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Capítulo I
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Centenas de pessoas construíram sua vida revolvendo o lixo do principal depósito onde
eram despejadas as 10 mil toneladas diárias de lixo produzidas em Manila, nas
Filipinas. Em 17 de julho de 2000, após uma semana de chuvas, a grande montanha de
lixo de 15 metros de altura desmoronou. Embora o número de mortos tenha sido
incerto, pelo menos oitocentas pessoas morreram sufocadas. As fumaças venenosas
emitidas pelo lixo apodrecido e pela putrefação dos corpos dificultaram os esforços de
resgate.
Imagine você e sua família vítimas de um desastre: um terremoto, um tornado, uma
enchente, a queda de um avião em sua comunidade, um acidente com usina nuclear,
um ataque terrorista. O que nos acontece quando somos acometidos por um
desastre? O que sentimos e experienciamos sob tais circunstâncias? Quase que
instantaneamente, em resposta às imagens e sons do evento em si mesmo, nosso
coração dispara, nossa boca seca, nossos músculos ficam tensos, nossos nervos entram
em alerta, sentimos intensa ansiedade, medo ou terror. Se houve pouco ou nenhum
aviso, podemos não entender o que está acontecendo com a gente. O choque, uma
sensação de não realidade e o medo dominam. Muito depois do evento, as imagens,
sons, cheiros e sentimentos persistem como lembranças indeléveis em nossa memória.
Assim que o choque imediato e o terror desaparecem, surgem efeitos de longo prazo.
O desastre desafia nossos pressupostos básicos e nossas crenças. A maioria de nós, na
maior parte do tempo, acredita que nosso mundo pessoal é previsível, benevolente e
cheio de significados. Supomos que acreditamos em nós mesmos e em outras pessoas
e que nós podemos lidar com a adversidade. O desastre destrói essas crenças e nos
tornamos conscientes de nossa vulnerabilidade. Ao mesmo tempo nos sentimos sem
esperança e sem possibilidade de ajuda. Desesperamo-nos com nossa inabilidade para
tomar decisões e de agir de maneira que faça diferença para nossa família e para nós
mesmos.
Na sequência do desastre, nós sofremos pela morte dos nossos entes queridos e nos
admiramos pelo fato de estarmos vivos (e nos sentimos indignos e culpados por
termos sobrevivido). Nós também sentimos por nossa casa, pelos objetos de valor
pessoal, por documentos perdidos, pela perda de vizinhos queridos. Se o desastre
destruiu nossas atividades tradicionais de subsistência na comunidade ou a
comunidade em si mesma, podemos ter sentimentos intensos de laços rompidos com
nossa identidade social e cultural. A perda de nosso mundo pessoal, do sentido de
segurança, da crença em nós mesmos, na fidelidade dos outros ou até mesmo na
benevolência de Deus não são apenas pensamentos; eles disparam sentimentos
profundos de perda e dor.
Nos dias e semanas seguintes ao desastre nós podemos vivenciar uma grande
variedade de distúrbios emocionais. Por exemplo, sofrimento crônico, depressão,
ansiedade e culpa predominam. Para outros, dificuldades para controlar a raiva,
suspeitas, irritabilidade e hostilidade prevalecem. Outros, ainda, evitam ou se
escondem de outras pessoas. Para muitos, o sono é perturbado por pesadelos, as
horas acordadas por lembranças nas quais sentem como se o desastre estivesse
ocorrendo novamente. Não poucos começam a abusar de álcool e outras drogas.
Podem existir variações culturais nos padrões precisos nos quais sintomas relacionados
a desastres aparecem, mas relatórios de países como China, Japão, Sri Lanka, México,
Colômbia, Armênia, Ruanda, África do Sul, Filipinas, Fiji, Bósnia, Inglaterra, Austrália e
Estados Unidos, entre outros, mostram que as respostas emocionais ao desastre são
bastante parecidas ao redor do mundo.
Outras vítimas de desastres parecem estar inicialmente bem. Todavia, isso pode ser
ilusório. Para proteger a si mesmas elas podem suprimir ou inibir o processamento do
impacto do desastre sobre elas. Após um tempo (muitas vezes considerável), estímulos
associados com o desastre podem disparar lembranças, trazendo de volta à
consciência materiais previamente suprimidos. Como resultado disso, respostas
psicológicas ao desastre podem “subitamente” aparecer, meses ou até mesmo anos
depois do acontecido.
Embora os números precisos variem de situação para situação, espera-se que acima de
90% das vítimas apresentem pelo menos algum tipo de efeito psicológico que
incomoda nas primeiras horas seguintes ao desastre. Muitas vezes, os sintomas
diminuem gradualmente nas semanas que se seguem. Por volta da décima segunda
semana após o desastre, no entanto, 20 a 50% ou mais podem ainda mostrar sinais
significantes de estresse. Os números mostrando sintomas geralmente continuam
caindo, mas respostas atrasadas e respostas a consequências tardias do desastre
continuam a aparecer. Enquanto a maior parte das vítimas do desastre está
relativamente livre do estresse por volta de um a dois anos após o evento, um quarto
ou mais das vítimas podem ainda mostrar sintomas significantes, enquanto outras,
que tinham previamente estado livre de sintomas, podem mostrar sinais de estresse
um ou dois anos após o desastre. Aniversários do desastre podem ser momentos
especialmente difíceis para muitos sobreviventes, com uma reaparição temporária e
inesperada de sintomas dos quais eles pensavam ter se livrado. Relatos de sofrimento
emocional generalizado dez anos ou mais após desastres como o de 1972, que
inundou Buffalo Creek (EUA) e a internação em campos de concentração tem sido bem
fundamentados.
Nem todo mundo é igualmente afetado por um desastre e nem todos os desastres são
igualmente devastadores em termos psicológicos. Muitos fatores podem aumentar o
risco de conseqüências psicológicas adversas:
- Alguns tipos de desastres tem maior probabilidade de produzir efeitos adversos que
outros. No geral, as consequências psicológicas dos desastres que são
intencionalmente infligidos por outros (exemplo: assaltos, ataques terroristas, guerras)
são provavelmente maiores que aqueles desastres que podem ser produzidos por
atividades humanas, mas que não são intencionais (exemplos: acidentes de avião,
explosões industriais). Esses, por sua vez, tem uma maior probabilidade de produzir
efeitos adversos que os desastres naturais puros (exemplo: furacões, tornados).
- Em adição aos efeitos “psicológicos” do desastre, alguns dos efeitos físicos (exemplo:
ferimentos na cabeça, queimaduras, lesões por esmagamento, exposição a toxinas,
dores prolongadas) podem produzir diretamente, através dos processos fisiológicos,
efeitos psicológicos adversos, tais como dificuldade de concentração, dificuldade de
memorização, depressão e instabilidade emocional.
- A “estigmatização” das vítimas de desastres pode tornar difícil sua recuperação. Uma
situação infelizmente comum na qual isso ocorre é quando parte da experiência
traumatizante foi causada por estupro. Em muitas guerras atuais, o estupro tem
servido como uma arma. Estupro é também o maior risco para mulheres em campos
de refugiados. As vítimas podem ser incapazes de contar para suas famílias e amigos
sobre o que lhes aconteceu, por medo de serem culpabilizadas ou mesmo punidas.
O estágio do “resgate”
Nas primeiras horas ou dias após o desastre a maioria das atividades de resgate é
focada em resgatar vítimas e procurar estabilizar a situação. As vítimas devem ser
alojadas, vestidas, receber atenção médica, providas de comida e água.
Durante o estágio de resgate vários tipos de resposta emocional podem ser vistas. As
vítimas podem variar de um para outro tipo de resposta, ou podem não apresentar
uma resposta “típica”, das que pareceriam mais evidentes.
Estágio do “inventário”
Uma vez que a situação estiver estabilizada, a atenção se volta para soluções em longo
prazo. Os esforços heróicos de resgate dão lugar a formas burocratizadas de ajuda. Por
volta de 12 a 18 meses, a assistência organizada de fora da comunidade diminui
gradualmente e a realidade de suas perdas cai sobre as vítimas.
Nas primeiras semanas após o desastre as vítimas podem entrar numa fase de “lua de
mel”, caracterizada pelo alívio de estarem seguros e estar otimistas quanto ao futuro.
Mas nas semanas que se seguem, elas devem realizar uma avaliação realista sobre as
conseqüências duradouras do desastre. A desilusão pode prevalecer. Os efeitos do
“segundo desastre” são sentidos.
SINTOMAS PÓS-TRAUMÁTICOS
- Dor, luto, depressão, desespero, desesperança
- Ansiedade, nervosismo, amedrontar-se facilmente, preocupar-se
- Desorientação, confusão
- Rigidez e obsessão ou vacilação e ambivalência
- Sentimentos de abandono e vulnerabilidade
- Dependência, apego excessivo; ou, alternadamente, afastamento social
- Suspeitas, supervigilância, medo de ser prejudicada, paranóia
- Distúrbios do sono: insônia, sonhos ruins, pesadelos
- Irritabilidade, hostilidade, raiva
- Ausência de humor, explosões repentinas de emoção
- Inquietação
- Dificuldades de concentração; perda de memória
- Queixas somáticas: dores de cabeça, sintomas gastrointestinais, suores e
calafrios, tremores, fadiga, queda de cabelo, mudanças no ciclo menstrual,
perda do desejo sexual, mudanças na visão e audição, dor muscular difusa
- Pensamentos intrusivos: lembranças, sentir-se “revivendo” a experiência,
geralmente acompanhado por ansiedade
- Esquiva de pensamentos sobre o desastre e esquiva de lugares, figuras, sons
que relembrem à vítima do desastre; esquiva de discussão a respeito disso
- Problemas no funcionamento interpessoal; conflito conjugal aumentado
- Aumentado uso de álcool e drogas
- Queixas cognitivas: dificuldade de concentração e de relembrar; lerdeza no
pensamento
- Dificuldade de tomar decisões e de planejar
- Sentimento de isolamento e abandono
- Experiências “dissociativas”: sentimento de desprender-se de seu corpo ou de
suas experiências, como se elas não estivessem acontecendo consigo mesmo;
sentir as coisas como sendo “irreais”; sentindo-se como se estivesse “vivendo
num sonho”
- Sentimento de inutilidade, vergonha, desânimo
- Comportamento impulsivo e autodestrutivo
- Ideação suicida ou tentativas de suicídio
- A “marca da morte”: preocupação com imagens de morte
Esse grupo geral de sintomas tem sido reportado em todas as partes do mundo. Em
partes menos industrializadas e entre pessoas vindo dessas áreas, a esquiva e os
sintomas de entorpecimento são indicados como sendo menos comuns e os estados
dissociativos e estados de transe, nos quais os componentes do evento são revividos e
a pessoa se comporta como se estivesse passando novamente pelo evento, podem ser
mais comuns.
O trauma, todavia, pode interferir com a habilidade para passar normalmente por esse
processo. Os ferimentos da própria vítima, a perda dos suportes sociais, familiares e
comunitários, culpa por ter sobrevivido e o próprio trauma psicológico da vítima
podem interferir com os rituais esperados e os processos internos de luto. Lembranças
do morto podem disparar outras lembranças da vítima em relação ao desastre.
Ruminação pós-traumática pode não permitir que a vítima confronte as lembranças e
pensamentos que são centrais para o luto. Entorpecimento pós-traumático pode
interferir com o engajamento da vítima em interações sociais suportivas.
Pode haver ainda outros obstáculos práticos para essa despedida do morto. Por
exemplo, processos legais podem atrasar os procedimentos do funeral ou
preocupações sobre o enlutado ver o corpo do morto devido aos ferimentos que este
pode ter sofrido no desastre podem levá-lo a não ter a oportunidade de ver esse
corpo. Muitos estudos tem indicado que não ver o corpo do morto pode contribuir
para um luto anormal e que ver o corpo, mesmo quando desconfigurado, não é
inerentemente prejudicial. Poucas vítimas a quem foram permitidas e aceitaram ver os
restos mortais se arrependeram depois.
Sintomas comuns de depressão incluem tristeza, lerdeza nos movimentos, insônia (ou
sono exagerado), fadiga ou perda de energia, diminuição do apetite (ou apetite
excessivo), dificuldades de concentração, apatia e sentimentos de desamparo e
anedonia (diminuição acentuada do interesse ou prazer nas atividades cotidianas),
retraimento social, ruminações de culpa, abandono e mudança de vida irreversível,
preocupações com perda e irritabilidade. Em alguns casos a pessoa pode negar sua
tristeza ou pode se queixar, em vez disso, de sentir-se vazia ou sem nenhum
sentimento. Alguns indivíduos apresentam queixas somáticas, incluindo dores
generalizadas, ao invés de tristeza. Ideação ou tentativas de suicídio podem ocorrer.
Em crianças, queixas somáticas, irritabilidade, retraimento social são particularmente
comuns.
Em muitas partes do mundo o idioma convencional para expressar emoção pode ser o
somático (exemplo: fadiga crônica, dores generalizadas, distúrbios gastrointestinais,
sensações de “calor” ou medo de doenças somáticas (exemplo: hipocondria, medos de
infecção). Em alguns grupos culturais o estresse do desastre pode assumir a forma de
um “transtorno de transe”. Um “transe” é uma alteração transitória e acentuada no
estado de consciência ou uma perda do habitual senso de identidade pessoal,
associado com comportamentos estereotipados ou movimentos que são vividos como
estando além do controle da pessoa ou por um estreitamento da consciência dos
arredores.
O estágio de “reconstrução”
Por volta de um ano ou mais depois do desastre o foco muda novamente. Um novo
padrão estável de vida começa a emergir. Em todo caso, a distinção entre o alívio em
relação ao desastre e um padrão amplo de desenvolvimento social e econômico
começa a diminuir e eventualmente desaparece.
Durante essa fase, embora muitas vítimas possam ter se recuperado por si mesmas,
um número substancial continua a mostrar sintomas, muitos parecidos com os da fase
precedente (“inventário”). Um número significante que não eram sintomáticas
anteriormente podem agora exibir sérios sintomas de ansiedade e depressão, como se
a realidade e a continuidade de suas perdas ficassem evidentes. O risco de suicídio
pode, na verdade, aumentar nesse período. Outra característica do aparecimento
tardio dos sintomas inclui fadiga crônica, sintomas gastrointestinais crônicos,
incapacidade para o trabalho, perda de interesse pelas atividades diárias e dificuldade
de pensar claramente.
Os desastres atingem diretamente suas vítimas, mas criam também rasgos no tecido
da vida social. Às vezes isso ocorre de forma direta e total, quando, como resultado do
desastre, as pessoas são forçadas a deixar suas terras e migrar para um lugar qualquer.
Em outros casos, o influxo rápido de equipes de resgate, a presença de representantes
governamentais, imprensa e outros agentes de fora (incluindo meros curiosos), o fluxo
de pessoas de fora da área atingida pelo desastre procurando pela comida trazida
pelas equipes de resgate para provir às vítimas do desastre, somam-se para perturbar
ainda mais a comunidade.
Os desastres colocam uma pressão social sobre os papéis sociais das comunidades
tradicionais, padrões de status social e liderança. Policia, agências locais de
alojamento, instalações de saúde locais são sobrecarregados e encaram uma nova
tarefa de integrar seu trabalho com a dos voluntários, frequentemente de fora da
comunidade. Pode ocorrer irritação com a desigualdade na distribuição da ajuda após
o desastre. Essas desigualdades podem exarcebar a diferença entre ricos e pobres.
Especialistas externos podem representar uma ameaça para os profissionais locais. Na
sequencia do desastre, novos líderes podem emergir na comunidade, devido ao papel
dessas pessoas em responder ao desastre. Conflitos entre esses novos líderes e os
líderes comunitários tradicionais podem aparecer.
A assistência externa pode ser necessária na sequência do desastre, mas pode também
promover uma sensação de dependência da comunidade. Na medida em que as
necessidades diárias são supridas de fora, os incentivos para retomar as atividades
tradicionais são reduzidos. Essa não é uma questão de “dependência” psicológica. A
provisão de comida e outros suprimentos podem competir com a produção local,
perturbando os preços e salários tradicionais e prejudicando as tentativas para recriar
os padrões antigos de produtividade. Acrescente-se a isso que o desastre em si mesmo
pode ter destruído as ferramentas, oficinas, animais ou outras necessidades de
produção.
Em algumas comunidades que tiveram que lidar com desastres naturais repetidos, tais
como enchentes, numa base mais ou menos regular, os desastres e as respostas a eles
podem ser integradas pelos rituais da comunidade e seu sistema de crenças. As
comunidades podem ter rituais tradicionais para lidar com os efeitos do desastre. Não
apenas o desastre, mas as intervenções externas podem interferir com esses rituais
tradicionais, com as respostas e com os significados atribuídos ao desastre; e essas
intervenções podem ser vivenciadas como uma bênção ambígua ou até mesmo como
uma fonte adicional de estresse.
Os desastres causam impactos nos indivíduos, nas famílias e nas comunidades. Esses
impactos não são distintos, com efeitos separáveis. Os efeitos devastadores nos
indivíduos que integram uma família ou uma comunidade exercem um papel maior em
criar os efeitos nessa família e nessa comunidade. Mais importante, os sistemas de
suporte sociais desempenham um papel extremamente importante em proteger os
indivíduos do impacto do desastre e do impacto do estresse em geral. Desrupções
sociais podem reduzir e interferir nos efeitos de cura da família e da comunidade e são
elas mesmas fontes enormes de estresse nos indivíduos que fazem parte dessa família
ou comunidade. Desrupção na família ou na comunidade podem ser mais
devastadores, num curto, e especialmente num longo prazo, do que o desastre em si
mesmo.