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AnBlise Psicobgica (1987). 4 (V): 621-???

Psicologia, educação
e intervenção comunitária (*)

FREDERICO PEREIRA (**)


S. NIZA (***)

Com este título demasiado geral ou de- das. Resistência i3 mudança que se encontra
masiado ambicioso o que vamos aqui p r e tanto no campo da referenciação a Teorias
duzir é. um conjunto de reflexões mais ou Psicológicas, como no das metodologias tra-
menos articuladas, mais ou menos desarti- dicionalmente consideradas válidas e ainda
culadas, em redor das grandes temáticas no das práticas.
que são a Comunidade e a sua relação com Pelo contrário, parece-nos que CES norvczs
a Psicologia e a Educação. interf aces P s i c o l o g i c c E d ~ q ã ~ o m u i n i d ~ e
Reflexões que facilmente - e legitima- interrogam as Ciências Humanas nos seus
mente -poderão ser consideradas ((filosó- próprios fundamentos, e exigem uma p a -
ficas)) ou ((ideológicas)),ou seja pouco ((cien- gem reflexivcr que ciclicamente redimenie
tíficas)); mas neste campo o «estritamente a Conceptualizqãa e a Acção e que, por
científico)), se é que existe, ainda e t á por ser especdativa, núo é necesmriamente ino-
nascer, Além disso, queremos acrescentar perante.
que, em nossa opinião, a própria pormati- Mas essas novas interfaces, além de inter-
vidade dos discursos e práticas científicas roguem as Ciênoias Humanas, os seus fun-
clássicas não se aplica nestes terrenos, onde damentos e até as suas formas de organiza-
a inovação e a busca de novas perspectivas ção, interrogam também 06 próprios pro-
e métodos de acção e de interpretação da dutores de discursos científicos e os seus
realidade são a marca dominante. O apego «habitus» mentais, assim como os técnicos
a formas de cientificidade tradicionais é, que intervêm directamente no terreno, cuja
para n6s, mais um sinal de resistência a formação de base (e até por vezes cuja
mudança do que expressão de critérios va- orientação ideológica) se mostra discordante
lorativos de práticas estáveis e bem defini- em relação as acções inovadoras que pre-
tendem realizar.
(*) O texto reproduz uma intervenção oral A reflexão ((especuilativm 6 por isso um
no 2.* Colóquio ((Psicologia e Educação)), reali- ‘tempo’ essencial daquilo que se prefigura
zado no ISPA em Setembro de 1986. no horizonte da Psicologia e da prática dos
(**) Professor no ISPA.
(***) Docente no ISPA e Director da Secção
picólogos e outros técnicos: a permanente
de Educação Terapêutica. reestruturação e reorganimção.

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Em síntese extrema, as questões que se centravam-se no indivíduo, no subsistema
põem a Psicologia, na sua relação com a organizacional, ou em mudanças finaliza-
intervenção comunitária, centram-se a volta das na esfera da aprendizagem vista como
de um conjunto aparentemente simples de um processo individual. Embora reconhe-
problemas. ((Como pode (a Psicologia) con- ccndo o impacto da esfera social sobre
tribuir para a m d q a social? Qual o papel os indivíduos, este impacto, quando era
dos psicólogos q w n t o às consequências da assinalado, era visto como um prrrâmetru
mudança social? ( E mesmo) até que ponto adicional que apenas modalizava os com-
será a Psicologia ela própria alterada pelas portamentos e as acções. A única excep
mudanças sociais?)) (M. Haggard, H. Wein- ção, não envolvendo a esfera propriamente
rich-Haste: One generation after 1984: The comunitária, encontra-se sobretudo nos tra-
role of Psychology, Bull. of the BPS, S e p balhos de Vigotsky.
tember, 1986). No entanto, no c a m p empírico, as
E é claro que a estas questões -que re- Comunidades criadas por motivações ideo-
sultaram de um inquérito feito aos muito lógicas, sociais e políticas, ou religiosas
empíricos psic6logos ingleses cujos resul- acumulavam um conhecimento prático que
tados foram publicados em Setembro pas- permitia concluir que ilhéus comunitários
sado -não podem ter respostas que obede- criados por esses motivos apenas conseguiam
ç a m aos «cânones» da análise científica sobreviver se acentuassem até ao limite do
tradicional: todas as respostas, nesta fase, possível a mecânica da identidade comu-
serão necessariamente mais ou menos espe- nitária. O Self individual é então visto como
culativas. potencialmente perigoso, e todo o trabalho
Assim si3 justifica, a nosso ver, trazer de organização comunitária, no que respeita
aqui especulações que envolvem dimensões a processos mentais, era visto como acção
tão Wcas como a do Poder, da Cultura, de destruição das identidades individuais e
da Diferença, da Identidade, da Mudança, e respectiva reconstrução na base do Self
que tantas dificuldades têm levantado às colectivo. O objectivo era produzir a inte-
Ciências Sociais e que, no campo que nos riorização deste Self colectivo no lugar do
ocupa, apenas têm encontrado na Ciência Self individual. Embora não sirva de evem-
das Organizações um terreno de teorização plo, é interessante ver que a taxa de sobre-
e compreensão mínimas. vivência destas comunidades, por vezes ditas
utópicas, está na relação directa do grau
* de abdkação do indivíduo, através de um
* * conjunto de mecanismos que são os do sa-
crifício, investimento absoluto no grupo,
Psi col og i a , E d uc aç á o , Com unidade... renuncia as relações out-grorap, comunhão,
Qual a evolução destle trio? mortificação o eu privado, e transcendên-
Podemos, quanto ii evolução, distinguir &a. (M. Zax, G. Specter: An Introduction
4 momentos: to community Psychology). O interesse da
análise dm comunidades utópicas reside
1 - A Psicologia académica tradicional para nós apenas no facto de elas terem
não tinha qualquer relação com problemá- visto1 clcrramente a importância da identi-
ticas comunitárias, tal como acontece, de dade comunitária como factor de perdw
uma forma ou de outra, com outros ramos ratão e de cumprimento das s w s finalida-
de estudo do Comportamento. A Psiquia- des. Interesse que é tanto maior quanto
tria, a Psicdogia Clínica, a Ciência das o conceito de identidade comiinitária é
Organizações, ccmo a própria Educação iiiuito niiçeii;e das análises hoje feitas so-

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bre comunidades, apesar de parecer ser um vailteur Sm'al. No entanto é interessante
eixo potencial de todo o trabalho comu- notar que a análise da família é muito mais
ni tário. arztiga do que se p m ~e, sitwse, nu ori-
gem, no terreno da desqualificação adiciond
2 -Num segundo momento, a psicologia do indivíduo pela desqualificação sm'd do
procura aplicar mais sistematicamente 06 seu meio fmniliw.)c)
conhecimentos acumulados, sobretudo a 3 - A terceira fase é a fase heróica.
Educação, e agora o seu objecto é o indi- Constata-se o fracasso destas formas indivi-
víduo, ou a forma como as funções mentais dualizadas e desqualificantes, e que ainda
se exercem em cada indivíduo. O objectivo por cima, além de não gerar adaptação/
implícito, ou lateral, é o de legitimar as /reintegração, são excessivamente caras.
práticas de exclusão que o Sistema Escolar Fase Preventiva e Social-é como se
ia realizando. O modelo de referência é O pode qualificar esta fase. Os trabalhos de
modelo clínico. De novo, a esfera social 6 Caplan no domínio clínico, e os programas
ignorada, ou apenas convocada como um Head Start assinalam o nascimento desta
elemento adicional de legitimação de exclu- fase.
são, na medida em que a vida social dos No domínio clínico, que se cruza estreita-
mentalmente excluídos era ela própria des- . mente nesta altura com a esfera educacio-
qualificada e estigrnatizadora. Em paralelo nal, verifica-se uma grande insatisfação de
deve dizer-se que outros saberes cumpriam muitos profissionais com as suas funções
o mesmo objectivo de desqualificação, no- tradicionais: a fulnção tera@utica e a fun-
meadamente a assistência social clássica, ção de custódia atribuída aos centros hos-
que, depois de querer civilizar as classes pitalares são postas em causa. Reconhe-
populares - ou seja, as vítimas do prc4cesso ce-se, por outro lado, o impacto importan-
de exclusão - procuram reintegrá-las, rea- tíssimo dos factores sociais e am'bientais
daptá-las, aos usos e costumes da ideologia no desencadear dos processos de inadap
dominante. Se o psic6log0, nesta fase, exclui
tação infantis, juvenis e de adultos. Tra-
indivíduos qualificados como ininteligentes,
balhos clássicos de Hollingshead e Redlich,
a assistente social confirma que a falta de de Faris e Dunham, e depois de Goffman
inteligência se associa a falta de moralidade. são momentos importantes desta reflexão
O Psicólogo tem como arma a análise clí-
e que se associam, noutros contextos, ou
nica das funções mentais; a assistente social
do grupo de M. J. Chonbart de Lauwe
tem a investigação social que lhe dará - este último insistindo em factores sociais
«índices», quer através de contactos com os
de inadaptação infantil primeiro, e em 'fac-
vizinhos, quer através de contactos directm tores ecológicos e ambientais depois.
destinados a transformar factos que podem
ser anódinos ou significativm apenas de O entrecruzamento destes e doutras tra-
pobreza, em indicadores de moralidade. balhos leva a uma preocupação essencial
Por exemlplo, esta afirmação é sintomática com a esfera de prevenção, muito hpuisio-
«Toda a família que trata dos seus móveis nada por Caplan que, desde 1961, fornecia
é uma família ligada aos bons costumes e o contexto científico no qual muitos dos pro-
as tradições)). Daí que o trabalhador de
serviço social, no inquérito, transformasse
os móveis em indices. (Para não assustar bora(I) com De facto, a ideia é mais antiga ainda, em-
outras roupagens. 32 o caso dos mé-
ninguém: a frase anterior é de 1931, c en- dicos-legisladores, nos finais do séc. XVIII, com
contra-se num guia francês de trabalho Cabanis a cabeça. Não é nosso objectivo analisar
social: Abbé J. Violet, Petit Guide dra Tra- aqui esse assunto.

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gressos ulteriores se viriam a enquadrar. sação picológica e educacional, Trata-se
Fala-se a partir de agora de prevenção pri- nomeadamente, de modificar as atitudes de
mária, secundária e terciária, insistindo-se rejeição da comunidade em relação a indi-
sobretudo: víduos ou grupos que, duma forma ou dou-
-Na prevenção primária, cujo objectivo tra, a subvertem, e de romper as barreiras
é o de criar condições básicas de desenvol- de isolamento e de autodegradação de que
vimento no terreno físico, psicossocial e os seus familiares são vítimas. (Programas
lcultural. recentemente desenvolvidos por Paul Schnei-
No terreno físico: melhores condições de der (P. Schneider, 1985.) no campo da auto-
alilmentação, pssibilidade de exercício neu- -estima de pais de crianças perturbadas, ou
romuscular, programas de estimulação sen- programas no campo específico da Educa-
sorial. ção (R. Getary, 1985), estão neste caso).
No terreno psicomocial: estimulação pre- As técnicas utilizadas são essencialmente o
coce de natureza cognitiva e emocional trabalho com grupos de indivíduos em si-
recebida na esfera da relação interpeswal. tuações difíceis idênticas, ou o trabalho in-
No terreno cultural: modelando as expec- dividual destinado a elevar a congruência
tativás dos outros em relação a cada indi- entre o self real e o self ideal e a aumentar
víduo tendo em conta o seu estatuto social. as capacidades de autoperceEão e de auto-
Assim se desenvolvem (programasalimen- -avaliação. (Nonem-Hebugen, 1976.)
tares, programas de estimula@ precoce, Note-se que este tipo de programas, de-
programas de educação familiar e também senvolvidos em 1983-1984-1985, apenas siste-
programas centrados na acção interpessoal, matizaram uma tendência que já se encon-
organizados em redor do contacto face a tra no6 anos 60; a única diferença é que se
face dos indivíduos, ou com grupos, com a preocupam legitimamente, com uma dimen-
finalidade tanto de melhorar as condições são que a literatura educacional tem vindo
psicossociais e culturais do ambiente e da a por em relevo, o autoconceito e auto-
colmunidade, como o de evitar ou enqua- -estima como factores básiccs de equilíbrio
drar situações de crise, as quais, corno se individual e da aprendizagem. Note-se tam-
sabe, Caplan dedicou particular atenção, bém que essa dimensão, com a importância
Deve notar-se que estes primeiros progra- que merece, raras vezes, está presente em
mas, e 05 trabalhos de Caplan sobre os programas de intervenção anteriores, ou,
quais parcialmente assentam, constituem a quando está, é de maneira implicitae por isso
matriz epis!emdÓgica de quase todos os mesmo pouco trabalhada. Outras vezes está
programas de intervenção comunitárias que presente, mas diluída, e outras ainda está
se desenvolveram até hoje. presente ou ausente de forma dwrgani-
Quanto it Igxevenção secundária, ela mis- zada. No programa ((princeps)), o Head
tura-se estreitamente com a função primá- Start, falava-se em ajudar o desenvolvimento
ria, e destina-se a reduzir a taxa de incapa- emocional e swilal da criança, em melhorar
citação psicológica e educacional da comu- as suas interacções familiares, mas, na prá-
nidade. Trata-se neste caso de impedir a tica, se de facto havia Directores de Centros
evolução de processos de desajustamento que insistiam nos factores de auto-estima,
psicológico e educacional detectados no seu Iauteaceitação e autuconfianga, outros preo-
início. cupavam-se sobretudo com questões de grn-
A prevenção terciária, finalmente, con- mática e vocabulário.
siste em trabalhar com a comunidade em Uma excepção a este estado de coisas foi,
ordem a corrigir os efeitos comunitários já por exemplo, o Projecto Bank Street, N. Y.,
criados por situações de franca desmmpen- (Biber, B, 1961, 1967) (Biber, B.: Integration

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of Mental Health Principles in the School ignorado o meio comtonitário de inserção
Setting in Caplan (ed.) Prevention of Men- dos crianças, ou do facto de terem lidado
tal Disorders in children, N. J. Basic Bmks; erradomente com a comunidade, OU por
Biber, B.: A Learning-Teaching paredigm terem tido em conta factores atinentes a
for integrating intellectual and affective dinâmica de iretervençáo-formqão dos téc-
processes, in: Bower e Hdlister (Ed.)- nicos, ou1 finalmente por ignorarem a dimen-
Behavioral Science frontiers in Mucation, são smio-institucional que atrwessa tom-
N. J. 'Wiley). bém toda a intervenção comunitária.
Os osbjectivos deste Projecto eram de na- Por outro lado, a desqualificqáo passiva
tureza essencialmente socio-emocional, e do meio, nomeadamente familiar, caracte-
hierarquizavam-se da seguinte maneira: rístico de fases anteriores, os programas
ditos comunitários desta época heróica
1) criar um sentimento positivo em rela- opmhum uma desqualificqão activista. As
ção ao Eu; famílias, o meio social próximo, as classes
2) levar a uma percepção realista do Eu populares continuavam a ser vistos como
e dos Outros; degradadas, apenas degradadas, ou seja,
3) levar a uma boa relação(com 05 outros; através de uma óptica puramente desvalo-
4) levar a uma boa relação com o am- rizante, e competia aos técnicos explicar
biente; a esses indivíduos, grupos e comunidades,
5 ) criar condições de independência; Iromo fazer, e, até, «como ser))!...
6) elevar a curiosidade e a cnatividade; 0 critério de referência mantinham-se,
7) elevar a força de recuperação em si- como é lógico, 05 valores das classes mé-
tuação de fracasso e promover a ca- dias, valores em que se procuravam gene-
pacidade de resolução de problemas. ralizar sem pôr em discussão um minuto
O pricípio básico era o de que através que fosse a questão antropológica essencial:
da melhoria da competência socio-
-emocional das crianças, estas melho- - Qual a funcionalidade comunitária âos
rariam as suas capacidades de apren- comportamentos que se pretendia re-
dizagem. mover?
- Qual a funcionalidade comunitária ou
gruipal que paderiam vir a ter os valores
No entanto, o programa de Biber acabou que se pretendia impor?
por ficar limitada a algumas escdas priva- -euas os limites de elasticidade dos
das, de crianças de meios sociais altos, não grupos ou comunidade?
tendo conseguido generalizarse. -Quais os núcleos fortes da identidade
Além deste tipo de programa, cujo objecto comunitária ou d o grup?
é o desenvolvimento socio-emocional e cujo
meio de acção é a modificação do clima Questões para que os estudos antropoló-
escolar, outros programas se desenvolveram gicm facilmente chamariam a atenção, já
com o objectivo de melhorar o curriculum, que, praticamente d e d e o início do século
quer nas áreas de aprendizagem m o l a r a Antropologia tinha mostrado serem 06
clássica, quer nas áreas de compreensão da gru1po.s humanos totalidades organizadas,
conduta humana (projecto de Iowa, O: Je- havendo sectores cuja mudança por pro-
man et al., 1955). postaf imposição externa sem fenómenos
Infelizmente, a maior parte destes pro- paralelos de assimila+, tem como conse-
gramas saldou-se por fracassos relativos. qu.ências processos disruptivos de desorga-
Fracassos derivaâos ou do facto de terem nização individual, grupal e comunitária.

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Por outro lado, ignoranâo-se que a inter- vante. Só da própria intervenção poderá re-
venção concebida desta forma clássica sultar o saber que a redimenta. Princípio da
-que se estende até ms nossos dias -põe InvestigaçãolAcção que, de facto, a maior
em movimento uma interface de grupos parte dos programas clássicos ignoraram (’).
diferenciados, ignoravam-se tccmbém as qws- O fracasso relativo dos primeiros progra-
tões imediatas relm’onada com o Poder- mas de intervenção clássicos comunitários
Instituciond te Simbolico, e de identidde tiveram duas consequências: a reafirmação
grupal dos próprios interventores. de que de qualquer modo não há nada a
Finalmente, desconhecendese a exist8ncia fazer: Teoria de Jensen, Eyseack e Cia; a
de fases evolutivm em todo o processo de necessidade de repensar a intervenção comu-
m d q a , não havia preparação para ine- nitária em novos moldes, e a de reequacio-
vitáveis períodos de desorganização, nomea- nar as relações entre Investigação e Acção
damente por [parte dos interventores, tra- -o que caracteriza a última fase evolutiva.
duzidos sob forma de apatia, indiferença, Neste caso uma das consequências da
ou strew, que, não sendo reconhecidos como modificação operadas foi a criação de uma
momentos inevitáveis, tiveram em muitos imagem idílica de clarses p p u l w e s e dos
casos efeitos paralisantes. bairros ((degradadom. Do ataque aos «po-
Para além destes aspectos gerais, que bres)) com a ilusão de os tornar mais ((inte-
estão na raiz do Ifracasso relativo de muitos ligentes)) para os arrancar ao «ciclo de po-
programas de intervenção na comunidade, breza>) passou-se 2 defesa dos pobres, como
outras críticas se levantaram, uma das mais possuidores de uma cultura em blaco posi-
radicais sendo a de Dunham (Dunham, tiva, quando não de uma sabedoria a p m s
1962). Dessas críticas, essencialmente diri- desconhecida. A palavraichave passou a ser
gidas a intervenção comunitária em Psico- «valorização», e o apuramento de responsa-
logia Clínica, assinalamos esta que tem tido bilidade do insucesm social levou conclu-
longa vida: ((carecemos de conhecimentos são de que se as classes ippulares eram
suficientes para estabelecer programas)). rejeitadas, nomeadamente do sistema esco-
Esta observação faz derivar a Acção do lar, isso devia-se apenas ou no essencial ao
Conhecimento. Primeiro, o Saber tão com- facto de a cultura oficial desprezar a cul-
pleto quanto possível; depois o fazer. Por tura do povo.
outro lado, ((oque leva o interventor comu- Bastaria portanto mudar nos agentes de
nitário a pensar que as suas técnicas terão decisão a representação elaborada acerca
um papel verdadeiramente preventivo, quer das classes popular para que as fontes de
no campo da saúde quer no campo da Edu- insucesso social e escolar fossem em grande
cação?)) ((0que o leva a pensar que as suas parte removidas. For detrás de uma afirma-
técnicas serão aceites e rentabilizadas pela ção do direito 6 diferença mantinha-se e
comunidade))? ((Saberá o interventor social mantém-se o poder tutelar dos interventores,
como organizar a comunidade, e se algumas já que, em contextos sociais ou institucio-
ideias tiver sobre o assunto, como pude ter nais, sãcc eles que detêm o Poder de «reva-
a garantia de essa nova forma de organiza- lorizar)) aquilo que a sociedade global parece
ção é melhor do que a actual?)) desvalorizar. A mesma ideologia tutelar
É claro que estas observações colocadas
no contexto, serão legítimas. Só que elas são
necessariamente datadas: a única resposta é (’) É desnecessário sublinhar que com csta
afirmação não se pretende desqualificar o Saber
que o interventor comunitário não sabe nem em nome de uma acção dotada de valores míticos.
poderá saber ‘a priori’ coisa nenhuma, ou O que está em causa é apenas o epicentro da
quase coisa nenhuma verdadeiramente rele- origem do Saber.

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que animava as intervenções clássicas man- inovador. No entanto, desde o início se pro-
têm-se, mas invertida. E a escotomização curou ((seduzir)) os não profissionais, valo-
de relações sociais de Poder que no entanto rizando as suas qualidades ao ipnto de se
se mantêm é a consequência lógica desta expliicitar que não só 05 não prafissionais
ideologia da diferença. não teriam grande coisa a aprender com
Esta escotomização é lperigosa, e a «vaio- os técnicos mas até teriam mais a dar do
rização)) em muitos casos ipouco convincen- que a receber. Deram-se assim condições
te, já que ou se «valoriza» em bloco cultu- de auto-avaliqão irreulista aos não profis-
ras que não estão bem entendidas, ou se faz sionais, alimentadas por uma retórica igual-
uma operação de diferenciação entre ele- mente irrealista.
mentos culturais valorizáveis e elementos Até que surgiu um ((analisador colectivo))
culturais não valorizáveis. Mas no primeiro importante: a realização de um cori;resso
caso a situação é comprometedora, uma vez subsidiado. A questão que logo se p6s foi
que os próprios interessados não verão em a de saber «de quem era» o congresso, se
que é que muitos des seus traços culturais dos profissionais se dos não profissionais,
são interessantes ou benéficos; no sqgmdo c a seja, tratava-se de saber quem teria ca-
caso, o Poder de decidir o que é valorizável lpacidade de decisão naquela matéria. Os
e o que não o é recaindo sobre os interven- não profissionais exigiram que fossem eles
tores mantém-se a mesma atitude tutelar próprios a ter grande parte de capacidade
geradora de dependência quando não de de decisão, a ter autoridade no que res-
incompetência. Ou seja: ou se dá a rejeição peita a definição do prografma, indicação
de intervenção comunitária, ou pequenos dos convidados, etc. Os profissionais não
grupos apenas constriem como auto-imogem aceitaram essas exigências; criou-se uma
fictícia a imagem que os intewentores a seu situação de conflito agudo, e o Congresso
respeito decidiram daborar. Em qualquer foi anulado. Pouco depois, o próprio pro-
caso, a rentabilidade comunitária de inter- grama era anulado.. .
venções mimadas por esta ideologia é baixa, A origem deste «estranho» processo en-
nula ou negativa. contra-se no facto de os profissionais em-
Um exemplo interessante, embora indi- bclra «aceitando» verbalmente a retórica de
recto, a este respeito, é o do Programa de valorização dos seus prolfissionais, não esta-
Saúde Mental Comunitária do Hospital vam na prática dispostos a d e r quanto às
Lincodn em Nova Iorque (7. Programa suas prerrogativas enquanto agentes de to-
extremamente bem elaborado, que recebeu mada de decisão. Claro que esta atitude,
inclusivé a ((Silver Achievement Award» associada A retórica de valorização, levou
como ((reconhecimento pela combinação os não profissionais a centrarem a sua aten-
única entre serviços e as inovações para ção em questões de poder, e a reagir de
chegar a Comunidade)), e que, seis meses diversas formas, a última das quais foi o
depois sucumbia numa crise profunda. problema em redor do Congresso. Mas antes
Neste programa empregavam-se não-pro- disso já tinham assumido uma atitude de
fissionais como auxiliares de saúde - o que resistência em relação a quaisquer decisões
era, sobretudo nesta matéria, altamente tomadas pelos profissionais, e até a exigir
credenciais que lhes permitiriam subir na
hierarquia. Fracassando estas exigências,
(3) Sem dúvida que devemos agradecer a Amé-
iniciaram reivindicações, i m p í v e k no
rica, fornecer-nos diversos exemplos de progra- 'plano económico. A seguir, o prestigicwxial
mas e de projectos que alimentam a crítica e a de pertencer ao programa foi inutilizado na
especulação. luta pela liderança da comunidade, aca-

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bando o programa por ver envolvido em terventores a transformarem-se em meios
questões que não lhe diziam respeito. auxiliares de professores, de educadores ou
Vê-se como uma série de erros paradig- dos agentes comunitários. Neste caso, a
máticos foram aqui cometidos, todos a quase 20 anos de distância, reprcduz-se o
volta de uma questão que sempre fora cui- problema posto no Centro Lincoln, com
dadosamente silenciada: a questão do Poder uma variável a mais: o desconhecimento
e mais particularmente do diferencial do dcs investigadores, é altamente cullpbili-
Poder entre os diversos interventores no zado, e acaba por destruir a identidade dos
programa. (Roman M. -Cclmunity con- investigadores/interven tores que abdicam
trol and the Community mental Health da sua função: intervir ncs processos de
Center: a view from the Lincoln bridge. mudança para os analisarem e compreende-
University and Community Relations, Nov. rem tanto quanto possível, reinjectarem esse
21, W., D. C.). conhecimento na Teoria de Mudança, e
Note-se tanbém que esta questão do criar condições de elaboração de uma Teo-
Poder não só foi silenciado, mas em para- ria de intervenção comunitária sem a qual
lelo atravessolu o Programa desde o início: qualquer processo de dinamizaçãa da expe-
por detrás da ret6rica de valorização escon- riência é impossível. Ou seja: neste caso
dia-se decerto a incapacidade não conscien- extremo, não são os não profissionais que
cializada nem assumida por parte dos res- são encaminhados para prwessos de auto-
ponsáveis em assegurar a formação de não -avaliação imediata, mas são os próprios
profissionais. A -ta reactiva genera- profissionais que se transfomam em não-
lizada a esse tipo de incapacidade, naturol -profissionais, via que, nestes casos se con-
e inevitável em programas inovadores, foi sidera erradamente ser a única para não
a sua negação pela afirmação de que «eles reproduzir uma ideologia de tutela.
não tinham nada a aprender e até mais a Em resumo, se procurarmos as dificulda-
ensinar)). 0 que não deixa de ser bonito, e des dos programas de intervenção camuni-
até pode ccmtribuir para a felicidade mcmen- tária, tanto no campo da educação como no
tânea dos interventores, mas deixa um pro- da saúde, identificamos...:
blema insolúvel em aberto: se eles sabem
mais, então são eles que devem comandar. -a manutenção dos processos de des-
O esquecimento reactivo e defensivo de pro- qualificação comunitária;
fundas relações entre saber e Poder, e a -a ifabricação de programas de «correc-
ausência de trabalho sobre elas, levanta ção» independentemente da própria
sistematicamente problemas e grandes difi- comunidade, a priorísticos, derivados
culdades A execução de programas comu- mais das Teorias do desenvolvimento
nitários, e, diga-se de passagem, em duas do que do interface interventores/
direcções, igualmente escotomizadas: ‘quem /comunidade ;
sabe tem de decidir’; mas ‘quem decide tem - o carácter fragmentado de interven-
de saber’... ções, ccm definições de populações-
Outra consequência ainda negativa do -alvo muito específicas, que ignoram
fracasso relativo dos programas aqui desig- que a comunidade é um tecido social
nada por clássicos foi a recusa da dimensão feito de interacções fortes, de tal forma
investigativa de qualquer intervenção. Em- que intervenções pontuais parecem
bora mais discreta-e acumulada com a estar condenadas a partida;
ideologia da valorização - esta tendência -ausência de sensibilidade ao ponto de
transformou a Tnvestigação/Acção em acção não ser a comunidade que é uma tota-
desordenada, e levcu os investigadores/in- lidade clrganizada, mas que qualquer

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programa de intervenção passa a envol- cujo núcleo é a família)), ou que a ((religião
ver numa estrutura de conjunto 05 pode ser um factor de união e de integra-
próprios interventores, pondo-se desde ção)}, ou que «toda a Comunidade cobre
logo a questão da sua formação con- uma certa área geográfi'ca e que a sua iden-
tínua; tificação se localiza em algum acidente geo-
-ausência de reflexão scbre as vitais gráfico ou na organização social dos seus
questões de Poder Simbólico, tanto no membros)) não adianta muito. Por outro
que respeita as relações mútuas entre lado, o problema para nós, neste momento,
os interventores, como as relações não está tanto em analisar a noção de iden-
deste com a comunidade, como ainda tidade comunitária, grupal ou individual,
às relações que se vão desenvolver mas em assinalar alguns dos meios pelos
dentro da própria comunidade; quais ela se pode constniir. No entanto, se
-a ausência de reflexão sobre as ques- considerarmos provisoriamente que uma
tões da mudança e da identidade comunidade se define pela existência de
comunitária, grupal e individual, e de relações de 'pertença a um macro-grupo de-
teorização suficiente sobre o assunto; finido fortes, dotadas de um potencial posi-
-relativa segmentação da acção, que tivo, teremos de concluir que as cmunida-
ora incide sobretudo nas representa- des com as quais se desenvolveram prugra-
ções ora sobretudo nos comportamen- mas de desenvolvimento se caracterizam a
tos; partida por uma relativamente fraca iden-
-ausência de dispositivos adequados de tidade, já que ou não existem nos seus indi-
enquadramento dos interventores, que víduos ou grupos um forte sentimento de
lhe permitam assegurar a sua forma- pertença, ou se 'existe é percepcionado mui-
ção e autoformação, e ao mesmo tas vezes negativamente. Por outro lado,
tempo metabolizar frustração, stress e estas comunidades autodefinem-se muitas
em muitos casols crise de identidade vezes como excluídas; ou seja, elas são
profissional que qualquer processo de aquilo que os outros-a vida, a sociedade,
intervenção implica. o sistema-as obriga a ser-o que trans-
forma o critério de delimitação comunitária
Noutro plano, deve assinalar-se o facto e de rderenciação individual 0111 grupal, em
de muitas das metodologias de intervenção critério heteronómico e não autonbmico.
se elaborarem a pmtir do modelo de inter- Sendo assim, é lbgico que o nível de a u t o
venção na crise, o que perverte a dinânima -organização comunitária seja baixo, que a
de intervenção Comunitária em sentido lato, estabilidade da rede interna das relações
e leva um permanente sindroma de urgência seja fraca, e que a partilha de atitudes, re-
que funciona corno factor vital e sempre presentações e comportamentos seja mais
presente de resistência a mudança. imposta do exterior do que gerada do inte-
rior. Tudo isto contribui - e tanto nos indi-
Destas .observações resulta evidentemente víduos como nos grupos, embora de uma
uma orientação que as tem em conta e, na maneira diferente -para uma fomrte inca-
medida do possível, (procura corrigir. pacidade de detectar e resolver problemas,
O primeiro aspecto a assinalar diz res- tanto na esfera da saúde, como da educação
peito a identidade comunitária. Infeliz- ou da seu estar físico (mínimo. Se se obser-
mente, não conhecemos nenhuma análise var sincronicamente este tilpo de comuni-
suificiente deste problema nem nenhuma teo- dades pareceria que o seu problema básico
ria satisfatória sobre o assunto. Dizer que reside na enorme anomia social que as ca-
«a comunidade é a icélula da vida social racteriza.

629
Parece-nos, portanto, que este é o pri- de serviços, etc., etc., são actividades que
meiro problema a resolver. Colmo elevar a podem contribuir decisivamente para a iden-
identidade comunitária em bases positivas? tificação da comunidade.
Pensamos que a construção da identidade E isto é independente dos benefícios ime-
se faz por referenciação a núcleos interiores diatos que tais actividades podem trazer.
e pelo estabelecimento de relações de dife- Dir-se-ia, porventura com algum exagero,
renciação face a segmentos sociais externos. que o essencial nestas actividades é que se
Ou seja: a identidade de um grupo é um constro~em,no plano interno e na fronteira
processo ao mesmo t m p o grupal e inter- dos grupos, núcleos estabilizadores de iden-
WPl. tidade, que deixam de ser determinados
Neste sentido, em 'primeiro lugar, todos negativamente, e passam a ter valor interno
os elementos susceptíveis de se constituir intrínseco. Ora um grupo social dotado de
como núcleos internos de identidade devem critérios de referência originados de dentro
ser desencadeados comol preocupação prin- é um grupo social capaz de resolver 05 seus
cipal. Grandes rituais comunitários, estão problemas.
neste caso. E estão neste caso em primeiro E supomos que se muitos programas de
plano. As festas comunitárias são normal- desenvolvimento Comunitário falham, isso
mente vistas como meios para atingir outros deve-se a terem insistido prioritariamente
fins, considerados mais importantes: difusão em comportamentos ou simples representa-
de informação sobre saúde ou educação,
ções, e em terem deixado de lado a dinâ-
mobilização de famílias, etc. Ou seja: são
instrumentos tácticos de desenvolvimento mica da identidade, que é o único suporte
comunitário. Ora estamos em crer que há possível para a manutenção de atitudes,
razões para considerar os rituais comu- representações, e condutas capazes de pro-
nitários instrumentos estratégicos de pri- mover a saúde e a educação e de manter a
meiro plano na construção interna da iden- vida da própria comunidade.
tidade Comunitária. Se assim for, uma consequência se im-
Mas a estes núcleos internos potenciais põe: para atingir estes fins, (ou quaisquer
de identidade, há que acrescentar a esfera. outros de resto) no campo de desenvolvi-
das relações como o out-group. Essas rela- mento psicológico e educacional das comu-
ções só contribuem para a identificação nidades, não é possível definir planos de
comunitária se ultrapassarem o campo de acção de fora e pro@-los/impÔ-los secunda-
referenciação heteronómica, e se constituí- riamente a comunidade. Esses planos de
rem em critérios autonómim de diferen- acção têm de ser negociados e definidos c<rm
ciação. Neste campo, todos os processos de a comunidade, de acardol com as necessi-
elevação de competência social no relacio- dades pressentidas por estas. E dizemos
namento com segmentos sociais externos k pressentidas p r q u e evidentemente é prová-
comunidade se podem revelar eficazes. Or- vcl que as crimeirai. necessidades definidas
ganização de mulheres para elevar a sua peIa comunidade sejam tão falsas ou de im-
capacidade de negociação como empregadas possível satisfação quanto aquelas que os
dombticas, organização de famílias for- interventores sociais, de fora, ou mesmo
madas para discutirem em pé de igualdade após inquéritos sociais, imaginam. Dizemos
com os outros responsáveis educativos que negcciadas porque a satisfação imediata e
são os professores e educadores, organização exógena de qualquer necessidade apenas per-
de grupos capazes de gerir saídas de crian- mite manter o stutus guo de ideologia tutelar
ças, ou de assegurar a resposta comunitária e assistencial, e contribue, mais gravemente,
em relação 2i saúde, criação de cooperativas para a desidentificação comunitária - do

630
que a expectativa assistencial é aliás um num segundo tempo por elevação da entro-
núcleo. pia individual, grupal ou social, que, se não
O princípio de negociação não é, por- estiverem previstos, podem ter por conse-
tanto, um princípio entre outros. 13 um eixo quência a paralisação do processo ou, pelo
central do desblqueamento dos autocon- menos, desencadear níveis de stress pouco
ceitos negativos da comunidade, dos seus suportáveis. Claro que estas são ocorrências
grupos e indivíduos. a longo termo, já que na esfera organiza-
E cabe aqui uma elucidação importante: cional está estimado que são 'precisos 3-5
anos para que qualquer mudança palpável
quando se fala de negociação - e portanto
de participação, já que não existe negocia- se torne consistente (N. Georgiades e L. Phi-
ção não participada-pode parecer que se limore); a fortiori na espera da comunidade
está a endossar as comunidades a responsa- estes tempos serão mais lmgos...
bilidade de resolução daquilo que o Estado
deveria resolver. E isto é verdade. No en-
tanto, o facto de serem as próprias comu- IDENTIDADE, NEGOCIACAO.
PARTICIPAÇÁO
nidades a resolverem pelo menos alguns dos
seus (problemas, de maneira negociada e
participada, contribuindo para a construção Outro aspeoto que em nosso entender
do seu d f colectivo, contribui para a ele- deve ser tido em conta na dinâmica da
vação da sua auto-imagem, e portanto para intervenção comunitária é o seu carácter
a elevação do seu poder simbólico e capa- global. Persiste-se, na sequência de planos
cidade de negociação com o out-group, clássicos, em definir aprioristicamente objec-
social ou institucional. A t e mo - a longo tivos e populações-alvo no seio da5 comuni-
termo, decerto - as comunidades poderão dades. Para isso muito contribuem agências
ter a confiança em si mesmas e a força para internacionais ou organismos nacionais para
exigir que entidades e serviços assumam as quem a aprovação de projectos depende de
responsabilidades que agora ignoram. uma delimitação clara de objectivos e ppu-
lações. Ou se trata de objectivos no campo
A negociação e a participação são em
dos jovens, ou no da 3." idade, ou na popu-
suma hábitos sociais cuja assimilação vai de
lação infantil, ora na capacidade educativa
par com a redução de expectativas assisten-
de famílias, etc. Contudo parece claro que
ciais e tutelares auto-alimentadas.
a manutenção dos processos dinamizadores
No entanto, intervenções planeadas com
em qualquer segmento da (comunidade de-
este espírito terãc provavelmente momentos
pende da consistência comunitária global, do
em que o nível. de incapauitação da comu-
nidade aumenta, assim como a sua desorga- desenvolvimento comunitário entendido co-
nização. Toda a prática, nomeadamente de mo processo holístico. Quer dizer há uma
mudança organizacional, faz prever isso. zona de forte cruzamento entre os vários
Em matéria de intervenção comunitária é problemas das diversas populações, e é difí-
também necessário que os interventores não cil agir com efeitos estáveis sobre uns sem
vejam o processo de desenvolvimento comu- agir sobre 05 outros. Como dizem, já classi-
nitário como um crescendo contínuo, mas camente 'Katz e Kahn, «a (fraqueza essencial
que saibam que é plausível que em certos da abordagem individual - e, acrescentamos
momentos cs grupos desçam a níveis de nós, grupal -,para a mudança (. ..) reside
eficácia inferiores aqueles que tinham antes na falácia psicológica que consiste em con-
de qualquer intervenção. Até ver, todas as centrar a acção em indivíduos (ou grupos)
práticas eficazes de mudança se caracterizam sem ter em conta as relações... que consti-

63I
tutem o sistema social de que fazem parte)) munidade, numa primeira fase. A dinâmica
(Katz e Kohn, 1966, The Social Psychobgy destes interventores deve ser tida em conta,
ofOrganization). Ou, como afirmam Geor- tanto no plano do t i w de preocupações que
giade e Philimore, é necessário passar de os devem guiar, como no plano dos meios
uma definição individual ou grupal do estratégicos que possuem, como no plano
objecto de acção, para uma conceptualiza- dos processos de apoio e suporte Zi sua in-
ção em termos do sistema. (Georgiades e tervenção, como, finalmente, no piano dos
Philimore, The Myth of Herolriovation seus processos psicológicos, parcialmente
and Alterfiotive Strategies for Organizatio- centrados em redor, aliás, da dinâmica da
rrd Chmge.) Ou ainda, para recorrer a sua identidade social e profissional.
experiência de um especialista em mudança Quanto às preocupações que devem ter
de sistemas, Beckard, «uma mudança não os agentes do desenvolvimento podemos
pode dizer respeito a "fatias" do sistema, destacar, para além daqueles que já foram
scyb pena de fracassar. A unidade na qual se enunciados:
exerce tem a dimensão do sistema)). Para 1 - A tentativa de lidar com os apoiantes
nós, o objectivo básico reside em multipli- do processo de dinamização e desenvolvi-
car as relações de solidariedade no tecido mento, e não trabalhar contra os processos
comunitário, em ordem a elevar níveis de e agentes de resistência & mudança.
competência, melhorar a auto-imagem e
2 - A preocupação em trabalhar siste-
criar condições para novas aprendizagens.
maticamente em equipa, por diversas razões,
A um modelo bidimensional da conceptua-
uma das quais é a de não deixar em mo-
l h ç ã o de acções de intervenção comunitária
mento nenhum indivíduos isolados em frente
é necessário substituir um modelo multidi-
de situações sentidas como stressantes ou
mensional claramente assumido, o mesmo é
ameaçadoras.
dizer que + organização
i linear clássica de
projectos é necessário substituir uma orga- 3 -Trabalhar com as partes saudáveis do
nização em rede de projectos. I3 contudo sistema comunitário, e não com o objectivo
evidente que isto levanta problemas adicio- de «(curar» ou mudar directamente os seg-
nais, quer um plano dos recursos, quer no mentos mais incapazes e incapacitantes.
plano do pr6prio sistema de avaliação, mas 4 -Definir com a comunidade objectivos
isso são problemas de que nos não ocupa- aceitáveis e realizáveis, e realizar a avalia-
mos por agora. ção contínua das acções realizadas, ou seja,
Aqui estão, condensadamente alguns dos levar os indivíduos e os grupos a pensar
princípios que nos 'parecem orientadores da sobre as suas acções e aprendizagens, mes-
intervenção comunitária: -incidência sohre mo que Zi Ipimeira vista em actividade pa-
a identidade comunitária como meio de su- reça inútil. De facto, o ingrediente essencial
parte, nranutenqão e continra'dade da accão; de aprendizagens, mak do que o reforço, 6
negociação permmnte e pwticipqão da a tomada de consciência dessas mesmas
comunidade na definição de objectivo; mn- aprendizagens ou mudanças (Georgiades e
ceptualização Mística e mdtidimemiord Philimore).
da intervenção. 5-Identificar os líderes naturais da
comunidade e procurar trabalhar em con-
junto com os líderes naturais e 05 líderes
INTERVENTORES formais, evitando fontes de conflito entre
ambos.
Mas a intervenção supõe interventores, 6-Procurar atingir uma forte colaboi
normaímente relativamente estranhos & co- ração e uma fraca competição entre unida-

632
des, formais ou informais, independentes. 5." - Aplicando uma noção tirada dou-
Esta preocupação é tanto mais vital quanto tros contextos, as diversas. actividades de
é sabido que «um dos obstácdos maiores 6 intervenção devem situar-se ao nível das
eficácia (das acções) ( e & mudança efectiva) «zonas proximais do desenvolvimento)) CD-
é a quantidade de energia disfuncional gasta munitário, e não ao nível de objectivos mais
em ccmptições inúteis))- energia que não ou menos abstractos definidos heteronomi-
fica por isso disponível para a realização de camente.
tarefas. Finalmente, quanto aos dispositivos de
7-Criar condições que permitam pbr enquadramento dos agentes de desenvolvi-
em evidhwia conflitos, condição tanto mais mento comunitário, eles podem ser de dois
imiportante também quanto um dos proble- grandes tipos: do tilpo clínico; do tipo edu-
mas essenciais dos grupos ou organização é cacional. Nos dispositivos do tipo clínico, o
a energia gcrsta inutilmente para ladear, objectivo é o apoio aos interventores em
evitar ou mascarar conflitos inevitáveis. termos de grupo, sob a forma daquilo que
8 -Criar condições que permitam evitar genericamente 5e chama ((treino de sensi-
que o trabalho sobre conflitos evolua para bilidade)). Pretende-se através da discussão
fora do terreno específico em que se situam, de casos, ou de fenómenos que ocorram no
nomeadamente atravk de polarização a ní- própricl grupo, elevar a'capacidade de escuta
vel superior e mais abstracto. .dos interventores e diversas outras capaci-
9-Criar condições também para que as dades como a de utilizar questões abertas,
decisões sejam tomadas em função da infor- resumir, focar, clarificar, planear, desenvol-
mação disponível e não em função de pa- ver estratégias de resolução de problemas,
péis organizacionais ou grupais. Quanto aos etc. Não considerando inúteis estas técnicas,
meios estratégicos, 06 interventores S a i s parece-nos que o modelo educacional de
devem ter em conta, de maneira sistemá- intervenção apresenta vantagens, até no
tica, alguns princípios relativos k aprendi- campo da mudança de atitudes. O disposi-
zagem e & mudança, corno efectivas guias tivo básico, neste caso, é o Seminário, onde
de acção. os interventores realizam ~Manços plerió-
dicos das suas acções, e analisam os proces-
1." -Não é possível ensinar outras (pes-
sos de reformulação de estratégias em curso,
soas directamente e obter mudanças estáveis
e asseguram o essencial da autofornação
d a comportamento; apenas é p í v e l faci-
permanente. Trata-se neste caso não de ana-
litar as aprendizagens e os processa de mu-
lisar dinâmicas mentais mais ou menos pro-
dança.
fundas, mas de confrontar cada equipa com
2.O-Uma pessoa ou um grupo aprende as suas prbprias acções, atitudes e represen-
apenas aquilo que perceipciona como contri- tações, e de levar todos a reflectir sobre as
buindo para a manutenção ou desenvolvi- acções realizadas, dentro do princípio de
mento do selj. que o princispl reforço é a tomada de cons-
3."-Experiências que envolvam uma ciência das tarefas, das dificuldades, e dos
alteração ou uma ameaça para o self icndi- ~passcsreaiizados como condição de apren-
vidual ou grupal são distorcidas ou negadas. dizagem efectiva.
4."-As situações educacionais e de mu- Neste Seminário, por outro lado, apli-
dança mais significativas, enriquecedoras e cam-se os mesmos princípios de acção que
estáveis são aquelas em que 0s factores de se espera que os interventores venham a
ameaça ao equilíbrio atingido são reduzidos aplicar na sua relação com a comunidade.
ao mínimo e em que as pcssibilidades de Aplica-se a negociação permanente, e a
auto-aprendizagem são mais elevadas. definição progressiva, negociada e partici-

633
pada dos objetcivos e meios de acção; não a uma nova forma de estruturação, que já
se impõem programas de formação especí- tem em conta mais facilmente a experiência
ficos nem treinos de competências por es- do terreno, o que mostra que e que não era
pecialistas que, de fora, viriam explicar visível ou era escotomizado na primeira fase
como fazer; acentua-se a necessidade de se tornou acessível, ao1 mesmo tempo que
autoformação como processo do qual pode- um processo de mudança real se começa
rão decorrer acções de folrmação negocia- a instalar.
das. Em suma, remove-se dos dispositivos de Como assinalam alguns interventores co-
apoio aos mecanismos que produziram no seu munitários reflectindo sobre a sua acção:
interior aquilo que se pretende ver remo- ((inicialmente houve a preocupação do defi-
vido nas relações com a comunidade: a ideo- nir metas, programas, detalhes organizati-
logia tutelar e assistencial. Nisto consiste vos, tentativa de cumprir prazos, mas tudo
aquilo que no Movimento da Escola Mo+ falhava, resultando uma grande frustração
derna se tem designado por isomorfismo e desânimo)). Quando.. . aceitaram «ir atrás
pedagógico: As acções de formação são iso- da realidade que ia aparecendo)) aprovei-
mórficas, no plano dos princípios que os tando as situações locais como estímulo
guiam, com a acção do terreno. I3 com- para a acção, começaram a ter os primeirm
preensível que os interventores organizados resdtados positivos junto da população.
em Seminário enfrentem, por isso mesmo, É claro que o operador de mudança, refe-
uma relativa frustração das suas expecta- rido foi o abandono das formas tradicionais
tivas de )formação. de programação, e após um segundo m e
€3 que estas expectativas são moldadas mento critico, a sensibilidade/descoberta
pelo modelo escolar clássico, que traduz das ((realidades que iam aparecendo)). Claro
mais umavez uma ideologia de tutela e de que essas realidades estavam no terreno
assistência -desta vez no campo do conhe- desde o início, só que não eram avistas)), por-
cimento, e uma valorização/desvalorização que processos de filtragem perceptiva se
das marcas sociais do Saber e da Ciência. punham em movimento de cada vez que a
O primeiro analisador é precisamente a realidade poderia pôr em causa os hoibitus
relação ao Saber, exigindo-se ao mesmo profissionais, ou seja, uma parte importante
tempo a possibilidade de adquirir por via da identidade.
tradicional nwas competências e afirman- Evidentemente, este tipo de processo en-
do-se que não há novas competências a volve riscos, como todos (ys processos de
adquirir dadas as experiências já acumu- mudança, mas destes riscos o maior é que
ladas. a recusa de dar resposta i3 solicitação de
NO entanto, a manutenção da dinâmica formação clássica, elemento de maior inte-
do dispositivo de formação concebido em resse do modelo, possa funcionar como pro-
termos de isomorfismo pedagógico, negocia- cesso de legitimação do não-Saber num con-
ção e contrato assojciado & necessidade de texto em que o Saber se mantém (clandes-
estabelecer um relacionamento com a comu- tinamente) hipervalorizado. O segundo risco
nidade igualmente na base de negociação e é o de ver o Poder, as lideranças, adoptarem
fora de uma dinâmica tutelar, leva os inter- os mecanismos de resposta compulsivos a
ventores sociais a um processo critico de questões para que efectivamente não têm
desorganização que é um momento rico e resposta, erguendo assim um pseudo-Saber
essencial, se não for excessivamente stres- no lugar do Saber tutelar que se pretendia
sante, do próprio processo de formação. corrigir, em ordem a manter o Poder Sim-
No terceiro momento, a relativa desor- bólico que porventura, e mesmo que muito
ganização dos habitus técnicos cede o passo legitivamente, possuem. Quando momentos

634
deste género ocorrem, a consequência é um Psychiutry: a framework for training, U. S.
processo de infantilização dos interventores, Department of Health, Education and Wel-
fare.
que ou reagem mais ou menos videnta- DUNHAM, H. W. (1965) - ((Comrnunity Psy-
mente em relação .à !própria mudança que chiatry, the Newest Therepeutic bandwagon)),
se vai instalando e em relação a própria Arch. Gen. Psych., 1965, 12.
dinâmica auto-formativa, ou apresentam GRAY e KLAUS (1968) - «A experimental
uma excessiva dependência face ao Poder Preschool program for culturally deprived
children)), Child Dv., 1968, 36.
tutelar que assim se mantém sob outras GETARY, R. (1985) - Education and Self-
formas. -Esteem, in Mack, J. e Abbou, S.: The De-
Mas a riqueza deste tipo de dispositivos velopment and Muntenance of Self-Esteem
de formação é precisamente a de tornar in childhood,, Int. cln. Press.
esses riscos visíveis, a termo, e permitir, HAGGARD, M. e WEINRICH-HASTE, H.
(1986) - «One generation after 1984: The role
pela tomada de consciência, mesmo que of Psychology», Buli, of the British Psycho-
indirecta, a adopção de prcucessm de reorien- logical Society, Setembro 1986.
tação que tenham em conta as suas finali- JEWMAN, O. et al. (1955)-«The effects of a
dades de origem. 'causal' teacher-training program and certain
curricular changes on grade school children)),
J. Exp. Ed., 1955.
KLAUS e GRAY (1968) - The early training
project for disadvantaged children: a report
BIBLIOGRAFIA after five years, Mon. of the SOC. for Res.
in chiid Dev., 1968.
BIBER, B. (1961) - Integrarion o f Mentd NOREM-HEBEIREN (1976) - «A multidimen-
Health Principles in the School Setting, in sional construct of Self Esteem)), J. Ed.
Caplan: Prevention of Mentd Disorders in Psy., 68.
Chiidren, Basic Books, Nova Iorque. SCHNEIDEI, P. (1985) - Self-Esteem oj parents
BIBER, B. (1967) - «A learning-teaching para- of disturbed children and self-esteem of their
digm for integrating intellectual and affective children, in Mack, J. e Abbou, S., The De-
processem, in Bower e Hollister (Ed.) Beha- velopment and the Mainten'ance o f Self-
vioral Science Frontiers in Education. -Esteeem in childhood, 1985, Int. cln. Press.
CAPLAN (1961) - Prevention of Mental Disor- A Nutionai survey of the Znfant of Head Stwt
der in Children, Basic Books, Nova Iorque. Centers in Community Znstitution, U. S . De-
CAPLAN (1964) - Principies oj Prevention Psy- partment of Health, Education and Welfare,
chiatry, Basic Books, Nova Iorque. 1970.
CAPLAN (1965) - Comrnunity Psychiatry in ZAX. M. e PETER. G . - A n introduction to
S. E. Goddston íed). Conceots. of. Communitv cornmunit y Psychology.

635
INSTITUTO SUPERIOR DE PSICOLOGIA APLICADA

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THE BRITISH JOURNAL OF DEVELOP. PSYCHOL. - VOI. 5(3), 1987
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THE INTERNATIONAL REV. OF PSYCHO-ANALYS. - Vol. 14 (3), 1987

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