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Lugar da contestação
A exigência utópica é assim universal tanto no registro antropológico, porque é
uma constante da natureza humana, quanto no sentido sociológico, porque a
tentação utópica é inevitável em qualquer sociedade organizada hierarquicamente.
Se isso é verdade, a sobrevivência da utopia no mundo globalizado é lógica e
previsível, e isso nos dois sentidos da palavra. Só o mais enraivecido dos
neoliberais poderia afirmar que a economia global teria alterado um dado
essencial da condição humana, a necessidade de transcender a ordem existente
em direção a um futuro sonhado. E só um cego, liberal ou não, seria capaz de
negar as assimetrias crescentes de riqueza e poder que caracterizam o
capitalismo globalizado, sua tendência maciçamente excludente e, portanto, sua
capacidade de fabricar um exército de reserva composto de todos os
inassimilados e inassimiláveis da "nova economia". Eles constituem a base social
da contestação ao sistema, nas condições contemporâneas. Idealmente, essa
contestação deveria assumir a forma de uma crítica racional. Mas, enquanto isso
não ocorre, não está excluído que a contestação se manifeste pela utopia.
Estaríamos repetindo, num patamar mais elevado de complexidade, o que
aconteceu no século 19, em que a crítica ao capitalismo se deu primeiro numa
perspectiva utópica, só depois recebendo um conteúdo teórico mais rigoroso. Não
se trata, portanto, de desqualificar o pensamento utópico, mas de fazer uma
triagem entre as boas e as más utopias. Pertencem a esta última categoria as
utopias retrospectivas, as que projetam no futuro uma idade de ouro baseada em
estruturas antigas, já ultrapassadas pela modernidade. Seria o caso de uma utopia
antiindustrial, uma ecoutopia primitivista, construída pela regressão a uma Arcádia
anterior ao advento do capitalismo. Seria também o caso de uma utopia totalitária,
que se baseasse na rejeição do que a modernidade política trouxe de mais
precioso, as noções de dominação legal, de Estado de Direito, de soberania
popular. Uma versão especialmente ameaçadora dessa regressão é alimentada
pela ressurgência contemporânea das idéias eugenistas, tão caras ao Terceiro
Reich. No limite, essas idéias levam a uma bioutopia, à concepção de uma
sociedade em que os cientistas tivessem o direito de programar geneticamente os
seres humanos, produzindo um "homem novo" com certas características que
esses cientistas considerassem desejáveis, como a ausência de agressividade ou
um QI mais elevado. Por mais modernas que sejam as tecnologias em questão,
essa utopia se baseia na idéia arcaica de uma sociedade em que são os sábios
que decidem, e não a vontade da maioria, e, nesse sentido, representam um
retrocesso à logocracia platônica, à concepção de um Estado-rebanho, cujos
dirigentes não somente pastoreiam seu gado, mas o criam e recriam. Outra
regressão grave é constituída pelo reaparecimento dos particularismos étnicos,
culturais, religiosos e linguísticos, que aparentemente haviam sido "domesticados"
pelo Estado moderno. Uma das grandes realizações da modernidade política foi
ter organizado a coexistência desses particularismos por meio da subordinação de
todos eles a uma cultura política comum, consubstanciada numa constituição
democrática. Hoje essa estratégia de coabitação perdeu sua eficácia. A
consequência foi a explosão dos conflitos intercomunitários, que estão levando à
retribalização do planeta. Subjacente a essa tendência está a utopia da
homogeneidade étnica, a visão de um mundo dividido em etnias estanques,
segundo linhas de partilha pré-modernas, baseadas em afinidades de sangue ou
de língua.
Contra-utopias
Essas ecoutopias, bioutopias ou etnoutopias são as "distopias" do nosso tempo.
São contra-utopias, tão assustadoras quanto as formuladas por Aldous Huxley no
"Admirável Mundo Novo", por George Orwell em "1984" e por Ray Bradbury em
"Fahrenheit 451". Todas elas têm em comum o fato de serem regressivas, de irem
buscar no passado os seus materiais.
Não é dando as costas à modernidade que devemos buscar a utopia, mas sim na
própria modernidade. Ela tem um vetor funcional, sistêmico, ligado à racionalidade
instrumental. Mas tem também um vetor humanista, ligado à racionalidade
emancipatória.
No primeiro vetor, a palavra de ordem é a eficácia. Um sistema social é mais
moderno que outro quando suas estruturas são mais eficazes. No segundo vetor,
é a autonomia que é decisiva. Um sistema social é mais moderno que outro
quando abre maior espaço para a autonomia dos indivíduos. É nesse segundo
vetor da modernidade que se entronca nossa concepção de utopia. Esse vetor
pode ser chamado de iluminista, porque a dimensão humanista e emancipatória
da modernidade foi inteiramente moldada pela filosofia das Luzes.
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A globalização é um pastiche do sonho iluminista da unidade do gênero humano:
a universalização; mas a paródia ajudou a revalorizar
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Pluralismo cultural
Entre os particularismos de hoje, um dos mais influentes é o que preconiza o mais
amplo pluralismo cultural. Nada mais legítimo. Mas, longe de promover o
nivelamento do planeta, somente a democracia mundial pode assegurar a
coexistência não-conflitiva de todas as culturas e etnias. Na ausência das
instituições de arbitragem e de controle da violência próprias a essa democracia,
as identidades coletivas poderiam transformar-se em barricadas, e as diferenças
explodiriam em conflitos interétnicos e mesmo intercivilizacionais, na acepção de
Samuel Huntington. Em vez disso, a democracia mundial oferece um quadro em
que as culturas mais diversas podem conviver, em toda a variedade dos seus
estilos de vida, desde que se submetam a um núcleo mínimo de normas e
princípios universais.
O mais visionário dos filósofos contemporâneos, Ernst Bloch, defendeu a utopia,
mas uma utopia concreta, vinculada a tendências já presentes no real. Enquanto
idéia reguladora da consciência utópica, o "princípio esperança" precisa articular-
se com processos reais. Para Bloch, a esperança deve ser instruída pelo
presente, ser uma "docta spes", o que a distingue da mera fantasmagoria
subjetiva.
A utopia iluminista preenche essas condições. Em toda parte observamos sinais
de que ela se tornou relevante. Com todas as suas perversões, o processo de
globalização tem pelo menos o mérito de haver diluído as fronteiras que separam
os homens, contribuindo para a emergência da idéia da humanidade única. A
globalização é um pastiche do sonho iluminista da unidade do gênero humano: a
universalização.
Mas a paródia ajudou a revalorizar o original. A universalização caminha a largos
passos, em áreas como a defesa dos direitos humanos e a proteção ambiental. A
democracia mundial já está prefigurada no sistema das Nações Unidas e nas
instituições da União Européia.
Apesar de tudo, a idéia de que as grandes potências venham a transferir parte
substancial de sua soberania para instituições realmente transnacionais é
inimaginável hoje. Vale dizer, é uma idéia utópica. Mas ela deriva de uma boa
utopia, de uma utopia concreta, no sentido de Bloch: a utopia do Iluminismo. É
urgente inscrever essa utopia na agenda do terceiro milênio.
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Sergio Paulo Rouanet é diplomata e ensaísta, autor de "As Razões do Iluminismo"
e "Mal-Estar na Modernidade" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente
na seção "Brasil 501 d.C.".