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Lidando com desastres – um guia para intervenção psicossocial (COPING WITH

DISASTERS - A GUIDEBOOK TO PSYCHOSOCIAL INTERVENTION, byJohn H. Ehrenreich,


Ph.D. October 2001)

Capítulo I

Conseqüências psicossociais do desastre

Um resumo das conseqüências psicológicas do desastre

Num domingo, 05 de março de 1987, dois terremotos atingiram o Equador,


aproximadamente 85 km da capital Quito. Fortes chuvas nas semanas anteriores
tinham deixado o solo macio na área ao redor e o terremoto causou fortes
deslizamentos de terra nas encostas das montanhas. Detritos ficaram represados nos
rios, causando enchentes que destruíram cidades ao longo de suas margens e poluíram
o suprimento de água de toda a região. A principal via ligando a região ao resto do
Equador, assim como as estradas secundárias, foram destruídas. Os oleodutos ligando
os principais pontos de extração de óleo aos portos estavam inoperantes, derrubando
em 50% as receitas com as vendas desse produto. Milhares de pessoas tiveram sua
sobrevivência prejudicada pela falta de água e comida, pela falta de transporte e de
terra cultivável. Aproximadamente 70 mil casas, assim como escolas, hospitais e
prédios públicos foram demolidos. Mil pessoas morreram e outras cinco mil ficaram
sem teto.

* * *

Na noite de 2 para 3 de dezembro de 1984 a cidade de Bhopal, na parte central da


Índia, foi coberta por uma nuvem de isocianato de metila, um gás venenoso que tinha
sido vazado de um tanque da fábrica Union Carbide India Ltd. Por volta da meia-noite
as pessoas acordaram se sentindo sufocadas, com intensa irritação e vomitando. O
pânico se espalhou: as pessoas corriam desesperadas para escapar do gás, muitas
morreram no local, pisoteadas quando caíram ao tentar fugir. Outras só conseguiram
ficar seguras depois de horas correndo. Aproximadamente 300 mil pessoas foram
expostas ao gás mortífero; cerca de 2.500 morreram.

* * *

Centenas de pessoas construíram sua vida revolvendo o lixo do principal depósito onde
eram despejadas as 10 mil toneladas diárias de lixo produzidas em Manila, nas
Filipinas. Em 17 de julho de 2000, após uma semana de chuvas, a grande montanha de
lixo de 15 metros de altura desmoronou. Embora o número de mortos tenha sido
incerto, pelo menos oitocentas pessoas morreram sufocadas. As fumaças venenosas
emitidas pelo lixo apodrecido e pela putrefação dos corpos dificultaram os esforços de
resgate.
Imagine você e sua família vítimas de um desastre: um terremoto, um tornado, uma
enchente, a queda de um avião em sua comunidade, um acidente com usina nuclear,
um ataque terrorista. O que nos acontece quando somos acometidos por um
desastre? O que sentimos e experienciamos sob tais circunstâncias? Quase que
instantaneamente, em resposta às imagens e sons do evento em si mesmo, nosso
coração dispara, nossa boca seca, nossos músculos ficam tensos, nossos nervos entram
em alerta, sentimos intensa ansiedade, medo ou terror. Se houve pouco ou nenhum
aviso, podemos não entender o que está acontecendo com a gente. O choque, uma
sensação de não realidade e o medo dominam. Muito depois do evento, as imagens,
sons, cheiros e sentimentos persistem como lembranças indeléveis em nossa memória.

Assim que o choque imediato e o terror desaparecem, surgem efeitos de longo prazo.
O desastre desafia nossos pressupostos básicos e nossas crenças. A maioria de nós, na
maior parte do tempo, acredita que nosso mundo pessoal é previsível, benevolente e
cheio de significados. Supomos que acreditamos em nós mesmos e em outras pessoas
e que nós podemos lidar com a adversidade. O desastre destrói essas crenças e nos
tornamos conscientes de nossa vulnerabilidade. Ao mesmo tempo nos sentimos sem
esperança e sem possibilidade de ajuda. Desesperamo-nos com nossa inabilidade para
tomar decisões e de agir de maneira que faça diferença para nossa família e para nós
mesmos.

Na sequência do desastre, nós sofremos pela morte dos nossos entes queridos e nos
admiramos pelo fato de estarmos vivos (e nos sentimos indignos e culpados por
termos sobrevivido). Nós também sentimos por nossa casa, pelos objetos de valor
pessoal, por documentos perdidos, pela perda de vizinhos queridos. Se o desastre
destruiu nossas atividades tradicionais de subsistência na comunidade ou a
comunidade em si mesma, podemos ter sentimentos intensos de laços rompidos com
nossa identidade social e cultural. A perda de nosso mundo pessoal, do sentido de
segurança, da crença em nós mesmos, na fidelidade dos outros ou até mesmo na
benevolência de Deus não são apenas pensamentos; eles disparam sentimentos
profundos de perda e dor.

Nos dias e semanas seguintes ao desastre nós podemos vivenciar uma grande
variedade de distúrbios emocionais. Por exemplo, sofrimento crônico, depressão,
ansiedade e culpa predominam. Para outros, dificuldades para controlar a raiva,
suspeitas, irritabilidade e hostilidade prevalecem. Outros, ainda, evitam ou se
escondem de outras pessoas. Para muitos, o sono é perturbado por pesadelos, as
horas acordadas por lembranças nas quais sentem como se o desastre estivesse
ocorrendo novamente. Não poucos começam a abusar de álcool e outras drogas.

Podem existir variações culturais nos padrões precisos nos quais sintomas relacionados
a desastres aparecem, mas relatórios de países como China, Japão, Sri Lanka, México,
Colômbia, Armênia, Ruanda, África do Sul, Filipinas, Fiji, Bósnia, Inglaterra, Austrália e
Estados Unidos, entre outros, mostram que as respostas emocionais ao desastre são
bastante parecidas ao redor do mundo.

Traumatismo secundário: não são somente aqueles que experimentam diretamente o


desastre (as vítimas “primárias”) que sentem os efeitos emocionais. Vítimas
“secundárias” – a família dos diretamente afetados, espectadores e observadores e o
pessoal de resgate (os pagos e os voluntários) que procuram resgatar as vítimas
primárias também experimentam sérios efeitos emocionais. Médicos e trabalhadores
da saúde mental e oficiais de resgate que trabalham posteriormente com as vítimas
primárias e secundárias são constantemente expostos a efeitos físicos e emocionais
dos outros, ou podem ser eles mesmos as vítimas de “traumas por contaminação”.
Mesmo aqueles que estão investigando o desastre (jornalistas, trabalhadores de
organizações humanitárias avaliando as necessidades, representantes de direitos
humanos) podem ficar traumatizados.

O “segundo desastre”: a primeira fonte do trauma emocional é, com certeza, o


desastre em si mesmo. Mas as fontes de traumatismo não terminam quando o
desastre acaba (num sentido literal) e quando as vítimas foram resgatadas. Após o
desastre surge “o segundo desastre” – os efeitos da resposta ao desastre. O influxo
rápido de voluntários bem-intencionados, que precisam ser alimentados e abrigados,
se adicionam à confusão e competição por escassos recursos. Em algumas instâncias,
pessoas pobres vindas de fora da região do desastre inundam essa área, procurando
eles mesmos dividirem a comida e outros suprimentos que as organizações de resgate
providenciam para as vítimas do desastre. Isso aumenta ainda mais o fardo nos
profissionais que realizam o resgate e nas comunidades atingidas.

Aqueles que são forçados a se refugiar num acampamento ou num campo de


refugiados por longos períodos de tempo são forçados a se confrontar com as
consequências do desastre de forma contínua e implacável. Às perdas pessoais e
materiais nós adicionamos agora a perda de privacidade, perda da comunidade, perda
da independência, perda da familiaridade com o meio-ambiente e perda da certeza
com relação ao futuro. Papéis familiares e funções de trabalho do dia-a-dia são
interrompidos.

Higiene precária, abrigos inadequados, água e comida contaminadas produzem


epidemias, com disseminação de doenças resultando em mortes. No abrigo, roubos
pessoais e estupros podem colocar as mulheres, os mais velhos e outros mais
vulneráveis em perigo. Conforme as semanas e os meses passam, a raiva com relação à
lentidão da reconstrução ou a corrupção que evitam a chegada de suprimentos às
vítimas pode se adicionar ao estresse. Em alguns casos, como na Nicarágua após o
terremoto de 1972, e no México após o terremoto de 1985, tal insatisfação produziu
instabilidade política generalizada.
Efeitos retardados do desastre: alguns efeitos emocionais dos desastres podem não
aparecer até depois de um tempo considerável. Para algumas vítimas, o alívio inicial de
ter sido resgatado e o otimismo inicial sobre as perspectivas de recuperação podem
produzir uma “fase de lua de mel” (honeymoon stage). Após um período de meses ou
anos isso pode dar lugar à sensação de que as perdas pessoais e materiais são
irrecuperáveis. Pessoas queridas que morreram não retornam. As rupturas na família
são permanentes. Empregos antigos não são recuperados. Uma longa redução na
qualidade de vida continua. Depressão e ansiedade agora aparecem pela primeira vez
em algumas vítimas e a taxa de suicídio pode aumentar.

Outras vítimas de desastres parecem estar inicialmente bem. Todavia, isso pode ser
ilusório. Para proteger a si mesmas elas podem suprimir ou inibir o processamento do
impacto do desastre sobre elas. Após um tempo (muitas vezes considerável), estímulos
associados com o desastre podem disparar lembranças, trazendo de volta à
consciência materiais previamente suprimidos. Como resultado disso, respostas
psicológicas ao desastre podem “subitamente” aparecer, meses ou até mesmo anos
depois do acontecido.

Prevalência de efeitos psicológicos adversos após a ocorrência de desastres

Embora os números precisos variem de situação para situação, espera-se que acima de
90% das vítimas apresentem pelo menos algum tipo de efeito psicológico que
incomoda nas primeiras horas seguintes ao desastre. Muitas vezes, os sintomas
diminuem gradualmente nas semanas que se seguem. Por volta da décima segunda
semana após o desastre, no entanto, 20 a 50% ou mais podem ainda mostrar sinais
significantes de estresse. Os números mostrando sintomas geralmente continuam
caindo, mas respostas atrasadas e respostas a consequências tardias do desastre
continuam a aparecer. Enquanto a maior parte das vítimas do desastre está
relativamente livre do estresse por volta de um a dois anos após o evento, um quarto
ou mais das vítimas podem ainda mostrar sintomas significantes, enquanto outras,
que tinham previamente estado livre de sintomas, podem mostrar sinais de estresse
um ou dois anos após o desastre. Aniversários do desastre podem ser momentos
especialmente difíceis para muitos sobreviventes, com uma reaparição temporária e
inesperada de sintomas dos quais eles pensavam ter se livrado. Relatos de sofrimento
emocional generalizado dez anos ou mais após desastres como o de 1972, que
inundou Buffalo Creek (EUA) e a internação em campos de concentração tem sido bem
fundamentados.

A extraordinária prevalência de tais intensas respostas psicológicas, cognitivas e


emocionais, a desastres indicam que elas são normais a situações extremas e não um
sinal de “doença mental” ou de “fraqueza moral”. Contudo, os sintomas vivenciados
por muitas vítimas nos dias e semanas seguintes ao desastre são uma fonte de
sofrimento significante e podem interferir com sua habilidade para reconstruir suas
vidas. Se não forem encaminhadas e resolvidas relativamente rápidas, tais reações
podem se tornar uma fonte contínua de estresse e disfunções, com efeitos
devastadores para o indivíduo, sua família e sua comunidade.

Fatores que afetam a vulnerabilidade a efeitos psicológicos adversos

Nem todo mundo é igualmente afetado por um desastre e nem todos os desastres são
igualmente devastadores em termos psicológicos. Muitos fatores podem aumentar o
risco de conseqüências psicológicas adversas:

- Quanto mais severo o desastre e mais terríveis ou extremas são as experiências do


indivíduo, maior a probabilidade generalizada e duradoura dos efeitos psicológicos. Em
casos extremos (por exemplo, os campos de concentração nazistas, o genocídio de
Ruanda, os “campos da morte” cambojanos), virtualmente todos que estão expostos a
eventos traumáticos sofrem efeitos duradouros.

- Alguns tipos de desastres tem maior probabilidade de produzir efeitos adversos que
outros. No geral, as consequências psicológicas dos desastres que são
intencionalmente infligidos por outros (exemplo: assaltos, ataques terroristas, guerras)
são provavelmente maiores que aqueles desastres que podem ser produzidos por
atividades humanas, mas que não são intencionais (exemplos: acidentes de avião,
explosões industriais). Esses, por sua vez, tem uma maior probabilidade de produzir
efeitos adversos que os desastres naturais puros (exemplo: furacões, tornados).

- Mulheres (especialmente mães de crianças pequenas), crianças entre 5 e 10 anos de


idade e pessoas com uma história de doença mental pregressa ou ajustamento social
pobre parecem ser mais vulneráveis que outros grupos. Aqueles com uma experiência
pessoal anterior de trauma, tanto individual (exemplo: estupro) quanto coletiva
(exemplo: terremoto, genocídio) geralmente são também mais vulneráveis.

- Vários tipos específicos de experiências de desastre são especialmente traumáticos.


Eles incluem testemunhar a morte de pessoas queridas, perder um filho adolescente
ou jovem adulto, ser soterrado, ferido seriamente ou hospitalizado como resultado do
desastre.

- Em adição aos efeitos “psicológicos” do desastre, alguns dos efeitos físicos (exemplo:
ferimentos na cabeça, queimaduras, lesões por esmagamento, exposição a toxinas,
dores prolongadas) podem produzir diretamente, através dos processos fisiológicos,
efeitos psicológicos adversos, tais como dificuldade de concentração, dificuldade de
memorização, depressão e instabilidade emocional.

- Refugiados de guerra, de repressão política, ou violência política, são também de alto


risco para efeitos adversos. Em adição aos efeitos de eventos que podem tê-los
expulsados de casa, experiências negativas em abrigos e campos de concentração
(exemplo: má nutrição, epidemias de doenças infecciosas, estupro e outras agressões
físicas) podem eles mesmos produzir efeitos psicológicos adversos e desordens
psicológicas.

- A “estigmatização” das vítimas de desastres pode tornar difícil sua recuperação. Uma
situação infelizmente comum na qual isso ocorre é quando parte da experiência
traumatizante foi causada por estupro. Em muitas guerras atuais, o estupro tem
servido como uma arma. Estupro é também o maior risco para mulheres em campos
de refugiados. As vítimas podem ser incapazes de contar para suas famílias e amigos
sobre o que lhes aconteceu, por medo de serem culpabilizadas ou mesmo punidas.

- De forma inversa, a disponibilidade de redes de apoio social – famílias suportivas,


amigos e comunidade – reduz a probabilidade da duração dos efeitos adversos. E
aqueles que enfrentaram com sucesso traumas no passado podem suportar melhor os
desastres subseqüentes, como se tivessem sido “inoculados” contra o estresse. Para
uma minoria de vítimas, o desafio do desastre pode realmente ser positivo e levar ao
aumento da habilidade para lidar com desafios futuros na vida.

- Quanto mais grave o desastre, menos importa as características individuais. Em


muitos desastres graves, todos podem potencialmente apresentar respostas
emocionais adversas. Em desastres relativamente brandos, diferenças de
vulnerabilidade ou diferenças individuais podem ser de grande importância.

OS ESTÁGIOS DA RESPOSTA PSICOLÓGICA AOS DESASTRES

Costuma-se conceitualizar as consequências do desastre em termos de uma série de


estágios ou fases, cada uma das quais com suas próprias características. As fases,
apressamo-nos a dizer, não são rígidas. Ocorrem muitas variações em cada estágio e
os estágios se superpõem.

O estágio do “resgate”

Nas primeiras horas ou dias após o desastre a maioria das atividades de resgate é
focada em resgatar vítimas e procurar estabilizar a situação. As vítimas devem ser
alojadas, vestidas, receber atenção médica, providas de comida e água.

Durante o estágio de resgate vários tipos de resposta emocional podem ser vistas. As
vítimas podem variar de um para outro tipo de resposta, ou podem não apresentar
uma resposta “típica”, das que pareceriam mais evidentes.

 “Insensibilidade” psíquica: as vítimas podem parecer aturdidas, confusas,


apáticas. Uma calma superficial é seguida de negação ou tentativa de se isolar.
As vítimas podem reportar sentimentos de irrealidade: “isso não está
acontecendo”. Elas podem responder ao resgate de uma forma passiva, dócil,
ou podem se rebelar e se defender quando tentam reconquistar um senso de
controle pessoal. Elas podem parecer como autômatas em suas atividades
diárias. Essa resposta padrão é geralmente transitória e pode ser seguida por
(ou precedida de) excitação aumentada.
 Excitação aumentada: as vítimas podem experienciar intensos sentimentos de
medo, acompanhados de excitação fisiológica: aceleração cardíaca, tensão
muscular, dores musculares, distúrbios gastrointestinais. Elas podem se engajar
em atividades excessivas e podem expressar uma variedade de medos racionais
e irracionais. Essa resposta padrão é geralmente transitória e pode ser seguida
por (ou precedida de) insensibilidade psíquica.
 Ansiedade difusa: as vítimas podem apresentar sinais difusos de ansiedade:
resposta exageradamente surpreendente, incapacidade de relaxar,
incapacidade para tomar decisões. Elas podem expressar sentimentos de
abandono, ansiedade de separação de seus entes queridos, perda de sentido
de segurança e ânsia por alívio.
 Culpa do sobrevivente: as vítimas podem culpar a si mesmas ou sentir
vergonha por terem sobrevivido enquanto outros não sobreviveram. Pode
haver uma preocupação com pensamentos sobre o desastre e ruminação sobre
suas próprias ações: elas poderiam ter agido de forma diferente? Elas podem
se sentir responsáveis pelo infortúnio dos outros.
 Conflitos sobre os cuidados: as vítimas podem ficar dependentes dos outros,
ainda que desconfiadas, e podem sentir que ninguém pode entender o que elas
passaram. Algumas vítimas podem sentir a necessidade de distanciar-se
emocionalmente e para manter-se “duronas” podem-se irritar frente à simpatia
dos outros. Outras podem sentir um desejo intenso de estar com pessoas o
tempo todo.
 Ambivalência: algumas vítimas podem demonstrar ambivalência sobre a
aprendizagem do que aconteceu com suas famílias e seus bens.
 Instabilidade afetiva e cognitiva: algumas vítimas podem apresentar raiva
repentina e agressividade, e, inversamente, apatia e falta de energia e
habilidade para movimentar-se. Elas podem ficar desleixadas e chorar
facilmente. Sentimentos de vulnerabilidade e ilusões sobre o que aconteceu
são comuns.
 Ocasionalmente, as vítimas parecem estar em um estado confusional agudo.
Reações histéricas e sintomas psicóticos como delírios e alucinações, fala
desorganizada e comportamento bastante desorganizado podem também
aparecer. Eles podem estar isolados e ser de pouca duração ou podem
constituir uma “psicose reativa breve”.
 A maioria das vítimas age de forma apropriada para proteger a si mesmas e as
pessoas queridas. Na maioria dos desastres, apesar da crença no contrário, as
vítimas podem demonstrar pouco pânico e podem se engajar em atitudes
heróicas e altruístas.
Muitos desses comportamentos possuem uma qualidade adaptativa. Os
comportamentos da maioria dos afetados por desastres, mesmo quando eles parecem
anormalmente intensos ou inteiramente não familiares, devem ser entendidos como
reações normais a condições ou eventos anormais e devastadores. Eles asseguram
uma sobrevivência em curto prazo e permitem à vítima digerir informações a uma taxa
controlável. Mas os sintomas em si mesmos podem ser percebidos pelas vítimas como
socialmente condenáveis, como uma fonte de vergonha, culpa e falha, como uma
evidência de inadequação. Cuidadores e profissionais do resgate, em troca, podem
responder com irritação ou afastamento dessas vítimas.

Estágio do “inventário”

Uma vez que a situação estiver estabilizada, a atenção se volta para soluções em longo
prazo. Os esforços heróicos de resgate dão lugar a formas burocratizadas de ajuda. Por
volta de 12 a 18 meses, a assistência organizada de fora da comunidade diminui
gradualmente e a realidade de suas perdas cai sobre as vítimas.

Nas primeiras semanas após o desastre as vítimas podem entrar numa fase de “lua de
mel”, caracterizada pelo alívio de estarem seguros e estar otimistas quanto ao futuro.
Mas nas semanas que se seguem, elas devem realizar uma avaliação realista sobre as
conseqüências duradouras do desastre. A desilusão pode prevalecer. Os efeitos do
“segundo desastre” são sentidos.

Durante essa fase, nenhuma da ampla variedade de sintomas pós-traumáticos


aparece. Nenhum desses sintomas pode aparecer de forma isolada, mas
frequentemente as vítimas demonstram alguns desses sintomas. Vários grupos
distintos de sintomas são comuns. Muitas desses “transtornos de estresse pós-
traumático”, “transtornos de ansiedade generalizada”, “luto anormal”, “depressão
pós-traumática” merecem atenção. Somando-se a isso, muitos padrões restritos a
culturas particulares podem aparecer.

SINTOMAS PÓS-TRAUMÁTICOS
- Dor, luto, depressão, desespero, desesperança
- Ansiedade, nervosismo, amedrontar-se facilmente, preocupar-se
- Desorientação, confusão
- Rigidez e obsessão ou vacilação e ambivalência
- Sentimentos de abandono e vulnerabilidade
- Dependência, apego excessivo; ou, alternadamente, afastamento social
- Suspeitas, supervigilância, medo de ser prejudicada, paranóia
- Distúrbios do sono: insônia, sonhos ruins, pesadelos
- Irritabilidade, hostilidade, raiva
- Ausência de humor, explosões repentinas de emoção
- Inquietação
- Dificuldades de concentração; perda de memória
- Queixas somáticas: dores de cabeça, sintomas gastrointestinais, suores e
calafrios, tremores, fadiga, queda de cabelo, mudanças no ciclo menstrual,
perda do desejo sexual, mudanças na visão e audição, dor muscular difusa
- Pensamentos intrusivos: lembranças, sentir-se “revivendo” a experiência,
geralmente acompanhado por ansiedade
- Esquiva de pensamentos sobre o desastre e esquiva de lugares, figuras, sons
que relembrem à vítima do desastre; esquiva de discussão a respeito disso
- Problemas no funcionamento interpessoal; conflito conjugal aumentado
- Aumentado uso de álcool e drogas
- Queixas cognitivas: dificuldade de concentração e de relembrar; lerdeza no
pensamento
- Dificuldade de tomar decisões e de planejar
- Sentimento de isolamento e abandono
- Experiências “dissociativas”: sentimento de desprender-se de seu corpo ou de
suas experiências, como se elas não estivessem acontecendo consigo mesmo;
sentir as coisas como sendo “irreais”; sentindo-se como se estivesse “vivendo
num sonho”
- Sentimento de inutilidade, vergonha, desânimo
- Comportamento impulsivo e autodestrutivo
- Ideação suicida ou tentativas de suicídio
- A “marca da morte”: preocupação com imagens de morte

Transtornos de estresse pós-traumático: as características do sintomas de estresse


pós-traumático incluem:

(a) Reexperiências persistentes do evento traumático : lembranças recorrentes e


incômodas dos eventos do desastre; sonhos estressantes recorrentes nos quais
o desastre é revivido; estresse psicológico intenso ou reação fisiológica à
exposição de sinais internos e externos que simbolizam ou se assemelham em
aspecto ao evento traumático; ou experiências nas quais a vítima age ou sente
como se o evento estivesse ocorrendo novamente (em crianças, podem ocorrer
brincadeiras repetitivas nas quais os temas e aspectos do trauma são
expressos; reconstituições do trauma específico dos eventos podem ocorrer, e
podem acontecer sonhos assustadores sem conteúdo reconhecível).
(b) Esquiva persistente de estímulos associados com o trauma e entorpecimento
continuado da responsividade geral: esforços por evitar pensamentos,
sentimentos e conversas sobre o desastre; esforços por evitar atividades,
lugares ou pessoas que lembram à vítima sobre o trauma; inabilidade para
lembrar partes importantes da experiência do desastre; interesse
acentuadamente diminuído por participar em atividades significantes;
sentimentos de distanciamento e estranhamento dos outros; capacidade
restrita de afeto; ou uma sensação de futuro abreviado, sem expectativas de
viver uma vida normal.
(c) Sintomas persistentes de excitabilidade aumentada : dificuldade de iniciar ou
manter o sono; irritabilidade ou explosões de raiva; dificuldade de
concentração; hipervigilância; resposta de surpresa exagerada.

Esse grupo geral de sintomas tem sido reportado em todas as partes do mundo. Em
partes menos industrializadas e entre pessoas vindo dessas áreas, a esquiva e os
sintomas de entorpecimento são indicados como sendo menos comuns e os estados
dissociativos e estados de transe, nos quais os componentes do evento são revividos e
a pessoa se comporta como se estivesse passando novamente pelo evento, podem ser
mais comuns.

Transtorno de ansiedade generalizada: os sintomas característicos da ansiedade


generalizada incluem:

(a) Ansiedade e preocupação persistentes e excessivas sobre uma variedade de


eventos ou atividades (não exclusivamente ligados ao desastre e suas
consequências).
(b) A pessoa acha difícil controlar a preocupação e essa preocupação é
desproporcional à realidade. Ela interfere na atenção às tarefas disponíveis.
(c) A ansiedade e a preocupação estão associadas com sintomas tais como
agitação ou sentir-se “com os nervos à flor da pele”; sentir cansaço fácil;
dificuldade de concentração ou com a mente em branco; irritabilidade; tensão
muscular; e dificuldade de iniciar e manter o sono.

Embora alguns indivíduos com transtorno de ansiedade generalizada nem sempre


identifiquem suas preocupações como “excessivas”, eles narram estresses subjetivos
devido a sua constante preocupação e isso pode afetá-los nas áreas social,
ocupacional, conjugal, entre outras. Sintomas somáticos (exemplo: mãos úmidas, boca
seca, náusea ou diarréia, frequência urinária) e sintomas depressivos estão geralmente
presentes.

Há uma considerável variação cultural em como a ansiedade é expressa. Em algumas


culturas, ela pode ser expressa mais através de sintomas somáticos, enquanto em
outras através de sintomas cognitivos. As crianças podem revelar sua ansiedade
através de preocupação sobre sua competência (por exemplo, na escola), preocupação
excessiva sobre pontualidade, excesso de zelo na busca de aprovação e um estilo
pessoal de conformidade e perfeccionismo.

Luto anormal: normalmente após a morte de alguém querido uma sequência de


estágios de luto é esperada. Geralmente a primeira resposta é de descrença e
negação. Sentimentos de dormência podem dar trégua e permite à realização infiltrar
devagar. Então, como se começássemos a perceber a realidade e o significado da
perda, pode aparecer sensação de estresse, saudade da pessoa perdida, raiva dessa
perda e ansiedade sobre nossa habilidade para lidar com esses sentimentos. Um
período de melancolia se sucede, como se revíssemos nossas lembranças da perda da
pessoa querida, e então, gradualmente, soltam-se os laços psicológicos, o que nos
permite viver sem a pessoa perdida. Todas as culturas possuem rituais que, apesar da
variação, parecem pretender facilitar esse processo.

O trauma, todavia, pode interferir com a habilidade para passar normalmente por esse
processo. Os ferimentos da própria vítima, a perda dos suportes sociais, familiares e
comunitários, culpa por ter sobrevivido e o próprio trauma psicológico da vítima
podem interferir com os rituais esperados e os processos internos de luto. Lembranças
do morto podem disparar outras lembranças da vítima em relação ao desastre.
Ruminação pós-traumática pode não permitir que a vítima confronte as lembranças e
pensamentos que são centrais para o luto. Entorpecimento pós-traumático pode
interferir com o engajamento da vítima em interações sociais suportivas.

Pode haver ainda outros obstáculos práticos para essa despedida do morto. Por
exemplo, processos legais podem atrasar os procedimentos do funeral ou
preocupações sobre o enlutado ver o corpo do morto devido aos ferimentos que este
pode ter sofrido no desastre podem levá-lo a não ter a oportunidade de ver esse
corpo. Muitos estudos tem indicado que não ver o corpo do morto pode contribuir
para um luto anormal e que ver o corpo, mesmo quando desconfigurado, não é
inerentemente prejudicial. Poucas vítimas a quem foram permitidas e aceitaram ver os
restos mortais se arrependeram depois.

Esses obstáculos psicológicos e práticos a uma resposta “normal” à morte de um ente


querido podem contribuir para uma sensação de falta de terminar o luto ou permitem
fantasias mágicas de que a pessoa morta não morreu de fato. Qualquer uma das
muitas síndromes de luto anormal pode aparecer (Nota: diferentes culturas variam
largamente com respeito a o que é “esperado” após a morte de um ente querido. Entre
alguns povos, a expressão aberta de emoção é desaprovada. Entre outros,
demonstrações em público são esperadas e a falta dessas demonstrações é
considerada suspeita. Em algumas culturas, espera-se que as pessoas demonstrem sua
dor de forma breve e então retornem a suas atividades normais. Em outras, espera-se
um período longo de luto. A avaliação do significado desses padrões depende da
consciência do que são as normas culturais em determinada cultura).

(a) Luto inibido: o luto exibe um padrão caracterizado por entorpecimento,


contenção e controle exagerado das emoções, pouca demonstração de afeto.
As pessoas parecem estar se “saindo bem”, mas este padrão está associado
com posterior depressão e ansiedade.
(b) Luto distorcido: o enlutado demonstra intensa raiva e hostilidade, que
dominam a sua tristeza e culpa. Essa raiva pode ser direcionada para qualquer
pessoa que o enlutado associar com a morte do ente querido (exemplo: equipe
de resgate).
(c) Luto crônico: os sentimentos de tristeza e perda não desaparecem. Choros
freqüentes, preocupação com a perda são recorrentes.
(d) Depressão: o enlutado cai em depressão, com luto prolongado, desespero e a
sensação de que a vida não vale à pena. Distúrbios de sono e apetite podem
ocorrer. O enlutado pode ter fantasias ativas de ser reunido com o morto e
ideação e tentativas de suicídio podem ocorrer.
(e) Culpa excessiva: o enlutado pode demonstrar excessiva auto-recriminação e
preocupação com culpa, que eclipsam sua tristeza. Podem ocorrer
comportamentos autodestrutivos, mas não claramente suicidas, como
acidentes freqüentes ou uso excessivo de bebida alcoólica.

Depressão pós-traumática: depressão prolongada é um dos mais comuns achados dos


estudos de pessoas traumatizadas de forma aguda ou crônica. Ela geralmente ocorre
em combinação com transtorno de estresse pós-traumático. O trauma pode produzir
ou exarcebar uma depressão já existente.

Sintomas comuns de depressão incluem tristeza, lerdeza nos movimentos, insônia (ou
sono exagerado), fadiga ou perda de energia, diminuição do apetite (ou apetite
excessivo), dificuldades de concentração, apatia e sentimentos de desamparo e
anedonia (diminuição acentuada do interesse ou prazer nas atividades cotidianas),
retraimento social, ruminações de culpa, abandono e mudança de vida irreversível,
preocupações com perda e irritabilidade. Em alguns casos a pessoa pode negar sua
tristeza ou pode se queixar, em vez disso, de sentir-se vazia ou sem nenhum
sentimento. Alguns indivíduos apresentam queixas somáticas, incluindo dores
generalizadas, ao invés de tristeza. Ideação ou tentativas de suicídio podem ocorrer.
Em crianças, queixas somáticas, irritabilidade, retraimento social são particularmente
comuns.

Em algumas culturas, a depressão pode ser largamente experienciada em termos


somáticos, em vez de na forma de tristeza ou culpa. Queixas de “nervosismo”, dores
de cabeça, dor crônica generalizada, fraqueza, cansaço, “desequilíbrio”, problemas no
“coração”, sensações de “calor” ou preocupações sobre estar sendo amaldiçoado ou
enfeitiçado podem aparecer.

Transtornos culturais específicos: as fronteiras entre ansiedade, depressão,


dissociação e transtornos emocionais que tem predominantemente sintomas
somáticos são bastante porosas. As vítimas geralmente apresentam sintomas que se
encaixam em algumas dessas categorias. Em muitas sociedades e grupos culturais,
padrões tradicionais de expressão do estresse tomam a forma de combinações de
sintomas que não tem um equivalente exato no padrão internacional das categorias de
doenças mentais. Uma resposta possível para o desastre pode tomar a forma de um
desses “transtornos culturais específicos”. Eles podem incluir, por exemplo, susto e
ataque de niervos (na América Latina e no Caribe), amok (Pacífico Sul), dhat (India),
latah (Sudoeste da Ásia e Pacífico Sul) e khoucheraug (Camboja).

Em muitas partes do mundo o idioma convencional para expressar emoção pode ser o
somático (exemplo: fadiga crônica, dores generalizadas, distúrbios gastrointestinais,
sensações de “calor” ou medo de doenças somáticas (exemplo: hipocondria, medos de
infecção). Em alguns grupos culturais o estresse do desastre pode assumir a forma de
um “transtorno de transe”. Um “transe” é uma alteração transitória e acentuada no
estado de consciência ou uma perda do habitual senso de identidade pessoal,
associado com comportamentos estereotipados ou movimentos que são vividos como
estando além do controle da pessoa ou por um estreitamento da consciência dos
arredores.

O estágio de “reconstrução”

Por volta de um ano ou mais depois do desastre o foco muda novamente. Um novo
padrão estável de vida começa a emergir. Em todo caso, a distinção entre o alívio em
relação ao desastre e um padrão amplo de desenvolvimento social e econômico
começa a diminuir e eventualmente desaparece.

Durante essa fase, embora muitas vítimas possam ter se recuperado por si mesmas,
um número substancial continua a mostrar sintomas, muitos parecidos com os da fase
precedente (“inventário”). Um número significante que não eram sintomáticas
anteriormente podem agora exibir sérios sintomas de ansiedade e depressão, como se
a realidade e a continuidade de suas perdas ficassem evidentes. O risco de suicídio
pode, na verdade, aumentar nesse período. Outra característica do aparecimento
tardio dos sintomas inclui fadiga crônica, sintomas gastrointestinais crônicos,
incapacidade para o trabalho, perda de interesse pelas atividades diárias e dificuldade
de pensar claramente.

A noção de “transtorno de estresse pós-traumático” descrito anteriormente deriva


principalmente de observações de sintomas de sobreviventes de eventos traumáticos
relativamente circunscritos. Um número de estúdios sugere que síndromes mais
complexas podem aparecer em sobreviventes de traumas intensos, prolongados e
repetitivos, como aqueles que foram feitos reféns, quem foi torturado repetidamente
ou expostos a abuso físico ou a abuso sexual, que foi internado em um campo de
concentração ou que viveu por muitos meses ou anos numa sociedade sob estado de
guerra civil crônica.
Entre as vítimas de tais desastres pode aparecer a “síndrome do sobrevivente”. As
pessoas que apresentam essa síndrome se descrevem como se caminhassem pela vida
“sem nenhuma chama”. Depressão crônica, ansiedade e culpa por ter sobrevivido
podem aparecer, ou, alternativamente, agressão crônica e “ódio constante”.
Retraimento social, distúrbios de sono, queixas somáticas, fadiga crônica, labilidade
emocional, perda de iniciativa, má adaptação social, pessoal e sexual se fazem
presentes. O “prazer da vida” se foi, substituído por um “padrão pervasivo de lento
desespero”. Relacionamentos conjugais e com os filhos ficam perturbados, geralmente
criando distúrbios significativos nas gerações posteriores.

Outras vítimas de traumas prolongados, severos e repetitivos são descritos como


exibindo “complexos de transtorno pós-traumático”, cujos sintomas incluem:

 Dificuldades em regular afeto (exemplo: depressão persistente, pensamento


suicida, auto-agressão, raiva explosiva)
 Alternâncias na auto-percepção (exemplo: vergonha, culpa, sentido de
profanação, sensação de ser diferente dos outros ou de desamparo).
 Alternâncias na consciência (exemplo: amnésia, estados dissociativos
transitórios, pensamentos intrusivos, preocupações ruminativas)
 Dificuldades na relação com os outros (exemplo: isolamento, perturbação das
relações íntimas, desconfiança persistente)
 Perturbação nos sistemas de acepções (exemplo: perda da fé, uma sensação de
desamparo e desespero)
 Alterações na percepção do autor das atrocidades (exemplo: preocupação com
vingança, atribuições irrealistas de poder total ao perpetrador, ou,
paradoxalmente, gratidão por ele).

IMPACTOS COMUNITÁRIOS E SOCIAIS DOS DESASTRES

Os desastres atingem diretamente suas vítimas, mas criam também rasgos no tecido
da vida social. Às vezes isso ocorre de forma direta e total, quando, como resultado do
desastre, as pessoas são forçadas a deixar suas terras e migrar para um lugar qualquer.
Em outros casos, o influxo rápido de equipes de resgate, a presença de representantes
governamentais, imprensa e outros agentes de fora (incluindo meros curiosos), o fluxo
de pessoas de fora da área atingida pelo desastre procurando pela comida trazida
pelas equipes de resgate para provir às vítimas do desastre, somam-se para perturbar
ainda mais a comunidade.

Até mesmo quando a estrutura formal da comunidade é mantida, o desastre pode


desfazer os laços que mantinham as pessoas unidas, em famílias, comunidades, grupos
de trabalho e a sociedade como um todo. Quando aqueles laços são destruídos, os
indivíduos que fazem parte dos grupos afetados perdem amigos, vizinhos, uma
comunidade, uma identidade social. Esses efeitos coletivos do desastre acabarão por
ser tão devastadores quanto os efeitos individuais. As conseqüências do desastre para
famílias, vizinhanças, comunidades e sociedades são muitas:

Dinâmicas familiares podem ser alteradas. Os desastres produzem mortes ou


deficiências, separações familiares e dependência de doações podem minar a
autoridade do provedor da família, suplantar as atividades tradicionais em casa e
forçar as pessoas ou a sair de papéis antigos ou a começar novos. Sintomas de
membros da família afetam suas interações com outros membros da mesma família. A
entrada na intimidade da comunidade por pessoas de fora pode perturbar ou desafiar
as práticas de educação das crianças e os padrões tradicionais de relacionamentos
entre homem-mulher. Na sequência do desastre, conflitos conjugais e estresse
aumentam; pode ocorrer aumento da taxa de divórcios após os desastres. Conflitos
entre pais e filhos também se intensificam. São relatados aumento da violência intra-
familiar (abuso infantil, abuso conjugal).

Desastres podem destruir fisicamente instituições importantes da comunidade, como


escolas e igrejas, ou minar seu funcionamento devido aos efeitos diretos do desastre
nas responsabilidades pessoais por essas instituições, como professores e padres.
Padrões tradicionais de autoridade são destruídos, juntamente com formas de
controle sobre os comportamentos individuais. Muitos estudos indicam um aumento
nas taxas de violência comunitária, na taxa de agressão, abuso de álcool e drogas e na
taxa de condenações legais após o desastre.

Os desastres minam a habilidade da comunidade de continuar com suas costumeiras


ou tradicionais atividades centrais para os indivíduos, comunidade e identidade social,
variando do trabalho até atividades recreativas para os rituais costumeiros. Algumas
dessas rupturas são temporárias, mas outras são difíceis de reverter. Por exemplo,
uma cheia pode danificar permanentemente a terra de uma fazenda e provocar um
retorno a uma tradicional agricultura insustentável, ou um vazamento de óleo na costa
afetar permanentemente os pesqueiros tradicionais. Com as pessoas forçadas a sair de
suas casas e de suas terras por um curto ou longo período, e com registros pessoais e
da comunidade perdidos devido ao desastre, aparecem oportunidades para saques.
Isso pode ser limitado a posses pessoais ou a perdas permanentes de ferramentas,
animais e terras. A comunidade cujos membros não podem continuar cultivando a
terra, realizar atividades de produção do artesanato local, ou caçar e pescar de forma
tradicional está destruída e seu sentido de identidade atacado.

Os desastres colocam uma pressão social sobre os papéis sociais das comunidades
tradicionais, padrões de status social e liderança. Policia, agências locais de
alojamento, instalações de saúde locais são sobrecarregados e encaram uma nova
tarefa de integrar seu trabalho com a dos voluntários, frequentemente de fora da
comunidade. Pode ocorrer irritação com a desigualdade na distribuição da ajuda após
o desastre. Essas desigualdades podem exarcebar a diferença entre ricos e pobres.
Especialistas externos podem representar uma ameaça para os profissionais locais. Na
sequencia do desastre, novos líderes podem emergir na comunidade, devido ao papel
dessas pessoas em responder ao desastre. Conflitos entre esses novos líderes e os
líderes comunitários tradicionais podem aparecer.

A assistência externa pode ser necessária na sequência do desastre, mas pode também
promover uma sensação de dependência da comunidade. Na medida em que as
necessidades diárias são supridas de fora, os incentivos para retomar as atividades
tradicionais são reduzidos. Essa não é uma questão de “dependência” psicológica. A
provisão de comida e outros suprimentos podem competir com a produção local,
perturbando os preços e salários tradicionais e prejudicando as tentativas para recriar
os padrões antigos de produtividade. Acrescente-se a isso que o desastre em si mesmo
pode ter destruído as ferramentas, oficinas, animais ou outras necessidades de
produção.

Os desastres podem levar, direta ou indiretamente, a mudanças permanentes no


processo de produção, especialmente processos de posse e uso da terra. A mudança
da agricultura de subsistência para trabalho assalariado, o saque da terra, migração e
desenraizamento e reassentamento tem um papel importante.

Cisões podem aparecer na comunidade conforme a coesão é perdida. Um dos perigos


é o do bode expiatório, seja de indivíduos ou usando as divisões tradicionais da
comunidade (exemplo: seguindo as linhas étnicas e religiosas).

Em comunidades com história de desastres anteriores, ou por causas naturais ou


provocados pelo homem, o trauma produzido por um novo desastre pode reacender
velhos sentimentos. Memórias do genocídio, guerra civil, opressão social, ou divisão
étnico-racial e os sentimentos que eles produzem, e sentimentos de marginalização e
desamparo podem ser exarcebados.

Em algumas comunidades que tiveram que lidar com desastres naturais repetidos, tais
como enchentes, numa base mais ou menos regular, os desastres e as respostas a eles
podem ser integradas pelos rituais da comunidade e seu sistema de crenças. As
comunidades podem ter rituais tradicionais para lidar com os efeitos do desastre. Não
apenas o desastre, mas as intervenções externas podem interferir com esses rituais
tradicionais, com as respostas e com os significados atribuídos ao desastre; e essas
intervenções podem ser vivenciadas como uma bênção ambígua ou até mesmo como
uma fonte adicional de estresse.

Os desastres causam impactos nos indivíduos, nas famílias e nas comunidades. Esses
impactos não são distintos, com efeitos separáveis. Os efeitos devastadores nos
indivíduos que integram uma família ou uma comunidade exercem um papel maior em
criar os efeitos nessa família e nessa comunidade. Mais importante, os sistemas de
suporte sociais desempenham um papel extremamente importante em proteger os
indivíduos do impacto do desastre e do impacto do estresse em geral. Desrupções
sociais podem reduzir e interferir nos efeitos de cura da família e da comunidade e são
elas mesmas fontes enormes de estresse nos indivíduos que fazem parte dessa família
ou comunidade. Desrupção na família ou na comunidade podem ser mais
devastadores, num curto, e especialmente num longo prazo, do que o desastre em si
mesmo.

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