unidades territoriais.
nas unidades territoriais e também respeito existentes em um território pode variar
pelas diversidades culturais nela existentes. mediante a posição de outro (s). Logo, é
Novamente, a definição de território não fundamental que os discursos sejam leva-
Identidades, Territórios, Territorialidades e as
deve estar vinculada somente ao espaço físico, dos em consideração no momento de pla-
mas também a forma como este espaço é cons- nejamento e implementação de ações de
truído e experienciado pelos seus moradores. Políticas Públicas.
Portanto, as intervenções devem levar Finalmente, cabe ressaltar a necessi-
em consideração não apenas os aspectos dade de análise de outros territórios de
físicos e bióticos, mas também as relações caráter mais regional e com forte conota-
simbólicas que se estabelecem em cada um ção política, destacando-se os Consórcios
desses territórios. de Território, as Zonas de Atendimento
Relações de Poder no Acre
50
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
LIVRO TEMÁTICO 4
Livro Temático | Volume 4
Cultural Político:
Memórias, Identidades
e Territorialidades
3
Capítulo
Patrimônio Histórico e Paisagístico do
Estado do Acre
Patrimônio Histórico e
Paisagístico do
Patrimônio Histórico e Paisagístico do
Estado do Acre
66
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
LIVRO TEMÁTICO 4
1. INTRODUÇÃO
O
Zoneamento Ecológico-Econômico te, o Departamento do Patrimônio Histórico e
do Estado do Acre – ZEE, amplia Cultural do Estado do Acre - FEM.
sua esfera de análise na questão
da gestão territorial e aplicação de a Art. 1º - Constitui e integra o Patrimônio
recursos naturais nesta segunda fase, no que Histórico e Cultural do Estado do Acre
diz respeito à utilização e conseqüente pro- todo o conjunto de bens móveis e imó-
teção do patrimônio histórico e cultural do veis, materiais e imateriais existentes no
Acre. âmbito de seu território, cujo conteúdo
Qual seria o patrimônio histórico/cultural e significado se encontram vinculados à
e natural do Acre? Quais seriam os bens reco- formação da consciência histórica, social
nhecidos como patrimônio do povo acreano, e cultural da população acreana.
na sua multiplicidade. Seja pela sua relação
com a história de ocupação mais remota, a Art. 2º - Fazem parte do Patrimônio His-
através dos sítios arqueológicos (por exem- tórico e Cultural do Acre os bens tidos e
plo), seja pela sua história política, pelos caracterizados como históricos, arque-
conflitos nos seringais, ou por tantos outros ológicos, paleontológicos, etnográficos,
recortes que, de alguma forma, nos ajudam a lingüísticos, videográficos e audiofônicos
compreender a diversidade cultural do Acre? que foram e são relevantes para o desen-
A Lei nº. 1.2942 especificou o interesse volvimento sociocultural e para a conti-
público a ser protegido pelo órgão competen- nuidade da identidade regional acreana.
1 Historiador | IPHAN
2 ACRE. Lei n.º.294 de 08 de setembro de 1999. “Institui o Conselho e cria o Fundo de Pesquisa e
Preservação do Patrimônio Histórico Cultural do Estado do Acre e dá outras providências”. Diário
Oficial [do] Estado do Acre, Rio Branco, AC, 10 set. 1999. N. 7.609, p. 01-05.
O trecho acima define como patrimônio cia presente, intrínseca para aqueles que se
do Estado uma série de bens, hábitos, usos apropriam dele.
e costumes, crenças e formas de vida coti- As conclusões deste trabalho, organiza-
diana, além de edificações, monumentos e das na forma de indicativos, seguem as di-
obras de arte de todos os segmentos que retrizes que norteiam o documento do ZEE,
compuseram e compõem a sociedade, como buscando a promoção sustentável do patri-
Estado do Acre
cia para a comunidade do entorno e por este Do homem à mercadoria, ao alimento,
motivo foi objeto de políticas de salvaguar- às esperanças, às notícias de um mun-
da e promoção. do longe que reclamava muita bor-
Através deste relatório preliminar ten- racha. Esses rios, absolutos, levavam
taremos localizar, caracterizar e qualificar, borracha colhida nos barrancos. Bor-
parte deste patrimônio histórico e paisagís- racha esperada em Manaus e Belém
tico3 do Acre. Obviamente não se pretende, que entulhava os porões dos gaiolas.
aqui, concluir o inventário deste patrimô- (LEANDRO TOCANTINS – Formação 67
nio, por tratar-se de uma multiplicidade Histórica do Acre).
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
de referências onde, quase sempre, o valor
regional se sobrepõe a qualquer outro, não
devendo, desta forma, ser identificada sem Na década de 70 o Estado do Acre soli-
a participação das comunidades e/ou muni- citou ao Serviço do Patrimônio Histórico e
cípios que formam o Estado do Acre. Artístico Nacional (atual IPHAN), o tomba-
Junto aos acervos do Departamento do mento de duas referências históricas para
Patrimônio Histórico e Cultural da Fundação os acreanos: a vila de Porto Acre, palco de
de Cultura e Comunicação Elias Mansour inúmeras batalhas durante a chamada Re-
(FEM) – bem como de outras secretarias volução Acreana, e a Casa Branca, suposta
de Estado –, e do Laboratório de Pesquisas intendência boliviana em Xapuri tomada
Paleontológicas da UFAC4 , foram coletadas por Plácido de Castro em 06 de agosto de
informações que possibilitaram não só ma- 1903.
pear o trabalho realizado até então, mas, A solicitação foi rejeitada, pois aqueles
principalmente, dialogar com este trabalho bens não seguiam o padrão adotado até en-
no sentido da promoção deste patrimônio. tão. Até aquele momento os bens tombados
O registro deste patrimônio, seja ele como patrimônio histórico nacional, traça-
de natureza material ou imaterial, contri- vam um perfil do Brasil barroco, rico, cató-
bui para a sua apropriação pela sociedade. lico, europeu (patrimônio em pedra e cal),
Quando a comunidade utiliza-se do bem, com fraca presença índia ou negra ou dos
ele deixa de ser uma referência apenas do demais povos que contribuíram e ainda con-
passado, tornando-se também uma referên- tribuem para a formação da cultura nacional.
3 Patrimônio Paisagístico estará se referindo, ao longo de todo o texto, aos sítios e paisagens que
importe conservar e proteger pela feição notável com que tenha sido dotados pela natureza ou agen-
ciados pela indústria humana.
4 UFAC: Universidade Federal do Acre.
Como resultado o sítio histórico de Porto salão de jogos, sala de conferências e pis-
Acre foi completamente descaracterizado. cina natural. Toda essa infraestrutura foi
Embora ainda guarde vestígios que reme- pensada para agregar valor e garantir a
tem aos conflitos entre Brasil e Bolívia pela preservação do sítio, como também quali-
posse do território, como o Sítio Histórico ficar as informações ao longo das trilhas
e Ambiental do Seringal Bom Destino5 e o que levam aos vestígios do antigo seringal.
Patrimônio Histórico e Paisagístico do
5 Recentemente revitalizado pelo Governo do Estado do Acre em parceria com o IPHAN, e a Sala Me-
mória, que guarda um acervo repleto de objetos centenários. Em Novembro de 2005 o seringal foi
tombado como patrimônio histórico do Acre.
6 Segundo Marcos Vinícius Neves (chefe do Departamento do Patrimônio Histórico do Estado entre
1999 e 2004), a intendência deveria estar situada abaixo da confluência entre os rios Xapuri e Acre,
a Casa Branca teria sido construída na década de 20, para abrigar um hotel. Esta informação teria
sido obtida a partir de entrevistas com antigos moradores daquela cidade.
7 A principal fonte de pesquisa para a construção dos itens 1 e 1.1, foi o processo de tombamento
realizado pelo Departamento do Patrimônio Histórico do Estado do Acre;
8 Tratado de Petrópolis: 17 de novembro de 1903.
Transformada em fazenda na década de No início dos trabalhos, a vegetação
70, a antiga sede do seringal – voltada para cerrada escondia inúmeros vestígios e di-
o rio – foi abandonada em detrimento de ficultava o acesso, mesmo àqueles que po-
uma outra, agora de frente para a estrada diam ser percebidos, ainda que à distância,
de asfalto, a BR-364. O rio já não era o prin- pelos visitantes. De todas as edificações do
cipal meio de comunicação entre aquelas antigo seringal apenas o pequeno chalé,
Estado do Acre
constatou o seu abandono. Começava, ain- completo abandono.
da que de forma tímida, o mapeamento dos Através de outros projetos, junto ao
vestígios que compunham a antiga sede do BNDS e com recursos próprios, outros
seringal.9 vestígios foram recuperados pelo governo
Em agosto de 1997 o jornal A Gazeta pu- do Estado. Pontes, chalés, trincheira, den-
blicou uma extensa matéria sobre o serin- tre outros vestígios, foram recuperados
gal Bom Destino. Falava da sua importância e agora fazem parte do Sítio histórico e
para a compreensão da história acreana. Ambiental de Bom Destino, tombado como 69
O seringal que havia sido escolhido como patrimônio histórico no fim de 2005. A
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
quartel-general dos brasileiros, durante a pesquisa feita sobre o seringal e sobre al-
Revolução Acreana, enfim, tombara. O des- guns personagens que transitaram naque-
caso do poder público e do proprietário da le espaço, teve a participação de antigos
atual fazenda Bom destino, havia posto abai- moradores do seringal e do entorno.
xo todos os vestígios de uma história ainda A experiência desenvolvida no seringal
a ser contada. Bom Destino abriu precedentes para ou-
A denúncia causou forte impacto na opi- tras ações na área de patrimônio histórico
nião pública. O Ministério Público Estadual e cultural. O Palácio Rio Branco, o Museu
exigiu uma posição do governo do Estado. da Borracha, ambos localizados no municí-
Somente em 1999, o Departamento do Pa- pio de Rio Branco, a própria Sala Memória
trimônio Histórico e Cultural – FEM come- de Porto Acre, o Teatro Municipal de Ta-
ça a mapear todo o conjunto de vestígios rauacá (AC), o Colégio Santa Juliana, onde
e ruínas presentes, não só na área da sede ali também fundaram um museu, o pri-
do Seringal Bom Destino, como também em meiro de Sena Madureira (AC) e o Museu
outros seringais e colocações do entorno: Cidade do Xapuri, passaram a constituir
Telheiro, São Jerônimo e Caquetá (percurso um conjunto de edificações que remetem
feito pelo antigo varadouro que ligava esses à memória acreana.
seringais durante a Revolução). Concomi- Embora haja um ambiente favorável à
tantes a este inventário foram iniciadas as preservação destes, e de outros patrimô-
obras de revitalização do antigo chalé de nios culturais, é recomendável o tomba-
Joaquim Victor, financiada com recursos mento, seja estadual, municipal ou fede-
oriundos do Instituto do Patrimônio Histó- ral, como forma eficaz na preservação e na
rico e Artístico Nacional (IPHAN). promoção do patrimônio local.
9 O registro fotográfico feito à época, se constituiu numa das principais fontes que permitiram a re-
constituição do Chalé de Joaquin Victor.
3. 2. Patrimônio Nacional tiva Tentamen, o Cine Teatro Recreio, entre
outros, mas foram atos administrativos dis-
A casa de Chico Mendes, no município de persos, o que tornou muito difícil o levanta-
Xapuri, é um bom exemplo de patrimônio a mento preciso destes bens.
ser preservado pela sociedade. Não somente Embora se tratando do patrimônio
pela história da qual ela foi palco - a mor- histórico e cultural do Estado do Acre,
Patrimônio Histórico e Paisagístico do
te do líder seringueiro Chico Mendes - mas, vale ressaltar que, uma das principais
sobretudo, porque nela a sociedade acreana ferramentas para a promoção da prote-
viu refletida toda a sua história. ção do patrimônio histórico é, sem dúvi-
Transformada em museu logo após a da, o Decreto-Lei nº. 25/37, que demons-
morte de Chico, a Casa é administrada pela tra, ainda em 1937, a preocupação pela
Fundação Chico Mendes, com o apoio do preservação dos testemunhos da nossa
Governo do Estado do Acre, que já realizou história e que especificou o interesse pú-
alguns restauros em sua estrutura, para que blico a ser protegido pelos órgãos com-
fosse mantida a integridade física da casa. petentes (IPHAN, governos estaduais,
Estado do Acre
10 Colocações: Região do seringal onde o seringueiro morava; correspondia a uma pequena casa e
algumas estradas de seringa trabalhadas pelo seringueiro.
Quadro 1. Bens tombados por Decreto pelo Governo do Estado.
Patrimônio Decreto n° Data Município
Palácio Rio Branco e entorno 608 11/05/1999 Rio Branco
Além dos bens já tombados por Decreto, Bom Destino, transformado num grande
Estado do Acre
a Fundação de Cultura e Comunicação do museu, o Teatro Municipal de Tarauacá, o
Estado do Acre, através do Departamento Palácio Rio Branco, a Rua do Comércio de
de Patrimônio Histórico, abriu diversos pro- Xapuri, entre outros, foram revitalizados
cessos de tombamento junto ao Conselho do pela ação do Estado.
Patrimônio. Estes processos encontram-se Os sítios históricos do Primeiro e do Se-
em fase de instrução11: gundo Distrito da capital do Estado, estão
sendo, aos poucos, recuperados. Na Rua
1. Sítio Histórico do Primeiro Distrito de Eduardo Assmar, antigo centro comercial 71
Rio Branco – Processo nº. 003/2000 de Rio Branco, os estabelecimentos comer-
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
(Portaria 003 – 04 de julho de 2000); ciais tiveram suas fachadas recuperadas,
2. Sítio Histórico do Segundo Distrito de Rio a encosta do rio foi contida13 , o prédio da
Branco – Processo nº. 004/2000 (Porta- antiga Sociedade Recreativa Tentamen foi
ria 004 – 04 de julho de 2000); recuperado e o local, hoje, é um dos prin-
3. O Casarão (Rio Branco) – Processo nº. cipais pontos de encontro e realização de
005/2000; festas populares, tais como carnaval, festas
4. Sítio Histórico da Rua do Comércio de juninas e bailes14.
Xapuri – Processo nº. 006/2001 (Porta- Percebemos, desta forma, que uma das
ria 005 – 19 de novembro de 2001); principais questões é a promoção de di-
5. Teatro Municipal de Tarauacá – Processo ferentes alternativas de desenvolvimento
nº. 002/200112 (Portaria 006 – 19 de dentro do espaço regional, com o objetivo
novembro de 2001); final da valorização humana e social, com-
6. Palácio da Justiça - Rio Branco (Portaria preendendo a diversidade como um dos
008/2002). principais elementos para a compreensão
da cultura acreana.
Todos estes bens tombados, ou em pro- Estamos presenciando no Acre uma pre-
cesso de tombamento, já sofreram alguma ocupação em identificar nossa pluralidade
intervenção do Estado. Além do seringal cultural e social, e os inventários realizados
11 O Seringal Bom Destino e o Palácio Rio Branco tiveram seus respectivos processos concluídos e com
parecer favorável para tombamento pelo Conselho do Patrimônio Histórico, ainda no final de 2005;
12 Houve um erro na publicação da Portaria, o número do processo era para ser 007/2001.
13 O desbarrancamento ameaçava derrubar todos os imóveis desta rua.
14 Embora tenhamos citado as obras de arte, as celebrações religiosas, os modos de fazer, os ofícios,
entre outros patrimônios culturais, não vamos detalhar estes recortes por falta de inventários que
abrangessem esses temas. Embora já se tenha desenvolvido diversas ações no âmbito dos bens de
natureza imaterial (registros que resultaram diversas exposições e algumas publicações), sugerimos
que estes aspectos sejam aprofundados em uma fase posterior do Zoneamento Ecológico Econômico.
Patrimônio Histórico e Paisagístico do
Estado do Acre
Figura 1. Obras de recuperação do antigo chalet de Joaquim Victor, no Seringal Bom Destino, em
junho de 2002. Fonte: Fernando Figali – Acervo DPHC.
72 pelas instituições do Estado tornam-se ins- uma mostra das ações estaduais e muni-
trumentos para o conhecimento da diversi- cipais acerca do patrimônio. Desta forma,
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
LIVRO TEMÁTICO 4
dade cultural acreana, onde sejam identifica- poderemos perceber as comunidades que
dos, reconhecidos e valorizados os aspectos ainda não foram contempladas por ações de
da produção cultural das comunidades lo- inventários e fomento da cultura local. A Fi-
cais, baseados nas suas próprias referências. gura 2 mostra a distribuição, por regionais,
do patrimônio do Estado do Acre.
4. A OCORRÊNCIA DO
PATRIMÔNIO NO ESTADO 4. 1. O Patrimônio
DO ACRE Histórico do Acre
15 FONSECA.: Para além da pedra e cal: por uma concepção ampla de Patrimônio cultural (Memória e
Patrimônio – Ensaios Contemporâneos).
Patrimônio Histórico e Paisagístico do
Estado do Acre
Figura 2. Distribuição, quantitativo e comparativo dos patrimônios identificados no Estado por
regionais. Fonte: ZEE/AC, 2005. 73
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
por privilegiar bens que referem os grupos seu tempo, as quais vivem num constante
sociais de tradição européia, que, no Brasil, diálogo com a contemporaneidade.
são aqueles identificados com as classes do- A Casa de Chico Mendes, por exemplo,
minantes”. No entanto, hoje há um contexto representa justamente a diversidade, as
favorável a uma ampliação do conceito de tensões, os conflitos que caracterizam as
patrimônio cultural e a maior abrangên- referências históricas do Acre, sobretudo
cia de políticas públicas de preservação, o as atuais, mas também as do passado. É um
que acaba por incluir aspectos da cultura patrimônio material vivo, e que não se en-
que há alguns anos não eram partícipes do cerra em si mesmo. Transformada em sala
patrimônio brasileiro. memória, ela nos permite o diálogo com a
É claro que os antigos sítios ou monu- diversidade, com a noção de tempo, espaço,
mentos históricos representam parte da lugar, território, enfim, uma infinidade de
memória de um lugar. Determinam à no- representações acerca da história acreana.
ção de espaço, como também a apreensão Além de ter sido palco de um dos acon-
deste espaço pela sociedade. Entretanto tecimentos que mais mobilizaram a opinião
há que se levar em consideração que o pública brasileira, bem como a mundial, a
bem histórico, seja ele qual for, foi ergui- morte de Chico Mendes nas condições an-
do por pessoas em algum lugar, em algum teriormente postas, influíram nos rumos
momento de suas vidas. Estas pessoas de políticas públicas ambientais por todo
utilizaram-se de modos de fazer específi- o planeta. Ainda podemos argumentar que
cos do seu tempo e condições materiais a casa, o bem material, tornou-se um dos
também muito delimitadas. A edificação, símbolos da história acreana. História que
mesmo um palácio, ou uma igreja de qual- incorpora, cada vez mais intensamente, ou-
quer século do milênio passado, com toda tras influências que não apenas a tradição
a grandeza arquitetônica que os caracteri- indígena ou nordestina, e que, mais do que
za, traz na sua história leituras sociais do nunca, apresenta requisitos para integrar o
Patrimônio Histórico e Paisagístico do
Estado do Acre
Figura 3. Distribuição, por regionais, das áreas de ocorrência do patrimônio histórico no Estado.
74 Fonte: ZEE/AC, 2005.
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
LIVRO TEMÁTICO 4
universo de bens, considerados pelo Estado, cultural que as concebeu. A Casa de Chico
patrimônio histórico e artístico nacional. Mendes, o Palácio Rio Branco, ou mesmo a
A Constituição Federal de 1988 (2003) pracinha central da cidade de Manoel Urba-
entende como patrimônio cultural brasilei- no, trazem em sua materialidade histórias
ro: “os bens de natureza material e imaterial, que permitem a compreensão das partes
tomados individualmente ou em conjunto, que compõe o todo, da diversidade que cria
portadores de referência à identidade, à as sociedades.
ação, à memória, dos diferentes grupos for- Na Figura 3 percebemos a distribuição
madores da sociedade brasileira”. do patrimônio identificado nas regionais, o
O entorno da casa, assim como quase que reflete as ações de registro e de fomento
toda a cidade de Xapuri, ainda não foi modi- realizadas. Temos no Baixo Acre, por exem-
ficado drasticamente. As ruas pavimentadas plo, uma quantidade maior de registros.
com tijolos, as casas imediatamente vizinhas
– com uma arquitetura similar à de Chico –, 4. 1. 1. Chico Mendes: Uma Casa, Um
o bosque, nos fundos da casa, que leva ao Museu.
rio e que um dia serviu de esconderijo para
os assassinos de Chico Mendes, continuam A casa de Chico Mendes é uma das ima-
lá. Um imenso apuí16, localizado no limite gens mais conhecida do Estado do Acre. A
esquerdo, impede que o sol castigue a casa morte do seringueiro, ecologista, líder co-
durante a maior parte do dia, acabando por munitário e defensor incondicional da Ama-
quase criar um micro clima. zônia, foi amplamente divulgada e discutida
Toda a paisagem do seu entorno ime- em vários países da Europa e nos Estados
diato proporciona leituras da diversidade Unidos, e como o assassinato foi em sua
16 Apuí: parasita que usa outras árvores como escora ate que enlaça seu apoio, em geral termina por
matar a escora.
casa, aquela imagem da casinha azul17 ro- onde fica a cozinha. Estes dois retângulos
dou o mundo e foi vinculada à história dos são ligados por uma passarela, também em
conflitos nos seringais acreanos. forma de retângulo.
Construída de forma semelhante em ou- A presença da mulher provoca alterações
tras cidades do Acre, representa um modo na casa. Quando a casa é uma barraca para
específico e regional de morar, cujo engenho abrigar apenas o homem na “colocação” há
Estado do Acre
Quadro 2. Relação do patrimônio histórico identificado.
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CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
04 Escola Maria Angélica Rio Branco
17 Edificada em madeira, a casa possui entrada lateral, sem varanda ou alpendre; sala e um corredor
lateral que seria a substituição do externo, incorporado à casa. Este corredor dá acesso direto aos
quartos e, por último, à cozinha, bastante similar aos casarões dos proprietários de antigos seringais.
A casa ainda guarda as mesmas cores: azul, com janelas e portas cor-de-rosa.
Quadro 2. Relação do patrimônio histórico identificado.
Alto Acre
30 Sítio Rua do Comércio de Xapuri Xapuri
A adaptação do nordestino a seu novo lu- deixam frestas que possibilitam a ventilação
gar é evidenciada por um modelo de mora- e iluminação natural no interior da casa. Os
dia simples, mas adequado à realidade e às vãos das portas e aberturas não são fechados
necessidades cotidianas. Os materiais como e as paredes não chegam até a cobertura,
paxiúba, palha e cavaco são extraídos da onde também não há forro. Além de sua re-
própria floresta, nas proximidades da colo- presentatividade arquitetônica, construída
cação. A paxiúba, por ser fibra natural, faz com saberes transmitidos ao logo de tempos
o isolamento térmico. Sua coloração opaca imemoriais, a casa reveste-se de significados
não irradia calor; a trama da palha na co- que remetem a questões socioambientais,
bertura e o encontro das peças de paxiúba que extrapolam as fronteiras estaduais. Chi-
co Mendes foi uma figura referencial da luta monstraram uma rica e complexa ocorrên-
seringueira pela preservação da floresta, e cia de vestígios arqueológicos no território
converteu-se num ícone ambientalista para acreano, com predomínio absoluto de gru-
todo o mundo. pos ceramistas, como é comum para a Ama-
Da mesma forma, outros patrimônios, es- zônia em geral.
palhados por todos os municípios, devem ser De acordo com este perfil, a presente
Estado do Acre
do conjunto de informações caracterizam
os sítios históricos como bens histórico-cul- 4. 2. 1. Histórico das Pesquisas
turais ou paisagísticos, transformando-se
numa importante ferramenta de gestão e de Em 1976 foi iniciado o Programa Na-
sustentabilidade do patrimônio. cional de Pesquisas Arqueológicas na Bacia
O patrimônio histórico material (edifi- Amazônica (PRONAPABA), através de con-
cado) tem recebido especial atenção das vênio entre o CNPq e o Smithsonian Insti-
instituições governamentais. No Acre, tution, com o objetivo de estender para a 77
como já sugerido, houveram investimen- região amazônica o desenvolvimento das
LIVRO TEMÁTICO 4
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tos nos espaços destinados à memória pesquisas que já vinham sendo realizadas
acreana. Museu da Borracha, Palácio Rio desde 1965, com a implantação do Progra-
Branco, seringal Bom Destino, Rua do ma. O que representou o primeiro grande
Comércio de Xapuri, Centro Cultural de esforço para o conhecimento da pré-história
Cruzeiro do Sul, Teatro de Tarauacá, en- brasileira.
tre outros, têm ajudado a contar as muitas De acordo com o planejamento do PRO-
histórias do Acre. NAPABA, coube ao Instituto de Arqueologia
Brasileira (IAB), a realização de pesquisas
4. 2. Os Sítios Arqueológicos e a Antiga arqueológicas no Estado do Acre, no período
Ocupação do Estado entre 1977 e 1980. Setenta sítios foram ca-
dastrados nesse período, bem como outros
Pesquisas arqueológicas somente foram onze novos sítios arqueológicos, localizados
realizadas no Estado do Acre a partir da dé- a partir de 1992.
cada de 70 e têm caminhado a passos curtos Tais pesquisas, nesta fase inicial, tiveram
e inconstantes devido às imensas dificulda- caráter extensivo de busca e prospecção de
des que caracterizam a pesquisa científica sítios. Os sítios foram cadastrados através
no Brasil. As pesquisas já desenvolvidas de- do sistema de siglagem trinominal19 pro-
seguinte seqüência de trabalhos: - 1977 foi vall Institute Publications” 2003, outros
organizada a primeira missão que se con- vinte e cinco sítios foram citados, todos eles
centrou na região que compreende as áreas fazendo parte daqueles denominados “geo-
AC-XA (Xapuri), AC-RB (Rio Branco), AC-IQ glifos”. Estes foram identificados e prospec-
(Iquiri) e AC-SM (Sena Madureira), com o re- cionados a partir da aprovação do projeto
gistro de vinte sítios arqueológicos: Geoglifos – Patrimônio Cultural do Acre, na
Lei de Incentivo à Cultura da Fundação Elias
78 a 1978 a região pesquisada foi estendida Mansour. Deste projeto resultou a visita “in
ao Vale do Juruá, englobando AC-CS (Cru- loco” na maioria desses sítios pelos pesqui-
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
LIVRO TEMÁTICO 4
zeiro do Sul), AC-PV (Porto Valter) além sadores responsáveis do projeto. No entan-
do retorno às áreas AC-IQ e AC-XA com to, o registro desses sítios não seguiu o sis-
a localização total de vinte novos sítios; tema de siglagem trinominal proposto pelo
a 1979 a pesquisa ficou totalmente con- PRONAPABA, seguindo uma outra lógica de
centrada nas áreas AC-CS e AC-TA (Ta- localização e coleta de informações.
rauacá), com o cadastramento de vinte e Em um desses sítios, localizado na Fa-
sete sítios arqueológicos; zenda Colorado, uma estrada vicinal havia
a 1980 foram realizadas pesquisas na área cortado uma dessas estruturas (geoglifos),
AC-PU (Purus) com o registro de três novos deixando à mostra o interior de uma parede,
sítios, além do que nesta última missão de de onde foi retirada uma amostra de carvão
campo, parte da equipe retornou a alguns para a datação21. Segundo esta análise, o
dos sítios mais representativos do Juruá. referido sítio foi ocupado durante o século
XIII da nossa era, ou seja, três séculos antes
Alguns sítios identificados nesse período da chegada dos europeus à América.
estavam associados a estruturas de terras, Outros sítios foram localizados. Há ain-
como montículos ou trincheiras circulares da informações de que nas proximidades da
de grande extensão. Por exemplo, o sítio AC- cidade de Plácido de Castro um sítio arque-
-IQ-2, localizado no vale do rio Iquiri, que ológico, foi identificado pelos moradores do
apresentava uma trincheira circular de cer- local. Como estes outros tantos precisam ser
ca de 100 metros de diâmetro, 10m de lar- registrados para que possam ser protegidos
gura e 1m de profundidade (SIMÕES, 1983). pelo Estado.
20 Disponível nos sítios cadastrados nas pesquisas a partir de 1994.
21 A equipe que coletou o material (carvão) para a referida datação, não tinha, à época, autorização
junto ao IPHAN para a realização de qualquer pesquisa, o que fere as disposições previstas na Lei nº
3.924, de 26 de julho de 1961; e na Portaria nº 07, de 1º de dezembro de 1988. A referida legislação
dispõe sobre a pesquisa, a exploração, a remoção de achados arqueológicos e o envio para o Exterior,
entre outros.
4. 2. 2. Os Sítios Localizados terial arqueológico, sendo considerado um
no Acre dos mais importantes do Vale do Acre. Com
cerca de 200m de diâmetro, já foi objeto
Os sítios arqueológicos identificados no de pesquisas anteriores, sendo datado por
Acre, entre 1977 e 2001, somam 106 ao volta de 2.000 a.p. (antes do presente). Este
todo. No entanto, nem todos foram georre- sítio encontra-se localizado a 145 quilôme-
Estado do Acre
nada, localizado na Fazenda Ouro Branco te cerca de três quilômetros. Ocupa uma
(antiga fazenda Los Angeles), é um dos mais área de “terra firme”, de aproximadamente
ricos já encontrados. Apresenta a forma de 200x160m. Na base da terra alta está si-
estrutura circular de terra (mureta interna, tuado o igarapé do Inácio. Pesquisado por
valeta e mureta externa), muito rico em ma- Ondemar F. Dias Jr., Franklin Levy e Eliana
79
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
Figura 4. Distribuição, por regionais, dos sítios arqueológicos no Estado. Fonte: ZEE/AC 2005.
T. de Carvalho, em 1978, o Sítio Prosperi- Epitaciolândia / Rio Branco e LT 69 KV
dade conta com um pacote arqueológico Rio Branco / Sena Madureira. As linhas de
com sucessivas camadas ocupacionais, o transmissão seguem margeando as BRs 317
que o torna um dos mais expressivos, já e 364. Este levantamento foi realizado de
identificados no Acre. forma não intrusiva, ou seja, baseado ape-
Recentemente, técnicos da Secretaria nas em pesquisa bibliográfica e visita aos
Patrimônio Histórico e Paisagístico do
Estado de São Paulo. O sítio apresenta ves- ta e indireta ao empreendimento. Nas áreas
tígios de material cerâmico em abundância, de influência direta do percurso da LT Rio
no entanto, nunca foi pesquisado. Dada a Branco / Epitaciolândia, a pesquisa identifi-
sua proximidade com Rio Branco, capital do cou seis (06) sítios arqueológicos, sendo que
Estado, o sítio poderá abrigar uma estrutu- em um deles o trajeto da linha teve que ser
ra específica para receber visitantes, bem modificado, pois a base da torre seria cons-
como poderá ser desenvolvido um projeto truída sobre uma das muretas do círculo de
de educação patrimonial. terra. Com a modificação do traçado o sítio
No caso dos sítios arqueológicos – como deverá ser preservado em seu estado atual.
também os sítios paleontológicos – a prote- Recomendaram-se algumas medidas mi-
ção se dá ex vi legis, isto é, imediatamente, tigadoras ao fim do relatório, como: mape-
por força da própria lei, e por este motivo amento e documentação, implementação de
prescinde de processo administrativo, pois um programa de educação patrimonial na
seus efeitos decorrem da vigência legal. No área do empreendimento, musealização de
entanto, é dever do Estado fiscalizar cons- um dos sítios, divulgação dos conhecimen-
tantemente este patrimônio, para que a ação tos gerados e implementação das condi-
do homem não venha a destruí-lo. ções para que o material arqueológico fique
No primeiro semestre de 2005 foi re- no Acre.
alizado um levantamento do patrimônio É claro que não temos ainda informações
arqueológico ao longo do traçado proje- em número suficiente para podermos des-
tado das linhas de transmissão LT 138 KV crever as técnicas utilizadas na construção
22 02 de junho de 2005.
23 SCHAAN, Denise Pahl (Coordenação técnico-científica) DIAGNÓSTICO sobre a situação do Patrimô-
nio Arqueológico das Linhas de Transmissão LT 138 KV Epitaciolândia / Rio Branco e LT 69 KV
Rio Branco / Sena Madureira (incluindo as áreas das subestações). Museu Paraense Emílio Goeldi,
Coordenação de Ciências Humanas – Área de arqueologia. Julho de 2005
dos sítios, na remoção da terra e na própria busca pela borracha amazônica criou novos
utilização do lugar para a prática de tradi- ofícios e, para eles, novos sujeitos. Eram
ções religioso-culturais ou outros. Mas essas seringueiros, marisqueiros, comboieiros,
e outras questões, ainda sem respostas, po- guarda-livros, seringalistas, regatões. Daí
derão servir como motor para o avanço da também se estabeleceu novas relações: o
investigação arqueologia no Estado. seringueiro era quem produzia a borracha,
Estado do Acre
depois da promulgação da Constituição de mais adaptadas à região. Elementos da cul-
1988, que incorpora a visão antropológica tura indígena, celebrações religiosas, modos
da cultura e das noções de bem cultural. de fazer, ofícios, enquadram-se neste tópi-
Quando se fala em bens culturais, se pres- co, um universo riquíssimo de expressões
supõem sujeitos para os quais estes bens culturais. A multiplicidade e a diversidade
façam sentido. são justamente um dos principais pontos a
A riqueza daí extraída não pode ser men- serem discutidos. Através da identificação e
surada. O fazer, o falar, ou qualquer outra reconhecimento desta pluralidade, podere- 81
prática transmitida, reconstruída, adaptada, mos melhor compreender a cultura acreana.
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
traz na subjetividade, as marcas da constru- No quadro 3 temos a relação do patri-
ção das sociedades. O dinamismo talvez seja mônio cultural já inventariado pelo DPHC-
a característica mais latente quando o as- -FEM. Sugerimos um olhar especial para as
sunto é a cultura, seja de natureza material referências culturais, por se constituírem
ou imaterial. elementos criadores, vivos, atrelados a um
O Estado do Acre, objeto do nosso estu- passado, mas ao mesmo tempo, modificado-
do, foi povoado por imigrantes que busca- res da realidade. A distribuição por Regio-
vam na borracha acreana a possibilidade de nais (Figura 5) nos permite a visualização
melhorar de vida. Muitos fugiam da seca, das ações de fomento, onde ocorrem e de
das guerras, da miséria ou, simplesmente, que forma poderemos abranger um univer-
buscavam aventuras e riquezas. No início do so maior de referências culturais.
século XX, a região que viria a ser o Acre O carnaval e as Festas Juninas foram às
recebeu um grande número de pessoas únicas expressões identificadas em todos os
vindas dos lugares mais distantes. Não vi- municípios acreanos. Ainda que não hou-
nham somente do Nordeste do Brasil, mas vesse um inventário específico para que pu-
deste eram a maioria. Cariocas, amazonen- déssemos melhor qualificar essas festas em
ses, paulistas, paranaenses, além de árabes, cada lugar, o carnaval e as Festas de Junho
sírios, libaneses, portugueses, entre outros, são celebradas nos lugares mais distantes.
com suas bagagens repletas de recorda- No entanto, cada lugar, cada comunidade,
ções de uma terra natal – que alguns nunca se apropria dessas festas de uma forma es-
mais voltariam a ver –, aqui conviveram e pecial. No Santo Daime, por exemplo, não
se misturaram. importando qual das correntes daimistas
Desde a chegada foram para os seringais (Barquinha, Colônia Cinco Mil, Alto Santo),
“cortar seringa”; outros foram percorrer os há uma celebração intensa durante todo o
rios com mercadorias, ou mesmo levar bor- mês de junho.
racha para as praças de Belém e Manaus. A
Quadro 3. Relação dos sítios paisagísticos identificados.
Estado do Acre
cavaleiros disputam à carreira em duplas; lhando nos dias de hoje.
um cavaleiro de cada time parte em direção
à sua argola. Vence aquele partido que reti- 4. 4. Os Sítios Paisagísticos
ra mais argolas (Figura 6). do Acre
Além da Cavalhada, ao longo dos últimos
sete anos o DPH realizou um intenso traba- Constituem o conjunto dos sítios paisa-
lho de identificação de referências culturais, gísticos - o sítio ou monumento – elementos
83
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
Figura 5. Distribuição, por regionais, das áreas de ocorrência das culturas imateriais no Estado.
Fonte: ZEE/AC, 2005.
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CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
LIVRO TEMÁTICO 4
Figura 6. A entrada dos Partidos Azul e Encarnado, no Parque da Cavalhada, em Sena Madureira
– Setembro de 2002. Fonte: Fernando Figali – Acervo DPHC.
Estado do Acre
-lo, o ato proposital ou intencional venha a
destruí-la ou descaracterizá-la. Na década de 80, a Universidade Fede-
O Lago do Amapá, por exemplo, reconhe- ral do Acre, reconhecendo a importância
cido patrimônio da cidade de Rio Branco, so- do material fossilífero coletado durante
mente este ano passou a ser alvo de discus- as pesquisas de campo, ao longo dos rios
são de possíveis formas de proteção para o e estradas que cortam o Estado do Acre,
seu entorno. Localizado próximo ao períme- criou o Laboratório de Pesquisas Paleon-
tro urbano da cidade de Rio Branco, foi tema tológicas (LPP-UFAC), com o objetivo de 85
de inúmeras reuniões entre a Associação de estudar o rico material fóssil, presente nas
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
Moradores do Amapá e diversas instituições formações geológicas, que cobrem toda a
interessadas em desenvolver a preservação Amazônia Ocidental.
do lago e do seu entorno (o que inclui parte A coleção de fósseis da UFAC tem au-
do riozinho do Rola até a sua boca, no rio mentado a cada ano. Atualmente, o labora-
Acre). A decisão por uma APA (Área de Pro- tório já conta com mais de cinco mil peças
teção Ambiental), cria a expectativa de que fósseis em seu acervo, revelando à comu-
o lago vai continuar sendo um dos lugares nidade científica e às pessoas interessadas
mais belos da cidade, com possibilidades da no assunto, a fauna que viveu na Amazô-
prática do eco turismo26, gerenciada pela nia sul-ocidental a partir dos últimos oito
própria comunidade. milhões de anos.
A participação da comunidade do entor- O Laboratório de Pesquisas Paleontoló-
no nas discussões, com poder de voto e veto, gicas acabou se tornando a principal re-
tem colaborado para que as instituições pú- ferência no assunto em todo o Estado do
blicas agilizem a consolidação de políticas Acre, com devido reconhecimento científi-
de preservação do Lago do Amapá. IBAMA, co mundial. Esta excelência tornou o labo-
IMAC, Secretaria de Turismo, Departamen- ratório um dos lugares mais visitados da
to do Patrimônio Histórico – FEM, IPHAN, UFAC, visto que o assunto tem despertado
dentre outras instituições, passaram a ser o interesse de toda a sociedade acreana.
parceiros na defesa daquele patrimônio. Temos na Figura 8 a distribuição dos
O exemplo do Lago do Amapá não é o principais sítios paleontológicos do Acre,
único. Nos últimos anos são muitas as al- a maioria deles às margens de rios, por
ternativas encontradas para a preservação serem os locais mais propensos às des-
da paisagem natural, como as Reservas Ex- cobertas de fósseis. A cada cheia dos
26 Eco turismo ou turismo ecológico tem por finalidade a preservação do patrimônio pelos princípios
da sustentabilidade ambiental, social e econômica, visando a conservação dos recursos naturais,
culturais e históricos.
Patrimônio Histórico e Paisagístico do
Estado do Acre
Figura 7. Distribuição do patrimônio paisagístico identificado no Estado por regionais. Fonte: ZEE/
86 AC, 2005..
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
LIVRO TEMÁTICO 4
Estado do Acre
coleta de fósseis, com os alunos do curso de Além de gerar trabalho e renda, o que já
graduação em Ciências Biológicas da UFAC. justifica a atividade, desde que bem plane-
A localidade já foi visitada por pesquisado- jada, o turismo pode ser utilizado como me-
res de várias partes do mundo e já mereceu canismo de proteção ao patrimônio, seja ele
destaque na mídia nacional em 2002. histórico/cultural ou paisagístico/natural. A
Os sedimentos da Formação Solimões, oferta de atrativos histórico/culturais, um
nesta localidade, são constituídos por argi- dos principais focos do turismo, tem contri-
las com cores pardas e cinzentas e possuem buído para manter em pé prédios, bairros e 87
abundantes fósseis de vertebrados do Mio- até cidades, evitando que sejam descaracte-
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
ceno Superior - Plioceno (entre 5 e 8 milhões rizadas ou mesmo destruídas. Um exemplo
de anos). As camadas contendo material fos- claro de preservação é a revitalização de
silizado no Sítio Niterói estão recobertas por prédios antigos para abrigar salas-memória,
depósitos aluviais do Pleistoceno (até 10 mil como a antiga sede da prefeitura de Xapu-
anos) e do Holoceno (tempo recente). ri, transformada em museu em agosto deste
ano.
5. O TURISMO COMO FORMA DE Entretanto, uma das dificuldades na con-
PRESERVAÇÃO servação do patrimônio diz respeito à sus-
tentabilidade daquele bem. Muitas vezes
5. 1. A Mudança Global no Perfil do prédios antigos são fechados ou completa-
Turista mente abandonados por falta de recursos
para sua preservação. O aproveitamento
O turista contemporâneo está mudan- econômico dos bens é um tema importante
do, ele quer refletir sobre a experiência a ser considerado quando se fala em conser-
de viajar, não só usufruir de um produto vação.
turístico. A interação com as comunida- A atividade turística bem planejada e
des locais tem sido fundamental para o gerenciada oferece a possibilidade de gerar
crescimento sustentável da indústria tu- empregos, incentivar atividades culturais,
rística. Aproveitando melhor seu lazer, o qualificar informações históricas, bem como
turista quer também conhecer a identi- proteger do abandono o patrimônio cultu-
dade local, valorizando, cada vez mais, a ral.
diversidade cultural. A valorização ainda ultrapassa a sua im-
O turista quer aprender - ele tem mais portância econômica, pois gera consciência
informação agora que há 50 anos, se in- cidadã, de pertencimento. A compreensão
forma antes de viajar -, o que significa que da diversidade cultural cria mecanismos de
a localidade visitada deve estar bem infor- respeito mútuo, onde todos podem dialogar
Patrimônio Histórico e Paisagístico do
Estado do Acre
Figura 8. Distribuição, por regionais, dos principais sítios paleontológicos do Estado. Fonte: ZEE/AC, 2005.
com o outro, desde que possa compreender Nos parques ambientais Chico Mendes
88 os diferentes modos de vida, ainda que de e Capitão Ciríaco, ambos na cidade de Rio
forma superficial. Branco, encontramos exemplos de atrativos
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
LIVRO TEMÁTICO 4
N. NOME REGIONAL
01 Sítio Niterói Baixo Acre
02 Sítio Cavalcante
07 Mississipi Juruá
Quadro 4. Relação dos principais sítios paleontológicos identificados.
N. NOME REGIONAL
08 Mississipi II
10 Cachoeira
11 Pedra Pintada
12 Foz do Breu
13 Barco Quebrado
Estado do Acre
14 Quatro Voltas
16 Cantagalo
17 Belford
18 Fazenda Paraguá
19 Tartaruga 89
20 Tartaruga II
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
21 Estirão da Panela
22 Museu
le que foi, talvez, o principal personagem da mento do turista, mas também ajuda a co-
história acreana: o seringueiro. munidade local conhecer as suas próprias
O desenvolvimento científico de uma trajetórias. G. Simmel disse sobre as ruínas
região também pode se transformar em e os monumentos: “Mantêm a continuidade
um atrativo cultural. No caso do Acre, cultural, são um nexo dos povos com o seu
por ser parte da Amazônia, a região conta passado”.
com grandes áreas de plantas medicinais O turismo ainda estimula a existência e
e áreas extrativistas de matéria prima, a reabilitação de sítios históricos (seringal
onde podem ser estabelecidos laborató- Bom Destino e um bom exemplo disso),
rios de pesquisa (Floresta do Antimary construções e monumentos, por meio de
é um exemplo disso) abertos ao turismo. sua transformação em recurso recreacional,
Os eventos culturais inserem-se como e que também propicia a revitalização de
fator de movimentação turística, compre- atividades tradicionais de áreas em declínio.
endendo ações educacionais, comunitárias O município de Sena Madureira tem na Ca-
e sociais que visam à promoção do acesso valhada uma das suas principais expressões
do cidadão aos bens e serviços da cultura. culturais. Revitalizada recentemente, gera
Podemos conferir que o turismo contempo- fluxo turístico considerável.
râneo não limita-se a enriquecer o conheci-
A apropriação aos espaços revitalizados O turismo contemporâneo não tem so-
apóia-se na memória coletiva e, ao mesmo mente a função de proporcionar lazer aos
tempo, estimula a busca pelo conhecimento, turistas e gerar lucro para os donos de estabe-
como motor fundamental para desencadear lecimentos comerciais, ele exerce uma função
o processo de identificação do sujeito com educacional importante pela qual se divulga
sua história e sua cultura. o conhecimento de um povo. O turismo pode
Patrimônio Histórico e Paisagístico do
pulação local. Os eventos podem servir como Durante a análise do patrimônio histó-
plataforma para recuperar o patrimônio his- rico e natural do Estado do Acre, consta-
tórico, pois focalizam a atenção das pessoas tou-se que apenas uma pequena parte dos
para o conhecimento da sua própria história. bens dispunha de alguma informação acer-
Podemos concluir que uma atividade tu- ca das potencialidades turísticas ou mes-
rística bem planejada pode trazer grandes mo da sua apreensão pelas comunidades.
benefícios às comunidades que a praticam. Do total de sítios e outros patrimônios le-
Para ser efetivo, este planejamento deve to- vantados para a presente análise, cerca de
mar em consideração os seguintes aspectos: 50% dos bens tinham alguma informação
sobre as potencialidades turísticas, fossem
a) Ter objetivos claros; quanto à acessibilidade ou mesmo a exis-
b) Respeitar as leis de conservação tência de alguma infraestrutura, dentre
do patrimônio; eles estão os museus, os sítios históricos,
c) Respeitar as leis de conservação do ou mesmos os sítios arqueológicos.
meio ambiente; Tendo em mente a necessidade de dar
d) Ser estrategicamente formulado conjun- cumprimento à legislação específica de
tamente entre a comunidade e profissio- proteção ao patrimônio cultural brasileiro,
nais da área turística; apresentamos alguns indicativos discutidos
e) Inserir a comunidade como protagonista durante a Oficina de Interpretação de Sítios
do processo; Arqueológicos para o Turismo Cultural31,
f) Definir o componente educativo da visita quando foram relacionados alguns critérios
para satisfazer a curiosidade do turista e, básicos para as atividades turísticas ligadas
se possível, provocar nele a reflexão. ao patrimônio material, quais sejam:
31 Oficina de Interpretação de Sítios Arqueológicos para o Turismo Cultural. Realizada na Pousada das
Araras, em Serranópolis – GO, durante os dias 17 a 20 de setembro de 1997. Oficina realizada pelo
Departamento de Promoção do IPHAN.
a a disponibilidade de informações corre- nacionais, o Brasil dispõe de um siste-
tas e concisas sobre o bem cultural em ma nacional de sinalização de estradas,
questão - o que é? O que significa? Para elaborado pelo DNIT e Embratur, e que
que serve? Como? Quando e por quem inclui as referências a elementos de
foi feito? -, de maneira que possam ser atração turística. No Acre, tem-se ado-
repassadas ao público, com o caráter de tado uma sinalização turística bastante
Estado do Acre
culturais do Estado do Acre, este trabalho gação dessas informações cabe às institui-
está ainda no começo. Percebe-se que as ções públicas e/ou privadas com atuação
regionais do Alto e Baixo Acre, bem como no assunto, mas também ao administrador
do Juruá, dispõe de uma quantidade muito ou proprietário da área onde o bem cultu-
grande de informações acerca da história, ral está situado.
como também no que diz respeito à con- a Equipamentos básicos e adicionais: deve-
servação e fomento do patrimônio cultural -se evitar a implantação de equipamen-
e ambiental, entretanto têm-se inúmeras la- tos sem planejamento e estudo da área, 91
cunas nas demais regionais, principalmente sendo necessária a avaliação sobre a ade-
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
se olharmos as mesmas informações a partir quação das estruturas. Os materiais uti-
dos municípios. lizados poderão variar segundo a região
Dos vinte e dois municípios do Acre so- do país, mas, preferencialmente, devem
mente a capital esboça uma política voltada seguir alguns parâmetros, tais como du-
para a preservação do patrimônio cultural, rabilidade, integração ao entorno, dispo-
embora ainda não disponha de uma legislação nibilidade na região e harmonia com as
específica que regule esta preservação. Atra- estruturas pré-existentes. Deste modo,
vés dos planos-pilotos os municípios poderão não se recomenda uma padronização,
iniciar uma série de inventários que nos dê mas sim um projeto integrado à paisa-
um olhar mais aproximado do potencial e das gem da região.
prioridades no que tange ao turismo.
É bem verdade que as regiões que dispõe O planejamento para a implantação de
de maior fluxo turístico são as mesmas que equipamentos em uma área de visitação
dispõe de um maior número de informações deve incluir os seguintes pontos:
acerca das referências culturais, seja pelo
acesso seja pela presença de outros fatores a) equipamento básico: são as áreas de visi-
que puderam viabilizar um trabalho de fo- tação que devem conter, necessariamen-
mento à visitação turística e conseqüente te, sanitários masculino e feminino, be-
preservação das referências locais. bedouro, centro de informações e apoio
Diversos fatores se mostram decisivos ao visitante, lixeiras, ambulatório para
para que o crescimento do fluxo turísti- primeiros socorros e área delimitada
co seja de fato sustentável, dentre eles para estacionamento;
podemos destacar: b) equipamento adicional: podem ser inclu-
ídas instalações como sala para projeção
a Sinalização nas estradas de acesso e no de filmes ou slides, palestras, bar/restau-
entorno: com base em convenções inter- rante, área para camping e outros.
a Acessibilidade: a facilidade de acesso a A Secretaria de Estado de Turismo do
um local vai determinar em parte a sua Estado do Acre (SETUR) tem trabalhado em
viabilidade como produto turístico. É rotas turísticas a caminho de Xapuri e Porto
mais fácil desenvolver rotas e atrativos Acre. Em Xapuri a Casa de Chico Mendes,
que se encontram acessíveis ao público. representa o maior atrativo, entretanto,
Patrimônio Histórico e Paisagístico do
transporte para chegar. Acessibilidade difí- Da mesma forma tenta-se agregar outros
cil quer dizer que o local só pode ser visi- valores à visita ao Seringal Bom Destino. A
tado em certas épocas do ano (dependen- Rota da Revolução começa em Rio Branco,
do das condições das estradas ou ramais), passa pela Sala Memória de Porto Acre, e
precisando de vários meios de transporte termina no Seringal Bom Destino.
para chegar e devidamente agendados
com antecedência. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
92
a Infraestrutura: o tipo de infraestrutu- A crescente demanda pelo reconhecimen-
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
LIVRO TEMÁTICO 4
Estado do Acre
93
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
Livro Temático | Volume 4
Cultural Político:
Memórias, Identidades
e Territorialidades
4
Capítulo
Cidades do Acre: Experiências de
Planejamento e Gestão
Cidades do Acre: Experiências
de Planejamento e Gestão
Cidades do Acre: Experiências de
Planejamento e Gestão
96
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
LIVRO TEMÁTICO 4
1. INTRODUÇÃO
A
apresentação de uma análise para relações de integração fronteiriça e de co-
discutir o Estado do Acre a partir municação externa que vêm a romper com o
de suas cidades adquire um cará- tradicional isolamento espacial do Acre.
ter particular no contexto especial Nesse amplo espectro de ações entre ex-
pelo qual passa a região atualmente. Espe- tremos, o planejamento com alto grau de
cial porque o momento indica mudanças participação popular torna-se, mais do que
significativas no peso dado aos diferentes nunca, um instrumento fundamental para
elementos de configuração do território, o equilíbrio das tensões nos processos de
antes definidos mais em função de seus aci- tomada de decisão. Mais importante ain-
dentes e percursos naturais bem como das da, para que o Estado mantenha a experi-
relações sociais e econômicas que acompa- mentação que vem adotando na tentativa
nharam a ocupação do Acre. de construir internamente possíveis cami-
Uma nova geografia política vem se confi- nhos para a sustentabilidade na Amazônia,
gurando, marcada por elementos de infraes- de elaborar a própria noção local do que
trutura que refletem um esforço de integra- seja desenvolvimento.
ção não apenas do território, mas também As cidades, portanto, são aqui analisadas
entre programas que combinam dois pólos não isoladamente, mas a partir de uma visão
extremos de atuação: primeiro, a tentati- regional. Esta opção refere-se tanto à esca-
va em superar o atraso no atendimento às la adotada no ZEE/AC - Fase II, (1:250.000),
demandas por serviços públicos básicos à como para evidenciar o pressuposto que se
maioria da população; segundo, promover a observa como nortear as ações do Governo
conexão intra e inter-regional, fortalecendo do Estado nos últimos anos: o fortalecimen-
1 Mestre em Planejamento de Sistemas Energéticos | Consultora ZEE
2 Especialista em Gestão de Recursos Hídricos | SEMA
to das vocações locais diferenciadas, que de- dem as populações formadoras da identi-
pende de um projeto de Estado com o claro dade acreana, as terras indígenas, os anti-
objetivo de equilibrar a diferença pela valo- gos seringais, hoje, em grande parte, sob
rização das particularidades locais. domínio de uso das populações agro-ex-
De fato, autores como Paul Singer, Ig- trativistas (RESEX, PAE’s, etc). Tais áreas,
nacy Sachs, André Furtado e Christoffe de atualmente, adquirem um papel preponde-
Gouvello, apontam nessa direção: o plane- rante: provar a sua eficácia ao promover a
jamento, para equilibrar as disparidades qualidade de vida na floresta como um dos
Planejamento e Gestão
dos fluxos populacionais, de informação, de e convivência pacífica da sociodiversidade
bens e de capital como fatores de desequilí- acreana, lugar onde se fala, no mínimo, 15
brio entre regiões, criação de dependências línguas, 14 delas indígenas e mais o por-
e de relações assimétricas que resultam na tuguês, sem considerar o espanhol comu-
caracterização de zonas como centrais ou mente falado nas regiões de fronteira e as
periféricas. Deve-se, definitivamente, assu- línguas desconhecidas dos índios isolados.
mir que o inchaço urbano é fruto da desca-
racterização rural. (FURTADO & GOUVELLO, 2. ORGANIZAÇÃO GEOPOLÍTICA
1989; SACHS, 1986; SINGER, 1976). DO TERRITÓRIO
Do isolamento pré-anos 1970, passando
pelo período de transformações abruptas, Predomina no território acreano, duas 97
marcadas por processos (geralmente violen- grandes bacias hidrográficas, compostas pe-
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
tos) de transformação da base econômica los rios Juruá e Purus – rios estes, que cor-
florestal pela conversão do uso da terra, que rem paralelos para compor a grande bacia
resultaram em uma urbanização intensa e do Solimões-Amazonas - e mais duas outras
predominantemente concentrada na capital de seus afluentes principais: as bacias dos
Rio Branco, o Acre enfrenta agora o desafio rios Tarauacá e Envira, que deságuam no Ju-
de estar em um contexto regional de inte- ruá, e a bacia do rio Acre, afluente do Purus.
gração tri-nacional, corredor de exporta- A divisão política do Estado se estrutura em
ções, economia de serviços. regionais a partir dessa base hidrográfica,
Por essa razão, as informações aqui o que lhe confere uma característica pecu-
apresentadas não estão organizadas, liar: a dificuldade de comunicação, princi-
como usualmente, pela divisão das regio- palmente no período chuvoso, entre regiões
nais e das principais bacias hidrográficas localizadas em diferentes bacias. Alguns
e sim a partir de agrupamentos gerados municípios da região do Juruá, por exemplo,
em conseqüência de dois fatores princi- entre os meses de novembro e abril, comu-
pais: a vontade política local em adotar nicam-se mais facilmente com o Estado do
instrumentos adequados para a gestão das Amazonas, cuja capital partem a maioria dos
cidades e a estruturação de dois eixos de produtos que abastecem o mercado local.
mobilidade: a ligação definitiva, pela via No entanto, além da tradicional navegação
terrestre, entre a maioria dos municípios fluvial, uma intricada rede de caminhos ter-
do Estado ou, mais precisamente, a ligação restres se distribui sob a sombra da mata.
entre as sedes urbanas de 18 dos 22 mu- São os varadouros e as varações, caminhos
nicípios acreano por meio do asfaltamento construídos, mantidos e intensamente uti-
das rodovias BR-364 e BR-317. lizados pelas populações da floresta, que
Interessa ver também, como as cidades ligam localidades situadas horas, dias e se-
se relacionam com as suas zonas rurais, manas de distância. Horas de caminhadas: é
como interagem com as áreas onde resi- como se calcula a distância na mata.
Das vinte e duas sedes urbanas dos muni- formam organizações de resistência entre
cípios acreano, vinte estão situadas às mar- a população de floresta pela posse e direi-
gens dos rios, as quais sempre formaram to de uso da terra. O êxito do movimento
as grandes vias de comunicação e de trans- político dos povos da floresta resultou na
porte de produtos. Num tempo em que no demarcação de uma série de áreas protegi-
Acre predominava a economia da borracha das com distintas categorias que incluem
e da forma como esta organizava as relações terras indígenas, reservas extrativistas,
sociais e comerciais, a intransponibilidade projetos de assentamento agroextrativis-
Cidades do Acre: Experiências de
transversal das bacias não representava um tas, além de florestas nacionais, florestas
fator relevante – as relações de mercado estaduais, parques e estações ecológicas.
eram externas e não havia a preocupação O Estado do Acre possui atualmente 47,6%
com uma visão de Estado e de território arti- de sua extensão territorial formando um
Planejamento e Gestão
Planejamento e Gestão
centros urbanos, invertendo, em 30 anos, a tantíssimo no planejamento territorial e
proporção populacional entre tais zonas. deve ser cada vez mais considerada.
Pelo curto espaço de tempo em que a Pode-se dizer que o Acre possui situa-
aconteceu essa inversão de predominância ções sócio-espaciais endêmicas, ou seja,
populacional, pode-se afirmar que há, ainda, casos em que a diversidade é tamanha,
uma memória do espaço florestal presente na composição de povos, no resultado
em grande parte da população residente nas do macro zoneamento rural, na inserção
cidades, memória do seu modo de vida na contemporânea, etc., que dificultam qual-
floresta. No rastro dessa migração, os ele- quer agrupamento. Mesmo assim, como
mentos da identidade espacial ainda não dito, trata-se apenas de uma tentativa ini-
foram definitivamente apagados. Este fato cial para estabelecer algumas diretrizes 99
marca uma especificidade das cidades do mais factíveis.
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
Acre, tornando necessária uma conceitua-
ção local para caracterizá-las. Como afirma 2. O tema em foco trata, especificamente,
José Fernandes do Rêgo, as cidades do Acre das cidades das zonas urbanas, e não de
são cidades florestais. todo o território de cada município. Muito
embora essa separação seja praticamen-
3. CARACTERIZAÇÃO DE te impossível - e a discussão feita aqui as-
SUBZONAS PARA A GESTÃO DO sume certo caráter migrante, passeando
TERRITÓRIO ora apenas na cidade, ora pelo território
como um todo – ela é necessária para
O Mapa de Gestão, resultado da fase II dar a chamada para os instrumentos de
do ZEE (1:250.000), traz um sub-zoneamen- planejamento e gestão territoriais mais
to para as áreas urbanas (ZONA 4 – Cida- minuciosos, que trabalham com escalas
des do Acre). As cidades do Acre foram aqui mais detalhadas de zoneamento.
agrupadas de maneira diversa à tradicional A denominação das subzonas remete à
divisão política do estado que agrega muni- sua localização geográfica - bacias e sub-ba-
Fontes: SAWYER, D. R., 2000. p. 62-64. * GOETTERT, J. D., SILVA, S. S., ROCHA, K. S., 2005.; **Acre
em Números 2007.
cias hidrográficas, fronteiras nacionais - ou 3. 1. Cidades dos Altos Rios
ainda à condição particular, como o caso da
Capital Rio Branco. Marechal Thaumaturgo, Porto Walter, Jor-
O quadro abaixo apresenta as cidades dão e Santa Rosa do Purus
pertencentes a cada subzona estabelecida
e uma breve caracterização desse agrupa- Criados em 1992, estes municípios tem
mento. Para melhor ilustrar a implantação uma população predominantemente flo-
dos atuais traçados urbanos, foram incluí- restal e ribeirinha em cujo entorno predo-
Cidades do Acre: Experiências de
das algumas fotografias aéreas que, apesar minam terras indígenas e vários tipos de
de não corresponderem à escala do Mapa de unidades de conservação. Localizadas nas
Gestão do ZEE (1:250.000), ajudam a iden- cabeceiras dos rios Juruá, Purus e Jordão
tificar mais facilmente algumas questões (afluente do Tarauacá), têm acesso apenas
Planejamento e Gestão
relevantes, decorrentes de uma ocupação fluviais e aéreo, sendo os rios ainda, como
muitas vezes espontânea, desorganizada e tradicionalmente, a principal via de trans-
sem planejamento. portes e comunicação.
100 SUB-ZONAS
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
LIVRO TEMÁTICO 4
Marechal Thaumaturgo
Porto Walter
4.1 – Cidades dos Altos Rios
Jordão
Santa Rosa do Purus
Cruzeiro do Sul
4.2 – Cidades do Médio Juruá Mâncio Lima
Rodrigues Alves
Tarauacá
Feijó
4.3 – Cidades dos Médios Rios
Manoel Urbano
Sena Madureira
Assis Brasil
Brasiléia
4.4 – Cidades da Integração Fronteiriça
Epitaciolândia
}(rota do Pacífico)
Xapuri
Capixaba
Bujari
Porto Acre
4.5 – Cidades do Baixo Acre e Abunã Acrelândia
Plácido de Castro
Senador Guiomar
Planejamento e Gestão
atende somente a rede fixa, existindo ape- pequenos centros de pesquisa e formação
101
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
Figura 9. Município de Porto Walter. Fonte: Gleilson Miranda/Acervo SECOM, 2009.
Figura 11. Município de Santa Rosa do Purus. Fonte: Gleilson Miranda/Acervo SECOM, 2009.
Cidades do Acre: Experiências de
Figura 12. Município de Marechal Thaumaturgo. Fonte: Gleilson Miranda/Acervo SECOM, 2009.
Planejamento e Gestão
profissionalizantes, como o CEFLORA - Cen- que a gestão das cidades dos Altos Rios
tro de Formação e Tecnologias da Floresta, seja um modelo, onde o problema de di-
ligado à Universidade da Floresta/UFAC, que fícil solução transforma-se em oportuni-
trabalha com pesquisadores tanto do meio dade para gerar benefícios amplos e de
acadêmico como aqueles que são morado- longa duração.
res tradicionais da floresta.
O porte muito pequeno de todas essas ci- 3. 2. Cidades do Médio Juruá
102 dades permite ainda um total redesenho de Rodrigues Alves, Cruzeiro do Sul e
seu traçado que organize as atividades de Mâncio Lima
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
LIVRO TEMÁTICO 4
Figura 13. Município de Cruzeiro do Sul. Fonte: Gleilson Miranda/Acervo SECOM, 2009.
Cidades do Acre: Experiências de
Figura 14. Município de Rodrigues Alves. Fonte: Gleilson Miranda/Acervo SECOM, 2009.
Planejamento e Gestão
103
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
Figura 15. Município de Mâncio Lima. Fonte: Gleilson Miranda/Acervo SECOM, 2009.
Figura 16. Município de Manoel Urbano. Fonte: Gleilson Miranda/Acervo SECOM, 2009.
Planejamento e Gestão
104
Figura 17. Município de Sena Madureira. Fonte: Gleilson Miranda/Acervo SECOM, 2009.
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
LIVRO TEMÁTICO 4
Planejamento e Gestão
ri e Capixaba cidades serão apontadas por seus planos di-
retores, em fase de elaboração. Uma questão
Mesmo possuindo características muito urbana recente, cuja solução provavelmente
diferet ntes entre si - datas de criação muni- irá demandar muitos recursos financeiros,
cipal desde 1904 (Brasilé ia e Xapuri), anos refere-se aos trechos da BR-317 passando
1970 (Assis Brasil) e 1992 (Epitaciolândia e dentro das cidades de Capixaba, Epitaciolân-
Capixaba); taxas de urbanização variando de dia e Brasiléia. A tendência de aumento in-
68,68% (Epitaciolândia) a 37,34% (Capixa- tenso do tráfego, particularmente do tráfego
ba); taxas de desmatamento variando entre pesado, deve ser considerada para se pro-
48% (Capixaba) e 5% (Assis Brasil); composi- jetar deslocamentos seja da rodovia ou de
ção populacional diversificada determinan- instalações urbanas, em casos específicos. 105
do um mosaico no zoneamento rural desde Tanto a população como as administrações
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
terras indígenas, reservas extrativistas, pro- locais têm demonstrado preocupação com
jetos de assentamento, pequenas e grandes este fator. Os planos diretores, quando con-
Figura 20. Município de Assis Brasil. Fonte: Gleilson Miranda/Acervo SECOM, 2009.
106 Figura 23. Município de Xapuri. Fonte: Gleilson Miranda/Acervo SECOM, 2009.
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
LIVRO TEMÁTICO 4
cluídos, poderão dar indicativos sobre a ne- municípios juntos somam uma população de
cessidade de mudanças e de que forma estas 49.037 habitantes. Situam-se na região de pe-
devem ocorrer. Idealmente, o prazo para a netração da BR-364 no Acre, início da BR-317,
adoção de tais medidas deverá observar o eixos das rodovias estaduais AC-10 e AC-40,
prazo de conclusão da Estrada do Pacífico além da fronteira com a Bolívia ao longo do
no trecho peruano. Rio Abunã. Com população predominante-
mente rural (62,01% do total de habitantes),
3. 5. Cidades do Baixo Acre e Abunã a região é marcada por fazendas de grande e
Bujari, Porto Acre, Acrelândia, Plácido de médio porte, projetos de assentamento com
Castro e Senador Guiomard alta taxa de conversão florestal, consolidando
uma zona de fronteira agropecuária nas pro-
Sedes municipais de criação recente - Pláci- ximidades da capital Rio Branco.
do de Castro e Senador Guiomar (1976), Porto Pela escala da população, os municípios
Acre e Acrelândia (1992), Bujari (1993). Estes de Plácido de Castro e Senador Guiomar,
Cidades do Acre: Experiências de
Figura 25. Município de Bujari. Fonte: Sérgio Vale/ Acervo SECOM, 2007.
Planejamento e Gestão
107
Figura 26. Município de Porto Acre. Fonte: Acervo SECOM, 2007; B) SEMA, 2009.
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
Planejamento e Gestão
4. DIRETRIZES PARA AS
CIDADES FLORESTAIS 5. INSTRUMENTOS DE
PLANEJAMENTO E GESTÃO
É recomendável que todos os municípios, MUNICIPAL
mesmo sem a obrigação legal, elaborem seus
planos diretores. A criação de consórcios A ocupação urbana no Acre nos últimos
territoriais, como o caso do Alto Acre, pode 35 anos não foi acompanhada pelo que se
favorecer esse processo para os municípios deu nas áreas rurais no mesmo período. A
menores desde que haja amadurecimento meio caminho, a desarticulação rural foi em-
político para uma associação desse tipo. patada pela resistência das populações tra-
A questão do saneamento básico (prin- dicionais a ponto de se ter hoje, em todo o 109
cipalmente esgotamento sanitário e desti- estado, poucas áreas com situação fundiária
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
nação de resíduos sólidos) permanece sem ainda indefinidas, como ilustra o Mapa de
solução em quase todos os municípios, sen- Gestão. Mas, pelo curto espaço de tempo, o
do esta a reivindicação prioritária da po- contingente populacional que migrou para
pulação nas conferências das cidades e de as cidades, tanto das zonas rurais como de
meio ambiente realizadas em todo o estado. outras regiões do país, resultou na ocupa-
E apesar de extremamente custosa é fator ção urbana desproporcional ao preparo das
preponderante para qualquer cidade que se cidades. Esse processo tem ocasionado a fa-
almeja sustentável. velização, com periferias cada vez mais es-
Como forma de medir o peso das cidades palhadas, violência crescente, desemprego e
para a gestão estadual e seu desejável equi- outros problemas ocasionados pela aglome-
líbrio na floresta, é interessante que estudos ração desestruturada, sem bases de susten-
posteriores confrontem a destinação de in- tação e sem regras.
vestimentos entre duas grandes áreas: o mo- O descaso urbano, retrato não somente
saico de áreas protegidas e os atuais eixos de do território acreano, mas verdadeiramente,
integração rodoviária das sedes municipais. um problema nacional, apenas recentemen-
Apesar das inumeráveis dificuldades, as te começou a ser tratado como tal, com a
cidades acreanas ainda são bem pequenas regulamentação dos artigos 182 e 183 da
em termos de aglomeração populacional, o Constituição Federal, que tratam da políti-
que facilita a solução de muitos problemas. ca urbana. A partir da criação do Estatuto
A credibilidade externa conseguida pelo Es- da Cidade (Lei Federal n° . 10.257 de 10 de
tado nesses últimos anos favorece a atração julho de 2001) - que enquadrou os municí-
de recursos financeiros para programas de pios brasileiros quanto à obrigatoriedade
planejamento, organização e requalificação de elaboração de Planos Diretores Partici-
do espaço, como a elaboração e aplicação pativos para reger a política municipal de
dos planos diretores participativos. Os pla- planejamento e gestão territorial - e com a
nos diretores devem trazer um projeto para criação do Ministério das Cidades em 2003,
o governo federal iniciou uma campanha de 5. 1. Zoneamento Ecológico-Econômico
mobilização nacional para a realização das (ZEE I e II) – Estado do Acre
Conferências das Cidades nos âmbitos muni-
cipal, estadual e nacional. Uma das importantes contribuições do Zo-
No Acre, além da Conferência Estadual, as neamento Ecológico-Econômico conduzido pelo
Conferências Municipais foram realizadas em Governo do Estado do Acre, em sua primeira
2003 em todos os 22 municípios e em 2005, fase no ano de 2000, foi ter iniciado no estado
em 18 municípios. Sua realização ocorreu na um esforço conjunto para organização de dados
Cidades do Acre: Experiências de
mesma época das Conferências Municipais e e estudos sobre seu território e estabelecido a
Estadual de Meio Ambiente, o que, em suma, prática do planejamento sistemático e participa-
representa um novo momento de democrati- tivo para orientar a gestão do espaço territorial.
zação e descentralização dos processos deci- A realização do ZEE Acre foi um passo im-
Planejamento e Gestão
Planejamento e Gestão
zinhança entre um e outro município, na per- Quanto maior a escala de planejamento
meabilidade entre as zonas rurais e urbanas e, mais este se faz por representantes, ficando
nestas, as avenidas, ruas e bairros, a localiza- suscetível, portanto, a interpretações nem
ção de equipamentos urbanos, a distribuição sempre fiéis e distanciadas da realidade. Daí
espacial e qualidade dos serviços públicos, a importância da complementaridade entre
esses instrumentos. O ZEE do estado vai
acertar mais e mais à medida que os municí-
O uso impróprio da terra pode ser co- pios estiverem preparados para implemen-
nectado à falta de conhecimento sobre tá-lo e subsidiá-lo, não apenas com mapas,
a ecologia amazônica e as avaliações gráficos e tabelas, mas com a fala que vem
equivocadas acerca do potencial produ- do morador de cada localidade, seja de uma 111
tivo da floresta. Apesar disso, continua aldeia, uma unidade de conservação, uma
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
o autor: um saber milenar, meticuloso colocação ou colônia, um bairro, uma rua
e preciso, adaptado aos ecossistemas ou uma casa. Essa face humana é fundamen-
ambientais e que respeita profunda- tal em qualquer trabalho de planejamento,
mente a vida, encontra-se entre a cul- onde já o próprio termo instrumento, tão rí-
tura indígena brasileira. O processo de gido e seco, não contribui muito para fugir
desenvolvimento na Amazônia, que de- de tecnicismos desvairados.
sestabilizou e reduziu as populações in-
dígenas, vai contra esse conhecimento 5. 2. Plano Diretor Participativo - Feijó, Rio
pacientemente acumulado ao longo do Branco, Sena Madureira e Alto Acre
tempo7. (CAVALCANTI, 1991, p. 480)
O Estatuto da Cidade define o Plano
Diretor como o instrumento básico para
enfim, para olhar mais de perto é necessário, orientar a política de desenvolvimento e de
então, adotar escalas que propiciem um deta- ordenamento da expansão urbana do muni-
lhamento cada vez maior. Assim é que o Orde- cípio8. Determina, ainda, que este deve ser
namento Territorial Local – OTL, o Zoneamen- essencialmente participativo, cujo processo
to Econômico, Ambiental, Social e Cultural de de elaboração seja conduzido pelo poder
Rio Branco – ZEAS, os Planos de Desenvolvi- executivo local com a colaboração de todos
mento Comunitário - PDCs e Planos Diretores os setores da sociedade. O artigo 52 do Es-
são os instrumentos capazes de gerar tais in- tatuto da Cidade prevê julgamento por im-
formações mais lapidadas, utilizando escalas probidade administrativa aos prefeitos que
7 CAVALCANTI, Clóvis. Government policy and ecological concerns: some lessons from the Brazilian
experience. In: COSTANZA, R. (ed.) Ecological economics: the science and management of sistaina-
bility. New York: Columbia University, 1991. p. 474-485.
8 BRASIL, Ministério das Cidades. Plano Diretor Participativo – guia para elaboração pelos municípios
e cidadãos. Brasília, 2004.
não construírem o Plano Diretor ou que gerou, em seu processo de elaboração, um
o fizerem sem a participação da sociedade. IDF local.
Dois princípios básicos orientam a cons- O próprio IDF acabou tornando-se um
trução do Plano Diretor: garantir a gestão de- modelo, cuja pesquisa de indicadores e me-
mocrática e a função social da propriedade. todologia foi criada localmente. A equipe
O Plano Diretor Participativo (PDP), de- técnica do governo estadual trabalhou com
pois de concluído, transforma-se em Lei Mu- a equipe do governo federal para incluir a
nicipal e é obrigatório para municípios: metodologia de Feijó na implantação de um
programa nacional de elaboração de IDF
a Com mais de 20.000 habitantes; (SOUZA, 2006).
a Integrantes de regiões metropolita- As diretrizes apontadas pelo PDP de Feijó
nas e aglomerações urbanas; com prazos estabelecidos, estão em fase de
a Com áreas de especial interesse execução como: o parque urbano no lugar
turístico; da antiga pista de pouso e a estruturação
a Situados em áreas de influência de do setor técnico de aprovação de projetos
empreendimentos ou atividades com na prefeitura.
significativo impacto ambiental na re-
gião ou no país. Sena Madureira
Os municípios com mais de 20.000 ha- Sena Madureira foi o segundo município
bitantes tiveram prazo até outubro de 2006 do Acre a ser contemplado com recursos do
para votarem seus Planos Diretores. No Ministério das Cidades para a construção do
Acre, enquadram-se nessa categoria: Rio seu PDP. A prefeitura contou também com a
Branco, Sena Madureira, Feijó, Tarauacá e parceria do governo estadual na construção
Cruzeiro do Sul. A seguir, uma breve descri- do PDP em 2005, que foi lançado no mes-
ção da situação atual de cada um deles. mo mês da 2a. Conferência Municipal das
Cidades sendo sua elaboração finalizada em
Feijó 2006. O PDP de Sena Madureira foi oficiali-
zado através da lei municipal n. 185/06 de
Na Conferência Municipal de Feijó, em 09 de outubro de 2006. No entanto, sua im-
2003, foi proposto pela população como plementação encontra-se pendente.
prioridade a elaboração do Plano Diretor.
A prefeitura de Feijó obteve o apoio da Se- Rio Branco
cretaria das Cidades do Estado do Acre para
buscar recursos junto ao Ministério das O município de Rio Branco também ini-
Cidades. Feijó foi o primeiro município da ciou seu Plano Diretor Participativo em
Região Norte a obter recursos aprovados 2005, junto com a 2a Conferência Mu-
pelo Ministério e foi, também, o primeiro a nicipal das Cidades, tendo por parceiro
ter seu Plano Diretor aprovado, o que ocor- principal o Governo do Estado. No caso de
reu após um ano de elaboração, em maio Rio Branco, foi feito uma revisão do Plano
de 2005. Diretor de 1986, incluindo as atualizações
Por iniciativa do Governo do Estado, a de acordo com o Estatuto da Cidade.
Secretaria das Cidades fez uma articulação O PDP de Rio Branco foi aprovado e
com a Secretaria Estadual de Educação para instituído através da Lei N°. 1.611 de 27
se fazer um Plano Diretor modelo, a ser em- de outubro de 2006 e estabelece as regras
basado em uma pesquisa socioeconômica para o desenvolvimento urbano da capi-
para construir o Índice de Desenvolvimento tal acreana, tornando-se um instrumento
Familiar (IDF) do município. Dessa forma, básico da política de desenvolvimento do
Feijó tornou-se, novamente, o primeiro mu- município e um orientador da atuação do
nicípio do Brasil a ter um Plano Diretor que poder público e da iniciativa privada na
construção dos espaços urbanos e rural e 5. 3. Planta Diretora - Altos Rios
na oferta de serviços públicos essenciais.
Sua elaboração contou com a efetiva par- O governo do Estado tem promovido,
ticipação social. para as cidades dos Altos Rios, um esforço
Em 2008 é instituída a Comissão Téc- do que se pode chamar de gestão trans-
nica de Apoio à Implementação do Plano versal. Trata-se de um pacote de medidas
Diretor do Município de Rio Branco, atra- projetado especialmente em razão das
vés do Decreto Nº. 2.790 de 30 de maio particularidades que tais cidades apre-
Planejamento e Gestão
Branco dão uma clara noção do quanto um novos aeródromos, desobstrução dos
instrumento de planejamento - que se ori- rios, recuperação de portos, elaboração
gina com uma leitura tanto técnico como de planta diretora com ênfase na auto-
perceptiva da realidade atual do municí- -suficiência local).
pio – é importante para orientar a admi- Denominamos transversal pelo fato
nistração local. Por exemplo, somente com de que esse agrupamento feito pela ad-
o Plano Diretor, a prefeitura veio, a saber, ministração estadual também acaba por
concretamente que 40% dos lotes urbanos enfatizar as limitações da definição de
da Capital estão com situação fundiária políticas públicas por regionais em cer-
indefinida. tos casos, vindo a romper com a histórica
Alguns dos produtos gerados pelo intransponibilidade das bacias hidrográ- 113
PDP podem ser consultados no site da ficas ao promover a articulação intra-es-
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
prefeitura de Rio Branco (www.pmrb. tadual pela via de um modelo de gestão.
ac.gov.br). Ou seja, pensar tais municípios em um
mesmo conjunto de ações, pelo que têm
Cruzeiro do Sul e Tarauacá de semelhantes, amplia a possibilidade
de soluções de referência entre um e ou-
O município de Cruzeiro do Sul já pos- tro e enfatiza seu caráter de isolados me-
sui o seu Plano Diretor, porém o mesmo nos como uma condição periférica em re-
necessita ser revisado, estando em pro- lação às cidades dos médios rios e mais
cesso de atualização. A Lei que instituiu o como uma particularidade local.
Plano Diretor Participativo de Cruzeiro do A Planta Diretora é um instrumento
Sul é a Nº 453/2006, de 07 de outubro simplificado de planejamento, que está
de 2006. sendo utilizado pela administração esta-
O processo de elaboração do Plano Di- dual (Secretaria das Cidades e Secretaria
retor de Tarauacá foi finalizado apenas em Estadual de Obras Públicas) como apoio à
2007, e instituído através da lei municipal gestão local para traçar um plano de ações
n. 644/07 de 22 de novembro de 2007. básicas nos municípios de difícil acesso.
No entanto, o mesmo ainda não esta sendo Seu objetivo principal é buscar o melho-
implementado pelo município. ramento na gestão desses municípios, des-
tacar os principais elementos e as macro-
Alto Acre -diretrizes para seu desenvolvimento. Na
elaboração da Planta Diretora foram pro-
Os municípios da Regional do Alto Acre, movidas reuniões nas Câmaras de Verea-
juntamente com o município de Capixaba, dores com instituições e representantes
estão elaborando seus Planos Diretores locais para definir ações a executar em
através do Consócio de Desenvolvimento In- diferentes campos: apoio às associações,
termunicipal do Alto Acre e Capixaba. produção, renda, transporte, energia, sa-
neamento ambiental, infra-estrutura urba- de subsidiar esses estudos, inicialmente foi
na, educação, saúde, serviços, relação do feita uma caracterização socioambiental ao
Estado com as prefeituras e parcerias9. longo da BR-317 de forma a identificar os
principais problemas da região e apontadas
5. 4. Ordenamento Territorial Local algumas soluções a partir da sistematização
das informações levantadas (ACRE, 2004).
O Ordenamento Territorial Local (OTL) Nesta etapa foi identificado o município de
faz parte das estratégias de implementação Brasiléia para a realização do OTL local.
Cidades do Acre: Experiências de
do ZEE Acre, tendo como referência o mapa A seleção do município de Brasiléia como
de gestão do estado. O ZEE fornece as bases piloto para a elaboração do OTL foi uma
gerais e o OTL auxilia na leitura especifica proposta que nasceu da preocupação com
de determinada área com subsídios mais de- os possíveis efeitos negativos da conclusão
Planejamento e Gestão
parceria com as prefeituras locais, governo de zonas e indicativos de uso) e 4. Plano Lo-
do Estado, CONDIAC – Consórcio de Desen- cal de Ordenamento Territorial aprovado e
volvimento Intermunicipal do Alto Acre e pactuado para posterior implementação.
Capixaba, GTZ – Deutsche Gesellschaft für A partir do OTL de Brasiléia foi possí-
Technische Zusammenarbeit (Agência de vel estender a metodologia para elabora-
Cooperação Técnica Alemã) e DED – Deuts- ção de outros OTLs nos demais municípios
cher Entwicklungsdienst (Serviço Alemão de do Estado.
Cooperação Técnica e Social). Como forma
Planejamento e Gestão
atores locais. atua na região como articulador e gestor
dos projetos de caráter territorial, que en-
5. 5. Zoneamento Econômico, Ambien- volvem questões comuns a todos os mu-
tal, Social e Cultural – Rio Branco nicípios, a saber: a condição de fronteira
com países coma a Bolívia e Peru, o Rio
O Zoneamento Econômico, Ambiental, Acre; a Estrada do Pacífico; rota de turis-
Social e Cultural - ZEAS do município de Rio mo entre outras questões. As atividades
Branco é um instrumento de gestão terri- executadas pelo CONDIAC são previamen-
torial rural criado pela atual administração te discutidas e necessitam de aprovação
municipal para auxiliar a reorientação das por parte do Conselho de Desenvolvimen-
políticas públicas e a tomada de decisões. to do Território. 115
Difere do Plano Diretor principalmente em À época de sua formação, o CONDIAC
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
razão da escala de análise: 1:100.000, com elaborou seu planejamento para a regio-
macro-estratégias territoriais em 1:50.000 nal do Alto Acre e Capixaba; vislumbrando
e 1:10.000 com definição de áreas-piloto de um período de 10 anos, sendo o mesmo
operacionalização. A interface do ZEAS com revisto recentemente em razão da preo-
o Plano Diretor se faz de forma mais especi- cupação causada por investimentos em
ficamente, nas propostas a serem definidas obras de grande porte na região como: as
para a Macro zona rural onde serão defini- pontes binacionais Brasil-Bolívia (Brasi-
das as zonas rural, urbana, florestal, pecuá- léia) e Brasil-Peru (Assis Brasil); a estrada
ria e ribeirinha. do Pacífico, que ligará a BR-317 ao porto
O diagnóstico do município, consi- de Ilo, no Peru; a instalação de indústrias
derando os temas de recursos naturais, como a Álcool Verde (Capixaba), fábrica de
socioeconomia e cultural-político é um preservativos e fábrica de pisos de madei-
produto relevante para a sociedade e ges- ra (ambas em Xapuri), aviário (Brasiléia)
tores. O ZEAS terá como principal resul- e possível construção da fábrica do Leite
tado o Mapa de Gestão do município, na Glória (Iñapari/Peru). Além de a região ter
escala de 1:100.000, além do Documento sido altamente impactada pelas queima-
Síntese. das de 2005, e está inserida no projeto de
O ZEAS de Rio Branco vem sendo cons- viabilidade turística (Caminhos do Pacífi-
truído de forma participativa, constituindo- co) que vem sendo realizado pelo Governo
-se em uma das estratégias fundamentais do Estado e o SEBRAE.
da segunda fase do Zoneamento Ecológico Como forma de se preparar para a atu-
Econômic o do Acre para planejamento em al dinâmica de desenvolvimento da região,
escala meso-territorial. algumas prioridades foram estabelecidas
O processo de sua construção vem sendo pelo Conselho do Território, entre elas
realizado pelo Governo do Estado em parce- destaca-se a elaboração dos planos direto-
ria com a prefeitura de Rio Branco, Governo res nos cinco municípios em que o CON-
DIAC atua. Neste sentido o CONDIAC ob- contempla ainda, outros instrumentos na
teve apoio financeiro do WWF e suporte instância estadual, definidos como Zonas
técnico e instrumental da Secretaria das de Atendimento Prioritário – ZAP’s, as Zo-
Cidades, FUNTAC e D&D. nas Especiais de Desenvolvimento – ZED’s
As prefeituras do território estão rea- e Planos de Desenvolvimento Comunitário
lizando, sob a coordenação geral do CON- – PDC’s.
DIAC, os Planos Diretores Participativos Os estudos do Zoneamento Ecológico-
em seus municípios. A realização concomi- -Econômico Fase II identificou seis Zonas
Cidades do Acre: Experiências de
tante foi projetada para que cada um dos de Atendimento Prioritário: ZAP Rio, ZAP
PDPs, além das especificidades locais, con- Cidade, ZAP Assentamento, ZAP Unidades
tenha um componente territorial, no qual de Conservação – UC’s, ZAP Terra Indíge-
serão tratadas questões de âmbito regional na – T.I. e ZAP Rodovias Federais – BR.
Planejamento e Gestão
Planejamento e Gestão
baixa vulnerabilidade ambiental e alto ca- atividades produtivas.
pital humano. São áreas de maior dinâmica São objetivos básicos do Plano de De-
econômica, em condições de oferecer opor- senvolvimento Comunitário: a) proporcio-
tunidades para todos, localizadas na área nar melhorias na qualidade de vida das
de influência direta das rodovias federais comunidades rurais integrando serviços
BR-317 e BR-364, dotadas de melhor infra- básicos de educação, saneamento, ci-
-estrutura, com empreendimentos consoli- dadania, assistência social e saúde; b)
dados, uma ocupação territorial definida e promover o fortalecimento comunitá-
um significativo capital social. Os estudos do rio como estratégia de desenvolvimento
Zoneamento Ecológico-Econômico Fase II econômico sustentado; c) consolidar es-
apontam quatro Zonas Especiais de Desen- tratégias de produção sustentável com 117
volvimentos: Juruá/Tarauacá Envira, Alto foco na floresta e na recuperação de
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
Acre, Purus e Baixo Acre. áreas alteradas. Estes objetivos serão
O Plano de Desenvolvimento Comuni- atingidos com o envolvimento das insti-
tário – PDC é uma ferramenta de plane- tuições e dos técnicos no fortalecimento
jamento, em uma escala mais detalhada, da autonomia das comunidades, tendo o
118
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
LIVRO TEMÁTICO 4
Figura 33. Oficina comunitária para elaboração de PDC. Fonte: SEMA, 2009.
Planejamento e Gestão
ta de gestão dos territórios constituídos. No sociais tendo como princípio a participação
Acre, os territórios existentes são: da população e das comunidades para dar
a Território da Cidadania do Alto Acre e Ca- início a um planejamento territorial e ha-
pixaba: Composto pelos Municípios de Ca- bitacional em consonância com o Governo
pixaba, Xapuri, Brasiléia, Epitaciolândia e Federal através do Ministério das Cidades.
Assis Brasil. Tendo sido homologado pelo O Plano tem como base a articulação da po-
Conselho Estadual de Desenvolvimento lítica urbana e habitacional do Estado e de
Rural Florestal Sustentável no ano de 2003 seus Municípios.
e incorporado pelo Ministério do Desenvol- As diretrizes básicas do Plano Habita-
vimento Agrário/Secretaria de Desenvolvi- cional de Interesse Social são de beneficiar,
mento Territorial na política nacional de prioritariamente, a população que não tem 119
fortalecimento de território rurais. A partir condições de acesso a terra, a infra-estrutu-
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
de 2008, passa a fazer parte do Programa ra e a habitação, garantindo um atendimen-
Território da Cidadania. to amplo e sem diferenciação individual ou
a Território da Cidadania Vale do Juruá: Inte- espacial, o direito a vida e a moradia digna, a
gra este território os municípios de Cru- acessibilidade urbana e aos serviços visando
zeiro do Sul, Porto Valter, Rodrigues Alves, à promoção humana.
Porto Valter e Marechal Thaumaturgo. O Estado do Acre, frente a sua reali-
Homologado pelo Conselho Estadual de dade socioeconômica, física e cultura,
Desenvolvimento Rural Florestal Susten- esta diante de um grande desafio, o de
tável do Estado Acre no ano de 2006 e executar seu Plano Habitacional de Inte-
incorporado pelo Ministério do Desenvol- resse Social. O Estado possui 22 muni-
vimento Agrário/Secretaria de Desenvol- cípios, seu cenário apresenta inúmeras
vimento Territorial na política nacional de dificuldades no processo de elaboração,
fortalecimento de território rurais. A partir que vão desde a precariedade ou falta
de 2009, passa a fazer parte do Programa de corpo técnico nos municípios até os
Território da Cidadania. fatores físicos sazonais que isolam to-
a Território Rural do Baixo Acre: Ainda não tal ou parcialmente varias cidades, além
incorporado ao Programa Território da dos poucos recursos financeiros para
Cidadania: Compreende os Municípios de se implantar e manter um processo de
Rio Branco, Plácido de Castro, Acrelândia, planejamento estadual.
Porto Acre, Senador Guiomard e Bujari. Portanto, o maior propósito do Governo
do Estado do Acre com a implantação do
5. 9. Plano Nacional de Habitação de Plano Habitacional de Interesse Social é a
Interesse Social elaboração e implementação de ações de-
mocráticas que venha garantir, além do di-
Diante da grande demanda existente reito a moradia, melhores condições de vida
no Estado do Acre oriunda do êxodo ru- a toda a população do Estado.
6. COSIDERAÇÕES FINAIS que para o cumprimento da legislação fe-
deral, o Plano Diretor não teria condições
A partir dos indicativos do ZEE/AC hou- nem técnicas e nem financeiras de diagnos-
ve um amplo desdobramento na elaboração ticar e propor diretrizes para a gestão de
de outros instrumentos de gestão em suas todo o extenso território municipal, caso o
diversas escalas. A participação da sociedade mesmo não seja trabalhado em concomi-
e de equipes técnicas multidisciplinares é a tância com outros instrumentos de gestão.
condição prioritária para garantir o sucesso Neste sentido, no Acre, a tarefa de detalhar
Cidades do Acre: Experiências de
das ações e propostas planejadas. a zona rural e sua definição de uso ficou a
A transformação das propostas finais cargo dos Ordenamentos Territoriais Local,
em políticas públicas depende, em grande onde suas diretrizes podem ser incluídas
medida, do grau de organização da socie- como lei complementar no Plano Diretor.
Planejamento e Gestão
dade e da vontade política. Hoje, além do O grande desafio para o governo é fa-
ZEE/AC, somente o Plano Diretor tem força zer a integração dos vários instrumentos
de lei, garantido pela Constituição Federal. de gestão e também a implementação de
Uma boa precaução é fortalecer a integra- ações de desenvolvimento que promovam a
ção dos diferentes instrumentos e o contato melhoria do padrão de qualidade ambiental,
entre as equipes de elaboração para que o entre os quais a redução do desmatamento,
Plano Diretor incorpore, no campo de seus e da qualidade de vida das populações pro-
limites, as diretrizes apontadas nos outros movendo um melhor aproveitamento dos
documentos. Há de se considerar, contudo, recursos ambientais.
120
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
LIVRO TEMÁTICO 4
Livro Temático | Volume 4
Cultural Político:
Memórias, Identidades
e Territorialidades
5
Capítulo
Acre: Integração Transfronteiriças
Com o Peru e a Bolívia
ABREU, Renata Gomes de. Acre: Integração Transfronteiriças Com o Peru e a Bolívia. In: ACRE, Secretaria de Estado de Meio Ambiente. Cultural político:
memórias, identidades e territorialidade. ZEE/AC, fase II, escala 1:250.000 / Programa Estadual de Zoneamento Ecológico-Econômico do Acre. - Rio Branco, Acre:
SEMA, 2010, p. 136-164. Disponível em: <https://historiapt.info/pars_docs/refs/4/3809/3809.pdf>. Acesso em 4 set. 2021.
Acre: Integração
Transfronteiriças Com
Acre: Integração Transfronteiriças Com o
o Peru e a Bolívia
136
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
LIVRO TEMÁTICO 4
1. INTRODUÇÃO
P
or estar inteiramente contido na rações transfronteiriças, tomando-se como
Faixa de Fronteira do Brasil, o Es- referência o limite internacional. Na segun-
tado do Acre está sujeito às norma- da parte consta um estudo mais detalhado
tivas instituídas pela lei que criou das interações entre o leste acreano e o De-
esse território especial há mais de trinta partamento de Pando na Bolívia.
anos (Lei 6.634/1979). No entanto, para
análise e avaliação das interações transfron- 2. ASPECTOS GERAIS
teiriças este trabalho focaliza as interações
na área marginal à divisa internacional do 2. 1. Localização das sedes municipais
Acre com a Bolívia e com o Peru. Como ocor- em relação ao limite internacional
re em outras regiões de fronteira, o contor-
no dessa área é irregular porque os efeitos O primeiro aspecto a ser registrado é que
territoriais das interações podem chegar ao dos 22 municípios que compõem o Acre, 17
interior do Estado e ultrapassar os seus limi- deles fazem divisa com os países vizinhos. No
tes. O mesmo ocorre do outro lado da linha entanto, somente 07 desses têm sede próxima
divisória, onde os efeitos das interações com ou na linha de fronteira (Acrelândia, Plácido
o Brasil ultrapassam as áreas marginais aos de Castro, Capixaba, Epitaciolândia, Brasiléia,
limites da Bolívia e do Peru com o Acre. Assis Brasil e Santa Rosa do Purus), alguns dos
Na primeira parte deste estudo serão quais localizados na Regional de Desenvolvi-
destacados alguns aspectos gerais das inte- mento do Alto Acre (Leste do Estado).
Peru e a Bolívia
zonais cortando o Estado e o uso de avione- nos próximos anos serão importantes para a
tas é freqüente. Nas margens dos principais gestão do território as interações transfron-
rios estão localizadas algumas sedes munici- teiriças (formais e informais, positivas ou
pais, dentre as quais Marechal Thaumatur- negativas) no leste acreano.
go e Porto Walter,no Rio Juruá e Assis Bra- Com a conexão transcontinental é prová-
sil, Brasiléia e Epitaciolândia, no Rio Acre. vel que a pressão para alterar o ritmo e o
No Leste acreano, onde o povoamento tipo de uso do território será ainda mais sig-
é relativamente mais denso, principalmen- nificativa a Oeste do Estado (Iglesias & Aqui- 137
te no entorno do município de Rio Branco no, 1999 citado em M Piedrafita & Aquino
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
(45% da população estadual), os municípios 2005).
são menores. Nesta porção do Estado, além
do Vale do Rio Acre, que constitui um eixo 2. 2. Cidades-gêmeas
importante na disposição espacial do po-
voamento, uma rodovia asfaltada (BR-317) O segundo aspecto é que algumas sedes
conecta vários municípios limítrofes entre si municipais apresentam a singularidade de
e com a linha de fronteira. A recente exten- serem vizinhas a cidades ou povoados do
são dessa rodovia até Assis Brasil foi com- país vizinho (casos de Brasiléia e Epitaciolân-
plementada com a construção de uma ponte dia com Cobija, capital do Departamento de
sobre o Rio Acre (2001—2005) na fronteira Pando na Bolívia (Figura 1); Assis Brasil com
tripartite com o Peru e a Bolívia. Iñapari no Peru e o povoado de Bolpebra na
Os efeitos territoriais e logísticos desses Bolívia). Santa Rosa do Purus está relativa-
dois fatos (rodovia e ponte) constituem ele- mente próxima do povoado de Palestina (em
mentos a serem cuidadosamente monitora- mapas antigos aparece como Santa Rosa), e
dos nos atuais e futuros planos de gestão de Puerto Esperanza, do lado do Peru, sem
do território acreano, pois podem alterar a chegar ainda a formar com estes povoados
estrutura espacial e o ambiente, principal- uma relação do tipo “cidade-gêmea”. Como
mente na porção ocidental do Estado. Isso apresentado no esquema (Figura 2), deno-
porque a rodovia BR-317 faz parte de um minamos genericamente de “cidades-gême-
desenho muito mais ambicioso, da Iniciativa as” os casos de cidades vizinhas separadas
para Integração da Infra-Estrutura Regional pela divisa internacional (Coelho, 1992; MI/
Sul-Americana (IIRSA, 2000), no qual um Grupo RETIS, 2005; Machado, 2005).
dos eixos transcontinentais é o eixo Brasil
nais e transnacionais, além de serem luga- também de sua natureza, grau de dependên-
res favoráveis para promover a colaboração cia em relação a atividades formais e infor-
entre países vizinhos, como, por exemplo, mais e/ou ilegais ou grau de complementa-
Peru e a Bolívia
a Zona de Fronteira do Acre com a Bolívia 2006 e os mapas da faixa de fronteira (MI/
Com a Bolívia, o Acre compartilha uma Grupo RETIS, 2005), as áreas acreanas limí-
linha divisória de 618 km, correspondente trofes a Pando apresentam atividades agro-
às províncias bolivianas de Nicolas Suárez pecuárias de baixo valor mercantil (mandio-
e Abunã ambas do Departamento de Pando. ca, arroz, milho, pecuária, extração vegetal),
Os municípios acreanos nessa divisa são seis sejam elas exploradas por grandes fazendas
(Brasiléia, Epitaciolândia, Xapuri, Capixaba, ou em pequenas e médias propriedades, ou
Plácido de Castro e Acrelândia) e somam em reservas extrativistas. É preciso registrar 139
89.302 habitantes (13% da população do que no leste acreano existem tanto áreas de
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
Acre). O município de Assis Brasil embora colonização antiga (Plácido de Castro) como
compartilhe um curto segmento com o dis- assentamentos mais recentes (Brasiléia,
trito de Bolpebra (Departamento de Pando) Capixaba) enquanto do lado boliviano não
tem uma interação muito maior com o Peru existem iniciativas similares. Do lado boli-
(Departamento de Madre de Dios). viano a atividade econômica principal é a
As províncias bolivianas de Nicolas Suá- extração de madeira e outros produtos flo-
rez e Abunã apresentam baixa densidade de- restais (castanha, borracha), porém recente-
mográfica com exceção de Cobija, capital do mente o governo boliviano licitou áreas de
Departamento de Pando. Enquanto Nicolas exploração com manejo florestal próximo à
Suárez registra 48.923 habitantes (2009) divisa com o Acre.
dos quais 83,5% em Cobija, a província de O mapa (Figura 3) registra as áreas já desma-
Abunã registra 3.691 habitantes e duas ci- tadas (cores claras), o delineamento dos princi-
dades (Santa Rosa Del Abunã e Ingavi). Cobi- pais rios, os focos de queimada (cor vermelha)5
ja (40.883 habitantes em 2009) e Brasiléia e as vias principais de circulação (em negro).
(20.236 habitantes em 2009) são cidades Além dos aspectos mais óbvios, observa-se
gêmeas articuladas por ponte e por relações que ao Sul de Capixaba, à margem do limite
assimétricas, graças à melhor infraestrutura internacional, os focos de queimada sugerem
da primeira, haja vista que se trata da capi- que novos assentamentos e o deslocamento
tal de Pando. da mão de obra brasileira para trabalhar nos
Cada província na Bolívia é dividida em castanhais e seringais bolivianos provocam
“secciones” (a menor unidade administrati- um adensamento da população rural associa-
do Peru a presença de grandes firmas mul- te internacional, o vale do Rio Ucayali, onde
tinacionais que exploram recursos florestais está Pucallpa, forma um segundo eixo de
e minerais a partir de uma logística própria, povoamento igualmente distante do limite
define mais forte e diretamente a funcionali- internacional entre o Peru e o Brasil.
dade do território em termos dos mercados O mapa (Figura 4) indica os focos de
internacionais do que na fronteira Acre - Bo- queimadas e a difusão e dispersão do po-
lívia, onde a conexão eventual com o merca- voamento relacionado à exploração madei-
do internacional se faz através de mercados reira e outros produtos extrativistas. Foram
regionais e nacionais. acrescentados também os lugares de ação
No Oeste acreano, desde Santa Rosa do evangélica, que estão promovendo o deslo-
Purus até Rodrigues Alves, os municípios camento de populações indígenas de outras
acreanos são limítrofes ao Departamento regiões peruanas para a área de fronteira
de Ucayali e registram segundo a contagem (Piedrafita, Aquino, 2005). Outra informa-
populacional do IBGE ano 2007, uma po- ção relevante é a linha de cabeceiras entre
pulação total de 148.902 habitantes, o que as bacias amazônicas dos rios Ucayali, Juruá
representa 22,7% da população estadual). e Purus. A linha de cabeceiras é elemento
Porém a maioria deles tem sede ao longo fundamental no desenho de uma geopolí-
da BR-364 no Norte do Acre, onde se con- tica ambiental para as zonas de fronteira
centra a maior parte da população de cada internacional da Amazônia Ocidental. Trata-
município. Apenas um deles (Santa Rosa do -se de uma mudança importante em relação
Purus) tem sede na divisa internacional. A ao passado, quando os trabalhos clássicos
mesma fonte indica que a densidade demo- sobre limites internacionais enfatizavam o
gráfica varia desde o mínimo de 0,64 hab papel dos divisores entre bacias hidrográfi-
6 São eles: Assis Brasil, Sena Madureira, Manoel Urbano, Santa Rosa do Purus, Feijó, Jordão, Mal.Thau-
maturgo, Porto Walter, Cruzeiro do Sul, Rodrigues Alves e Mâncio Lima.
cas somente como elemento explicativo do de Santa Rosa do Purus. Os fluxos imigra-
seu desenho. Na atualidade e em função do tórios, difusos no território, e o fraco inves-
avanço dos estudos ambientais, o conheci- timento institucional, restrito à perspectiva
mento e controle sobre a linha de cabeceiras tática (prefeitura, aeródromo, batalhões de
são fundamentais não só para o monitora- fronteira), nos levam a caracterizar esse
Peru e a Bolívia
2000, ainda como Reserva) enquanto do ou- frentes, esses segmentos se caracterizam
tro lado da divisória, em território brasileiro, pela ausência de infra-estrutura, conectan-
foi criada uma unidade de conservação de do núcleos de um e outro lado da frontei-
proteção integral (Parque Estadual de Chan- ra e pela ausência de infra-estrutura insti-
dless). Significa que os parques criados nos tucional. Não é surpreendente, portanto,
dois lados da divisa internacional formam que nesse extenso segmento fronteiriço
uma “zona-tampão” no entremeio de dois cortado pelos formadores do rio Envira, os
outros tipos de territorialidade fronteiriça Povos Indígenas lá situados (Ashaninka, 141
– margem e frente indígena e extrativista Madija, Shanenawá e Kaxinawá) reclamam
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
(Figura 5)8. maior e melhor apoio dos governos estadual
A finalização da demarcação de limites e federal.
entre o Brasil e o Peru (1909) transformou a A Oeste do segmento de tipo “margem”
secular mobilidade indígena nos altos vales em território acreano situa--se o Parque Na-
do Purus e Juruá em trânsito transfronteiri- cional Serra do Divisor (criado em 1989) e
ço entre dois Estados. A tendência dos go- diversas terras indígenas, o que nos leva a
vernos tem sido a de permitir esse trânsito, caracterizar também esse segmento como
mas na atualidade ocorre um “empilhamen- do tipo “zona tampão”. Como observado aci-
to” de outros fluxos transfronteiriços além ma, a criação de uma zona tampão não impe-
da mobilidade secular intermitente entre de a mobilidade indígena transfronteiriça. É
grupos da mesma etnia que vive em lados o caso dos Ashaninkas no município de Mal.
opostos do limite internacional. Registra-se Thaumaturgo (T.I. Kaxinawá / Ashaninka),
a chegada de fluxos imigratórios indígenas e na foz do rio Breu e no rio Amônia (T.I. Kam-
seringueiros de outras regiões do Peru e do pa do rio Amônia), ambos pertencentes à
Acre. No Parque Chandless, por exemplo, já bacia do (alto) Rio Juruá. No Peru, os Asha-
existe uma frente pioneira de seringueiros9, ninkas chegam a mais de 80 mil indivíduos,
até agora tolerada pelo governo estadual espalhados ao longo dos rios Ucayali, Tam-
(Figura 6), e o mesmo ocorre no entorno bres, Perene e nas cabeceiras do Rio Juruá.
7 Agradecemos a Dra. Ana Luisa Coelho Netto (UFRJ) por chamar nossa atenção para essa relevância
da linha de cabeceiras, elemento geográfico sistematicamente subestimado em trabalhos sobre as
implicações geopolíticas da questão ambiental na fronteira internacional amazônica.
8 A tipologia de interações fronteiriças, aqui adotada, é uma adaptação livre de Cuisinier-
-Raynal (2001).
9 Frentes de seringueiros nos altos cursos dos rios Purus e Juruá fazem parte da histórica
regional, com épocas de afluxo e refluxo. Faltam novos estudos sobre a complexa ‘cultura
da seringa’ no sentido de abordá-la como um tipo de gênero de vida e não apenas como luta
pelo direito de explorar a floresta, como fez com sucesso Chico Mendes em seu momento.
Acre: Integração Transfronteiriças Com o
Peru e a Bolívia
Também existem aldeias Ashaninka nos rios Embora existam críticos da presença militar
Envira e Tarauacá. próximo a terras indígenas é preciso conside-
Peru e a Bolívia
Os Ashaninkas têm sido com frequência rar que não só sua presença é garantida pela
mencionados na mídia regional e nacional Constituição Federal como os militares atu-
desde 2001 devido às denuncias feitas pela am como fiel da balança em casos de tensão
comunidade dos dois lados do limite interna- transfronteiriça e de tensão entre indígenas,
cional sobre a expansão das frentes de explo- extratores de madeira e seringueiros do lado
ração madeireira comandadas por grandes brasileiro (ver ZEE V – capítulo 3.3)11.
empresas transnacionais do lado peruano e O Parque Nacional da Serra do Divisor
suas investidas do lado brasileiro para a extra- constitui uma zona-tampão (“buffer zone”) 143
ção ilegal do mogno. Não obstante as denún- do lado do Brasil, que se encontra com uma
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
cias recaírem sobre os peruanos, uma frente zona-tampão do lado do Peru. O complexo
extrativista também avança de Cruzeiro do montanhoso de Contamana (altitude média
Sul em direção à fronteira com o Peru, subin- 500m) abriga oficialmente uma reserva in-
do o vale do Rio Juruá, como indicam os focos dígena de índios isolados Isconahua (família
de queimada ao longo do grande rio (Figura lingüística Pano) e, desde 2006, uma unidade
4)10. Em sentido inverso, o trânsito transfron- de conservação, a Zona Reservada Sierra del
teiriço de traficantes de pasta base e de cocaí- Divisor situada na fronteira do departamento
na utiliza a mesma rota do Vale do Juruá para de Ucayali (Província de Coronel Portillo) com
Cruzeiro do Sul (Aquino, 2004). Um dos vários o Acre, que acompanha a linha divisória em
efeitos das denúncias foi atrair a atenção do direção Norte até o Departamento peruano
exército para essa região, que instalou um ba- de Loreto (província de Requena)12. Estudos
talhão em Mal.Thaumaturgo, com a previsão apontam que Contamana e a área cortada por
de instalação de outros batalhões de fronteira. afluentes da margem esquerda do Alto Juruá
10 Não é contraditória a associação no terreno entre frentes madeireiras e focos de queimada: é comum
na região amazônica que a extração da madeira seja seguida por frentes de posseiros e de fazen-
deiros, responsáveis pelas queimadas. No caso específico do oeste acreano deve-se acrescentar a
exploração de lenha para uso doméstico e para a produção de carvão como fonte de energia, e que
é utilizada por atividades legais e ilegais na área rural. No caso das ilegais estamos nos referindo
às “cozinhas” de processamento da pasta base de cocaína, como sugerida por pesquisa recente (não
publicada) do Grupo Retis/UFRJ
11 Em meio às terras indígenas se situa a RESEX Alto Juruá. Diferenças entre a territorialidade e os ob-
jetivos de indígenas e das populações ribeirinhas criam tensões freqüentes (como em outras regiões
amazônicas), pois os dois grupos reivindicam direitos sobre o território, o que sugere a necessidade
de uma negociação prévia à criação de áreas indígenas e reservas extrativistas e o posterior monito-
ramento de suas interações.
12 Faz parte da proposta de criação de um corredor biológico que congregaria o Parque Madidi na
Bolívia, passando pelo Parque Nacional Bahuaja-Sonene, o Parque Nacional de Manu e o Parque Na-
cional do Alto Purus no Peru, a Estação Ecológica Rio Acre e o Parque Nacional da Serra do Divisor
no Brasil estendendo-se até o Parque Nacional Pacaya-Samiria e a Zona Reservada Güeppi no Peru.
constituem uma das regiões de maior biodi- Brasil, como modestas são até hoje as trocas
versidade do planeta (Aquino et al., 2005)13. entre o Acre e Puerto Maldonado (capital do
Diga-se de passagem, que a Sierra de Conta- Departamento). Ainda mais modestas são as
mana tem sido desde a primeira metade do interações entre ambas as aglomerações e
século XX objeto de interesse de terceiros pa- Bolpebra do lado boliviano (25 famílias)16,
Acre: Integração Transfronteiriças Com o
íses14. Atualmente, pesquisas sobre a existên- conforme pode ser visualizada na figura 7.
cia de aquíferos na Amazônia e de sua relação A ausência de complementaridade da pro-
com as linhas de cabeceiras poderão conferir dução agrícola e extrativista na fronteira tri-
a esta zona fronteiriça entre as bacias do Ju- partite é um fator restritivo às trocas, como
ruá e do Ucayali ainda maior relevância am- Alexandre von Humboldt já havia observado
biental e geopolítica. em sua viagem à região equinocial no inicio
Na extremidade da fronteira Acre – Peru, do Século XIX. O cultivo da mandioca perma-
no sentido Norte, Mâncio Lima é o único mu- nece sendo o principal gênero alimentício,
nicípio limítrofe ao departamento peruano de assim como a extração de produtos florestais.
Loreto, na província de Requena (distrito de Do lado acreano, no entanto, a expansão das
Peru e a Bolívia
Alto Tapiche), ao Norte da Serra do Divisor. pastagens em áreas desmatadas para a cria-
Ao Sul de Ucayali, o departamento de ção de gado bovino é um novo elemento da
Madre de Dios constitui a segunda maior paisagem, inclusive no interior da RESEX e
extensão de limite internacional acreano de terras indígenas. A provável adoção deste
com o Peru (municípios limítrofes de Assis mesmo padrão de uso da terra nos países vi-
Brasil, Sena Madureira, e Manoel Urbano). zinhos reproduzirá a ausência de complemen-
Assis Brasil é o único com sede na divisa taridade na economia local, o que sugere a
144 internacional (os outros dois têm sede na necessidade de acordos transfronteiriços para
BR-364) Os três municípios acreanos regis- o desenvolvimento de arranjos produtivos lo-
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
LIVRO TEMÁTICO 4
dade” fronteiriça, ou seja, de interações es- Dada a relevância das bacias hidrográ-
pontâneas entre o leste acreano e o depar- ficas para a circulação regional, e para po-
tamento de Pando que se mantém até hoje, líticas ambientais que considerem a linha 145
embora com características diversas daque- de cabeceiras, cumpre destacar que a se-
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
las do passado18. paração entre as grandes bacias dos rios
Purus e Madeira, afluentes do rio Amazo-
3. 1. Elementos de articulação da zona nas, se dá precisamente no leste acreano
de fronteira Acre-Pando e leste do departamento de Pando. O rio
Acre pertence à bacia do Purus enquanto
Entre os aspectos relativos à articula- os rios Abunã e Xipamanu, divisa entre
ção dos lugares situados na zona de fron- Acre e Pando, e os rios Tahuamanu e Kha-
teira Acre-Pando, destacam-se: a assime- ramanu pertencem à bacia do Madeira19.
tria em relação à densidade e conservação No trecho da margem fronteiriça acre-
das vias terrestres; a conexão preferencial ana correspondente à bacia do rio Abunã
do departamento de Pando com o Brasil (desde Acrelândia até Capixaba), os lugares
em detrimento das ligações com o interior situados próximos ao limite internacional
da Bolívia; o papel desempenhado pelas conectam-se às rodovias federais BR-317
vias fluviais como facilitadores históricos e BR-364 por meio de uma rede relativa-
de interações do tipo capilar (espontâne- mente densa, para os padrões locais, de
as); e, mais recentemente, a atuação dos rodovias estaduais. A partir de Capixaba,
Estados limítrofes no sentido de dotar na região drenada pelos rios Xipamanu e
de infraestrutura de conexão lugares de alto rio Acre, a BR-317 segue paralela à
comunicação selecionados ao longo da linha divisória ligando as cidades de Epita-
divisa internacional. ciolândia, Brasiléia e Assis Brasil (na fron-
18 Os limites entre o leste do Acre e o Departamento de Pando são majoritariamente limites fluviais: a
leste, os rios Abunã, Rapirran e Xipamanu, pertencentes à bacia do rio Madeira-Mamoré-Beni; e a
oeste, o rio Acre, pertencente à bacia do rio Purus.
19 A bacia do Rio Acre possui maior representatividade no território brasileiro, ao se estender por todo
o extremo leste do estado do Acre. No departamento de Pando, seus canais coletores banham apenas
as secciones de Bolpebra e Cobija. O contrário ocorre com a bacia do rio Abunã: sua área ocupa 37%
do total da superfície do departamento boliviano.
teira com o Peru). Neste trecho, a conexão A ligação preferencial da região norte da
entre o tronco viário principal e o limite Bolívia com o Brasil pode ser observada a
internacional é feita por meio de pequenos partir da análise dos fluxos veiculares diá-
afluentes dos rios Abunã, Xipamanu e Alto rios nos diferentes segmentos da rede viária
Acre, bem como estradas endógenas. fundamental (Figura 8). Os trechos Puerto
Acre: Integração Transfronteiriças Com o
20 No sentido norte-sul, a conexão principal do departamento é a RF-16 (154 km em leito de terra) que
liga Cobija à cidade de La Paz, via Porvenir e Chive. O sistema principal de transporte terrestre conta
ainda com uma pequena estrada de terra (76 km) que corta a RF-13 ao sul de Cobija e segue até
Extrema, na fronteira com o Peru.
ploração da borracha na zona de fronteira fatores, pelo relativo isolamento em que
Acre-Pando foi responsável pelo surgimen- se encontram as populações bolivianas das
to, na confluência das principais vias fluviais, “secciones” de Ingavi, Santa Rosa del Abunã
de centros de transbordo, armazenamento e Bella Flor.
e comercialização da produção gomífera. Na divisa internacional Brasil-Bolívia na
Peru e a Bolívia
147
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
Figura 7. Departamento de Pando - Rede de transporte terrestre (2005). Fonte: DHV-ANR –
Bolívia, 2006
Figura 8. Departamento de Pando – Fluxo diário de veículos (2005). Fonte: DHV-ANR – Bolívia, 2006
consumidor da capital do Acre, Rio Branco por via fluvial. As interações transfronteiri-
(Figura 10). ças locais incluem a utilização de serviços
Até a década de 1990, este foi o principal de consumo coletivo e compra de gêneros
ponto de comercialização de mercadorias alimentícios de residentes da Vila Evo Mora-
importadas provenientes de Cobija e trans- les em Plácido de Castro.
portadas através do território brasileiro, A cidade de Plácido de Castro desempe-
conforme o acordo de livre trânsito da Ata nha ainda a função de entreposto comercial
de Roboré (1958). da produção de castanha da região boliviana
Esse arranjo transfronteiriço do comér- do alto Abunã. Durante os meses de colheita
cio de importados entrou em decadência o escoamento do produto é realizado pelas
com a criação das Áreas de Livre Comércio vias fluviais e armazenado em um pequeno
(ALCs) de Brasiléia e Epitaciolândia (1994), porto situado às margens do rio, para então
e o asfaltamento da rodovia federal até Bra- ser transportado para Rio Branco. Embora
siléia (concluído em 1998). Contudo persis- Plácido e Evo Morales não cheguem a serem
te ainda um afluxo residual aos estabeleci- cidades-gêmeas, devido ao caráter provisó-
mentos comerciais do povoado boliviano, rio da estrutura urbana da vila boliviana,
21 Acre e Abunã estão os seringais mais importantes do território [do Acre]. Ao longo do rio Abunã
encontramos cerca de 20 seringais na área acreana. As sedes dos mesmos estão localizadas nas
margens do rio. Todos estes seringais estão ocupados por brasileiros. Do lado boliviano encontramos
certo número de seringais e seringalistas brasileiros.” (GUERRA, 2004: 277) O escoamento da produ-
ção gomífera da região do Abunã era feita por via fluvial na direção do território do Guaporé (atual
estado de Rondônia). Mesmo depois do asfaltamento da rodovia ligando Rio Branco à vila Plácido de
Castro, entre 1946 e 1952, em função dos custos do transbordo da produção e do frete rodoviário, a
maior parte do comércio da borracha da região, bem como seu aviamento, continuou a ser feito por
Porto Velho. (GUERRA, 2004)
22 Inserido em uma antiga colocação de seringueiros, o local onde atualmente se situa o núcleo urbano
de Plácido de Castro foi convertido, por sua posição estratégica, em depósito do Seringal São Gabriel,
com o nome de Pacatuba, a partir do qual se desenvolveu a sede do atual município.
relações de interdependência criam um am- leta de castanha mobiliza um grande con-
biente transfronteiriço de caráter urbano. tingente de trabalhadores volantes duran-
Um segundo tipo de interações trans- te o período chuvoso (dezembro a março),
fronteiriças, nesse caso, rural-urbana, é o incluindo parte significativa da população
de Capixaba. O núcleo urbano está situado rural e urbana do município de Capixaba.
Peru e a Bolívia
estendem para além do limite internacional, (MDIC, 2005).
há diversas pequenas colônias, muitas das Na região fronteiriça boliviana (sección
quais ocupadas por famílias com um longo Bella Flor) há inúmeras serrarias e madei-
histórico de sucessivas migrações no estado reiras de diversos portes, exploradas majo-
do Acre e no departamento boliviano23. ritariamente por bolivianos24. A partir dos
Nas pequenas propriedades predomina anos 90, a expansão das frentes madeirei-
o padrão de uso que associa lavouras para ras na bacia do Abunã (em Pando) resultou
auto consumo e cultivos baseados na derru- no retorno de muitas famílias de brasileiros 149
bada e queima da floresta para a formação que haviam migrado para a Bolívia para se
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
de pastagem. As interações com a cidade estabelecer em seringais bolivianos (ESTE-
de Capixaba são freqüentes, quer para a VES, 2004). Posteriormente, algumas destas
venda de produtos agrícolas, acesso a ser- famílias adquiriram terras no próprio ramal
viços de uso coletivo (educação, saúde, Brasil / Bolívia. A acessibilidade, em função
etc.) ou para compra de mercadorias (Fi- da proximidade com a rede de cidades do
gura 11). leste acreano, aliada ao baixo preço da terra
A margem boliviana fronteiriça ao ra- e às exíguas restrições para a derrubada da
mal apresenta um conjunto heterogêneo floresta no Departamento de Pando, torna-
de formas de ocupação e posse da terra, ram o ramal um dos lugares privilegiados
ocasionalmente superpostas: fazendas, co- de expansão da colonização agropecuária
lônias, comunidades camponesas, barra- no leste amazônico boliviano. A ocupação
cas (seringais) e concessões florestais de intensiva nas últimas décadas tem contribu-
empresas madeireiras (DHV-ANR BV/SNC/ ído para que esta seja uma das áreas com
BID, 2006). Grande parte da produção maiores níveis de detecção de queimadas na
extrativa da região boliviana é escoada região (COTS, 2006)
por terra (em especial, a castanha e, mais Com a promulgação da Lei Florestal (Lei
recentemente o açaí) até o ramal e trans- 1700 de 12-07-1996) 1,8 milhões de hecta-
portada para Rio Branco pela BR-317, ou res foram outorgadas pelo Estado boliviano,
comercializada in natura na própria sede a título de concessões de longo prazo para
municipal de Capixaba (caso do açaí). A co- a exploração florestal, à empresas e pro-
23 Algumas das trajetórias destas famílias foram levantadas em entrevistas realizadas pelos alunos do
campus de Senador Guiomard na disciplina Estudos Regionais V, ministrado pelo prof. Jones Dari
Goettert, e publicadas na Revista Arigó, editada pelo Centro Acadêmico de Geografia / Departamento
de Geografia / UFAC. Parte III: Entre Acre, Bolívia e Peru.
24 Parte da madeira extraída é comercializada, ilegalmente, em território brasileiro nas imediações do
ramal Brasil/Bolívia e beneficiada no estado do Acre.
prietários particulares no departamento de nos de Brasiléia, Epitaciolândia e Cobija. Ao
Pando. A medida visa regularizar a utiliza- contrário dos casos anteriores, esse agru-
ção sustentável e a proteção da cobertura pamento está situado na bacia do Rio Acre.
vegetal em uma das áreas com maiores re- Cobija, capital do departamento de Pando,
manescentes florestais do país (95% do total limita-se com as cidades acreanas pelo iga-
Acre: Integração Transfronteiriças Com o
25 Zona Franca: regime aduaneiro que permite o ingresso de mercadorias em um espaço fisicamente
limitado com a suspensão do pagamento de tributos aduaneiros. No caso da ZOFRA de Cobija são
os seguintes os Impostos incidentes: 1.5% para a Câmara de Comércio e Indústria para a instalação
da empresa e 1.5% para importação de mercadorias e maquinarias. O regime aduaneiro outorgado
à Zona Franca é válido em um raio de 30 km a partir do centro de Cobija.
26 Segundo informações obtidas da Câmara de Comércio e Indústria de Cobija, em março de 2006.
cassez de investimentos na ampliação do limítrofes. Ademais, por sua densidade rela-
parque industrial27. cional, o agrupamento urbano fronteiriço tor-
Do lado brasileiro foram criadas as Áreas nou-se um importante nódulo de articulação
de Livre Comércio de Brasiléia e Epitaciolân- de fluxos comerciais regionais, sub-nacionais
dia (1991; instaladas em 1994). Atualmente, e internacionais (legais e ilegais) os quais se
Peru e a Bolívia
privilegiada da capital pandina gera um nacional sub-nacional (Tabela 01).
afluxo de comerciantes atacadistas boli- A mobilidade da mão-de-obra e portanto,
vianos oriundos de Cochabamba, Iquitos e os deslocamentos (definitivos, pendulares
Santa Cruz que revendem seus produtos (p. ou sazonais) também são significativos (Fi-
ex. confecções) em Cobija ou nas cidades gura 12). Predominam os fluxos em direção
brasileiras. A venda de importados na Zona à Cobija e áreas adjacentes, com a ocupação
Franca atrai compradores de Epitaciolândia, de postos de trabalho por brasileiros nos es-
Brasiléia e outras cidades do Acre, principal- tabelecimentos comerciais urbanos do lado 151
mente nos fins de semana, quando o preço boliviano ou em empregos temporários no
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
das mercadorias tende a subir em função setor industrial de beneficiamento de cas-
da grande procura
dos brasileiros. No
período de chuvas, Tabela 1. Balança Comercial Brasileira do Estado do Acre por Município
quando a estrada – 2005. Fonte: MDIC, 2005
que liga Cobija a 2005
La Paz se torna in- Município
transitável, comer- EXPORTAÇÃO IMPORTAÇÃO SALDO
ciantes varejistas 15.954.348 501.317 15.453.031
e consumidores
bolivianos vêm ao Acrelândia 427.443 - 427.443
Brasil comprar gê-
neros alimentícios Brasiléia 2.637.252 - 2.637.252
para consumo ou
Capixaba 1.138.695 - 1.138.695
revenda na Bolívia.
As interações lo-
Cruzeiro do Sul - - -
cais também estão
sujeitas à econo- Epitaciolândia 955.178 4.320 950.858
mia de arbitragem.
Pe r i o d i c a m e n t e Rio Branco 10.795.780 496.997 10.298.783
observa-se uma in-
versão dos fluxos comerciais e financeiros em tanha ou da construção civil (PAIVA, MAR-
função das oscilações do câmbio nos países QUES e NOVAIS, 2004).
27 Em agosto de 2005, foi promulgada a Lei 3136 que permite que estrangeiros realizem investimen-
tos industriais em Cobija.
O hibridismo cultural, quer através de duas regionais demonstra a associação en-
casamentos, da aquisição de dupla naciona- tre agricultura de subsistência e pecuária.
lidade ou mesmo da adoção de formas ma- As lavouras do Alto Acre e do Baixo Acre
tizadas de bilinguismo, constitui uma estra- (compostas pelos municípios limítrofes com
tégia frequente das populações de ambos os o departamento de Pando) correspondiam,
Acre: Integração Transfronteiriças Com o
são de padrões de uso do solo de uma mar- teve uma variação de menos de 5%, enquan-
gem à outra do limite internacional, é um to a produção bovina passou de 19.000
processo comum entre diversos segmentos cabeças em 1995 para 57.000 em 200330
fronteiriços onde há grande intensidade de (DHV-ANR BV, 2006).
interações espontâneas durante um largo Segundo o estudo realizado para o Corre-
período de tempo (MIN/RETIS, 2005). dor Norte Boliviano (2006), existem atualmen-
No caso do segmento de fronteira Acre- te em Pando, 418 estabelecimentos pecuários,
152 -Pando, observa-se uma “exportação” do pa- dos quais mais de 60% na província de Nicolas
drão de uso do solo característico do leste Suárez (secciones de Cobija, Puerto Rico, Bol-
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
LIVRO TEMÁTICO 4
acreano28 para as áreas limítrofes do depar- pebra e Bella Flor). Além dos estabelecimen-
tamento de Pando, em especial a província tos formais estima-se que existam pelo menos
de Nicolas Suárez (que faz divisa com os mu- 10% não registrados. As propriedades estão
nicípios de Brasiléia, Epitaciolândia e Assis localizadas, preferencialmente nas zonas de
Brasil). O padrão baseia-se na formação de melhor acesso e maior articulação com Cobija
pastagens através da relação de parceria em (onde a produção é comercializada), ao longo
atividades agrícolas de baixo nível tecnoló- da RF-13, passando por Porvenir até Puerto
gico (pouco capitalizadas)29 e posterior ex- Rico. Na bacia do Alto Rio Acre (onde se situa
ploração da pecuária extensiva. A evolução Cobija), que em território boliviano possui
das áreas colhidas nas principais lavouras e uma extensão de 1.776 km2, 62% da superfí-
do efetivo bovino nas últimas décadas nas cie é destinada ao uso agropecuário31.
28 Padrão característico de outras áreas amazônicas e de outras regiões do país quando o proprietário
de terra não pode ou não quer realizar investimento direto. Por outro lado, quando os investimentos
são feitos e o regime de parceria eliminado, seu efeito social é dramático devido à expulsão e pos-
terior imigração da população envolvida, como ocorreu no norte do Paraná e oeste de São Paulo a
partir da década de 1970.
29 Atividade agrícola caracterizada pela derrubada e queima anual da floresta e cultivo de produtos
que compõem o trinômio conhecido como “lavoura branca”: mandioca, arroz e milho, e posterior
conversão em áreas em pastagem.
30 Há discrepância entre os dados do estudo da Superintendência distrital do SENASAG (Servício Nacio-
nal de Sanidad Agropecuária e Inocuidad Alimentar daqueles apresentados pela Dirección General
de Desarrollo Productivo y Financiamiento, órgão do Ministério de Asuntos Campesinos y Agrope-
cuários (MACA, 2005).\
31 Na margem fronteiriça do departamento de Pando, as áreas dedicadas à pastagem aumentam anual-
mente. Com o início do processo de regularização das propriedades de terra após a promulgação da
Lei do Serviço de Reforma Agrária pelo INRA, em 1996, assistiu-se, em muitos casos, o crescimento
do desmatamento. Trata-se de uma estratégia utilizada por pecuaristas também na Amazônia bra-
sileira para demonstrar o cumprimento da função econômica social perante o órgão regulador e
consolidar, assim, os seus direitos sobre as terras ocupadas (DHV-ANR BV, 2006)
Acre: Integração Transfronteiriças Com o
Peru e a Bolívia
Figura 10. Interações entre cidades gêmeas – BRASILÉIA (Acre); COBIJA (Pando)
A recente difusão deste tipo de padrão foi sários sediados em Brasiléia e Epitaciolân- 153
resultado de processos ocorridos em ambos dia investiram na compra de propriedades
LIVRO TEMÁTICO 4
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
os espaços limítrofes nas últimas décadas. no departamento de Pando, sobretudo nas
Em Pando, com o processo de desintegração áreas próximas à capital Cobija. Sobre essas
do sistema de barracas (seringais) subse- propriedades de brasileiros é que o governo
qüente à decadência da economia da bor- de Evo Morales, que assumiu a presidência
racha e à promulgação da Lei de Reforma boliviana em 2006, quer fazer valer a proi-
Agrária (em 1953), surgem as denominadas bição constitucional de aquisição de terras
comunidades camponesas livres. Estas or- por estrangeiros na faixa de 50 km contígua
ganizações passaram a ocupar as áreas ar- ao limite internacional, sob pena de desa-
ticuladas aos principais centros urbanos do propriação das áreas ocupadas.
norte amazônico (Cobija e Riberalta) – ini- Há, portanto fortes indicadores de um
cialmente áreas marginais às principais vias processo de reestruturação territorial na
fluviais e, a partir da década de 1970, as margem fronteiriça boliviana, com a con-
faixas de terra ao longo das vias terrestres tínua valorização das terras ao longo dos
recém-implantadas – dedicando-se às ativi- principais eixos rodoviários, diminuição
dades agropecuárias, principalmente para progressiva da cobertura florestal, conflitos
auto consumo. Nas áreas mais povoadas decorrentes do acesso desigual à proprie-
desenvolveu-se um mercado de terras que dade e, mais recentemente, tensões sobre o
alterou significativamente as formas preté- direito de propriedade dos brasileiros, que
ritas de ocupação do solo. (ZONISIG, 1997). afetam diretamente a zona de fronteira.
A partir da década de 1980, a abertura do Outro importante efeito territorial das
mercado de terras no norte boliviano tam- interações espaciais na zona fronteiriça está
bém atraiu capitais brasileiros provenientes, associado aos freqüentes deslocamentos
entre outros, da expansão dos intercâmbios populacionais ao longo de todo o segmen-
comerciais nas cidades-gêmeas do alto Acre. to em questão. A mobilização de grandes
Explorando as assimetrias no preço da terra contingentes populacionais provenientes no
dos dois lados da fronteira, diversos empre- estado do Acre, em períodos distintos, mas,
sobretudo a partir da década de 1970, em Finalmente, outro efeito territorial das
direção ao departamento de Pando, resultou interações espaciais na zona fronteiriça é o
de inúmeros fatores atuantes do lado brasi- desenvolvimento, nas últimas décadas, de
leiro da divisa: conflitos envolvendo a posse um complexo e dinâmico Arranjo Produtivo
das terras acreanas na fase de penetração Local Transfronteiriço (na zona de frontei-
Acre: Integração Transfronteiriças Com o
Peru e a Bolívia
parte da região norte boliviana foi ocupada ria, especialmente feminina, para descascar
através da posse de grandes extensões de e selecionar a castanha, durante um período
terra não tituladas, dando origem ao modelo de 6 a 10 meses (MACA, 2003). Nas cidades
conhecido como “sistema de barracas”. Mui- de Brasiléia e Epitaciolândia são intensos os
tos dos atuais “proprietários” destas barra- deslocamentos pendulares de mulheres re-
cas são brasileiros que adquiriam extensos sidentes dos bairros pobres para a indústria
seringais na Bolívia, e que hoje exploram a localizada na cidade de Cobija (PAIVA, MAR-
produção extrativa da castanha. Esta situa- QUES e NOVAIS, 2004). 155
ção é muito comum, especialmente na mar- A compra da produção é feita, em am-
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CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
gem fronteiriça boliviana da bacia do Abu- bos os lados do limite internacional, por co-
nã, limítrofe aos municípios de Capixaba e merciantes individuais, cooperativas ou por
Plácido de Castro. intermediários das indústrias de beneficia-
Atualmente, alguns elementos tornam mento situadas em território boliviano.
ainda mais complexa a questão da posse A capacidade de beneficiamento local
das terras na região e demonstram carac- da castanha produzida no estado do Acre
terísticas de uma frente pioneira: a) Com ainda é reduzida. Do total da produção do
a promulgação da Lei Florestal de 1996, estado, 95% são exportados in natura. Já na
cerca de dois milhões de hectares de terras Bolívia, a ação dirigida do Estado central es-
no departamento de Pando foram concedi- timulou a instalação das primeiras plantas
das à empresas e particulares para o ma- industriais em Riberalta já em meados da
nejo florestal; muitas destas concessões se década de 1980. Em 1997, ano em que o
superpõem às antigas posses; b) Há fortes preço internacional da castanha amazônica
pressões por parte das organizações cam- atingiu seu patamar mais elevado, havia 17
ponesas para que o Estado realize projetos empresas de beneficiamento funcionando
de assentamento agropecuários na região; na região (MACA, 2003).
c) Observa-se recentemente, um processo Em 1989, um grupo de empresários bo-
de integração vertical da cadeia produtiva livianos instalou uma nova planta na cidade
da castanha, com a aquisição das antigas de Cobija. Explorando os benefícios fiscais
barracas pelas indústrias de beneficiamento da Zona Franca boliviana e a infra-estru-
(MACA, 2003). tura do lado brasileiro, a empresa Tahua-
Portanto, no que se refere à propriedade manu passou a captar também uma parte
da terra, a exploração da castanha no depar- da castanha in natura produzida no Acre,
35 Informações obtidas em trabalho de campo realizado em março de 2006, portanto, no final do perí-
odo de coleta da castanha.
Tabela 2. Departamento de Pando (Bolívia) - Migrantes Internacionais e Pessoas que falam
idiomas estrangeiros (2001).
Migrantes Pessoas que falam língua
Departamentos Internacionais / estrangeira / População
População Total (%) Total (%)
Peru e a Bolívia
MANURIPI
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CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
MADRE DE DIOS
ABUNÁ
FEDERICO ROMÁN
dos dois Estados. As características e os res e redes sociais que somam seus esforços
processos que ocorrem em um lado da para o enfrentamento de problemáticas socio-
fronteira não são detidos pelo limite inter- ambientais, assumindo um papel de colabo-
nacional, formando assim um espaço de radores para a formulação e gestão de polí-
interações transfronteiriças. ticas públicas, pelas vias do desenvolvimento
As migrações internacionais mostram a sustentável, em resposta às demandas sociais
penetração do povoamento brasileiro no in- na fronteira Brasil, Bolívia e Peru. Passando
158 terior da faixa de fronteira boliviana, propa- a existir, a partir do momento em que vários
gando um novo modo de relações sociais e atores sociais com interesses diversos aceitam
CULTURAL POLÍTICO: MEMÓRIAS, IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES
LIVRO TEMÁTICO 4
que configuram um tipo de interação tipica- que o enfrentamento dos problemas socio-
mente regional, marcado pela proximidade ambientais que os afetam deve ser feitos por
da área de origem e de destino. meio do debate coletivo, da busca de soluções
O comércio exterior mostra que a zona socialmente e coletivamente construídas. Com
de fronteira tem um papel secundário nas isso, cria-se um espaço de negociação e dis-
relações comerciais entre os dois países. cussão privilegiando
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